Frágil: Uma Notícia Sobre o Medo

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Roberto Lôbo

FRÁGIL Uma notícia sobre o medo


© C O P Y R I G H T 2007 Roberto Lôbo DIREÇÃO EDITORIAL Luís-Sérgio Santos COOREDANAÇÃO DESTA EDIÇÃO Osvaldo Araújo CAPA Camila Barros Xilogravura de Nicolas le Rouge — 1496.

ISBN 978-85-88661-98-1

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Sumário Apresentação A permanência das idéia, 09 Apresentação Complexo e paradoxal, 11 Apresentação Profunda Coerência, 09 Capítulo 1 Capítulo 2 Capítulo 3 Capítulo 4 Capítulo 5 Capítulo 4 Capítulo 7 Capítulo 8 Capítulo 9 Capítulo 10 Capítulo 11 Capítulo 12 Capítulo 13 Capítulo 14 Capítulo 15 Capítulo 16 Capítulo 17 Capítulo 18 Capítulo 19 Capítulo 20 Capítulo 21 Capítulo 22 Capítulo 23 Capítulo 24

Nasce a vida, nasce o medo, 21 É humano ter medo, 23 Uma antropologia do medo, 26 O medo leva ao grupo, 29 O medo leva aos fantasmas, 30 A fantasia nasce no fundo das cavernas, 32 O fantasma ganha espírito, 33 Os primeiros cultos eram rituais defensivos, 39 Fantasmas bons e fantasmas maus, 43 O medo dos fantasmas e a criação de Deus, 48 A crença em fantasmas e suas implicações na vida social, 53 O medo e o papel dos mitos, 54 O medo e a pluralidade de deuses, 56 O medo e a cultura religiosa, 58 A Antiguidade e a cultura do medo, 59 O medo e a figura do demônio, 61 A superstição é filha do medo, 63 A personalidade e os medos adquiridos na infância, 68 As manifestações do medo, 75 O medo de não satisfazer as expectativas sociais, 76 Sobre o vazio existencial e o medo da solidão, 77 O medo da morte e o anseio de vida eterna, 83 O medo de amar e a incapacidade de entrega, 86 O crescimento pessoal e o medo do desconhecido, 88

INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS COMENTADAS, 91



O indivíduo saudável avalia equilibradamente tudo o que a situação sinaliza e escolhe enfrentá-la, caso os obstáculos possam ser superados.



Apresentação

A permanência das idéias O que você quer é a imortalidade, disse Goethe. A imortalidade é um eterno processo (...) - Você fez tudo para tornar-se imortal. - Bobagem, apenas escrevia livros. - Exatamente! Exclamou Goethe. Milan Kundera

P

ara o autor deste diálogo imaginado entre Goethe e Hemingway, existem duas imortalidades: “a pequena — recordação de um homem no espírito daqueles que o conheceram”, e a “grande —

recordação de um homem no espírito daqueles que não o conheceram.” Com certeza, Roberto já alcançou a primeira, imprimindo lem-

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legas, pacientes, leitores fiéis ( alguns colecionam seus escritos publicados em jornais e revistas da cidade) e ouvintes, atraídos por suas palestras e conferências em congressos e jornadas de Psiquiatria e Psicodrama. Roberto se distingue entre os que se distanciam da mediocridade, aqueles que apresentam, como ele, grandes defeitos e grandes qualidades. Destas, emergem sua criatividade, sua independência de pensamento e sua firmeza na realização de metas e ideais. Foi possível observá-lo em plena ação criativa, ao trabalharmos juntos no atendimento de grupos psicodramáticos, durante dois anos. Arquitetava cenas que se enquadravam com perfeição ao diálogo necessário à compreensão do dinamismo psíquico dos participantes e, com maestria, complementava as interações que acenavam com uma libertação interior. Kundera afirma que “existem carreiras que, por princípio, con-

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branças e idéias indeléveis na memória de muitas pessoas: familiares, co-


frontam um homem com a grande imortalidade, incerta, é verdade, até improvável, mas incontestavelmente possível: são as carreiras de artista e de homem de Estado.” Frágil — uma notícia sobre o medo, embora faça parte de uma literatura especializada, é acessível ao leigo. Assim, Roberto se credencia à grande imortalidade, pois certamente conquistará a admiração e o respeito dos leitores que não o conhecem. Em linguagem elegante e simples, o autor faz a exegese do medo, desde os meandros longínquos dos povos primitivos até a contemporaROBERTO LÔBO

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neidade, direcionando para a compreensão de sentimentos atuais como o medo de amar. Este livro, portanto, representa a permanência das idéias de um homem dedicado ao saber e ao desvelamento da mente humana, configurando uma real imortalidade

Sônia Lobo


Apresentação

Complexo e paradoxal

F

rágil. Quebradiço, fraco, pouco durável, sujeito a erros e culpa, adjetivo de uma só forma para os dois gêneros, diz o Aurélio. Diferentemente da letra R, de Roberto, Rodrigo e Rafael,

Frágil é o nome do filho caçula do colega e amigo Roberto Lobo; título do livro que os convido à leitura. Frágil é o título, o tema é o medo, vocábulos de apenas duas sílabas, mas que encerram muito significado. Seu autor, Roberto Lobo, médico psiquiatra, exemplo de filho, irmão, marido, pai, amigo, eu o conheci, em 1969 na Casa de Saúde São Gerardo (hospital de psiquiatria). Eu e mais três colegas acadêmicos que se interessavam por psiquiatria, fomos apresentados a ele, já médico. Na oportunidade, seus grandes olhos assumiram um tamanho maior ainda, em midríase bilateral, ao se fixarem na colega

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companheira de vida, mãe de seus filhos e também parceira de muitos trabalhos profissionais. Roberto Augusto de Mesquita Lobo, cearense de Santa Quitéria, este homem perspicaz, objetivo, dinâmico, empreendedor, tenaz, criativo, alegre, afetivo, do violão e do canto, foi um menino ativo e prescrutador, na fazenda de seu Luís Lobo e de dona Julita (seus pais) e realizou muitas peripécias em que superou receios e obstáculos em seus folguedos lúdicos, no ambiente sócio-geográfico da zona rural. Os atos de subir em árvores, embrenhar-se nos matos, buscar pássaros, andar à cavalo, cair, banhar-se em represas, com liberdade, prazer e alegria, estimularam sua espontaneidade e contribuíram significativamente para o perfil de sua personalidade. Superados os desafios infantis, vieram os da juventude, a mudança para a capital, os afazeres

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Sônia Carneiro, que, poucos anos depois, se tornaria Sônia Lobo, sua


e a disciplina da caserna, (em breve período), o estudo da medicina, a opção pela psiquiatria. Em seus desafios, Roberto, em associação com o Dr. Leão Santiago e o Dr. Glauco Lobo, criou uma organização hospitalar (Hospital Mira y Lopez), em meio a muitas dificuldades. Depois, buscou, na Cidade Luz, auferir conhecimentos da psiquiatria francesa. Ao retornar ao Ceará, Roberto, com a ajuda de outros colegas (e iniciativa da mulher) contribuiu decisivamente para a implantação do Psicodrama no Ceará, um instrumento para muitos psiquiatras e psicólogos de organizações públicas e priROBERTO LÔBO

vadas e um benefício para a comunidade. Com outros colegas, participou da criação da Associação Cearense de Psicodrama e idealizou e liderou a criação do Instituto do Homem, órgãos de formação de psicodramatistas.. Incorporou o método psicoterápico de Moreno às suas atividades profissionais, em ambulatório público, em hospital, em escola, na clínica privada, nas aulas dos cursos de formação e de especialização em psicodrama.

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Psicodrama bipessoal, de casal, de família, de grupo, passaram a constituir sua prática quotidiana. Por ter tido o prazer de participar, como psicodramatista, de várias de suas atividades profissionais, e de tantas outras, lúdicas e sociais, pude testemunhar a sua competência, seu talento e sua extraordinária criatividade. Já há algum tempo, Roberto passou a escrever artigos em jornal e revista locais. Provocado por parentes, amigos, clientes e leitores, o dileto amigo empenhou-se em nova realização, a de escrever um livro. Ei-lo, que surge: Frágil, uma notícia sobre o medo. Para mim, foi uma agradável e honrosa surpresa, o convite para ser um dos apresentadores. Frágil é como o ser humano se sente, em muitas ocasiões, quando tomado pela experiência subjetiva do medo, um dos gigantes da alma (lembro Mira y Lopez). Este fenômeno é um companheiro presente na história da humanidade. É nosso aliado em muitos instantes e nosso adversário implacável em muitos outros. Instantes há, em que somos senhores dele; em diversos outros, ele é nosso senhor. Complexo e pa-


radoxal, como nós!!! Os conteúdos discorridos pelo autor, logo adiante, são produtos de muita leitura, muita reflexão sobre elas, de suas vivências como pessoa, em diversos papéis e, muito particularmente, das reflexões sobre a prática da clínica, do trabalho diário com o medo, esta emoção tão presente na clientela. Ele trata o tema numa exposição clara, leve e rica. Uma notícia sobre o medo não deixa de ser um eufemismo, em face da configuração de conteúdos encontrados sobre esta emoção, num Frágil que é forte. Este livro trata, não só dos atributos próprios que caracterizam o medo, mas também de aspectos sociológicos, antropológicos, históricos. O autor, pois, aborda o fenômeno do medo em suas diversas formas de expressão, em contextos os mais variados, na sua participação da formação e desenvolvimento da personalidade do indivíduo, na família, em fenômenos sociais, na mitologia, nas práticas religiosas, em fatos históricos relevantes. Logo no início, o leitor encontrará considerações sobre a gênese

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nha de ter medo, por ser este um fator humano que viceja em simbiose com o desejo, sem os quais o ser humano não evolui. Logo, ele, o medo, é apresentado em seu paradoxo, de ajuda e de obstáculo. Num momento o autor revela que ele leva ao processo grupal, noutro, que leva à ideação dos fantasmas, bons e maus, dos rituais defensivos, e fala das crenças medrosas e suas implicações no papel dos mitos, na pluralidade dos deuses, no papel atemorizador do demônio, na superstição. Num outro espaço do livro, no capítulo 20, o medo aparece na não satisfação das expectativas sociais, o medo do fracasso. O leitor, se se permitir exercitar sua curiosidade e avidez pelo tema singular, encontrará no capítulo 21a referência ao medo, em forma de vazio existencial e ao medo da solidão, em seus aspectos mais toleráveis e também nos seus mais sofridos, fruto da dicotomia existencial do

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da vida biológica e do medo e poderá se tranqüilizar de não sentir vergo-


homem, integrante e separado da natureza, pela consciência (relembro Erich Fromm). Nos capítulos finais, o autor ocupa-se de outras fortes expressões de medo: o medo da morte com o desejo de vida eterna e o medo de amar, de entregar-se. A leitura pode estimular a uma reflexão sobre o medo da morte, esta possibilidade autêntica (para lembrar Heidegger). A sua negação, sua escotomização da consciência e seu conseqüente refúgio no inconsciente (lembro Freud) possibilitam que seu conteúdo constitua um importante núcleo de “coex” a integrar a “sombra” da personalidade ROBERTO LÔBO

(lembrando Grof e Jung) e a comprometer a autonomia do ego, o que o autor afirma como inapropriado para uma convivência social saudável. Ainda, de forma clara e amena, encontramos o comentário à identificação do medo de amar nas insatisfações das relações amorosas, que Roberto tanto trabalhou em sua clientela. Por fim, no último capítulo, são destacadas as considerações filo-

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sóficas sobre o crescimento pessoal, sobre a necessidade de se vencer a inércia, necessidade de abertura para o novo, para que haja a transformação do ser. Transmutação da energia do medo? (lembro F. Perls). O tema me parece interessante, oportuno, atual, num momento em que nós humanos ainda vivenciamos o medo a todo instante: medo de doenças, medo de assalto, de seqüestro, medo de bala perdida, de acidente, medo de desastres ecológicos, medo de guerras, medo de fracasso, medo do inferno, medo da morte, medo de amar. Quem sabe, medo de ler sobre o medo? Oxalá o leitor não tenha medo de servir-se, á vontade, de Frágil, pois em si, ele não é o próprio medo, mas é mais que uma notícia (interessante e saborosa) sobre o medo.

Jucionou Coelho Silva


Apresentação

Profunda coerência

Q

uando interpelada por Roberto Lobo a escrever uma “Apresentação” para este Frágil: uma notícia sobre o medo, foram dois os principais sentimentos: o de sentir-me profunda-

mente honrada, presenteada mesmo, com a escolha e o de uma certa surpresa. Desde quando o doutor Roberto precisa de apresentação? O psiquiatra respeitado por seus pares e tão querido por seus inúmeros pacientes, que carrega, entre seus muitos feitos, o de ser um dos pioneiros do Psicodrama no Ceará, fundador que foi da Associação Cearense de Psicodrama (ACEP) e seu primeiro presidente;o terapeuta com especializações no Institut Riviére e no Hôpital Sant’Anne de Paris; o fundador/idealizador do Hospital Mira y López e da Fundação Instituto do Homem, que formou tantos de nossos psicodramatistas, indubitavelmente dispensa apresentações.

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anos, meu professor, terapeuta, supervisor, colega de trabalho e Amigo. Juntos, trabalhamos por vários anos com terapia de grupo em seu belo consultório debruçado sobre a Beira-Mar. (Sempre brincamos que a vista, por si só, já era terapêutica). Em nenhum momento, o dr. Roberto (mantenho aqui o “doutor” como fórmula de respeito, que em absoluto impede o sentimento de amizade) deixou de transparecer a profunda coerência, a “presença em si”, a retidão de caráter aliada à profunda compreensão e compaixão pelo ser humano, que são suas marcas registradas. E como deixar de fazer referência nesta “Apresentação” à sua alegria de viver, a seu senso de humor que transbordavam na acolhida calorosa, no abraço terapêutico, com que recebia cada paciente? Relembro aqui o depoimento da psicanalista famosa, que, em idade avançada, avaliando

FRÁGIL — UMA NOTÍCIA SOBRE O MEDO

Conheço Roberto Lobo desde 1990. Tem sido, ao longo destes


seu próprio trabalho, dizia ter ajudado apenas os pacientes frente aos quais humanizou-se. A contabilidade do dr. Roberto é bem mais generosa. A humanidade neste sentido parece nunca ter se ausentado de seu exercício profissional. Ademais, acostumamo-nos todos a ser presenteados, de forma bissexta, com as suas crônicas inteligentes. Publicadas, de forma mais esporádica do que desejaríamos, forçavam-nos a pensar, a tirar folga da rotina do não-aprofundamento das nossas grandes (e nunca esgotadas) questões. ROBERTO LÔBO

Sob o título instigante de Frágil: uma notícia sobre o medo, estão 25 capítulos arrumados em duas partes principais. Na primeira, encontraremos uma compilação da história dos medos de nossa espécie e seus desdobramentos, as superstições, e, na segunda, as defesas que erigimos para enfrentá-los no entrecruzamento entre a história coletiva e a individual. Aí, sobretudo, encontraremos a rica experiência

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do autor e sua filosofia de vida. Subitamente, entre um parágrafo mais erudito e outro, quase que ouvimos — literalmente — a voz do autor, a presentear-nos, a compartilhar conosco, o que aprendeu e decantou na tessitura de sua existência. Sua generosidade transborda ainda nos comentários à bibliografia consultada que vêm no final do livro. Bibliografia que nos dá a pista da riqueza dos interesses e da inquietação existencial do autor, pois reúne historiadores de porte a teólogos, cientistas sociais, filósofos e, last but not least, psicoterapeutas. Por fim, a preocupação legítima com os rumos de nossa civilização e com a sobrevivência de nosso planeta transparecem a cada linha revelando o quão antenado está Roberto Lobo à época a qual pertence. Referenda assim a indagação de Jean Delumeau: “Refinados que somos por um longo passado cultural, não somos hoje mais frágeis diante dos perigos e mais permeáveis ao medo do que nossos ancestrais?”. Algumas das possibilidades de resposta a esta pergunta e, mais


ainda, as pontes possíveis para que a superemos, a frágil esperança, estão nas páginas deste livro que agora temos nas mãos. Caterina de Saboya Oliveira

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A única maneira de melhor administrar e fazer jus à grandiosidade que é o fenômeno humano é tomar consciência da sua existência.” Roberto Lôbo



Capítulo 1

Nasce a vida, nasce o medo

O

tempo é lento e longo, impossível de medir. Porém, é preciso voltar aos tempos mais remotos para imaginar o inimaginável momento da criação da vida, fenômeno de entranhas obscuras,

que está sendo recriado pelo conhecimento científico. Tal extraordinária história da vida sugere um cenário inicial caótico: vidas desabrocham e extinguem-se em profusão, em pequenos eventos bioquímicos rápidos e sutis. Mutações estonteantes acontecem ao sabor do acaso. Neste processo repetitivo e demorado, neste ambiente pleno de casualidades, algumas vidas resistem às condições insalubres do meio e inauguram novos processos, anexam-se umas às outras, expandem-se, dividem-se, reproduzem-se, passam a existir enquanto espécies, incorporando à sua estrutura orgânica esses — digamos — ajustes adaptativos. São ajustes incorporados que se tornam duradouros, quando tra-

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tente às hostilidades que a cercam, ameaçam e agridem. Assim, constata-se que as forças mais primitivas do organismo vivo têm um objetivo preciso e não requerem aprendizado: há uma aptidão inata e uma articulação automática das atividades mais elementares. Um movimento que flui para a vida, onde tudo está permanentemente em busca da sobrevivência. Ademais, as chances de sobrevivência aumentam de maneira significativa com a adoção de alguns inovadores mecanismos de proteção, que se caracterizam pelo poder de estimular: os impulsos e os instintos. É abissal a distância, no tempo, entre o hoje e o momento na biologia em que surgem os impulsos e instintos. É revelador da força da natureza o fato de que ambos ainda usem os mecanismos originais, funcionem do mesmo jeito e continuem responsáveis pelo destino de todos, pelo sucesso de uns e pelo desatino de outros. A anexação ao organismo

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zem alguma vantagem adaptativa para a espécie, tornando-a mais resis-


destas duas aquisições individuais criou e garantiu o poder de induzir determinados estados fisiológicos, que, com o passar do tempo, ganharam visibilidade em nossa intelecção, e hoje respondem pelo nome de “emoções”. Emoções... são tantas! São a própria sensação de existir. Tornam a vida complexa, rica, colorida, dando-lhe tempero indispensável. São tantas e tão freqüentes, tão à flor da pele, que quase se ignora o quanto são profundas, antigas e primitivas as suas raízes. A evolução da família humana deve muito a uma dessas emoções mais primitivas: o medo. Os ROBERTO LÔBO

seres que sobreviveram e evoluíram foram sempre exatamente aqueles que aprenderam a identificar e a selecionar as situações e os elementos capazes de conformar ameaças à sua constituição e preservação. O medo é uma emoção fundante: faz parte do repertório fisiológico de defesa de todo ser vivo e existe para preservar a vida. É também uma emoção inseparável dos seres vivos e, em se tratando do ser humano,

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a sua compreensão e seu funcionamento tornam-se um pouco intrincados e complexos, na medida em que, possuindo psiquismo — uma mente criadora —, o homem tem a capacidade de engendrar novos medos, medos que podem muito, medos capazes de provocar reações em cadeia e desdobramentos vários, como o comprometer do processo natural de formação da personalidade. Para superá-los, há a necessidade de que o indivíduo seja capaz de distinguir quais são os medos que realmente têm a ver com ele, e têm uma sadia função, daqueles que nele foram incrustados, pela família e pela cultura, e tendem a trazer apenas desarmonia e desequilíbrio. Ao ultrapassar a primeira barreira da distinção entre os diversos tipos de medos, o indivíduo estará apto a enfrentá-los, e poderá talvez reencontrar a espontaneidade e a alegria de viver. Os medos mais primários foram adquiridos durante a formação das espécies. Entre eles, temos o medo da dor física, o medo do fogo e dos fenômenos naturais, além do medo das feras e dos animais peçonhentos. O medo de cobra é comum a quase todos os animais. O bebê


humano e o filhote de outras espécies animais, por exemplo, reagem instintivamente, sem aprendizado prévio, com afastamento e temor à presença de qualquer ofídio. O medo pode, porém, ter um efeito devastador na vida do indivíduo, levando-o a perder a capacidade de pensar e agir com espontaneidade. O medo pode confundir o homem: posto diante do que seria uma oportunidade, o indivíduo afetado afasta-se da situação, porque esta lhe parece constituir uma ameaça à vida e à própria personalidade. A sensação causada pelo ambiente de terror que envolve essas pessoas é que finda por decidir como e quando é preciso atuar. E a decisão, nessas circunstâncias, não é boa. A escolha de que situação enfrentar, e de como e quando enfrentar, poderia ser feita com racionalidade. O indivíduo saudável avalia equilibradamente tudo o que a situação sinaliza e escolhe enfrentá-la, se a relação risco-benefício se apresenta favorável, caso os obstáculos possam ser superados. Então, ele arma-se de todas as suas potencialidades para frentar as agruras da realidade.

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aproveitar a oportunidade ou, se for o caso, reúne todas as forças para en-


Capítulo 2

É humano ter medo

D

as emoções humanas, o medo é talvez a mais antiga. Possivelmente, somente a sensação de dor o antecede. Em detalhe, o medo se expressa através de uma mobilização psicofísica. Ao

sentir-se em face de algum tipo de perigo, real ou imaginário, o organismo reage com o disparar de modificações neuroendócrinas e circulatórias, que

ROBERTO LÔBO

afetam toda a situação de equilíbrio anterior. Dentro do processo evolutivo, a aquisição da mente e o alargamento posterior de suas fronteiras deram origem a uma nova categoria de medo: os de natureza psíquica. Estes medos só os têm aqueles que, de algum modo, são capazes de imaginar e idear a sua própria existência. Assim, são muito comuns e inseparáveis da condição humana.

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A nascente mais primária destes medos está nas dificuldades que o indivíduo encontra durante o processo de formação da personalidade. Suas raízes geralmente estão fincadas na história da pessoa e na interação desta com o ambiente familiar — sobretudo, com a mãe. Muitos destes medos são transmitidos e assimilados através do ambiente sócio-cultural como “realidades”. Aprendemos desde a mais tenra idade a crer que determinadas emoções são “más”, enquanto outras são “boas”. No entanto, as emoções não estão vinculadas a qualquer código moral: as emoções não são nem contrárias nem conforme a moral: são amorais. Senti-las é bem diferente de comportar-se exatamente (agir) com base nelas. A inaptidão para lidar com as emoções é o que mais embaraça a convivência social. Aliás, todas as vezes em que o indivíduo dá-se o desplante de agir ao sabor das emoções, ele corre o risco da prática de atos inconseqüentes. Assumir que sentimentos como o egoísmo e a desambição, a dominação e a submissão, a avareza e a generosidade, a frouxidão e a afoiteza


e a inveja e a despretensão existem, em maior ou menor intensidade, na estrutura de cada pessoa, é mais conveniente do que simplesmente reprimi-los. A questão é que se perde o domínio do destino quando, consciente ou inconscientemente, a existência das emoções primitivas é negada. Ora, mais importante do que reprimir as emoções (ou mesmo apenas negá-las) é tomar consciência de sua existência e buscar ter um controle sobre as mesmas. Quando do início do processo de socialização, na primeira infância, temos a oportunidade de observá-las com mais facilidade. Estas emoções também são reconhecidas por ocasião de uma psicoterapia mais aprofundada. Nas palavras de Jean-Yves Leloup: “É bom lembrar que o homem evolui através do desejo e do medo. Não há medo sem um desejo escondido, e não há desejo que não traga consigo um medo. O desejo e o medo estão ligados. Temos medo do que desejamos e desejamos o que nos faz medo. Na evolução de um ser humano, o medo não superado e o desejo bloqueado vão gerar patologias. O medo superado e o desejo não bloqueado vão permitir a evolução”. A História mostra que o equilíbrio e o comedimento pessoais

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mediário” que separa os extremos das emoções contraditórias. Portanto, a única maneira de melhor administrar e fazer jus à grandiosidade do fenômeno humano é tomar consciência da sua existência. A verdade é que a vida social harmônica é incompatível com o descontrole e o predomínio de emoções primitivas, o que não significa negar a existência da energia bestial que pulsa dentro de cada pessoa. Nesse contexto, a idéia de autoconhecimento passa pelo reconhecimento e domínio dos instintos bestiais. Negá-los pode conduzir à hipocrisia e até mesmo causar uma aversão da pessoa a si própria. O medo, ao mesmo tempo em que protege, pode impedir o fluxo espontâneo da vida. Dependendo da sua intensidade, pode levar à perda da capacidade de pensar e agir com naturalidade. Em tese, quanto mais ampla for a consciência e o controle em relação aos medos e desejos, maior

FRÁGIL — UMA NOTÍCIA SOBRE O MEDO

acontecem quando os indivíduos conseguem situar-se no “espaço inter-


será a possibilidade de alcançar a estabilidade interior e o equilíbrio das condutas. Perde-se a chance de ter uma vida participativa e construtiva por medo ou vergonha — consciente ou inconsciente — de não admitir sentimentos socialmente rejeitáveis. Negá-los é a maneira mais fácil de continuar infeliz e medroso. Os sentimentos ignorados causam mais problemas do que aqueles conscientes. Daí porque alguns indivíduos tendem a manter os relacionamentos num nível muito superficial, para proteger a intimidade. Esta experiência leva ao artifício mental de julgar que a sensação de “não ver” ROBERTO LÔBO

resulta no mesmo que “não ter”. Mas agir como a avestruz não livra ninguém do seu lado bestial, simplesmente porque se lhes fecha os olhos. Não importa qual a astúcia utilizada, mesmo assim o medo continuará a existir, na condição de “lado-sombra” da estrutura da personalidade. Quando atinge a criança, o medo deve ser esclarecido. Não cabe ao adulto ironizá-la ou emitir qualquer juízo de valor de modo pejorati-

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vo. Uma palavra de encorajamento pode não surtir o efeito desejado. O medo tem mais de uma face: uma leva à sensação de impotência, desperta temor e pessimismo. A outra é positiva — e funciona como algo mobilizador do crescimento pessoal e social, podendo até ajudar a “dar colorido” à personalidade.


Capítulo 3

Uma antropologia do medo

C

edo o ancestral primitivo teve que aprender a ajuizar desejos, além de conviver com o medo. O desejo lhe trouxe ingredientes emocionais que viriam a ter decisiva importância na construção

da condição humana. O existir primitivo era marcado por uma permanente insegurança. O ancestral estava mais para caça do que para caçador. Um dado significativo da evolução é exatamente o fato do homem ter sido um artífice decisivo da sua própria condição. Tanto da sua construção propriamente dita, quanto da sua expressão histórica e contemporânea. Nada disso teria sido possível se ele não fosse dotado de uma estrutura capaz de desenvolver a inteligência criativa e por meio dela criar as extensões sócio-culturais para os membros e sentidos. O domínio da agricultura foi um elemento importante no longo

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dias seguintes atenuou muito a angústia da fome - o medo de não sobreviver. Este avanço técnico trouxe uma mudança radical no estilo de vida tradicional: fixou o primitivo na terra e o induziu a conceber os primeiros abrigos, esboços de edificações precursoras da aldeia, da vila e da cidade. A busca de proteção levou o ancestral a construir cidades muradas quando os grupamentos humanos saíam da Pré-História para entrar na era das Antigas Civilizações. Desde então, o homem caminhou seis mil anos até chegar à complexidade do mundo atual. O enfrentamento das hostilidades do ambiente foi um dos principais motores que levaram o homem em direção ao progresso - uma questão de sobrevivência. Não seria exagero dizer que o medo e o desejo animaram as ações humanas desde os primeiros passos.

FRÁGIL — UMA NOTÍCIA SOBRE O MEDO

e penoso percurso do homem primitivo. A garantia do alimento para os


A delicadíssima fronteira que separa o estado natural da civilização humana começou a ser demarcada quando o selvagem teve a consciência da própria existência. O descobrir-se diferente num universo indiferenciado foi acompanhado da sensação de profunda solidão. Esta emoção foi experimentada com um profundo estranhamento, logo seguido do sentimento de pânico, base de outras emoções. Para suavizar a surpresa da emoção de desamparo causada pela percepção e pela sensação de “libertação” da natureza, o antepassado huROBERTO LÔBO

mano concebeu defesas psicológicas: máscaras, atrás da quais passou a se esconder. Escondido atrás das máscaras, ele fez o seu “script”, e passou a representar o próprio drama. Ao interpretar o ator principal desta extraordinária aventura, tornou-se uma “persona”, ou seja, experiência vivida ora na interação com os seus semelhantes (tanto na dor como na perplexidade), ora ao enfrentar as

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adversidades do meio-ambiente. A força do grupo foi uma outra não-planejada aquisição que muito contribuiu para o processo evolutivo humano. As inscrições rupestres apontam que as primeiras experiências coletivas ocorreram no ambiente úmido, lúgubre e escuro do fundo das cavernas. O medo é o elemento que está por trás desta busca de segurança. A coexistência pelo medo estimulou as primeiras experiências de convivência social. Deste modo, foi descoberta a importância da associatividade e a sua conseqüência mais significativa: o poder da cooperação. A experiência de enfrentar momentos adversos em grupo foi percebida como positiva e ajudou a mitigar a necessidade de segurança. De certa maneira, o fato ensejou a idéia de planejar ações futuras. Ao longo do tempo, o hábito de agir sem refletir mostrou que atuar, simplesmente, era uma atitude capaz de causar grandes danos. Já o ato de planejar e projetar-se para a frente pode ser entendido como uma manifestação do instinto de preservação – uma defesa contra ameaças permanentes.


A complexidade do mundo contemporâneo está colocando o ser humano diante de outro grave problema, agora, por incrível que pareça, criado pela ação dos grupos, dos grandes conglomerados detentores do poder econômico. Por trás da superestrutura social construída há a busca de segurança, mas, ela também cria outras situações de medo, tão primitivas e cruéis, ou mais, que as vividas pelo ancestral no seu alvorecer. A ver: “A exploração desenfreada fomentada pelas estruturas de poder cada vez maiores, jogam a população na condição de mero figurante nesse drama cujo papel principal foi tomado do homem. A sociedade organiza-se como uma rede de relações de poder autoritário que se espraia não só pelas chamadas instituições políticas, mas por todas as relações sociais”.1 A idéia que os fatos colocam é imaginar a construção do psiquismo a partir de um viés antropológico e cultural — matéria que trata dos costumes, condutas, crenças, organização social, ou seja, das características sócio-culturais da humanidade.

FRÁGIL — UMA NOTÍCIA SOBRE O MEDO

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1 Freire & Brito, p 29). Utopia e Paixão. Rio de Janeiro: Rocco. 1984


Capítulo 4

O medo leva ao grupo

D

e volta a um passado bastante distante, encontra-se a espécie humana com um status apenas ligeiramente melhor do que alguns outros animais. O primitivo naquela condição era fraco e impo-

tente.

A história só é digna de ser contada a partir da formação de ROBERTO LÔBO

algum tipo de vida social, do mínimo espírito de associação. A cooperação social simboliza um fator extraordinário de sobrevivência. Aliás, todos os instintos sociais humanos desenvolveram-se bem antes da área intelectiva e espiritual: instinto maternal, fragmentos de cooperação, curiosidade, criatividade, compaixão, altruísmo, competitividade são sentimentos que têm raízes profundas na Pré-História. Contudo, são

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anseios que também podem ser observados de maneira mais discreta em outros antropóides. O autocontrole é outra qualidade de relevo e que distingue o ser humano dos outros primatas - a capacidade de modificar qualquer comportamento social, ainda que instintivo, de maneira a torná-lo mais útil para a sua sobrevivência. Quanto mais apto para controlar as emoções e os instintos, mais maduro será o indivíduo. A maturidade humana tão ambicionada depende de autocontrole, de planejamento e do realce do lado racional. A antropologia cultural revela que o ser humano tem uma tendência inata a um comportamento egoísta: subordinar aos seus os interesses do outro, razão porque não se pode afirmar que, em condições naturais, seja o homem dado à cooperação. Tudo leva a crer que a abnegação e o altruísmo não sejam inteiramente inatos. A doutrina que considera o egoísmo como princípio diretor da conduta humana talvez corrobore esta assertiva.


As características que dão uma superioridade ao homem não são transmitidas de uma geração a outra pela hereditariedade direta. A civilização é uma aquisição da espécie, conquistada em etapas — não é uma ingerência biológica. A humanidade foi construída na experiência de atividades grupais iniciadas nas cavernas. A associatividade constituiu-se muito cedo na história humana, ao preço da busca permanente da sobrevivência. A civilização é fruto de experiências plenas de frustrações e de esforços do homem contra a morte violenta. Por essa trilha, a sociedade humana evoluiu em ciclos milenares através de um cooperativismo relutante. A busca de segurança motivou a experiência de reciprocidade. Pode-se dizer ainda que o homem foi capaz de aprender a cooperar por causa do medo.

O medo leva aos fantasmas

A

luta contra as adversidades naturais teve uma evidente participação na evolução das espécies, porque incitava ao ato de viver e empurrava os seres à sobrevivência. O medo dos fenômenos

naturais, por exemplo, forçou os ancestrais a procurar companhia mútua em algum abrigo. Desta união, na escuridão lúgubre das cavernas, brotou um primeiro lampejo de inteligência — uma fantasia. O selvagem foi tocado, naquele instante, pela sensação de que havia “algo mais” — algo acima dele, alguma coisa superior. Daí a vir a sonhar com fantasmas foi um dos mais extraordinários acontecimentos da história da humanidade. A vida intelectiva teve início a partir desta fantasia onírica. Antes deste evento, a vida dos antepassados era constituída basicamente

31 FRÁGIL — UMA NOTÍCIA SOBRE O MEDO

Capítulo 5


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