Editores-Gerais Caio Vinicius Fernandes Terto, UFRN, Brasil Mateus Ricardo Rodrigues de Sousa, UFRN, Brasil Diretoria de Editoração Alice Raquel Neves Ortiz, UFRN, Brasil Beatriz Lodônio Dantas, UFRN, Brasil Beatriz Moura Barbosa, UFRN, Brasil Brenda Borba dos Santos Neris, UFRN, Brasil Elias Cândido da Nóbrega Neto, UFRN, Brasil Graciele de Araújo Dantas Targino, UFRN, Brasil Lílian Nicodemos Furtado Noca, UNI-RN, Brasil Lorenna Medeiros Toscano de Brito, UNI-RN, Brasil Mateus Rodrigues Soares, UFRN, Brasil Vanessa Medeiros de Lira, UFRN, Brasil Professores Orientadores Anderson Souza da Silva Lanzillo, UFRN, Brasil Fabiana Dantas Soares Alves da Mota, UFRN, Brasil Zéu Palmeira Sobrinho, UFRN, Brasil
Edição da Capa: Thaylson Djony Dantas Rodrigues thaylsondjony0612a@hotmail.com Diagramação: Paulo André - www.pauloandrepa.com.br contato@pauloandrepa.com.br
Revista de Filosofia do Direito, do Estado e da Sociedade
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017. ISSN 2177-1383
EDITORIAL:
Com imensurável satisfação, a Revista de Filosofia do Direito, do Estado e da Sociedade (FIDES) lança mais uma edição. A 16ª edição ousou ir além do que comumente vinha sendo realizado na Revista, posto que inovou ao expandir o Conselho Científico para além das fronteiras brasileiras e, igualmente, ao trazer artigos escritos em língua estrangeira. Nessa ordem, importa destacar o empenho e a competência aplicados no trabalho desenvolvido pelos membros do Conselho Editorial da Revista, os quais exerceram sua função com vigor. Outrossim, cumpre agradecer aos professores que formam o Conselho Científico desta edição, sempre responsáveis e atenciosos, peça chave para o sucesso do periódico. Embora alçando novos caminhos, realizando o afã de crescimento exponencial, a Revista se mantém ligada às raízes que desde o início alicerçam e nutrem todo o Corpo Editorial, em especial nos momentos de desânimo. Assim sendo, a simplicidade, informalidade e a democratização do conhecimento continuam sendo os pilares essenciais de mais uma edição da Revista FIDES, lastreando da primeira até a ultima palavra dessa edição. Ademais disso, tendo em vista o objetivo empregado pela Revista de impulsionar tanto os autores quanto os leitores a um a uma reflexão crítica, finda-se em um amplo espaço caracterizado pela diversidade e liberdade. Nas páginas seguintes, constam artigos redigidos por professores e graduandos, trazendo, para o plano acadêmico e social, inquietações jurídicas, filosóficas, sociais e demais outras, conforme a proposta multidisciplinar adotada pela Revista. Nesse viés, optou-se por trazer, para o evento de lançamento da 16ª edição da Revista FIDES, a discussão acerca do reconhecimento dos novos arranjos familiares e o direito homoafetivo, assunto de extrema relevância no contexto social por tratar de questão com pauta tímida e por envolver minorias da sociedade. No mais, ressalta-se que o evento é livre, sendo aberto ao público, não impondo qualquer restrição para aqueles acometidos de interesse em participar. Uma excelente leitura a todos! Natal, 14 de novembro de 2017. Conselho Editorial.
SUMÁRIO ARTIGOS CIENTÍFICOS CONVIDADOS
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A IGUALDADE NO MEDO E NA PROPRIEDADE, NOTAS PONTUAIS SOBRE O LEVIATÃ E OS DOIS TRATADOS SOBRE O GOVERNO CIVIL Alex Sander Xavier Pires
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AMATYA SEN SOBRE A GÊNESE, O DESENVOLVIMENTO E AS CARACTERÍSTICAS DAS TEORIAS DE JUSTIÇA FOCADAS EM ARRANJOS Danilo Christiano Antunes Meira Horácio Wanderlei Rodrigues
36
A RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS MORAIS NO DIREITO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO Belmiro Vivaldo Santana Fernandes Ricardo Maurício Freire Soares
51
A CONVENÇÃO DE ISTAMBUL E A “VIOLÊNCIA DE GÊNERO”: BREVES APONTAMENTOS À LUZ DO ORDENAMENTO JURÍDICO-PENAL PORTUGUÊS Margarida Maria Oliveira Santos
61
DE HOBBES A PUFENDORF – A CONSTRUÇÃO DOS CARACTERES DO CONCEITO JURÍDICO MODERNO DE SOBERANIA Pedro Fernández Sánchez
75
A RACIONALIDADE COMUNICATIVA DE HABERMAS E O PARADIGMA PROCEDIMENTAL JURÍDICO DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS Lauro Ericksen
83
DESAFIOS HERMENÊUTICOS DA JURIDICIDADE PÓS-MODERNA: ENTRE TEXTO, NORMA E MÉTODO/ PARA LÁ DA INTERPRETAÇÃO NEGATIVA Joana Maria Madeira Aguiar e Silva
101
DIREITO FRATERNO: A RACIOVITALIDADE NECESSÁRIA PARA A CONSTITUIÇÃO DE UMA SOCIEDADE-MUNDO Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino
122
ENSINO JURÍDICO: É POSSÍVEL ENSINAR DIREITO? Sandra Regina Martini Vitoria Josefina Rocha D´almeida Mota
141
A SEXUALIDADE HUMANA E O DIREITO DA FAMÍLIA NOS ORDENAMENTOS DE PORTUGAL E MACAU* J. P. Remédio Marques
158
CONTROLAR E PUNIR – O DIREITO PENAL EM MUDANÇA? Anabela Maria Pinto de Miranda Rodrigues
172
RESPONSABILIDADE CIVIL DO PRODUTOR E NEXO DE CAUSALIDADE: BREVES CONSIDERAÇÕES Mafalda Miranda Barbosa
191
CONFLITO DE VALORES E FUNDAMENTO DA INTERVENÇÃO DO ESTADO NO CONTEXTO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA EM PORTUGAL Maria Elisabete Ferreira
ARTIGOS CIENTÍFICOS
208
O PAPEL DO DIREITO NO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SUA RELAÇÃO COM A ECONOMIA POLÍTICA Rogério Cesar Marques
222
A RAZÃO PRÁTICA COMO LIAME ENTRE O RACIONAL E O RAZOÁVEL EM “UMA TEORIA DA JUSTIÇA” Victor Cristiano da Silva Maia
231
A TUTELA DOS DIREITOS DOS USUÁRIOS DOS SERVIÇOS PÚBLICOS: BREVES APONTAMENTOS SOBRE A LEI Nº 13.460/2017 Júlio César Souza dos Santos
243
PROCESSO JUDICIAL ELETRÔNICO: CONCRETIZAÇÃO DOS PRINCÍPIOS PROCESSUAIS? Ana Carolina Guilherme Coêlho Ingrid de Lima Barbosa
260
O PROBLEMA DA JUSTIÇA: TOTALITARISMO, DIREITO E A ASCENSÃO DAS DEMOCRACIAS CONSTITUCIONAIS Gabriel Campos Soares da Fonseca
275
REFORMA OU REVOLUÇÃO? A VISÃO DE KANT SOBRE O DIREITO DE RESISTÊNCIA Suzana Melo de Oliveira
285
POLÍTICAS PÚBLICAS E A EDUCAÇÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Valter da Costa Santos
ARTIGOS CIENTÍFICOS EM LÍNGUA ESTRANGEIRA
298
EL FENÓMENO JURÍDICO Y FORMAS BÁSICAS DE PENSAR EL DERECHO Henrique Alexander Grazzi Keske Claudine Rodembuch Rocha
319
SOCIAL CONTROL THROUGH SHAME SANCTION: AN AMERICAN PERSPECTIVE Jonathan Hernandes Marcantonio
LITERATURA E DIREITO
325
A DESGRAÇA DA CULTURA DO ÓDIO NA “DESONRA” DE COETZEE: LIÇÃO PARA OS CONTURBADOS DIAS ATUAIS Morton Luiz Faria de Medeiros
329
HARRY POTTER, JURAMENTO INQUEBRÁVEL E CLAÚSULA PENAL Rute Saraiva
340
SUPREMO OU SOBERANO? Ana Beatriz Ferreira Rebello Presgrave
344
WEAK COURTS, STRONG RIGHTS Raimundo Márcio Ribeiro Lima
352
O CUIDADO ENTRE A ILICITUDE E A CULPA Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde
359
RESPONSABILIDADE SOCIAL DAS EMPRESAS: RECENTES ESCÂNDALOS E PROPOSTAS DE SOLUÇÃO Madalena Perestrelo de Oliveira
364
O DESAFIO DO ENSINO DA SOCIOLOGIA JURÍDICA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO Patrícia Borba Vilar Guimarães
368
HÁ POSSIBILIDADE DE CANDIDATURAS INDEPENDENTES NO BRASIL? UMA ANÁLISE À LUZ DO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS Thiago Oliveira Moreira
375
APONTAMENTOS SOBRE A APURAÇÃO, SANÇÃO E REPARAÇÃO À TORTURA NO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS Eloísa Machado de Almeida
A IGUALDADE NO MEDO E NA PROPRIEDADE, NOTAS PONTUAIS SOBRE O LEVIATÃ E OS DOIS TRATADOS SOBRE O GOVERNO CIVIL Alex Sander Xavier Pires1
RESUMO Desde o século XV se acirrou o debate entre o dogma e a razão em vais de fortalecer as teorias democráticas em detrimento das absolutistas justificadas no direito divino, deslocando o Homem para o centro do debate. Liberdade e igualdade passaram a ser os valores supremos a serem defendidos em sociedade. As formulações de Hobbes e Locke marcam o discurso de garantias do indivíduo em sociedade civil com ênfase num pacto social pendente a submissão por necessidade de se expungir o medo do estado de guerra, ou por consentimento para proteção na aquisição de bens para satisfação das necessidades. Palavras-chave: Homem. Igualdade. Pacto. Garantia.
A abertura racional amadurecida desde o século XV repercutiu nas teorias políticas, em especial quanto ao fenômeno de legitimidade e de transferência do poder político. Neste sentido, a máxima quase uníssona do “todo o poder vem de Deus”2 passava a ser questionada pela assunção de que o poder temporal poderia seguramente conviver com o transcendental;
1 Pós-Doutor em Direito (Portugal), Doutor em Ciências Jurídicas e Políticas (Argentina), Doutor em Ciência Política (Brasil), Professor do Departamento de Direito da Universidade Autónoma de Libsoa (AUL/Portugal), Pesquisador/investigador do Centro de Investigação e Desenvolvimento sobre Direito e Sociedade da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa (CEDIS/FD/UNL/Portugal), e Pesquisador/Investigador do Centro de Investigação e Desenvolvimento em Ciências Jurídicas – Ratio Legis – da Universidade Autónoma de Lisboa (RL/UAL/Portugal). 2
De assento latino, “omnis potesta a Deo”.
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1 INTRODUÇÃO
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afinal, poder-se-ia dar ao homem o que é do homem (bens civis) e a Deus o que é de Deus (produtos de fé). A refutação a dogmas seculares gerou uma insurgência que precisava ser combatida por argumentos sólidos o bastante que afastassem a intangibilidade do absolutismo de direito divino e as teorias patriarcalistas que o amparavam. Neste âmbito, surgia a necessidade de colocar o homem no centro do debate político. Falar de homem e política numa mesma frase exige que se determine a hierarquia dos valores (quem vem antes?); e, num mundo em expansão que tem na ciência a melhor resposta aos desafios das novas fronteiras, cujo acúmulo de riquezas passa a ser a pauta do dia, melhor que se conciliem em prol da satisfação de uma nova classe transnacional: a burguesia. No ambiente burguês, quanto mais livre, melhor; a liberdade ganha os discursos políticos e a disputa do poder altera o enfoque da legitimidade para a garantia; ser livre pressupõe que todos possam fazer de tudo (o problema é a definição de todos e de tudo). Eis o ponto nodal: encontrar a explicação para que todos, num tom de igualdade, estejam autorizados a tudo fazer (liberdade), sem que haja o perecimento da sociedade civil e tampouco prejuízos a burguesia. Para a presente análise, a questão da igualdade na liberdade será analisada pelo viés das teorias de Thomas Hobbes (Leviatã) e de John Locke (Segundo Tratado sobre o Governo Civil), mormente quanto as construções da passagem do estado de natureza para o de sociedade civil via concepção de um pacto social que justifique a releitura da liberdade natural para a liberdade política. Assim, o panorama histórico-político de análise é a Inglaterra renascentista imersa em crise religiosa que se desdobrou em instabilidade política que somente pode ser contornada com o reconhecimento dos interesses do parlamento liberal, isso em torno do século XVII.
A tomada de Constantinopla marca não só a queda do Império Bizantino, como também a derrocada do domínio dos dogmas e verdades levianas sobre a razão, construídos pelas máximas de fé. Tudo isso em razão dos movimentos insurgentes que possibilitaram – em tom de exigência – uma nova construção: a) social (fortalecimento dos burgos); b) comercial (renovação das práticas mercantis com a ascensão da burguesia); c) política (abertura do movimento expansionista culminando com a colonização de além-mar); d) econômica (acúmulo de riquezas pela burguesia – movimentação de divisas – e pelas Coroas - usurpação de fontes naturais das novas colônias); e) militar (necessidade de proteção para o crescimento das cidades, controle de fronteiras entre os Reinos, desenvolvimento para a armada e provimento bélico aos exércitos de dominação); f) religiosa (aversão aos santos domínios eclesiásticos romano-germânicos que culminou com a Reforma Protestante, entre outros movimentos); e, g) científica (afinal, as gran-
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2 CONTEXTO: DO ABSOLUTISMO AO LIBERALISMO POLÍTICO NA INGLATERRA DA REVOLUÇÃO GLORIOSA
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des navegações “comprovaram” que o mundo era “redondo”). Tais fatos puseram o Homem no centro do debate e, com ele, a razão, capaz de modificar a natureza em vias de dar respostas aos novos acontecimentos, sobretudo ao progresso científico que garantisse o melhor resultado possível das novas práticas (vejam-se as técnicas de navegação, os meios de extração de recursos naturais, os meios de produção de bens e serviços, etc.). Em síntese, os valores e verdades foram postos em discussão; o conflito e a dúvida assumiam como palavras de ordem. As constatações permitem inúmeras linhas de análise que podem se espraiar pela: a) filosofia do conhecimento (releitura das Hipotiposes Pirrônicas escrita por Sexto Empírico entre os séculos II e III a.C. com a cediça linha voltada a refutação dos dogmas como verdades incontestáveis, mas carentes de comprovação como propuseram, à luz das inovações trazidas pelo Renascimento, o alemão Agrippa de Nettesheim, o português Francisco Sanchez e o francês Michel de Montaigne); b) filosofia científica (como variável do ceticismo moderno, a virada cartesiana contida no cogito ergo sum que prestigia o pensamento como produção da razão; e, mais adiante, as inovações de Francis Bacon com a proposta da Grande mo (desde Erasmo de Rotterdã até a proposta de uma sociedade voltada ao comunitarismo de Thomas More), dentre outros. A preferência, no entanto, envereda pela análise de filosofia política com repercussão na estrutura equilibrada de gestão de poder político do Estado ante as funções públicas fundamentais; e, nesta, pela repercussão iniciada com as disputas temporais sobre o poder que se assenta na gestão dos domínios eclesiásticos e na influência sobre a monarquia e sobre o parlamento inglês. Em apertada síntese: a reforma religiosa e a tensão na leitura do poder político na Inglaterra dos séculos XV ao XVIII3 que serviram de panorama fático-histórico para a formulação das teorias de Thomas Hobbes e John Locke acerca da liberdade tomada em igualdade na passagem do estado de natureza para o civil. Há que se dizer que a simples menção à ruptura com as estruturas tradicionais e a inversão do paradigma, por si só, já conclama aos atos revolucionários que servirão, desde já, como fundo histórico para compreensão dos pensamentos de Hobbes e Locke, sendo certo que a Revolução Gloriosa se apresenta como a manifestação de resgate de uma monarquia que se reportasse aos interesses do Parlamento. 2.1 Delineamento histórico: dos Tudors à Revolução Gloriosa A Inglaterra renascentista estava entregue a dinastia dos Tudors (1485/1603), cuja habilidade em conservar o absolutismo chamava a atenção, essencialmente por equilibrar a relação entre o parlamento e a burguesia, ou seja, entre o apoio político e o financiamento econômico.
3 Por coerência metodológica, passa-se à margem da influência e da virada conceitual advindas das construções teóricas de Nicolau Maquiavel e de Jean Bodin quanto a gestão do poder político, desde a aquisição até o exercício.
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Instauração voltada a releitura da relação entre o homem e a natureza); e, c) pelo humanis-
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4 “No século XVII (...) A burguesia já estava suficientemente fortalecida e poderia prescindir de governos fortes para solidificar seu domínio sobre a nação. (...) todo o século XVII ficou marcado pelos constantes conflitos entre a autoridade real e a autoridade do Parlamento. Esses conflitos assumiam aspectos religiosos, envolvendo protestantes contra católicos, mas, sobretudo, eram expressão de interesses econômicos divergentes. (...)” (Martins, 2005, p. 5).
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No campo religioso, no entanto, a harmonia se perdeu desde que Henrique VIII propôs a ruptura com a Igreja Católica e a subseqüente criação da Igreja da Inglaterra [Anglicana] para satisfação de seus interesses pessoais, de sorte que em 1531 declarou-se protetor da Igreja Inglesa, cujo ato foi ratificado pelo Parlamento em 1534. Com a morte de Elisabeth I chegou ao fim a dinastia dos Tudors e se iniciou, com Jaime I, a primeira monarquia dos Stuarts (1603), que foi marcada pela campanha para justificar o “direito divino dos reis” com justificação no texto bíblico que fundamentaria o absolutismo transcendente aos súditos (enquanto homens subordinados). Esta teoria lhe foi tão própria que se desdobrou em conflito com o Parlamento, seja porque lhe desmerecia a autoridade política conquistada até então, seja em função da ingerência administrativa que fez sangrar os cofres da coroa, o que exigiu a imposição de nova política tributária sem a autorização da casa legislativa. Carlos I sucedeu a seu pai, Jaime I, em 1626, aumentando as tensões entre a Monarquia e o Parlamento, uma vez que também era defensor do “direito divino dos reis”. Dentre seus atos destacam-se a dissolução do parlamento com a implementação de uma ditadura que assustou até seu seus partidários, e o recrudescimento das reformas religiosas para que dessem maior lastro a teoria do absolutismo garantido por Deus4. Neste panorama de instabilidade política e de pouca habilidade de Carlos I, o Parlamento se engajou em promover a deposição do rei, o que o fez com a instauração da Guerra Civil que teve em Oliver Cromwell seu principal líder militar. Em meados de 1649 a revolução quedou-se vitoriosa e Carlos I foi decapitado, o que decretou a abolição da monarquia levando a Inglaterra à condição de República (Commonwealth of England) tendo Cromwell como seu Lorde Protetor (chefe de Estado). Com a morte de Cromwell (1658), a sucessão de seu filho e o estado caótico em que se encontrava a República (crise político-econômica), consentiu o Parlamento com a restauração da monarquia – segunda dos Stuarts – que se deu com a coroação de Carlos II, em 1660; e, com a sua morte, em 1685, Jaime II foi coroado rei, sendo certo que herdou um reino dividido pelas disputas entre católicos e anglicanos, no campo religioso; e, entre conservadores e liberais, no campo político. A desconfiança religiosa (pairava sobre si a desconfiança dos anglicanos desde que se converteu ao catolicismo, em 1668/1669) não foi acompanhada da política, haja vista que, no início de seu reinado, Jaime II contava com o apoio do Parlamento. No entanto, após a Rebelião de Monmouth ocorrida logo após a sua nomeação, passou a desconfiar de seus súditos e a praticar a política do temor por seus “juízes sangrentos”, ao mesmo tempo que aumentou sua força militar com a composição de um exército que contava com católicos nos mais elevados posto, o
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que gerou a desconfiança do Parlamento. Por volta de 1688 com o Parlamento em recesso, a política católica de Jaime II (Declaração de Indulgência assentada na ordem de perdão dos dissidentes religiosos, especialmente os católicos) e a gravidez de sua esposa em vias de dar à luz a um varão, inspiraram a liderança política inglesa a buscar socorro na sucessão ao trono. A linha sucessória levava à Holanda, onde residia Maria II – filha de Jaime II e protestante por opção – casada com Guilherme d’Orange. Após alguns ajustes políticos costurados pelo Parlamento inglês que esmoreceram a relutância de Guilherme, o exército holandês entrou em Londres sob a chancela política que, em função da fuga de Jaime II para a França, declarou o trono em vacância e a sucessão por sua filha em comunhão com seu esposo. Tinha lugar a Revolução Gloriosa que “assinalou o triunfo do liberalismo político sobre o absolutismo e, com a aprovação do Bill of Rights em 1689, assegurou a supremacia legal do Parlamento sobre a realeza e instituiu na Inglaterra uma monarquia limitada” (Mello, 1991, p.82). Diante de tal manobra, o Parlamento deixava claro que o poder real derivava do seu e, também, que esta Casa política deveria ser respeitada em sua autonomia como forma de conservar-lhe a “liberdade”.
A Revolução Gloriosa foi marcada não só pelo repatriamento de Maria II e a assunção ao trono de Guilherme III, mas também pelo regresso de outras personalidades da Corte inglesa que se refugiaram na Holanda em busca da liberdade de pensamento que se cerceara em Londres. Dentre tantos, John Locke aguardava ansiosamente para retornar a Inglaterra “livre” e segura, o que aconteceu na véspera da assinatura da Bill of Rights. A bagagem de Locke estava mais pesada que o de costume em função de um opúsculo, escrito nos idos das disputas político-religiosas e publicado conjuntamente com os Tratados (1690), cujo objetivo era de resgatar os valores cristãos da virtude e da piedade, denominado Carta acerca da Tolerância5. A Carta era destinada a todos aqueles que cometeram – e cometem – atrocidades em nome da religião, com justificativa na fé. De sorte que constituiu um instrumento de conclamação à liberdade religiosa como representação da liberdade política6. Em suma, fornece lições sobre o embate entre os bens civis e os religiosos; a conduta dos magistrados e dos líderes religiosos; da política e da religião; e o faz pela distinção entre a sociedade civil e a instituição religiosa. Neste âmbito, defende que a sociedade civil tem o dever de cuidar das coisas materiais (bens civis), garantindo a segurança e a proteção da propriedade, além de elaborar, seguir e
5 Nas entrelinhas, Locke pretendia ver revogado o Edito de Nantes assinado pela Coroa inglesa em 1685, como lembra J. R. Milton: “A Epistola de Tolerantia [Carta acerca da Tolerância] foi escrita durante o inverno de 1685-86, quando Locke voltou para Amsterdã e passou a viver discretamente na casa de Egbert Veen. Locke estava muito preocupado com o problema da tolerância no contexto da política inglesa, mas o impulso imediato foi provavelmente dado pela revogação do Edito de Nantes, em outubro 1685” (Milton, 1994, p. 16). 6 Com o avançar de seu texto, Locke assenta uma questão interessante: “se permitimos aos judeus terem propriedades e casas próprias, por que não lhes permitir que tenham sinagogas?” (Locke, 1973, p. 32).
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2.2 Uma ode a tolerância religiosa
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3 THOMAS HOBBES: TODOS SÃO IGUAIS NO MEDO Antecessor e contemporâneo de John Locke, Thomas Hobbes nasceu nos arredores de
7 “(...) a liberdade facultada aos homens em assuntos que dizem respeito à vida futura: cada um pode fazer o que acredita agradar a Deus, em cuja vontade se baseia a salvação dos homens. Porque se deve, antes de tudo, obediência a Deus, em seguida às leis (...)” (Locke, 1973, p. 27). 8 Dentre tantas passagens: “(...) as pessoas são maltratadas e, portanto, não se pode suportá-las. Suprima-se a injustiça, a discriminação legal contra elas, modifiquem-se as leis, cancelem-se as penalidades a que são submetidas, e tudo se tornará tranquilo e seguro (...)” (Locke, 1973, p. 31).
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aplicar a lei humana, pelos olhos atentos do magistrado; enquanto a instituição religiosa tem o dever de cuidar das coisas do espírito (bens espirituais), resguardando seus dogmas e perpetuando seus ritos, sempre nos limites da lei divina e por intermediação direta dos eclesiásticos. Assentada a diferenciação entre a sociedade civil e a religiosa, passa a esmiuçar os deveres de tolerância como meio de garantir o convívio harmônico e pacífico entre as pessoas; e o faz discorrendo sobre a Igreja, os indivíduos, os membros da Igreja e os magistrados. Em convergência, antepõe dois fenômenos: o compromisso ante o poder em si, e a missão ante os pares. Pela primeira linha, para a Igreja, defende o poder de expulsar o seu membro, inclusive com a excomunhão, impedindo, por conseguinte, que participe da liturgia, mas, nunca, aplicar-lhe penas físicas ou expropriações (Locke, 1973, p. 14); enquanto para os indivíduos, sustenta que ninguém pode atacar outrem por motivo de fé, inclusive quanto aos bens pessoais que devem ser protegidos pelas leis que regem a sociedade civil – este comando é tão verdadeiro que leva as Igrejas à condição de indivíduo nesta relação (Locke, 1973, p. 16). Pela segunda linha, para os membros da Igreja, ensina que o poder deve ser exercido nos limites de seus domínios, de sorte que se deve conservar o respeito às pessoas e aos seus bens civis, sem ou a prática de violência, pilhagem perseguição, e devem, ainda, praticar o ofício de aconselhar os seus seguidores no sentido da caridade e da benevolência (Locke, 1973, p. 16); quanto aos magistrados, reconhece que devem se abster de cuidar das almas já que esta tarefa se refere a cada um individualmente, orientado pela sua crença em dogmas sustentados por certa religião, e assim deve ser considerada na sociedade civil, de modo que o magistrado deve criar e aplicar leis contra os outros (terceiros) que atentem contra a vida e as demais propriedade dos indivíduos, e nunca para impor regras sobre a religião alheia ou que obrigue alguém a se submeter a dogmas impostos (Locke, 1973, p. 17). Percebe-se, enfim, que Locke defende a liberdade religiosa como meio de resguardar o indivíduo (cada um é responsável e suficientemente racional para escolher qual a melhor crença para si7); além de proteger-lhe a propriedade (cada um tem o direito de adquirir coisas, constituindo propriedade, e o direito de defendê-las contra quem as desaproprie injustamente, cujo limite da justiça seria a lei humana dissociada da divina8). Eis a grande base do pensamento político de Locke que melhor será trabalhada nos Tratados: a relação entre liberdade e individualidade que garanta, em sociedade civil, a propriedade em sentido amplo e em estado de igualdade.
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Malmesbury, em 1588, de sorte que, nascido em família de poucas posses e em relativa proximidade do mar, fê-lo cultivar o medo como principal característica pessoal9: seja pela ameaça de invasão externa pela temida armada espanhola, seja pela defesa da legitimidade do absolutismo recrudescida por sua simpatia ao rei Carlos I, e, mais tarde, como preceptor de Carlos II10. Autor de obras de manifesta importância política das quais se destacam Do Cidadão11 (1642) e o Leviatã (1651); Hobbes faleceu, em 1679, antes de ter notícia da Revolução Gloriosa, ou seja, alheio a vitória liberal que reformulou a monarquia inglesa. Pontualmente, o Leviatã foi escrito em quatro partes (do homem, do Estado, do Estado cristão e do reino das trevas) tendentes a justificar o absolutismo advindo de um pacto social (que se afasta da tendência da época de teorizar pelo senso teológico – o direito divino) pelo qual os homens transfeririam seus direitos ao Estado (dado em sociedade civil) que exerceria o poder em vias de afastar o temor, imposto pela guerra de todos contra todos, instaurado no estado de natureza. Percebe-se que o núcleo central para compreensão da teoria hobbesiana se assenta em sua concepção de homem que, diferente do que se tentou impor12, é civilizado e atemporal, nunca selvagem ou moldado por seu tempo, ou seja, é o mesmo homem que vive em sociedade e dado em qualquer época histórica que se possa analisar13. Em síntese, o homem não muda da natureza para a sociedade14; afinal, o homem perquire seus interesses, sendo certo que o inte-
9 “(...) A mãe deu-o à luz prematuramente, devido ao terror que lhe causou a notícia da chegada da ‘Armada Invencível’, de modo que, em sua Autobiografia, brincando, ele afirma que sua mãe, junto com ele, havia dado à luz como seu irmão gêmeo o medo. Trata-se, porém, de uma observação que, para além da brincadeira, constitui como que uma marca de sua psicologia: a sua teorização do absolutismo tem suas raízes, sobretudo, no terror pelas guerras que ensanguentaram a sua época” (Reale, 1990, p. 485).
11 A obra Do Cidadão, originariamente escrita em latim de que recebeu o título De Cive, foi traduzida ao inglês pela longa e conclusiva epígrafe: Philosophical Rudiments Concerning Government and Society, de onde se abstrai a origem dos conceitos das categorias hobbesianas, bem como a formulação de sua teoria sobre o poder. Para a presente proposta, basta analisar o capítulo inaugural que versa sobre a Liberdade, cujos limites bem são assentados pelo próprio Hobbes em seu prefácio: “(...) quais são os ditados da razão, que podem com propriedade ser denominados leis de natureza; e tudo isso está contido naquela parte do livro que intitulo Liberdade. Estas bases assim depostas, mostro adiante o que é o governo civil, e nele o poder supremo e suas diversas espécies; por que meios ele se constitui, e que direitos os particulares, que pretendem constituir esse governo civil, necessariamente têm de transferir ao poder supremo, quer este esteja num homem, quer numa assembléia de homens; porque, se não o fizerem, evidentemente se notará que não há governo civil, mas permanecerão os direitos que todos têm a todas as coisas, isto é, os direitos de guerra (...)” (Hobbes, 1998, p. 16). Ademais, é nesta obra que aparecem as duas frases mais citadas de Hobbes: “o homem é lobo do homem” (Hobbes, Do Cidadão, op. cit., p. 3) e “a guerra de todos contra todos” (Hobbes, 1998, p. 16) que será objeto de divagação em todo o capítulo XIII do Leviatã. 12 Como se lê, por exemplo, em Henry Sumner Maine: “(...) por outro lado, a teoria de Hobbes sobre o mesmo tema [formação da sociedade] foi propositadamente concebida para repudiar a realidade do direito natural como idealizado pelos Romanos e seus discípulos. Estas duas teorias [estende a crítica a Locke], que dividiram a reflexão política inglesa por muito tempo favorecendo a discussão hostil, apegavam-se ao senso de uma concepção fundamental sobre condição racial ser não-histórica e não-verificável. Seus autores divergiam quanto as características do estado pré-social e sobre a natureza da ação anormal em que os homens se lançam para fora dela no sentido da organização social que estamos acostumados; mas eles concordam que um grande abismo separava o homem primitivo daquele posto em sociedade, e esta noção, não se pode duvidar, foi emprestada, consciente ou inconscientemente, dos Romanos” (Maine, 1861, p. 114). 13 “Poderá porventura pensar-se que nunca existiu um tal tempo, nem uma condição de guerra como esta, e acredito que jamais tenha sido geralmente assim, no mundo inteiro; mas há muitos lugares onde atualmente se vive assim. (...) muitos lugares da América (...)” (Hobbes, 1983, p. 76). 14 “(...) o homem natural de Hobbes não é um selvagem. É o mesmo homem que vive em sociedade. Melhor dizendo, a natureza do homem não muda conforme o tempo, ou a história, ou a vida social. (...) não existe a história entendida como transformando os homens. Estes não mudam. (...)” (Ribeiro, 1991, p. 54).
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10 O absolutismo aqui proposto não é aquele fortalecido à época e de forte apego tradicional baseado nas teorias de direito divino dos reis amplamente defendida pelos teóricos da monarquia absolutista, senão no pacto social de transferência de direitos. Em verdade, o poder absoluto resultaria de uma “transferência dos direitos dos indivíduos ao soberano, e é em nome desse contrato que deve ser exercido, e não para a realização da vontade pessoal do soberano” (Marcondes, 2004, p. 198).
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resse público e o privado são duas faces de uma mesma moeda15. Ademais, perquirindo sua vinculação, essencialmente contratualista, aplicada a esta posição sobre a essência do homem, não deixa dúvida sobre a igualdade que se instaura entre os indivíduos no estado de natureza16, quer proveniente da força, quer derivada do espírito, de sorte que vê claramente que os homens são iguais tanto no que concerne a compleição física (ainda que substituída por meios advindos da razão), quanto na sabedoria (o conhecimento sobre todas as coisas). Assevere-se que, no primeiro caso, o uso da força corporal é fruto da essência humana, pouco importando a compleição física em si, uma vez que “o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta maquinação, quer aliando-se com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo” (Hobbes, 1983, p. 74); em contraponto ao uso da força corporal, o homem nasceria com a convicção de ser mais sábio (ainda que viesse a adquirir seu conhecimento pela experiência comum) do que seu semelhante17. A princípio, pode parecer que esta igualdade seria convergente no sentido de fundamentar a constituição da sociedade. Porém, não o é: para Hobbes, a natureza do homem baseada na igualdade leva a discórdia, principalmente pela necessária atitude de auto-proteção, fincada no sentimento de conservação18 do indivíduo, sendo certo que o filósofo destaca três causas para esta discórdia: “Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória” (Hobbes, 1983, p. 75), e complementa: A primeira leva os homens a atacar os outros visando o lucro. A segunda, a segurança. A terceira, a reputação. Os primeiros praticam a violência para se tornar senhores das pessoas, mulheres, filhos e rebanhos dos dominados. Os segundos, para defendê-los. Os terceiros por ninharias, como uma palavra, um sorriso, uma diferença de opinião e qualquer outro sinal de desprezo, quer seja diretamente endereçado a suas pessoas, quer indiretamente a seus parentes, amigos, nação, profissão ou seu nome (Hobbes, 1983, p. 75).
15 A simplicidade desta assertiva foi acrescida por identificar o ponto nodal a que se apega Hannah Arendt para creditar a Hobbes a paternidade da única “teoria política segundo a qual o Estado não se baseia em nenhum tipo de lei construtiva – seja divina, seja natural, seja contrato social – que determine o que é certo ou errado no interesse individual com relação à coisas públicas, mas sim nos próprios interesses individuais, de modo que o ‘interesse privado e o interesse público são a mesma coisa’.” (Arendt, 2007, p. 168). 16 “A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito” (Hobbes, 1983, p. 74). 17 “(...) a natureza dos homens é tal que, embora sejam capazes de reconhecer em muitos outros maior inteligência, maior eloqüência ou maior saber, dificilmente acreditam que haja muitos tão sábios como eles próprios. Pois vêem sua própria sabedoria bem de perto e a dos outros homens à distância. Isso prova que os homens são iguais quanto a esse ponto e não que sejam desiguais” (Hobbes, 1983, p. 74). 18 O sentimento de conservação deriva da própria desconfiança do homem de que será subjugado pelo outro e desapossado, ou de seus bens (perda da propriedade), ou de sua vida (corre o risco de ser assassinado ou mutilado). Assim, para manter a conservação de seus bens (propriedade e vida) deveria se antecipar e, ele mesmo, subjugar aos outros: “Contra esta desconfiança de uns em relação aos outros, nenhuma maneira de se garantir é tão razoável como a antecipação. Quer dizer, pela força ou pela astúcia, subjugar todos os homens que puder, durante o tempo necessário para chegar ao momento em que não veja qualquer outro poder suficientemente grande para ameaçá-lo. Isso não é mais do que sua própria conservação exige, conforme é geralmente admitido” (Hobbes, 1983, p. 75).
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Dessa premissa, abstrai que o sentimento inato do homem o lança na árdua tarefa de
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aniquilar o outro para se defender19, o que o leva a afirmar que a natureza do homem só é capaz de lançá-lo em disputa, “uma guerra que é de todos contra todos os homens. A guerra não consiste apenas na batalha, ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar a batalha é suficientemente conhecida” (Hobbes, 1983, p. 75). Percebendo a evidente desordem que recai sobre os homens no estado de natureza como fruto da guerra de todos contra todos é que Hobbes reconhece que não existe sociedade até que os homens se subsumam a necessidade de se impor limites mutuamente20, o que somente seria possível pela criação de leis derivadas da razão humana e, isto, sob a chancela de um Estado que exerça a coerção. Importante frisar que sua definição de lei se espraia pela vinculação com o Direito, e, deste, para com a liberdade21; assim, “o direito consiste na liberdade de fazer ou de omitir, ao passo que a lei determina ou obriga a uma dessas duas coisas” (Hobbes, 1983, p. 78). Portanto, com a determinação da necessidade de se formularem leis, sustenta Hobbes que duas seriam objeto da própria razão humana22, cuja retroatividade lhes outorgaria a condição de “leis da natureza”, quais sejam: a procura pela paz (primeira lei da natureza) e a defesa própria baseada numa concordância com os outros que derivaria de uma convergência de vontades – e porque não dizer necessidade – no sentido de respeito mútuo acerca da convivência pacífica (segunda lei da natureza)23. Neste sentido, os homens seriam instados a ceder, direta e mutuamente, seus direitos ditos naturais, em prol da própria existência pacífica – eis a noção de contrato para Hobbes24. Ademais, da necessidade percebida pelos homens de afastar o medo que deriva da guerra instaurada no estado de natureza vem a necessidade de se instituir um contrato que vise a paz, cujo objeto seria a cessão mútua de direitos, Hobbes afirma que para o cumprimento é importante que surjam leis legítimas dotadas de poder absoluto e unipessoal capaz de coatar o renegado a cumprir o contrato social:
19 Tem-se, aqui, o ponto nevrálgico da teoria contratualista de Hobbes, em que se distancia do apego aristotélico do zoon politikon pelo que os homens tenderiam naturalmente a constituição da polis como único meio de satisfazer suas necessidades racionais (é na política – arte de bem viver na pólis – que o homem se realiza), isto é, o homem se associa a sociedade civil por ser um sentimento que já nasce consigo; e, também, se afasta de Locke por conceber um homem anti-social que precisa da sociedade para se proteger e, não, para manifestar toda a plenitude se sua arte de bem viver. 20 “Hobbes mostra que, na luta pelo poder, como na capacidade inata de desejá-lo, todos os homens são iguais, pois a igualdade do homem reside no fato de que cada um, por natureza, tem suficiente potencialidade para matar um outro, já que a fraqueza pode ser compensada pela astúcia. A igualdade coloca todos os homens na mesma insegurança; daí a necessidade do Estado. A raison d’être do Estado é a necessidade de dar alguma segurança ao indivíduo, que se sente ameaçado por todos os seus semelhantes” (Arendt, 2007, p. 169). 21 “Por liberdade entende-se, conforme a significação própria da palavra, a ausência de impedimentos externos, impedimentos que muitas vezes tiram parte do poder que cada um tem de fazer o que quer, mas não podem obstar a que use o poder que lhe resta, conforme o que seu julgamento e razão lhe ditarem” (Hobbes, 1983, p. 78). 22 “É neste ponto que interfere a razão humana, levando à celebração do contrato social. Apesar de suas paixões más, o homem é um ser racional e descobre os princípios que deve seguir para superar o estado de natureza e estabelecer o ‘estado social’” (Dallari, 1993, p. 10). 23 “Desta lei fundamental da natureza, que ordena a todos os homens que procurem a paz, deriva esta segunda lei: que um homem concorde, conjuntamente com outros, e na medida em que tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em renunciar a seu direito a todas as coisas, contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo” (Hobbes, 1983, p. 79). 24 “A transferência mútua de direitos é aquilo que se chama contrato” (Hobbes, 1983, p. 80).
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Porque as leis da natureza (como a justiça, a eqüidade, a modéstia, a piedade, ou, em
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resumo, fazer aos outros o que queremos que nos façam) por si mesmas, na ausência do temor de algum poder capaz de levá-las a ser respeitadas, são contrárias a nossas paixões naturais, as quais nos fazem tender para a parcialidade, o orgulho, a vingança e as coisas semelhantes. E os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar qualquer segurança a ninguém. Portanto, apesar das leis da natureza (que cada um respeita quando tem vontade de respeitá-las e quando pode fazê-lo com segurança), se não for instituído um poder suficientemente grande para nossa segurança, cada um confiará, e poderá legitimamente confiar, apenas em sua própria força e capacidade, como proteção contra todos os outros” (Hobbes, 1983, p. 128).
Ratifica-se, assim, que a finalidade do Estado (sociedade civil) é a consecução da paz e a preservação de todos; bem como o meio de garanti-los é a força desta instituição posta nos limites da lei que coloque as paixões em seu íntimo lugar, garantindo, agora e em sociedade, a igualdade na prestação das garantias (Hobbes, 1983, p. 109).
4 JOHN LOCKE: TODOS SÃO IGUAIS NA PROPRIEDADE
O prefácio de uma obra tem muito a dizer de seu espírito; e, neste que inaugura os Dois Tratados sobre o Governo25, Locke deixa a dica de todo o teor e o desvelar de seu argumento: para sustentar a legitimidade da sucessão por vias transversas ao trono da Inglaterra, garantir a defesa dos interesses do parlamento liberal e apaziguar as intempéries religiosas, não restava outra saída que empreender um discurso baseado na conservação da liberdade individual quanto à aquisição de bens indispensáveis a existência. Eis a gênese da defesa de seu contratualismo voltado à conservação da propriedade. Diferente de Hobbes, John Locke nasceu no seio de uma família capitalista-burguesa de influência puritana e que detinha algumas propriedades na região de Wrington, o que lhe permitiu freqüentar os círculos políticos26, cujo alvorecer se deu com o vínculo pessoal-ideoló-
25 Conjuntamente com o Ensaio acerca do Entendimento Humano avocam a condição de suas obras de referência científica, uma vez que versam sobre epistemologia (Ensaio) e sobre filosofia política (Tratados). 26 Catedrático por vocação (professor de Oxford por 32 anos – 1652 a 1684 – junto à Christ Church); médico por necessidade (graduou-se em medicina para fugir da ordenação como padre); intelectual e literato por reconhecimento.
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Leitor: (...) Tens aqui o início e o fim de um discurso que diz respeito ao governo; o destino imposto pela fortuna às páginas que deveriam compor a parte central, mais numerosas que todo o resto, não merece ser-te relatado. Espero que estas, as restantes, sejam suficientes para consolidar o trono de nosso grande restaurador, o atual rei Guilherme; para confirmar seu título no consentimento do povo, o único de todos os governos legítimos, e o qual ele possui mais plena e claramente que qualquer príncipe da Cristandade: e para justificar perante o mundo o povo da Inglaterra, cujo amor por seus direitos justos e naturais e determinação em conservá-los salvou a Nação, quando esta se encontrava na iminência da escravidão e da ruína (Locke, 2005, p. 197).
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27 A relação com o Lorde Shaftesbury (um dos homens mais ricos e influentes da Inglaterra de Locke) iniciou-se casuisticamente, haja vista que, em 1666, na condição de médico, cuidou de sua hidátide, de onde nasceu uma relação de amizade que transbordou da medicina para os diálogos políticos. Locke ganhou um patrono e Shaftesbury um confidente. Há indícios de que o Segundo Tratado floresceu desta relação e que ganhou forma para satisfazer ao conde (Ver Laslett, 2005, p. 37), sendo certo que o Locke filósofo nasceu da relação empírica e direta com os bastidores da política tendo Saftesbury como protagonista e, não, no mundo acadêmico (Laslett, 2005, p. 38). 28 Em síntese: vê no poder, hereditário e permanente, transmitido às linhas sucessórias do povo hebreu desde os descendentes de Adão (supostamente o primeiro pai e o primeiro rei), uma legitimação divina, pela qual todos os demais são súditos sem liberdade por sujeição. Inicia a obra afirmando: “A escravidão é uma condição humana tão vil e deplorável, tão diametralmente oposta ao temperamento generoso e à coragem de nossa Nação, que é difícil conceber que um inglês, muito menos um fidalgo, tomasse a sua defesa. E, na verdade, eu consideraria o Patriarca, do sr. Robert Filmer, bem como qualquer outro tratado que pretendesse persuadir todos os homens de que eles são escravos” (Locke, 2005, p. 203). 29 A mera definição de estado de natureza permite esta certeza: “(...) é um estado de perfeita liberdade para regular suas ações e dispor de suas posses e pessoas do modo como julgarem acertado, dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir licença ou depender da vontade de qualquer outro homem. (...) Um estado também de igualdade, em que é recíproco todo o poder e jurisdição, não tendo ninguém mais que outro qualquer (...)” (Locke, 2005, p. 382). 30 “é um estado de inimizade e destruição; portanto, aquele que declara, por palavra ou ação, um desígnio firme e sereno, e não apaixonado ou intempestivo, contra a vida de outrem, coloca-se em estado de guerra com aquele contra quem declarou tal intenção e, assim, expõe sua própria vida ao poder dos outros, para ser tirada por aquele ou por qualquer um que a ele se junte em sua defesa ou adira a seu embate. Pois é razoável e justo que eu tenha o direito de destruir aquilo que me ameaça de destruição (...)” (Locke, 2005, p. 395).
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gico junto ao Conde de Shaftesbury27. Diante da agitação política que pairou sobre a Inglaterra do século XVII e a notada simpatia pelos interesses da burguesia que moldaram o pensamento liberal de Locke, não restaria outro caminho que a perseguição política que o levou, derradeiramente, à Holanda em idos de 1683, cujo regresso somente foi possível com a coroação de Guilherme d’Orange como rei da Inglaterra (conjuntamente com sua esposa, Maria II). Com o regresso vieram a Carta acerca da Tolerância (comentada linhas acima) e os Dois Tratados sobre o Governo Civil (com divergência, datado de 1690). Este dividido em duas partes bem distintas, em que o Primeiro Tratado preocupa-se em refutar o patriarcalismo defendido principalmente por Robert Filmer em o Patriarca28; enquanto o Segundo Tratado se preocupa em apresentar “a tese de que nem a tradição nem a força, mas apenas o consentimento expresso dos governados é a única fonte do poder político legítimo” (Mello, 1991, p. 84). Percebe-se que o homem natural (aquele analisado no estado de natureza) lockeano é diametralmente oposto ao hobbesiano, haja vista que não padece com a conduta animal de aniquilamento ao semelhante; mas, ao contrário, vive em perfeito estado de harmonia amparado no respeito ao poder e à jurisdição recíprocos em que perdura a evidente liberdade e igualdade29. Assim, o estado de guerra30 em Locke é exceção ao estado de natureza – e, não, um estado contingencial como o era em Hobbes –, sendo certo que, se a natureza nos congraça a paz, a boa vontade, a assistência mútua e a preservação; a guerra inverte tais valores e faz aflorar a inimizade, a malignidade, a violência e a destruição mútua. Ademais, pontualmente por força do risco desta excepcionalidade de se instaurar o estado de guerra no de natureza é que os homens decidiriam passar à sociedade civil criando mecanismos de garantia via aposição de leis positivas que garantissem principalmente a conservação da propriedade e a delegação do poder comum ao magistrado para que pudessem conservar a paz social nos estreitos limites das necessidades. Pois bem, como se dá esta passagem do estado de natureza à sociedade civil? No estado de natureza todos os homens seriam livres e iguais, conservando o direito
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natural à vida, à saúde, à liberdade e às posses, que constituem o núcleo básico da propriedade, sendo certo que se se tem o direito natural individual, nascem dois deveres: um pessoal, respeitar o direito natural alheio; e, outro coletivo, conservar e cuidar para que outros também observem os direitos naturais. Falar de propriedade no pensamento lockeano requer o dever de distingui-la do uso ordinário, principalmente pela importância fundante de todo o sistema, como destaca Richard Ashcraft (1994, p. 235):
Ademais, em Locke, a propriedade assume dois tratamentos: um, dito amplo, repousa nos bens naturais de fácil e universal percepção (direito à vida, liberdade, saúde e posses); e outro, dito restrito, que versa sobre um direito natural nascido sobre bens móveis e imóveis sempre que o homem o modifique ou se relacione com o fruto de seu trabalho. Neste segundo, abstraem-se dois traços marcantes: a) é um direito natural, em que Locke, diferentemente de Hobbes, reconhecia a propriedade como pré-existente a sociedade civil, isto é, presente no estado de natureza (p. ex., o homem possuía a sua vida, saúde, liberdade e trabalho); e, b) o trabalho vem como fundamento originário da propriedade, ou seja, “o trabalho de seu corpo e a obra de suas mãos, pode-se dizer, são propriamente dele. Qualquer coisa que ele então retire do estado com que a natureza a proveu e deixou, mistura-se a ele com o seu trabalho e junta-lhe algo que é seu, transformando-se em sua propriedade” (Locke, 2005, p. 409). Assentadas as bases da propriedade lockeana como pré-existente a sociedade civil e, portanto, de preservação como direito natural, passa a enfrentar a questão dos direitos e deveres individuais, de sorte que a violação ao dever individual gera o direito, a um só tempo, próprio e coletivo, de punir o infrator na proporção de sua ofensa, como indicado pela razão e na medida da retribuição (manifestação do poder executivo da lei da natureza). Assim é que, concebendo que o direito de punição exige a retribuição proporcional a lesão, reconhece-se, também, uma variável a esta medida que nasce da injúria e exige uma reparação proporcional ao ato. Ocorre que a punição pessoal ou coletiva advinda de seus pares tende a ser parcial e desproporcional como intuída pela vingança; ao mesmo tempo em que se concebe que, considerando a igualdade entre todos, aquele que pune pode ser o ofensor, tal qual aquele que ofende pode ser, em outra ocasião, executor da medida. Tal inconveniência exige um remédio que deriva do consentimento dos homens, livre e incontroversamente, em delegarem o poder de punir a terceiro (idéia de corpo único) que o
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Curiosamente, a ‘propriedade’ é um conceito crucial para ambos argumentos nos Dois Tratados. Por um lado, Locke sustenta que a eleição na assembléia legislativa é essencial para a proteção e segurança dos direitos de propriedade dos indivíduos na Inglaterra da Restauração; e, por outro, ele argumenta que a posse da propriedade precede o estabelecimento da sociedade política e deve conseqüentemente ser compreendida nos termos dos princípios morais pertencentes aos direitos e deveres dos indivíduos e a origem da sociedade política.
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exercerá a título coletivo e em interesse público (magistrado). Este consentimento31 pressupõe a passagem da liberdade natural para a liberdade em sociedade32 que exige a regulamentação das leis naturais para que sejam postas nos exatos limites dos anseios daquele grupo social em vias de resguardar-lhes a propriedade contra outrem. Assim, a comunidade constituída passa a ser considerada em sua unidade (corpo único), cujo exercício da força se reporta a vontade e a determinação da maioria. Este pacto coletivo que institui a sociedade civil33 confere-lhe o poder legislativo e transfere-lhe o poder executivo. 5 CONVERGÊNCIA: A NATUREZA DO PACTO SOCIAL PELA ÓPTICA DA IGUALDADE
31 O consentimento em Locke (tema central de sua teoria contratual): “sendo todos os homens (...) naturalmente livres, iguais e independentes, ninguém pode ser privado dessa condição nem colocado sob o poder político de outrem sem o seu próprio consentimento. A única maneira pela qual uma pessoa qualquer pode abdicar de sua liberdade natural e revestir-se dos elos da sociedade civil é concordando com outros homens em juntar-se e unir-se em uma comunidade, para viverem confortável, segura e pacificamente uns com os outros, num gozo seguro de suas propriedades e com maior segurança contra aqueles que dela não fazem parte” (Locke, 2005, p. 468). 32 Duas faces de uma mesma Liberdade: a natural (não estar sujeito a nenhum poder superior sobre a Terra, seja de homens ou de leis positivas, senão apenas das leis naturais) e do homem em sociedade (não estar sujeito a nenhum poder que não seja o legislativo consentido para a formação da sociedade civil, de onde se está livre de qualquer vontade ou lei que não seja expedida por tal poder). 33 Sociedade política ou sociedade civil indica a renúncia ao poder executivo da natureza, em comunhão com a reunião consensual de pessoas para formar um corpo único sob um só governo – povo – (Locke, 2005, p. 460), em vias de proteger a propriedade (Locke, 2005, p. 456) combinada com a criação de leis gerais e iguais que fixem as condutas daquela sociedade e pela submissão a uma judicatura hábil em desvelar os conflitos nos limites da lei (Locke, 2005, p. 458/459). 34 “(...) Em Hobbes, os homens firmam entre si um pacto de submissão pelo qual, visando a preservação de suas vidas, transferem a um terceiro (homem ou assembléia) a força coercitiva da comunidade, trocando voluntariamente sua liberdade pela segurança do Estado-Leviatã” (Mello, 1991, p. 86).
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A análise sobre as teorias contratualistas de Hobbes e Locke exige a abordagem sobre o individualismo. Afinal, ambos concebem o homem pela sua condição de indivíduo (do homem para a formação da sociedade civil); e, não, pela óptica da relação com o corpo social (comunitarismo, socialismo ou qualquer outra variável). Ademais, analisar o individualismo não é tarefa fácil uma vez que inúmeras são as formas de abordar o tema. A presente tarefa pende a resolução de uma única questão: qual é a natureza do pacto social de cada um pela conduta do homem inspirado na igualdade? Por força do que se expôs, o homem hobbesiano é dotado de um sentimento de auto-conservação que o impele a atacar o outro pela simples razão de se defender (o homem é lobo do homem), o que, num juízo universal de valores, outorgaria a condição de mau; e, justamente porque este sentimento é comum a todos os indivíduos, que se concebe a igualdade (a guerra de todos contra todos), haja vista que a compleição física é tão eficaz quanto a astúcia intelectual quando o tema é o aniquilamento. Para proteger a sua vida contra o ataque de outrem, isto é, para afastar o medo da morte certa que reina no estado de natureza por força da guerra de todos contra todos, é que o homem hobbesiano se submete a uma comunidade que tem o dever de lhe prestar a segurança em detrimento da perda da liberdade plena e irrestrita, especialmente porque é da essência do pacto a transferência da força coercitiva a um terceiro que a exercerá em nome do Estado-Leviatã. Eis o fenômeno que permite afirmar que o pacto social em Hobbes é de submissão34.
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O homem lockeano é bom em sua essência, uma vez que busca a paz, a harmonia e a conservação da propriedade do que lhe é comum (vida, saúde, liberdade, trabalho, etc.) e do que lhe é legitimamente passível de aquisição (as coisas modificadas pelo trabalho próprio), sendo certo que o estado de guerra constitui exceção ao estado de natureza e ganha corpo quando alguém inadvertidamente atenta contra a propriedade alheia (desde o atentado contra a vida até a desapropriação das coisas diminutas). Reconhecendo que todos têm o direito natural de adquirir e de defender tal propriedade é que se percebe a igualdade. Para perpetuar e expandir as benesses construídas sobre os direitos naturais, os homens concordam em trocar a liberdade ampla e irrestrita, bem como o direito pessoal de proteger diretamente a sua propriedade, pela garantia da lei, a proteção do magistrado e a força do corpo único. Daí porque se diz que a natureza deste pacto social é de consentimento35.
O texto que se encerra foi dividido em quatro partes que convergiram para uma visão geral sobre as teorias de Thomas Hobbes e John Locke acerca do pacto social para passagem do estado de natureza para a sociedade civil tendo o homem como centro do debate e a liberdade e a igualdade como filtros de análise. O início foi dedicado ao contexto histórico da Inglaterra dos séculos XV ao XVII (dos Tudors à imposição liberal sobre a casa dos Stuarts, passando pela Guerra Civil e pela Revolução Gloriosa) em que se abordou a crise político-religiosa instaurada na relação social entre a monarquia e o parlamento que, indubitavelmente, teve influência nos pensamentos de Hobbes (o medo trazido pelas guerras sangrentas, em especial o perigo de invasão pela Armada Espanhola) e de Locke (necessidade de se frear a política católica de enfraquecimento dos valores anglicanos – Carta acerca da Tolerância – e de garantias aos interesses liberais do Parlamento em detrimento do absolutismo de direito divino sustentado pela coroa – Dois Tratados sobre o Governo Civil). Firmadas as bases históricas, adentrou-se ao pensamento de Hobbes com fundamento em sua obra de vulto: o Leviatã. O sentimento inato do homem de perquirir o aniquilamento dos outros (o homem é lobo do homem) que leva o estado de natureza a uma perpétua guerra de todos contra todos, conclama o indivíduo ao uso da razão pela qual conclui que somente a transferência do poder sobre as coisas a um terceiro capaz de garantir-lhe a preservação da vida por ser dotado de coercitividade necessária, permitiria a existência da sociedade. Surge, então, o Estado-Leviatã que transforma a igualdade no poder de dizimar o próximo (por força física ou por astúcia intelectual) concebido no estado de guerra em igualdade no direito à proteção da
35 “Em Locke, o contrato social é um pacto de consentimento em que os homens concordam livremente em formar a sociedade civil para preservar e consolidar ainda mais os direitos que possuíam originalmente no estado de natureza. No estado civil os direitos naturais inalienáveis do ser humano à vida, à liberdade e aos bens estão melhor protegidos sob o amparo da lei, do árbitro e da força comum de um corpo político unitário” (Mello, 1991, p. 86).
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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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vida pelo Estado por dever de cumprimento das leis e dos deveres. Do pensamento hobbesiano vem o lockeano. Locke, no Segundo Tratado sobre o Governo Civil, vê um estado de natureza diferente do de Hobbes, sendo certo que o estado de guerra é exceção, haja vista que os indivíduos viveriam em perfeita paz e harmonia, de forma que os direitos naturais evidentes (vida, liberdade, saúde e trabalho) estariam preservados e bem distribuídos. Assim, a guerra somente ocorreria quando alguém, inadvertidamente, atentasse contra a propriedade alheia invertendo os valores de igualdade, mas admitindo o direito de defesa para garantia das posses; e, como esta defesa individual carece de bases sólidas (seja pela falta de força necessária, seja pelo sentimento de vingança que macula a presteza do direito esvaziando-lhe a finalidade), haveria um pacto consensual para transferência deste direito de punir à totalidade dos membros da comunidade que o exerceria coletivamente (idéia de corpo único) resguardando, em última análise, a propriedade pelas vias coletivas. Eis a justificativa para a formação da sociedade civil: aumentar as garantias para o exercício dos direitos naturais sobre a propriedade individual para todos, em tom de igualdade. A síntese das teorias permitiu a convergência para determinação da natureza dos pactos sociais pela óptica da igualdade, o que se fez tomando o indivíduo (o homem como ser único da espécie) como cerne da questão, isto é, como a igualdade orienta a passagem do indivíduo do estado de natureza para a sociedade civil. Em tom concreto, para Hobbes trata-se de um pacto de submissão; enquanto que para Locke seria um pacto de consentimento. As últimas palavras impõem o dever de retorno à epígrafe para renovar a intenção da presente proposta que não foi outra, senão a de garantir o debate vivo sobre a igualdade no medo e na propriedade como extratos das teorias de Hobbes e Locke, mormente pela contemporaneidade dos temas e as inusitadas soluções que se demonstram lógicas até a atualidade.
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EQUALITY IN FEAR AND PROPERTY, POINT NOTES ON LEVIATAN AND TWO TREATISES ON CIVIL GOVERNMENT ABSTRACT Since the fifteenth century the debate between dogma and reason has intensified, in order to strengthen democratic theories to the detriment of the absolutists justified in divine law, shifting man to the center of the debate. Freedom and equality have become the supreme values to be defended in society. The propositions of Hobbes and Locke mark the discourse of guarantees of the individual in civil society with emphasis
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on a social pact the submission by necessity of expunging the fear of the state of war, or by consent for protection in the acquisition of goods to satisfy the needs. Keywords: Man. Equality. Pact. Guarantees.
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AMATYA SEN SOBRE A GÊNESE, O DESENVOLVIMENTO E CARACTERÍSTICAS DAS TEORIAS DE JUSTIÇA FOCADAS EM ARRANJOS
AS
Danilo Christiano Antunes Meira1 Horácio Wanderlei Rodrigues2
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Doutorando em Direito pela UFSC. Mestre em Direito pela UFSC. Graduado em Direito pela FADISA. Pesquisador do grupo de pesquisa Fundamentos e Dimensões dos Direitos Humanos (IMED). Membro do grupo de pesquisa NECODI – Núcleo de Estudos Conhecer Direito (IMED/UFSC). Membro do grupo de pesquisa Centro de Estudos Jurídico-Econômicos e de Gestão do Desenvolvimento (UFSC). Bolsista CNPq. danchristiano@gmail.com.
2 Doutor em Direito (Filosofia do Direito e da Política) pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Direito (Instituições Jurídico-Políticas) pela UFSC. Realizou Estágios de Pós-Doutorado em Filosofia na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e em Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPG Direito) da Faculdade Meridional (IMED/RS). Professor Titular de Teoria do Processo do Departamento de Direito e Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação Direito da UFSC, de 1991 a 2016. Coordenador do Mestrado Profissional em Direito em Direito da UFSC, de 2015 a 2016. Sócio fundador do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI) e da Associação Brasileira de Ensino do Direito (ABEDi). Membro do Instituto Iberomericano de Derecho Procesal (IIDP). Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação Meridional. Presidente da Comissão de Educação Jurídica da OAB/SC. Publicou diversos livros e uma centena de artigos em coletâneas e revistas especializadas, em especial sobre Ensino e Pesquisa em Direito, Direitos Humanos e Teoria do Processo. horaciowr@gmail.com.
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RESUMO Este artigo apresenta de forma perspectiva e sistemática a categoria Teoria de Justiça Focadas em Arranjos proposta pelo economista Amartya Sen. A sua estrutura busca favorecer a compreensão do desenvolvimento do conceito. Os três primeiros tópicos delimitam o enfoque pelo qual o debate sobre o conceito de justiça deve ser compreendido e ressalta elementos relevantes na construção da categoria Teoria de Justiça Focadas em Arranjos, como a discussão pública racional e a influência recebida do Iluminismo. O quarto e o quinto tópico dizem respeito à caracterização da tradição contratualista e da perspectiva institucionalista transcendental, que funcionam como fundamentos e condicionantes das Teorias de Justiça Focadas em Arranjos. O sexto e o sétimo tópico sintetizam o próprio conceito de Teorias de Justiça Focadas em Arranjos e suas características. Como conclusão, o texto apresenta uma série de considerações que pode ser tomada como ponto de partida para novos
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estudos, indicando os flancos que Amartya Sen aparentemente deixou abertos à críticas e potenciais de desenvolvimento dessa proposta. Palavras-chave: Amartya Sen. Teorias de Justiça Focadas em Arranjos. Teoria do Direito.
1 INTRODUÇÃO
A análise crítica em questão diz respeito às Teorias de Justiça Focadas em Arranjos, uma categoria na qual, segundo Sen, se insere a maior parte das teorias de justiça contemporâneas. Para o economista e filósofo indiano, essa categoria possibilita uma percepção mais abrangente da concepção, do desenvolvimento e das características das teorias de justiça que dela fazem parte. Ao menos em princípio, portanto, essa proposta teria o mérito de revelar deficiências e traços compartilhados por teorias que não costumam ser percebidas como semelhantes. Exposta a pertinência e a relevância do debate, o objetivo que o presente artigo espera alcançar é o de apresentar a categoria Teoria de Justiça Focadas em Arranjos de forma perspectiva e sistemática, organizando a proposta de Amartya Sen de uma maneira que favoreça a compreensão dos caminhos que ilustram o desenvolvimento do conceito. Além disso, essa estratégia também busca favorecer uma leitura de aproximação e a demonstração da pertinência do assunto para muitos dos principais debates na área do Direito que tangenciam o conceito de justiça. Para tanto, o texto será estruturado com uma configuração específica. Os três primeiros tópicos contextualizam a discussão sobre o conceito de justiça que Amartya Sen privilegia, isto é, demarcam o enfoque pelo qual o debate sobre o conceito de justiça deve ser compreendido na proposta desse autor. Ao mesmo tempo, os tópicos de contextualização buscam permitir que o leitor perceba elementos relevantes na construção da categoria Teoria de Justiça Focadas em Arranjos, como a discussão pública racional e a influência recebida do Iluminismo. O quarto e o quinto tópico dizem respeito à caracterização da tradição contratualista e da perspectiva institucionalista transcendental, que funcionam como fundamentos e condicionantes das Teorias de Justiça Focadas em Arranjos. O sexto e o sétimo tópico sintetizam o próprio conceito de Teorias de Justiça Focadas em Arranjos e suas características, indicando quais exemplares contemporâneos poderiam ser considerados como filiados a essa forma de pensar sobre os problemas de justiça. Como conclusão, o texto apresenta uma série de considerações que pode ser tomada como ponto de partida para novos estudos, indicando os flancos que Amartya Sen apa-
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Amartya Sen costuma ser lembrado enquanto pesquisador do campo da economia do bem-estar, especialmente pelo desenvolvimento do seu conceito de capabilities. Talvez esse motivo explique, ao menos em parte, o baixo impacto de seus trabalhos no âmbito da Teoria do Direito. Todavia, por uma série de razões, a análise crítica que ele propõe sobre um determinado conjunto de teorias de justiça merece ser incluída na pauta de estudos daqueles que se interessam pela área.
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rentemente deixou abertos à críticas e potenciais de desenvolvimento dessa proposta.
2 PRIMEIRA CONTEXTUALIZAÇÃO: DISCUSSÕES RACIONAIS ESTIMULADAS PELA NECESSIDADE DE REMOVER INJUSTIÇAS Amartya Sen inicia o seu livro A Ideia de Justiça chamando a atenção para a importância das emoções estimuladas por circunstâncias percebidas como injustas. Para ele, são essas percepções de injustiças que estimulam as reflexões sobre a justiça avançarem de um plano eminentemente teórico para um plano de concretizações. É esse o tipo de debate que interessa à Sen: reflexões sobre a justiça com fins à formulação de soluções para problemas práticos. Todavia, explica o autor, essas emoções precisam ser assimiladas através de uma ponderação racional, pois o senso de injustiça “demanda um exame crítico, e deve haver um exame cuidadoso da validade de uma conclusão baseada principalmente em sinais” (SEN, 2011, p. 8). Não se trata, porém, de excluir as impressões de caráter emocional das avaliações racionais sobre a justiça, como afirmam alguns, e nem de afastar as emoções da argumentação racional, como dizem outros3. Para Sen (2011, p. 18), não é “plausível considerar as emoções, a psicologia ou os instintos como fontes independentes de valoração, sem uma avaliação arrazoada. Contudo, os impulsos e as atitudes mentais continuam sendo importantes, visto que temos boas razões para levá-los em conta na nossa avaliação da justiça e da injustiça no mundo”. Por tais motivos, Amartya Sen conclui ser imprescindível que qualquer debate sobre a ideia de justiça, para ser relevante, deve começar por um caminho já sedimentado por John Rawls, para quem a interpretação da justiça estaria necessariamente vinculada com o uso da razão pública, ou, mais precisamente, uma “estrutura pública de pensamento” que proporcione “uma noção de acordo nos juízos entre agentes razoáveis”4.
Como Amartya Sem (2011, p. 42) observa, “ainda que a justiça social tenha sido discutida por séculos, a disciplina recebeu um impulso especialmente forte durante o Iluminismo europeu nos séculos XVIII e XIX, encorajado pelo clima político de mudança e também pela transformação social e econômica em curso na Europa e nos Estados Unidos”. Por conseguinte, o apelo ao uso da razão pública, pelo qual seria possível construir acordos entre os indivíduos para o enfrentamento das questões ligadas à justiça, leva Amartya Sen delimitar o marco temporal inicial das discussões sobre a justiça que interessam à sua análise. Essas discussões, como percebido, teriam início apenas
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SEN, 2011, p. 39. A esse respeito, é também interessante notar a resposta que o economista indiano dá em seu livro Desenvolvimento como liberdade, de 2010, a Carl Manger e Friedrich Hayek sobre a conclusão que eles chegam a respeito do caráter impremeditado das mudanças e realizações sociais. Ver SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 324-332.
4 SEN, Amartya. O que queremos de uma teoria da justiça? Trad. Mário Nogueira de Oliveira. FUNDAMENTO – Revista de Pesquisa em Filosofia, Ouro Preto, n. 5, jul–dez – 2012, p. 23.
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3 SEGUNDA CONTEXTUALIZAÇÃO: A RAZÃO PÚBLICA NO ILUMINISMO
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no “período de descontentamento intelectual durante o Iluminismo europeu” (SEN, 2011, p. 14). De fato, esse recorte parece ser justificado. As novas exigências decorrentes dos parâmetros de racionalidade introduzidos pelas ciências naturais daquele momento histórico logo alcançaram as demais áreas do conhecimento. O pensamento e a cultura daquela época produziram alterações em toda a dinâmica social5. O que se teve, em síntese, “não foi apenas a profanação da cultura ocidental, mas, sobretudo, o desenvolvimento das sociedades modernas”6. Por um lado, “o sucesso das ciências experimentais alimentou a ideia de que o mesmo método leva a um progresso concreto em todas as áreas da cultura e da vida”7. Por outro lado, diversas instituições sociais perderam seus respectivos pilares de sustentação. Algumas simplesmente deixaram de existir. Outras, por ainda serem necessárias, demandavam por explicações que as justificassem de acordo com o pensamento racionalista da época. Nesse contexto, isto é, no caso das instituições sociais que demandavam uma sustentação racional que justificasse sua existência após o abandono das concepções pré-modernas, encontrava-se a questão da legitimidade da autoridade dos governantes e dos princípios morais que regiam a vida em sociedade. Immanuel Kant, um dos mais conhecidos representantes do Iluminismo, definiu esse momento de um modo particularmente útil para compreender a essa questão. Para ele, o Iluminismo significava “a saída do homem de sua menoridade”, isto é, da “incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo” (KANT, 1985, p. 100). Era preciso criar hipóteses explicativas para a vida em sociedade mais adequadas, posto ser inviável sustentá-la na vontade divina e ou na mera submissão à força. Era preciso criar hipóteses explicativas para a legitimação dos governos e do dever de obediência às leis a partir da afirmação da própria razão dos indivíduos.
Uma espécie de explicação particularmente conhecida dos elementos que configuram e condicionam a vida em sociedade foi dada pelo filósofo político Thomas Hobbes. Para Hobbes (1651, p. 85), é o desejo de sair da mísera condição de guerra e de isolamento do estado da natureza e o cuidado com a própria conservação e com uma vida mais satisfeita que fizeram com que os indivíduos se aglomerassem e impusessem restrições sobre si mesmos. Essas restrições recíprocas, responsáveis pela viabilização dessa nova forma de vida, materializavam-se na forma de leis. Para que essas leis fossem observadas por todos e para que a proteção dos indivíduos em face dos seus iguais e dos estrangeiros fosse efetiva, completa Hobbes, era necessária
5 BRISTOW, William. Enlightenment. The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2010 Edition), Edward N. Zalta (ed.). Disponível em <http://plato.stanford.edu/archives/fall2010/entries/enlightenment/>. Acessado em 16 de junho de 2015.. 6 HABERMAS, Jürgen. (1985) O Discurso Filosófico da Modernidade: doze lições. Trad. Luiz Sérgio Repa e Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 4. 7
BOBBIO, Norberto; MATTEUCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Trad. de Carmen C, Varriale et ai.; coord. trad. João Ferreira; rev. geral João Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cacais. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 11a ed., 1998, p. 606.
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4 TERCEIRA CONTEXTUALIZAÇÃO: O CONTRATUALISMO COMO RECURSO EXPLICATIVO
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a criação de um poder que lhes fosse comum e superior. Era preciso que todos os indivíduos designassem um homem ou uma assembleia de homens como seus representantes e a eles transferissem o direito que cada um tem de governar a si próprio. É da união da multidão na figura de uma só pessoa ou assembleia que veio a ideia do grande Leviatã, ou o Deus mortal, e é nele que consiste a própria ideia de Estado (HOBBES, 1651, p. 87-8). Fica claro que a consistência racional da resposta hobbesiana repousa na pressuposição de um acordo entre os indivíduos que buscam satisfazer seus próprios interesses. É justamente esse acordo pressuposto que possibilita a aceitabilidade das noções de convergência de vontades dos indivíduos em busca da autoconservação e da promoção do próprio bem-estar e a outorga do poder ao soberano serem explicadas a partir de critérios adequados ao espírito daquele período. Não foi por outro motivo que Hobbes (1651, p. 88.) definiu o Estado como “uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurara paz e a defesa comum”. Essa ideia de acordo entre os indivíduos em busca de um bem comum foi largamente utilizada e dela se originou a teoria que hoje se conhece como Teoria do Contrato Social.
Como pontuado, o contratualismo surgiu a partir de uma dupla recusa: a de se fundamentar os valores morais e a autoridade política na vontade divina ou em outro elemento que escapasse às exigências de racionalidade do Esclarecimento. Isso explica o fato de a Teoria do Contrato Social ter se desenvolvido em duas modalidades. A primeira está mais próxima da Teoria Política e diz respeito à legitimidade da autoridade política. Ela sustenta que a autoridade legítima do governo deve derivar do consentimento dos governados e que a forma e o conteúdo desse consentimento reflete os termos do contrato ou acordo mútuo. A segunda modalidade do Contrato Social está mais próxima da Ética ou Teoria Moral e se ocupa da origem ou do conteúdo legítimo de normas morais. De igual modo, ela também afirma que as normas morais derivam sua força normativa da ideia de contrato ou acordo mútuo8. O desenvolvimento da teoria contratualista ocorreu de maneira gradual. Depois de Thomas Hobbes, Jean-Jacques Rousseau, John Locke e Immanuel Kant foram os sucessores modernos imediatos (SEN, 2011, p. 17). Cada um a seu modo ofereceu versões em alguma medida diferenciadas. Todavia, a presença de alguns elementos nucleares nessas diversas abordagens justifica uma identidade contratualista comum. Os principais são a caracterização de uma situação inicial e a caracterização das partes do contrato (CUDD, 2013). A situação inicial, também chamada de estado de natureza, posição original ou po-
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CUDD, Ann. Contractarianism. (2013) The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Winter 2013 Edition. Edward N. Zalta (ed.). Disponível em: <http://plato.stanford.edu/archives/win2013/entries/contractarianism/>. Acesso em: 1 abr. 2014.
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5 CARACTERÍSTICAS COMUNS ÀS TEORIAS CONTRATUALISTAS
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sição de negociação inicial, é a situação na qual se encontram as partes do contrato antes de firmá-lo ou ao não aceitar os termos negociados. É uma situação que apresenta um caráter de hostilidade e sociabilidade que varia de acordo com a ideia que o respectivo teórico faz de uma sociedade sem regras morais e sem uma autoridade central. A caracterização das partes do contrato diz respeito à racionalidade e à motivação que os contratantes têm para chegar a um acordo em relação aos termos do contrato. O fundamental nas teorias contratualistas é a escassez ou a motivação para a competição sem regras entre os indivíduos na situação inicial e a possibilidade de ganhos a partir da interação social e da cooperação facilitada pelo contrato social.
Como observa Amartya Sen (2011, p. 36), a ideia de um contrato social hipoteticamente escolhido foi uma alternativa explicativa particularmente adequada ao “caos que de outra forma caracterizaria uma sociedade”. Todavia, o seu desenvolvimento não ficou confinado à perspectiva explicativa inicial, isto é, à explicação racionalmente adequada sobre a vida em sociedade, os governos, suas leis e seus preceitos morais. Como os aspectos mais discutidos pelos contratualistas diziam respeito à identificação das instituições mais elementares que influenciavam a caracterização de uma sociedade, logo se abriu espaço para a especulação a respeito das instituições necessárias para sociedades ideais. A explicação da vida em sociedade a partir do modelo contratualista, na verdade, já vinha acompanhada desde o início em maior ou menor medida dos elementos que o respectivo teórico identificava como termos contratuais mais adequados à concepção de uma sociedade justa e ao mesmo tempo desejável por todas as partes contratantes. A diferença entre o contrato enquanto hipótese explicativa e enquanto idealização é, por conseguinte, muito tênue. Essa atitude é verificada, inclusive, desde Hobbes. Obviamente, a pretensão de alcançar uma sociedade ideal tem suas raízes em períodos mais remotos, mas no contratualismo ela aparece como uma possibilidade de escolha racional a partir da identificação dos princípios que orientariam a criação e o funcionamento das instituições dessa sociedade. Como resultado desse esforço se teve “o desenvolvimento de teorias da justiça que enfocavam a identificação transcendental das instituições ideais” (SEN, 2011, p. 36). Em outras palavras, o que se também tentava era buscar a identificação das leis e arranjos sociais que, transcendentalmente, produziam a sociedade justa. A essa postura das teorias derivadas do contratualismo o economista indiano Amartya Sen deu o nome de Institucionalismo Transcendental.
7 INSTITUCIONALISMO TRANSCENDENTAL E AS CARACTERÍSTICAS DAS TEORIAS DE JUSTIÇA FOCADAS EM ARRANJOS De modo preliminar, já parece possível compreender o Institucionalismo Transcen-
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6 DO CONTRATUALISMO AO INSTITUCIONALISMO TRANSCENDENTAL
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ainda que a abordagem contratualista da justiça, iniciada por Hobbes, combine transcendentalismo com institucionalismo, é importante observar que as duas características não precisam necessariamente ser combinadas. Por exemplo, podemos ter uma teoria transcendental que focalize as realizações sociais em vez das instituições (a procura do mundo utilitarista perfeito, povoado de pessoas maravilhosamente felizes, seria um exemplo simples de busca da “transcendência baseada em realizações”). Ou podemos enfocar avaliações institucionais usando perspectivas comparativas em lugar de empreender uma busca transcendental do pacote perfeito de instituições sociais (a preferência por um papel maior — ou mesmo menor — para o livre mercado seria um exemplo de institucionalismo comparativo).
Resumidamente, Amartya Sen reconhece que muitos teóricos vinculados à tradição Institucionalista Transcendental, dentre os quais inclui Kant e Rawls, fornecem em suas teorias
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dental como uma linha de argumentação racional sobre a justiça social derivada das teorias contratualistas que surgiram no período do Esclarecimento, impulsionadas pelo clima político de mudanças sociais e econômicas em curso na Europa e nos Estados Unidos. Todavia, é preciso avançar para a apreciação das suas duas características distintivas herdadas diretamente da tradição contratualista e a influência desse tipo de abordagem na criação da categoria Teorias de Justiça Focadas em Arranjos. A primeira característica é que o Institucionalismo Transcendental “concentra a sua atenção no que identifica como a justiça perfeita, e não nas comparações relativas de justiça e injustiça. Ela apenas busca identificar características sociais que não podem ser transcendidas com relação à justiça; logo, seu foco não é a comparação entre sociedades viáveis, todas não podendo alcançar os ideais de perfeição”. Assim, a sua linha de investigação se dá no plano da natureza do justo e não no da identificação de critérios que possibilitem a afirmação sobre que uma alternativa é menos injusta que outra (SEN, 2011, p. 36). A segunda característica corresponde ao fato de o Institucionalismo Transcendental se preocupar principalmente em acertar as instituições justas. Com efeito, o termo Institucionalismo Transcendental decorre justamente da vinculação que as teorias de justiça pertencentes a essa tradição fazem entre a ideia de realização da justiça e o caráter de justiça das instituições. Para Amartya Sem (2011, p. 40), não haveria nessas teorias problematização ou reflexão posterior a respeito dos tipos reais de sociedade que poderiam emergir das instituições idealizadas. Alguns autores simplesmente estabeleceriam que o limite de se pensar a justiça se encontra no nível institucional, não importando o que desse arranjo possa surgir. Além disso, é necessário perceber uma consideração que o economista indiano fez a respeito da abordagem institucionalista transcendental que aponta a possibilidade de teorias de justiça apresentarem características transcendentais sem estar acompanhadas do foco em instituições. Nela, explica-se o motivo pelo qual ele escolheu o termo arranjos, e não instituições, para designar o conceito específico de teorias de justiça aqui estudado. Nas palavras de Amartya Sen (2011, p. 68),
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análises “dos imperativos morais e políticos para o comportamento socialmente apropriado” e, por tal motivo, elas “podem ser vistas, de forma mais ampla, como abordagens da justiça focadas em arranjos, em que arranjo se refere tanto ao comportamento certo como às instituições certas” (SEN, 2011, p. 42-43). De qualquer modo, tal arranjo seria objetivado também pela escolha racional de um ou mais princípios orientadores a partir de um contrato social hipotético.
8 CARACTERÍSTICAS E DEFICIÊNCIAS DAS TEORIAS CONTEMPORÂNEAS DE JUSTIÇA FOCADAS EM ARRANJOS
rias de Justiça Focadas em Arranjos contemporâneas como um tipo de abordagem sobre os problemas de justiça que poderia ser identificado a partir das seguintes características gerais: a) parte da premissa de que as questões que envolvem a promoção da justiça devem ser conduzidas pelo uso da razão pública; b) concentra a atenção naquilo que identifica como a justiça perfeita e não em comparações entre alternativas viáveis, o que faz com que a sua investigação se dê no plano da natureza do justo; c) procura acertar as instituições e comportamentos justos que caracterizariam, por si, a realização da justiça; e d) compreende a escolha dos princípios de justiça e de seu respectivo arranjo como objetos ou cláusulas de uma deliberação contratualista unânime. Para Amartya Sen (2011, p. 38), essas características estariam presentes na maior parte das teorias de justiça contemporâneas. Em suas palavras, “é sobre o institucionalismo transcendental que a filosofia política de hoje se apoia”, de modo que “a caracterização de instituições perfeitamente justas transformou-se no exercício central das teorias da justiça modernas”. Em termos práticos, o critério de se aferir a realização da justiça usado pelas Teorias de Justiça Focadas em Arranjos segue os mesmos moldes da tradição do Institucionalismo Transcendental ao se propor que a justiça seja conceitualizada em termos de arranjos organizacionais, como instituições, regulamentações e regras comportamentais que dão origem a sociedades justas (SEN, 2011, p. 40). Variáveis que não possuem natureza institucional seriam ignoradas ou tomadas como pressupostas de uma maneira perfeitamente adequada ao que se espera como resultado das instituições (SEN, 2011, p. 36). Uma vez escolhidos os princípios que orientariam a criação e o funcionamento da instituição, a tarefa de se pensar a justiça se conclui. Por conseguinte, também tomariam como certo o caráter justo das sociedades que podem surgir (SEN, 2011, p. 37). Sobre a segunda questão, isto é, sobre a identificação das próprias teorias contemporâneas de justiça que Amartya Sen tem em mente quando fala em Teorias de Justiça Focadas em Arranjos, um dado preliminar precisa ser considerado. De certa forma, não parece haver muito debate sobre quais teóricos contemporâneos se filiam à tradição contratualista. É comum
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Compreendidas as razões pelas quais Amartya Sen denominou um conjunto de perspectivas como Teorias de Justiça Focadas em Arranjos, bem como as principais características que contribuíram para a sua definição, interessa verificar quais traços distintivos ainda ecoam nas teorias contemporâneas de justiça e quais seriam essas teorias. Sobre a primeira questão, as observações de Amartya Sen permitem descrever as Teo-
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identificar as propostas de Robert Nozick, John Rawls, David Gauthier, Jan Narveson, James Buchanan e Thomas Scanlon, por exemplo, como propostas contratualistas (CUDD, 2013). Todavia, Amartya Sen não parece suficientemente seguro em classificar todos os contratualistas contemporâneos como filiados às Teorias de Justiça Focadas em Arranjos. Ele apresenta uma modesta lista de nomes que, além de John Rawls, se completa apenas com “Ronald Dworkin, David Gauthier, Robert Nozick, entre outros” (SEN, 2011, p. 44) como representantes dessa tradição. Não fica claro quem ele inclui nesse “entre outros”. Em certas passagens, ele parece sugerir que a concepção de justiça de Jürgen Habermas, especialmente ao que se refere à deliberação pública como critério de objetividade e ao uso da razão, não estaria muito distante da concepção rawlsiana (SEN, 2011, p.86-87). Em outras, indica que a perspectiva contratualista de Thomas Scanlon estaria bem mais aberta, completa e comparativa em relação ao hermetismo contratualista visto, por exemplo, no próprio exercício deliberativo da Justiça como equidade de John Rawls (SEN, 2011, p.304-307). Até mesmo a concepção de justiça de Ronald Dworkin parece ser revisitada apenas para que a crítica à abordagem de capacidades da sua teoria de justiça seja respondida, ainda que para isso ele faça breves comentários sobre o experimento mental do hipotético mercado de seguros que, na teoria de Dworkin, ocorre numa posição original sob o véu da ignorância rawlsiana (SEN, 2011, p.392-397). Em todos esses casos, porém, ficam expressas diversas ressalvas que podem ser interpretadas ou como um relativo caráter de acessoriedade que essas teorias apresentam na obra de Amartya Sen ou como reticências que, por alguma razão, interrompem a demonstração de que a abordagem da justiça focada em arranjos e suas respectivas características se apresenta como exercício central das contemporâneas teorias de justiça fica fragilizada.
A proposta de Amartya Sen em classificar um dado conjunto de abordagens sobre os problemas de justiça como uma categoria definida por características compartilhadas é uma estratégia bastante ambiciosa e tem, em princípio, um bom potencial analítico. Todavia, é preciso considerar um certo número de ressalvas antes de tomá-la como um pressuposto seguro de fundamentação de novos estudos. Em primeiro lugar, a afirmação de que as Teorias de Justiça Focadas em Arranjos se apresentam como a corrente majoritária parece inconsistente. O autor não demonstrou esse caráter majoritário, mas se limitou a mencionar poucos casos pontuais. Isso parece indicar a necessidade de uma verificação mais consistente de exemplares específicos de teorias da justiça, especialmente aqueles que se autodeclaram contratualistas. Em segundo lugar, é interessante notar que a caracterização que Amartya Sen pretendeu atribuir às Teorias de Justiça Focadas em Arranjos pode não ser tão inovadora como se pretende. Críticas aos modelos ideais de sociedades justas construídas a partir da escolha de instituições justas existem, talvez, desde a primeira proposição nesse sentido. As considerações que
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9 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Karl Popper (1974. p.173-175) fez ao que denomina de mecânica social utópica, por exemplo, é uma abordagem muito semelhante, embora concebida com outros propósitos e metodologias. Neste ponto, também é possível e desejável que outros estudos coloquem em questão o caráter inovador das conclusões de Sen. Em terceiro lugar, um dado não mencionado no desenvolvimento do conceito de Teorias de Justiça Focadas em Arranjos e que precisa ser considerado é a ausência de diálogo entre Amartya Sen e autores clássicos da Teoria do Direito. A citação aos estudos de John Rawls, Dworkin e outros contemporâneos não esgota tudo o que já foi escrito sobre os assuntos relacionados à sua proposta. Obviamente, não se trata de uma exigência inexequível de considerar minuciosamente todas as obras de Teoria do Direito. O que se coloca em questão aqui é apenas o fato de se ter ignorado reflexões já consagradas no campo, como O Problema da Justiça, de Hans Kelsen, e Ética e Direito, de Chaïm Perelman. De qualquer modo, tais ressalvas não indicam a inviabilidade da proposta em seu conjunto. Até os pontos aparentemente deficientes são relevantes ao ponto de encorajar novas pesquisas e estudos. São trabalhos que ainda estão em aberto e que, caso concluídos, podem contribuir significativamente para a compreensão de um dos temas mais delicados da Teoria do Direito e para a tradução dessa compreensão em termos de estratégias práticas.
REFERÊNCIAS BOBBIO, Norberto; MATTEUCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Trad. de Carmen C, Varriale et ai.; coord. trad. João Ferreira; rev. geral João Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cacais. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 11a ed., 1998.
CUDD, Ann. Contractarianism. (2013) The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Winter 2013 Edition. Edward N. Zalta (ed.). Disponível em: <http://plato.stanford.edu/archives/ win2013/entries/contractarianism/>. Acesso em: 01 abr. 2014. HABERMAS, Jürgen. (1985) O Discurso Filosófico da Modernidade: doze lições. Trad. Luiz Sérgio Repa e Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2000. HOBBES, Thomas. (1651) Leviathan: or the metter, forme, and power of a common-wealth ecclesiasticall and civill. KANT, Immanuel. Textos seletos. Tradução de Raimundo Vier e Floriano de Souza Fernandes. 2ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1985.
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This article presents the category Arrangements-Focused Theories of Justice on proposed by the economist Amartya Sen in a perspective and systematic way. Its structure seeks to promote understanding of the development of the concept. The first three topics delimit the approach by which the debate about the concept of justice should be understood and highlights relevant elements in the construction of the category Arrangements-Focused Theories of Justice, such as rational public discussion and the influence received from the Enlightenment. The fourth and fifth topics concern the characterization of the contractualist tradition and the transcendental institutionalist perspective, which function as foundations and determinants of the Arrangements-Focused Theories of Justice. The sixth and seventh topics synthesize the concept of Arrangements-Focused Theories of Justice and their characteristics. As a conclusion, the text presents a series of considerations that can be taken as a starting point for further studies, indicating the flanks that Amartya Sen apparently left open to the criticisms and potential of development of this proposal. Keywords: Amartya Sen. Arrangements-Focused Theories of Justice. Theory of Law.
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ABSTRACT
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A RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS MORAIS NO DIREITO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO
Belmiro Vivaldo Santana Fernandes1 Ricardo Maurício Freire Soares2
1 Belmiro Fernandes é advogado integrante de MB Poças e Albuquerque, atuando nas esferas criminal, processual civil (especial na atuação em processos de execução e recursos para instância superior e Tribunais Superiores), crimes tributários, direito tributário e eleitoral. Possui graduação em Bacharelado em Direito pela Universidade Católica do Salvador (2003) e mestrado em Direito pela Universidade Federal da Bahia (2006). Atualmente é professor do CENTRO UNIVERSITÁRIO ESTÁCIO DA BAHIA – ESTÁCIO/FIB e professor da UNIVERSO – Universidade Salgado de Oliveira. Também é Colunista da Revista A Barriguda. Contato: belmirofernandes@gmail. com e www.professorbelmiro.com. 2
Pós-Doutor em Direito pela Università degli Studi di Roma “La Sapienza”, Università degli Studi di Roma “Tor Vergata” e Università del Salento. Doutor em Direito pela Università del Salento. Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Professor dos Cursos de Graduação e Pós-graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia (Especialização/Mestrado/Doutorado). Professor da Faculdade Baiana de Direito e da Faculdade Ruy Barbosa. Professor visitante em diversas instituições: Università degli Studi di Roma “La Sapienza”, Università degli Studi di Roma “Tor Vergata”, Università degli Studi “Roma Tre”, Università degli Studi di Milano, Università di Genova, Università di Pisa, Universidade Autônoma de Lisboa, Universidade de Algarve, Universidad de Burgos e Martin-Luther-Universität. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e do Instituto dos Advogados da Bahia. Membro do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Palestrante e Autor de diversas obras jurídicas pela Editora Saraiva. E-mail: ric.mauricio@ig.com.br
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
RESUMO Da interlocução entre a Constituição e o Direito Civil, examinou-se o valor filosófico da dignidade humana e seu reconhecimento jurídico como princípio, com plena aplicabilidade no pensamento pós-positivista. Objetivando o reconhecimento de sua máxima eficácia, pôs-se em aproximação a dignidade humana perante os direitos de personalidade e direitos fundamentais, enquanto suas decorrências normativas, enfrentando-se, com relação a estes últimos, o regramento da direta aplicação do direito à igualdade às relações jurídicas entre particulares. Reconhecidos tais limites, estudou-se detidamente o instituto da responsabilidade civil por danos morais, mediante o levantamento de seus pressupostos e das diversas correntes que regulam sua aplicação.
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Palavras–chave: Danos morais. Reponsabilidade civil. Dignidade.
1 INTRODUÇÃO Etimologicamente, “responsabilidade” se origina do latim “respondere”, podendo ser traduzido como obrigação que alguém tem de assumir com a consequência dos seus atos (PAMPLONA, 1999, p. 21). Como subespécies da responsabilidade jurídica, encontram-se a “responsabilidade civil” e a “responsabilidade penal”, cuja diferença básica é a consequência sancionadora para o agente da conduta3. Pereira (2004, v. 1, 632) define a responsabilidade civil como: [...] a efetivação da reparabilidade abstrata do dano em relação a um sujeito passivo da relação jurídica, que se forma. Reparação e sujeito passivo compõem o binômio da responsabilidade civil, que então se anuncia como o princípio que subordina a reparação à sua incidência na pessoa do causador do dano.
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Sobre a diferença entre responsabilidade civil e penal, Dias (1995, p. 7-10), citando Mazeaud et Mazeaud, afirma que é a mesma que existe entre o direito penal e direito civil. Assim, explica que enquanto a reparação civil reintegra, realmente, ao prejudicado na situação patrimonial anterior, a sanção penal não oferece nenhuma possibilidade de recuperação ao prejudicado, pois sua finalidade é restituir a ordem social ao estado anterior à turbação.
4 Explica Pereira (2004, v. 1, p. 655-656) que na estrutura explicitada, são cabíveis todas as espécies de ilícitos, sejam civis, sejam penais. Em suas palavras: “Não se aponta, em verdade, uma diferença ontológica entre um e outro. Há em ambos o mesmo fundamento ético: a infração de um dever preexistente e a imputação do resultado à consciência do agente. [...] Mesmo no caso de um ilícito ser reprimido simultaneamente no cível e no criminal, há diferenciação, pois enquanto este tem em vista a pessoa do agente para impor-lhe sanção, aquele se preocupa com o resultado e cogita da recomposição patrimonial da vítima. Enquanto o direito penal vê no ilícito a razão de punir o agente, o direito civil nele enxerga o fundamento da reparação do dano. Por isto mesmo, a responsabilidade civil é independente da criminal, ainda que haja a superposição das duas áreas.” O ponto sobre responsabilidade civil e penal será retomado mais adiante, quando se tratar sobre a figura do dano punitivo.
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A conduta individual pode revelar-se conforme ou desconforme o direito. Segundo a classificação doutrinária dos atos humanos (PEREIRA, 2004, v. 1, p. 654), os atos ilícitos representam a concretização de um agir em desacordo com a ordem legal. Em razão disso, não deve o ordenamento jurídico permitir que o agente venha a se beneficiar de uma conduta ilícita, merecendo, portanto, ser sancionado, por proteção ao direito de outrem. Ao passo em que o ato lícito cria para o agente direitos e obrigações, o ilícito apenas lhe gera deveres (PEREIRA, 2004, v. 1, p. 653). De acordo com Pereira (2005, v. 1, p. 654), o ato ilícito reúne certos requisitos para ser ensejador de responsabilização civil, expostos da seguinte maneira: a) uma conduta intencional ou previsível de um resulta; b) a violação do ordenamento jurídico, por ser contrária às normas; c) a imputabilidade do resultado antijurídico à consciência do agente; d) a penetração da conduta na esfera jurídica alheia4. Servindo de pressuposto para a responsabilização civil, o ato ilícito funda-se na noção
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de culpa5 do agente, em sentido amplo, abrangendo o dolo e a culpa em sentido estrito. Vale ressaltar que o direito civil brasileiro abandonou tal distinção, porque de difícil aplicação nos casos concretos, permanecendo, todavia, no campo penal6. (PEREIRA, 2004, v. 1, 657). Na opinião de Cavalieri (2006, pp. 28-29), a violação de um dever jurídico é que configura o ilícito, pois acarreta um dano para outrem, gerando, portanto, um novo dever jurídico7. Assim, existe um dever jurídico originário, que, uma vez violado, gera um dever jurídico sucessivo, que é o de indenizar o prejuízo. O referido autor acrescenta que o ato ilícito pode ser analisado sob duas perspectivas. Num sentido estrito, é considerado como o conjunto de pressupostos da responsabilidade, ao passo em que no sentido amplo, refere-se apenas a uma conduta humana voluntária e contrária à ordem jurídica. (CAVALIERI, 2006, pp. 33-34)8. Conclui que: O ato ilícito, portanto, é sempre um comportamento voluntário que infringe um dever jurídico, e não que simplesmente prometa ou ameace infringi-lo, de tal sorte que, desde o momento em que um ato ilícito foi praticado, está-se diante de um processo executivo, e não diante de uma simples manifestação de vontade. Nem por isso, entretanto, o ato ilícito dispensa uma manifestação de vontade. Antes, pelo contrário, por ser um ato de conduta, um comportamento humano, é preciso que ele seja voluntário.
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Seguindo as lições de Pereira, sobre o nascimento da teoria do risco, que é o pressuposto da responsabilidade civil (2004, v. 1, p. 663), diz-se que: “Em verdade, a culpa, como fundamento responsabilidade civil, é insuficiente, pois deixa sem reparação danos sofridos por pessoas que não conseguem provar a falta do agente. O que importa é a causalidade entre o mal sofrido e o fato causador, por influxo do princípio segundo o qual toda pessoa que cause a outra um dano está sujeito a sua reparação, sem necessidade de se cogitar do problema da imputabilidade do evento à culpa. [...] Ante uma perda econômica, pergunta-se qual dos dois patrimônios deve responder, se o da vítima ou o do causador do prejuízo. E, na resposta à indagação, deve o direito inclinar-se em favor daquela, porque dos dois é quem não tem o poder de evitá-lo, enquanto o segundo estava em condições de retirar um proveito, sacar uma utilidade ou auferir um benefício da atividade que originou o prejuízo. O fundamento da teoria é mais humano que o da culpa, e mais profundamente ligado ao sentimento de solidariedade social”. Em razão dessa teoria se referir apenas à responsabilidade objetiva, sua análise extrapola o presente estudo, que versa exclusivamente os danos morais provocados pelos particulares, cuja teoria aplicável é a da culpa.
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Nas palavras de Dias (1995, p. 120), “Nem mesmo a classificação dos atos ilícitos em dolosos ou culposos apresenta interesse para o civilista brasileiro, que só cogita do gênero ato ilícito, que é o fato, não autorizado pelo direito, causador de dano a outrem [...]. Vale ressaltar que o fato do Código Civil de 1917 ter utilizado, em seu artigo 159 as expressões “imprudência” e “negligência” – institutos típicos da conduta culposa em sentido estrito – isso não significa que fosse necessária a sua consideração para a aplicação – ou não – da responsabilidade civil a agentes infratores.
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Por dever jurídico, entende ser “a conduta externa de uma pessoa imposta pelo Direito Positivo por exigência da convivência social” (p. 28). Acrescenta ainda que o dever jurídico não se refere apenas a um aconselhamento ou recomendação, mas comandos aptos a se tornarem obrigações de indenizar. Sobre estas últimas, é importante ressaltar que se trata de uma modalidade obrigacional inserida no art. 927 do Código Civil, contradizendo com a teoria clássica do direito civil, na qual a responsabilidade é a consequência do descumprimento de uma obrigação. Então, sua natureza jurídica é de obrigação-sanção, opondo-se àquela surgida voluntariamente a partir da criação de negócios jurídicos (op. cit. p 26).
8 Cavalieri expõe que o conceito tradicional de ato ilícito tornou-se insuficiente para a configuração da responsabilidade subjetiva, pois é impossível enfeixar em sua teoria todos os fatos da vida que possam causar danos. No campo da responsabilidade objetiva, a deficiência é ainda maior, só se pode compatibilizar a noção de ato ilícito em seu sentido objetivo (p. 33).
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Convém assinalar que a velha noção de ato ilícito vem sendo superada, na responsabilidade civil, em decorrência da primazia de que goza o princípio da dignidade da pessoa humana, sobre as relações jurídicas no direito brasileiro. Tal reformulação é sensível, pois, segundo Bodin de Morais (2003, p. 174) a adoção do critério do dano injusto, é mais eficaz para a proteção da dignidade da pessoa, pois objetiva não apenas reparar “prejuízos”, mas preveni-los. Isso ocorreu em razão da mudança do paradigma interpretativo - puramente patrimonialista – outrora vigente no direito brasileiro da época do Código Civil brasileiro de 1916, em especial no pe-
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ríodo anterior à promulgação da Constituição para um modelo humanista, baseado na proteção da pessoa humana. Seguindo o mesmo entendimento, Perlingieri (2002, p. 156) complementa: A personalidade é, portanto, não um direito, mas um valor (o valor fundamental do ordenamento) e está na base de uma série aberta de situações existenciais, nas quais se traduz a sua incessantemente mutável exigência de tutela. Tais situações subjetivas não assumem necessariamente a forma do direito subjetivo e não devem fazer perder de vista a unidade do valor envolvido. Não existe um número fechado de hipóteses tuteladas: tutelado é o valor da pessoa sem limites, salvo aqueles colocados no seu interesse e naqueles de outras pessoas. A elasticidade torna-se instrumento para realizar formas de proteção também atípicas, fundadas no interesse à exigência e no livre exercício da vida de relações.
Nessa linha, todas as manifestações contrárias ao princípio da dignidade da pessoa humana devem ser repelidas, não como um fim em si mesmo, mas como um meio de proteção o citado valor supremo do referido princípio constitucional. Conhecer o caminho da citada mudança paradigmática é fundamental para a compreensão dos fundamentos do dano moral, apenas reconhecido como categoria autônoma da responsabilidade civil porque valoriza-se, hoje, a dignidade da pessoa humana. Por tais motivos, passa-se a analisar tal evolução.
Tradicionalmente, poder-se-ia extrair da palavra “dano” a noção de “prejuízo”, seja material, seja moral. A maioria dos doutrinadores pátrios, contudo, limita-se a vislumbrar os aspectos materiais deste prejuízo, quando se propõem a conceituar “dano”. Dias, citando Paoli (1925, p. 120 citado por DIAS, 1995, p. 714) afirma que “o dano, sem sentido jurídico, quer dizer ‘abolição ou diminuição, mesmo parcial ou temporária, de um bem da vida...”. Explica ainda que seja possível identificar duas concepções sobre dano: a) a vulgar, no tocante a prejuízo que alguém sofre na alma, no seu corpo ou nos seus bens, sem indagação de quem seja o autor da lesão de que resulta; b) jurídica, delimitada pela condição de pena ou de dever de indenizar, sendo o prejuízo do sujeito em consequência de violação por fato alheio (DIAS, 1995, p. 715). Dessa maneira, o dano que interessa à responsabilidade civil é o que constitui obrigação de indenizar, sendo dividido entre danos patrimoniais e danos morais (DIAS, 1995, p. 716). Apesar disso, assevera Dias (1995, p. 737), que nem sempre se reconheceu o fato de que o dano moral poderia ser indenizado. Os argumentos que a doutrina coleciona são os seguintes: a) falta de efeito penoso durável; b) incerteza do direito violado; c) dificuldades em descobrir a existência do dano moral; d) indeterminação do número das pessoas lesadas; e) impossibilidade de rigorosa avaliação em dinheiro; f) imoralidade da compensação da dor com dinheiro; g) extensão do arbítrio concedido ao juiz. Esta antiga tendência teve como reflexo a prevalência, durante muito tempo, da tese
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2 TEORIAS SOBRE A OCORRÊNCIA DOS DANOS MORAIS NA RESPONSABILIDADE CIVIL
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Por mais pobre e humilde que seja uma pessoa, ainda que completamente destituída de formação cultural e bens materiais, por mais deplorável que seja seu estado biopsicológico, ainda que destituída de consciência, enquanto ser humano será detentora de um conjunto de bens integrantes de sua personalidade, mais precioso
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da irreparabilidade (mais precisamente da não indenização) do dano moral, o que hoje já se encontra superado. Se a existência do direito à indenização por dano moral é, atualmente, inquestionável, o mesmo não se pode dizer quanto ao seu conceito e à sua amplitude ou dimensão, porque ainda não houve um assentamento da doutrina quanto ao seu conceito. Em consequência, a jurisprudência mostra-se vacilante no reconhecimento das situações em que se configura essa espécie de dano. Por conta disso, alguns critérios são utilizados, objetivando-se viabilizar a sua aplicação. A doutrina comumente definia o dano moral sob a forma negativa, como exclusão ao dano patrimonial ou material. Dias (1995, p. 852) afirma que: “Quando ao dano não correspondem às características do dano patrimonial, dizemos que estamos em presença do dano moral.” Esse modo de conceituar o dano moral nada esclarece a respeito de seu conteúdo e não permite uma precisa compreensão do fenômeno. Define-se essa espécie de dano com uma ideia negativa, algumas vezes acompanhada de uma fórmula redundante, usando expressões que fazem alusão ao aspecto moral do dano, sem, verdadeiramente, explicá-lo. Atualmente, outras categorias de danos não-patrimoniais têm sido reconhecidas pelo direito civil brasileiro, como o dano estético e à imagem. Dessa maneira, a fórmula em que se exclui da esfera patrimonial aquilo que se entende por moral implica caracterizar situações diferentes de maneira idêntica. Uma pessoa que perde a mobilidade de um dos seus braços em razão de uma agressão física sofre, simultaneamente, um dano patrimonial (pelo necessário pagamento de despesas médicas e com fisioterapia, além de eventual incapacidade para certos tipos de trabalho), um dano estético (a desarmonia gerada em seu corpo) e um dano moral (pelo abalo psíquico que lhe fora e sempre lhe será causado, em saber sofrera uma tão cruel dor). Portanto, deve ser abandonada, desde já, a concepção negativista do dano moral, tendo em vista que tal definição, conquanto afaste a classe mais distante (dano patrimonial), não esclarece as características do fenômeno deste estudo. A insuficiência da concepção negativa levou à busca de um objeto para o dano moral. Procurando adentrar o próprio conteúdo dessa espécie de dano, parte da doutrina apresenta definições que têm, em comum, a referência ao estado anímico, psicológico ou espiritual da pessoa. Cavalieri (2006, pp. 101-102) tece duras críticas a essa teoria. Ensina que pode existir dano moral sem que haja dor, vexame, sofrimento, como também pode existir dor, vexame, sofrimento sem que exista dano moral, sendo tais estados anímicos, em geral, consequências, e não causas. Assim, em se admitindo reparação por danos morais apenas em caso de sofrimento, crianças, doentes em estado anímico ou doentes mentais não estariam fora da órbita de proteção do instituto. Conclui que:
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que o patrimônio. É a dignidade humana, que não é privilégio apenas dos ricos, cultos ou poderosos, que deve ser por todos respeitada.
Dias (1995, p. 852) observa que para caracterizar o dano moral, impõe-se compreendê-lo em seu conteúdo, que: [...] não é o dinheiro nem coisa comercialmente reduzida a dinheiro, mas a dor, o espanto, a emoção, a vergonha, a injúria física ou moral, em geral, uma dolorosa sensação experimentada pela pessoa, atribuída à palavra dor o mais largo significado.
O dano moral tem como causa a injusta violação a uma situação jurídica subjetiva extrapatrimonial, protegida pelo ordenamento jurídico através da cláusula geral de tutela da personalidade que foi instituída e tem sua fonte na Constituição Federal, em particular e diretamente decorrente do princípio (fundante) da dignidade da pessoa humana (também identificado como o princípio geral de respeito à dignidade humana).
A dimensão da regra do dano moral enquanto lesão a direito da personalidade ainda é um debate recorrente no Brasil, que deve ser objeto de reflexão dos juristas e operadores do Direito, sobretudo ao se considerar que existe uma proteção geral à personalidade, pelo reconhecimento da dignidade humana. Segundo Cavalieri (2006, p. 100-102), o conceito de dano moral merece ser analisado à luz da Constituição, sobretudo em razão da consagração expressa da dignidade humana como um dos fundamentos do Estado brasileiro. Em sua opinião, os direitos da personalidade, como
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O indivíduo que termina seu relacionamento com outrem pode, em consequência, sofrer angústia e tristeza. O empreiteiro que não entrega a obra no prazo pode provocar grande irritação ao contratante do serviço. O condômino que litiga com o condomínio ou com o vizinho em razão de infiltrações existentes em seu imóvel passa por grandes constrangimentos e aborrecimentos. Em nenhum desses casos, no entanto, é possível vislumbrar a existência de um dano moral - pelo menos não de acordo com o senso médio. As dores, as angústias, aflições, humilhações e padecimentos que atingem a vítima de um evento danoso não constituem, de ordinário, mais do que a consequência ou repercussão do dano (seja ele moral ou material). A dor sentida em razão da morte do cônjuge, a humilhação experimentada por quem foi atingido em sua honra, a vergonha daquele que ficou marcado por um dano estético, a tensão ou a violência experimentadas por quem tenha sido vítima de um ataque à sua vida privada são estados de espírito contingentes e variáveis em cada caso, e que os indivíduos os sentem ou experimentam ao seu modo. (ANDRADE, 2006, p. 40) Modernamente, uma das teorias mais aceitas é a de que o dano moral decorre da lesão a direito da personalidade. Cavalieri (2006, p. 74) afirma: “o dano moral é lesão de bem integrante da personalidade, tal como a honra, a liberdade, a saúde, a integridade psicológica, causando dor, sofrimento, tristeza, vexame e humilhação à vítima”. Por sua vez, Morais (2003, p. 132-133) assevera que:
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o direito à honra, ao nome, à intimidade, à privacidade e à liberdade estão englobados no núcleo da dignidade humana, merecendo, por isso, igual proteção.9 Em razão disso, foi o instituto do dano moral elevado a categoria constitucional, conforme redação dos incisos V e X do art. 5º do texto constitucional. Conforme asseverado no capítulo um deste estudo, a dignidade é um valor intrínseco do ser humano e, em sendo assim, não lhe pode ser tirado. Quando um indivíduo sofre um dano moral, o que ocorre, na verdade, é uma pretensão violadora de sua dignidade, pois alguém – o agente do ilícito – atua como se desconhecesse ou pretendesse simplesmente ignorar a dignidade de outrem. Assim, é mais prudente falar em direito subjetivo-constitucional à punição de pretensões violadoras da dignidade humana.
Segundo Bodin de Morais (2003, pp. 295-296), em razão do direito brasileiro não apresentar um tabelamento ou indicativo prévio do valor a ser pago a título de indenizações por danos morais, a aplicação do estudo à luz dos casos concretos, deverá seguir alguns indicativos: a) o grau de culpa e a intensidade do dolo do ofensor; b) a situação econômica do ofensor; c) a natureza, a gravidade e a repercussão da ofensa (amplitude do dano); d) as condições pessoais da vítima (posição social, política, econômica; e) a intensidade do seu sofrimento. Maria Helena Diniz (2003, p. 99) afirma que o ressarcimento do dano moral, às vezes, ante a impossibilidade de reparação natural, isto é, da reconstituição natural, na restituitio in integrum (sem tradução equivalente no português) procurar-se-á [...] atingir uma “situação material correspondente”. Por seu turno, Bernardo (2005, p. 165) entende que apenas deva ser levada em consideração a extensão do dano, afirmando serem mutuamente excludentes este requisito com o grau da culpa do ofensor. Dias (1995, p. 730 e ss.), apesar de não apresentar critérios para a reparação do dano moral, adverte que a maior dificuldade para sua reparação é justamente o fato de não existirem parâmetros valorativos, diferentemente do que ocorre com o dano patrimonial, em que se pauta na noção de prejuízo. Ao tempo em que este nunca é irreparável, no tocante aos danos morais, todas as dificuldades se acumulam, diante das diversas lesões que este causa, que só têm em comum o fato de não serem patrimoniais.
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É importante assinalar que CAVALIERI fala de “direito à dignidade” ou “direito subjetivo constitucional à dignidade”. Discordamos desse posicionamento, porque o ser humano não pode ter direito àquilo que ele simplesmente é, pois a dignidade é seu valor intrínseco. Nessa perspectiva, portanto, não se pode exigir que o Estado lhe conceda dignidade, porque esta não se encontra em seu poder. Preferimos dizer que os cidadãos possuem um “direito à não pretensão violadora de sua dignidade”, porque a dignidade não é um bem que se concede ou se retira de alguém, não podendo, por meio do dano moral, alguém perder a sua dignidade.
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3 FUNÇÕES REPARATÓRIAS E PUNITIVAS DOS DANOS MORAIS
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Da análise dos dispositivos legais10, verifica-se, no Brasil, o principal aspecto que fixa o valor indenizatório é a extensão do dano. A culpa também é considerada, mas apenas de forma subsidiária, se ocorrer uma das seguintes hipóteses: a) dano desproporcional com a culpa do agente; b) concurso de culpas entre agente e vítima. Sobre esse assunto, Bernardo (2005, p. 171) empreende uma severa crítica acerca do pensamento do legislador: [...] grau de culpa e extensão do dano são opostos e mutuamente excludentes. Ou se repara tendo em vista a extensão do dano ou se repara tendo em vista a gravidade da culpa. E entendemos que a extensão do dano é parâmetro muito mais eficaz. Causa espanto tenha o legislador adotado no caput do artigo 944 a extensão do dano e no parágrafo único aberto a possibilidade de redução da indenização tendo em vista o grau de culpa. [...] A graduação da culpa nunca importou, em épocas passadas, para a responsabilização civil. A doutrina clássica, de fato, considerava que nenhuma relação deveria haver entre a amplitude dos danos e a gravidade da culpa. Nestes casos, então, e com absoluta independência do grau de culpa do agente, caberia sempre indenizar toda a extensão do dano, mesmo sendo a culpa levíssima causadora de um dano gravíssimo.
De um lado, há tribunais que procuram compensar as vítimas pelos danos sofridos, mediante a condenação de indenizações módicas, normalmente expressas em salários mínimos. Por outro, em certas situações, observa-se a aplicação de pesadas indenizações, expressas em quantias de dezenas ou centenas de milhares de reais, ou ainda em milhões, conhecidas no common law (Direito Comum) como danos punitivos (punitive damages). Em razão de sua aplicação demonstrar-se controversa no Brasil, faz-se necessária a análise de suas características, a fim de se concluir qual é a melhor fórmula para se proteger a dignidade humana.
Ao tempo em que se aplica o instituto da responsabilidade civil no Brasil indistintamente – mas de forma peculiar – aos danos contraídos tanto nas relações contratuais, como extracontratuais, no direito dos países de common law (Direito Comum) o quadro se mostra diverso. Nesses referidos países, o dano causado a alguém em razão de um inadimplemento contratual recebe o nome de damage11. Por outro lado, o ato ilícito extracontratual praticado contra outrem recebe o nome de tort, sendo estudado pela tort law ou law of torts (direito do ato ilícito extracontratual). Uma grande diferença entre os dois é que a reparação de danos decor-
10 O Código Civil Brasileiro estabelece os seguintes delineamentos: Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano. Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir equitativamente, a indenização. Art. 945. Se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo- se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano. 11
As expressões injury, harm e loss também são utilizadas para expressar o tipo de dano causado por inadimplemento contratual. (op. cit. p. 181).
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4 LINHAS GERAIS ACERCA DOS DANOS PUNITIVOS
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rentes de inadimplemento contratual (damage law) apenas tem caráter reparatório. Entretanto, é intrínseco ao tort law (direito do ato ilícito extracontratual), além da reparação específica, a prevenção de danos futuros. Com a proliferação dos códigos e atos legislativos uniformes que têm crescido recentemente nos países de direito common law (Direito Comum), o law of torts (direito do ato ilícito extracontratual) ainda se apresenta como uma medida jurídica não sistematizada, sendo estudado à luz da casuística. Nas palavras de Kionka: “O tort law é, talvez, o último bastião do common law. Mesmo nesta era de legislação, com a proliferação de códigos e atos uniformes, o tort law permanece não codificado e em grande parte não afetado pela lei.” (citado por ANDRADE, op. cit. p. 183)12. Os danos punitivos13 se inserem nesta última categoria, sendo definidos como “Indenização outorgada em adição à indenização compensatória, quando o ofensor agiu com negligência, malícia ou dolo”14. (BLACK citado por ANDRADE, 2006, p. 194). Constituem: uma soma de valor variável, estabelecida em separado dos compensatory damages, quando o dano é decorrência de um comportamento lesivo marcado por grave negligência, malícia ou opressão. Se a conduta do agente, embora culposa, não é especialmente reprovável, a imposição dos punitive damages mostra-se imprópria. (ANDRADE, 2006, p. 195).
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A expressão “dano moral” não aparece no common law (Direito Comum) como uma categoria específica, pois seu exame ocorre a partir de categorias esparsas. Como exemplo, podem ser citados os “danos não-pecuniários” (nonpecuniary loss), os general damages (conhecidos também como direct damages ou necessary damages), personal torts, personal injury (em oposição ao property tort), emotional harm, emotional distress, mental distress, mental suffering e mental anguish. Há, também, figuras que se referem a danos morais mais específicos, como a defamation, intrusion (invasão de privacidade), bodily harm (dano à integridade física), impairment of social life (dano às relações sociais), dentre outros. cf. ANDRADE (op. ct., p. 184)
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Segundo ANDRADE (op. cit. p. 195), muitas são as denominações dos danos punitivos, presentes nos países anglo-saxões que os adotam. Encontram-se, ao lado de punitive damages (danos punitivos), as expressões vindictive damages, punitory damages, speculative damages, imaginary damages, presumptive damages, added damages, penal damages e punies. Há ainda uma outra expressão, denominada smart-money, que não faria menção à gíria estadunidense traduzida como “esperto”, “inteligente” ou “sabido”, mas indicativa da soma em dinheiro estabelecida para compensação das dores da pessoa lesada.
14 No original: Damages awarded in addition to actual damages when the defendant acted with reckless, malice, or deceit. 15
Segundo Andrade (2006, p. 187), a primeira articulação explícita da doutrina dos punitive damages (danos punitivos) ocorreu em 1763, no julgamento Wilkes v. Wood. Wilkes foi um jornalista, que escrevera um artigo inflamado, ofensivo à reputação do Rei George III e seus ministros. Em contrapartida, o Rei ordenou que seus mensageiros invadissem e revirassem sua casa, apreendendo livros e papéis privados. Diante disso, Wilkes ajuizou uma ação denominada action of trespass (ação de trasnsgressão) contra o senhor Wood, subscretário de Estado que havia pessoalmente supervisionado a execução da ordem do Rei, objetivando a aplicação de danos punitivos. O juiz considerou a demanda procedente e condenou Wood a pagar-lhe a significativa soma (para a época) de £1000 (mil libras). O referido episódio serviu de precedente ao caso Huckle v. Money. Huckle teria sido detido com base numa ordem arbitrária de um oficial da Inglaterra. Embora não tivesse ficado confinado por mais do que seis horas, o juiz condenou Money a pagar-lhe £300 (trezentas libras), valor igual a quase trezentas vezes o salário que Huckle recebia de seu empregador semanalmente.
16 Em 1784, Genay ingressou com uma ação contra Norris, porque este colocou uma substância em sua bebida, causando-lhe grande dor, num drinque de reconciliação, pois ambos iriam disputar um duelo com pistolas. A Corte considerou que Genay tinha direito a danos punitivos.
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Segundo Andrade (op. cit. p. 186), os estudiosos do instituto dos danos punitivos (ou punitive damages, no original) localizam sua estrutura nos textos da Antiguidade, como o Código de Hamurabi (2000 a.C.), o Código Hiita (Séc. XV a.C), Lei das XII Tábuas (450 a.C.) e o Código de Manu (200 a.C.). Entretanto, foi na Inglaterra que o instituto ganhou a sua moldura atual15, tendo sido disseminada, alguns anos depois, nos Estados Unidos da América16.
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Segundo lição de David (1998, p. 340-344), no direito das famílias romano-germânica, a jurisprudência apenas é utilizada para desempenhar um papel, normalmente, secundário, não sendo criadoras – salvo casos excepcionais – de regras de direito. Na Inglaterra, o direito tem uma tradição basicamente jurisprudencial, em que esta destaca as regras de direito, tendo, as decisões das cortes (stare decisis), servido de precedentes (rule of precedent) para outras decisões.
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Andrade (2006, p. 190) adverte que, excepcionalmente, admitia a fixação de um montante em dinheiro para danos não mensuráveis pecuniariamente para determinadas categorias de atos ilícitos, como o dano à honra (defamation), abuso processual (malicious prosecution), agressão física (assault), prisão legal ( false imprisonment), sedução (seduction) e adultério (adultery).
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Ainda existiam algumas outras teorias, como a que entendia que os danos punitivos serviam para a correção de injustiças ocorridas nos processos criminais (hipótese conhecida no Brasil como “indenização por erro judiciário”) ou para controlar o ímpeto de vingança da vítima. Para mais detalhes, consultar Andrade (2006, p. 190-192).
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Algumas teorias tentam explicar a origem dos danos punitivos. Por uma, de enfoque histórico-sociológico, os danos punitivos teriam surgido a partir da própria estrutura do sistema judicial inglês, que se baseia no julgamento popular pelo júri. Inicialmente, os jurados eram cidadãos locais, com grande familiaridade com os fatos e, a partir daí, formando seu convencimento para a resolução do conflito, não sendo possível, nesta época, que os juízes revisassem suas condenações indenizatórias. Posteriormente, com a composição dos júris ser elaborada por pessoas que não tinham prévio conhecimento dos fatos, tornou-se possível, segundo o entendimento das cortes inglesas, revisar os valores atribuídos nas condenações, embora não o façam com frequência, talvez em nome da tradição, bem característica do sistema jurídico inglês, do tipo common law (Direito Comum)17 Outra corrente afirma que os danos punitivos foram desenvolvidos como meio reparatório especificamente para danos morais, já que a jurisprudência inglesa até o século XIX apenas reconhecia o direito à indenização aos prejuízos estimáveis pecuniariamente. Assim, o dano que fosse puramente moral não daria ensejo à indenização.18 Nesse sentido, embora se utilizasse a expressão punitive damages (danos punitivos), pelos quais os agressores eram condenados, esses danos não eram absolutamente excessivos, revelando, na verdade, um caráter muito mais compensatório do que punitivo das indenizações por danos morais. Finalmente, consagrou-se o posicionamento da aplicação da indenização punitiva para compensar as vítimas que tivessem sofrido uma ofensa intangível (moral), quando presentes circunstâncias agravantes19. A indenização punitiva ganhou destaque internacional a partir dos julgamentos realizados nos Estados Unidos da América. Lá, o instituto tem sido aplicado comumente em casos como responsabilidade pelo fato do produto (direito do consumidor), difamação, erro médico, acidentes de trânsito, responsabilidade profissional, invasão de privacidade, assédio sexual,
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dentre outros20. É comum que tais indenizações ultrapassem a casa das centenas de milhares de dólares ou dos milhões, embora muito do que se divulgue seja exagero do que realmente é aplicado na prática. A Suprema Corte americana, em diversos momentos, fora convocada para decidir se os danos punitivos constituiriam uma violação ao princípio do devido processo legal, tendo ganhado projeção a partir da decisão sobre o caso BMW of North America, Inc v. Gore (KIRSCHER e WISEMAN, citado por ANDRADE, p. 210). Explica Andrade (2006, pp. 210-211) que: No ano de 1990, após comprar um automóvel BMW sports sedan novo de uma revendedora autorizada, pelo preço de US$ 40.750,88, o autor Ira Gore, depois de dirigir o veículo por aproximadamente nove meses, levou-o para um polimento. Descobriu, então, que o carro havia sido repintado. Convencido de que fora enganado, Gore ajuizou uma ação em face da BMW of North America [...] alegando fraude. A ré, durante o julgamento, admitiu que havia adotado, em 1983, uma política nacional acerca de automóveis novos danificados durante a fabricação ou o transporte: se o custo do reparo excedesse 3% do preço sugerido de venda, o carro era vendido como usado; se, todavia, o reparo não excedesse esses 3%, o carro era vendido como novo, sem advertir o revendedor que algum reparo fora feito. Sustentando que o custo de repintura do veículo do autor encontrava-se em torno de 1,5% do preço sugerido de venda, a ré entendeu que não estava obrigada a revelar ao revendedor o reparo que havia sido realizado. [...] Ao final, o júri condenou a ré ao pagamento de compensatory damages de US$ 4,000 e punitive damages de US$ 4 milhões, por considerar que a política de não-revelação de danos nos veículos configurou conduta maliciosa ou fraudulenta. A Suprema Corte do Alabama, entendendo que o júri, no cálculo dos punitive damages, computara impropriamente fatos semelhantes ocorridos em outra jurisdição, reduziu o montante indenizatório para US$ 2 milhões.
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Um caso famoso envolveu a rede de fastfood Mc Donald’s e uma senhora idosa. Afirma Andrade (2006, p. 228) que “em fevereiro de 1992, em Albuquerque, no Estado do Novo México, Stella Lieback ocupava o banco de passageiro do automóvel conduzido por seu neto e segurava um copo de café quente que havia acabado de comprar em uma lanchonete McDonald’s pelo sistema drive-thru. Após ter recebido o café, o neto da Sra. Lieback movimentou o veículo para a frente e o estacionou. Em seguida, ela colocou o copo descartável de polietireno entre suas pernas e tentou remover a tampa de plástico para adicionar creme e açúcar. O café, então derramou em seu colo. [...] O café derramado foi imediatamente absorvido pelo tecido da calça que a Sra. Lieback vestia, queimando-a severamente. Um especialista em cirurgia vascular constatou que ela sofreu queimaduras de terceiro grau em mais de seis por cento do corpo, incluindo a parte interna da coxa, o períneo, as nádegas e a região genital. Ficou hospitalizada por oito, durante os quais teve de se submeter a debridamento na área atingida e a enxertos de pele. Depois, permaneceu sob cuidados em casa por cerca de três semanas. Ao final desse período, havia perdido aproximadamente vinte por cento do seu peso corporal. Em consequência das queimaduras e da cirurgia subsequentes, ficou com cicatrizes permanentes em mais de dezesseis por cento do seu corpo. [...] De acordo com as provas produzidas, o McDonald’s servia o seu café a uma temperatura que variava de 180 a 190 graus fahrenheit (cerca de 82 a 87 graus centígrados), enquanto os outros estabelecimentos similares serviam café a uma temperatura média que variava de 135 a 140 graus fahrenheit (cerca de 57 a 60 graus centígrados). [...] O júri condenou a empresa a pagar à autora US$ 2,7 milhões ao McDonald’s no período de dois dias. [..] O juiz, considerando excessivos os punitive damages fixados pelo júri, reduziu-os para US$ 480.000,00, valor somado aos compensatory damages e iguais a três vezes estes.”
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Apesar da Suprema Corte do Alabama ter reduzido o montante indenizatório condenado à BMW em quase cinquenta por cento, esta resolveu ainda recorrer à Suprema Corte dos Estados Unidos, objetivando uma redução maior ainda. Acabou sendo bem-sucedida, pois, de 2 milhões de dólares, a indenização foi reduzida para cinquenta mil dólares.
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Com este caso, criou-se o precedente para orientação da condenação indenizatória, que deverá obedecer aos seguintes critérios: a) o grau de reprovabilidade da conduta do réu; b) a proporção entre o dano efetivo ou potencial e a indenização punitiva; c) a diferença entre a indenização e penalidades civis e criminais previstas em casos similares. Com tais parâmetros fixados, aumentou-se a segurança jurídica na aplicação da indenização punitiva, preservando-se o seu caráter de prevenção21.
5 ANÁLISE CRÍTICA DA APLICAÇÃO DA INDENIZAÇÃO PUNITIVA E DA INDENIZAÇÃO COMPENSATÓRIA DO BRASIL Para Bodin de Morais (2003, p. 303), a valoração do dano moral só pode ser feita com base no princípio da dignidade da pessoa humana como critério de sua proteção, sendo provenientes da violação do dever de respeito aos indivíduos. A indenização deve ser eminentemente reparatória, pautando-se no critério do Código Civil, que versa sobre a extensão do dano. Por outro lado entende, para que se reconheça o caráter punitivo da reparação do dano moral, devem ser levados em conta o grau da culpa e, do outro, o nível econômico do ofensor, sendo uma punição não pelo o que se fez, mas por quem o praticou (MORAIS, 2003, p. 259). Ainda de acordo com a doutrinadora, a aplicação da indenização punitiva ocorre exclusivamente através do arbítrio do juiz, violando o princípio da legalidade penal. Explica que (MORAIS, 2003, p. 261):
Bodin de Morais (2003, p. 263), reconhece que, entretanto, excepcionalmente, pode-se aplicar uma figura semelhante ao dano punitivo, para que se faça de exemplo alguma lesão à sociedade, por meio de uma conduta ultrajante ou insultuosa, em relação à consciência coletiva, mas, para isso, entende que será necessária a manifestação do legislador. Também reconhece a utilidade dos danos punitivos na reparação de situações potencialmente lesivas a um grande número de pessoas.
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A título de informação, é importante falar do movimento de reforma do direito de indenizações, conhecido por tort reform, que tem ganhado projeção nos Estados Unidos. a ATRA (American Tort Reform Association), entidade representada por associações de classe e grandes corporações, tem apresentado argumentos que contestam a aplicabilidade do instituto dos danos punitivos, que podem ser resumidos da seguinte maneira: a) a tarefa de punir o ofensor compete ao Direito Penal, não ao Direito Civil, este servindo apenas para compensar o dano da vítima; b) as indenizações decorrentes dos danos punitivos vão para a vítima, causando-lhe um ganho inesperado; c) a finalidade dissuatória nem sempre é alcançada, porque muitas das indenizações são suportadas não pelos agressores, mas por suas empresas seguradoras. (ANDRADE, 2006, p. 208).
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De nada adianta clamar por moderação e equilíbrio na fixação do quantum indenizatório quando o sistema que se veio delineando aceita a coexistência de duas regras, antagônicas por princípio, no âmbito da reparação dos danos morais: a punição, de um lado, e o arbítrio do juiz, de outro. Nesses casos, em geral a função punitiva “corre solta”, não tendo qualquer significação no que tange a um suposto caráter pedagógico ou preventivo. Por outro lado, representa, não há como negar, um forte incentivo à malícia, além de gerar a mercantilização das relações existenciais.
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Corroborando a opinião de Bodin de Morais, Andrade (2006, p. 312) entende que a indenização punitiva tem a sua utilidade social, pois:
Invocando Alexy, afirma Andrade (2006, p. 313) que a relação entre os princípios da dignidade humana e anterioridade da pena existe uma “relação de precedência condicionada”, na qual o princípio da anterioridade apenas existe em decorrência da dignidade. Tem-se, de um lado, o interesse em não surpreender o lesante com a imposição de uma pena pecuniária não prevista em lei e, do outro, o interesse de prevenir comportamentos lesivos à dignidade humana. Entende Andrade (2006, p. 313) que a indenização punitiva atenderia a um interesse sensivelmente mais relevante. Bernardo (2005, p. 177-178) sugere que os danos punitivos possam ser aplicados no Brasil, desde que mediante: a) uma fixação legislativa das hipóteses de utilização do instituto; b) parâmetros legais versando sobre os limites de atuação do juiz; c) obrigatoriedade da sentença destacar a verba a título de danos punitivos; d) parte da verba paga em danos punitivos ser revertida para algum fundo a ser criado por lei. Retomando-se o objeto principal desta pesquisa, que é a discriminação por orientação sexual, a indenização compensatória é mais adequada em situações menos gravosas, como uma ofensa feita por um desconhecido, num ambiente reservado e com poucas pessoas presenciando o fato. Como se verá adiante, tal situação viola a dignidade humana sob o âmbito da honra subjetiva, que poderá ser reparada mediante o pagamento de uma módica indenização. Por outro lado, a indenização punitiva ganha destaque em situações mais sérias, a exemplo de uma humilhação pública e/ou contínua motivada por discriminação por orientação sexual, ou ainda em casos de violência e agressões físicas. Pela repercussão e importância social destes fatos, torna-se imperiosa a aplicação de uma indenização mais robusta, pois seu caráter exemplar tem como condão o de desestimular outros membros da sociedade a incidirem no mesmo tipo de prática. Propugna-se, também, que os Juízes, ao aplicarem indenizações por danos morais, especifiquem nas suas sentenças a natureza de cada parcela indenizatória. Assim, a fixação em separado de valores pagos a título de indenização punitiva e compensatória possibilitam um melhor controle do judiciário sobre tais situações, inclusive para fins de revisão dos valores na segunda instância ou perante o Superior Tribunal de Justiça. Sobre tal assunto, o colendo Tribu-
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[...] há situações nas quais os direitos da personalidade não têm como ser efetivamente protegidos se não através da imposição de uma soma em dinheiro que constitua fator de coerção sobre o causador do dano e terceiros. Assim [...] na ponderação entre o princípio substancial do art. 1º, inciso III, da Constituição Federal, que consagra a dignidade da pessoa humana como fundamento da República e o princípio consagrado no art. 5º, inciso XXXIX, que estabelece a garantia instrumental de que não deve haver pena sem prévia cominação legal, a balança pesaria francamente a favor do primeiro.
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nal já decidiu: “22Em âmbito de recurso especial, é consenso nesta Corte - e principalmente na 3ª Turma - que só se pode alterar o valor originariamente fixado por dano moral, se o quantum arbitrado for realmente exorbitante ou, ao contrário, tão insignificante que, em si, seja atentatório à dignidade do ofendido” (Agravo Regimental sobre o Recurso Especial n.º 653.861).
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS O instituto da responsabilidade civil por dano moral insere-se no contexto da proteção à dignidade humana, em especial nos casos de discriminação em decorrência de orientação sexual. Verificou-se que, enquanto na doutrina tradicional o dano moral esteve vinculado a um sofrimento, contemporaneamente a pretensão lesiva a direitos da personalidade ou à cláusula geral de proteção à pessoa humana já são suficientes para a aplicação de indenização para a vítima. Demonstrou-se que o dano moral apresenta duas maneiras genéricas de reparação: a compensatória e a punitiva. A reparação por via compensatória ainda se encontra enraizada na acepção do dano moral enquanto consequência de um sofrimento, de modo a ser utilizada para reparar tal estado anímico-psicológico. Os danos punitivos, por outro lado, objetivam não apenas a reparação de danos, mas a exemplificação, perante a sociedade, de que ataques à dignidade humana não são tolerados pela ordem jurídica. Embora seja controverso o entendimento que esta modalidade seja aplicável no Brasil, a doutrina compreende que pode ser útil para casos em que existam situações severas de violação à dignidade humana, dada a importância da exemplificação perante a sociedade.
ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Dano moral e indenização punitiva: os punitive damages na experiência do common law e na perspectiva do Direito brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2006. BERNARDO, Wesley de Oliveira Louzada. Dano moral: critérios de fixação de valor. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. BRASIL. Constituição. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
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STJ. AGRAVO REGIMENTAL SOBRE RECURSO ESPECIAL 653.861. 3ª Turma. Rel. Min. Castro Filho. 21.03.2006. DJU 10.04.2006.
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REFERÊNCIAS
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ABSTRACT From the interlocution between the Constitution and the Civil law, the philosophical value of human dignity and its legal recognition as a principle were examined, as its applicability in the thought after-positivism. Aiming for its maximum effectiveness, the dignity was seen alongside with the personality’s and constitutional rights, as their normative result, searching for the immediately regulation for application of equality to the legal relationships between individuals. Once these limits were recognized, the institute of civil liability for moral damages was carefully studied, by means of the survey of its assumptions and the diverse currents that regulate its application. Keywords: Moral damages. Civil liability. Dignity.
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CIVIL LIABILITY TO MORAL DAMAGES THROUGH THE CONTEMPORARY BRAZILIAN LAW
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A CONVENÇÃO DE ISTAMBUL E A “VIOLÊNCIA DE GÊNERO”: BREVES APONTAMENTOS À LUZ DO ORDENAMENTO JURÍDICO-PENAL PORTUGUÊS Margarida Maria Oliveira Santos1
1 INTRODUÇÃO A 11 de maio de 2011 foi aprovada a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica, designada por Convenção de Istambul, tendo sido ratificada por Portugal pelo Decreto do Presidente da República n.º 13/2013, de 21 de Janeiro, e entrado em vigor a 1 de agosto de 2014.
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Investigadora na Universidade do Minho desde 2013; mestre em Direito na Universidade do Minho e Professora assistente na Universidade do Minho desde 2009.
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RESUMO O presente texto analisa o âmbito de aplicação da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica, de 11 de Maio de 2011, conhecida por Convenção de Istambul, que foi ratificada por Portugal a 21 de janeiro de 2013 e que entrou em vigor a 1 de agosto de 2014, acentuando a sua importância para a proteção da vítima, em especial da vítima mulher, no contexto internacional. De uma forma perfunctória, dá-se conta, ainda, das implicações em sede de direito penal substantivo, refletindo em torno da inexistência da perspetiva de gênero no ordenamento jurídico-penal português. Palavras-chave: Convenção de Istambul. “Violência de gênero”. Proteção da vítima mulher.Ordenamento jurídico-penal português.
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Apesar da existência de vários instrumentos jurídicos (como, de resto, vem sintetizado no próprio preâmbulo da Convenção de Istambul)2, ressalta-se a importância desta Convenção na prevenção/combate da violência contra as mulheres e proteção destas, constituindo este o primeiro instrumento vinculativo nesta matéria na Europa. Com efeito, este documento internacional, adotando uma perspetiva holística e multidisciplinar, alcança diferentes planos, quer ao nível da proteção e assistência das vítimas, quer ao nível da prevenção e repressão da violência3. Neste contexto a Convenção abrange, desde logo, as “Políticas integradas e recolha de dados” (Capítulo II: artigos 7.º a 11.º); a “Prevenção” (Capítulo III: artigos 12.º a 17.º); a “Proteção e apoio” (Capítulo IV: artigos 18.º a 28.º); o“Direito material” (Capítulo V: artigos 29.º a 48.º); a “Investigação, ação penal, direito processual e medidas de proteção” (Capítulo VI – artigos 49.º a 58.º); a “Migração e asilo” (Capítulo VII – artigos 59.º a 61.º), além dos Capítulos VIII a XII, que se referem, respetivamente, à “Cooperação internacional”, ao “Mecanismo de monitorização”, à “Relação com outros instrumentos internacionais”, às “Emendas à Convenção” e “Disposições finais”.
2 O ÂMBITO DE APLICAÇÃO DA CONVENÇÃO DE ISTAMBUL Como se acentua no Preâmbulo da Convenção de Istambul, as: (...) mulheres e raparigas estão muitas vezes expostas a formas graves de violência, tais como a violência doméstica, o assédio sexual, a violação, o casamento forçado, os chamados ‘crimes de honra’ e a mutilação genital, os quais constituem uma violação grave dos direitos humanos das mulheres e das raparigas e um obstáculo importante à realização da igualdade entre mulheres homens e homens”.
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Cf. Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (STE n.º 5, 1950) e respetivos Protocolos, a Carta Social Europeia (STE n.º 35, 1961, revista em 1996, STE n.º 163), a Convenção do Conselho da Europa Relativa à Luta contra o Tráfico de Seres Humanos (STE n.º 197, 2005) e a Convenção do Conselho da Europa Relativa à Proteção das Crianças contra a Exploração Sexual e o Abuso Sexual (STE n.º 201, 2007); Recomendação Rec(2002)5 sobre a proteção das mulheres contra a violência, a Recomendação CM/Rec(2007)17 sobre normas e mecanismos para a igualdade de género, a Recomendação CM/Rec(2010)10 sobre o papel das mulheres e dos homens na prevenção e resolução de conflitos e na construção da paz, e outras recomendações pertinentes; o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (1966), o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (1966), a Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW, 1979) e o seu Protocolo Opcional (1999), bem como a Recomendação Geral n.º 19 do Comité CEDAW sobre a violência contra as mulheres, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (1989) e respetivos Protocolos Facultativos (2000) e a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2006); o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (2002); a Convenção (IV) de Genebra Relativa à Proteção de Pessoas Civis em Tempo de Guerra (1949) e respetivos Protocolos Adicionais I e II (1977).
3 Ver artigo 1.º da Convenção (“Finalidade da Convenção”), onde, designadamente, no n.º 1, alínea c), se aponta para a construção o de um quadro normativo global para a prevenção e proteção às vítimas de violência contra as mulheres. Esta abordagem holística afigura-se essencial, no contexto de uma “estratégia eficaz e não numa ótica de remédios pontuais” – assim, ver o Parecer da APAV (2014), p. 5.
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Salienta-se igualmente que “(...) a realização de jure e de facto da igualdade entre mulheres e homens é um elemento-chave na prevenção da violência contra as mulheres”. Ressalta-se aí que “(...) a violência contra as mulheres é uma manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens que conduziram à dominação e discriminação contra as mulheres pelos homens, o que as impediu de progredirem plenamente”.
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Neste contexto, o âmbito de aplicação da Convenção abrange todas as formas de violência contra asmulheres, incluindo a violência doméstica (artigo 2.º da Convenção). No âmbito do artigo 3.º da Convenção definem-se os conceitos de “violência contra as mulheres”; “violência doméstica”; “Gênero”; “Violência de gênero exercida contra as mulheres”; “Vítima” e “Mulheres”. Desde logo, a“violência contra as mulheres” é entendida como: uma violação dos direitos humanos e (...) [como] uma forma de discriminação contra as mulheres, abrangendo todos os atos de violência que resultem, ou possam resultar, em danos ou sofrimentos físicos, sexuais, psicológicos ou económicos para as mulheres, incluindo a ameaça de tais atos, acoação ou a privação arbitrária da liberdade, tanto na vida pública como na vida privada (artigo 3.º da Convenção).
Sendo que a “violência doméstica” inclui “todos os atos de violência física, sexual, psicológica ou económica que ocorrem na família ou na unidade doméstica, ou entre cônjuges ou ex-cônjuges, ou entre companheiros ou ex-companheiros, quer o agressor coabite ou tenha coabitado, ou não, com a vítima”; o “Gênero” atende “ aos papéis, aos comportamentos, às atividades e aos atributos socialmente construídos que uma determinada sociedade considera serem adequados para mulheres e homens”; a“violência de gênero exercida contra as mulheres” designa “toda a violência dirigida contra a mulher por ser mulher ou que afeta desproporcionalmente as mulheres”. Ou seja, podemos encarar que a “a prioridade” é a eliminação da violência contra a mulher, estando o conceito de violência de gênero numa “posição instrumental” relativamente àquela violência (SOUSA, 2016, p. 267). Ainda assim:
Especificamente ao nível do direito material (artigos 29.º a 48.º da Convenção), sublinhe-se, que a Convenção impõe aos Estados-partes a obrigação de adotar medidas que assegurem que os atos de violência aqui contemplados sejam tidos em conta nas decisões respeitantes ao direito de guarda, direito de visita das crianças e sua segurança (artigo 31.º da Convenção); de criminalização dos atos de violência psicológica, física, sexual, perseguição, de casamento forçado, de mutilação genital feminina, aborto forçado e esterilização forçada e assédio sexual (artigos 33.º a 40.º), devendo existir “sanções efetivas, proporcionais e dissuasoras, tendo em conta a sua gravidade” (art.º 45.º, n.º 1).As partes obrigam-se, ainda, no artigo 48.º da Convenção, a proibir os processos alternativos de resolução de conflitos obrigatórios relativamente aos
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“[d]o ponto de vista da vítima, toda a violência contra as mulheres , tal como está definida na Convenção, é violência de gênero. Mas nem toda a vítima de violência de gênero é mulher (...). Facto é que na Convenção (...) a violência de gênero[é] exclusivamente considerada da perspetiva da violência contra as mulheres” (SOUSA, 2016, p. 267).
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atos de violência aqui abrangidos4. Neste sentido, a Convenção apoia-se em vários planos no âmbito da proteção da vítima mulher contra os atos de violência, incluindo o criminal. Com efeito, embora o âmbito de aplicação da Convenção diga respeito aos atos de violência contra as mulheres (art. 2.º da Convenção), referindo-se ainda expressamente que “(...) as partes deverão dar particular atenção às mulheres vítimas de violência de gênero” (n.º2, do artigo 2.º da Convenção), o certo é que a Convenção não obriga, nesta sede, a elaboração de tipos legais que adotem a perspetiva de gênero.
Foram significativas as alterações introduzidas na legislação portuguesa que tiveram como desiderato a adequação do ordenamento jurídico português àquela Convenção, embora nem sempre este leitmotiv seja referido expressamente. Refira-se, contudo, que, ainda assim, grande parte das obrigações decorrentes da Convenção já estavam consagradas na legislação portuguesa. No que diz respeito, especificamente, ao direito penal substantivo, foram publicadas, desde logo, as Lei n.º 83/2015, de 5 de agosto e 103/2015, de 24 de agosto (esta última não o refere explicitamente, mas podemos compreendê-la como inserida neste escopo). Com efeito,a Lei n.º 83/2015 de 5 de Agosto, em cumprimento do disposto na Convenção de Istambul, trouxe uma série de alterações ao Código Penal: autonomizou o crime de mutilação genital feminina, criou os crimes de perseguição e casamento forçado e alterou os crimes de violação, coação sexual e importunação sexual. Neste cenário, e analisando as novas incriminações típicas e as alterações normativas em sede de direito penal substantivo, numa visão de conjunto, assiste-se a um fortalecimento da tutela jurídico-penal. Efetivamente, “(...) as novas incriminações típicas têm um significado e um simbolismo claramente assumido na direção da proteção da vítima, em especial, da mulher” (MONTE, 2016, p. 283), “(...) como sujeito igual, por um lado, mas necessitado de um olhar diferente, por outro lado, a merecer uma maior discriminação positiva, no sentido da sua efetiva proteção jurídico-penal” (MONTE, 2016, p. 284). Concordando com Monte (2016, p. 277-278) “(...) nunca se tinha ido tão longe como se foi em 2011. (...) Mas mais: (...) nunca como agora a vítima foi encarada como um desafio jurídico-penal”. Este modo de intervir jurídico-penal, baseado, como nos diz o autor, num “outro
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Efetivamente, o recurso a estes mecanismos não deve ter natureza obrigatória, devendo o acesso às práticas de justiça restaurativa. As condições para recurso às práticas de Justiça Restaurativa deverão obedecer aos critérios estabelecidos no artigo 12º da Diretiva 2012/29/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 25 de outubro de 2012 que estabelece normas mínimas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade e que substitui a Decisão-Quadro 2001/220/JAI do Conselho. A participação voluntária da vítima deve ser conditio sine qua non, devendo o consentimento ser prestado de forma livre e informada e passível de ser retirado em qualquer momento do processo – neste sentido, ver o Parecer da APAV, 2015, p. 5.
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3 A “VIOLÊNCIA DE GÊNERO” E O ORDENAMENTO JURÍDICO-PENAL PORTUGUÊS
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modo de olhar o problema criminal”, rompe com a tradição que “assenta sobretudo numa certa perenidade dogmática que é resistente a intervenções ideológicas” (MONTE, 2016, p. 285-286). Assim, vislumbra-se uma alteração de paradigma, que, como salienta Monte (2016, p. 277-278), “embora começando por um certo tipo de criminalidade (...) significa, para além de outras implicações, a assunção de que a vítima nem sempre tem sido devidamente protegida pelo direito penal. Nisto consiste o resgate jurídico-penal da vítima, em particular da mulher”. Não obstante, refira-se que no arsenal jurídico-penal português não consta, efetivamente, como noutros ordenamentos jurídicos5, a perspetiva de gênero, protegendo-se tanto o homem como a mulher6. Neste sentido, apesar da utilização em diferentes contextos da expressão “violência de gênero”7, em termos internacionais8 e nacionais9, da mesma não resultam tout court (simplesmente), repercussões penais (GRANGEIA; SANTOS, 2017) , na medida em que na legislação penal portuguesa não há expressa consagração da perspetiva de gênero10. Desde logo, não se opta por uma concessão de gênero na formulação do tipo legal de crime, assumindo-se, ao invés, uma concessão neutra face ao gênero. Assim, apesar de ser evidente, quer no cenário internacional, quer nacional, que as mulheres são as principais vítimas de determinados crimes, pode a vítima ser igualmente um homem na legislação portuguesa. Ainda assim, na vertente político-criminal, refira-se que o legislador tem dado destaque à violência de gênero, alertando a comunidade para a gravidade da violência contra as 5 Neste contexto, tem-se sobretudo verificado nos ordenamentos jurídicos política e socialmente semelhantes ao português duas grandes linhas político-criminais: quer uma comprometida com o sexo da vítima, quer outra gender-neutral (AGRA et al., 2015, p. 20). Apenas a título de exemplo, o ordenamento jurídico espanhol optou, nomeadamente, por, em cada tipo legal - para os delitos de lesiones (artículo 36), malos tratos (artículo 37), amenazas (artículo 38), coacciones (artículo 39) e vejaciones leves (artículo 41) - prever uma qualificação quando o crime for cometido contra mulher em contexto de violência relacional; do mesmo modo que existem regras específicas para a substituição da pena de prisão (artículo 35) e para o incumprimento da “condena, medida de seguridad, prisión, medida cautelar, conducción o custodia” (artículo 40); entre outras especificidades, refira-se, ainda, a criação de tribunais de competência especializada, designados por Juzgados de Violencia sobre la Mujer (artículo 43 e ss.) - ver a Ley Orgánica n.º 1/2004, de 28 de dezembro – “Medidas de Protección Integral contra la Violencia de Género”. Para uma perspetiva do ordenamento jurídico-penal espanhol, retratanto a limitada intervenção penal relacionada com a “violência de género”, Cuesta Aguado, 2013, p. 57 e ss. O regime espanhol tem sido alvo de críticas. Para uma análise desta problemática, ver, entre outros, Rodríguez Álvarez et al, 2013. Na verdade, inexiste no Código Penal português a expressão “violência de género”, apenas constando a expressão “identidade de género da vítima” em duas disposições: na al. f), do n.º 2, do art.º 132.º (Homicídio qualificado) e nas als. a), b) e c), do n.º 2 do art.º 240.º (Discriminação racial, religiosa ou sexual).
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Acentue-se, na senda de Álvarez García (2013, p. 90), que a violência de gênero é uma “figura criminológica más que delictiva”.
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Para uma descrição de alguns dos principais instrumentos ao nível internacional e europeu, v. Torrado Tarrío, 2013, p. 68 e 69.
9 Veja-se, apenas a título de exemplo, o II Plano Nacional de Ação para a Implementação da Resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas 1325 (2000) sobre Mulheres, Paz e Segurança (2014-2018) - Resolução do Conselho de Ministros n.º 50/2014: “A elaboração de planos nacionais de ação é, por isso, uma obrigação dos Estados, independentemente da sua situação interna, pois visam assegurar que a dimensão de género seja integrada nas atividades diplomáticas, militares, de segurança, da justiça e de desenvolvimento, quer ao nível interno quer ao nível internacional. As exigências centrais da RCSNU 1325 são a plena participação das mulheres em todos os níveis de tomada de decisões relativas à paz e segurança, a proteção de mulheres, raparigas e meninas contra a violência de género, e a integração da perspetiva de género em todas as estratégias de implementação e construção da paz e nas ações realizadas pelas Nações Unidas e pelos Estados -membros. (...) Importa, pois, que a integração da perspetiva de género seja tida em conta nas ações de cooperação internacional. Deve, por isso, ser favorecida e reforçada a formação sobre direitos humanos, direito internacional humanitário, igualdade de género e violência contra as mulheres, raparigas e meninas, incluindo violência sexual e violência de género. Deve ainda ser ministrada formação sobre as matérias que constam nas Resoluções do CSNU sobre mulheres, paz e segurança ao pessoal das forças armadas e de segurança e aos civis destacados para missões de manutenção e construção da paz e segurança internacionais e para cenários de emergência e gestão de crises”. 10 Efetivamente, inexiste no Código penal português a expressão “violência de género”, apenas constando a expressão “identidade de género da vítima” em duas disposições: na al. f), do n.º 2, do art.º 132.º (Homicídio qualificado) e nas als. a), b) e c), do n.º 2 do art.º 240.º (Discriminação racial, religiosa ou sexual).
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Publicado no Diário da República, 1.ª Série – n.º 253, de 31 de dezembro de 2013, onde se lê, por exemplo que: “O V PNPCVDG assenta precisamente nos pressupostos da Convenção de Istambul, alargando o seu âmbito de aplicação, até aqui circunscrito à violência doméstica, a outros tipos de violência de género. Esta mudança de paradigma faz com que o V PNPCVDG abranja outras formas de violência de género, como a mutilação genital feminina e as agressões sexuais”.
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mulheres. Assim, por exemplo, como se refere no V Plano Nacional de Prevenção e Combate à Violência Doméstica e de Gênero 2014 -2017 (V PNPCVDG)11. Ora, cumpre, por isso, indagar, ainda que de forma breve, se o direito penal deveria adotar a perspetiva de gênero, tendo por base a premissa, desde logo, de que o estudo da construção jurídica das relações de Gênero, é ainda uma forma de promover a igualdade (Beleza, 2004), permitindo compreender a necessidade de ponderação quer a elaboração das decisões jurisprudenciais como criação jurídica no caso concreto, como as restantes práticas dos controlos formais que circundam essa aplicação da lei (Beleza, 2004). Ora, como sintetizam Agra e outros (2015, p. 21), a opção entre a expressão “violência de gênero” e por exemplo a utilizada na nossa legislação assume-se, muitas das vezes, como “uma questão mais ideológico-simbólica que político-criminalmente orientada em termos teleológicos”. É certo que poderemos, em abstrato, apontar vantagens e desvantagens para a adoção de uma concessão de gênero na formulação do arquétipo legal. Como bem salienta Sousa (2016, p. 265), podemos acentuar, desconsiderando as desvantagens da categorização, que “(...) a relevância do conceito de Gênero se prende com a possibilidade de remeter para o quadro da violência originada na estrutura patriarcal, formas de violência que de outro modo não lhe seriam reconduzíveis”. Ou seja, como induz a autora (p. 265-266), “[a] perspetiva de gênero faz, então, esta distinção entre a biologia e os papeis socialmente adjudicados à mulher e ao homem, reconhecendo a posição de desvantagem das mulheres em todas as sociedades”. Ainda assim, alerta a autora (p. 268) que “(...) a dificuldade não deixará de estar em classificar, com objetividade, num dado caso concreto, se a situação é de violência de Gênero ou de violência contra as mulheres, ou se o não é”, havendo situações onde a fronteira se revela difícil de alcançar. Além disso, devemos igualmente ter presente que a violência de gênero pode ser exercida por mulheres e contra mulheres, sobretudo “(...) como meio de eliminar a competição e assegurar a afirmação pessoal e mesmo a própria sobrevivência em entornos sociais que são determinados e dominados pelos homens” (SOUSA, 2016, p. 271). Na verdade, no âmbito da violência contra as mulheres, e muito especificamente no conceito de “violência doméstica”, inexiste uma rigorosa conceitualização, cruzando-se, por vezes, “(...) noções infiltradas por ideologias, atitudes morais, mediatismo, movimentos…”, pelo que “[a]s formas de problematização ainda estão longe da exigência crítica, ponto de partida para uma sistemática e metódica conceitualização e teorização próprias do pensamento científico” (AGRA e outros, 2015, p. 22). A este propósito Agra e outros (2015, p. 21) alertam que “(...) a designação de gender
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violence (...) deixa vários factos da realidade social que mereceriam tutela jurídico-criminal sem ela, não sendo exato que se vislumbre um fundamento para tal distinção”. Ademais, refira-se que a opção pelo gênero pode assumir desvantagens na própria proteção da mulher, na medida em que, dependendo da técnica legislativa utilizada, o preenchimento do objetivo e subjetivo pressupõe, como referem Agra e outros (2015, p. 21, 22) “(...) a prova de que o ato ou omissão se devem a um desejo de repulsa, de diminuição, de rejeição da figura feminina, da sua condição e de todo o universo que, de acordo com as convenções sociais, se associa a uma mulher”. Ou seja, como apreendem os autores (p. 22): “(...) não será difícil perceber que tal torna não somente o tipo objetivo, mas sobretudo o subjetivo (dolo-do-tipo), de mais difícil preenchimento, o que acaba por redundar, na prática, numa contradição nos termos: um Tatbestand apostado numa proteção penal qualificada (em muitos casos) da situação prototípica de um arguido homem e de uma ofendida mulher, pode, amiúde, não se cumprir em virtude de tais exigências acrescidas”.
Propugnando que “[o] mesmo não sucede já se a abordagem for neutral do prisma do chamado ‘objeto de ação’ do delito”. No entanto, podemos adiantar, concordando com Monte (2016, p. 283), a propósito das alterações introduzidas no art.º 154.º (coação), que apesar do tipo proteger tanto o homem como a mulher, atendendo ao fato de as vítimas serem sobretudo mulheres, “(...) pode dizer-se que é a vítima-mulher que, maioritariamente, está na mira desta proteção”. Neste sentido, cremos que uma (eventual) introdução da perspetiva de gênero no direito penal português teria de assentar numa profunda reflexão criminológica em torno das causas que lhe estão subjacente e dos fatos da realidade social que merecem esta tutela jurídico-penal acrescida, de forma a compreender as implicações em sede de política criminal e dogmática penal12.
A Convenção de Istambul constitui um instrumento relevante na prevenção/combate da violência contra as mulheres e proteção destas. Este instrumento normativo convoca um novo olhar jurídico-penal em torno da vítima mulher, apelando a fundamentos de jaez político-criminal assentes na proteção da vítima mulher contra os atos de violência abrangidos na Convenção. A Convenção promove uma visão holísta e interdisciplinar, vertida em vários planos no âmbito da proteção da vítima mulher contra os atos de violência, incluindo o criminal. Não obstante, não obriga os Estados-partes à elaboração de tipos legais que adotem a pers-
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Alertando para este problema na legislação espanhola, ver Rodríguez Álvarez et al., 2013, p. 791 e seg. Acentuando as problemáticas (probatórias) em torno do preenchimento do tipo – objetivo e subjetivo – no âmbito das formulações legais que atendem à conceção do género, relacionados com “…a prova de que o ato ou omissão se devem a um desejo de repulsa, de diminuição, de rejeição da figura feminina, da sua condição e de todo o universo que, de acordo com as convenções sociais, se associa a uma mulher” – ver Âgra, 2015, p. 21 e 22.
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petiva de gênero. Assim, apesar de ser evidente, quer no cenário internacional, quer nacional, que as mulheres são as principais vítimas de determinados comportamentos abrangidos pela Convenção, pode, no contexto português, a vítima ser igualmente um homem. Não obstante, refira-se que no arsenal jurídico-penal português não consta, efetivamente, como noutros ordenamentos jurídicos, a perspetiva de gênero, protegendo-se tanto o homem como a mulher. Neste sentido, da expressão “violência de gênero” não resultam tout court (simplesmente), repercussões penais, na medida em que na legislação penal portuguesa não há expressa consagração da perspetiva de gênero. Desde logo, não se opta por uma concessão de gênero na formulação do tipo legal de crime, assumindo-se, ao invés, uma conceção neutra face ao gênero. É certo que poderemos, em abstrato, apontar vantagens e desvantagens para a adoção de uma concssão de gênero na formulação do arquétipo legal. Neste sentido, cremos que uma (eventual) introdução da perspetiva de gênero no direito penal português teria de assentar numa profunda reflexão criminológica em torno das causas que lhe estão subjacente e dos factos da realidade social que merecem esta tutela jurídico-penal acrescida, de forma a compreender as implicações em sede de política criminal e dogmática penal.
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ABSTRACT This text analyzes the scope of the Council of Europe Convention on Prevention and Control of Violence against Women and Domestic Violence of 11th May, 2011, known as the Istanbul Convention, which was ratified by Portugalon January 21th, 2013 and which came into force on August 1st, 2014, emphasizing its importance for the protection of the victim, especially the female victim, in the international context. In a perfunctory way, it also takes into account the implications of sub-
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THE ISTANBUL CONVENTION AND “GENDER VIOLENCE”: BRIEF NOTES IN THE LIGHT OF THE PORTUGUESE LEGAL-CRIMINAL ORDER
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stantive criminal law, reflecting the lack of a gender perspective in the Portuguese legal system. Keywords: Istanbul Convention. â&#x20AC;&#x153;Gender violenceâ&#x20AC;?. Protection of the victim woman. Portuguese legal system.
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DE HOBBES A PUFENDORF – A CONSTRUÇÃO DOS CARACTERES DO CONCEITO JURÍDICO MODERNO DE SOBERANIA
RESUMO Não obstante a tendência para a relativização do conceito de soberania, o constitucionalismo continua a não dispensar o recurso ao tradicional conceito tridimensional que retrata um Poder exercido sobre uma comunidade política numa dada circunscrição territorial. Nesse contexto, se os investigadores associam o conceito jurídico de soberania ao trabalho de Bodin e Hobbes, mais difícil tem sido a compreensão do papel que Samuel Pufendorf, partindo da sua distinção entre entes físicos e morais, desempenhou nesse processo. Tal papel revelou-se decisivo para o Estado Moderno; sem ele, a concetualização jurídica da soberania não teria sido concluída nos termos que hoje conhecemos. Sobretudo, dele se extraiu uma fórmula que, após adaptações posteriores (Sieyès), superou o antagonismo entre os conceitos de soberania e de separação de poderes, fazendo com que, atualmente, a sindicabilidade dos atos do poder legislativo – poder não soberano e subordinado à Constituição – conviva com a indisindicabilidade das normas constitucionais, enquanto expressão do poder soberano que se declara insuscetível de controlo jurídico por autoridades constituídas e não soberanas. Palavras-chave: Soberania. Constituição. Bodin. Hobbes. Pufendorf.
1 Doutor em Direito e Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Membro da Direção do Instituto de Ciências Jurídico-Políticas. Investigador Principal do Centro de Investigação em Direito Público da mesma Faculdade. Advogado da Sérvulo & Associados, Sociedade de Advogados.
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1 INTRODUÇÃO Multiplicam-se os esforços atuais de construção de uma ideia não essencialista de soberania, a qual, à luz do sentido evolutivo da democracia constitucional, permita a compatibilização do exercício eficaz e estável do poder público com o inevitável reconhecimento da superioridade axiológica da dignidade da pessoa humana, sobre a qual assenta hoje a legitimação dos candidatos ao poder. Se se enumerarem apenas algumas das tentativas encetadas ainda nas últimas duas décadas, esses esforços têm levado a que se procure distinguir dentro da soberania ou distinguir da soberania, consoante os casos, a “autoridade”, a “autonomia” e a “autonomia reconhecida” (DEUDNEY, 1995, p. 191-198); a “autoridade” e o “controle” (THOMSON, 1995, p. 213); o “controle” e a própria “soberania” que dele se distinguiria concetualmente (MORGADO, 2012, p. 161-162); o sentido “político” e jurídico” da soberania2; o sentido da soberania perante o Direito positivo e perante a Teoria do Direito3; ou, enfim, na bem conhecida categorização quadripartida de Krasner, a “soberania interna” ou “doméstica”, a “soberania de interdependência”, a “soberania legal internacional” e a “soberania vestefaliana”4. Em bom rigor, o propósito que se procura alcançar é o da construção de um conceito de “soberania num sentido não-absoluto”, de modo a “dissolver o problema normativo de uma elite despótica” que “já não poderia sobreviver à aplicação dos [novos] limites à soberania”5. Não obstante essa tendência, as patentes dificuldades que os Estados contemporâneos enfrentam em face dos fenômenos resultantes da globalização política e econômica e da construção de mecanismos de constitucionalismo transnacional6 não impedem que, ainda hoje, o estudo do fenômeno constitucional raramente dispense o recurso ao tradicional conceito jurídico tridimensional de soberania, que retrata (i) um poder exercido (ii) sobre uma determinada comunidade política (iii) numa dada circunscrição territorial – poder esse que ainda vem sendo definido “no sentido clássico ou bodiniano do termo”, isto é, sendo imputado a “um Estado que não reconhece nenhum outro poder que lhe seja superior na ordem interna (soberania interna),
3 Michel Troper, Sovereignty, in Michel Rosenfeld / A ndrás Sajó (org.), The Oxford Handbook of Comparative Constitutional Law, Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 352. 4 Stephen K rasner, Sovereignty: Organized Hypocrisy, Princeton: Princeton University Press, 1999, pp. 3-4. E, ainda, alternativamente, entre tantos outros, Quentin Skinner, A Geneology of the Modern State, Proceedings of the British Academy, 162 (2009), pp. 325 e segs.; idem, The Sovereign State: A Geneology, in K almo / Skinner (eds.), Sovereignty in Fragments: The Past, Present and Future of a Contested Concept, Cambridge: Cambridge University Press, 2010, pp. 26 e segs.; Denis Baranger, The Apparition of Sovereignty, ibidem, pp. 47 e segs.; Neil Walker, Late Sovereignty in European Union, in Neil Walker (ed.), Sovereignty in Transition: Essays in European Law, Portland: Hart Publishing, 2003, p. 6. 5 Cfr. James Tully, Strange Multiplicity: Constitutionalism in an Age of Diversity, Cambridge: Cambridge University Press, 1995, p. 195, definindo a “soberania neste sentido não-absoluto [como significando] a autoridade de povos ou associações de povos culturalmente diversos para se governarem a si mesmos através das suas próprias leis e escolhas de modo livre de qualquer subordinação externa”. 6 Em especial, v. Dieter Grimm, Souveränität: Herkunft und Zukunft eines Schlüsselbregriffs, Berlin: Berlin University Press, 2009; Petra Dobner / M artin Loughlin (eds.),The Twilight of Constitutionalism?, Oxford: Oxford University Press, 2010; Gunther Teubner, Constitutional Fragments: Societal Constitutionalism and Globalization, Oxford: Oxford University Press, 2012; M atej Avbelj / Jan Komárek, Constitutional Pluralism in the European Union and Beyond, Oxford: Hart Publishing, 2012; Rui Medeiros, A Constituição Portuguesa num Contexto Global, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2015.
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2 Embora concentrado no plano internacional, propondo a superação da dicotomia entre o sentido “político” e o sentido “jurídico” da soberania, cfr. M artti Koskenniemi, From Apology to Utopia: The Structure of International Legal Argument, 2.ª ed., Cambridge: Cambridge University Press, 2005, pp. 228 e segs..
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nem na ordem externa (soberania externa)” (OTERO, 2008, p. 121). Na atual democracia constitucional, que atribui ao poder constituinte o poder máximo a exercer numa comunidade política que tem a capacidade de autogoverno e de autogestão dos seus destinos coletivos, o “Estado que se define constitucionalmente como soberano” é o Estado no qual “a soberania só pode resultar de uma decisão imputada [ao] povo através do exercício do poder constituinte” (MORAIS, 2015, p. 148). Por isso, sob esta perspectiva tradicional, “sendo soberano, o poder constituinte não é passível de ser heterolimitado no plano jurídico, sem prejuízo de, naturalmente, se poder auto-limitar, pelo que uma Constituição gerada por esse mesmo poder só experimenta as formas de heterolimitação que tiverem sido ditadas pelo poder constituinte ou por um poder de revisão constitucional não contrário aos limites de identidade constitucional fixados por esse poder constituinte” (MORAIS, 2015, p. 148).
Ora, se não têm sido sentidas dificuldades pelos investigadores em reconstituir a clássica associação do nascimento do conceito jurídico de soberania ao trabalho de Jean Bodine de Thomas Hobbes (FERNÁNDEZ SÁNCHEZ, 2017, p. 90), mais complexa tem sido a compreensão do papel que Samuel Pufendorf desempenhou nesse processo histórico – papel que se revelou decisivo para o Estado Moderno e sem o qual a concetualização jurídica da soberania não teria sido concluída nos termos que servem hoje de alicerce para o labor dos constitucionalistas. Num plano inicial, é sabido que Bodin e Hobbes partilhavam traumas paralelos como resultado da situação anárquica que viram os seus países atravessar, ficando firmemente convencidos acerca da necessidade de edificação de uma autoridade robusta para a obtenção de paz e estabilidade para as suas comunidade políticas7. Se, por isso mesmo, Bodin afirmara desejar construir um conceito de soberania “à imagem do Deus Todo-Poderoso” (BODIN, 1986, p. 179 e p. 295) – mas fazendo-o ainda de modo teoreticamente impreciso e carecendo de especificações adicionais –, também Hobbes fez notar que o Leviatã a quem confiava a satisfação das necessidades políticas era construído como “Deus mortal, a quem todos nós devemos, sob o Deus imortal, a nossa paz e defesa” (HOBBES, 1839). Mais do que uma simples imagem, a escolha do ser aterrador descrito no Cap. XLI do Livro de Jó (HOBBES, 1839) – “não há na Terra poder que se lhe compare”, segundo a tradução literal da versão escolhida por Hobbes para ilustrar a capa da primeira edição do Leviatã – assumia uma correspondência perfeita com os propósitos do seu Autor8. Por isso é que Hobbes afirmava que, “em virtude desta autoridade” atribuída ao “Deus mortal”, a qual incluiria “o direito sobre a vida e sobre a morte, bem como sobre todas as ofen-
7 Para uma apreciação comparativa dos condicionamentos fácticos que rodearam Bodin e Hobbes, Preston K ing, The Ideology of Order – A Comparative Analysis of Jean Bodin and Thomas Hobbes, 2.ª ed., London: Frank Class, 1999, pp. 47 e segs. e 56 e segs. 8 Sobre a escolha do “Leviathan” bíblico para imagem do soberano hobbesiano e sobre a sua caracterização de acordo com as características que lhe são apontadas em Jó, Freitas do A maral, História das Ideias Políticas, I, Coimbra: Almedina, 2010, pp. 356-357.
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2 AS PREMISSAS FIRMADAS POR BODIN E HOBBES
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sas corporais” (HOBBES, 1983), “ele dispõe e usa de um tal poder e de uma tal força que lhe são concedidos que o terror que eles inspiram lhe permite conformar as vontades de todos, para conseguir a paz no interior e o auxílio contra os inimigos do exterior” (HOBBES, 1839). Hobbes tampouco deixou por esclarecer o sentido – bem mais preciso do que no caso de Bodin – que atribuía à natureza “absoluta” da soberania: Há em cada Cidade perfeita [...] um Poder Supremo atribuído a alguém que é maior do que o poder que por direito poderia ser conferido pelo homem e maior do que qualquer mortal pode ter sobre si próprio. A tal poder, maior do que o homem poderia transferir para outro homem, chamamos de absoluto, pois quem quer que tenha submetido a sua vontade à vontade da Cidade, permitindo-lhe que, impunemente, possa fazer qualquer coisa, aprovar leis, julgar controvérsias, definir penas, fazer uso, a seu bel-prazer, da força e da riqueza dos homens, e tudo isto por direito, verdadeiramente lhe ofereceu o maior domínio que alguma vez poderia ser concedido a alguém (HOBBES, 1839).
Como o próprio Hobbes explicitamente confessava, não haveria qualquer fenômeno político conhecido pelo homem e suscetível de ser descrito através de uma abordagem materialista, alheia às imagens construídas durante um milénio pelas escolas europeias, que pudesse comparar-se ao estatuto ambicioso que o Autor acabava de respigar de Bodin e de aperfeiçoar9.
9 Nas palavras de Goyard -Fabre, por esta via “Hobbes soube utilizar de modo soberbo o modelo epistemológico que lhe foi oferecido pelos Seis Livros da República”, porquanto, “mais filósofo do que Bodin”, e aproveitando a sua paixão pela aplicação da infalibilidade matemática ao terreno político, radicalizou aquele modelo ao recorrer ao contrato social para dar uma forma “geométrica” à soberania, vendo no poder soberano “o resultado matemático do acto contratual que fez nascer a Commonwealth” – cfr. La Législation Civile dans l’État-Leviathan, in M artin Bertman / Michel M alherbe (eds.), Thomas Hobbes: De la Métaphysique a la Politique, Paris: Vrin,1989, p. 179. 10 Ao proceder a um estudo comparativo dos caracteres do Deus omnipotente descrito no Livro deJó e os caracteres apresentados pelo Leviathan hobbesiano, H alliday, K enyon e R eeve puderam concluir que, ao pretender fazer coincidir ambos, Hobbes “demonstrava acreditar que [o exercício] da arte da política consiste numa imitação dos comandos do Deus omnipotente”; “exactamente nos termos em que o Livro de Jó revelara o irresistível poder de um Deus omnipotente, o Leviathan demonstrava o poder irresistível da personificação de Deus, o soberano mortal” – cfr. Hobbes’s Belief in God, Political Studies, 31, 1983, pp. 418 e segs.. Numa perspectiva distinta, mas reconhecendo ter Hobbes concedido ao Leviathan “propriedades similares às divinas”, tornando-o “num deus salvador que faz pelos humanos aquilo que eles individualmente não podem fazer por si mesmos”, v. A loysius P. M artinich, Introduction, in A loysius P. M artinich / Brian Battiste ,Leviathan, Ontario: Broadview Press, 2011, p. 19.
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Daí que nenhum “soberano mortal” pudesse adquirir tal poder se não fosse concebido como “deus mortal”, à imagem do “Deus imortal” a quem unicamente ficava sujeito10. Porém, mais do que a juridificação do conceito de soberania que Bodin preparara de forma ainda embrionária, Hobbes foi sobretudo responsável por propor uma transferência para uma nova entidade coletiva dos poderes que o autor francês já sugerira que o monarca soberano exerceria sobre uma circunscrição territorial delimitada e sobre a comunidade (povo) a ela adscrita. É que, sublinhe-se, se é verdade que Bodin já promovera esse esforço de juridificação do conceito de soberania com um alcance bem adiantado para a sua época, não conseguira, porém, evitar a tendência, própria do seu tempo, de cair numa certa patrimonialização da soberania, confundindo-a com a pessoa privada do soberano. Era esta tendência que Hobbes agora evitava, conduzindo o tratamento do conceito de soberania ao perfil próprio da modernidade
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constitucional. E sem esta transferência – que Hobbes começou mas que, como seguidamente se notará, somente Pufendorf conseguiria concluir –, a concetualização do Estado moderno não teria sido possível nos termos em que a conhecemos. Em concreto, o exercício que Hobbes propôs consistiu numa reutilização de uma figura que Francisco Suárez apresentara no quadro da herança tomista, quando ensinara que, para a construção de uma verdadeira comunidade política, a mera “multidão” desordenada deveria ser transfigurada num “corpo uno que, por conseguinte, necessita de uma só cabeça”, dando origem a uma “persona ficta” ou “idealis” (SUÁREZ, 1967-1968). Ora, se o pensador espanhol soubera distinguir este corpo coletivo em face dos indivíduos que o compõem, o que faltava seria distinguir ainda a personalidade jurídica estadual em face daquele corpo colectivo – do próprio povo. E foi essa a tarefa de Hobbes. É certo que este também seguiu Suárez quando sustentou que o resultado do acordo dos fundadores da Comunidade das Nações consistiria na criação de “uma unidade real de todos os homens numa só pessoa, construída por contrato de todos os homens com todos os homens”(HOBBES, 1839). Mas para a artificialização da personalidade jurídica do Estado, o contributo decisivo foi traçado no Do Cidadão, ao apresentar a ideia de que a união empírica da vontade de todos os homens daria origem a uma vontade jurídica própria e autônoma da Cidade, que se não confundiria com a vontade de todos os seus membros – aliás, com isso abrindo um caminho sem o qual dificilmente Rousseau teria podido alcançar a sua construção da “vontade geral”. Com efeito, para Hobbes:
Numa palavra: a juridificação de uma pessoa coletiva estatal permitia atribuir-lhe uma vontade distinta e autónoma em face do próprio conjunto de cidadãos que formara a Cidade.
3 O CONTRIBUTO DE PUFENDORF Traçado este passo adicional no caminho da construção do conceito moderno de soberania, restava um último – mas decisivo – avanço sem o qual não seria possível atribuir os poderes soberanos a uma pessoa jurídica artificial. E esta seria justamente a responsabilidade assumida por Samuel Pufendorf.
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Esta união chamada de Cidade, ou de sociedade política, é também uma Pessoa; pois, quando existe uma só vontade de todos os homens, esta deve ser considerada como uma só Pessoa, e pela palavra «uma» se distingue de todos os homens particulares, tendo os seus próprios direitos e propriedades, pelo que nenhum dos cidadãos, nem sequer todos eles juntos (excepto aquele cidadão cuja vontade representa a de todos) deve ser confundido com a Cidade. Portanto, uma Cidade é uma pessoa cuja vontade, pela união de muitos homens, deve ser aceite como a vontade de todos eles, pelo que pode usar todo o poder e as faculdades de cada pessoa individual para a manutenção da paz e para a defesa comum” (1983).
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É que essa construção não teria sido exequível se o germânico, apenas duas décadas depois do aparecimento do Leviatã, quando desejou conceber um sistema de direito natural dotado das características da autonomia e auto-suficiência – por procurar extrair dedutivamente toda uma noção de sistema de Direito a partir de um postulado inicial de matriz natural-antropológica (e não natural-teológica)11 –, não tivesse decidido fundar a sua visão explicativa dos fenómenos sociais e humanos na conhecida distinção entre entes físicos e entes morais (entia physica e entia moralia). Como é sabido, estes últimos entes foram concebidos, na sua visão, como as criações que os seres inteligentes aditam às coisas naturais e aos movimentos físicos (os “modos” ou “atributos” que lhes imprimem) para conformar a ordem social e dirigir a conduta humana12. Qualquer fenômeno social ou político e qualquer instituição jurídica – como o Estado e a soberania em torno do qual este se organiza – seria reconduzido a um tal ente moral, intencionalmente imposto13 por seres inteligentes para a viabilização de uma ordem social e para a direcção dos actos voluntários dos seus membros14. Todavia, por assumir a natureza de ente modal, e não de ente substancial – justamente por consistir num “modo” inscrito nas coisas substanciais e “imposto” para a direcção destas últimas –, nenhum ser moral poderia subsistir em si mesmo, apenas existindo enquanto integrado na coisa substancial que visasse disciplinar15. Ora, é razoável admitir que esta premissa poderia ser utilizada por quem fosse inspi-
12 Samuel Pufendorf, De Iure Naturae…, cit., Livro I, Cap. I, 3: “podemos definir os entes morais como certos modos acrescentados por seres inteligentes às coisas naturais e aos movimentos, especialmente com o fim de guiar e temperar a liberdade dos actos voluntários e para alcançar uma regularidade aceitável na vida humana”. E, novamente, Samuel Pufendorf, De Iure Naturae…, cit., Livro I, Cap. I, 4: “estes são acrescentados, segundo a vontade das Criaturas inteligentes, aos seres já perfeitos num sentido natural”. Esboçando já esta definição a propósito do tratamento do conceito de status como ente moral que cria um espaço de autodeterminação no qual os seres físicos podem praticar as suas acções, em analogia com as substâncias físicas que corporizam o espaço onde aqueles podem realizam os seus movimentos físicos, Samuel Pufendorf, Elementorum Iurisprudentiae Universalis Libri Duo, ed. bilíngue de William Oldfather, Oxford / London: Clarendon Press / Humphrey Milford, 1931, Livro I, Definição III, 1; a partir daí se desenvolvia o tratamento do conceito de “coisa moral”, destinada ao estudo da aquisição de direitos reais sobre as coisas (Samuel Pufendorf, Elementorum Iurisprudentiae Universalis Libri Duo, ed. bilíngue de William Oldfather, Oxford / London: Clarendon Press / Humphrey Milford, 1931, Livro I,Definição V); do conceito de “título” como “atributo moral” (Definição VI); e dos conceitos de “autoridade” (Definição VII) e de “direito” como “poderes morais activos” (Definição VIII). 13 Porque resultava de um acto de “imposição” [impositionis] e não de “criação”, “pois estes [entes morais] não procedem de princípios incorporados na substância das coisas” da Natureza criada, antes sendo-lhes “aditados” –Samuel Pufendorf, De Iure Naturae..., cit., Livro I, Cap. I, 4 e 23. 14 Samuel Pufendorf, De Iure Naturae..., cit., Livro VII, Cap. III, 1 e segs.. Eis a sua definição de Estado: “O Estado é uma pessoa moral composta, cuja vontade, formada e unida a partir dos pactos previamente celebrados pela multidão, é considerada a vontade de todos, devendo recorrer às suas forças e capacidades para prosseguir os fins da paz e da segurança comuns” –Samuel Pufendorf, De Iure Naturae..., cit., Livro VII, Cap. II, 13. Por sua vez, definindo também a “autoridade soberana como qualidade moral”,Samuel Pufendorf, De Iure Naturae..., cit., Livro VII, Cap. III, 1. 15 Samuel Pufendorf, De Iure Naturae..., cit., Livro I, Cap. I, 6. Para compreender mais amplamente o significado da natureza modal (não substancial) dos entes morais de Pufendorf, alguns comentadores já ilustraram a sua não-subsistência autónoma com as características que A ristóteles imprimira às formas, quando tentara extinguir a dualidade entre as ideias e as coisas sensíveis proposta por Platão, sustentando que nenhuma ideia (forma) valeria por si e subsistiria em si, apenas existindo quando integrada no mundo físico de que Platão a expulsara (cfr. Cabral de Moncada,Filosofia do Direito e do Estado, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1995 [reimpr.], I, pp. 187-188). Assim ocorreria com os seres modais de Pufendorf: não teriam existência em si, valendo somente se incorporados nas coisas físicas para cuja direcção o Homem os houvesse projectado.
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11 E isto porque, numa construção silogística do sistema jurídico, cada conclusão racionalmente extraída servia, por sua vez, de premissa para a conclusão seguinte – pois que “demonstrar é deduzir silogisticamente uma conclusão necessária sobre qualquer matéria a partir de princípios que constituem as suas causas, os quais devem ser reconhecidos além de qualquer dúvida ou disputa” (cfr. Samuel Pufendorf, De Iure Naturae et Gentium Libri Octo, ed. bilíngue de Walter Simons, Oxford / London: Clarendon Press / Humphrey Milford, 1934, Livro I, Cap. II, 2); SAMUEL PUFENDORF, De Officio Hominis et Civis Juxta Legem Naturalem Libri Duo, ed. bilíngue de Walther Schücking, Oxford / New York: Oxford University Press, 1927, Livro I, Cap. III, 9; e, no mesmo exato sentido, Christian Wolff, Institutiones Juris Naturae et Gentium, Halle: Officina Rengeriana, ed. de 1754, Parte I, Cap. III, 44.
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16 Por todos, v. o estudo mais autorizado de Fiammetta Palladini, Samuel Pufendorf Discepolo di Hobbes. Per una Reinterpretazione del Giusnaturalismo Moderno, Bologna: Il Mulino, 1990, passim; mais recentemente, embora preferencialmente centrado na questão antropológica e na doutrina da sociabilidade,Fiammetta Palladini, Pufendorf Disciple of Hobbes: The Nature of Man and the State of Nature: The Doctrine of Socialitas, History of European Ideas, 34 (2008), pp. 26 e segs..
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rado por uma matriz humanista para concluir que o Estado e qualquer outro fenômeno político não podem constituir fins em si mesmos nem extravasar a natureza de meros instrumentos de prossecução dos fins antropológicos dos homens que lhes deram vida. Porém, Pufendorf, que se movia noutro plano, procurando uma síntese dos jusnaturalismos grociano (racionalista-dedutivista) e hobbesiano (naturalístico-materialista)16, não hesitou em apelar à sua construção precisamente com o propósito de explicar que, na qualidade de ente modal (não substancial), o Estado só é e só ganha vida jurídica (moral) quando os fundadores da comunidade política concretizam o pactum subjectionis por constituir ex novo uma soberania que não existe antes (isto é, no próprio povo fundador) e só nasce quando é alocada ao soberano que exerce as funções de “alma que informa, anima e dirige o corpo público” (PUFENDORF, 1934). Nesta construção, após criarem uma sociedade pela celebração do (primeiro) pacto social destinado a pôr fim ao estado de natureza e determinarem através do (segundo) pacto social a forma de governo a implementar, os Homens dariam origem ao Estado enquanto ente moral somente quando concluíssem o (terceiro) pacto social (PUFENDORF, 1934), em cujos termos “todos os membros do Estado, ao submeterem as suas vontades à Vontade de um único comandante, também se obrigaram, ao mesmo tempo, a lhe não resistir” (PUFENDORF, 1934). Sob pena de não poder exercer uma soberania efectiva, a “autoridade civil recebe um poder natural, pelo qual, quando o súbdito recusa obedecer, pode ser aterrorizado para o cumprimento dos seus deveres através do medo da punição” (PUFENDORF, 1934). E enquanto tal não sucedesse e não fosse possível aglutinar o Estado em torno da autoridade centrípeta do soberano, “nenhuma comunidade subsistiria” (PUFENDORF, 1934), pois que nenhum ente físico ou coisa natural sustentaria o ente moral criado pelos homens e em si mesmo desprovido de substância: reproduzindo expressamente as palavras de Hobbes, “o Estado é concebido como um homem artificial, «no qual o soberano é a alma, dando vida e movimento a todo o corpo»”(PUFENDORF, 1934). Em suma, da juridificação do conceito de Estado como pessoa artificial (moral) nascia a convicção de que seria inconcebível, dos pontos de vista jurídico, lógico e ontológico, a organização de uma comunidade política que não assentasse na instituição de uma autoridade investida do poder de soberania – a qual seria juridicamente insindicável e irresistível pelos indivíduos integrados nessa comunidade. Assim, bem se vê que, se Bodin e Hobbes haviam dado o passo inicial para a sedimentação deste dado fundamental na caracterização da matriz continental do Estado de tipo europeu, por estabelecerem a premissa segundo a qual não há organização política (Estado) sem soberania, Pufendorf completara-o por afirmar que, sem a incorporação da soberania (ente
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e Hobbes – a saber: una, indivisível e impartilhável17. Mas, obviamente, essa ideia-chave teria de vir a ser compatibilizada com a crença, já previamente sugerida no pensamento europeu mas que só mais tarde se estabilizaria, de que não há liberdade sem separação de poderes (FERNÁNDEZ SÁNCHEZ, 2017, p. 106). Como é compreensível, tais duas ideias contraditórias não podiam deixar de provocar graves dificuldades aos teóricos que assumiam – e, até hoje, nunca mais deixaram de assumir – a impossibilidade de conceber um sistema constitucional satisfatório sem a presença de ambas. É que, longe de meramente suporem a sua inconveniência e de quererem evidenciar as desvantagens da sua implementação, os proponentes do conceito de soberania haviam sublinhado, apresentando tal axioma como “verdade analítica” (FRANKLIN, 1993, p. 39), a absoluta impossibilidade jurídica e lógica de proceder à divisão dos poderes nela integrados – sobretudo tendo em vista o seu controlo mútuo e a sua fiscalização e sindicabilidade por contra-poderes. Em vez de se limitarem a alegar os seus possíveis efeitos indesejáveis, haviam afirmado que uma tal divisão seria, não desaconselhável (no sentido da perda da eficiência na prossecução das atribuições do Estado), mas simplesmente insuscetível de implementação jurídica (no sentido da pura implosão do Estado que a procurasse concretizar). Foi essa incongruência que foi transportada até à atualidade: sendo certo que, na democracia constitucional, não seria possível renunciar à separação de poderes como princípio estruturante da organização política, a verdade é que os centros de autoridade que têm exercido
17 Adoptou, por outras palavras, o entendimento que pôde ser resumido por Hobbes ao iniciar o Cap. XXXI do Leviathan: “um Estado sem poder soberano é como um conceito sem substância e não pode subsistir”.
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moral) na pessoa do soberano, a quem seria reconhecido o poder de aprovação de atos jurídicos incontroláveis e insindicáveis, a primeira só poderia ser pensada como autêntica “alma sem corpo” (PUFENDORF, 1934), não podendo sequer obter reconhecimento ôntico nem ser logicamente aceite nas categorias admitidas pela mente humana. De resto, no caso de Pufendorf, a identificação teorética de sete partes potentiales summi imperii – os poderes legislativo; de estabelecer penas; judicial; de fazer a guerra e a paz e concluir tratados; de nomear os ministros e funcionários; de fixar e arrecadar impostos; e de disciplinar o ensino público (PUFENDORF, 1934) – não podia ir além de um juízo de decomposição abstrata das manifestações da soberania. Para o germânico, o Estado não deixaria de ficar desmembrado no momento em que essa decomposição se reflectisse num esquema competencial concreto de atribuição de partes da soberania a autoridades distintas. 4 ELEMENTOS EXTRAÍDOS PARA A TEORIA CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEA Quando aceitou o conceito de soberania como elemento estruturante do Estado moderno, o constitucionalismo adotou como sua a ideia de que nenhuma comunidade política (comunidade num território delimitado e sujeita a um poder político) sobrevive e alcança os seus fins se se não alicerçar em torno de uma autoridade concebida nos termos propostos por Bodin
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[…] não distinguem entre um Povo e uma Multidão. O Povo é algo que é único, tendo uma só vontade, e a quem uma só acção pode ser atribuída; este não pode ser chamado de Multidão. O Povo governa em todas as formas de governo, porque mesmo nas Monarquias o povo governa, pois quer [wills] através da vontade [will] de um só homem; já a Multidão são os Cidadãos, isto é, os Súbditos. Numa Democracia e numa Aristocracia, os Cidadãos são a Multidão, mas o Conselho é o Povo. E numa Monarquia, os Súbditos são a Multidão e (ainda que pareça um paradoxo) o Rei é o Povo (HOBBES, 1983).
Se, com base nessas palavras, algumas leituras do pensamento hobbesiano, despercebendo o ponto que o Autor pretendia sublinhar, se apressaram em inferir deste ponto a ideia de que Hobbes não recusava em absoluto a “democracia”, parecendo até colocá-la no mesmo plano da monarquia (TUCK, 2006, p. 183), o verdadeiro significado normativo daqui emergente consistia antes na proposta, que o pensador inglês ofereceu ao pensamento moderno, no sentido de aceitar sempre, e independentemente da forma de governo adoptada ou da identidade do respectivo titular, que a soberania, como alicerce indispensável do fenômeno do Estado, residiria
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o poder constituinte – reclamando para si próprios a natureza soberana do poder que ostentam – tampouco aceitaram abdicar do axioma básico de Hobbes, segundo o qual “não pode haver governo quando existe mais do que um poder soberano” (HOBBES, 1969, p. 77). A solução que – pela mão de Sieyès (FERNÁNDEZ SÁNCHEZ, 2017, p. 151-152) – vem sendo encontrada para coadunar essas duas ideias contraditórias consiste num curioso fenómeno teorético-jurídico. Logo que se verificou que seria impossível continuar a qualificar o legislador ordinário como “soberano” – visto que ele próprio ficaria subordinado a um outro poder do Estado (poder constituinte), o que só por si implicaria justamente o seu caráter não soberano –, o constituinte, sentindo ainda a necessidade de proclamar a subsistência de um qualquer poder soberano, remeteu-o, desta vez, para o próprio “povo”, o qual, estranhamente, afirmando-se “soberano”, aceitaria auto-submeter-se às directrizes constantes de um texto historicamente situado (Constituição) sobre as formas e os termos em que a “soberania” seria exercida. E às normas jurídicas constantes de tal texto seria assegurada a garantia de insindicabilidade por qualquer autoridade constituída e, logo, não soberana. Mas o que importa notar é que, quando concretizaram este fenômeno, os constituintes contemporâneos não precisaram minimamente de inovar quando construíram uma ficção jurídica, consistente na identificação de uma entidade artificial a quem deram o nome de “povo” e em quem realocaram o poder de soberania, permitindo por essa via manter o dogma da sua indivisibilidade e insindicabilidade por uma autoridade superior. Com efeito, ainda que vindicassem a relevância de uma assembleia representativa democrática – colocando-se pois num plano divergente de Hobbes e Pufendorf –, os constituintes não deixaram de aproveitar a poderosa construção que Hobbes apresentara no Do Cidadão, censurando o equívoco daqueles que:
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numa pessoa artificial única – podendo pois manter sempre a sua indivisibilidade–, a qual não poderia ser objeto de controlo por qualquer contra-poder do Estado, sob pena de negação da sua qualidade soberana. Para justificar essa insuscetibilidade de controle jurídico, podia pois alegar-se, com base nas sugestões de Hobbes e Pufendorf, que, quando a maioria dos cidadãos componentes da comunidade política aprovasse num momento pretérito um ato limitativo do exercício do Poder – hoje, um ato com força constituinte –, o “Povo”, embora vinculado nas suas gerações futuras por esse ato restritivo, nunca deixaria de governar – não havendo assim qualquer expropriação ilícita da sua autoridade –, pela simples razão de que a sua soberania já teria sido plasmada naquele ato supremo. E isso tornaria supérflua e até antijurídica a ulterior sindicabilidade de um ato que fora reconhecido como soberano no seu momento constitutivo. Daí que a sindicabilidade dos atos do poder legislativo – enquanto poder atualmente não soberano e subordinado à Constituição – conviva hoje com a indisindicabilidade das normas constitucionais – enquanto expressão do poder soberano no Estado – nas nossas democracias constitucionais.
O divinizado “Povo”, titular absoluto do Poder, não surgiu pois, na construção de Bodin, Hobbes e Pufendorf, como o mero produto empírico da aglutinação dos indivíduos que o compõem; em vez disso, surgiu como ficção jurídica que pretendeu resolver o problema de encontrar um depositário da soberania pensada à imagem de Deus (indivisível e insindicável) e de evitar precisamente aquela divisibilidade e sindicabilidade (logo, a sua destruição). Uma vez sujeita ao posterior trabalho rousseauniano de normativização da respectiva “vontade geral” (FERNÁNDEZ SÁNCHEZ, 2017, p. 119), tal ficção jurídica seria utilizada para assegurar a sobrevivência da noção de soberania como centro aglutinador do Estado moderno, ainda quando os constituintes iluministas e pós-iluministas viessem a reconhecer a imprescindibilidade de uma separação dos poderes – agora (somente) dos poderes constituídos pelo soberano poder constituinte reconhecido ao “Povo”, esse sim, sempre indivisível e insindicável, como Hobbes e Pufendorf ensinaram. Em suma, se de Bodin e de Hobbes obteve-se a inversão das fórmulas de organização política e institucional dominantes na Europa no milénio anterior – fórmulas de natureza atomística e social-judiciária –, formando os alicerces do Estado moderno, a verdade é que do próprio Hobbes e de Pufendorf se obteve também a fórmula para a superação do antagonismo entre os conceitos de soberania e de separação de poderes, que não mais deixaram de se assumir como os pólos do constitucionalismo ocidental, contornando as não poucas dificuldades dogmáticas e pragmáticas de todos os constituintes que, desde então, não aceitaram abdicar do seu acolhimento simultâneo. Com essa fórmula foi possível que, mesmo num regime democrático, se continue a
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reconhecer no Estado a presença de um poder máximo que, fruto da sua qualidade soberana, continua a ostentar a insuscetibilidade de sujeição a qualquer controlo jurídico por autoridades constituídas.
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THE MODERN LEGAL CONCEPT OF SOVEREIGNTY
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ABSTRACT However the tendency towards the relativization of the concept of sovereignty, the constitutionalism keeps to does not dispense the recourse to the traditional concepto f the three-dimensional that portrays a Power exercised over a political community in a given territorial circumscription. In this context, if researchers associate the legal concept of sovereignty with the work of Bodin and Hobbes, it has been more difficult to understand the role that Samuel Pufendorf, from his distinction between physical and moral entities, played in this process. This role proved decisive for the Modern State; without it, the juridical realization of sovereignty would not have been completed in the terms we now know. Above all, it derived a formula which, after subsequent adaptations (Sieyès), overcame the antagonism between the concepts of sovereignty and the separation of powers, making the acts of legislative power - non-sovereign power subordinate to Constitution - coexists with the indiscernability of constitutional norms, as an expression of the sovereign power that declares itself to be insusceptible to legal control by constituted and non-sovereign authorities. Keywords: Sovereign. Constitution. Bodin. Hobbes. Pufendorf.
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A RACIONALIDADE COMUNICATIVA DE HABERMAS E O PARADIGMA PROCEDIMENTAL JURÍDICO DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS Lauro Ericksen1
RESUMO O artigo discute as possibilidades de uma compreensão comunicativa intersubjetiva sob a égide do pensamento de Habermas. Tem como objetivo geral explorar os elementos metodológicos de uma nova racionalidade jurídica, calcada no agir prático e comunicativo. Objetiva, especificamente, indicar o enquadramento da racionalidade habermasiana, no enquadramento dos modelos conflitivos. Tem como hipótese de trabalho que, ainda que Habermas possua uma visão negativista do conflito, seu desenvolvimento é sempre em prol de um consenso da comunicação prática do agir. Resulta que o agir comunicativo habermasiano se convola em uma premissa procedimentalista do paradigma resolutivo-jurídico. Palavras-Chave: Filosofia do Direito. Teoria Geral dos Conflitos. Racionalidade Comunicativa. Paradigma Procedimental.
O artigo em desenvolvimento tem o intuito primordial de fornecer um primeiro contato, ainda que perfunctório e introdutório com as premissas básicas do pensamento de Jürgen Habermas, um influente (jus) filósofo alemão contemporâneo. Um dos elementos básicos do pensamento habermasiano é a o agir comunicativo, uma forma de comunicação calcada naquilo que ele denomina de racionalidade comunicativa, uma nova forma racional de interação intersubjetiva. Esses conceitos são básicos para a compreensão daquilo que se denominou de compreensão negativista clássica do conflito sócio-jurídico. Dessa maneira, o artigo busca abordar a teoria clássica do conflito sob o paradigma do procedimental (formal) levando em conta as premissas habermasianas do agir e da racionalidade comunicativa, depreendendo que toda a raiz conflitiva se baseia, de maior ou menor monta,
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Doutor, mestre e bacharel em Filosofia (UFRN), especialista em Direito e Processo do Trabalho (UCAM-RJ), bacharel em Direito (UFRN). Oficial de Justiça Avaliador Federal do Tribunal Regional do Trabalho da 21ª Região. Possui livros e artigos publicados na área do Direito e da Filosofia. Contato: lauroericksen@yahoo.com.br Lattes: http://lattes.cnpq.br/8447713849678899 orcid.org/00000002-4195-1799
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1 INTRODUÇÃO
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em um problema de comunicação entre os indivíduos, que, sem atingir um consenso elementar sobre o discurso, acabam divergindo. Outrossim, o artigo possui, didaticamente, uma divisão quadripartida, em introdução, com duas seções dedicada ao desenvolvimento das principais ideias. Assim, na segunda seção, aborda-se a questão da racionalidade comunicativa e como ela é posta como elemento inarredável da construção e resolução do conflito. Na terceira seção, demarca-se o aspecto metodológico da argumentação jurídica baseada no agir comunicativo, e como essa forma de atuação é plausível no contexto da resolução procedimental dos conflitos. Derradeiramente, há uma seção de fechamento, contendo as principais considerações finais acerca do conteúdo abordado. Assim, espera-se fornecer uma contribuição singela, ainda que substancial, sob o paradigma procedimental da resolução dos conflitos, sob a égide do pensamento habermasiano, tão influente e importante para a filosofia contemporânea e também para a filosofia do direito como um todo.
A teoria do conflito possui uma importante ramificação dentro do estudo do Direito. Essa perspectiva é imbuída de um forte caráter filosófico (ainda que possua uma influência sociológica considerável), haja vista que uma gama de filósofos e juristas já se debruçaram sobre ela. Ainda assim, no presente trabalho, há de se focar na aplicabilidade da teoria da racionalidade comunicativa desenvolvida pelo filósofo alemão Jürgen Habermas à resolução dos conflitos sociais que o Direito almeja e espera pacificar, como escopo máximo de sua efetividade paradigmática de Justiça. O ponto de partida para a formulação de uma teoria do conflito, a qual engloba, necessariamente, os principais aspectos jurídicos por ora discutidos, funda-se na compreensão de quais formas ou procedimentos normativos de atos jurídicos podem ser aplicados corretamente através de processos (em sua acepção mais ampla) de entendimento motivados racionalmente no interior de uma sociedade estruturalmente construída. Nesse passo, há de se ter em destaque que Habermas levanta a hipótese de que a validade das normas do direito é determinada pelo grau impositivo que elas conseguem impor à sociedade que elas buscam reger, ou seja, a sua validade é aferida a partir de sua aceitação fática no círculo “dos membros do direito”. Isso tudo ocorre em detrimento da legitimidade das regras normativas, a qual é medida pela capacidade de resgate discursivo das pretensões de validade normativa ocorrentes em processos de aplicação do Direito disciplinados pelas próprias regras estatuídas (HABERMAS, 1997, p. 50). Essa premissa se foca nos elementos teórico-discursivos de como ou de que modo a questão da validade do direito se presta à resolução dos conflitos sociais, por isso a sua importância singular no estudo da teoria do conflito, em sua vertente
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2 OS CARACTERES BÁSICOS DA TEORIA DA RACIONALIDADE COMUNICATIVA DE HABERMAS E A CONCEPÇÃO NEGATIVISTA DO CONFLITO
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2 Com essa argumentação Habermas tenta a um só tempo desbancar tanto os elementos lógicos-ontológicos de Georg Wilhelm Friedrich Hegel, que deposita na unidade lógica do devir o elemento metafísico essencial de sua dialética, quanto as acepções anti-metafísicas de Martin Heidegger, afinal, se não unidade verdadeira total, não há sequer verdade a ser perquirida dentro desse sistema filosófico. Ainda assim, há que se pontuar que a fundamentação proposta por Habermas é uma espécie de retomada neokantiana conservadora do estabelecimento de condições de possibilidade para a existência do convívio social. Algo que não se diferencia muito das categorias propostas por Kant (1987, p. 38) como necessárias e indispensáveis para que haja o estabelecimento de qualquer metafísica que se proponha a descrever os processos filosóficos de uma sociedade estruturada. Assim, por mais que Habermas seja tido como um grande teórico da pós-modernidade, vários de seus argumentos encontram espeque na fundamentação transcendental kantiana, uma vez que ainda tratam de adequação e de condições de necessidade e universalidade. 3
O processo comunicativo para Jürgen Habermas (2002, p. 53) acontece quando os sujeitos, agindo comunicativamente, tratam-se literalmente como falantes e destinatários, nos papéis das primeira e segunda pessoas, no mesmo nível do olhar. Desta forma, eles contraem uma relação interpessoal, na qual se entendem sobre algo no mundo objetivo e admitem os mesmos referentes mundanos (relações objetivas-subjetivas em fluxo contínuo). Nessa posição performativa, diante do pano de fundo de um mundo da vida intersujetivamente compartilhado, fazem simultaneamente, uns para os outros, experiências comunicativas entre si. Ou seja, o estabelecimento desse tipo de comunicação racional é o único que possibilita o entendimento (ou o desentendimento) dos sujeitos partícipes.
4 Nesse ponto, ao se falar de dinamização de processos comunicativos, indubitavelmente as raízes aristotélicas de Habermas são ressaltadas. Somente a partir desse processo de atualização (dinamização) da base material (causa material) humana, que é a própria inteligência racional, é que se consegue alcançar um patamar mais elevado da própria natureza humana, um parâmetro “energético” – no próprio sentido de Energeia (ἐνέργεια) definido pelo estagirita (Aristóteles) – de aferição do desenvolvimento humano.
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eminentemente jurídica. Comentando os aspectos paradigmáticos levantados por Habermas, José Eduardo Elias Romão (2003, p. 61) pontua que o filósofo da escola de Frankfurt sustenta que “a racionalidade comunicativa só se tornou possível com a modernidade”. Outrossim, diferentemente das sociedades ditas “tradicionais”, na pós-modernidade (ou hipermodernidade, como preferem alguns teóricos) passa-se a ter um momento de difração das funções sociais, no qual as facetas da faticidade, da normatividade jurídica e da subjetividade individual não mais se diferenciam e já não são aspectos dominados por uma unidade “verdadeira total”2. Nesse panorama, tanto a ação dos indivíduos quanto a ação dos grupos sociais passa a ser acompanhada e coordenada em consentâneo com critérios de uma racionalidade comunicativa (o elemento discursivo do direito, segundo Habermas, é um dos pontos de maior destaque dentro da progressão social, tanto individual quanto coletivamente falando). Em resumo, essa racionalidade própria do processo comunicativo social visa, em última instância, o entendimento amplo3. A partir desses breves delineamentos já há como perceber que a “nova racionalidade do direito” proposta por Habermas se atém a uma concepção negativista do conflito, tal como os teóricos da linha clássica posicionam. A grande diferenciação do pensamento desse filósofo alemão consiste na atribuição central dos processos discursivos, e não apenas em um foco de poder, que ao ser desorganizado ou desestabilizado conduziria a um processo de instabilidade conflitiva. Assim sendo, a proposição habermasiana é, em algum sentido, dotada de uma forma idealizada de compreender os fenômenos sociais que dão azo à formação conflitiva, haja vista que os processos comunicativos racionais conduzem a uma forma de entendimento amplo. Não obstante, caso o citado processo racionalizado do entendimento humano seja dinamizado4 a se estabelecer plenamente, os conflitos tenderão a não existir (embora a concepção de existência para ele seja algo diverso da simples ocorrência factual do conflito). Ao se adentrar especificamente no referido processo racional-comunicativo, percebe-
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-se que cada locutor possui uma função bem definida, de modo que cada agente participante tem pretensões de validade em relação às suas próprias proposições. Tais proposições podem estar intimamente direcionadas a cada uma das esferas de completude do sistema de comunicação racional, tais como a objetividade material (as coisas), o espectro social (a própria normatividade da sociedade) e o domínio da subjetividade (as vivências e experiências de cada indivíduo ou de cada grupo social). É justamente em torno dessas pretensões de validade que se pode desenrolar o conflito. Isto é, desdobram-se em função dessas pretensões o consenso imediato (hipótese de inexistência conflitiva) ou, ao contrário, um processo argumentativo (conflito propriamente dito) para, mediatamente, obter-se um entendimento. Como bem ressalta Miracy Barbosa de Souza Gustin (1999, p. 189), a racionalidade nos moldes descritos por Habermas seria a capacidade dos locutores de galgarem um saber falível ou justificável, segundo as dimensões esféricas já colocadas (objetiva, social e subjetiva). Isso porque, no processo argumentativo, deve haver a apresentação de provas e contraprovas entre os interlocutores, na tentativa de um ajuste recíproco e, possível e finalmente, a obtenção de um resultado consensual através da argumentação racional.
Somente a partir dos delineamentos da racionalidade, tal como apresentado, que os interlocutores conseguem qualificar a pujança argumentativa posta, graduando-a, e retirando desse processo uma definição do que deve ser mantido ou rejeitado na busca de resolução adequada dos conflitos por eles suscitados. Um ponto de ressalto nessa metodologia da teoria do conflito consiste no fato de que mesmo que um dos locutores não apresente habilidade ou disposição suficiente para fundamentar a pretensão lançada isso não representa a total desconsideração de sua proposição. Nesse sentido, Robert Alexy (2001, p. 110) assevera que esse processo comunicativo não se limita apenas à personalidade do autor, de modo que ele “depende muito mais dos princípios por trás dos atos de discurso”. Existem elementos que perpassam a própria limitação da justificação subjetiva individualizada, tal como será a seguir mais bem investigado. É possível, portanto, que, dentro de um processo comunicativo, algum dos interlocutores, após levantar uma pretensão qualquer, recuse-se a produzir uma fundamentação sobre ela, ou que simplesmente se negue a apresentar as razões de sua recusa ou afirme que a sua pretensão é dotada de uma completude imanente de modo que nenhuma outra fundamentação é necessária para que ela se sustente. É comum que a parte contrária levante uma contra-argumentação calcada na necessidade de justificação da proposição lançada, exigindo que razões devam ser dadas para
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3 A RESOLUÇÃO DOS CONFLITOS POR MEIO DA ARGUMENTAÇÃO: A NECESSIDADE DA JUSTIFICAÇÃO RACIONAL COMO PARADIGMA METODOLÓGICO E O ENCERRAMENTO CONFLITIVO
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Esse esclarecimento também é uma crítica à dialética hegeliana, uma vez que, por rejeitar a circularidade dialética do sistema lógico de Hegel, Habermas pontua que a estrutura lógica do devir hegeliano não possui uma fundamentação idônea para o início da filosofia (e da própria lógica).
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que a validade de suas pretensões seja aferida. Ou concluindo, se nenhuma fundamentação for feita para a pretensão lançada, que ela deva ser tida como inválida, por não ser possível atribuir-lhe validade alguma. Essa argumentação que se foca em sentenças com expressões deontológicas (as quais usam os termos do “dever ser” para basear seu fundamento) são um sinal claro que os interlocutores recorrem a um princípio de motivação e justificação das pretensões enunciadas por eles. Isso é o que Robert Alexy (2001, p. 111) denomina de “regra geral de justificação”. O jurista alemão define essa regra como sendo aquela que “todo locutor precisa dar razões para o que afirma quando lhe pedirem para fazê-lo, a menos que possa citar razões que justifiquem uma recusa de dar uma justificação”. Segundo essa regra, ainda que os interlocutores exijam uma justificação, não é imprescindível que todos tenham que dar explicações plausíveis para cada afirmação feita, a qualquer pessoa, a qualquer tempo. Para esse nível de discussão conflitiva no âmbito jurídico é suficiente apenas que razões sejam dadas para atestar a incapacidade ou o não desejo de dar a justificação necessária para uma situação específica, ou ainda os interlocutores delegam essa função a outrem. Desta feita, essa regra não exige que haja uma justificação plena e individual por parte do interlocutor para cada uma pretensão que deduza (ainda que haja resistência do outro interlocutor), mas apenas ordena que todas as afirmações remanesçam susceptíveis à discussão. Dizendo isso de uma melhor forma, as próprias razões das razões apresentadas pelos interlocutores do processo de comunicação-conflito também ficam abertas à própria discussão em torno do dissenso (GUSTIN, 1999, p. 190). Em última instância, do ponto de vista filosófico, há uma fundamentação única para a discussão das pretensões deduzidas, pois, só assim é possível analisar de maneira plena, não só as razões, mas as suas próprias justificativas (que podem ser dissolvidas nas próprias razões das razões – daí o seu caráter reflexivo). Esse critério é clarificado pelo próprio Habermas, que esclarece que a sua teoria da ação comunicativa não é apenas uma meta-teoria, na qual não há um ponto de partida (Anfang)5 próprio. Ao comentar esse quesito, José Eduardo Elias Romão (2003, p. 61) coloca que a teoria enunciada pelo filósofo de Frankfurt se vincula a uma “racionalidade comunicativa espontânea, pré-reflexiva, que está efetivamente presente nas estruturas de um mundo de vida compartilhado pelas pessoas”. Em síntese, essa teoria tenta se afastar da vacuidade de um posicionamento anti-metafísico (no qual não haveria nenhum lastro teórico para sua fundamentação) e coloca como seu ponto de partida (Anfang) uma teoria da sociedade que se esmera para justificar seus parâmetros
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críticos, ainda que a abertura para tais razões deva sempre estar à disposição de seus locutores6.
A importância dessa teoria da comunicação racional de Habermas é salutar. Nesse passo, essa nova proposta de racionalidade habermasiana se encontra firmemente ancorada em um chão social, e com a qual todos são plenamente contemporâneos. Esse comentário assume um aspecto filosófico de destaque, pois se ancora na linguagem cotidiana para explanar como todos os indivíduos podem ser tidos como interlocutores no processo de comunicação-conflito. Ou seja, a simples capacidade de se expressar na linguagem cotidiana (linguagem ordinária, para se utilizar o termo técnico wittgensteiniano apropriado) confere a validade dos posicionamentos assumidos pelos interlocutores envolvidos no citado processo. Sob esse enfoque, é fácil concluir que os sujeitos de direito, e não apenas especialistas e tecnicistas, podem, efetivamente, promover a aplicação de um Direito válido face às situações de conflito, haja vista que as normas e os atos jurídicos podem ser processos de entendimento motivados racionalmente no interior de uma associação de membros do direito (HABERMAS, 1997, p. 75). Essa é uma forma de abertura formal e procedimental para a resolução dos conflitos, propondo, portanto, que a resolução e o agir ético prático não é algo estanque nem unicamente afeito aos técnicos e aos juristas, é algo que se espraia e se desenvolve livremente no seio social, sem nenhuma definição fechada ou definitiva de como sobre o conflito deve ser resolvido, apenas indicando que, sua resolução, é premente e factível. Essa é uma crítica direta aos teóricos, principalmente os positivistas de outrora, como Hans Kelsen (1998, p. 210) do direito que, a partir de uma compreensão unicamente objetiva, colocavam a análise dos desdobramentos jurídicos como algo plenamente apartado da própria compreensão dos seus sujeitos (não-especialistas). Assim, o fenômeno de validade do direito deixa de ser algo calcado apenas na descrição objetiva (e purista) e passa a ser compreendido multi-dimensionalmente, como já explanado. A hodierna consideração dos pressupostos comunicativos e as condições procedimentais de formação de opinião e vontade democráticas, que são a única fonte de legitimidade no espectro de compreensão procedimentalista do Direito, fazem com que seja imprescindível que se maneje uma concepção teórica do conflito mais apropriada e consentânea com a complexidade das sociedades “pós-modernas”. Nesse diapasão, uma concepção discursiva do direito (capaz de redefinir o conflito como a confrontação comunicativa de atos de linguagem ordinária que enunciam pretensões de 6
Nesse ponto, ao falar de abertura para a discussão dentro da sociedade, Habermas está a criticar as definições de Martin Heidegger (2008, p. 124) acerca da “abertura do ser”. Na filosofia de Ser e Tempo de Heidegger, a questão da abertura (Erschlossenheit) é um termo técnico tratado como um “des-fechar”, de modo que, abrir, jamais significa, portanto, concluir através de mediações. Somente através dessa abertura de ser que ocorre o “acontecimento” (Ereignis), conceito fundamental da filosofia heideggeriana que trata da própria verdade (imediata). Já na filosofia habermasiana, a mediação entre os sujeitos interlocutores é algo imprescindível, não há como haver racionalidade comunicativa se não houver mediação entre os interlocutores e as demais esferas ou dimensões envolvidas nesse processo, sejam elas objetivas, sociais ou subjetivas.
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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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validade distintas) afigura-se apta a abarcar a pessoa humana em sua vasta diversidade de dimensões existenciais, objetiva, social e subjetiva (ROMÃO, 2003, p. 62). Isto porque essa nova racionalidade comunicativa do direito é capaz de enquadrar de maneira mais flexível a realidade dos sujeitos interlocutores, sem que haja um encerramento peremptório dos mesmos em categorias ou classes predeterminadas. Em síntese, a teorização proposta por Habermas formaliza o método adequado a ser utilizado na aplicação legítima de um Direito válido e capaz de dirimir conflitos, fulminando-os com justiça, e, principalmente, não se depreendendo do exposto que esses processos sejam apenas manejados pelos próprios entes estatais.
REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Trad. Zilda H. Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001. GUSTIN, Miracy Barbosa de Souza. Das necessidades humanas aos direitos: ensaio de sociologia e filosofia do direito. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. HABERMAS, Jürgen. Agir comunicativo e razão destranscendentalizada. Trad. Lúcia Aragão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: Entre faticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v.1. HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 3. ed., Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback. Rio de Janeiro: Vozes, 2008. KANT, Immanuel. Prolegômenos a toda a metafísica futura: que queira se apresentar como ciência. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1987.
ROMÃO, José Eduardo Elias. O novo sistema de solução de controvérsias do Mercosul. In: AZEVEDO, André Gomma de (Org). Estudos em arbitragem, mediação e negociação. Brasília: Grupos de Pesquisa, 2003, v. 2, p. 49-68. HABERMAS’ THEORY OF COMMUNICATIVE RATIONALITY AND CONFLICT’S RESOLUTION PROCEDURAL PARADIGM ABSTRACT
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KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 6.ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
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The paper discusses the possibilities of comprehension of intersubjetive communication on Habermas thinking of Law Philosophy. It aims, in a broad way, to explore the methodological aspects of a new legal racionality, based on practical and communicative acting. Its specific objetive intends to indicate the framing of habermasian racionality, on conflicts classifications and models. Its hypothesis is based on the premisse that, even though, Habermas still has a negative vision on conflict, its development points toward a consensus of communication and a colective understanding of practical action. It, thus, results in knowing, that communicative acting becomes a procedural premisse on resolutive legal paradigm. Key-Words: Law Philosophy. Theory of Conflict. Comunicative Racionality. Procedural Paradigm.
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DESAFIOS HERMENÊUTICOS DA JURIDICIDADE PÓS-MODERNA: ENTRE TEXTO, NORMA E MÉTODO/ PARA LÁ DA INTERPRETAÇÃO NEGATIVA Joana Maria Madeira Aguiar e Silva1
RESUMO Os séculos XX e XXI trouxeram consigo uma manifesta erosão dos fundamentais pressupostos sobre os quais anteriormente se erigiam as garantias e determinações do conhecimento e da verdade científicos. Ressentindo-se dessa erosão, o edifício jurídico-normativo tem procurado assimilar no seu seio as modulações em que, a esse nível, os desenvolvimentos hermenêuticos se traduziram, trazendo à superfície irrecusáveis tensões em cuja dinâmica o Direito se tem vindo a reconstituir. A fragmentação e fluidez da condição pós-moderna projectam-se assim na centralidade dos processos de construção jurídico-hermenêutica. Palavras chave: Hermenêutica. Pós-modernidade. Método.
Quando, em 1805, Jacques de Maleville publicou um dos primeiros comentários ao Código Civil napoleónico, promulgado no ano anterior, diz-se que o próprio Napoleão terá reagido exclamando: ‘mon code est perdu!2’. O tema sobre o qual nos propomos reflectir prende-se de diversas maneiras com este 1
Licenciada em Direito pela Universidade de Coimbra; Mestre e Doutora em Direito pela Universidade do Minho; Áreas de interesse: Metodologia, Filosofia e História do Direito; Direito e Literatura; Hermenêutica Jurídica.
2 Jacques de Maleville foi um dos juristas que integrou a comissão nomeada por Napoleão para, sob a direcção de Jean-Jacques-Régis de Cambacérès, proceder à elaboração do Código Civil francês. Os outros membros eram Jean-Étienne Portalis, Félix Julien e Jean Bigot de Préamenon. Entre 1804 (data da promulgação do Code) e 1806, Maleville foi dando à estampa os 4 volumes de que se compôs L’Analyse raisonée de la discussion du Code Civil, obra que motivou o desabafo do próprio Napoleão, e que pretenderia disponibilizar ao jurista prático aquelas que haveriam sido as intenções do legislador (e que constituíam elemento fundamental para determinar o sentido da lei).
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1 INTRODUÇÃO
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imperial desabafo, que encontra igualmente paralelo nas conhecidas recomendações transmitidas por S. Francisco de Assis no seu Testamento (1226) aos monges da Ordem por si fundada, segundo as quais estes se deveriam limitar a cumprir as regulae da Ordem sem as comentar ou interpretar3. Estes, com efeito, dois impressivos exemplos do fulgor e influência daquela que Vittorio Frosini apelidou de interpretação negativa, e cuja expressão mais emblemática associamos ao brocardo latino in claris non fit interpretatio. Uma regra que diríamos de ouro no enquadramento da chamada doutrina do sens clair, ou doutrina do sentido claro, desenvolvida precisamente no contexto do direito francês pós-revolucionário. Exemplos retirados daquelas que são, talvez, como diz Garcia Amado, as duas disciplinas mais condenadas à interpretação: o direito e a teologia. Uma vez aceite o repto de nos debruçarmos sobre as alternativas pós-modernas à interpretação negativa, mister se torna começar por esclarecer em que consiste esta e, sobretudo, sondar os fundamentais pressupostos dogmáticos, conceptuais e ideológicos que lhe subjazem.
2 INTERPRETAÇÃO NEGATIVA: IN CLARIS NON FIT INTERPRETATIO
Falamos em interpretação negativa para, no âmbito limitado da interpretação das normas de direito positivo, identificar o princípio de acordo com o qual a interpretação deve ser afastada sempre que nos encontremos face a normas cujo sentido é evidente, claro e unívoco. Nessas situações, propugna-se a aplicação pura e simples da disposição normativa cujo sentido “textual” surge como inequívoco e natural. Apesar da frequência com que é ainda encontrado quer na actual doutrina quer na actual jurisprudência, quase como se de uma verdadeira regra interpretativa se tratasse, a verdade é que a validade do princípio em causa, e da própria cultura e mentalidade que lhe subjaz, há muito se mostra profundamente desadequada da nossa realidade jurídica e judiciária. O alcance com que ao longo da história foi sendo entendido revela a sua natureza ideológica e política, mais do que propriamente jurídica, sendo patentes as desvirtuações que sofreu para permitir alcançar resultados que claramente excediam os de mera técnica aplicativa das normas de direito positivo. Embora recorrentemente referido como característico princípio da interpretatio iuris medieval, é inegavelmente com os alvores da Modernidade jurídica que
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“Ordeno com toda a firmeza a todos os meus irmãos, clérigos ou laicos, que, por obediência, não acrescentem explicações à Regra ou a estas palavras, afirmando que devem entender-se deste modo. Pelo contrário, com simplicidade e sem comentários, deveis compreendê-las e observá-las santamente, até ao fim”. Cfr. Vittorio FROSINI, Teoría de la interpretación jurídica, Santa Fe de Bogotá, Editorial Temis, 1991, p. 104. A aprovação papal das sucessivas versões da regra franciscana, como sabemos, esteve envolta em larga controvérsia, e deu azo a consideráveis contendas de natureza jurídica e teológica.
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2.1 Pressupostos histórico-conceituais, ideológicos e dogmáticos
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4 Período em que, caracteristicamente, o Direito se vê consubstanciado no império da lei, com a confusão subsequente entre interpretatio iuris e interpretatio legis. 5 Defendendo a ideia segundo a qual o elemento volitivo, o “hunch”da sentença, vinha em primeiro lugar, Radbruch entendia que “o erro de acreditar que a regra singular dormia já no texto, «como a estátua num bloco de mármore», só se (poderia) aceitar como um saudável travão à arbitrariedade judicial”. Apud Josef ESSER, Grundsatz und Norm in der RichterlichenFortbildung des Privatrechts, 1956, trad. esp. Eduardo ValentíFiol, Princípio y Norma en la elaboración jurisprudencial del Derecho Privado, Barcelona, Bosch, 1961, p. 327. A inspiração para a imagem teria sido encontrada, para Fernando José Bronze, num poema de Miguel Ângelo: “Não tem o melhor artista alguma ideia / Que o mármore só em si não circunscreva”. Cfr. Fernando José BRONZE, Lições de Introdução ao Direito, Coimbra, Coimbra Editora, 2002, p. 821-822, n. 29. 6
Neste sentido, veja-se, entre outros, Giuseppe ZACCARIA, L’arte dell’interpretazione. Saggi sull’ermeneutica giuridica contemporanea, Padova, CEDAM, 1990, p. 47; Luis PRIETO SANCHÍS, Apuntes de teoría del Derecho, Madrid, Editorial Trotta, 2005, p. 235.
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vem a encontrar um eco nunca antes alcançado4. Mais concretamente, o seu êxito vem-se a consagrar pela mão das elaborações doutrinais levadas a cabo pelos exegetas do código civil napoleónico, e a estender-se a toda a metodologia jurídica implicada pelo movimento codificatório oitocentista. A ideia é a da perfeição dos códigos, que em toda a sua completude lógica e no seio de um rigoroso entendimento do princípio da separação de poderes, prometem a tão almejada segurança e certeza jurídicas. Valores como os da imparcialidade e da igualdade jurídicas serão alcançados com a identificação do direito com aquele que é o produto de um legislador racional, clarividente, que actua em nome de todos no seio de um estado de assembleia representativa. Ao judicial não caberá senão verter na prática os comandos textual e objectivamente consagrados por aquele, numa lógica de perfeita autonomia das funções que a cada figura competem: ao legislador a criação do direito, aos magistrados a sua aplicação. É neste contexto que encontra razão de ser o princípio em causa, do in claris non fit interpretatio. O objectivo último é, naturalmente, o de constituir um fundamental travão a ímpetos discricionários por parte do julgador / aplicador do direito. E de assim preservar as pretensas neutralidade e assepsia legislativas. Ao mesmo tempo que a actividade interpretativa se vê assim identificada com uma tarefa de mero reconhecimento e intelecção dos sentidos previamente oferecidos no texto da disposição normativa (qual estátua no interior do bloco de mármore5), vai-se ainda mais longe no intuito de preservar a vontade do legislador prescrevendo-se a não interpretação das mesmas disposições nas situações (tendencialmente normais) em que da literalidade do preceito o sentido do mesmo seja clara e inequivocamente inferível. Naquelas situações em que, por deficiência ou obscuridade da expressão linguística, esse sentido não for imediatamente apreendido - situações anómalas, portanto -, prescreve-se então o cumprimento de um conjunto de pautas hermenêuticas, legislativamente consagradas de modo preciso, que permitirão ao intérprete alcançar o espírito da disposição subjacente à intenção do legislador, sem ferir a objectividade do processo de atribuição de sentidos. De acordo com alguns autores, a intenção seria a de preservar a todo o custo a interpretação dita declarativa, em que se manifesta a coincidência entre o sentido literal e o espírito imanente à norma6. O travão dirigir-se-ia, aí, a eventuais correcções extensivas e restritivas por parte do intérprete. Na medida em que a interpretação declarativa mais não faria senão declarar, repetir, reproduzir, o texto da disposição a interpretar, ela suporia uma opção pela não interpre-
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tação, em sentido, digamos, crítico7. Quer-nos parecer, no entanto, que o alcance do princípio se pretendia mais abrangente, levando o aplicador a abdicar - pelo menos formalmente - das suas competências de verdadeiro intérprete. A aplicação seria, digamos, directa e automática, defendendo-se, no fundo, a possibilidade (e adequação) de uma leitura das disposições sem um concomitante processo de interpretação (ainda que meramente declarativa). Não terá sido exactamente este o sentido com que o princípio foi assimilado pelo pensamento jurídico medieval, que, pretendendo pôr freio às capacidades inventivas dos comentadores, o entendeu sobretudo enquanto critério de hierarquia normativa através do qual se expressava a prevalência dos clássicos e autoritários textos de direito romano e canónico8. Não deixa de ser curioso que não se tenha conseguido até hoje determinar a origem do aforismo latino em questão. Embora pareça reconduzir-se ao Digesto, onde essa mesma ideia vai estando presente, ele não se encontra literalmente no seu texto, sendo que as referências feitas ao princípio surgem em matéria de testamento. Esse, aliás, parece ter sido o domínio por excelência em que os romanos recorreram à limitação da interpretação em caso de clareza absoluta da disposição literal: o das declarações negociais9. Estendê-la à interpretação da lei parece ter sido deformação hábil desse mecanismo ao serviço do processo de endeusamento do legislador e do seu exclusivo enquanto criador de Direito10.
3 DECADÊNCIA DO PRINCÍPIO E DA MENTALIDADE SUBJACENTE A decadência do princípio in claris non fit interpretatio, ou da negação da interpretação em função da clareza literal da disposição normativa, começa a fazer-se sentir já no final do século XIX, com a ascensão de sucessivos movimentos e correntes anti-formalistas (a própria Escola da Exegese se mostra em declínio, com François Gény a publicar, em 1899, o seu monumental Méthode d’interprétation et sources en droit privé positif ), que têm como detonador o crescente abismo que se vai fazendo sentir entre teoria e praxis. Movimentos que se vêm a consolidar, sobretudo, a partir da segunda metade do século XIX.
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Como nos mostra PRIETO SANCHÍS, ”in claris non fit interpretatio supunha postular uma interpretação declarativa face a qualquer tentação de correcção extensiva ou restritiva. No fundo, continuava latente a ideia ilustrada de que a melhor lei é a que não precisa de interpretação, ou de que a interpretação equivale à corrupção da lei”. Mais à frente, no entanto, não deixa o autor de sublinhar aquilo que temos também bem presente para nós: “na verdade, esta classificação repousa sobre um pressuposto que muitos não podem aceitar, e que é o de que as disposições têm sempre um significado objectivo e independente da própria interpretação, significado que umas vezes seria respeitado (interpretação literal), mas que noutras poderia ser «ampliado» ou «restringido»”. Cfr. ibidem, pp. 228 e 235. Ver ainda o ensaio de Laura MIRAUT MARTÍN, “Reflexiones en torno a la doctrina del sentido claro de los textos jurídicos”, in Anuario de Filosofia del derecho, 2002, disponível em https://www.boe.es/publicaciones/anuarios_derecho/anuario.php?id=F_2002_ANUARIO_DE_FILOSOF%C3%8DA_DEL_DERECHO, consultado em 31.01.2016. Cfr. v.g. Luis PRIETO SANCHÍS, op. cit., pp. 227-228. Os juristas medievais ter-se-iam inspirado, no entender de Castanheira Neves, numa proposição de Paulus - cum in verbis nulla ambiguitas est, non debet admiti voluntatis quaestio (D.32, 25, 1) – que, referindo-se a matéria testamentária, estaria longe de com ela exprimir “a verdadeira atitude do pensamento jurídico romano sobre o ponto em causa”. Cfr. António CASTANHEIRA NEVES, O actual problema metodológico da interpretação jurídica – I, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, p. 14, n.13.
10 Neste sentido, ver também o interessante estudo de M. Aquilina SÁNCHEZ RUBIO,” La interpretación en el derecho: in claris non fit interpretatio”, Anuario de la Facultad de Derecho, vol. XXII, 2004, 417-435, passim.
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3.1 Modernidade e Pós-modernidade
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11 Cfr. Ernest GELLNER, Pós-Modernidade, razão e religião, Lisboa, Instituto Piaget, 1994, p. 43. 12 “É quase impossível fornecer uma definição ou uma descrição coerentes do pós-modernismo”, diz a dada altura o autor. Cfr. ibidem, p. 39 e 48. 13
Cfr. Jean-François LYOTARD, The Postmodern Condition: a report on knowledge, Manchester, Manchester University Press, 1997, trad. do francês La condition postmoderne: rapports sur le savoir, 1979; Perry Anderson, As origens da pós-modernidade, Lisboa, Edições 70, 2005, p. 39.
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Esta, aliás, uma das notas características da chamada pós-modernidade jurídica, que, se por algo se identifica, é precisamente pela reacção aos formalismos do modelo legalista e estadual que caracterizou as ordens jurídicas, um pouco por todo o continente europeu, no rescaldo da Revolução Francesa. De sublinhar que, quando falamos em modernidade jurídica nos remetemos invariavelmente aos desenvolvimentos a que assistiu o Direito no período de oitocentos, com a fulgurante ascensão da lei, e da lei codificada. Um período em que o Direito claramente se verteu em formulações lógicas e sistemáticas, procurando chamar a si os critérios e modelos racionais que dotavam de autoridade e legitimidade as ciências naturais. Pela mão de um nítido controlo estadual, manifestação da imperante vontade popular, ao Direito caberia assegurar valores fundamentais da vida do homem em sociedade, como a igualdade e a liberdade. No seio de um discurso unificador e universalizante, e à imagem da própria ciência oitocentista, o Direito assumir-se-ia como verdade, determinação e objectividade. Se as porosidades deste modelo, e do paradigma que alimentou, se começaram a fazer sentir já em finais do século XIX, elas tornaram-se mais flagrantes a partir de meados do século XX. No específico domínio jurídico, o descrédito da lei enquanto exclusiva matriz de juridicidade, dotada de autonomia, exaustividade e completude, implicou a recuperação de modos de pensar antes abafados pelos consensos racionalistas da modernidade. A razão da ciência moderna - jurídica incluída - deixa de ser considerada como fonte de verdades inquestionáveis, passando a pretensão universalista da metodologia científica, a partir de certa altura, a suscitar uma forte reserva. Numa perspectiva mais ampla, a crença no progresso científico e civilizacional, a linearidade histórica no sentido evolutivo, mediatizada pela racionalização e categorização da vida pública e artística, vão perdendo credibilidade enquanto projecto/manifestação vital da modernidade. O positivismo oitocentista vê-se questionado em toda a linha, sublinhando-se a impossibilidade de dissociar os factos daquele que os observa, bem como da cultura que produziu as categorias em função das quais os factos são descritos11. E é assim que a chamada pós-modernidade se vai instalando, configurando, nas palavras de Ernst Gellner, um movimento contemporâneo poderoso e muito na moda. “Para além disso”, continua Gellner, “ninguém sabe ao certo do que se trata”12. Se desde o início do século XX, em domínios mais ou menos circunscritos, a expressão vai tendo algum curso, é maioritariamente a partir da década de 70, pela mão de Jean-François Lyotard, que “a condição pós-moderna” emerge como reflexo de uma “mudança geral da circunstância humana”13. Se representa verdadeiramente, como pretendem alguns, uma superação da modernidade e dos seus padrões
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epistemológicos, é contestável14, como controversas são as tentativas de com ela identificar algum ou alguns projectos ou discursos mais concretos ou substanciais. Para Lyotard, a pós-modernidade representaria a perda de credibilidade das grandes narrativas que haviam sustentado a sociedade, as suas formas de vida e de conhecimento, ao longo do século XIX. O que parece ser característico daquilo que habitualmente se designa de pós-moderno é a desconfiança em relação a qualquer discurso que se apresente como totalizante; é o desconforto face a um discurso racional-científico que se pretenda garantia de compreensão e explicação categórica dos mundos interior e exterior. Numa perspectiva pós-moderna, as realidades física e social têm-se por fragmentadas, fluidas e multiformes, justificando a preferência de Zygmunt Bauman pela expressão (crítica) modernidade líquida15. Justificando igualmente o entendimento de Gellner, segundo o qual o conjunto de ideias que compõem a pós-modernidade, apesar de demasiado etéreo e volátil para ser apreendido e absorvido de forma exacta, reflecte um denominador comum: a relatividade. “O pós-modernismo parece ser claramente favorável ao relativismo, no sentido em que é propenso à transparência e avesso à ideia de uma verdade única, exclusiva, objectiva, externa ou transcendente. A verdade é evasiva, polimorfa, íntima, subjectiva… e algo mais, talvez. Linear é que não”.16 Se o juspositivismo foi a face da modernidade jurídica, uma noção de direito pós-moderno implicará um afastamento relativamente àquelas notas distintivas que antes referimos. Os métodos lógico-sistemáticos de construção e aplicação do direito começam a ser insistentemente contestados sobretudo a partir do final da Segunda Grande Guerra, com a concomitante ascensão / recuperação de movimentos anti-formalistas que, não deixando de atender ao valor da lei e do seu enquadramento dogmático, reconhecem as indubitáveis virtualidades transformativas e criadoras que para a realidade jurídica no seu todo representa o contexto pragmático da concretização judiciária.
Subjacente a estes movimentos está um lento mas inexorável processo de erosão da lei nos moldes em que a concebeu a mentalidade e a cultura de oitocentos. A crise da lei é denunciada pelo desenvolvimento manifesto das correntes anti-formalistas, na medida em que nestas vão sublinhadas as fragilidades da lei enquanto exclusiva potência criadora de juridicidade e o fracasso histórico dos códigos enquanto corpos normativos dotados de exaustividade e de eternidade. A filosofia das leis uniformes, precisas, gerais e abstractas, que alcançara o seu
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À pergunta “o que é, afinal, o pós-moderno?”, o próprio Lyotard responde bastante elipticamente dizendo que “é indubitavelmente uma parte do moderno”. Cfr. Jean-François LYOTARD, “Answering the question: what is postmodernism?” in op.cit., pp. 71-81, p. 79.
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Para alguns o grande teórico da pós-modernidade, Bauman tem apontado o dedo às fragilidades éticas e morais de uma contemporaneidade entregue à lógica do imediatismo, do consumismo e da artificialidade. “Depois de terem desaparecido ou passado de moda os princípios universais e as verdades absolutas, pouco importa doravante que princípios pessoais e que verdades privadas o indivíduo adopta (tanto mais que o seu compromisso nunca é profundo) e segue (mas nunca com excessivo zelo ou dedicação, disso podemos estar certos)”. Cfr. Zygmunt BAUMAN, A vida fragmentada. Ensaios sobre a moral pós-moderna, Lisboa, Relógio d’Água, 2007, p. 18; Liquid modernity, Cambridge, Polity Press, 2004.
16 Cfr. Ernest GELLNER, op. cit., p. 41.
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3.2 Correntes anti-formalistas e erosão da lei e do código modernos
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auge com o movimento codificador, com a sua vocação de regular as relações sociais de um modo unitário e conclusivo, onde nada pudesse ser deixado ao arbítrio do intérprete, é agora abertamente contestada17. Criação e aplicação do direito, que surgiam então como operações autónomas, perfeitamente racionais, constituindo o código um monumento de geometria social e jurídica e construindo-se a interpretação à imagem desse mesmo código, enquanto silogismo perfeito e subsuntivo, são igualmente sujeitas a revisão. Consequência daquele modelo era a vigência de um direito profundamente alheado do dinamismo social, que conscientemente se recusava a servir a vida na medida em que prescrevia a submissão desta às suas próprias pautas formais e logicistas. A ilusão da segurança, da certeza e da igualdade era mantida mediante o sacrifício recorrente da justeza normativa e da adequação material das soluções encontradas ao mérito das situações em que esse mesmo direito era chamado a verter-se. E isto acontecia, indubitavelmente, graças à igualmente ilusória doutrina do sentido claro da literalidade das disposições normativas.
A partir do momento em que se reconhece o absurdo de entender os sentidos dessas disposições como previamente determinados a uma sua concreta aplicação – naquilo a que Alf Ross designa de dogma do ordenamente jurídico pré-judicial18 – somos forçados a reconfigurar uma série de concepções jurídicas tidas por tradicionais; concepções que vão desde a função do jurista até às noções de segurança e certeza do direito. Não é apenas a possibilidade de dar como claros e inequívocos os sentidos da disposição normativa que está em causa. É, sobretudo, a impossibilidade de isso suceder sem a forçosa mediação de processos interpretativos. A norma não transporta em si a absoluta determinação do seu próprio sentido, como pretendia o pensamento juspositivista de oitocentos, antes resultando este, sempre e necessariamente, de uma sua reconstituição criadora por parte do intérprete. Uma reconstituição a acontecer num determinante e determinativo contexto pragmático. A compreensão dos enunciados jurídicos não é nunca uma tarefa meramente receptiva, passiva ou mecânica, antes requerendo uma especial atitude hermenêutica, aberta à sociedade e à cultura. E isto acontece assim por diferentes razões. As transformações ocorridas na viragem do século XIX para o século XX a propósito do fenómeno linguístico, vêm não só expor a natureza necessariamente contextual de toda a linguagem, que nessa medida vê os sentidos que veicula condicionados ao respectivo contexto de utilização, como vêm igualmente mostrar a natureza linguística de todo o acto de compreensão. O meaning is use wittgensteiniano e os jogos de linguagem em que a determinação dos sentidos literais se vêem mergulhados a partir deste momento de viragem linguística e interpretativa,
17 Cfr. Luis PRIETO SANCHÍS, op.cit., pp. 185 e ss.. 18
Cfr. Alf ROSS, Teoría de las fuentes del derecho. Una contribución a la teoría del derecho positivo sobre la base de investigaciones histórico-dogmáticas, trad. de José Luis Muñoz de Baena Simón, Aurelio de Prada García y Páblo López Pietsch, Madrid, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 1999, pp. 102 e 103.
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3.3 Viragem linguística e interpretativa
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19 Referindo-se ao que denomina mito da “interpretação negativa” como o espelhismo de que é possível prescindir do trabalho do intérprete, Vittorio Frosini considera a expressão in claris non fit interpretatio não só enganosa como mesmo hipócrita, uma vez que “essa atribuição da «clareza» constitui, na realidade, um postulado interpretativo, sobre o qual se constrói a consequência da lei. A verdadeira clareza, pelo contrário, é a que resulta da interpretação, nunca a que a precede”. Cfr. Vittorio FROSINI, op. cit., p. 2. 20
Sobre o tema se debruçou largamente António CASTANHEIRA NEVES, op.cit., passim. No mesmo sentido se pronuncia Prieto Sanchís, quando sublinha que “decidir que um texto é claro ou obscuro é justamente uma conclusão que só se alcança depois e não antes de interpretar o texto, e esta conclusão também não será universalmente partilhada por todos os intérpretes”. Cfr. Antonio PRIETO SANCHÍS, op.cit., p. 229.
21 Cfr. Joana AGUIAR E SILVA, Para uma teoria hermenêutica da Justiça. Repercussões jusliterárias no eixo problemático das fontes e da interpretação jurídicas, Coimbra, Almedina, 2011, max. cap. IV.3
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obrigam necessariamente a adoptar uma outra concepção do fenómeno da interpretação jurídica. Obrigam a ver o aplicador do direito, enquanto fundamental intérprete de uma ordem jurídica complexa integrada numa complexa ordem cultural e dela dependente, mais como agente interventivo e verdadeiramente criador de sentidos do que como mero espelho de um direito pressuposto em todas as suas determinações19. Não se trata de recusar à interpretação uma dimensão cognitiva, que ela indubitavelmente preserva. Até na medida em que é no enquadramento desse direito pressuposto que ela encontra o fundamento da sua legitimidade e da sua autoridade. Mas patente se torna, agora, a insuficiência de toda a solução jurídica baseada exclusivamente na lei. Se se parte da errónea e ilusa ideia de que o juiz sempre aplica um direito já existente, com os seus significados pré-determinados ao momento de verdadeira aplicação do mesmo - porque essa a sua vocação, eminentemente prático-normativa, - não é possível entender adequadamente a função jurisdicional. Não é possível ao aplicador-intérprete das normas jurídicas evitar a interpretação a partir do momento em que entende estar em presença de uma norma de sentido claro, precisamente porque a fronteira entre a clareza ou obscuridade da disposição normativa constitui já de si um resultado interpretativo. A literalidade do texto não pode ser o elemento determinante da sua clareza, que depende inequivocamente das circunstâncias em que é empregue esse texto20. Já nem se trata de imputar a dificuldade em traçar essa linha à natural indeterminação ou vagueza semântica da linguagem comum. Aquela que é maioritariamente empregue pelo legislador quando consagra os textos legislativos que, nessa medida, vão partilhar dessa mesma plasticidade significativa. Ou à constatação da textura aberta da linguagem, vincada por Waismann em 1945 e desde então assimilada por largas franjas da doutrina e do pensamento jusfilosófico21. Aquilo que, para além disso, se afirma, é a própria impossibilidade de reconhecer o estatuto de clareza a uma qualquer disposição sem a mediação da operação hermenêutica. E isto porque não é possível considerar em abstracto as situações de clareza ou dúvida de um texto, na medida em que tal texto será claro ou duvidoso nas suas determinações semânticas – nos sentidos que lhe deverão ser imputados e no âmbito de aplicação que se lhe reconhece – segundo os concretos contextos do seu uso. A natureza convencional da linguagem e a necessidade de adequar o sentido do enunciado jurídico às diferentes situações que possam cair dentro do seu âmbito de regulamentação tornam indefensável a configuração da interpretação jurídica como uma actividade meramente cognoscitiva. Não existe uma coisa como o significado próprio das palavras, que têm apenas o signi-
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ficado que lhes vem atribuído por quem as usa e por quem as interpreta, em contextos específicos de exigência. Nessa medida, não só o significado e as decisões interpretativas são sempre, em certa medida, variáveis, como inevitável será admitir que a actividade do jurista-intérprete é sempre simultaneamente normativa e criativa. Para além de incontornável em qualquer momento de aplicação jurídica.
Isto que vimos de dizer, reconheçamo-lo, não retira um certo acerto à doutrina subjacente ao princípio in claris non fit interpretatio. Os problemas interpretativos mais relevantes surgem precisamente nos casos duvidosos ou controvertidos. Simplesmente estes não se determinam a partir dos enunciados legislativos em si mesmos considerados, senão a partir dos contextos concretos em que estes vêm a ser utilizados, ou nos chamados contextos de decisão (ou de enunciação). Uma mesma disposição suscita dúvidas numas ocasiões e não noutras. O que é ponto assente é que a atribuição de sentidos à disposição e a delimitação do respectivo âmbito de aplicação comportam sempre uma interpretação. E que, em algumas situações, essa seja fácil de adoptar não significa que deixe de ser uma interpretação. Isto mesmo justifica a afirmação de um jurista como Enrico Pattaro que, na linha aliás das contemporâneas teorias literárias ditas da recepção, e dos trabalhos de Iser, Jauss, ou, no concreto domínio jurídico, Stanley Fish, mostra de que forma o significado dos termos que compõem as expressões linguísticas, não estando completamente ínsito nas palavras, se mostra dependente dos processos de aprendizagem através dos quais passou o receptor, o leitor, o intérprete. Um processo em que desempenham um papel fundamental os usos linguísticos consolidados, verdadeiro instrumento da comunicação linguística. A tendência para considerar que as palavras têm um significado imanente, e assim potencialmente claro, advém do facto de no seio de cada comunidade linguística, que adoptou processos de aprendizagem semelhantes, palavras iguais suscitarem imagens ou noções similares22. É este processo de aprendizagem comum a todos os membros de uma determinada colectividade social que cria essa falsa imagem segundo a qual determinados enunciados têm significados óbvios. Muito emblematicamente, uma das obras que Fish dedica à questão tem como título Doing what comes naturally. Mas isso não nos pode desviar daquela que é a realidade, e que é a de que a atribuição de sentidos a um qualquer enunciado linguístico, normas jurídicas incluídas, sempre resulta da mediação de mais ou menos complexos e conscientes processos interpretativos. É esta constatação que, de certo modo, sustenta parte das críticas que tivemos já oportunidade de partilhar quanto à sobejamente conhecida distinção consagrada por Hart entre casos fáceis e casos difíceis. Apenas nestes últimos, não previstos pela regra ou caindo sob a zona de penumbra e incerteza do seu âmbito de aplicação, estaria o poder judicial legitimado a usar 22
Cfr. Enrico PATTARO, Introduzione al corso di filosofia del diritto, vol.II, apud Laura MIRAUT MARTÍN, op. cit., pp. 394 e 395. Veja-se ainda, a este respeito, o magnífico texto de Hans-Georg GADAMER, “Hombre y lenguaje”, in Wahrheit und Methode, trad.esp. Ana Agud Aparício y Rafael de Agapito, Verdad y Método, Salamanca, Sígueme, 1977, II vol., pp. 145-152.
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3.4 Méritos actuais da doutrina do sentido claro
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de discricionariedade. O que Hart parece esquecer, no entender de autores como Castanheira Neves, ou como Giuseppe Zaccaria, é que o facto de traçar fronteiras entre a facilidade ou dificuldade de um caso, ou entre a clareza ou obscuridade de um texto normativo que se visa aplicar, ainda que podendo parecer uma operação mecânica e imediata, é, com efeito, o resultado de toda uma série de decisões interpretativas23.
Este reconhecimento vem igualmente a projectar-se numa metamorfose do próprio conceito de norma jurídica e dos conteúdos normativos. Se a teoria tradicional da interpretação jurídica se atribuía a função de descoberta ou esclarecimento de sentidos das normas jurídicas, hoje muitos são os que reclamam a consideração da norma não como dado que preceda a interpretação mas antes como resultado ou produto da mesma. Destacada vai assim a competência do intérprete enquanto aquele que verdadeiramente determina o conteúdo normativo das disposições jurídicas, e destacada vai também a interpretação como operação dirigida a estabelecer algo que antes de realizado o processo interpretativo não existia, ou existia em mero estado potencial: a norma jurídica. Desta forma, esta não se confunde com o documento normativo, antes constituindo o resultado ao qual se chega através da realização da interpretação daquele documento. De acrescentar que a este resultado se chega ultrapassando claramente os conteúdos da mensagem legislativa, que se vê reanimada e iluminada no contacto com o seu contexto de aplicação. Com efeito, é no contacto com a vida que pretende servir e regular que a disposição legal ganha verdadeira densidade e concretude normativa. A norma que vai permitir resolver cada situação é fruto de um processo hermenêutico que integra elementos não apenas da disposição legal interpretada como das circunstâncias factuais a que com a mesma se visa atender. É isto que nos permite afirmar que quando falamos em interpretação no âmbito da experiência jurídica nos estamos a referir não apenas à interpretação em sentido estrito de normas e material jurídico, mas também à concretização aplicativa do direito, que compreende operações como sejam a qualificação jurídica de casos concretos e a formulação de preceitos individuais (normas de decisão) para a resolução de controvérsias materiais. A escolha das notas características que se consideram relevantes em cada situação de facto vai influir na interpretação que fazemos dos preceitos normativos, do mesmo modo que esta se vai repercutir sobre aquela, num processo de constante vaivém de que resultará a determinação dos sentidos normativos.
23
“Também nos casos ditos fáceis, ou seja, quando a inclusão de uma determinada fattispecie no campo aplicativo de uma certa norma parece relativamente indiscutível, o pressuposto é sempre representado pela interpretação e pela decisão relativa ao significado mais apropriado a atribuir ao texto. Quando se defende que in claris non fit interpretatio confunde-se o ponto de chegada com o ponto de partida: longe de ser pré-condição garantida, a clareza é o resultado de um procedimento intelectual, que é precisamente o procedimento interpretativo…. “. Cfr. Francesco VIOLA / Giuseppe ZACCARIA, Diritto e interpretazione. Lineamenti di teoria ermeneutica del diritto, Roma, Editori Laterza, 2004, 5.ª ed., pp. 116-117; 177 e ss..; António CASTANHEIRA NEVES, op.cit., pp. 21-22; Joana AGUIAR E SILVA, op.cit., pp. 303-314.
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3. 5 Metamorfose do conceito de norma jurídica
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4 HERMENÊUTICA E HERMENÊUTICA JURÍDICA
É precisamente neste esforço de redefinição da relação entre teoria e prática do direito, através da acentuação do momento da aplicação no processo interpretativo, que a hermenêutica jurídica encontra, ao longo do século XX e no que vai de século XXI, o seu carácter específico. Colhendo frutos sobretudo da hermenêutica filosófica de Gadamer, mais do que da hermenêutica historicista de Emilio Betti (mas não desprezando os seus inegáveis contributos), o programa de trabalho da teoria hermenêutica do direito vem precisamente a focar-se na delimitação ou reorganização da concretização dos sentidos normativos da lei através da sua referência ao caso concreto. Reconhecendo que a determinação do direito é sempre e necessariamente também um acto criativo do sujeito intérprete, e não apenas da vontade legislativa, torna-se agora inaceitável uma teoria que mascare, remova ou relegue para segundo plano esse elemento constitutivo da realidade jurídica24. Nesta medida, a hermenêutica jurídica assume verdadeiramente a tarefa de operar a mediação entre a natureza abstracta e universalizante da norma e a singularidade das circunstâncias factuais, reconhecendo o abismo existente entre estas duas grandezas e o absurdo do modelo clássico da subsunção silogística. É no momento da aplicação que estas tensões encontram pacificação, precisamente pela via hermenêutica. É a conexão entre a interpretação dos enunciados normativos e as circunstâncias de facto que abre a lei a significados normativos de uma incessante vitalidade e renovação. Enquanto aplicação – applicatio –, o discurso da hermenêutica jurídica opera a realização do direito no caso singular, caracterizando-se estruturalmente como contínua mediação da universalidade da norma no caso concreto, entre a racionalidade técnica e abstracta do comando legal e a racionalidade prática convocada pelas exigências da materialidade concreta. Entre a tradição dogmática do sistema e a consciência social impressa no problema. E isto num processo em que nenhuma das polaridades se anula, antes encontrando momentos de equilíbrio que representam a própria e ininterrupta positivação de um direito vivo e em constante renovação25. Partindo do fundamental contributo que para a determinação de sentidos de um qualquer objecto linguístico - para a sua compreensão - representa o sujeito dessa determinação – o intérprete, aquele que compreende -, a doutrina hermenêutica assimilada pela experiência jurídica vem a revelar toda a sua dimensão ética e responsabilizante. Pois se, por um lado, toda a hermenêutica parte de um impulso para compreender, e para compreender o que vem do outro,
24 Cfr. Giuseppe ZACCARIA, L’arte dell’interpretazione. Saggi sull’ermeneutica giuridica contemporanea,p. 58. 25 Para Gadamer, o potencial constitutivo que encerra a noção de applicatio, enquanto aditamento de sentido, encontra na hermenêutica jurídica um lugar privilegiado. Cfr. Hans-Georg GADAMER,op. cit., I vol., pp. 378-414. Sobre a ideia de a partir da análise hermenêutica instituir uma diferente noção de positividade jurídica, ver o nosso Para uma teoria hermenêutica da justiça, max. pp. 345 e ss., e a bibliografia aí referida. Fundamental quanto à questão é a obra já citada de Giuseppe Zaccaria, L’arte dell’interpretazione, max. pp. 52-58. Cfr., igualmente, Arthur KAUFMANN, Filosofia do Direito, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 4.ª ed., 2010, pp. 67-70.
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4.1 Mediação entre tensões existenciais da experiência jurídica
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numa fundamental abertura e receptividade a esse outro, ela assume não apenas a complexidade desse acto de compreensão, marcado por uma complexa rede de contextualidade e consequente incerteza, como reconhece inequivocamente a construção de sentidos resultante como função da natureza situada de quem compreende. De quem interpreta26.
Assim concebido, o acto de compreensão não se compagina nunca com uma mera recepção passiva do objecto a interpretar, e questiona inclusivamente o valor objectivo de regras que pretendam delimitar o próprio iter interpretativo. Isto vem, naturalmente, contender com toda a tradição interpretativa do direito, consagrada pelos estados legisladores de oitocentos. Não é apenas a possibilidade de considerar como objectivos e claros os textos legais a interpretar a que se põe em causa. É o próprio relevo das pautas metodológicas que o legislador da modernidade tão diligentemente procurou consagrar que passa a ser encarado com reservas, lançando no espírito dos mais cépticos a semente da desconfiança pelo receio de novamente se cair em inadmissíveis arbitrariedades ou na irracionalidade da experiência prática do direito. Dissemos antes que a mentalidade jurídica dominante de oitocentos acolheu de braços abertos a doutrina da interpretação negativa, numa clara manifestação de apreço pela superioridade do legislador enquanto representante da vontade colectiva, assim corporizada numa racionalidade positiva incontestável e auto-suficiente. Nos casos em que a literalidade da disposição legislativa não bastasse para alcançar a clareza do seu sentido, haveria ainda assim mecanismos legislativamente cogentes que impediriam a arbitrariedade judicial, conduzindo o intérprete à determinação do mais exacto e correcto sentido imanente à norma. É assim que ao juiz competirá interpretar a norma de acordo com uns critérios hermenêuticos canonizados já em princípios do século XIX, e para cuja doutrina contribuiu decisivamente a obra de Friedrich Karl von Savigny27. Ora, para a hermenêutica, e de sobremaneira para a hermenêutica de raiz gadameriana, que bebe indubitavelmente dos trabalhos de Heidegger sobre o círculo hermenêutico, uma noção que se configura central a todo o processo de compreensão/interpretação, é a de pré-compreensão. É esta que condiciona todo o acto compreensivo, que o antecipa, que determina os seus resultados concretos. Identifica-se com um conhecimento pré-predicativo que vai referido à irrecusável situacionalidade do acto compreensivo e à radical pertença do intérprete ao ‘ser’ da situação histórico-social28. Com esta ideia visa Gadamer delimitar os próprios sentidos a alcançar no curso do processo hermenêutico, subtraindo-os aos inóspitos domínios da irracionali-
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Cfr. Francesco D’AGOSTINO, “Interpretación y hermenêutica”, in Persona y derecho, n.º 35, 1996, 39-56, pp. 45 e ss..
27 Desde logo a partir dos trabalhos consagrados em System des heutigen Römischen Rechts, v. I, 1840, trad. do alemão por M. Ch. Guenoux e vertido em esp. por Jacinto Mesía e Manuel Poley, Sistema del derecho romano actual, tomo I, Madrid, F. Góngora y Compañía Editores, 1878, pp. 149 e ss.. 28
A noção de pré-compreensão é por Gadamer reconduzida a Bultmann, quem a haveria adoptado para referir a relação vital do intérprete com o texto, bem como a sua relação anterior com o tema do mesmo, que seriam ambas pressuposto de todo o acto de compreensão. Cfr. Hans-Georg GADAMER, op. cit., p. 403.
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4.2 Hermenêutica e dogmática metodológica
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Cfr. Giuseppe ZACCARIA, op.cit., p. xvi. A este propósito, e sobre o modo como a noção de pré-compreensão se entrelaça com o conceito teológico da auto-compreensão, veja-se o texto de GADAMER intitulado “Hermenéutica y Historicismo”, in Verdad y Método, I vol.pp. 599 e ss..Cfr., ainda, Benoît FRYDMAN, Le sens des lois, Bruxelles, Bruylant, 2.ª ed., 2007, max. pp. 636-639.
30
Esta ideia justifica o desabafo do filósofo alemão quando, em 1960, data da publicação da obra Verdade e Método, observa que “teremos que penosamente abrir o caminho até essa tradição (retórico-humanística), mostrando em primeiro lugar as dificuldades que oferece para as ciências do espírito a aplicação do moderno conceito de método. Com vista a esse objectivo perseguiremos a questão de saber como se chegou a atrofiar esta tradição e como as pretensões de verdade do conhecimento espiritual-científico caíram com isso sob o padrão do pensamento metódico da ciência moderna, um padrão que lhes era essencialmente estranho”. Cfr. Hans-Georg GADAMER, op. cit., vol.I, p. 54.
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dade ou do puro arbítrio, e isto na medida em que, embora ligada ao intérprete singular – aquele que é chamado a aplicar a disposição abstracta a um caso concreto – a pré-compreensão não configura um elemento de subjectivismo ou um acto individual, antes resultando da participação do intérprete num conjunto de ‘sentidos comuns’, fruto de uma socialização profissional e de uma formação cívica e jurídica, de uma cadeia de interpretações que passam a constituir uma tradição comum. A subjectividade do jurista intérprete situa-se, pois, no interior de um contexto objectivo, no seio da “identidade estrutural da experiência jurídica no seu unitário sistema de permanência”. Só a partir da radicação neste património comum de experiência e de conhecimento ganha significado o papel activo de quem a vai interpretar, receber e transmitir. Assim se garante a própria racionalidade e coerência dos processos de interpretação jurídica29. Ora, esta noção de pré-compreensão, aliada à fundamental dependência contextual dos processos de interpretação e da determinação de sentidos das disposições normativas, tem consequências inevitáveis ao nível da própria metodologia e do entendimento que se faz daquelas consagradas pautas hermenêuticas. Poderíamos dizer que a hermenêutica filosófico-jurídica torna transparentes as limitações das regras metodológicas da interpretação no direito, mostrando que aos resultados da compreensão é sempre imanente um momento criativo. A teoria hermenêutica do direito torna mais nítido o facto de a compreensão se fundar na praxis da vida, mostrando que as hipóteses apresentadas para a interpretação de um texto não são descobertas através de um processo orientado por regras mas resultam do viver quotidiano, que se imprime no texto que se procura compreender. Esta uma crítica fundamental que atravessa Verdade e Método, apontando Gadamer o erro que terá sido deixar que as regras a que obedece a procura da verdade nas ciências naturais do século XIX invadissem espaços que com elas não se compaginavam. Desde logo os das ciências ditas do espírito, vertidas em formas de experiência em que se expressam verdades que não podem ser verificadas com os meios ao dispor da metodologia científica oitocentista30. E não se diga que esta reserva com que é encarado o recurso a pautas metódicas na esfera da interpretação levada a cabo nas ciências do espírito, Direito incluído, se vem a traduzir numa entrega ao relativismo ou ao subjectivismo. Os limites, os controles e a racionalidade discursiva estão lá. E estão lá, distribuídos por vários patamares. O facto de se reconhecer a insuficiência do objecto interpretado para justificar os resultados interpretativos não implica um desprezo pelos limites representados por esse mesmo objecto. Como nos ensinou Umberto Eco,
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o texto permanece sempre parâmetro das suas próprias interpretações31. Da mesma forma, a noção vital de pré-compreensão oferece garantias de fidelidade a uma comunidade de sentidos históricos e de expectativas partilhadas que, se se imprimem na subjectividade do intérprete, não deixam de constituir uma plataforma normativa de referência colectiva32. Naquilo em que se traduz aquela doutrina jurídico-hermenêutica, é na desmistificação da presumível objectividade da interpretação jurídica, e na desvalorização da crença dogmática na superioridade do método jurídico, enquanto duas faces que são de uma mesma realidade. Nisso, e num esforço diligente e inteligente de justificar de modo realista e razoavelmente mais adequado aquela que é a realidade fenomenológica do direito e da jurisdição33.
A obrigação moderna que impende sobre o intérprete do direito de se ater estritamente à lei é absurda, como absurda é a convicção de que a obediência estrita ao método proporcionará indefectíveis garantias de certeza e de verdade científica. Nisto têm razão os autores que apontam o dedo aos efeitos perversos da doutrina do sentido claro dos textos jurídicos. A falsa transparência dos textos jurídicos vai, neste sentido, identificada com um “abrigo aparentemente inocente por trás do qual se pode dissimular o exercício dogmático de um poder que assim oculta ou dissimula os motivos reais das suas decisões, subtraindo-as a todo o controle ou discussão verdadeiramente racionais”34. A exigência de uma estrita obediência à lei, assente nos pressupostos anteriormente referidos, e aparentemente fundada na noção de Estado de direito, não vem a traduzir-se num cumprimento mais exacto das prescrições legais por parte da jurisprudência, mas sim no artifício que consiste em esta dar a entender que se limita a cumprir as mesmas. Além de que, para satisfazer uma tal obrigação, essa jurisprudência irá camuflar as inseguranças e incertezas representadas pelos factores situacionais e contextuais subjacentes à sua interpretação, sob o manto de uma demonstração de coerência, racionalidade metódica e inevitabilidade. Os métodos jurídicos podem ser mais ou menos razoáveis, e úteis, mas, a partir do momento em que, como mostra Zaccaria, têm que operar e ser aplicados em condições de incerteza, dependentes do contexto de aplicação do direito, condicionados pela presença da pré-compreensão do intérprete, limitados pela ambiguidade e pela textura aberta da linguagem, não podem ser dotados de uma certeza absoluta. E não podem garantir essa certeza absoluta.
31 Cfr. Umberto ECO, Os limites da interpretação, Lisboa, Difel, 1990, p. 60. 32 A natureza potencialmente ideológica e, nessa medida contingente, desta pré-compreensão virá a suscitar vivo debate entre Gadamer e Habermas, para quem o recurso a um ethos dominante (como o subjacente à noção de pré-compreensão), por via da interpretação, não constituiria fundamento legítimo ou adequado da validade das decisões jurídicas. Cfr. Jürgen HABERMAS, Droit et Démocracie. Entre faits et normes, Paris, Gallimard, 1997, p. 220; Benoît Frydman, op. cit., pp. 639 e ss.. 33 Sobre o tendencial anti-metodologismo gadameriano, veja-se o que tivemos oportunidade de escrever em Para uma teoria hermenêutica da justiça, max. pp. 371 a 373 e cap. V., ponto 7; no mesmo sentido, também Ulrich SCHROTH, “Hermenêutica filosófica e jurídica”, in A. KAUFMANN / W. HASSEMER, op.cit., pp. 381 – 403, e ainda Francesco VIOLA / Giuseppe ZACCARIA, op.cit., p. 198. 34
Cfr. Michel VON DE KERCHOVE, “La doctrine du sens clair des textes et la jurisprudence de la Cour de cassation de Belgique”, in Michel von de Kerchove, dir., L’Interprétation en droit. Approche pluridisciplinaire, Publications des Facultés universitaires Saint Louis, Bruxelles, 1978, p. 49, apud Laura MIRAUT MARTÍN, op. cit., p. 398.
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4.3 Perversidade da doutrina do sens clair: os limites do método jurídico
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Em última análise, a pluralidade de cânones hermenêuticos não possui um carácter jurídico cogente35. E este é um aspecto em que a hermenêutica jurídica se mostra particularmente sensível ao impulso antimetódico de Gadamer e à crítica por este dirigida à intenção oitocentista de reduzir qualquer verdade científica a uma verificabilidade metódica. Protagonizando uma viva resistência à pretensão de universalidade da metodologia científica, aquilo que pretende o filósofo germânico é estudar a experiência da verdade em domínios que ultrapassam aqueles que se mostram mais sensíveis ao controle da metodologia científica36.
De tudo quanto vai dito, resulta a necessidade de convocar a hermenêutica naquilo que possa constituir uma consciência pós-moderna em torno do método jurídico. Implicada irá, como ao longo do texto procurámos mostrar, não propriamente uma rejeição pura e simples de qualquer doutrina metodológica, mas a necessidade de reconfigurar a concepção de método à luz de pressupostos que superam o ideal do formalismo e do procedimentalismo jurídicos oitocentistas de não sujar as mãos com a vida que ao direito cabe regular. Fazendo do condicionalismo histórico-cultural da compreensão jurídica, das infra-estruturas do pensamento jurídico e das expectativas de sentido com que são interrogados os textos um problema interno da racionalidade jurídica, aquilo que se propõe é uma concepção mais refinada e mais crítica do problema do método jurídico, que não é senão o problema da racionalidade das soluções jurídicas. Deste ponto de vista, o método jurídico não se reconduz a uma doutrina jurídica particular e determinada, seja ela de tendência logicista, formalista ou naturalista, antes se encontrando em todas as posições que rejeitam o improviso e a irracionalidade do direito37. Não é pelo facto de se reconhecer que o raciocínio do intérprete não é passível de ser descrito aprioristicamente ou recondutível a critérios de lógica silogístico-dedutiva que ele se torna por isso desprovido de regras que o subtraiam ao arbítrio ou à casualidade. As regras são precisamente aquelas que sugere o pensamento hermenêutico, reconhecendo a natureza profundamente ética do acto interpretativo, reconhecendo o condicionamento histórico e a delimitação de possibilidades da dogmática metodológica, e reconhecendo assim, igualmente, o âmbito de liberdade e de dinamismo em que forçosamente se movem os processos da interpretação jurídica. Uma liberdade e um dinamismo que não deixam de ser, assim, informados por um conjunto de constrangimentos que impõe uma aura de racionalidade e de razoabilidade a toda a experiência jurídica enquanto realização de uma justiça material. Uma racionalidade e uma razoabilidade que, desde logo, se vertem e se espelham na necessidade da fundamentação e da motivação de cada decisão interpretativa, operações em que aos tradicionais cânones hermenêuticos caberá
35
Cfr. Giuseppe ZACCARIA / Francesco VIOLA, op.cit., pp. 211 e ss..
36 “À medida que os métodos da ciência se estendem a todo o existente”, diz-nos Gadamer, “torna-se mais duvidoso que os pressupostos da ciência permitam colocar a questão da verdade em todo o seu alcance”. Cfr. Hans–Georg GADAMER, op.cit., pp. 52; pp. 23-27; 31-74. 37 Cfr. Jean-Louis BERGEL, Méthodologiejuridique, PUF, Paris, 2001, p. 29.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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porventura um importante papel orientador. Em larga medida, tem razão Zaccaria quando sublinha que, na senda do antigo ensinamento aristotélico, para Gadamer, e para a hermenêutica, o método se desenvolve e se verifica apenas na medida em que se pratica: aquilo que ele é, mostra-se no seu uso. Ou, invocando as palavras imortaisde Antonio Machado,o caminho faz-se ao andar38. E isto, para terminar, traz-nos à memória um comentário proferido por um velho teólogo alemão, citado por Paulo Cunha nas suas meditações sobre o Código Civil: “deixemos a teoria ser céu e a realidade ser terra”39. Poderíamos dizer que na teoria hermenêutica da interpretação jurídica encontramos uma plataforma de integração que nos permite preservar o melhor daqueles dois mundos pela sua recriação num terceiro: nem pura teoria nem mera praxis, mas uma noção alternativa de direito que, superando as limitações de cada uma daquelas polaridades, as caldeie hermeneuticamente num verdadeiro constituendo de justiça jurídica.
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Cfr. Giuseppe ZACCARIA / Francesco VIOLA, op. cit., p. 223; Joana AGUIAR E SILVA, op. cit., pp. 373 e ss.. Cfr. Paulo CUNHA, “Do Código Civil (Meditações sobre a lei mais importante do País)”, O Direito, anos 106.º-119.º, 1974/1987, reproduzido de O Direito, ano 98 (1966), pp. 313 e ss., e ano 99 (1967), pp. 8 e ss..
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ABSTRACT
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DIREITO FRATERNO: A RACIOVITALIDADE CONSTITUIÇÃO DE UMA SOCIEDADE-MUNDO
NECESSÁRIA
PARA
A
Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino1
“[...] Quando as pessoas são amigas, não tem necessidade de justiça, enquanto mesmo quando são justas elas necessitam de amizade; considera-se que a mais autentica forma de justiça é uma disposição amistosa”. (Aristóteles)
1 Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestrado – em Direito da Faculdade Meridional – IMED (Passo Fundo-RS, Brasil). Doutor e Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. Pesquisador da Faculdade Meridional. Membro do Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciências Humanas, Contingência e Técnica na linha de pesquisa Norma, Sustentabilidade e Cidadania da Universidade Federal do Maranhão - UFMA. Membro associado do Conselho Nacional de Pós-Graduação em Direito - CONPEDI. Coordenador do Grupo de Pesquisa em Ética, Cidadania e Sustentabilidade no Programa de Mestrado em Direito (PPGD) da Faculdade Meridional - IMED. Membro do Grupo de Pesquisa sobre Direitos Culturais e Pluralismo Jurídico da Faculdade Meridional - IMED. Membro do Grupo de Pesquisa sobre Transnacionalismo e Circulação de Modelos Jurídicos da Faculdade Meridional - IMED. Líder, em participação com o Professor Dr. Neuro José Zambam, no Centro Brasileiro de pesquisa sobre a teoria da Justiça de Amartya Sen. Membro associado da Associação Brasileira de Ensino de Direito - ABEDi. Membro do Grupo de Pesquisa em Direito Empresarial e Sustentabilidade, do Instituto Blumenauense de Ensino Superior.
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RESUMO Esse artigo destina-se a refletir os significados propostos pela Amizade no pensamento de Sêneca e Elígio Resta como fundamento de se propor um Direito Fraterno o qual se desvela por meio da Sociedade-Mundo. O objetivo geral é investigar se a Amizade possibilita criar condições sustentáveis para a disseminação da socialidade no mundo preservadas pelo Direito e Fraternidade no ambiente da Sociedade-Mundo O método utilizado é o Indutivo. Ao final, conclui-se que sem a Amizade não é possível constituir a Sociedade-Mundo. O Direito Fraterno surge como vetor organizacional para esclarecer sobre a necessidade do exercício permanente das virtudes humanas. Palavras-chave: Amizade. Sustentabilidade. Direito Fraterno. Sociedade-Mundo. Raciovitalidade.
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1 INTRODUÇÃO A Amizade surge como fenômeno a qual desestabiliza a individualidade egoísta procurada como bem moral supremo. A conquista de riquezas materiais, os prazeres fugazes, momentâneos, segundo o pensamento de Aristóteles, não conduzem à Felicidade, compreendida como elemento de manutenção social e política da convivência humana. Nessa linha de pensamento, a Amizade amplia os espectros sociais e político, permite a constituição de outros paradigmas, como é o Direito Fraterno. A Amizade aposta na Fraternidade ao desvelar que a nossa humanidade compartilhada não se refere apenas ao tão somente a um significado antropocêntrico, mas de toda a cadeia vital de seres que habitam a Terra. Não existe Direito Fraterno sem a sua razão interna: a Amizade. Percebe-se que essa última expressão citada conduz à formação da Terra-Pátria e de uma Sociedade-Mundo. Somente a Amizade viabiliza a Sustentabilidade dessa perspectiva integradora quando se compreende a expressão unitas multiplex (do latim, unidade múltipla). O critério metodológico utilizado para essa investigação e a base lógica do relato dos resultados apresentados reside no Método Indutivo2. Na fase de Tratamento dos Dados3, utilizou-se o Método Cartesiano4 para se propiciar indagações sobre o tema e a necessidade de se refletir como a Amizade representa um fundamento teórico e prático para que se possa desenvolver o Direito Fraterno e preservar a Sociedade-Mundo a partir da Sustentabilidade. As técnicas utilizadas nesse estudo serão a Pesquisa Bibliográfica5, a Categoria6 e o Conceito Operacional7, quando necessário. O problema desta pesquisa pode ser descrito na seguinte indagação: a Amizade surge como possibilidade – teórica e prática – que modifica o paradigma do Direito proposto na Idade Moderna de “forte” e “fraco”, “vencedor” e “vencido” e possibilita a criação de condições sustentáveis às Relações Humanas, representada na expressão Sociedade-Mundo8? A hipótese para essa pergunta surge, inicialmente, como positiva na medida em que a referida categoria cria cenários mais pacíficos, pois se dissemina o esclarecimento de nossa humanidade com-
“[...] base lógica da dinâmica da Pesquisa Científica que consiste em pesquisar e identificar as partes de um fenômeno e colecioná-las de modo a ter uma percepção ou conclusão geral”. (PASOLD, 2011, p. 205)
3 “[...] os frutos da Investigação são os Dados Recolhidos, que no caso da Ciência Jurídica, são as formulações doutrinárias, os elementos legais e jurisprudenciais colecionados em função do Referente estabelecido; [...]”.(PASOLD, 2011, p. 83). Grifos originais da obra em estudo. 4 “[...] base lógico-comportamental proposta por Descartes, [...], e que pode ser sintetizada em quatro regras: 1. duvidar; 2. decompor; 3. ordenar; 4. classificar e revisar”. (PASOLD, 2011, p. 204). 5
“[...] Técnica de investigação em livros, repertórios jurisprudenciais e coletâneas legais”. (PASOLD, 2011, p. 207).
6
“[...] palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou expressão de uma idéia”. (PASOLD, 2011, p. 25). Grifos originais da obra em estudo.
7
“[...] uma definição para uma palavra ou expressão, com o desejo de que tal definição seja aceita para os efeitos das idéias que expomos [...]”.(PASOLD, 2011, p. 37). Grifos originais da obra em estudo. Toda Categoria que aparece neste estudo será destacada com letra maiúscula.
8 A categoria, para esse estudo, designa os modos de interação entre as pessoas, enquanto nessa relação existir o reconhecimento mútuo como seres humanos. As Relações Humanas comportam os ires e vires sobre a certeza e incerteza de nossa humanidade perante o Outro. Segundo Morin, na medida em que o ego não se abre para a diferença do Outro, esse se torna estranho para nós. Sob diferente ângulo, a abertura altruísta frente ao semelhante o torna simpático. Não há interação humana se o Outro não é reconhecido como Pessoa, mas tão somente objeto. (MORIN, 2007, p. 77).
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partilhada como esse apelo à condição de humanidade a qual todos estão expostos: somos precários, finitos, provisórios, incompletos. É necessário, sob esses argumentos, que o Outro seja percebido pelo “Eu” a partir dessas características. A partir desse cenário, a Amizade surge como fundamento para se estabelecer vínculos sustentáveis de Socialidade9 e Fraternidade em todo o território terrestre. O Direito precisa (re)conhecer a Amizade como modo de se preservar, indefinidamente, as relações humanas na Terra. Por esse motivo, o Direito não consegue cumprir com as finalidades deste fundamento – o da Amizade – se esse não for esclarecido e perpetuado (Sustentabilidade) no decorrer do tempo. O Objetivo Geral deste estudo é investigar se a Amizade possibilita criar condições sustentáveis para a disseminação da Socialidade no mundo preservadas pelo Direito e Fraternidade no ambiente da Sociedade-Mundo. Os Objetivos Específicos podem ser descritos como: a) Definir Amizade; b) Definir Sustentabilidade; c) Identificar as proposições teóricas para Amizade; d) Avaliar as proposições de Amizade como fundamento para a constituição de um modelo de Direito Fraterno na Sociedade-Mundo por meio da Sustentabilidade.
2 OS FUNDAMENTOS DA AMIZADE NO PENSAMENTO DE SÊNECA10 Desde Aristóteles, percebe-se a importância da Amizade como fundamento político do conviver. O ambiente criado pela citada categoria possibilita o exercício da Virtude e conduz à Felicidade. Entretanto, essa categoria, sob o ângulo da Filosofia Estoica11, parece trazer indícios que se tornaram esquecidos na sociedade contemporânea. Nesse caso, Sêneca destaca as qualidades necessárias para uma vida feliz. Verifica-se, conforme o pensamento de Sêneca, a convergência de argumentos aos propostos por Aristó-
10
“Tanto por sua obra política, como por sua obra escrita, Sêneca pertence à Filosofia. É, com toda justiça, um dos representantes mais célebres da ‘filosofia vivida’, característica do espírito romano. Situa-se, cronológica e espiritualmente, entre um Catão de Útica e o imperador Marco Aurélio. Seu pensamento, filiado à tradição escolar helênica e romana, também foi marcado pelas experiências por que passou. Sêneca é oriundo de uma família romana instalada na província de Bética, em Córdoba, uma cidade que conservara simpatias pelo partido pompeano e tradições de rigor moral. O menino (nascido por volta de 2 a. C., mas isto é muito incerto) foi levado a Roma muito cedo e foi lá que recebeu sua formação, tanto com o retórico como com os filósofos, dos quais foi um ouvinte assíduo e entusiasta. Conheceu, também, durante a adolescência, o ensino de Átalo, um estóico, depois o do ‘pitagórico’ Sócion, um alexandrino místico, que iniciou o rapaz numa vida ascética. Outro mestre, Papírio Fabiano – discípulo do estóico romano Q. Sexto Nigro,que escrevia e lecionava em grego, mas cujas idéias eram totalmente romanas -, acentuava a possibilidade que o homem tem de conseguir uma vida feliz, à força de coragem e energia. Tudo indica que Papírio Fabiano deu ao ensino de Sexto sobretudo uma forma eloqüente, que seduzia o jovem Sêneca”. (HUISMAN, 2004, p. 912).
11
Segundo Störig: “A filosofia estóica, pelo menos em sua parte mais importante, a ética, está estreitamente ligada à escola socrática dos cínicos. Mas ela ameniza os numerosos exageros do antigo cinismo, o que constituiu uma condição para que suas doutrinas fossem mais amplamente aceitas, conferindo um lugar muito mais importante ao saber. As duas coisas, estar ligado aos cínicos assim como o ultrapassá-los, já se manifestam na vida do próprio Zenão, que de início, em Atenas, ligou-se estreitamente ao cínico Crates [...], mas que depois de algum tempo reconheceu que esta doutrina não podia, sozinha, fornecer um programa de vida válido para todos; por isso ele começou a estudar entre os filósofos, terminando por funda a sua própria escola, na qual os ensinamentos cínicos estavam associados aos de outros filósofos, por exemplo de Heráclito”. (STÖRIG, 2008, p. 161).
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9 Essa categoria distingue-se de sociabilidade porque aquele exprime uma solidariedade de base na qual explana esse estar-junto. Aproxima-se da categoria societal vista em Durkheim, ultrapassa o sentido de solidariedade mecânica e é reenviado à solidariedade orgânica. (MAFFESOLI, 2001, p. 26).
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Nas palavras do citado filósofo: “[...] A virtude é algo elevado, excelso e régio, invencível, infatigável; o prazer é baixo, servil, fraco, passageiro; seu lugar e morada são os bordéis e as tavernas. Encontrarás a virtude nos templos, no foro, na cúria, em pé diante das muralhas, coberta de pó, tez queimada pelo sol, mãos calejadas; o prazer, pelo contrário, muitas vezes o verás escondido, em busca das trevas, ao redor dos banhos, saunas, nos lugares temerosos da vigilância do edil, mole, desfibrado, gotejando vinho e perfumes, descorado, maquilado, embalsamado como um cadáver”. (SÊNECA, 2009, p. 18).
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“[...] o bem supremo é imortal, não sabe o que é perecer, não fica saciado nem se arrepende. Uma alma reta nunca se transforma nem é odiosa em si mesma, em nada se afasta do melhor modo de viver; o prazer, porém, extingue-se justamente quando mais deleita, o seu campo não é muito amplo e, por isso, logo sacia, causa tédio e definha depois do primeiro impulso”. (SÊNECA, 2009, p. 19).
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“[...] devemos discernir tanto aquilo para que tendemos quanto o meio de conseguir o desejado, não sem escolher um perito, conhecedor profundo do caminho em que nos metemos, porque as condições dessa viagem não são as mesmas que as dos demais itinerários”. (SÊNECA, 2009, p. 2).
15 “[...] o Poder é a encarnação dessa energia provocada no grupo pela idéia de uma ordem social desejável. É uma força nascida da consciência da consciência coletiva e destinada ao mesmo tempo a assegurar a perenidade do grupo, a conduzi-lo na busca do que ele considera seu bem e capaz, se necessário, de impor aos membros a atitude exigida por essa busca. [...] Portanto, não é verdade que a realidade substancial do Poder seja o mando, o imperium; ela reside na idéia que o inspira. Não há duvida que essa idéia pode ser respeitável ou suspeita; pode ser geradora de crimes bem como de iniciativas felizes. Mas, como toda política é ação finalizada, não se concebe como um Poder, agente de uma política, poderia, em sua própria essência, não ser marcado pelo fim que a determina ou serve para legitimá-la”. (BURDEAU, 2005, p. 5). Grifos originais da obra em estudo. 16
O filósofo esclarece: “[...] Ora, isso não poderá ocorrer se, em primeiro lugar, a mente não for sã e não estiver em perpétua posse da própria saúde e, em seguida, corajosa, enérgica, nober, paciente e acomodada às várias situações. Ela deverá também cuidar sem ansiedade do corpo e que se refere a ele, das coisas que adornam a vida, sem se deixar deslumbrar por nenhuma, e estar pronta a utilizar os dons da fortuna, sem ser escrava deles”. (SÊNECA, 2009, p. 9).
17
A Ataraxia, sob o ângulo da Filosofia Estóica, denota “[...] o ideal de imperturbalidade ou da serenidade da alma, em decorrência do domínio das paixões ou da extirpação destas [...]”. (ABBAGNANO, 2003, p. 87).
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teles, pois a constituição da vida sadia não se distancia da Virtude12 e da Razão. Entretanto, adverte esse autor que a tarefa de conseguir a Felicidade como Bem Supremo13 não é fácil. Qualquer desvio desse caminho, promovido pelos prazeres efêmeros, dificulta a manutenção de uma vida feliz no seu sentido duradouro. A Felicidade não pode ser caracterizada pelas divergências, pelos rumores, pela discórdia das multidões as quais não se guiam pelo discernimento14 sereno da Razão. Para Sêneca (2009, p. 3): “[...] é o cuidado de não seguir os que nos precedem, à maneira do gado, em que os de trás seguem os dianteiros, dirigindo-se não onde devem ir, mas aonde vão os da vanguarda”. A busca pela vida feliz não concorda com a fugacidade das riquezas materiais, da adulação àqueles que detêm o Poder15. A leitura da obra de Sêneca (2009, p. 7) revela que as pessoas nas quais admiram essas qualidades (ou quem as exercita com habitualidade) se tornam potenciais inimigos ou invejosos. O caminho desejado para a Felicidade é sadio, vigoroso. Pauta-se em valores originários, autossuficientes, diferente da natureza efêmera de valores instrumentais que não conseguem, no decorrer do tempo, satisfazer a necessidade humana de promover o bem por meio de ações consideradas boas em si. A partir desses argumentos, o que seria, para Sêneca, uma vida feliz? É aquela na qual concorda com a natureza16. Os princípios enunciados pelo mundo natural são diferentes da condição (e natureza) humana. Revelam-se como imutáveis, perfeitos, ataráxicos17. Por esse motivo, devem ser observados pela Razão a fim de todas as pessoas buscarem (e promoverem) o bem, a proximidade, o belo, o justo, o equilíbrio. Trata-se de escolher bens os quais não se diluem, nem se esvaziam de significados – especialmente axiológicos - no decorrer do tempo. Esses são sólidos, permanentes, constantes, mas precisam ser garimpados diante a multiplicidade de desejos e ambientes nos quais a vontade precisa conhecer, eleger e decidir para ser expressa por meio de nossas ações (SÊNECA, 2009, p. 8).
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O ser humano feliz18 é descrito pelo citado filósofo como aquele no qual não se permite deslumbrar com a fugacidade dos prazeres, pratica o bem e se contenta com a Virtude. A vida conduzida pela Felicidade se revela a partir de almas livres as quais conhecem o Bem Supremo19. Dentre essas virtudes as quais conduz todos para a Felicidade, está a Amizade. A categoria estudada nesse tópico, conforme as palavras de Sêneca, não ocorrerá sem escolha prudente, sem discernimento promovido pela Razão. Caso contrário, a escolha dos amigos torna-se uma atividade perigosa e caracteriza a palavra como banal20. A proximidade entre o “Eu” e o (pretenso) amigo se desvela na medida em que o conheces como a ti próprio. É ideal uma vida, rememora Sêneca, na qual se possa partilhar os segredos íntimos com todos, inclusive os inimigos. Entretanto, essa via nem sempre é possível. Esse é o fundamento necessário de se ter (e confiar nos) amigos21. Esse filósofo expõe, ainda, os benefícios da Amizade na partilha (e cumplicidade) da Sabedoria22. O espaço fértil criado pela categoria estudada possibilita diversas metamorfoses23, especialmente àquelas as quais revela (e torna viável reconhecer) a existência dos próprios defeitos. O vínculo amistoso forja a Sabedoria, reivindica a autocrítica e autorreflexão. É nesse ir e vir dialogal24 que se produzem as mudanças desejadas a fim de se humanizar permanentemente25. Se a Amizade produz a Sabedoria, indaga Sêneca, o sábio necessita de amigos ou se torna autossuficiente pela produção do conhecimento26? Sob esse argumento, evidencia-se, num primeiro momento, a desnecessidade da daquela primeira categoria citada no início desse parágrafo, pois a Razão é capaz se iluminar qualquer dúvida humana. Entretanto, o mencionado filósofo descarta essa possibilidade. Não existe ser humano capaz de viver fora do espaço das sensações. Segundo Sêneca (2002, p. 45): “[...] o nosso sábio vence todos os desagrados, mas nem por isso os deixa de sentir”.
18 “[...] pode ser chamado de feliz quem não ambiciona nem teme, graças à razão, pois as pedras carecem de temor e tristeza, assim como o gado. Contudo, ninguém as dirias felizes, já que não têm a compreensão da felicidade”. (SÊNECA, 2009, p. 14).
20
“[...] Se tu vês um homem como amigo sem teres nele tanta confiança quanto em ti mesmo, tu te enganas muito e só tens uma vaga idéia do valor da verdadeira amizade”. (SÊNECA, 2002, p. 37).
21
“[...] é um erro não confiar em ninguém, bem como confiar em todos; direi que num caso nós agimos de maneira mais segura, e no outro de maneira mais honesta”. (SÊNECA, 2002, p. 39).
22
“Não podes imaginar quantas mudanças sinto produzirem-se em mim a cada dia! ‘Faze com que eu me beneficie, tu me dirás, desse remédio tão eficaz!’ Claro que desejo fazer com que tu o absorvas por completo, pois se tenho prazer em aprender é para ensinar; nenhuma descoberta poderia interessar-me, por mais útil e importante que fosse, se eu tivesse que ser o único a lucrar com ela. Se me derem a sabedoria com a condição de que eu a guarde para mim sem poder transmiti-la, eu a recusarei. Não é agradável possuir um bem quando não podemos dividi-lo”. (SÊNECA, 2002, p. 42).
23 “Eu sinto Lucílio, não apenas que me corrijo, mas que me torno outro! Não poderia afirmar, nem esperar que não houvesse mais nada em mim que não fosse passível de mudança: ainda que tenho muitas qualidades a adquirir ou a reforçar e fraquezas a atenuar. Mas já é uma melhora reconhecer os próprios defeitos que até então eram ignorados”. (SÊNECA, 2002, p. 41). 24
“[...] a conversa de viva voz te será mais útil do que a exposição escrita. Tu precisas ficar diante das coisas: primeiro, porque damos mais confiança aos olhos do que aos ouvidos; depois, porque com as lições o caminho é longo, ao passo que com exemplos ele é curto e seguro”. (SÊNECA, 2002, p. 42).
25 “[...] Enquanto aguardo, já que te devo a minha contribuição diária, eu te envio esta frase que hoje tive o prazer de ler em Hecatão: ‘Pergunta-me, escreve ele, que progresso eu fiz? Tornei-me meu amigo.’ Grande progresso! Nunca mais estará só”. (SÊNECA, 2002, p. 43). 26
“Tem Epicuro razão em censurar, numa de suas cartas, os que pretendem que o sábio basta a si mesmo, e que, portanto, não precisa de amigos? Eis o que desejas saber. Tal censura é dirigida por Epicuro a Stilpon e àqueles que consideram a alma impassível como o soberano bem”. (SÊNECA, 2002, p. 45).
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19 “[...] o conhecimento da verdade nos trará uma alegria imensa e imutável, a bondade a expansão da alma. Com isso a alma se deleitará, não por serem bens, mas por provirem do seu próprio bem”. (SÊNECA, 2009, p. 13).
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O sábio, ainda que consiga vencer as paixões, esclarecer sobre si e os fenômenos por meio da Razão, exercer a Virtude habitualmente, precisa de amigos27. A Amizade, conforme o pensamento desse filósofo, precisa ser praticada não apenas nos casos de enfermidade, necessidade ou quando sua Liberdade sofrer ameaça. Caso o(a) pretenso(a) amigo(a) aja conforme essas características, não se trataria de Amizade, porém de “interesse circunstancial”28. Essa ação não pode ser considerada virtuosa, tampouco conduzir para uma vida feliz. Percebe-se que a condução para uma vida feliz, nas palavras desse filósofo, é a orientação conforme as regras do mundo natural: mente sadia, esclarecida por meio da Razão, na qual exercita a Virtude e evita as adulações políticas, os exageros das riquezas materiais e a ilusão forjada pelos desejos efêmeros. A busca pelo Bem Supremo consiste na caracterização de ações equilibradas, cujo resultado é a Felicidade. A Amizade, para Sêneca, não nasce, apenas, de uma escolha racional, mas se origina, também, dos nossos instintos. As pessoas procuram conviver e não se isolarem. Na medida em que estabelecem vínculos amistosos, cria-se um ambiente fértil para as relações humanas e a produção do conhecimento. A vivência da Amizade esclarece como a proximidade não-circunstancial do “Eu” com o “Tu” estabelece, na maior amplitude possível, a nossa humanidade compartilhada29. Esse é o início de uma Sociedade-Mundo que já se observa em Sêneca (2008, p. 44): [...] Quando estou com meus amigos, não me distancio de mim mesmo. Não me deixo ser tomado por pessoas as quais a obrigação social colocou-me em companhia: pertenço apenas aos mais virtuosos. Seja onde for a sua pátria ou em que século tenham vivido, é para eles que se volta o meu pensamento.
Entretanto, apesar dessa amplitude social, política e filosófica estudada nas ações amistosas, é possível observar os seus efeitos, ainda, na formulação do Direito? O pensamento de Elígio Resta apresenta a Amizade como fundamento de um fenômeno no qual ultrapassa os interesses nacionais. Trata-se do Direito Fraterno.
Sob ângulo diverso aos argumentos apresentados por Sêneca, a Amizade, segundo o pensamento de Resta, não pode ser considerada como elemento nostálgico que representa uma promessa esquecida. Ao se relembrar dessa palavra cujo conteúdo viabiliza condições de Frater-
27 “[...] O homem detesta a solidão e por natureza vai em direção ao próximo; nele também há o impulso que o leva a procurar a amizade”. (SÊNECA, 2002, p. 50). 28 29
“[...] O amigo escolhido por interesse só agradará enquanto for útil”. (SÊNECA, 2002, p. 47/48). Antes de se despedir de Lucílio, Sêneca rememora o significado amistoso do “Conhece-te”: “[...] Saibas que se tiveres semelhante amigo, terás o gênero humano por amigo”. (SÊNECA, 2002, p. 43).
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3 OS FUNDAMENTOS DA AMIZADE NO DIREITO FRATERNO A PARTIR DE ELÍGIO RESTA
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nidade30 no planeta, não se pode encerrá-la numa definição. As portas fechadas que constituem a definição de “Amizade” podem gerar diferenciações, ressentimentos, segregações. A expressão anteriormente mencionada é caracterizada pelos seus paradoxos que se desvelam na vida de todos os dias. Trata-se de lugar no qual é possível criar as estratégias humanas do Direito31 que pode vir a ser, do Direito desejável. A má compreensão desses paradoxos produz a chamada “lei da amizade” e reforça o modelo amigo/inimigo (RESTA, 2004, p. 19/20). Desconfigura-se a Fraternidade quando a Amizade perde seu caráter espontâneo. O sedimento das relações humanas e jurídicas proporcionado pela amizade fraterna dilui-se para constituir uma “proteção institucional às avessas”, ou seja, torna-se apenas uma descrição legal vazia de significado. Exige-se a obediência ao Poder sem qualquer vínculo de proximidade e reconhecimento. Essa é a garantia soberana de neutralização dos conflitos, das hostilidades e controle da Paz. Por que a Fraternidade tem como fundamento a Amizade? A leitura da obra de Resta parece deixar claro essa resposta: a Amizade tem um efeito estético32 que integra as pessoas reveladas pelas situações paradoxais as quais são sentidas em comum por todos (RESTA, 2004, p. 20). A Amizade não é força que paralisa, quando desconfigurada da postura paternalista do Estado-nação, mas representa a regeneração utópica33 daquilo no qual favorece a continuidade do conviver. A Amizade anima a Fraternidade e ambas produzem a Estética da Convivência34 por representarem, sob o ângulo da ação, uma obra de arte estritamente humana. A Humanidade é descoberta nas esquinas e diálogos amistosos do dia a dia35. Eis o nascedouro de deveres36 junto ao Outro expressos pela Amizade como fundamento do Fraterno. Percebe-se, ainda, que os amigos estão em qualquer lugar do território terrestre, mas são desconhecidos. Toda vida compartilhada se torna mais significativa pela proximidade de sentimentos que se desdobra de significados junto com o Outro, porém não significa que na 30 “[...] forma intensa de solidariedade que une pessoas que, por se identificarem com algo profundo, sentem-se ‘irmãs’. [...] Por essa especificação, portanto, somos induzidos a considerar a fraternidade uma das facetas com as quais se manifesta o princípio da solidariedade, de firme arraigamento jurídico, [...]”. (PIZZOLATO, 2008, p. 113). Categoria multidisciplinar que se revela como “[...] compreensão [...] in acto, como efetividade de participação e de comportamentos, sendo, essencial ao seu conceito a vivência atual do direito, a concreta correspondência das formas da juridicidade ao sentir e querer, ou às valorações da comunidade”. (REALE, 2010, p. 31). Grifos da obra original em estudo.
32 “[...] O Direito e a Política na transmodernidade poderão estimular as estratégias necessárias para a autonomia das pessoas e da sociedade, a fim de que estas tenham possibilidades de ser criativas e de buscar razões mais profundas de viver. Falo de vida em que o respeito ao outro e a beleza no exprimi-lo sejam suas marcas indeléveis e sua busca permanente”. (MELO, 1994, p. 19). 33
“A Política Jurídica, descomprometida com fórmulas e paradigmas em perecimento, estará engajada com esse novo pensar e participará da realização de novas utopias carregadas de esperanças”. (MELO, 1994, p. 19).
34
Sob o ângulo da Política Jurídica, a categoria denota sensação de “[...] harmonia e beleza que rescende dos atos de convívio social que se apóiam na Ética e no respeito à dignidade humana. Assim, podemos considerar como um dos fins mediatos da Política Jurídica a criação normativa de um ambiente de relações fundadas na Ética que venham a ensejar o belo na convivência social, em atendimento a necessidades espirituais latentes em todo ser humano [...]”. (MELO, 2000, p. 37/38).
35
“[...] Nunca como neste caso, a atenção aos paradoxos, longe de paralisar, realiza uma forte conscientização e recoloca a questão aos atores sociais em sua concretude, em sua dimensão da vida cotidiana, em sua inalienável responsabilidade de escolha”. (RESTA, 2004, p. 20).
36 Nessa linha de pensamento, Diderot e D’Lambert rememoram: “os deveres da amizade se estendem para além do que se acredita. Deve-se à amizade na medida de seu grau e de seu tipo, que produz diferentes graúdas e tipos de deveres. Reflexão importante para acabar com o sentimento de injusto daqueles que se queixam de terem sido abandonados, mal servidos ou pouco considerado pelos amigos”. (DIDEROT, Denis; D’ALEMBERT, 2015, p. 35/36).
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“[...] os amigos podem não ser conhecidos, mas poderiam em cada momento ser reconhecidos, e é a este difícil evento do reconhecimento que se remete sua visível concretude. [...] Ocorrerá alguma coisa talvez significativa que nos fará reconhecer um amigo, mas exatamente isso pressupõe que o amigo já existisse em lugares indefinidos e em tempos incomensuráveis”. (RESTA, 2004, p. 21).
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“[...] os amigos podem não ser conhecidos, mas poderiam em cada momento ser reconhecidos, e é a este difícil evento do reconhecimento que se remete sua visível concretude. [...] Ocorrerá alguma coisa talvez significativa que nos fará reconhecer um amigo, mas exatamente isso pressupõe que o amigo já existisse em lugares indefinidos e em tempos incomensuráveis”. (RESTA, 2004, p. 21/22).
39 Essa declaração, no pensamento de Resta, refere-se à mesma linguagem utilizada no universo jurídico (RESTA, 2004, p. 22). 40
“Não é por acaso que na linguagem das relações obrigacionais utiliza-se a expressão ‘reconhecimento de um débito’, que tem por conseqüência a publicização de um débito existente e que não é contestado em sua validade; [...]”. (RESTA, 2004, p. 23).
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ausência da proximidade torna-se improvável o compartilhamento de alegrias, tristezas, angústias, agonias, virtudes, entre outras manifestações. A Amizade possui, conforme as palavras de Resta (2004, p. 21), essa particularidade: “[...] une independentemente de vínculos e liames visíveis”. A Amizade está presente em qualquer relação humana, mas a sua ocorrência não depende de tempo e espaço. A sua manifestação é incerta. Não existe, rememora Resta, um “destino” de Amizade, porém possibilidades conexas as quais possibilitem reconhecer um amigo no mundo37. Pode-se sintetizar essa afirmação nas palavras do mencionado autor: “[...] a gênese da amizade é ao mesmo tempo contingente e transcendente: depende do acaso e do evento, e juntamente existe, como mundo de possibilidades, independente do jogo do seu manifestar-se”38. O pensamento de Resta refere-se, ainda, a duas diferenças na constituição da Amizade: reconhecimento e gratidão. A primeira expressão constitui um sentimento de filiação à família humana, o que evita a segregação das relações intersubjetivas por meio de classes, estamentos, castas, destaques acerca de desenvolvimento econômico (países desenvolvidos, emergentes e subdesenvolvidos), entre outras manifestações individuais e sociais. Reconhece-se o Outro como humano absolutamente diferente de meu Ego. Entretanto, adverte Resta, o reconhecimento não é capaz de criar ou estimular novos cenários mais fraternos porque a sua ação consiste tão somente em declarar uma situação na qual já existe39. A referida postura não cria algo novo, mas torna público, torna visível essa realidade que sempre esteve entre todos. Essa declaração não se direciona apenas ao momento presente. É indiferente ao citado período de tempo. Qualquer que seja o tempo, a natureza da declaração será de confirmar e repetir um cenário de Amizade comum a todos. A diferença está na sua disseminação, o tornar público, porque esse cenário comum transfigura-se de invisível para visível. A leitura da obra de Resta indica que o reconhecimento não altera, não estimula o surgimento de algo novo nas Relações Humanas. Nas palavras do citado autor, a declaração é elaborada com a precisão de um tabelião40. O reconhecimento sugere, conforme essa descrição, a imutabilidade das interações humanas, resguardando-se à função de declarar algo que existe entre todos? A resposta parece negativa porque o reconhecimento precisa ser conjugado com outra expressão capaz de modificar a geografia das mencionadas relações, qual seja, a gratidão. O surgimento da gratidão cria o novo, permite outras perspectivas daquilo que já havia se tornado visível por meio do reconhecimento. A gratidão pelo reconhecimento é o húmus
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capaz de tornar fecundas as Relações Humanas. Trata-se de sedimento que, quando vivenciado, experimentado na vida de todos os dias conecta dois mundos distantes (ou sequer conhecidos). Estabelece-se pela gratidão e reconhecimento vínculos fraternos que não se desfazem com o tempo independentemente do território que se encontram41. É aqui que se contempla a imagem de Humanidade, descrito no pensamento de Diderot e D’Lambert (2015, p. 72): Humanidade é um sentimento de benevolência por todos os homens que somente se inflama numa alma grande e sensível. Esse nobre e sublime entusiasmo atormenta-se com os sofrimentos dos outros e a necessidade de aliviá-los; desejaria percorrer o universo para abolir a escravidão, a superstição, o vício e o mal. Ele esconde-nos os erros de nossos semelhantes ou nos impede de senti-los. Mas nos torna severos para com os crimes: arranca das mãos do celerado a arma que seria funesta ao homem de bem. O que ele faz não é nos afastar de elos particulares, mas, ao contrário, torna-nos amigos melhores, cidadãos melhores, esposos melhores. Ele se apraz em expandirse pela benevolência em relação aos seres que a natureza aproximou de nós. Vi essa virtude, fonte de tantas outras, em muitas cabeças e em poucos corações.
Essa gratidão não pode aparecer como simples promessas normativas, desprovidas de significados entre os seres humanos. Sob semelhante argumento, para a Ciência Jurídica na Pós-Modernidade42, a gratidão precisa ser compreendida como vetor de organização social cujo exercício e exigência pode ser protegida por meio de Princípio proposto pela Constituição de um Estado, mas que não se esgota, nem exime os seres humanos de a expressarem por ações anódinas na vida cotidiana de todos os dias. A referida expressão, junto ao reconhecimento, precisa convergir esforços que tornem a Fraternidade viável como práxis estética43 do cotidiano. Não basta a previsão de uma (possível) solidariedade horizontal44 – as atitudes assistenciais45 – sem a compreensão de todos pela integração que surge pela humanidade compartilhada. O citado autor sintetiza o significado de Amizade:
41
“A verdadeira mudança na ‘consciência’ da pertença comum é devida, por conseguintes, ao reconhecimento que altera cada consciência precedente e constitui mundos. Na linguagem de Goodman, ela é o mais nítido way of worldmaking”. (RESTA, 2004, p. 22/23).
42
“[...] A palavra é usada, no continente americano, por sociólogos e críticos. Designa o estado da cultura após as transformações que afetaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes a partir do final do século XIX”. (LYOTARD, 2006, p. XV).
43
Para se elaborar este estudo, compreende-se que a Estética não reside tão-somente na obra de arte, mas, sob igual critério, nas ações humanas praticadas no cotidiano. Não se procura o que é “belo em si”, mas o belo como qualidade do agir humano. (MELO, 1994, p. 59).
44 Citam-se como exemplo os artigos 3º, 6º e 203 da Constituição Federal brasileira. 45 “Se tudo isso [...] não se constituir em apenas um mero jogo de palavras, fugaz retórica ou solerte demagogia, então podemos raciocinar que a República Federativa do Brasil tem o dever de construir uma sociedade solidária e de garantir assistência aos desamparados, expressão que deve ser entendida em sentido amplo (econômico e moral), pois o texto constitucional não traz qualquer restrição. Na prática, o que vimos historicamente foi a constante abstenção do Estado em atender a esses casos de necessidades morais. E as razões são várias, entre elas a difícil identificação desse tipo de necessitado, absoluta falta de experiência socorrista oficial nesses casos e a tradição de deixar tal assunto ao encargo da ação caritativa da iniciativa religiosa, mesmo sabendo-se que esta é voluntária, geralmente condicionada e não exigível”. (MELO, 2009, p. 103). Grifo original da obra em estudo.
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A amizade, portanto, aguarda este reconhecimento, esta ali, pronta a reencontrar algo que existia, mas ainda não tinha visibilidade; nela, não tanto a incapacidade de ver a amizade onde ela já se encontra, mas sim o fato de que, existindo independentemente
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do gesto voluntarista e subjetivo de procurá-la, ela estabelece por si só os conteúdos de um vínculo que vive de comunidade. (RESTA, 2004, p. 23)
46
“[...] O estar-junto moral ou político, tal como prevaleceu na modernidade, não é senão uma forma profana de religião. Ou, ainda, ele exprime bem a história da salvação, de início cristã: espera da parusia, depois progressista: mito do desenvolvimento, particularmente forte no século XIX. Mas a partir do momento em que o fundamento divino perde sua substância, do momento em que o progresso não é mais considerado como um imperativo categórico, a existência social é, desde então, devolvida a si própria. Para ser mais preciso, a divindade não é mais uma entidade tipificada e unificada, mas tende a se dissolver no conjunto coletivo para se tornar o ‘divino social’. É quando o mundo é devolvido a si mesmo, quando vale por si mesmo, que vai acentuar o que me liga ao outro: o que se pode chamar ‘religação’”. (MAFFESOLI, 2005, p. 27).
47 “Só nesses termos poderemos tratar do desejado direito de solidariedade, incondicional, sem contraprestações, sem preço, sem trocas, utopia até agora apenas pensada, mas que pode e deve ser realizada em nome da dignidade da pessoa humana”. (MELO, 2009, p. 102). 48
“[...] a política deve tratar da multidimensionalidade dos problemas humanos. Ao mesmo tempo, como o desenvolvimento se tornou um objetivo político maior e a palavra desenvolvimento significa (certamente de forma pouco consciente e mutilada) a incumbência política do devir humano, a política se incumbe, também de forma pouco consciente e mutilada, do devir dos homens no mundo. E o devir do homem no mundo traz em si o problema filosófico, doravante politizado, do sentido da vida, das finalidades humanas, do destino humano. A política, portanto, se vê de fato levada a assumir o destino e o devir do homem assim como do planeta”. (MORIN; KERN, 2005, p. 137). Grifos originais da obra em estudo.
49
“A ‘comunidade de apoio’ já perdeu o sentido universalista e se confinou às relações numericamente mensuráveis de uma amizade definida: somos amigos porque existem inimigos, somos amigos porque não somos estranhos, somos amigos porque nos escolhemos para nos contrapor a outras formas de relações impostas ou involuntárias”. (RESTA, 2004, . 25).
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A Amizade é despretensiosa, não possui objetivos ou interesses. A sua existência é silenciosa e oculta, porém está em todos os lugares deste planeta. Quando o reconhecimento desvela, torna visível a Amizade, vive-se por meio da gratidão, alterando-se a geografia humana da segregação para integração, da individualidade solipsista ao Estar-Junto46. Não existe uma única identidade, seja individual ou coletiva, mas identifica-se a pluralidade de identidades, todas complexas e ricas de experiências nas quais mostram, cada vez mais, a profundidade oceânica do sentimento de Humanidade. A Amizade é a epifania do reconhecimento na expressão “um em todos, todos em um”. A partir dessa visibilidade, a gratidão, o desinteresse na Amizade se manifesta de modo transfronteiriço e cria vínculos de Fraternidade e Responsabilidade que não se desfazem no tempo47. As palavras de Resta demonstram a constituição de uma comunidade identitária humana na qual a complexidade e riqueza de suas vidas formam um vínculo fraterno que aguarda o seu reconhecimento. Trata-se de um tecido social capaz de elaborar possibilidades de comunhão daquele sentimento de Humanidade. Insiste-se: o reconhecimento da Amizade não ocorre com dependência do tempo e espaço. Essa condição de tornar visível e audível a Amizade se torna mais dificultosa se o Estado nacional e o Direito convergirem esforços para consolidar o Outro, o estranho, como inimigo. Os esforços para se consolidar essa pertença à família humana indicam a necessidade de um Direito Fraterno, no qual todos se tornam responsáveis pelas suas escolhas e decisões. A Amizade é pressuposto para a elaboração de uma Antropolítica48 a qual não está encerrada nos limites territoriais da Nação. A inimizade, a eliminação do Outro o qual aparece como hostilidade, torna a Amizade um fenômeno contingencial. A motivação das Relações Humanas não é algo que se convencionou, se jurou conjuntamente, de modo fraterno, para se criar regras mínimas de convivência, ao contrário, essas regras são impostas por uma autoridade (paternalista)49. A Amizade não pode
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50
“[...] Não é por acaso que o no mundo grego a amizade era representada simbolicamente como um daimon alado que esvoaçava entre uma pessoa e outra, assinalando linhas inesperadas, transversais, diríamos hoje, seguindo desenhos imprevisíveis”. (RESTA, 2004, p. 24).
51
Essa categoria “[...] deve ser considerada como a ética da cadeia de três termos indivíduo/sociedade/espécie, de onde emerge nossa consciência e nosso espírito propriamente humano. A antropo-ética compreende, assim, a esperança na completude da humanidade, como consciência e cidadania planetária. Compreende, por conseguinte, como toda ética, aspiração e vontade, mas também aposta no incerto. Ela é a consciência individual além da individualidade”. (MORIN, 2001, p. 106).
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“[...] usamos a expressão ‘estender a mão’ para indicar aproximações generosas e solidárias, mas freqüentemente o estender a mão pode exceder-se e transformar-se em ‘alongar as mãos’, que é um gesto odioso, exatamente como quando, [...], o sorriso que avizinha e torna amigáveis os rostos freqüentemente é o mesmo que arregaça dos dentes”. (RESTA, 2004, p. 26/27).
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“[...] Destituindo o jogo do amigo-inimigo, o direito fraterno é não violento. Não incorpora a idéia do inimigo sob outra forma e, por isso, é diferença em relação à guerra. É, se dizia, jurado conjuntamente, mas não produzido por aquela conjura que leva simbolicamente à ‘decapitação do rei’ e que, é notório, leva consigo sentimentos de culpa que sobrevivem ao jogo ‘sacrifical’ de qualquer democracia. Por isso, não se pode defender os direitos humanos enquanto os está violando; a possibilidade da sua existência está toda no evitar o curto-circuito da ambivalência mimética (típica do pharmakon), que transforma o remédio em doença, de antídoto em veneno”. (RESTA, 2004, p. 135).
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ser determinada por obrigações, especialmente legais, mas precisa ser compreendida pelo seu duplo (e ambíguo) caráter: trata-se de um princípio de inclusão e exclusão. O mundo criado pela Modernidade, para Resta, é o lugar que tenta definir50 a Amizade, embora reconheça o seu jogo inquietante de luzes e sombras, para se identificar quem será caracterizado como inimigo comum. Enfatiza-se a inimizade. Nesse momento, cria-se a inclusão, mas, ao mesmo tempo, exclui-se porque existe alguém no qual não pertence aos “iguais pré-determinados pela lei” e precisa ser posto à margem ou, ainda, eliminado. A obsessão por uma identidade nacional para se determinar o amigo e inimigo estimula a inimizade, a incompreensão da Fraternidade como Princípio que anima a convivialidade, aos critérios civilizacionais movidos pela Antropoética51 e Antopolítica. Aumenta-se a distância de conexão entre indivíduo, sociedade e espécie. A solidão sobrepõe-se à Solidariedade. A primeira expressão deforma52 a segunda porque ao se privar (ou ser privado) da comunhão vivencial com o Outro, determina-se, em termos econômicos e jurídicos, o seu reembolso, o consolo que aparece, muitas vezes, pela remuneração dessa falta (RESTA, 2004, p. 27). As palavras deste autor (RESTA, 2004, p. 27) descrevem, ainda, como esse caminho que se afasta da integração à família humana produzida humanidade compartilhada: “[...] buscamos distâncias e diferenciações, mas as chamamos de volta, com prepotência, buscando e prestando solidariedade, juntando as nossas solidões através de processos não apenas simbólicos que ‘nos unem’ aos outros”. Ao se determinar, de modo criativo, infelizmente, novas maneiras de segregar, observa-se a formação de várias galáxias sociais, vários grupos que se unem pela sua “identidade comum excludente” e não estabelecem qualquer ligação ou filiação à humanidade que se compartilha. Tornam-se galáxias, grupos isolados uns dos outros, destinados a não compreenderem – e não instituírem – a unidade na qual se encontra na diversidade humana. O Direito criado pelo Estado-nação promove a Paz “entre iguais” pela violência da exclusão53. Nesse caso, o Direito Fraterno opõe-se a essas medidas nas quais privilegiam a força ao diálogo, a determinação nacional de Fraternidade à improbabilidade – temporal e espacial de seu desafio inscrito na família humana espalhada pelo planeta. Por esse motivo, é necessário
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compreender a proposição de um Direito Fraterno nas palavras de Resta (2004, p. 133) como: [...] direito jurado em conjunto por irmãos, homens e mulheres, com um pacto em que se ‘decide compartilhar’ regras mínimas de convivência. Então, é convencional, com olhar voltado para o futuro. O seu oposto é o ‘direito paterno’ que é o direito imposto pelo ‘pai senhor da guerra’ sobre a qual se ‘deve’ somente jurar (iusiurandum). A coniuratio dos irmãos não é contra o pai, ou contra um soberano, um tirano, um inimigo, mas é para a convivência compartilhada de soberania e da inimizade. Esse é um juramento conjunto, mas não é uma conjura.
tre. Insiste-se: a referida categoria é uma sinfonia (sempre) inacabada cuja composição ressoa, também, no Direito. A Humanidade despoja-se daqueles conteúdos puramente metafísicos e enfrenta seus paradoxos, aporias e outras dificuldades pela integração responsável a partir de sua fragilidade, finitude, agonias, angústias e ameaças55. Esse é o primeiro passo para ações com fundamentos antropolíticos e antropoéticos capazes de integrar todas as diversidades – humanas ou biológicas – que habitam a Terra-Pátria. A Fraternidade56 surge como princípio que anima o resgate e a compreensão histórica da “unidade da humanidade”, devido à Auto Ética. A postura introspectiva, numa descrição
54 “[...] Ser homem não garante que se possua aquele sentimento singular de humanidade. A linguagem, com as muitas sedimentações de sentido que encerra, é um infinito observatório de paradoxos com os quais convivemos. Leva seus traços mesmo quando estes parecem pálidos e apagados: muitas vezes o “apagamento” dos traços deixa marcas”. (RESTA, 2004, p. 13). 55 “[...] o humano não é mais idealizado, racionalizado, visto como uma consciência clara. É o humano de hoje, com suas grandezas, suas verdadeiras misérias, suas experiências ligadas a certa época e que oferecem uma paleta inteiramente nova. Isso só é possível, aliás, depois deste século de desconstrução que teve pelo menos o mérito de liberar dimensões até então inexploradas da existência humana [...]”. (FERRY, 2015, p. 107) 56
“A Fraternidade como princípio do universalismo político propõe a articulação entre o ‘liberalismo selvagem’ e um ‘comunitarismo ou um republicanismo fechado e intolerante’, evitando fazer com que a humanidade tenha que fazer a escolha impossível. Busca-se, então, na Fraternidade, um precedente teórico de grande valor e, ainda, inédito para se reportar na atualidade [...]”. (SILVA, 2015, p. 113).
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Percebe-se que a Fraternidade retorna como Princípio político e jurídico para evitar a acentuada erosão das formas de Estado e Direito autossuficientes. Ao criarem situações de igualdade, excluem-se as pessoas da participação nas decisões públicas. O Direito Fraterno surge como evidência dessa comunhão antropológica terrestre na qual se criam regras mínimas para a convivência fundamentadas nessa perspectiva Antropoética e Antropolítica. A Humanidade começa a ser descoberta pela sua fragilidade e finitude. Todos comungam essa “natureza perdida”, ou seja, somos precários, provisórios, incompletos. O Direito Fraterno é, conforme essa linha de pensamento, uma exigência histórica que reivindica o reconhecimento, a cortesia, o amor, a compaixão, a diferença como “lugares comuns” dessa constituição da nossa Comunidade de Destino. Fraternidade implica dificuldades e complexidade para se criar os vínculos de proximidade e Responsabilidade entre todos no âmbito local, regional, nacional, continental ou planetário. Não basta ser humano, mas é preciso desenvolver o sentimento de filiação (e proximidade) à Humanidade54 junto com todos os seres vivos nos quais habitam o território terres-
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fenomenológica, coloca a referida categoria em suspensão e possibilita a indagação: E se não houvesse a Fraternidade? Sob semelhante argumento: É possível obter Paz por meio do Direito sem a Fraternidade na Pós-Modernidade? A resposta parece ser negativa. O Direito Fraterno é uma manifestação da Pós-Modernidade57 porque não se trata de considerar a integração humana, para fins desta pesquisa, como postura ingênua, mas de valorizar possibilidades diferentes, alternativas que se manifestam em diferentes lugares do mundo como próprias ao estar-junto global. Por esse motivo, essa condição se constitui num convite de se refletir se esses modelos perpetrados pelo Direito criado na Modernidade e instigados pela sua obsessão política de neutralização das hostilidades contra o inimigo capaz de abalar a estabilidade soberana no território nacional justificam como condições para se pensar e viver a Paz no mundo. Insiste-se: a Fraternidade é uma aposta no improvável que, aos poucos, se torna realidade.
4 A AMIZADE COMO FUNDAMENTO RACIOVITAL À SUSTENTABILIDADE DE UMA SOCIEDADE-MUNDO
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Nas palavras de Bittar: “[...] A pós-modernidade é, por isso, como movimento intelectual, a crítica da modernidade, a consciência da necessidade de emergência de uma outra visão de mundo, a consciência do fim das filosofias da história e da quebra das grandes metanarrativas, demandando novos arranjos que sejam capazes de ir além dos horizontes fixados pelo discurso da modernidade. Ao mesmo tempo, como contexto histórico, a pós-modernidade é sintoma de um processo de transformações que estão profundamente imersas em uma grande revolução cultural, que desenraiza paradigmas ancestralmente fixados”. (BITTAR, 2009, p. 146).
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“o apelo da fraternidade não se encerra numa raça, numa classe, numa elite, numa nação. Procede daqueles que, onde estiverem, o ouvem dentro de si mesmos, e dirige-se a todos e a cada um. Em toda parte, em todas as classes, em todas as nações, há seres de ‘boa vontade’ que veiculam essa mensagem. Talvez eles sejam mais numerosos entre os inquietos, os curiosos, os abertos, os ternos, os mestiços, os bastardos e outros intermediários. O apelo à fraternidade não deve apenas atravessar a viscosidade e a impermeabilidade da indiferença. Deve superar a inimizade. A existência de um inimigo mantém ao mesmo tempo nossa barbárie e a dele. O inimigo é produzido por cegueira às vezes unilateral, mas que se torna recíproca quando respondemos com uma inimizade que nos torna igualmente hostis. É verdade que os egoísmos e os etnocentrismos, que suscitaram e não cessam de suscitar inimigos, são estruturas inalteráveis da individualidade e da subjetividade, mas, assim como essa estrutura comporta um princípio de exclusão no eu, ela comporta um princípio de inclusão num nós, e o problema chave da realização da humanidade é ampliar o nós, na relação matri-patriótica terrestre, todo ego alter e reconhecer nele um alter ego, isto é, um irmão humano”. (MORIN; KERN, 2005, p. 167/168).
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A leitura das obras de Sêneca e Resta indicam que a Amizade representa esse espaço fértil, aberto, para se consolidar as relações humanas. Estabelece-se a concórdia porque se compartilha, habitualmente, a busca de valores e condições necessárias para torna a vida sustentável no mundo. Essa ação inicia-se, microscopicamente, na presença com o Outro, na formação do Estar-Junto. Nesse momento, surge uma epifania: a humanidade compartilhada que apela para a Fraternidade58. Por esse motivo, a proposição de Resta direciona a Amizade para além dos cenários sociais e políticos. A referida categoria em estudo constitui outro paradigma no universo jurídico: o Direito Fraterno. A elaboração desse Direito não pode ser criado pela Racionalidade Instrumental da Idade Moderna porque se privilegia a exclusão do inimigo, a eliminação do fraco. Nada caracterizado como inútil serve ao propósito de progresso jurídico. Não se trata de um Direito paterno, imposto pelo “pai” (Estado), mas jurado entre iguais, entre homens e mulheres os quais decidiram estabelecer um mínimo necessário para a sua convivência.
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“O significado é essencial para os seres humanos. Temos a contínua necessidade de captar o sentido de nossos mundos exterior e interior, de encontrar o significado do ambiente em que estamos e das nossas relações com outros seres humanos, e de agir de acordo com esse significado. Estamos falando aqui, em específico, da nossa necessidade de agir de acordo com uma determinada intenção ou objetivo. Em virtude da nossa capacidade de projetar imagens mentais para o futuro, nós, quando agimos, temos a convicção – válida ou não – de que nossas ações são voluntárias, intencionais e voltadas para um determinado objetivo”. (CAPRA, 2005, p. 96).
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“O conhecimento pertinente deve enfrentar a complexidade. Complexus significa o que foi tecido junto; de fato, há complexidade quando elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo (como o econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico) e, há um tecido interdependente, interativo e inter-retroativo entre objeto de conhecimento e seu contexto, as partes e o todo, o todo e as partes, as partes entre si. Por isso, a complexidade é a união entre a unidade e a multiplicidade. Os desenvolvimentos próprios a nossa era planetária nos confrontam cada vez mais e de maneira cada vez mais inelutável com os desafios da complexidade”. (MORIN, 2001, p. 38).
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“Chego a este ponto capital: o perdão é uma aposta, um desafio ético; é uma aposta de regeneração daquele que fraquejou ou falhou; é uma aposta na possibilidade de transformação e de conversão para o bem daquele que cometeu o mal. Pois o ser humano, vale repetir, não é imutável: pode evoluir para melhor ou para o pior”. (MORIN, 2005, p. 127).
62 “O perdão é um ato de confiança. As relações humanas só são possíveis numa dialógica de confiança e desconfiança. Claro que se pode enganar a confiança. Mas, a própria confiança pode vencer a desconfiança. Embora incerta, a confiança é necessária. Por isso o perdão, ato de confiança na natureza humana, é uma aposta”. (MORIN, 2005, p. 129).
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A Amizade existe, mas não é visível nesse início de século XXI. Soma-se a esse argumento outra característica: essa categoria, além de invisível, não é compreendida. O prefixo “com” do verbo “com-preender”, segundo a leitura da obra de Morin (2005, p. 113), tem esse significado59 de envolver, enlaçar, tomar em conjunto. O esclarecimento e vivência de um Direito Fraterno, o qual se dissemina pela Amizade, precisa de uma compreensão complexa60, pois enlaça o sentido da subjetividade (a experiência emocional, afetual) e o da objetividade (explicar, desdobrar, reunir, articular informações necessárias para se conhecer um fenômeno), conforme sugere Morin (2005, p. 112). A Amizade se torna visível nas ações habituais, anódinas, de todos os dias. A sua manifestação, nas palavras de Resta, ocorre por meio da gratidão e reconhecimento. Entretanto, é necessário somar uma terceira proposição a essa idéia, qual seja, o perdão. Não é possível reconhecer o Outro como irmão, ser grato pelo seu existir o qual complementa o “Eu”, mas, também, perdoar. A ausência do perdão revela a cegueira, a ignorância no agir (desmedido) frente ao semelhante. Trata-se daquela expressão: “eles não sabem o que fazem”. O perdão, nas palavras de Morin, é uma aposta. A primeira expressão denota compreensão de que o Ser humano não pode ser reduzido tão somente aos atos censurados, aos crimes cometidos, às omissões – breves ou duradouras. O perdão aposta61 nesse enlace, nesse tecido – complexo - o qual se compõe de vias comunicativas biológicas, antropológicas, afetivas, culturais, entre outros, ou seja, compreende-se o Ser humano nesse ir e vir entre a certeza e incerteza de seu pensar e agir. O ato do perdão é altruísta, generoso e dissolve a animosidade da vingança, do ódio, do ressentimento. Trata-se de um ato que liberta. Por esse motivo, os amigos disseminam gratidão, reconhecimento e perdão62 nas suas ações. Esses instauram outro ambiente o qual a paz se torna longeva. A concórdia se torna o solo fértil, cujas raízes procuram se alimentar a fim de produzirem frutos doces. O Direito Fraterno somente se torna viável na aposta da Amizade, a qual se manifesta pela gratidão, reconhecimento e perdão. Essa é o fundamento – mínimo – para um espaço de concórdia duradoura que não se circunscreve nos territórios nacionais, nas sociedades contra-
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tualistas, mas se amplia no mundo pelo apelo à nossa humanidade compartilhada. Por esse motivo, verifica-se que a Amizade é a razão seminal63 de um Direito Fraterno. O raciovitalismo representa, para Maffesoli, essa sinergia entre razão e sensibilidade. Trata-se de uma racionalidade aberta a qual difere do racionalismo64, em outras palavras, não se identifica tão somente com as explicações (enlace objetivo)65, mas as complementa com as múltiplas vivências (enlace subjetivo) no momento presente, no cotidiano. A ausência dessa compreensão caracterizaria os fenômenos sociais66 como incompreensíveis. A razão seminal67, no pensamento de Maffesoli, representa essa “razão interna”. Constata-se, a partir da leitura dos argumentos propostos pelo citado autor, que essa “razão interna” é uma estrutura antropológica na qual somente se atualiza, se realiza, num momento particular. É uma racionalidade “de fundo” a qual se expressa na clandestinidade – e no silêncio – da vida cotidiana. Percebe-se a necessidade de se encontrar o significado próprio, “de fundo”, dos fenômenos os quais sintetizam esse ir e vir entre objetividade e subjetividade68. Não se trata de uma clausura anterior, mas que se expressa, também, por um sentido afetual, amoroso69 o qual somente a experiência das sensações na vida cotidiana podem esclarecer, tornar luminoso70 a obscuridade e os limites impostos pelo racionalismo – busca-se, de modo complementar, um sentido posterior. Novamente, indaga-se: Qual é o fundamento raciovital, a “razão interna”, de um Direito Fraterno? A Amizade. Não é possível pensar essa categoria sem cogitar que a Terra seja o nosso único habitat. Segundo o pensamento de Morin, é a nossa genuína pátria. A Terra – por meio de sua biosfera e humanidade – representa essa “espaçonave”, a qual está à deriva no espaço sem um piloto. É
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As expressões raciovitalismo, razão seminal, razão interna ou razão sensível serão utilizadas nesta pesquisa como sinônimas. O Racionalismo, fundado pela Lógica, difere da Razão. Segundo Maffesoli: “[...] se existe uma lei é a da coincidentia oppositorum, que faz com que as coisas, seres, fenômenos, totalmente opostos, se combinem. Ao negligenciar isto, o racionalismo, especialmente sob a forma moderna, empenha-se em sufocar, excluir porções inteiras da vida, até que estas por sua vez se vinguem, exacerbando-se e subindo aos extremos [...]”. (MAFFESOLI, 2005, p. 30). Grifos originais da obra em estudo.
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“É necessário que o ato de compreensão da vida social se justifique e se normatize pelo seu sentido amoroso. Quando a vivência de uma realidade se torna uma abstração intelectual pura, essa se distancia, lamenta ou ignora as ações humanas. Deixa-se de perceber e/ou compreender um estar-junto que fomenta a organicidade social e tampouco visualiza como essa possibilidade vital se sustenta”. (AQUINO, 2016, p. 34).
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“[...] Já na filosofia medieval, retomando-se aí a noção de logos spermatico, cara aos gregos, falou se ‘razão seminal’, isto é, de um germe do qual cada individuo recebeu uma parcela. Trata-se de algo que permanece, ou melhor, que preexiste no coração de todo homem antes de qualquer construção intelectual”. (MAFFESOLI, 2005, p. 58).
68 “[...] Isso pode nos levar à seguinte proposição: forte de si mesma, segura de sua razão interna, uma cultura pode difundir-se, uma vez que tenha sabido metabolizar os elementos que tomou emprestados”. (MAFFESOLI, 2005, p. 63). 69
“[...] o amor é a experiência fundamental de ligação dos seres humanos. Leva-nos à realização pela nossa união. Se o amor leva ao paroxismo a aptidão integracionista do princípio altruísta de inclusão, corre o risco de ser apropriado pelo princípio egocêntrico da exclusão, que monopoliza o ser amado e o encerra numa posse ciumenta. O verdadeiro amor considera o ser amado como igual e livre; [...]”. (MORIN, 2005, p. 107/108).
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“[...] Iluminação que nada tem de excepcional, que não deve inquietar ou ser, forçosamente, considerada como algo anormal, de emanações anômicas ou obscurantistas, umas ‘iluminação’ que leva ao seu ponto último a lógica das luzes, isto é, que se empenha em compreender, e não em julgar, todos os fenômenos, ações, representações humanas pelo que são e não em função daquilo que deveriam ser”. (MAFFESOLI, 2005, p. 54).
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65 “[...] se monstros existem são aqueles que têm a pretensão de um saber absoluto. O saber do Universalismo. O saber da coisa em si. São esses os verdadeiros paranóicos. São perigosos pois é em nome desse saber absoluto que se abriram os campos de concentração. Ou que o justificaram. O universalismo sempre foi o berço do totalitarismo. O totalitarismo em questão pode ser o do racionalismo dogmático ou do cientificismo sem horizontes, pode ser também aquele do republicanismo obtuso”. (MAFFESOLI, 2009, p. 40).
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no seu interior que se encontra todos os significados para uma vida que precisa de proteção e preservação (Sustentabilidade)71, especialmente com a amplitude de atuação da Cidadania. O apelo para uma Cidadania Mundial responsável é a epifania de uma Amizade a qual expressa por uma humanidade compartilhada. A superação do Estado-nação, rememora Morin, não está no seu aniquilamento, mas na instituição de associações72 mais amplas, na limitação do poder sobre a vida e morte de etnias e pessoas, na manutenção de todas as competências as quais essa entidade pode regular (princípio da subsidiariedade)73. Nesse caso, a Sociedade-Mundo – ou Sociedade Civil Mundial – ainda não existe e tampouco se esclareceu que a Terra é a nossa única Pátria. Têm-se os primeiros pilares – como o Direito Fraterno o qual se manifesta pela Amizade-, mas não se constituiu, ainda, o edifício74. A Sustentabilidade75 se torna esse novo Valor a ser depurado e constituído historicamente no século XXI. Sob semelhante argumento, a categoria anteriormente mencionada precisa ser estudada, ainda, a partir da Amizade no cenário da Sociedade-Mundo, para se difundir essa práxis que acolhe, reconhece, protege e a importância dessa biodiversidade planetária. A categoria anteriormente mencionada não pode ser definida, exaurida nos limites epistemológicos de uma caracterização, porque sua natureza axiológica demanda a tarefa de, continuamente, encontrar novas situações as quais favoreça uma interação maior entre “Indivíduo-Sociedade-Espécie” e a Terra para se criar e desenvolver meios de vida mais razoáveis e fraternas para todos, indistintamente. Não se trata de uma postura cujo enfoque é exclusivo ao universo do Meio Ambiente76, mas de consolidar os vínculos antropológicos, biológicos e ecológicos no tempo e espaço para que haja formas de vida e convivência sempre mais sustentáveis. A partir desses argumentos, a Sustentabilidade, especialmente no seu sentido social, assemelha-se a categorias como Justiça e Dignidade as quais seus conteúdos renovam-se no decorrer do tempo, da interação e percepção humana. A clausura da definição de Sustentabilidade provoca o desvio dos significados, dos devires que se deseja constituir na diversidade da biosfera terrestre. A sua intenção está além dos interesses passageiros ou de ações caridosas promovidas
“[...] a Terra é o único lugar habitável e amável no cosmo; ela é nosso habitat, nossa Arché na imensidão cósmica, não apenas a nossa Mátria, mas também a nossa Pátria”. (MORIN, 2011, p. 72).
72 Cita-se como exemplos dessas associações: Anistia Internacional, Greenpeace, Sobrevivência Internacional, Médicos sem Fronteiras, Cidadãos do Mundo, entre outros. (MORIN, 2011, p. 70/71). 73 “A superação do Estado-nação rumo a associações mais amplas só pode ser vivida, portanto efetiva, [...] se cada um e todos reconhecerem essa qualidade à Terra, ela própria mátria e pátria de todos os humanos”. (MORIN; KERN, 2005, p. 116). 74
“[...] se o planeta constitui um território que dispõe de um sistema de comunicações, de uma economia de uma civilização, de uma cultura, de uma vanguarda de sociedade civil, falta-lhe certo número de disposições essenciais de organizações, de direito, de instância de poder e de regulação para a economia, a política, a polícia, a biosfera, a governança, a cidadania”. (MORIN, 2011, p. 72).
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Para fins desta pesquisa, adota-se o seguinte conceito operacional para Sustentabilidade elaborado pelo autor deste estudo: É a compreensão ecosófica acerca da capacidade de resiliência entre os seres e o ambiente para se determinar - de modo sincrônico e/ou diacrônico - quais são as atitudes que favorecem a sobrevivência, a prosperidade, a adaptação e a manutenção da vida equilibrada.
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Rememora Ferrer: “[...] Sin embargo y como también hemos visto, las preocupaciones de la comunidad internacional han ido ampliando su espectro de lo puramente ambiental –nuestra relación con el medio natural- a aspectos que lo que tienen que ver es con la relación con nuestros semejantes, con el modelo de sociedad que tenemos que construir. Una sociedad que no colapse los sistemas naturales pero que, además, nos permita vivir en paz con nosotros mismos, más justa, más digna, más humana. Una sociedad que dé un salto significativo en el progreso civilizatorio, que deje atrás o al menos aminore las grandes lacras de la Humanidad que a todos nos deben avergonzar, como el hambre, la miseria, la ignorancia y la injusticia. El paradigma actual de la Humanidad es la sostenibilidad”. (FERRER, 2013, p. 319).
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por instituições econômicas – públicas ou privadas - presentes em todo o território mundial77. A Amizade se torna critério de Sustentabilidade na Sociedade-Mundo na medida em que estabelece vínculos de responsabilidade, de compreensão sobre todos os seres vivos que habitam a Terra. A amplitude planetária da Amizade produz efeitos sociais, éticos, políticos e jurídicos os quais permitem a presença indefinida do Ser humano em todo o território terrestre. Contata-se, por meio desses argumentos, que o Direito Fraterno, segundo o contexto da Sociedade-Mundo, preserva as formas de desenvolvimento das relações amistosas em todo o território terrestre. É a Amizade, esse sumo bem, o qual possibilita os cenários de concórdia e reivindica a importância do cuidado e responsabilidade por todos os seres vivos que habitam a única Pátria na qual oferece condições de vida em plenitude: a Terra.
A sensação de cumplicidade e cordialidade produzidas pela Amizade conduz a modos de vida mais hospitaleiros, transfronteriços, porque reivindica da Fraternidade como aposta de metamorfose do Ser humano no decorrer do tempo. A desejada concórdia entre todos somente se viabiliza pela presença do amigo na Terra. Esse compartilhar o existir (para fora do “Eu”) evidencia a incompletude humana e a necessidade de se esclarecer como a nossa humanidade compartilhada é a expressão na qual permite transpor os interesses nacionais por necessidades humanas fundamentais. As relações humanas amistosas precisam ser compreendidas e exercitadas com habitualidade para se difundir que o todo está inscrito em cada ser vivo e cada ser vivo é a imagem desse todo. O uno é múltiplo e vice-versa. Entretanto, não é suficiente difundir Amizade e Fraternidade como elementos necessários ao esclarecimento dessa humanidade compartilhada. Na medida em que a Terra se torna nossa Pátria e surgem novos espaços para o conviver entre todos os seres vivos, é necessário a constituição de estruturas para se preservar, educar, reconhecer, exercitar e exigir a importância da vida como bem supremo. A Sociedade-Mundo não existe, entretanto, percebem-se silenciosas evidências de suas manifestações e reivindicações. As diversas associações que agem de modo transfronteiriço – Greenpeace, Médicos Sem Fronteiras, Cidadãos do Mundo – revelam a necessidade de se consolidar essas estruturas, as quais formalizam a citada Sociedade e dissemina a preservação de todos no planeta. Sem a Amizade sequer é possível cogitar a Sustentabilidade da Sociedade Civil Mundial. É por meio das relações amistosas, da cumplicidade no existir junto com o Outro (Estar-Junto), das alegrias, angústias, tristezas, mágoas, ressentimentos, comemorações, afetos que
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“Hoje, devido a uma evolução que ainda vai demandar tempo para ser entendida, o substantivo – sustentabilidade – passou a servir a gregos e troianos quando querem exprimir vagas ambições de continuidade, durabilidade ou perenidade. Todas remetendo ao futuro”. (VEIGA, 2010, p. 12).
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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se criam condições e espaços para se ampliar e reconhecer esse estar-junto. A Sustentabilidade da Sociedade-Mundo demanda a aposta e apelo de um Direito Fraterno cuja razão interna é a Amizade. É a partir desses argumentos que se necessita retornar à Introdução deste estudo e verificar se a hipótese de pesquisa foi confirmar ou refutada pelo fundamento teórico apresentado ao leitor ou leitora. Nesse caso, ratifica-se, como inicialmente mencionado, a resposta como positiva, pois somente por meio da Amizade é possível pensar num Direito Fraterno que se desenvolve, se aperfeiçoa no tempo por meio das relações humanas que ocorrem em diferentes territórios e culturas. Essa é a imagem da Humanidade: a constituição de uma tessitura social global que se manifesta pelas atitudes anódinas do cotidiano.
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VEIGA, José Eli da. Sustentabilidade: a legitimação de um novo valor. 2. ed. São Paulo: SENAC, 2010. FRATERNAL LAW: THE NECESSARY RACIOVITALITY FOR THE CONSTITUTION OF A WORLD SOCIETY ABSTRACT This paper meditates about the purposes of Friendship by Seneca and Elígio Resta as a basis for a Fraternal Law which is revealed through
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SILVA, Ildete Regina do Vale; BRANDÃO, Paulo de Tarso. Constituição e fraternidade: o valor normativo do preâmbulo da Constituição. Curitiba: Juruá, 2015.
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World-Society. The objective is to investigate if Friendship makes it possible to create sustainable conditions for the spread of sociality in the world preserved by Law and Fraternity in the World-Society environment. The method used was the Inductive. As conclusion, it`s possible to understand that without Friendship it is not possible to constitute the World-Society. The Fraternal Law arises as an organizational instrument to clarify the need for a permanent exercise of the human virtues. Keywords: Friendship. Sustainability. Fraternal Law. World-Society. Ratiovitality.
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ENSINO JURÍDICO: É POSSÍVEL ENSINAR DIREITO? Sandra Regina Martini1 Vitoria Josefina Rocha D´almeida Mota2
RESUMO A análise do artigo versa sobre as questões atinentes à crise do ensino jurídico no Brasil, além das variáveis da crise e consequências no âmbito acadêmico. Aborda-se também questões atinentes à transdisciplinaridade, bem como os reflexos do ensino jurídico nos sistemas sociais, cada vez mais complexos. Palavras-chave: Ensino jurídico. Transdisciplinaridade. Transformação social.
“Uma das conclusões a que cheguei é que a atividade docente deveria ser mais coletiva, ela é muito individual, ainda.” (Loussia Felix)
1 Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (1983), mestrado em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1997), doutorado em Evoluzione dei Sistemi Giuridici e Nuovi Diritti pela Università Degli Studi di Lecce (2001), Pós-doutorado em Direito (Roma Tre, 2006) e Pós-doutorado em Políticas Públicas (Universidade de Salerno, 2010). Foi Professora titular da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, da Scuola Dottorale Internazionale Tullio Ascarelli e professora visitante da Universita Degli Studi Di Salerno. Foi diretora da Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul (janeiro de 2007 a fevereiro de 2011), foi membro (de janeiro de 2008 a dezembro de 2013) do Conselho Superior da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS). Atualmente é Pesquisadora Produtividade nível 2 CNPq, professora do Centro Universitário Ritter dos Reis (Uniritter), professora-visitante no programa de pós-graduação em Direito da UFRGS (PPGD). É avaliadora do Basis do Ministério da Educação e Cultura e do Basis do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Parecerista ad hoc CNPq e CAPES. Conferencista no Brasil e no exterior. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em sociologia jurídica, atuando principalmente nos seguintes temas: Saúde Pública, Políticas Públicas, Sociologia Jurídica e Sociedade e Direitos Humanos 2 Possui graduação em direito pela Universidade Estadual da Paraíba (1998). Atualmente é professora do Centro de Ensino Superior do Vale do Parnaíba e da Faculdade São José - Timon. É advogada e cursa pós-graduação strictu sensu em Direito Público na Universidade do Rio dos Sinos - Unisinos. É graduada em Letras-Português pela Universidade Federal do Piauí. (2000).
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1 INTRODUÇÃO
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3 Sobre a revisão histórica de fatos ligados a origem do direito e seus imapctos, temos pesquisas consolidadas, que mostram como muitas vezes utilizamos de forma equivocada a Historia. Recomendamos o texto de Gustavo Siqueira, em especial no texto “pequeno ensaio....”, onde o autor resgata vários educadores jurídicos para demonstrar que a História não pode ser contata por um jurista como se fosse um historiado. Aqui, temos já a importância de pensar a Transdisciplina como método de análise, a qual nos “permite” ir para outras ciências mas sempre “voltar” para o nosso foco de análise. 4 A crise, em especial no sistema da educação está sempre relacionada com a idéia de Reforma, mas paradoxalmente não se relaciona com a necessidade de reformar os reformadores. Sobre isso ver: CORSI, Giancarlo. Sistemi Che aprrendono. Pensa: Lecce, 1998.
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A análise do ensino jurídico no Brasil, desde os seus primórdios3, implica no (re) conhecimento deste como fator essencial à constituição do próprio Estado, uma vez que a consolidação de um pensamento jurídico nacional se dá apenas com a chegada dos primeiros cursos jurídicos, na primeira metade do século XIX. Este artigo trata da importância do ensino jurídico e suas repercussões no âmbito das sociedades modernas, complexas e repletas de paradoxos. Para atender a essa realidade impõe-se que professores e acadêmicos dos cursos jurídicos sejam capazes de pensar o Direito de modo transdisciplinar de sorte que possam, ambos, enfrentar as contingências atuais de forma reflexiva, uma vez que o modo atual de ensinar/estudar o Direito não atende às crescentes demandas sociais Também se investigou as origens da crise paradigmática por que passa o ensino jurídico, em seus aspectos históricos, políticos e ideológicos. Analisar a crise4 é, portanto, condição para a elaboração de novos referenciais para o ensino em debate, o que se fez, ao longo do tempo, através das inúmeras reformas educacionais promovidas pelos diversos órgãos competentes para este fim. Dessa abordagem, dois aspectos se apresentam como fundamentais: a função social das Faculdades de Direito, e os efeitos do modo de pensar o Direito enquanto saber produzido pelo ensino. Este pensar o Direito remete às raízes da história brasileira atrelada a Portugal, sua metrópole, a quem o Brasil esteve subordinado, durante três longos séculos, deixando a marca indelével da subordinação na formação do Direito brasileiro, e do pensar o Direito, como ciência social. Essas relações deixaram consequências no imaginário social no que tange à compreensão do Direito. O debate sobre ensino jurídico, já tem lugar na tradição da história acadêmica no Brasil e continua sendo retomado constantemente, sobretudo em tempos em que se percebe que os caminhos por ele percorridos não se alinham a um ideal da formação comprometido com a ética e a capacidade reflexiva dos formandos, como atualmente se verifica. Assim, tem razão Loussia quando afirma que a atividade de docência continua sendo isolada, cada professor pensa fazer o melhor, mas não reflete com os pares o “melhor, deste melhor”. As motivações para esta postura individualista vão desde o medo do desemprego (sim, o professor é um empregado e não um vocacionado, a professora não é a “tia” e nem a “profe”, formas carinhosas, mas carregadas de significados e significantes), até a arrogância muito típica da profissão e em especial nos operadores do direito. Em meio a esse descompasso entre o que se espera de uma formação jurídica superior
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e o que se percebe no cotidiano da vida prática surgem acalorados debates sobre que caminhos devem-se seguir para alcançar um melhor resultado nesse processo de aprendizado do direito. Muito já foi dito acerca do tema, e muito há por dizer, uma vez que os diversos trabalhos, análises e pesquisas ainda não conseguiram uma resposta adequada para os problemas enfrentados pelo ensino jurídico ou apontaram para caminhos que não foram seguidos. É certo que o crescimento5 exponencial dos cursos de Direito no Brasil tem sido um dos elementos de incremento das dificuldades, sendo imperioso aliar qualidade a quantidade, o que tem se tornado pouco provável, já que são muitos os componentes que envolvem a questão, como qualificação docente, critérios de ingresso nas instituições de ensino, infraestrutura. Se o tema suscita muitas discussões, que encontram eco em grandes expoentes do mundo jurídico, a exemplo de Rui Barbosa, cumpre especificar os passos trilhados na pesquisa e debater o(s) problema(s) que envolvem o ensino jurídico.
Como é sabido, há muito o Direito ocupa um papel fundamental nas diversas sociedades, que é servir como seu instrumento de controle e regulação. Todavia, essa condição vem cada vez mais perdendo eficácia nesse papel de controle, não por haver recursos melhores, mas porque o direito não tem respondido às necessidades sociais na medida das exigências, que crescem em razão do incremento das comunicações, das fragilidades dos laços humanos e da quantidade de direitos a ser abrigados nas legislações, impossibilitando-lhes, muitas vezes, a efetividade. O curso de Direito no Brasil veio para fortalecer o Estado nacional, mas sua função foi-se modificando, aliada às novas demandas sociais. Hoje, o sistema do direito tem de oferecer respostas que ultrapassam seus objetivos iniciais. Novas demandas sociojurídicas vão surgindo, mas o direito fundamentado na perspectiva acima apresentada não responde às demandas da sociedade. Esses problemas podem ser enfrentados através de uma análise da complexidade típica da sociedade atual, onde cada vez mais o sistema do direito é chamado a responder questões que ultrapassam os limites do formalismo e do normativismo. Percebem-se as dificuldades do Direito de lidar com as novas condições vividas pelo mundo globalizado e repleto de novas exigências decorrentes dessas modificações do ritmo das sociedades, sendo possível fazer uma clara associação com o ensino jurídico. Que tipo de direito está sendo ensinado nas instituições de ensino no Brasil? A quantas anda a condição desse ensino? Como o ensino jurídico é o principal meio de difusão da cultura jurídica vigente no Brasil, baseado em algumas situações práticas do cotidiano de trabalho da mestranda: o magistério e as angústias vivenciadas na formação jurídica.
5 Disponível em: <http:// www.oab.org.br/noticia/20734/brasil-sozinho-tem-mais-faculdades-de-direito-que-todos-os-paises>. Acesso em: 07 maio. 2017.
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2 DIREITO E TRANSDISCIPLINARIDADE
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Talvez nenhum espaço possa servir de melhor parâmetro para perceber as condições do ensino jurídico que a própria sala de aula. Nesse contexto, falar em formação jurídica implica reconhecer-lhe a importância para a consolidação de uma cultura jurídica nacional e mais ainda, significa a necessidade de refletir sobre o papel desempenhado pelas instituições de ensino jurídico no Brasil, porque o curso de Direito não forma apenas advogados, mas também os que ocupam, privativamente, os cargos com poder de decisão de uma das funções do Estado, a jurisdicional. Nesse sentido, convém observar a deficiência vivida nos cursos de formação jurídica quanto aos aspectos pedagógicos, que se revelam atrelados ao saber exegético e sem as devidas interações com os demais campos do saber, e até mesmo relações estabelecidas nas próprias disciplinas que estruturam os cursos jurídicos. Faltam, portanto, dentre outros, recursos didáticos, pedagógicos que possam contornar uma parte do déficit desse ensino. Claro, sem assim isentar os demais problemas existentes na formação acadêmica na grande maioria das instituições de ensino superior no Brasil. Não causa espanto que o modelo didático-pedagógico em uso tenha a cara da visão normativista, cuja finalidade precípua é a busca teórica da validade da norma, o que gera verdadeiros vícios e deformações no ensino do direito, o que os teóricos denominam de exegetismo, judicialismo praxista ou diletantismo (RODRIGUES,1993,p.38-45), termos que, segundo Ferraz Junior (1980, p.90), “representam distorções didáticas e epistemológicas sem que uma esteja isolada da outra”. O exegetismo configura o intento de identificar o Direito com a lei e resumir a sua hermenêutica à busca do sentido da lei. Conforme Machado Neto (1984, p.23), a idolatria da lei reduz a ciência jurídica a uma coletânea de glosadores, que se ocupam em entender o direito a partir de um conhecimento filológico, apoiado na letra da lei. Percebe-se quão reduzido está o saber jurídico a esses exatos pontos referidos, demasiado repetidos nos cursos de Direito disseminados pelo Brasil. Em síntese: direito é lei, que emana do legislador, que o direciona conforme a sua vontade e, depois, se aplica via interpretação judicial. As dificuldades vividas pelo ensino jurídico encontram-se tão inter-relacionadas que momentos há em que a diferenciação entre os vícios citados se torna complexa, como no caso do judicialismo praxista, o segundo vício do modelo pedagógico vigente. Nessa perspectiva, o direito só se concretiza depois de aplicado ao caso concreto pelo magistrado, de sorte que a ciência do direito fica, mais uma vez, resumida a outro aspecto relevante, o da decisão, levando a uma cultura cada vez maior do decisionismo jurídico e a consequente judicialização do direito. Para além dessas situações, não se percebe de maneira difundida, na cultura do ensino jurídico, os recursos de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, entendendo-se estes como estratégias que possibilitam a integração disciplinar para reunir as diversas possibilidades de conhecimento, em oposição ao conhecimento monodisciplinar ou mesmo multidisciplinar, no quais não se percebem as relações entre as várias disciplinas. Nesse sentido ensina Nicolescu:
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como o prefixo trans indica, a transdisciplinaridade diz respeito ao que está, ao mesmo tempo, entre as disciplinas, através das diferentes e além de todas as disciplinas. Seu objetivo é a compreensão do mundo presente, e um dos imperativos é a unidade do conhecimento.
Uma atitude transdisciplinar procura respeitar o ser humano integralmente, em sua totalidade/complexidade de corpo físico, mente e espírito inseridos em realidades socioculturais específicas. (...) Aceitar a alteridade exige tolerância e flexibilidade para reconhecer e aceitar que há outras maneiras de perceber o mundo, diferentes das nossas, o que pode nos levar a frustração. Exige também esforço para a integração do diferente, sem discriminação, sem juízo de valor e, portanto, sem exclusão. Esse objetivo não é fácil de ser alcançado, pois exige uma articulação entre o dizer e o fazer que não é simples (BLATYTA; RUBINSTEIN, 2005).
Assim como a perspectiva transdisciplinar é fundamental para o sistema da educação, o mesmo se dá para o sistema da saúde. Mais do que isso, a construção da própria Teoria Sistêmica parte da abertura para várias áreas do conhecimento. Luhmann buscou em outras disciplinas e áreas os fundamentos para a construção e elaboração do marco de referência, com
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A teoria surge, sobretudo em função do avanço do conhecimento e dos desafios que o mundo globalizado apresenta para o século XXI. Seus conceitos, acabam por romper com os princípios cartesianos de fragmentação do conhecimento e dicotomia das dualidades (DESCARTES, 1973, p.33-81) e propõem outra forma de pensar os problemas contemporâneos. A fragmentação do conhecimento se generalizou e reproduziu também por meio da organização educacional o modo de ser e pensar dos sujeitos. Assim, a transdisciplinaridade, propõe uma religação de saberes compartimentalizados e oferece uma perspectiva de superação do processo de atomização (SANTOS, 2008, p.71). Esse processo de separação dos saberes não esteve ausente do mundo do conhecimento jurídico, ao contrário, encontrou terreno fértil para sobreviver e ter fôlego suficiente para se sobrepor aos meios integrados de construção dos saberes. Não é sem razão que é disseminado no mundo acadêmico que o curso de Direito é conservador e pouco afeito à integração com o mundo social e as realidades fluidas do contemporâneo, formando, por consequência, profissionais com o mesmo perfil, ou seja, conservadores e pouco sensíveis à percepção da realidade. Sendo essa ideia verdadeira, tem-se um ciclo vicioso continuado, posto que os acadêmicos, uma vez orientados por essas características, em retornando à academia como professores irão reproduzir o viés da formação recebida. O que se pode fazer para rompê-lo? Eis uma questão que se pretende averiguar no decorrer do trabalho. Um dos aspectos que aqui se coloca como possibilidade para o enfrentamento da questão é o uso das diferentes modalidades de exercício do trabalho pedagógico sob o viés da interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, como meio de permitir novas visões de mundo ao estudante dos cursos jurídicos, que serão os (re)produtores dos saberes assimilados na Academia.
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uma atitude transdisciplinar. Ele saía e voltava para a teoria, buscando o que cada área do conhecimento tinha para contribuir para a solidificação desta nova teoria: saiu da sociologia para, na verdade, torná-la mais “sociológica” e saiu do direito para mostrar a diferença entre o sistema do direito e da moral, por exemplo. Na educação, a postura transdisciplinar faz parte do cotidiano, mesmo que, muitas vezes, isso seja imperceptível. Os alunos e professores trazem para o ambiente escolar toda uma vivência, um contexto no qual não é possível se libertar e nem oportuno seria, pois sem a educação, dificilmente se poderia assimilar comportamentos sofisticados ligados ao viver cotidianamente. Por isso, educação é, sobretudo, intenção pedagógica. Ou seja, o professor educa intencionalmente e o aluno deve reagir a tal intenção, o que reforça a necessidade da perspectiva transdisciplinar, pois ela está estruturada na constante ousadia, na transgressão, na saída e no retorno. A relação entre a formação de operadores dos sistemas do direito e da saúde no Brasil foi descrita de modo particular por Gilberto Freyre em 1953, inicialmente escrito para “Year book of education” – Londres, traduzido para o português em 2003, ele observa:
Note-se que, no caso brasileiro, a relação entre saúde e direito está presente desde a formação até a consolidação da própria democracia. A saúde pode ser considerada uma “ponte” na efetivação dos mais diversos sistemas sociais e um dos fatores determinantes da própria saúde é a educação. Assim, a postura transdisciplinar está presente nos dois sistemas sociais, pois a produção científica é fundamental para o desenvolvimento e transformação da atual sociedade, na qual o conhecimento disciplinar perdeu o sentido. Nesta sociedade de mundo, a produção do saber parte de múltiplas facetas. Nesta sociedade inflacionada por informações de todos os tipos e ordens, é necessário identificar quais destas comunicações se tornam de fato conhecimento, quais são efetivamente apropriadas, pois o conhecimento não é mais dado: é construído e resultado de um trabalho de cooperação e diálogo entre saberes. Exatamente este diálogo entre as ciências que aproxima saúde e educação. Em termos teórico-sistêmicos, temos outra aproximação entre estes sistemas: o seu modo de operar através de um código, que é ativado não pelo aspecto “positivo”, mas pelo negativo. O retrato da estrutura educacional brasileira, alicerçada em princípios seculares, tem
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(...) Como bacharéis, advogados, doutores em medicina, jovens de origem menos aristocrática e até plebeia tiveram então a oportunidade de formar nova aristocracia: uma aristocracia de beca coroada por outra de borla e capelo. E nessa nova aristocracia, era natural que os professores das faculdades de Direito e de Medicina se tornassem importantíssimos príncipes acadêmicos: eles não somente eram formados em escolas superiores, mas professores ou mestres das mesmas escolas. Nenhum advogado importante tinha seu prestígio completo se não era professor da faculdade de Direito. Nenhum médico era considerado entendido profundo em Medicina se não fosse professor de escola de Medicina (FREYRE, 2003, p.88).
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levado os docentes a uma prática de ensino insuficiente para uma compreensão significativa do conhecimento, deixando muitas vezes os alunos vazios de respostas, como se verifica em questões do tipo: “por que tenho que aprender isso?”. No âmbito do ensino jurídico essa realidade se verifica muito intensamente em questões atinentes à lei. Sem entender as razões da existência de determinadas demandas ou exigências normativas, os alunos questionam: “mas por que é assim?” e a resposta mais comum e óbvia por parte dos professores, que, provavelmente, tenham ouvido a mesma retórica: “porque a lei diz assim. Por isso! Se você quiser que seja diferente, terá que ser legislador, ou magistrado para ter o poder de dizer diferente”. Assim, caminham as orientações acerca dos questionamentos pouco óbvios sobre a construção do Direito. Tome-se como exemplo como o caso da Sociologia inserida nos currículos acadêmicos dos cursos jurídicos. A interdisciplinaridade e a consequente transdisciplinaridade não deveriam ser meros discursos acadêmicos. Sabe-se que a relação entre ambas as ciências leva ao estudante uma melhor capacidade de compreender a realidade social, e deveria assim ser exigência de quem e por quem ministra o ensino jurídico a partir do pressuposto da interação avançada dos saberes ali representados. De acordo com Pinto (2000, p. 97):
Desse pensamento se extrai que a prática docente entrelaçada a partir de diferentes percepções e conceitos resulta em melhor aproveitamento, ao contrário da adoção exclusiva de um único caminho ou método que seccione o aprendizado como conteúdo isolado. Desse modo tem-se um ensino aprendizagem que tende à transdisciplinaridade, servindo, esta de instrumento para a observação da realidade. Para Santos (2008, p.72), na prática do magistério, esse referencial representa mudança epistemológica e vem sugerindo reconceitualizações de categorias analíticas, em vez de se ater à lógica da objetividade e da racionalidade aliada à descontextualização. Segundo ele, a construção do conhecimento por essa perspectiva, retira a compreensão da subjetividade, da articulação dos saberes disciplinares e do contexto. Ainda para o mesmo autor: Essa visão descontextualizada e simplificadora, difundida pela ciência moderna, tornou-se hegemônica ao longo dos últimos 400 anos e manteve latente a questão da complementaridade dos pares binários. A partir das últimas décadas, no entanto, o que permanecia implícito se manifesta com força significativa e se transforma em princípios científicos, evolução acontecida no próprio seio da ciência moderna (SANTOS,2008, p.73).
Certo é que inobstante exista ainda uma grande relutância na aceitação dos processos
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Quando o discurso acadêmico projeta a formação dos operadores do Direito com fundamento na percepção dos valores e sentimentos sociais, a sua credibilidade passa, necessariamente, por uma prática reveladora de que esse compromisso deve ser de todos, especialmente dos que exploram como atividade econômica o ensino jurídico.
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transdisciplinares, sobretudo no ensino jurídico, já não se pode mais ignorar a penetração, na vida acadêmica, da articulação dos pares binários e da conectividade dos saberes, como leciona Morin (2001). A transdisciplinaridade exige, por si, uma postura democrática no aprendizado, no sentido de que os diversos saberes são igualmente importantes, superando assim a visão clássica da hierarquização dos saberes, que torna alguns, naturalmente maiores ou mais importantes que outros. É possível observar, nessa perspectiva, que a ideia pré-concebida dessa hierarquização, se reflete não apenas no mundo das ciências de modo geral, como encontra guarida dentro das próprias instituições de ensino jurídico e são reproduzidas fielmente pelos ditos operadores do direito, como se convencionou chamar os que militam na área jurídica. A propósito não é apenas nas instituições de ensino de cursos jurídicos que se percebe essa pouca inter-relação entre as diversas áreas do saber. Felix (2009, p.21) acentua essa realidade ao expor sobre os problemas do ensino jurídico em seus diversos aspectos metodológicos:
Tem-se a partir da reflexão da autora, que a dificuldade de partilhas e discussões entre as diferentes áreas do saber não são privilégio dos cursos de direito, mas da vida das academias de modo geral, demonstrando que inobstante o momento peça cada vez mais as interações, ainda nos encontramos distanciados dessa realidade. Percebe-se que determinadas áreas do direito, enquanto ciência, ganham mais expressão que outras, em razão de algum prestígio ou poder que a militância daquela área possa representar. Assim, volta-se à ideia do ensino disciplinar isolado e distante dos intercâmbios necessários ao aprimoramento da condição humana. Fora da seara jurídica o fenômeno se repete ao atribuir a determinadas ciências ou conhecimentos a categoria de mais ou menos relevantes que outros, pondo-os em condição hierárquica, de uns em relação aos outros. Essa banalização requer uma mudança conceitual quanto ao conhecimento no sentido de não mais se conceber o conhecimento como neutro, estático ou imutável, e sim de concebê-lo como histórico, não-neutro, dinâmico e provisório (ARAGÃO,1993, p.15-17). O conhecimento nunca é definitivo, mas um produto da humanidade, estando sempre ligado a circunstâncias históricas, que são dinâmicas como o são os indivíduos que o vivenciam e o projetam. A óptica da transdisciplinaridade traz ainda em grande desafio para o mundo do ensino jurídico, qual seja o de transitar de modo mais livre pela gama de conhecimentos que lhe cercam e são, tantas vezes, distanciados, da realidade concebida como central do e pelo direito. Essa imagem parece formar uma espécie de pódio, onde o direito ocupa o posto de primeiro
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Do ponto de vista metodológico, se estou em uma universidade, deveria levar isso em conta ao planejar as atividades de uma dada disciplina; a maior parte dos professores não é induzida a fazer isso. Infelizmente, essa não é uma prática somente do ensino de Direito, da formação jurídica, de um modo geral ficamos muito isolados em nossos cursos; aliás a maior parte dos professores de outros cursos também não leva isso em consideração, apesar de vivermos em um momento “interdisciplinar”.
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lugar, seguido de outras ciências e conhecimentos que se posicionariam em segundo, ou terceiros lugares gradativamente em torno do primeiro, como ocorre com Antropologia, Sociologia, Filosofia, Linguagem, que gravitam em torno do saber principal. Por todos os aspectos suscitados, é comum se buscar a resposta a partir de um paradigma que se consagrou no universo do ensino jurídico: o da crise.
A resposta ao questionamento que intitula este tópico não é simples, muito ao contrário, tem sido objeto de dúvidas e cada vez mais debates e discussões acerca tema. De modo que ao que indicam os caminhos e pesquisas, um aspecto parece não estar dissociado do outro: a crise do ensino e do direito enquanto instituição e fonte de legitimação do poder. Em se tratando de crise do ensino muito se tem falado dos problemas que envolvem o ensino jurídico no Brasil e não restam dúvidas da necessidade de reformas nos conteúdos e nos métodos utilizados em seu aprendizado, partindo-se da premissa do elevado alcance político e social que os cursos de formação jurídica representa(ra)m para o Brasil, como mostra a formação política, econômica e social do país. Sobre a crise, Felix (2017) destaca: “me deparei com essa, não diria crise, mas tragédia do ensino jurídico”, lembra-se. Havia em São Carlos um curso noturno de Direito, 160 alunos por classe. Fiquei perplexa por aquilo ser chamado de faculdade”. Que rumos tomaram o ensino jurídico ao longo do tempo? Que elementos respondem pelas dificuldades de professores e alunos? A discussão é ampla e não há uma verdade acerca do tema enfrentado. Este estudo parte da perspectiva de que o direito, como fenômeno jurídico, é dinâmico e multifacetado, com dimensões não apenas normativas, mas também política, social, econômica e cultural, de sorte que seu movimento não se dá apenas na e pela norma, mas como resultado impulsionado pela própria sociedade. Nesse sentido, é oportuno que se ressalte que inobstante esse olhar ampliado acerca do fenômeno jurídico, ainda é bastante corrente percebê-lo como estático, reduzido à expressão da norma. Um ou outro entendimento é captado pelo imaginário social sob a forma do ensino e modo de transmissão do saber, gerando um tipo próprio de atuação do profissional, conforme o modelo, por assim dizer, do que lhe foi repassado e assim será (re) produzido nos diversos âmbitos de atuação dos profissionais da área, seja elaborando a norma e difundindo um fazer político-ideológico, seja decidindo nas diversas esferas jurisdicionais. Nessa esteira de pensamento, Perelman (1998, p.243) afirma que a argumentação dos juristas depende da ideia que têm do Direito e do seu funcionamento na sociedade, sendo necessário admitir que ambos os vieses são utilizados como tônica de ensino e transmissão do saber, ainda que a sociedade não mais se coadune com um modelo de Direito estanque, o que parece ser um dos primeiros elementos desencadeadores da crise que de longas datas perpassa o caminho do ensino jurídico no país: o descompasso entre sociedade e Direito. Aliás, o vocábulo
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3 CRISE DO DIREITO OU DO ENSINO JURÍDICO?
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crise, tanto no sentido comum, quanto dicionarizado, remete direta e inevitavelmente a algo que já esteve bem e deixou de sê-lo. Segundo o Aurélio, a palavra significa “ponto de transição entre um período de prosperidade e outro de depressão”, “momento perigoso ou difícil de uma evolução ou de um processo” ou “decadência, queda, enfraquecimento”. Nessa perspectiva, só se pode rigorosamente falar em crise quando algo põe em risco o que já funcionou a contento. Quando se diz, por exemplo, que um casamento está em crise, pressupõe-se que o casal vivia em harmonia e um ou vários fatores afetaram essa estabilidade, podendo isso servir para um avanço de uma dada situação ou por seu fim. Infelizmente, observando-se o histórico dos cursos jurídicos no Brasil, percebe-se que sempre estiveram relacionados a conflitos. Segundo Feitoza (2011), [...] a primeira constatação [disso] é a de que os cursos de Direito no Brasil, desde sua criação, sempre tiveram um padrão de qualidade de limites estreitos e acanhados, apresentando no decorrer da história uma evolução linear. Os principais problemas estruturais que hoje enfrentamos não são novos ou mesmo momentâneos, sempre acompanharam a história do nosso ensino jurídico. Todas as reformas educacionais feitas, sejam reformas diretas ou com repercussão na seara jurídica, nunca alcançaram plenamente seus objetivos.
é um conjunto de condições que apontam para a possibilidade de mudança e que se revela em disfunções, ou para usar os dizeres de KHUN, anomalias (segundo o paradigma vigente) reveladoras da incapacidade do modelo de saber hegemônico de dar respostas satisfatórias a determinados problemas contemporâneos apresentados na concretude fática. É certo que o Direito somente se realiza na prática, como resultado do embate dialético entre a norma com o seu caráter de abstração e a realidade na qual se aplica a mesma. A realidade para a qual se preparam os atores jurídicos e para a qual teoricamente se produziu o juspositivismo parece não existir. A natureza dos conflitos se alterou, as características do sujeito de direito se modificaram, e, portanto, os conhecimentos do ator jurídico devem ser outros. Questões macroeconômicas, novos direitos, a globalização econômica, a perda de capacidade normativa do Estado-nação, entre outros fatos, provocam o ator jurídico a pensar o Direito de forma diversa daquela de uma realidade sócio-econômica de matriz liberal na qual a tradição do pensamento jurídico ocidental foi conformada.
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Ora, é possível, assim, inferir que os cursos jurídicos no Brasil já nasceram em crise, um entendimento semelhante ao de Adorno (1988, p. 26) quando analisa esse ensino no império alemão, sustentando a hipótese de que nunca houve um ensino efetivamente jurídico naquele período, mas uma relação construída para o aprendizado dos alunos a partir da didática do professor. O que ocorria, de fato, era um ambiente extra ensino, aliado a características da vida acadêmica, que foi considerado como responsável pela profissionalização do bacharel em Direito. De outra sorte, nominar a pretensa crise do Direito parece mais complexa, uma vez que o próprio termo Direito possui alcance amplo no universo simbólico e concreto do Estado. De acordo com Freitas Filho(2013), o que se convencionou chamar de crise do Direito,
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Do pensamento do autor, percebe-se que as mudanças político-econômicas havidas no cenário mundial estão sendo reconfiguradas pelos Estados. E sendo o direito um instrumento regulador do Estado, provavelmente o mais importante, dentro da premissa do funcionamento deste, o direito também precisa ser reconfigurado. Como consequência: se o Estado está em crise, o direito também vive a crise. Ainda para Freitas Filho(2013, p.24), a crise atual do Estado indica que os mecanismos econômicos, sociais e jurídicos de regulação, postos há um século, já não funcionam. O sistema da educação, refletido por Luhmann, também segue este mesmo percurso. Temos definições óbvias, as quais não dão respostas para a constante produção de complexidade. O autor reflete como as respostas pedagógicas se apresentam do seguinte modo:
O que pretendem os autores com esta reflexão é, inicialmente, mostrar que as experiências pedagógicas pretendem que todos os alunos aprendam da mesma forma ou que a escola seja um locus de igualdade e inclusão. Na realidade, não passam de aspirações: teorias políticas de determinadas esquerdas nem resolvem os problemas reais nem produzem teoria. Por isso, algumas questões se apresentam como relevantes quando se estuda o sistema da educação. Inicialmente, Luhmann trata da educação como intenção de educar: a educação não eleva os indivíduos a um estado de perfeição ou plenitude; educação é sempre seleção, é produção constante de diferenças. Assim, a escola não é o lugar onde as diferenças não se fazem presentes, ao contrário: estar incluído no sistema educacional significa a constante produção de diferença. Entretanto, estas diferenças só podem acontecer para aqueles que estão incluídos; quem está fora do sistema educacional não tem a possibilidade de “disputar”. Aqui está claro o paradoxo da inclusão/exclusão. Ou seja, mesmo incluído em “igualdade de condições”, o sistema da educação – como qualquer outro sistema social – produz constantemente diferenças. A escola nasce para incluir todos os que têm direito de estarem incluídos. A inclusão universal que vivemos não garante a plena satisfação das expectativas. Por isso, Luhmann afirma que aprendemos mais com a frustração das expectativas do que quando elas são satisfeitas, como apresenta (BARALDI; CORSI; ESPOSITO, 1996, p.48): La delusione di aspettative ha una funzione importante, poiché consente di trattare ciò che accade di sorprendente nell’ambiente, in particolare nelle situazioni di doppia contingenza: un sistema può transformare una complessità indeterminata in dilusione
6 Tradução: “A impressionante ambição crítico-social da pedagogia da última década, que em retrospectiva podemos considerar quase uma história fatal, oferece poucos elementos úteis a respeito. Esta ambição, por sua vez, tem articulado as relações entre educação e sociedade de maneira deficiente em muitos sentidos e definitivamente não operou a partir de uma base teórica suficiente”.
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La impresionante ambición crítico social de la pedagogía de la última década, que en retrospectiva podemos considerar casi una historia fatal, ofrece pocos elementos útiles al respecto. Esta ambición, a su vez, ha articulado las relaciones entre educación y sociedad de manera deficiente en muchos sentidos y definitivamente no ha operado a partir de una base teórico social suficiente(LUHMANN; SCHORR,1993, p.32).6
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e quindi affrontare le diverse situazione che si presentano nel suo ambiente. La delusione rende evidente il referimento di un’aspettativa alla realtà esterna, realtà la cui rilevanteza perturbativa può essere colta proprio attraverso le delusione.7
Assim, se a criação de escolas para todos é uma forma moderna de redução da complexidade, ela, ao mesmo tempo, cria novas complexidades, pois estamos sempre em evolução. Assim, os mais variados problemas decorrentes da educação de massa devem ser – e são – absorvidos pelo sistema da educação através da comunicação. Para contemplar mais um olhar acerca dessa ideia do ensino e seu direcionamento, ainda na perspectiva luhumanniana, é possível perceber uma relação no que estamos aqui tratando por crise e ou dificuldades no ensino e aprendizado das escolas jurídicas. É o que aponta Siqueira(2016) ao analisar as dificuldades e problemas do ensino da história do direito, ao longo da sua experiência docente em diferentes instituições de ensino superior. Em sua abordagem o autor faz uma análise mais detida acerca do ensino da história do direito, mas indica situações que não estão limitadas a esse âmbito da discussão. Observe-se que a noção de lei quando usada como indicador de uma dada realidade, comumente não reflete o que se dá entre o texto legal e a prática vivenciada na sociedade. Para tanto, o autor se utiliza de um exemplo bastante significativo acerca do tema, ao invocar a Constituição Federal em seu art. 6º, IV, o qual reza: Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;
Em 2016, o salário mínimo no Brasil é de 880,00. Qualquer brasileiro sabe que o salário mínimo não consegue garantir tudo que é prometido na Constituição. Existe uma diferença entre direito e realidade. Entre os dois há uma série de variáveis que interferem: economia, local de residência, inflação, política entre outros.
Podemos observar que da mesma forma que na escola, o princípio da universalidade e da igualdade intencionados pela lei, não se verificam de forma plena. Percebe-se então que num exemplo atual, previsto na mais importante lei do País, as diferentes situações e contextos 7 “A desilusão de expectativa tem uma função importante, uma vez que consente em tratar o que acontece de surpreendente no ambiente, em particular nas situações de dupla contingência: um sistema pode transformar uma complexidade indeterminada em desilusão e, por esta razão, enfrentar as diversas situações que se apresentam no seu ambiente. A desilusão desenvolve evidente o referimento de uma expectativa à realidade externa, realidade a qual relevante perturbativa pode ser colhida precisamente através das desilusões.” Tradução livre.
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Da leitura do texto, o autor expõe que:
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sociais não asseguram que as determinações ali presentes serão fielmente observadas, demonstrando assim que a lei não pode ser apresentada, tampouco estudada fora do contexto ao qual será aplicada. Nesse sentido reitera-se o pensamento de Luhmann para demonstrar que é muito mais da frustração da expectativa do que da sua concretização que se retiram as lições necessárias ao aprendizado, que só se concretizará de forma eficaz pela reflexão e discussão. A escola para todos é recente. Nascida em função da necessidade de uma educação de massa, ela passa a ser uma importante estrutura social na sociedade nas últimas décadas. Porém, desde sua criação, observamos que a escola se tornou um lugar de alta complexidade porque, por um lado, é a estrutura que pode incluir todos, porém produz internamente várias formas de exclusão (refiro-me, por exemplo, às dificuldades que os alunos e professores apresentam no processo aprendizagem, como é o caso dos “alunos especiais”, dos “alunos-problema”, dos “alunos informatizados”, dos alunos interessados em “qualquer coisa”, menos em aprender). Por outro lado, temos professores não “especiais”, professores-problema, professores não informatizados. Deparamo-nos, hoje, em sala de aula, com um novo perfil de alunos, em um contexto tecnológico em que poucos professores foram formados e capacitados para ensinar. As comunicações relevantes para o sistema da educação, advindas de outros sistemas, irritam-no e provocam assimilação através do código do sistema da educação. Exemplificando: o sistema da política tem a função de tomar decisões coletivamente vinculantes; estas, quando chegam em qualquer sistema social, são absorvidas pelos códigos e estruturas internas de cada sistema. Este processo de assimilar o que vem do sistema da política não significa satisfação e inclusão plenas. O que, então, diferencia as comunicações educativas de outras comunicações? A resposta, segundo Corsi(1998, p.66-67):
Para a teoria sistêmica, é fundamental entender como o sistema da educação, ou qualquer outro sistema, se diferencia dos demais. Todos os sistemas são fruto do processo evolutivo social, o qual, especializando as comunicações internas, faz com que a estrutura do sistema se organize para isso. No caso do sistema da educação, a escola “nasce” quando se torna necessário que os indivíduos, independentemente de local ou família, tenham acesso à formação e não
8 “A educação se diferencia dos outros processos comunicativos especificamente nisto: na tentativa de forçar a socialização endereçando o comportamento individual a uma direção precisa, qualificada como correta e justa, e a tal objetivo essa requer a constituição de situações particulares, como as salas de aula, onde se torna visível a artificialidade da educação mesma. Naturalmente a educação não elimina a socialização; essa, ao contrario, a pressupõe e é obrigado a admiti-la nas salas de aula em cada situação comunicativa que tenta ser educativa”. Tradução Livre.
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L’educazione se differenzia dagli altri processi comunicativo proprio in questo: nel tentativo di forzare la socializzazione indirizzando il comportamento individuale verso una direzione precisa, qualificata come corretta e giusta, e a tale scopo essa richiede la costituizione di situazioni particolari, come le classi scolastiche , dove diventa visibile l’artificialità dell’educazione stessa. Naturalmente l’educazione non elimina la socializzazione; essa anzi pressupone ed è costretta ad ammetterla nelle classi scolastiche in ogni situazione comunicativa che intenta essere educativa.8
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9 “Sem a possibilidade de selecionar, não haveria local para a educação, mas somente a socialização”. Tradução Livre. 10 “A diferença entre conhecimento efetivo (qualidade da educação) e carreira educativa (seleção) constitui o aspecto mais típico e peculiar do sistema da educação”. Tradução Livre.
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apenas à socialização, que ocorre já na família. Assim, a educação não prescinde da socialização, mas é mais do que mera socialização, porque encaminha os indivíduos para uma formação, que só pode ocorrer após a socialização e que leva os indivíduos a comportamentos diferentes. Justamente por isso que a educação não é um processo simples que possa ser exercido por qualquer um e em qualquer lugar. Por esta razão, Luhmann reforça a ideia de que a educação não pode ser explicada simplesmente pela socialização. Este contexto – educação e socialização – propõe uma reanálise das intenções pedagógicas e a necessidade de seleção, utilizando a possibilidade de influenciar o comportamento do aluno, mudando seu estado psíquico no qual podemos observar o antes e o depois e a evidente proposição de que socialização e educação são diferentes. Além disso, observamos que educação é seleção, pois trata da relação entre professor e aluno ou educador e educando, que por si só se apresenta como seleção, em que a própria intenção pedagógica torna necessária a seleção. Este fato, segundo Corsi (1998, p.73), é o ponto central: “senza la possibilità di selezionare non avrebbe luogo l’educazione, ma solamente la socializzazione”9. Em outros termos, é esta dualidade, como segue afirmando o autor, que evidencia a diferença entre ter um título e a capacidade de exercitar a função proposta pelo mesmo: “la differenza tra conoscenze efetive (qualità dell’educazione) e carriera educativa (selezione) costituisce l’aspetto più típico e peculiare del sistema dell’educazione” (CORSI, 1998, p.73)10. É o que permite que a educação se diferencie e evolua constantemente. Este pressuposto nos leva a evidenciar o quanto as intenções educativas são complexas. Claro que é melhor educar do que não o fazer, pois a educação busca melhorar as condições psíquicas do aluno na sociedade. Este é o motivo principal pelo qual continuamente se coloca o sistema educativo em questionamento, em reforma (o que não é diferente do sistema da saúde). Como nenhum dos dois sistemas consegue os níveis máximos desejados, entram permanentemente em crise. Assim, com a função de reduzir a complexidade, a escola é criada e recriada constantemente, pois é nela que os indivíduos são “educados” ou “deseducados”! Este tema tem sido constante preocupação dos pedagogos, irritados constantemente por outros atores sociais que propõem, constantemente, a reforma da educação. Aqui podemos observar um ponto em comum entre o sistema da educação e da saúde: ambos estão sempre no foco das reformas. A questão é saber quem reforma os reformadores, o que vale para ambos os sistemas e é o tema que abordaremos no próximo ponto. Parece-nos importante que entendamos a diferença entre educação e socialização. A primeira significa aprendizagem intencional; já a socialização existe sempre que produzimos alguma comunicação. Para Luhmann, por exemplo, socialização significa aprender a reagir às expectativas que os outros têm de nós: este aprender a reagir não significa, necessariamente,
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satisfazer as expectativas que os outros têm de nós mesmos, mas podemos inclusive desiludir. Esta é a diferenciação que adotamos no nosso trabalho. Quando se fala de desiguaglinaza e selezione, entendemos, como os autores citados, que embora a escola sirva para a redução de complexidade do sistema educativo, também promove seleção e desigualdades, na medida em que, por exemplo, estabelecem-se dentro desta instituição mecanismos de competição, porque a escola confema... il fenomeno di una divisione (CORSI, 1998, p.73).Outra forma evidente desta seleção é a questão das notas ou conceitos, bem como a forma como valorizamos mais um aluno que outro. Qual o significado de uma nota dez ou de uma nota zero? Poderíamos falar longamente sobre os mecanismos de desigualdade e de seleção dentro da escola ou de qualquer outra instituição, mas para este estudo nos é suficiente este entendimento, ou seja, não temos uma escola igual ou não seletiva porque, na medida em que podemos fazer com que alguns alunos cresçam mais que outros, por melhor que seja nossa intenção, produzimos diferenças quando não damos a todos as mesmas condições. Portanto, o acesso “livre e universal” ao sistema educativo permanece no âmbito dos valores “humanitários”. A grande questão é como traduzir em um programa escolar este ideário humanista. Sem a produção de comunicação, não existem os sistemas sociais. Neste sentido, e retornando ao pensamento de Giancarlo Corsi(1996, p.72-73):
Entendemos por comunicações educativas uma implicação entre educação e ações que desenvolvemos. Em alguns de nossos atos, pode aparecer uma faceta educativa. Quando aparecem, significam informação, aprendizagem e compreensão. Portanto, por intermédio das nossas atividades, constantemente, produzimos comunicações, e algumas destas podem gerar “aprendimento”, ou seja, podemos produzir comunicações educativas que podem ser expressas de diferentes formas. As comunicações educativas podem ser percebidas por intermédio do efeito que nossas ações cotidianamente apresentam. Por exemplo, um juiz, ao dar uma sentença, poderá, por
11 “A comunicação é, porém, um evento improvável. Em particular, a produção da comunicação apresenta três níveis de improbabilidade. A um nível básico, é improvável que a comunicação venha comprimida e, portanto, realizada. A um segundo nível, que se produz na base dos maiores pressupostos de complexidade, é improvável que a emissão consiga o interlocutor em situações ainda mais complexas, enfim, é improvável que a comunicação venha aceita. O problema para a sociologia é esclarecer como a comunicação, por si só improvável, venha a ser provável. Com a comunicação, vem o provável rendimento através do uso de alguns meios: A linguagem, os meios de difusão e os meios de comunicação generalizados simbolicamente”. Tradução Livre.
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La comunicazione è però un evento improbabile. In particolare, la produzione della comunicazione presenta tre livelli di improbabilità. Ad un livello basilare, è improbabile che la comunicazione venga compresa e, quindi, realizzata. Ad un secondo livello, che si produce in base a maggiori presupposti di complessità, è improbabile che l’emissione raggiunga l’interlucutore. In situazioni ancora più complesse, infine, è improbabile che la comunicazione venga accettata. Il problema per la sociologia è chiarire come una comunicazione di per sé improbabile divenga probabile... la comunicazione viene resa probabile, attraverso l’uso di alcuni media: il linguaggio, i mezzi di diffusione e i mezzi di comunicazione generalizzati simbolicamente. 11
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intermédio desta produzir, entre outros efeitos, também o efeito educativo; da mesma forma um advogado, quando orienta um cliente a respeito do seu processo. Ou seja, produzimos educação dentro e fora da escola. Tradicionalmente, o sistema jurídico não tem uma função educativa, mas os atos de seus operadores e os dos incluídos neste sistema podem produzir comunicações educativas que gerarão, por sua vez, efeitos educativos. A comunicação é essencial para a existência e sobrevivência dos sistemas sociais. Tornam-se educativas porque promovem alterações, informam, orientam. Uma comunicação é educativa quando, ao mesmo tempo ensina e informa: para falar de comunicação educativa, não basta que haja um tema qualquer. Deve haver, também, a vontade de mudar o comportamento de outro. Não é suficiente que se fale de qualquer coisa, mas deve haver a vontade de mudar o comportamento daquele que está de fora. Um professor ensina, um pai ensina buscando comunicar-se para educar (ou seja, educar é uma ação que implica mudanças de comportamento). Temos educação quando esperamos que o outro, através de comunicações educativas, melhore ou modifique. Esta comunicação se dá através de atos e ações. Temos outros instrumentos que mostram a constante necessidade de Reforma do Sistema da Saúde e Educação, escolhemos este porque é atual e mostra o caráter de normalidade das reformas, como observa Corsi ao afirmar o caráter “normal” das reformas na educação, o que, para nosso estudo, também repercute no sistema da saúde. Embora o autor afirme que na educação temos uma tendência específica:
Ora, vemos que a educação busca por experimentação. A novidade se dá com a mesma frequência no sistema de saúde brasileiro e de muitos países da América Latina, onde o direito à saúde e os direitos sociais em geral, são recentes em relação à Europa, onde o Estado (de Bem-Estar) Social já estava consolidado quando nós ainda lutávamos pela constitucionalização destes direitos. Além do mais, hoje não se entende mais a Educação isoladamente. Assim, as expectativas de que na escola seja possível produzir uma sociedade mais justa passa a ser um ponto de contínua frustração de expectativas, assim como no sistema da saúde: se temos como expectativa a plena saúde, teremos, constantemente, a frustração de expectativa e, em consequência, a constante necessidade de reforma.
12 “A síndrome reformista no Sistema da Educação é definitivamente algo de diferente da exigência de flexibilidade e de capacidade de adaptação exigidos das organizações no campo econômico ou administrativo. Se adverte que há uma inspiração universalista e totalizante que não quer e talvez nem ao menos possa limitar-se aos problemas de uma única escola ou universidade”. Tradução Livre
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La sindrome riformista nel sistema dell’educazione è decisamente qualcosa di differente dall’esigenza di flessibilità e di capacità di adattamento richieste alle organizzazioni in campo economico o amministrativo. Si avverte cioè un’aspirazione universalistica e totalizzante che non vuole e forse nemmeno può limitarsi ai problemi di una singola scuola o università (1998, p.23-24).12
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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Com base nas reflexões aqui apresentadas percebe-se que o ensino jurídico no Brasil, desde sua implementação, sempre teve um comprometimento com uma ideologia dominante, deixando em plano secundário o compromisso com a transformação da realidade. Ao aluno, refém deste ensino, coube a tarefa de reproduzir e operar as fontes do Estado, sem questioná-las. As novas realidades sociais evidenciam a necessidade de transformação do ensino jurídico tradicional das faculdades de direito. É mister a criação e/ou construção de um ensino voltado a realidade e ao estímulo da consciência crítica do aluno, para que o mesmo esteja consciente da necessidade da transformação da realidade sócio-jurídica. As transformações e mudanças ocorridas na sociedade, tornaram o direito caótico, uma vez que este não conseguiu e ainda tem sérias dificuldades em dar respostas positivas as novas demandas emergentes, gerando as constantes necessidades de reformas do ensino no âmbito jurídico. Além disso, faz-se necessário transpor os limites da teoria, compreendendo o mundo e refletindo sobre ele, agindo conscientemente, entendendo a necessidade de propor novos olhares sobre a realidade e associar a este novo olhar a ação, adentrando-se na seara da efetividade. No entanto, forçoso reconhecer que estamos diante de um desafio enorme frente a uma crise social espelhada na crise do ensino em todos os seus graus. É certo que as proposições enfocadas neste estudo não pretendem esgotar ou a temática, que gera múltiplas relações nas sociedades multifacetadas e seus sistemas interligados. Em razão da complexidade e grande relevância da problemática cabe buscar novas ideias, vieses e reflexões na busca de um ensino jurídico de qualidade que beneficie o direito, o estudante e a sociedade como um todo.
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ABSTRACT The article analyzes the issues related to the crisis of legal education in Brazil, beyond the crisis variables and consequences in the academic field. It also addresses issues related to transdisciplinarity, as well as the effects of legal education on increasingly complex social systems. Keywords: Legal education. Transdisciplinarity. Social transformation.
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A SEXUALIDADE HUMANA E O DIREITO DA FAMÍLIA NOS ORDENAMENTOS DE PORTUGAL E MACAU* J. P. Remédio Marques 1
1 FONTES DE RELAÇÕES JURÍDICO FAMILIARES EM PORTUGAL E EM MACAU. A QUESTÃO DA UNIÃO DE FACTO
1 * Texto de apoio à conferência que o Autor proferiu na Universidade de Macau, no quadro da 9ª Conferência Internacional sobre As Reformas Jurídicas de Macau no Contexto Global – O Direito, a Sexualidade e a Família. Organização: Centro de Estudos Jurídicos, Faculdade de Direito de Macau, com o apoio da Direção dos Serviços de Assuntos de Justiça do Governo de Macau e da Fundação Rui Cunha (Macau). Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e da Universidade Lusíada do Porto (Portugal). Professor Visitante de Faculdades de Direito em Espanha, Brasil, Angola, Moçambique e Macau.
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RESUMO Este estudo analisa as diferentes dimensões da expressão da sexualidade e do gênero no Direito da Família de Portugal e da Região Administrativa Especial de Macau (v.g., casamento, paternidade, maternidade, responsabilidades parentais e orientação sexual, mudança de sexo e esterilização), expondo algumas diferenças de tratamento destes problemas nos dois ordenamentos jurídicos. Apesar de o ordenamento jurídico (direito público e direito privado) de Macau revelar uma forte matriz portuguesa, a consciência axiológica jurídica desta Região Administrativa Especial da China assenta em pressupostos culturais diferentes, o que explica a descontinuidade de algumas soluções jurídicas. Palavras-chave: Direito da Família. Gênero. Homossexualidade. Responsabilidades parentais. Reprodução medicamente assistida.
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O n.º 1 desta norma dispõe que “o membro sobrevivo da união de facto tem o direito de exigir alimentos da herança do falecido”.
3 Segundo o n.º 1 desta norma “tem direito a ser alimentado pelos rendimentos dos bens deixados pelo autor da sucessão, nos termos do artigo 1859.º, quem à data da morte deste se encontrasse a viver com ele em união de facto há pelo menos 4 anos, desde que o unido de facto não estivesse casado ou estivesse separado de facto há mais de 4 anos”. Todavia, o n.º 2 do mesmo artigo desgradua este direito a alimentos, ao dispor que “O direito do unido de facto a exigir alimentos gradua-se abaixo do direito a alimentos que o cônjuge do falecido, estando este casado à data da morte, ou os filhos deste tenham sobre os rendimentos dos bens da herança” 4
Art. 5.º, n.º 1, da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio. Findo o prazo de cinco anos o membro sobrevivo tem o direito de permanecer no imóvel na qualidade de arrendatário, nas condições gerais do mercado, e tem direito a permanecer no local até à celebração do respetivo contrato, salvo se os proprietários satisfizerem os requisitos legalmente estabelecidos para a denúncia do contrato de arrendamento para habitação, pelos senhorios (n.º 7 do referido art. 5.º).
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O Direito da Família acolhe múltiplas expressões — e expressões multiformes e entre si diferenciadas — da sexualidade humana. Isto é assim porque a Medicina e o Direito têm construído discursos que constituem sistemas simbólicos; sistemas que se alicerçam nos valores aceitos por determinadas culturas e sociedades e exercem um poder de regulação sobre dimensões como o casamento, a sexualidade, a procriação e a maternidade. As fontes de relações jurídico-familiares são os receptáculos dessas expressões da sexualidade, quais sejam: parentesco, o casamento, a afinidade e a adoção. A união de facto (com o sentido sociológico de união estável para o ordenamento jurídico brasileiro) é objeto de tratamento jurídico específico em cada um dos ordenamentos jurídicos. E cada ordenamento jurídico modela tais expressões de acordo com as conceções sócioculturais e ético-axiológicas dominantes. O art. 1576.º do Código Civil português (doravante CC) considera expressamente como fontes de relações jurídico-familiares o casamento, o parentesco, a afinidade e a adoção. A mesma solução decorre do art. 1461.º do CC de Macau. Porém, o artigo 1471.º deste último Código oferece-nos uma noção de união de facto, no sentido de a considerar como “elação havida entre duas pessoas que vivem voluntariamente em condições análogas às dos cônjuges”; dispondo o art. 1472.º as circunstâncias fático-jurídicas de cuja verificação o legislador de Macau considera emergir uma relação denominada união de facto, à qual irá, depois, aplicar um específico regime jurídico. Isto significa que, tanto em Portugal como em Macau, o legislador não reconhece à união de facto efeitos idênticos aos que reconhece ao casamento; em suma, não equipara as duas situações. Trata-se de situações jurídicas (ou com relevo jurídico) completamente diferentes, tanto no plano da constituição, dos efeitos jurídicos e da extinção, segundo (PINHEIRO,2008,p.642). Isto é constatado em várias dimensões do respetivo regime jurídico: p. ex., o ex-companheiro não é herdeiro legitimário por morte do outro e somente beneficia de direito a alimentos sobre os bens da herança, nos termos do art. 2020.º do CC português2, e art. 1862.º do CC de Macau3, bem como, em Portugal, do direito real de habitação sobre a casa de morada de família e uso do respetivo recheio durante um prazo de cinco anos4; o unido de facto que viva com o arrendatário somente sucede na posição jurídica emergente do contrato de arrendamento por morte deste se viver com ele no locado em união de facto há mais de um ano, diferentemente do que ocorre com o cônjuge sobrevivo (art. 1106.º, n.º 1, alínea a), do CC português), para cuja sucessão na posição jurídica de arrendatário a lei não exige qualquer prazo de duração da
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residência conjugal. Isto também significa (e é por isso que estes legisladores consagraram tais soluções) que as duas situações de vida em comum são materialmente diferentes: os unidos de facto não assumem, não querem ou não podem assumir um compromisso de vida em comum, ao invés do que ocorre com as pessoas casadas. A união de facto, em Portugal e em Macau, não partilha totalmente das características das situações jurídicas familiares; scilicet, não é uma situação jurídica indisponível, não desfruta de uma funcionalidade e oponibilidade erga omnes acentuadas; e não tem uma durabilidade virtual5. Na verdade, na união de facto não é exigido o cumprimento de deveres conjugais, ao contrário do que ocorre com o casamento e o consentimento (recíproco) para essa situação existencial ser mantida é renovado quotidianamente. No casamento há apenas um consentimento inicial para formar o vínculo. Na união de facto existe um consentimento que se renova todos os dias para que esta situação jurídica perdure. A dissolução do vínculo matrimonial obedece por isso mesmo a um formalismo muito mais exigente. Um regime que equipare totalmente a união de facto ao casamento pode ser julgado contrário à Constituição da República Portuguesa (art. 36.º, n.º 1, 2.ª Parte) e à Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau (art. 38.º). As pessoas vivem em união de facto precisamente que não desejam celebrar casamentoe ficar sujeitas a obrigações e deveres jurídicos. Têm, aliás, o direito a não casar. No anverso, as pessoas que celebram casamento colocam-se sob um manto de diversas obrigações (arts. 1671.º, n.º 2, e 1672.º do CC português; art. 1533.º do CC de Macau), que o legislador ordinário não pode descaracterizar, no sentido de permitir que o casamento não ficasse dependente de quaisquer formalismos e a sua dissolução pudesse ser realizada livremente e sem quaisquer formalidades6. Mesmo em Macau — aqui onde em certos momentos históricos as pessoas se consideravam casadas segundo os usos e costumes chineses —, a união de facto traduz uma situação jurídica equiparada (ou conexa), para certos efeitos, às relações jurídicas de família (PIRES, 2012, p.591/594).
O casamento, fonte mais importante do ser-com-o-outro e expressão mais íntima e socialmente aceita da sexualidade humana, implica vários problemas de expressão da sexualidade com incidência tanto no momento da sua celebração, quanto para efeitos da sua dissolução. O casamento é um poderoso modelo de relação pessoal em muitas sociedades ocidentais e é validado legalmente com muita força, oferecendo reconhecimento e legitimação social
5
Sobre estas características das situações familiares, cfr. Pinheiro, Jorge Duarte (2008), pp. 89-97.
6 Sobre isto, Coelho, F. M. Pereira; Oliveira, Guilherme de, Curso de Direito da Família. Vol. I. Introdução. Direito Matrimonial. 5.ª ed. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2016, pp. 61-63; sobre a necessidade de a situação jurídica familiar implicar deveres familiares, Varela, João de Matos Antunes, Direito da Família. Vol. I., 5.ª ed. Lisboa: Livraria Petrony, 1999, p. 31; ou, em alternativa, essa situação jurídica familiar implicar um estado pessoal, cfr. Mendes, João de Castro; Sousa, Miguel Teixeira de, Direito da Família. Lisboa: Associação Académica da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1990/1991, p. 15.
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2 CASAMENTO
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às relações heterossexuais e, recentemente, em muitos países, às relações homossexuais. 2.1 Unicidade versus diversidade de sexo/género A heterossexualidade era, no direito português, uma característica indiscutível do casamento, tanto civil como católico, e a sua justificação parecia elementar. Isto porque a diversidade de sexos era exigida pelo fim do matrimónio, que é o de estabelecer entre os cônjuges uma plena comunhão de vida, nos termos do art. 1577.º do CC português e do art. 1462.º do CC de Macau. O regime e a justificação ainda são estes em Macau, mas deixou de o ser em Portugal, por força da Lei n.º 9/2010, de 31 de maio, que alterou o art. 1577.º do CC, ao dispor que o casamento “é o contrato celebrado entre duas pessoas que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida, nos termos das disposições deste Código”. Em Macau, o casamento entre cônjuges do mesmo sexo é considerado inexistente (art. 1501.º, alínea e), do CC). Por identidade de sexo deve entender-se identidade legal de sexo, ou seja, só é relevante a concreta menção do sexo que conste do assento de nascimento. Há identidade de sexo se, não obstante, um dos nubentes proceder a alterações do seu aspecto fenotípico (isto é, os caracteres sexuais externo-genitais, incluindo os seios e o formato do rosto e/ou das ancas), permanecer no registo civil com a menção da identidade sexual diversa da que passa a ostentar por efeito de tais alterações cirúrgicas e/ou hormonais. Em Portugal, a receção constitucional do conceito histórico de casamento como união entre duas pessoas de sexo diferente radicado intersubjetivamente na comunidade como instituição não permitiu retirar da Constituição Portuguesa um reconhecimento directo e obrigatório dos casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Todavia, a Constituição Portuguesa não proibia necessariamente o legislador de proceder ao seu reconhecimento ou à sua equiparação ao casamento. Isto veio a suceder com a Lei n.º 9/2010, de 31 de maio, que alterou o art. 1577.º CC, suprimindo as palavras “de sexo diferente”, e revogou a alínea e) do art. 1628.º, que determinava a inexistência do casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Em Portugal o sistema matrimonial é o do casamento civil facultativo na segunda modalidade, no sentido de que o legislador atribui relevância civil não apenas ao casamento celebrado perante o funcionário do Registro Civil, mas também ao casamento celebrado de acordo com algum dos cultos religiosos admitidos ao abrigo da Lei da Liberdade Religiosa, com a singularidade de os casamentos celebrados segundo o culto católico serem disciplinados pelo Código do Direito Canónico, de 1983, quanto aos aspetos respeitantes à sua nulidade e à dissolução do casamento católico rato e não consumado, e não pelo CC português; com a exceção de a capacidade matrimonial ser determinada pelo direito civil português (já assim, desde a Concordata de 1940, entre Portugal e a Santa Sé). Ao que acresce a atribuição de competência exclusiva aos tribunais eclesiásticos (tribunais estrangeiros situados junto dos bispados exis-
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2.2 Casamento civil/casamento religioso
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tentes em Portugal) e não aos tribunais portugueses para conhecer de tais causas de nulidade do casamento canónico e da dissolução do casamento ratus et non consumatus (art. 1625.º do CC, na sequência da manutenção do regime pretérito na nova concordata que a República Portuguesa celebrou com a Santa Sé, em 2004); decisão, esta, que, se for procedente, é objeto de revisão e confirmação nos termos da lei processual civil pelos Tribunais de 2.ª Instância. Em Macau vigora um sistema de casamento civil facultativo na primeira modalidade (art. 121.º/1 do Código do Registo Civil de Macau). Vale dizer: os nubentes podem casar perante o funcionário do registo civil, bem como estão livres de celebrar uma vez que os efeitos, quanto aos requisitos de fundo do casamento, sua invalidade e dissolução, são exclusivamente regulados pelo CC de Macau. 2.2.1 Demonstração da realização de exames médicos no quadro do processo preliminar para casamento O processo preliminar para casamento inclui, como primeiro acto dentro do procedimento administrativo, a declaração para casamento acompanhada de vários documentos (alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 137.º do Código do Registo Civil português). Porém, nenhum desses documentos é a certidão médica passada em laboratório de análises respeitante à despistagem de doenças sexualmente transmissíveis. Os países que preveem a junção deste documento (p. ex., a França) não impedem a celebração do casamento se ele não for junto. A ideia é a de apenas levar ao conhecimento do outro nubente, de uma forma oficial, a condição médico-sexual do nubente com quem pretende casar, contribuindo para melhor formar a sua vontade de contrair ou rejeitar a celebração do casamento.
O casamento católico é encarado pelo Código de Direito Canónico, de 1983, como “ato da vontade, pelo qual o homem e a mulher, por pacto irrevogável, se entregam e recebem mutuamente a fim de constituírem o matrimónio (Cânone 1057, § 2). O direito civil português admite que certas causas de invalidade do casamento católico sejam reguladas exclusivamente pela legislação eclesiástica e os respectivos litígios sejam dirimidos nos tribunais e repartições eclesiásticas O Código de Direito Canónico, de 1917, considerava fim primário do casamento, a “procreatio atque educatio prolis” e fim secundário o “mutuum adjutorium” e o “remedium concupiscentiae” (Cânone 1013, § 1), admitindo embora que o casamento visasse o fim secundário, e só ele, no caso de o fim primário não poder ser alcançado. Já não é assim no actual Código de 1983 (Cânone 1055, § 1), o qual define o casamento como “comunhão íntima de toda a vida, ordenada por sua índole natural ao bem dos cônjuges e à procriação e educação da prole”. O “bem dos cônjuges” e a “procriação e educação da prole” são postos, lado a lado, como fins do casamento.
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2.2.2 O casamento católico (em Portugal) como espaço que (também) visa a procriação
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Isto significa que a consumação (isto é, a existência de relações sexuais com potencialidade para serem fecundantes) continua a ter no casamento católico um relevo que não possui no casamento civil. Vale dizer: a consumação como que torna o acto matrimonial mais estável, pois só depois de consumado é que o casamento católico goza de indissolubilidade. Observe-se que o casamento católico não consumado pode dissolverse por graça ou dispensa pontifícia (“dispensa do casamento rato e não consumado”), nos termos do Cânone 1142 do Código de Direito Canónico. Refira-se, por outro lado, que no direito canónico a impotência é impedimento matrimonial dirimente (Cânone 1084), o que também revela como o espírito do direito canónico é diverso, neste ponto, do direito civil. O casamento católico evidencia três “bens do matrimónio” (bona matrimonii): o bonum prolis (a procriação e educação dos filhos), o bonum fidei (a mútua fidelidade) e o bonum sacramenti (a indissolubilidade). Os elementos essenciais que individualizam o casamento exprimemse assim em direitos e deveres recíprocos dos cônjuges. Ora, se os nubentes (ainda antes da celebração do casamento) têm intenção de não assumir esses deveres, excluindo um ou alguns daqueles “bens”, então o casamento católico é inválido por falta de consentimento matrimonial. Como diz o Cânone 1101, § 2, “se uma ou ambas as partes, por um ato positivo de vontade, excluírem […] algum elemento essencial do matrimónio ou alguma propriedade essencial, contraemno invalidamente”.
O consentimento para celebrar casamento deve ser livre, o que a lei também presume (art. 1634.º do CC português). É assim necessário que a vontade dos nubentes tenha sido esclarecida, ou seja, formada com exacto conhecimento das coisas, e se tenha formado com liberdade exterior, isto é, sem a pressão de violências ou ameaças. A expressão e conformação da sexualidade de cada um dos nubentes pode contaminar o consentimento para casar. Estou a referir-me ao erro. Este, como é sabido, deve recair sobre a pessoa com quem se realiza o casamento e versar sobre uma qualidade essencial dessa pessoa. Algumas dimensões dessa sexualidade podem ter implicações em matéria de erro na celebração do casamento. O erro só é relevante (como causa de anulação do casamento) se versar sobre qualidade essencial da pessoa do outro cônjuge (art. 637.º do CC português; art. 1509.º do CC de Macau. São essenciais as qualidades particularmente significativas, que, em abstracto, sejam idóneas para determinar o consentimento para casar. Neste sentido, a vida e costumes desonrosos, a impotência, deformidades físicas graves, doenças incuráveis e que sejam hereditárias ou contagiosas, etc., serão circunstâncias que, entre outras, poderão assumir relevância para este efeito. A impotência instrumental (falta, mutilação ou conformação anormal dos órgãos sexuais), a impotência funcional (os órgãos sexuais existem e têm a sua conformação normal, mas não são aptos para a cópula), a impotência seja absoluta ou relativa (ou seja, quer se manifeste em relação a qualquer pessoa ou só em relação a certas pessoas e,
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2.3 O consentimento para casar e a sexualidade
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em particular, à pessoa do outro cônjuge) constituem qualidades essenciais (COELHO; OLIVEIRA,2016, p.282-284). 2.4 Impedimentos matrimoniais e sexualidade
Já o impedimento do prazo internupcial previsto no artigo 1605.º, n.º 1, do CC português, impõe-se a ambos os cônjuges para fazer respeitar as convenções sociais, o luto; por outro lado, e em relação à mulher, o maior prazo internupcial pretende evitar as dúvidas que poderiam suscitarse sobre a paternidade do filho nascido depois do 2.º casamento. Note-se que estas pessoas não podem celebrar casamento (civil ou religioso) dentro dos referidos, mas podem evidentemente expressar a sua sexualidade no seio de uma união de facto, de um concubinato duradouro ou de relações sexuais efémeras com um ou vários parceiros sexuais, ao mesmo tempo ou de forma sucessiva. De igual modo, o parentesco no terceiro grau da linha colateral (art. 1604.º, alíneac), do CC português: tios e sobrinha; tia e sobrinho) é, igualmente, um impedimento, mas pode ser dispensado por autorização da Conservatória do Registo Civil, ponderados motivos da
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Como se sabe, os impedimentos matrimoniais são as circunstâncias que impedem a celebração do casamento; isto é, as circunstâncias verificadas que, uma vez concretamente verificadas, obstam a que o casamento se possa celebrar, sob pena de anulabilidade do acto ou de sanções de natureza essencialmente patrimonial. A expressão da sexualidade antes e durante o casamento não é, por si só, impedimento. Mas a expressão dessa sexualidade entre pessoas unidas por determinados graus de parentesco pode sê-lo. Em primeiro lugar, temos o vínculo e casamento anterior não dissolvido. Visa-se proibir a bigamia ou a poliandria. Nos países que adoptam sistemas de casamento civil na 2.ª modalidade (em que o casamento católico é regido, em parte, por normas do Código de Direito Canónico), é possível aos nubentes celebrar casamento católico e, depois, celebrar entre si casamento civil. O parentesco na linha recta (art. 1602.º, al. a), do CC português; art. 1480.º do CC Macau) e no segundo grau da linha colateral (art. 1602.º, alíneac), CC português; 1480.º do CC Macau), assim como a afinidade na linha recta (art. 1602.º, alínead), do CC português) impedem sempre o casamento entre os familiares visados (p. ex., entre avô e neta; entre irmãos) ou os afins atingidos. E o mesmo se deve entender na adoção plena relativamente ao adoptante e adoptado e familiares de um e de outro.Trata-se de proteger aqui o valor da proibição do incesto, com todas as razões de ordem ética, eugénica que fazem desta proibição social um dos tabus mais sólidos da civilização. Em Portugal, a Lei n.º 137/2015, de 7 de Setembro, acrescentou um novo impedimento dirimente relativo na alínea b) do art. 1602.º do CC: a relação anterior de responsabilidades parentais. Isto é, o cônjuge de um pai ou mãe, ou unido de facto com estes que, nos termos daquela lei, tenha assumido responsabilidades parentais relativamente ao filho desse pai ou mãe, fica impedido de casar com esse filho, mesmo após a dissolução do casamento da mãe ou do pai ou de o menor ter atingido a maioridade. Este impedimento não se funda no parentesco e valem a favor dele motivos de índole social.
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pretensão dos nubentes. Estes não são, porém, impedimentos matrimoniais em Macau. 2.5 Deveres conjugais; incapacidade física dos cônjuges; danos indirectos causados por facto ilícito de terceiro Tal como em Portugal, em Macau o dever conjugal de coabitação e de fidelidade estão expressamente previstos na lei (art. 1533.º do CC de Macau). A jusante há, porém, diferenças, pois Macau mantém o sistema do divórcio-sanção por causa de violação culposa de deveres conjugais (art. 1635.º/1). Portugal aboliu expressamente este sistema, em finais de 2008, embora ele esteja implicitamente presente no divórcio-ruptura quando se alega a violação de tais deveres que, objectivamente, constata uma situação de crise matrimonial a que urge por termo por meio da pretensão do divórcio. É verdade que está em causa apenas a ruptura, independentemente das razões que a tenham determinado, designadamente a recusa em manter relações sexuais ou outras formas de expressão da sexualidade dentro do casal.
Em Portugal, para alguns autores (Coelho; Oliveira, 2016,p.240), o casamento de um transexual, conseguisse obter a mudança legal de sexo no registo civil, tornava-se inexistente: se o casamento contraído entre pessoas do mesmo sexo era inexistente, devia, logicamente, deixar de ter existência jurídica se os cônjuges passassem a ter o mesmo sexo, embora fossem de sexo diferente à data da celebração do casamento. Tratava-se de uma inexistência sucessiva ou superveniente não corresponderia inteiramente ao da inexistência originária, única que a lei previu no art. 1630.º (idem, art. 1501.º, alínea e), do CC de Macau), pois o casamento do transexual mantinha todos os efeitos que produzira desde a data em que fora celebrado até à do trânsito em julgado da sentença que reconhecesse a mudança de sexo. A inexistência podia em princípio ser invocada por qualquer pessoa e a todo o tempo, independentemente de declaração judicial; mas se o casamento estivesse registado e a inexistência não resultasse do próprio contexto do registo este não era inexistente (art. 85.º/1, alíneaa), do Código do Registo Civil português), tornandose necessária uma ação judicial em que se pedisse a declaração de inexistência do casamento e, acessoriamente, o cancelamento do registo. Outros autores (Remédio Marques7e Jorge Duarte Pinheiro) preferem ver nessa mudança de sexo a causa da dissolução automática do casamento por meio do recurso à figurada ineficácia jurídica (ineficácia por isso mesmo superveniente), a qual, pela sua própria configu-
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Marques, J. P. Remédio.Mudança de Sexo. O Critério Jurídico. Tese (Mestrado em Direito). Coimbra: Faculdade de Direto da Universidade de Coimbra (existente no fundo bibliográfico desta Faculdade e na Biblioteca Nacional), 1991, p. 413 ss., p. 424.
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2.6 Mudança de sexo na constância do casamento
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3 UNIÃO DE FACTO
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Com a admissão do casamento (civil) entre pessoas do mesmo sexo, em Portugal, por força da Lei n.º 9/2010, de 31 de maio, a questão não é tão líquida no sentido da dissolução automática do casamento anteriormente celebrado com diversidade legal de sexos. Parece que o cônjuge do transsexual estará livre de peticionar a anulação do casamento, nos termos do art. 1636.º do CC, uma vez que o estado de transexualismo seja (como é) anterior À celebração do casamento e recai por via de regra sobre uma circunstância que foi decisiva ou determinante na formação da vontade de esse cônjuge casar, exceto se o estado de transexualismo já fosse conhecido pela pessoa desse cônjuge que agora se vê confrontado com a mudança legal de sexo (e nome) do outro.
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ração negocial, verifica-se sempre após a celebração do ato/negócio jurídico8. Em Macau, a discussão permanece, uma vez que a identidade de sexo é requisito essencial da celebração de casamento (civil). Em Portugal, após a admissão de celebração de casamento entre pessoas do mesmo sexo, Pereira Coelho e Guilherme De Oliveira, entendem que a mudança de sexo de um dos cônjuges não torna o casamento inexistente nem gera qualquer causa de invalidade. Eu julgo, porém, que há dois de casamento (homossexual e heterossexual) cujo regime jurídico é praticamente idêntico após a sua celebração, mas é diferente até ao momento da sua celebração: o cônjuge que celebra um casamento heterossexual forma o seu consentimento com base na diversidade de sexos; qualquer alteração do sexo legal do outro cônjuge atinge, por via de regra, a formação de tal consentimento, visto que o sexo, nesse outro modelo social, constitui um elemento essencial da pessoa do outro cônjuge (art. 1636.º CC português), cuja diferente conformação (desconhecido do outro) vicia a vontade e conduziria à anulação desse casamento. Neste sentido, o casamento heterossexual seguido da mudança legal de sexo de um dos cônjuges já não implica a dissolução automática desse casamento, após o trânsito em julgado da decisão que afirme e constitua essa mudança do sexo, mas abre a possibilidade de o outro cônjuge peticionar a anulação do casamento. Se o casamento for originariamente celebrado entre pessoas do mesmo sexo legal (o que não é possível em Macau), a mudança legal de sexo de um dos cônjuges poderá ter relevância, igualmente, em matéria de vícios da vontade — pode conduzir à anulação do casamento por erro —, não devendo importar a dissolução automática de tal casamento. Deve, por outro lado, ser afastada a solução que autorize um dos cônjuges a divorciar-se do outro (cuja legitimidade activa caberia ao cônjuge que não foi objecto de mudança de sexo) na sequência da mudança de sexo e nome no registro civil. É verdade que o comportamento do cônjuge, que, sem o consentimento do outro, se faz submeter a operação cirúrgica de mudança de sexo, podia conduzir ao divórcio nos termos gerais de um casamento heterossexual. Todavia, a operação cirúrgica pode ter sido acordada entre os cônjuges; por outro lado, não se justificaria que a sorte de um matrimónio outrora considerado pela lei de como inexistente (e agora como ferido eventualmente com um vício na formação da vontade de um dos nubentes ficasse na dependência da vontade do outro cônjuge, mantendose o casamento entre cônjuges do mesmo sexo no caso de não ser requerido o divórcio.
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A vida em comum em condições análogas às dos cônjuges é o que caracteriza a denominada união de facto, uma vez que a lei portuguesa continua a não definir esta situação jurídica de expressão da sexualidade humana. O CC de Macau procedeu a uma maior densificação desta situação jurídica familiar (arts. 1471.º e 1472.º). No Brasil, esta situação tem o nome de união estável, cujos efeitos jurídicos patrimoniais são idênticos aos das pessoas casadas, pelo menos no que tange à maioria dos efeitos patrimoniais inter vivos9 e aos efeitos sucessórios, na sequência da recente decisão do Supremo Tribunal Federal brasileiro, de 10 de maio de 201710. As pessoas vivem em comunhão de leito, mesa e habitação, como se fossem casadas, apenas com a diferença de que não o são, pois não estão ligadas pelo vínculo formal do casamento. A circunstância de viverem como se fossem casadas cria uma aparência externa de casamento, em que terceiros podem confiar, o que explica alguns efeitos atribuídos à união de facto. Relações sexuais fortuitas, passageiras, acidentais, não configuram uma união de facto.,Tão pouco o concubinato duradouro traduz a vivência em união de facto. Uma pessoa só pode viver em união de facto com outra, não com duas ou mais. É claro, porém, que não deixa de haver união de facto porque um dos sujeitos da relação não é fiel ao outro, tal como não deixa de haver casamento se um dos cônjuges viola o dever de fidelidade e mantém relações sexuais com outra pessoa. 3.1 Unicidade versus diversidade de sexo/género na união de facto Em Portugal (diferentemente de Macau), a noção de união de facto cobre não apenas a relação entre pessoas de sexo diferente, que vivam como marido e mulher, mas também (desde a Lei n.º 7/2001), a união de facto entre pessoas do mesmo sexo, a qual é tratada, para todos os efeitos legais, à união de facto entre pessoas de sexo diferente.
No processo de adopção não se inquire a orientação sexual dos adotantes (PITÃO,2006,p.147); isto também é assim na adoção conjunta (ou do adoptante, na adopção singular). O artigo 1825.º/2 do CC de Macau refere-se apenas ao inquérito sobre a personalidade e a saúde do adoptante e do adoptando, a idoneidade do adoptante para cuidar do adoptando e educá-lo, bem como a situação familiar e económica do adoptante. Isto não significa que essa orientação seja irrelevante, à luz das circunstâncias do caso concreto, caso seja voluntariamente
9 Cfr., muito antes desta decisão do STF, Dias, Maria Berenice, Manual de Direito das Famílias. 4.ª ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Editoria Revista dos Tribunais, 2007, p. 166, Autora que já afirmava que a união estável “gera um quase casamento na identificação dos seus efeitos, dispondo de regras patrimoniais quase idênticas”. 10
Como é sabido, o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL entendeu que a união estável e o casamento possuem o mesmo valor jurídico em termos de direito sucessório, tendo o companheiro os mesmos direitos a heranças que o cônjuge (pessoa casada), julgando inconstitucional a interpretação diversa que se possa retirar do art. 1790º do CC brasileiro. O texto da decisão com repercussão geral é o seguinte: “É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002» (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, REs 878.694 e 646.721, T. Pleno, rel, min. Luís Roberto Barroso, j. 10/5/2017).
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4 ADOPÇÃO: ORIENTAÇÃO SEXUAL DOS ADOPTANTE(S)
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revelada pelo adoptante ou venha ao conhecimento dos técnicos de serviço social ou do juiz antes da emissão da sentença que decreta a adopção. O superior interesse do menor, cuja adopção é requerida exige, a meu ver, que seja ponderada a orientação sexual e a vivência dos progenitores na construção da identidade pessoal (e, sexual) do menor, e no seu ser-com-os-outros.
5 PODERES-DEVERES PARENTAIS A relação de filiação (materna ou paterna) impõe não só deveres mútuos de respeito, auxílio e assistência (art. 1874.º, n.º 1, do CC português), mas também um conjunto de situações jurídicas cujo cumprimento incumbe aos pais na relação com os filhos menores não emancipados (arts. 1877.º e 1878.º do referido CC). Situação jurídica complexa e heterogénea, esta, da qual decorrem poderes funcionais dos pais para com os filhos, por isso mesmo indisponíveis, típicos e com tutela reforçada, mas em cujo exercício se reconhece, por vezes, as limitações postuladas pela autonomia do menor (MOREIRA,2001,p.159/181-92), mesmo em sede de autodeterminação sexual. 5.1 Autodeterminação sexual dos menores Os menores de 18 anos estão sujeitos ao poder paternal (ou aos poderes-deveres parentais). Todavia, esta incapacidade de exercício projecta-se sobretudo na vertente patrimonial. Em outras dimensões da existência dos menores, designadamente, na expressão da sexualidade, os menores desfrutam de notórias maioridades especiais antes de perfazerem 18 anos. Vejamos.
Do ponto de vista da expressão da sexualidade, o artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa consagra o direito ao desenvolvimento da personalidade. E o mesmo ocorre nos termos do art. 67.º do CC de Macau, bem como ao abrigo do Ponto 2, n.º 4, da «Declaração Conjunta Do Governo Da República Portuguesa e Do Governo Da República Popular Da China Sobre a Questão De Macau». Os menores de 18 anos são assim titulares de direitos fundamentais. E esta titularidade projecta-se no domínio do Direito Civil, no Direito Criminal e em várias dimensões do Direito Administrativo. Surpreendem-se várias «maioridades especiais» que traduzem a autonomia dos menores no exercício dos seus direitos de personalidade, mesmo dentro da família e face aos poderes-deveres parentais. Por exemplo, em Portugal, o juiz deve ouvir a opinião do menor que tenha 14 anos se tiver que dirimir um desacordo entre os progenitores respeitante ao exercício das responsabilidades parentais (poder paternal), nos termos do artigo 1901.º/2 do Código Civil; em matéria de
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5.2 As «maioridades especiais» dos menores de 18 anos e a sua autodeterminação dentro da família
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adopção, exige-se o consentimento do adoptando com mais de 12 anos (art. 1981.º/1, alíneaa), do mesmo Código); o menor de 16 anos pode escolher livremente a sua religião (art. 1886.º, idem; também assim no CC de Macau); os menores com 16 anos podem celebrar casamento válido (art. 1649.º do CC português); em geral, nos processos de regulação de responsabilidades parentais e demais processos tutelares cíveis, os menores com capacidade natural para entender devem ser ouvidos pelo juiz, sob pena de nulidade processual. No domínio da saúde e da sexualidade humana, estas «maioridades especiais» são mais intensas. Vejamos. Admite-se o acesso livre às consultas de planejamento familiar a todos os jovens em idade fértil, sem quaisquer restrições, independentemente de autorização prévia dos pais (em Portugal: art. 5.º da Lei n.º 3/84, de 24 de Março; n.º 2 da Portaria n.º 52/85, de 26 de janeiro). Neste domínio da informação sexual e contracepção, os menores não se sujeitam ao poder paternal. No que respeita à saúde sexual e reprodutiva, a Resolução da Assembleia da República n.º 51/98, de 2 de novembro recomenda ao Governo a criação de consultas próprias de ginecologia e obstetrícia para adolescentes nos centros de saúde e hospitais, o que já se verifica desde finais dos anos noventa do século passado. A Lei n.º 120/99 de 11 de agosto, que reforça as garantias do direito à saúde reprodutiva, reafirma que os jovens podem ser atendidos em qualquer consulta de planeamento familiar, mesmo que o centro de saúde não seja o da sua área de residência. De igual maneira, não há restrições etárias, em Portugal, para a venda de contraceptivos de venda livre; aliás, estes são inclusivamente fornecidos nos centros de saúde aos jovens menores que os solicitem. Enfim, o livre acesso individual, com garantia de confidencialidade, garante maior liberdade aos adolescentes relativamente à sua autodeterminação com a saúde reprodutiva, pois o artigo 5.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 157/99, de 10 de maio, determina que são utentes dos centros de saúde todos os cidadãos que neles se queiram livremente inscrever. No que toca à interrupção voluntária da gravidez não criminalmente punível, a lei portuguesa dá o poder de decisão à grávida com 16 anos ou mais (art. 142.º do Código Penal). O consentimento é prestado por documento escrito pela mulher grávida, sempre que possível com a antecedência mínima de três dias relativamente à data da intervenção. No que respeita à capacidade para perfilhar, a lei portuguesa reconhece-a aos menores de 16 anos, se não estiverem interditos por anomalia psíquica ou não forem notoriamente dementes no momento da perfilhação (art. 1850.º, n. 1, do CC); idem, no ordenamento de Macau (art. 1705.º, n. 1, do CC). Em Macau, o art. 3.º, alíneas b), c) e d) do Decreto-Lei n.º 59/95/M, de 27 de novembro, exclui a punibilidade da interrupção da gravidez se for realizada até às 24 semanas de gestação, contanto que estejam verificadas determinadas circunstâncias factuais atendíveis (isto é, doença incurável do nascituro, malformações graves, a mãe tiver sido vítima de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual; perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida). O consentimento da grávida deve ser prestado se tiver 16 anos ou mais. Para as menores de 16 anos, esse consentimento deverá ser
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6 ESTERILIZAÇÃO (TERAPÊUTICA/NÃO TERAPÊUTICA) VOLUNTÁRIA/ COACTIVA Em Macau, o artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 111/99/M, de 13 de dezembro, determina que, sem prejuízo do disposto no artigo 16.º, qualquer intervenção sobre uma pessoa incapaz de prestar o seu consentimento apenas pode ser efectuada em seu benefício directo. E estatui ainda que, sempre que, nos termos da lei, um menor seja incapaz de consentir numa intervenção, esta
11 Cfr. o art. 38.º, n.º 3 do Código Penal português. 12 Cfr. o art. 7.º, alínea b), da Lei n.º 36/98, de 24 de julho.
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prestado pelo representante legal, por ascendente ou descendente ou, na sua falta, por quaisquer parentes da linha colateral (art. 3.º/3, alínea b), do citado decreto-lei). Quanto às demais intervenções médicas, incluindo as de alteração dos caracteres genitais externos e/ou internos, só os menores de 16 anos, ou os que não possuam o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance do consentimento é que serão substituídos pelos representantes11. A idade de 16 anos constitui assim no direito português uma presunção de capacidade para consentir intervenções médicas (OLIVEIRA,199,p.228). Porém, em certos casos, o médico deverá chamar os pais a colaborar no esclarecimento, na formação da vontade do menor de 16 anos, quando este aponta para uma solução com resultados graves e irreversíveis para a sua saúde ou a sua vida. Quanto aos menores com idade inferior a 16 anos, há quem entenda que é o médico a pessoa que tem o ónus de demonstrar que o menor desfruta do discernimento e capacidade suficiente para consentir, independentemente da vontade dos representantes legais. Todavia, aos menores com mais de 14 anos e capacidade de entendimento internados em unidades de saúde mental é reconhecida a capacidade de consentir12. Com efeito, se o menor for capaz de compreender o alcance, a índole e as consequências da intervenção e da recusa do tratamento, de modo que se deva considerar capaz para consentir, ele deve também ser considerado capaz para dissentir. Por outro lado, sempre que, nos termos da lei, um menor careça de capacidade para consentir numa intervenção, esta não poderá ser efetuada sem a autorização do seu representante, de uma autoridade ou de uma pessoa ou instância designada pela lei. A opinião do menor é tomada em consideração em função da sua idade e do seu grau de maturidade. Na verdade, o art. 46.º, n.º 3 do Código Deontológico da Ordem dos Médicos (Portugal) determina que “A opinião dos menores deve ser tomada em consideração, de acordo com a sua maturidade, mas o médico não fica desobrigado de pedir o consentimento aos representantes legais daqueles”. Também o n.º 2 do artigo 6.º da Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina, dispõe que: “Sempre que, nos termos da lei, um menor careça de capacidade para consentir numa intervenção, esta não poderá ser efetuada sem a autorização do seu representante.
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não pode ser efectuada sem a autorização do seu representante ou, na sua impossibilidade, do tribunal competente, sendo a opinião do menor tomada em conta, em função da sua idade e do seu grau de maturidade. Em Portugal, o artigo 10.º, n.º 1, da Lei n.º 3/84, requer idade acima de 25 anos, declaração escrita e assinada, requerendo a realização do procedimento, bem como explicitando que a pessoa foi esclarecida sobre a intervenção; essa declaração deverá ter ainda o nome e assinatura do médico solicitado a intervir. Já quanto aos incapazes de facto, em virtude de distúrbio mental, de doença ou de motivo similar, a intervenção não pode ser efectuada sem a autorização do seu representante ou do suprimento judicial do consentimento, devendo a pessoa em causa, na medida do possível, participar no processo de autorização. Em Portugal não há legislação específica sobre a esterilização não terapêutica de maiores incapazes. A referida Lei n.º 3/84 limita-se a estatuir que o limite mínimo de idade de 25 anos é dispensado nos casos em que a esterilização é determinada por razões de ordem terapêutica. Todavia, o Conselho de Ética para as Ciências da Vida (Portugal) já emitiu parecer (n.º 35/CNECV/01)13, no sentido de que a esterilização não terapêutica de incapazes através da laqueadura só deve ser realizada como medida de último recurso, tendo em vista sua difícil reversibilidade; ademais, a decisão deve partir de uma autorização do Tribunal. O Código Deontológico da Ordem dos Médicos de Portugal determina, no seu art. 66.º, n.º 4, que os métodos de esterilização irreversíveis só devem ser executados após pedido devidamente fundamentado no sentido de evitar graves riscos para a sua vida ou saúde dos seus filhos hipotéticos e, sempre, mediante prévio consentimento judicial. A família do incapaz e dos médicos são aqueles em quem a lei faz recair a difícil decisão acerca da esterilização não terapêutica como meio de controlo de natalidade. Isto sem prejuízo de, como referi, o incapaz dever ser ouvido. Mas tal como em Portugal, em Macau o consentimento é tolerante, pois nos termos do n.º 5 deste artigo 6.º a autorização referida pode ser retirada, em qualquer momento até à execução da intervenção, no interesse da pessoa em causa.
As crenças e os padrões comportamentais são muito diferentes ao longo do planeta. E isso tem que ser reflectido na regulação jurídica e no Direito. A doação de óvulos e até de embriões levanta menos problemas do que a doação de esperma. Isto por causa de ideias em torno da experiência do nascimento e da ligação maternal durante a gravidez. Na China (e, logo, na Região Administrativa Especial de Macau), a doação de óvulos é mais aceite do que a de esperma por causa dos valores patriarcais e das preocupações com
13
MACHADO, Pinto. Laqueação de Trompas em Menores Com Deficiência Mental Profunda. Conselho Nacional de Ética para as Ciêcias da Vida. Lisboa, 3 abr 2001. Disponível em: <http://www.cnecv.pt/admin/files/data/docs/1273057418_P035_LaqueacaoTrompas.pdf>. Acesso em: 1 out. 2017>.
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7 A FERTILIZAÇÃO MEDICAMENTE ASSISTIDA
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a continuidade das linhagens patriarcais, ao passo que acontece exatamente o contrário, por exemplo, em Israel, onde a identidade judaica é estabelecida através da mãe. No Reino Unido e nos EUA a doação de esperma é vista de modo sexualizado – talvez porque a doação atravessa as fronteiras de género –, enquanto a doação de ovos é vista como assexuada e altruísta.
Todas as sociedades atravessam actualmente momentos de forte ambiguidade nas representações e no atuar da sexualidade humana a que o Direito tem respondido de forma insuficiente. Portugal e Macau não escapam a este fenómeno. Na verdade, Macau não dispõe de uma lei das uniões de facto. Porém, o art. 25.º da sua Lei Básica (e, implicitamente, a Declaração Conjunta subscrita entre Portugal e a República Popular da China, por ocasião da cedência, por Portugal, da soberania deste território à China, em 1 de janeiro de 2000) proíbe a discriminação por orientação sexual. Também não existe um debate público e político que certamente acerca da legalização do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Macau revela um sentido negativo relativamente à adopção por casais homossexuais, mas dispõe de algumas (poucas) regras sobre procriação medicamente assistida no próprio Código Civil (arts. 1723.º a 1728.º). Portugal tem, desde 2006, um regime específico de procriação medicamente assistida, mas que até muito recentemente vedava, em absoluto e sem qualquer derrogação, o acesso por parte de mulheres solteiras, viúvas ou divorciadas (não unidas de facto) e por casais de mulheres às técnicas de procriação medicamento assistida e aos acordos de gestação para terceirosem casos de ausência de útero, de lesão ou de doença desteórgão que impedisse de forma absoluta e definitiva a gravidez. O regime jurídico português assim descrito mudou coma Lei n.º 25/2016, de 29 de julho. Aquele regime condicionador e até impeditivo vigora, todavia, em Macau. As lésbicas portuguesas (e supõem-se também o mesmo em Macau) têm recorrido a formas de reprodução que passam sobretudo pelas seguintes estratégias: o recurso à procriação medicamente assistida no estrangeiro, por parte das mulheres; o recurso a um dador amigo, com ou sem definição de futuro envolvimento parental deste; projectos de co-parentalidade, com um/a amigo/a ou casal; o recurso à adopção singular com ocultamento da (ou prévio à) existência de um/a parceiro/a. Noutros casos, nacionais da China continental recorrem às autoridades sanitárias de Macau para realizar técnicas de procriação assistida ilícitas face ao ordenamento da República Popular da China (e, por vezes, de Macau). De todos estes novos e radicais casos a bibliografia mais recente sobre estes assuntos sugere que os modelos construídos por famílias, parceiros e pais gays e lésbicas, bem como pelos pais de crianças nascidas graças a novas tecnologias reprodutivas, assentam igualmente em ideias radicais e em ideias conservadoras.
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8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Durante muito tempo a sexualidade, a procriação, a filiação e a aliança coincidiam, mesmo que apenas idealmente, assim como a produção e reprodução da família. Hoje, em muitos países (de que são expressão os ordenamentos jurídicos português e macaense), a cada vez maior saliência cultural da homoparentalidade ainda vai confrontar-se, por muito tempo, com os efeitos das normas jurídicas geralmente aceitas e produzidas nos Parlamentos, para efeitos da constituição das subjectividades (neste caso de “pais” e “filhos”). E isto será tanto mais assim quanto, sobretudo em contextos contemporâneos na Europa e nos E.U.A., a lei segue e apoia o biologismo da cultura e a biologia tende a seguir e a apoiar o biologismo da lei14.
REFERÊNCIAS Almeida, Miguel Vale de. O Esperma Sagrado: Algumas Ambiguidades da Homoparentalidade em Contextos Euro-Americanos Contemporâneos.Quaderns, n.º 25, 2009, pp. 109 ss. Coelho, F. M. Pereira; Oliveira, Guilherme de.Curso de Direito da Família. Vol. I. Introdução. Direito Matrimonial. 5.ª ed. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2016. Dias, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4.ª ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Editoria Revista dos Tribunais, 2007. Marques, J. P. Remédio, Mudança de Sexo. O Critério Jurídico. Tese (Mestrado em Direito). Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (existente no fundo bibliográfico desta Faculdade e na Biblioteca Nacional), 1991. Mendes, João de Castro; Sousa, Miguel Teixeira de, Direito da Família. Lisboa: Associação Académica da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1990/1991. Moreira, Sónia. Autonomia do Menor no Exercício dos seus Direitos. Scientia Iuridica,
Oliveira, Guilherme de. O Acesso dos Menores aos Cuidados de Saúde. Temas de Direito da Medicina. Coimbra: Coimbra Editora, 1999. Pinheiro, Jorge Duarte. O Direito da Família Contemporâneo. Lisboa: Associação Académica da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2008.
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Nestes termos, Almeida, Miguel Vale de, “O Esperma Sagrado: Algumas Ambiguidades da Homoparentalidade em Contextos Euro-Americanos Contemporâneos”, in: Quaderns, n.º 25, 2009, pp. 109 ss., pp. 119-120, acessível, igualmente no seguinte endereço eletrônico: http://miguelvaledealmeida.net/wp-content/uploads/2012/11/193726-328868-1-PB.pdf
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2001, p. 159 ss.
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Pires, Cândida Antunes da Silva. O direito da Família e a Prova Legal do Estado Civil em Macau. In: Repertório do Direito da Macau. Macau: Centro de Estudos Jurídicos da Universidade de Macau, 2012, p. 591 ss. Pitão, França. Uniões de Facto e Economia Comum. 2.ª ed. Coimbra: Almedina, 2006. Varela, João de Matos Antunes. Direito da Família. Vol. I., 5.ª ed. Lisboa: LivrariaPetrony, 1999. THE HUMAN SEXUALITY AND THE FAMILY LAW IN THE PORTUGUESE AND MACAU LEGAL FRAMEWORK
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ABSTRACT This paper analyses some of the multiple dimensions of sexuality and gender in Family Law in the Portuguese and Macau legal framework (e.g., marriage, fatherhood; motherwood; adoption; parental responsibilities and sexual orientation; sex reassignment, sterilization). Although the legal system of Macao (public law and private law) reveals a strong Portuguese matrix, the ethical and axiological awareness of this Special Administrative Region of China is based on different cultural assumptions, which explains the discontinuity of some legal solutions. Keywords: Family Law. Sexuality. Gender. Homosexuality. Parental responsibilities.Medical assisted reproduction.
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CONTROLAR E PUNIR – O DIREITO PENAL EM MUDANÇA? Anabela Maria Pinto de Miranda Rodrigues1
RESUMO Este estudo analisa o controle social e a punição na sociedade do risco e globalizada, em que se desenvolve uma nova criminalidade altamente danosa e geradora de elevados sentimentos de insegurança. O enfraquecimento do poder estatal ligado ao questionar do modelo social, sob o pano de fundo da crise econômica desencadeada em 2008, alimentou uma cultura de controle e a penalização da segurança. O Estado Penal e uma ideologia securitária levam à crescente utilização das penas de prisão e alternativas como puro controle. Apenas uma reinterpretação da dimensão socializadora da punição, permitirá restaurar a responsabilidade e autonomia, recriando o laço social. Palavras-chave: Risco. Globalização. Segurança. Punição. Socialização
Falar de controle social e de punição significa ter presente que a sociedade e o crime se transformaram. A nova sociedade e a nova fenomenologia criminal se colocam como um desafio muito próximo daquelas épocas marginais de que falava Jaspers. Esta proposta de percurso postula naturalmente um olhar aberto a diferentes azimutes,
1 Professora de Direito e Processo Penal da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Foi Presidente da Comissão para a Reforma do Sistema de Execução de Penas e Medidas e Presidente da Comissão de Reforma da Legislação sobre o Processo Tutelar Educativa. É colaboradora permanente da Revista Portuguesa de Ciência Criminal. É colaboradora do Comentário Conimbricence do Código Penal - Parte Especial, É membro da Associação Internacional de Direito Penal. É Secretária-Geral da Fundação Internacional Penal e Penitenciária. É Secretária para os Assuntos Europeus da Sociedade Internacional de Defesa Social. Foi diretora do CEJ. Presentemente é Diretora da FDUC.
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1 INTRODUÇÃO
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o perscrutar dos sinais emitidos em diferentes linhas de fronteira. Os desafios estão bem esculpidos nas experiências da realidade social e em substâncias e formas de criminalidade que marcam a contemporaneidade. A legitimidade do punir deve limitar-se a um eidético mundo da vida, de inspiração husserliana? Isso não significará uma política criminal míope, incapaz de responder à necessidade de proteger novos valores e de perseguir e punir novos criminosos,em que a referência pode ser a catástrofes ambientais ou nucleares? Mas até onde se pode ir naperseguição e punição da criminalidade mais grave, sobretudo daquele que emerge nos dias atuais como desafio aos fundamentos da própria democracia? E até onde se pode oferecer proteção àqueles que se propõem destruí-la, como acontece com certas manifestações de criminalidade econômica ou de terrorismo? O direito penal e, com ele, o direito de punir, tocam o seu próprio destino. Ainterrogação, ao mesmo tempo mais genérica e mais funda, atravessa o atual tempo: até onde pode recuar a liberdade para assegurar a segurança? Tinha razão Saramago quando se referiu ao presente tempo como o tempo das perguntas: sobram as perguntas e faltam as respostas.
Ao indagar a razão destas súbitas interrogações, a resposta parece incontroversa. Assisti-se ao advento de uma nova sociedade, global e do risco, caótica e de fluxos instantâneos, que assumiu o significado de uma rutura epocalcom um passado ainda recente. E, com as ameaças, as incertezas e a instabilidade – as crises -, os Estados mostraram as suas vulnerabilidades e as dificuldades que enfrentam em lidar com a questão da segurança. Trata-se, no fundo, de ganhar consciência de que a crença na superioridade ética e na eficácia da política criminal estatal está abalada. E, desta forma, é o próprio direito de punirdemocráticoque está em causa. Volvidas três décadas sobre a publicação de Ulrich Beck, em 1986,2 a propósito da sociedade do risco, em que captou com apurada sensibilidade a insegurança inerente ao projeto da sociedade industrial da modernidade, o seu diagnóstico não perdeu atualidade e é hoje reforçado pela crise energética,as alterações climáticas, a disrupção dos sistemas econômico e financeiro, as pandemias ou pela criminalidade grave organizada e pelo terrorismo global. Os progressos alcançados na promoção dos direitos humanos, nos avanços da democracia e do Estado de direito, a crença na ciência e na técnica e nas suas possibilidades ilimitadas deram lugar a um risco existencial perante os problemas políticos, econômicos, ambientais,
2 O autor definiu a “sociedade do risco” como aquela que, juntamente com os progressos da civilização, apresentava a contrapartida da produção de novos riscos conaturais àqueles progressos, por exemplo, perigos ambientais ou nucleares. Hoje em dia, como o próprio Beck destaca (BECK, Ulrich; WILLMS,Johannes.Conversations with Ulrich Beck, Cambridge, Polity Press, 2003, p. 34), a lista dos “riscos” poderia ser ampliada: riscos laborais (precariedade, flexibilidade laboral e despedimentos); riscos sanitário-alimentares (contaminações, adulterações, transgénicos, pestes de animais); riscos derivados da alta sinistralidade (laboral e em acidentes com veículos); riscos próprios de desasjustamentos psíquico-emocionais e derivados das “patologias do consumo” (anorexias e bulimias).
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2 GLOBALIZAÇÃO E SOCIEDADE DO RISCO
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São sete as áreas de (in)segurança identificadas, em 1994, no Relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD): econômica, alimentar, sanitária, ambiental, pessoal, comunitária, política.
4 Sobre o fenômeno da globalização, no que se segue: RODRIGUES,Anabela Miranda. “Direito penal económico – é legítimo? É necessário?”, Revista Portuguesa de Ciências Criminais (RPCC), Ano 26, 2016, p. 42. 5
Chama a atenção, exatamente nestes termos (e no que se segue), para a análise de Ulrich Beck (Que és la globalización? Falacias del globalismo, respuestas a la globalización, Paidós, 1998, p. 15.), Eduardo Demetrio Crespo, “El significado político del derecho penal económico”, E. Demetrio Crespo y M. Maroto Calatayud, Crisis financeira y derecho penal económico, BdeF-Edisofer, Montevideu, Madrid, 2014, p.4 e 5.
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de saúde pública, de segurança pessoal ou de segurança comunitária que, no novo milênio, confrontam a humanidade com desafios avassaladores3. Interagindo com o risco, a globalização – também já descrita como uma compressão do Mundo - é o outro fenômeno responsável pela emergência de uma sociedade impregnada por uma ideologia neoliberal, que não por acaso recebe o ápodo de “globalização neoliberal”4. O primado da lex mercatoria - a entronização do mercado, para utilizar a terminologia do prêmio Nobel Joseph Stiglitz – e a ausência de regulação pública efetiva são caraterísticas reconhecidas da globalização, designadamente econômica, mas não só. É esta sociedade que se confronta com mudanças que colocam a sua humanidade no fio da navalha. É, desde logo, (INNERARITY, 2009, p. 57) a invisibilidade dos poderes que a dominam, cada vez menos identificáveis. A globalização trouxe consigo a questão de saber quem manda aqui – ou, se se preferir, quem ordena o caos. Foi também Beck5 que chamou a atenção para que a globalização, ao contrário do que à primeira vista se poderia pensar, não apontava para o “fim da política”, mas para “novos atores” da política num “novo espaço”: os grandes empresários em empresas internacionais à escala mundial. A atuação destesnovos protagonistas, situada fora das fronteiras nacionais, significou mais política – a politização da economia -,porque permite que desempenhem um papel chave, não só na configuração das relações econômicas, mas na sociedade no seu conjunto: têm uma localização incerta, escapam aos controles estatais e não prestam contas a qualquer eleitorado. A abertura a espaços de tratamento diferenciado de certas atividades, ilícitas em um lugares e lícitas noutros, permitem-lhes escolher o local em que querem instalar-se, em busca da máxima rentabilidade em função das diferentes disciplinas legais, em domínios tão variados como o fiscal, laboral, segurança social ou ambiental, ou ainda os domínios financeiro ou econômico. E onde se inclui, também, o direito penal, cujas opções legislativas condicionam o investimento e são, em contrapartida, condicionadas por ele. (BASOCO, 2015, p. 8) Por sua vez, o capitalismo financeiro de Sillicon Valley ou de Wall Street, aliado à aceleração da revolução tecnológica e à proliferação dos cibermundos, converteu a economia real em algo quase obsoleto e fez surgir uma economia virtual e imaterial, um capitalismo de acionistas e especuladores, de “proprietários ausentes”, segundo Zygmunt Bauman (1999, p. 18). Desregulação, deslocalização ou financiarização da economia são sinais de ameaça e geram desigualdade, assimetria e enfraquecimento dos Estados. O que se observa équeos Estados nacionais definham na sua capacidade de produzir riqueza e veem diminuídoo seu poder para gerir os assuntos internos,
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para tomarem as decisões que podem melhorar as condições de vida dos seus cidadãos. E, por exemplo, quando os mercados “afundam” ou ficam “nervosos” não há nenhum interlocutor que possa criticar ou tranquilizar. O poder é invisível e só é possível questioná-loatravés da especulação argumentativa ou derrubando o World Trade Center (INNERARITY, 2009 p. 79) É este o cenário da nova sociedade do risco ou “sociedade invisível” - como a apelida Daniel Innerarity -, em que tudo aponta para que se vai viver num estado de permanente insegurança. Criminalidade e medo da criminalidade desempenham aqui um papel fundamental (RODRIGUES, 2003, p. 39). A globalização traz consigo a dimensão transfronteiriça dos problemas que desencadeia e o aumento da interligação e interdependência entre os Estados. Potenciando a liberdade de circulação de pessoas e a utilização das tecnologias de comunicação e informação, não apenas facilitou a prática de atividades criminosas como também o surgimento de uma realidade criminológica especificamente global. Tornou o crime mais eficaz, mais lucrativo e exponencialmente mais danoso. Estreitamente ligado à globalização estáo nascimento e a expansão de uma criminalidade que utiliza as suas lógicas e potencialidades, permitindo que grupos criminosos aproveitem as vantagens que oferece o novo espaço mundial. Por um lado, no mercado gigantesco para que evoluiu a economia mundial, existe uma procura de bens proibidos que alimenta um mercado de produtos e serviços ilegais. A atividade criminosa adquiriu uma enorme capacidade de diversificação, organizando-se estrutural e economicamente de forma altamente lucrativa, para explorar os mais variados domínios. A criminalidade dita econômica é hoje, assim, uma categoria que pode alargar-se e dizer respeito, quer ao branqueamento ou a diferentes modalidades de corrupção política, de funcionários ou de privados, como ainda aos tráficos internacionais de droga, de moeda falsa, de armas, de órgãos humanos, de crianças para a adoção internacional, de pessoas para a prostituição, de migrantes e de trabalhadores. Entretanto, no espaço sem poderes visíveis em que se tornou o mundo, a definição do crime e do delinquente diluem-se e tornam difícil a sua identificação enquanto tais. Estas interrogações surgem hoje com frequência: É crime? Quem é o responsável? Não está só em causa a fronteira, que é muito tênue, entre uma atividade econômica lícita ou ilícita, como será o caso entre uma fuga, lícita, ao pagamento de impostos e uma fraude fiscal. Os chamados Papeis do Panamá ocuparam, há bem pouco tempo, a atualidade informativa e os prime time dos noticiários de todo o mundo – até que, tão depressa como apareceram, bruscamente desapareceram. Curiosamente, o que se observou, foi que, em vez de negar a veracidade da informação, a principal estratégia de defesa, que foi utilizada pelos implicados, foi a de sustentar a legalidade das contas ou das atuações refletidas nos diversos documentos filtrados. Se aparece um cadáver, o primeiro impulso será pensar que esta-se perante uma vítima de homicídio. Pelo contrário, a mera descoberta de uma série de documentos como os que figuram nos Papeis do Panamá não é suficiente para determinar a existência de indícios de crime com um grau de
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segurança equivalente. Provavelmente, na maioria dos casos, bastará para fundar um juízo negativo no plano moral, mas já não no plano legal, onde ficará a mera suspeita. O fenômeno migratório é outro bom exemplo do que está em causa, em que, entre a exploração de quem auxilia à imigração ilegal e à própria imigração em si, se confundem, tantas vezes, realidades diferentes. Também para a atividade terrorista falham as explicações causais e os conceitos tradicionais de crime e de criminoso não dão respostas bastantes. A primeira discussão em torno do 11 de setembro foi sobre se se estava perante um ato de guerra ou um ato de terrorismo. A seguir ao atentado que deu início à nova era do terrorismo, Innerarity (2009, p. 103) preconizou que “assistiríamos a conflitos sem uniformes, com explosões dispersas, métodos de destruição sinistros (…), sem sinais nos mapas como os que sinalizam uma guerra, com estratégias desenhadas mais para produzir medo do que baixas”. E Martin Creveld viu em tudo isto algo que iria para além do militar: afirmou que terminara a época da “estabilidade moderna, da soberania reconhecível, do monopólio da força monopolizada e da segurança garantida” (citado por INNERARITY, 2009, p. 104).
A situação é especialmente delicada, na medida em que, perante as novas ameaças, a sociedade transforma-se numa sociedade de segurança. Com a globalização e a expansão da revolução neoliberal não foi só o poder regulador dos Estadosque se enfraqueceu: assistiu-se ao questionar do modelo estatal social, tudo com implicações ao nível da segurança. A transformação do Estado no domínio social,6 a que está subjacente uma ideia de menos Estado, é contrabalançadapor mais Estado para controlar os perdedores, os que não ganham no jogo do mercado. Desenvolve-se uma cultura de controle, que progressivamente ganha terreno. Crime e castigo tornam-se um tema dominante na política. O crime tende a estar obsessivamente sobre-representado no discurso e impregna, designadamente, as campanhas eleitorais, e a atenção dos media tornou-o a metáfora preferida para todas as formas de ansiedade social. A pena, por sua vez, é a metáfora que serve para apontar o remédio. O novo “capitalismo regulatório”7emergente, designadamente na atividade econômica - uma técnica de “autorregulação regulada”, como a designou Ulrich Sieber, do lado dos penalistas8 -, surge como resposta inovadora – de que a compliance é um exemplo paradigmático
6
Sobre isto, cf. RODRIGUES, Anabela Miranda. “Execução penal socializadora e o novo capitalismo – uma relação (im)possível?”. Revista Brasileira de Ciências Criminais (RBCC), Ano 23, vol. 112, jan.-fev./2015, p. 20.
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A referência é ao “regulatory capitalismo”, a expressão com que John Braithwaite cunhou o liberalismo regulador no seu, já hoje um clássico, livro de 2008 com o mesmo nome, The regulatory capitalism, Oxford. Cf., também, do autor, “The new regulatory state and the transformation of criminology”, British Journal of Criminolog, vol. 40, 2000, p. 197.
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ULRICH SIEBER. Programas de compliance no direito penal empresarial: um novo conceito para o controle de criminalidade econômica. (tradução de Eduardo Saad-Diniz), Direito penal econômico: estudos em Homenagem aos 75 Anos do Professor Klaus Tiedemann, William Terra Oliveira, Pedro Ferreira Leite Neto, Tiago Sintra Essado, Eduardo Saad-Diniz (orgs.), São Paulo, Liber Ars, 2013.
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3 A TRANSFORMAÇÃO DO ESTADO SOCIAL E A PENALIZAÇÃO DA SEGURANÇA
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FARONI, 2006, p. 40) para a garantir. E aí estão deveres cada vez mais estritos e minuciosos que devem ser cumpridos na atuação quotidiana, para não lesar o Fisco, para não alimentar os tráficos, para não branquear capitais, para não financiar o terrorismo. O direito, e o direito penal, faz dos cidadãos cada vez mais garantes do que nunca imaginaria-se que se teria de garantir. Os programas de compliance, com o “deslizamento para baixo” da responsabilização penal que geram e a criação de bodes expiatórios; ou as elaboradas teorias de “cegueira deliberada” para punir generalizadamente comportamentos negligentes, revelam-se como pretextos para legitimar um controle social (que no final da linha é) punitivo. Estar-se-ia no caminho de criminalizar aqueles que não denunciarem uma mala abandonada num aeroporto ou na estação de metro? Há, sem dúvida, uma dimensão social que tem de impregnar a ação individual e institucional das presentes sociedades democráticas. Mas o Estado não pode retirar-se e, ao mesmo tempo, responsabilizar e transformar a todos em whistleblowers (assopradores de apito). A partir daqui é apenas um pequeno passo até à penalização da segurança. Perante um espaço que se abre e se alarga ao tamanho do mundo, nasce, contraditoriamente, uma cultura de controle estatal, fechada e monolítica e a segurança emerge com um novo estatuto, cujo traço é a redução ao penal. O Estado penal é também o resultado desta reorientação do Estado e da sua nova legitimidade – que não se contesta - para assumir o controle dos novos e grandes riscos, mas cujo poder e competências não cessam de aumentar em matéria de criminalização generalizada, polícia, repressão e segurança. Este processo não pode ser visto unicamente através das lentes dos penalistas. É, com efeito, um fenômeno muito parecido com o que já está a acontecer através da
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Sobre a “democracia do controlo”, vide ROSANVALLON, Pierre.La contrademocracia. La politica en la era de la desconfianza.Buenos Aires: Manantial, 2007, p. 49.
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- na estratégia de controle do comportamento institucional ou empresarial para garantir a aplicação das múltiplas disposições que regulam estas atividades, mas pode ter por efeito reduzir o Estado a funções de controle9. As regras desta nova forma de regulação incluem possibilidades normativas de pressão, que podem ir desde o direito civil, designadamente o direito das sociedades ou o direito do trabalho e passar pelo direito administrativo. Mas, no fim da linha, está o direito penal. A utilização da conhecida técnica do pau e da cenoura para assegurar o cumprimento de mecanismos de controle, que visam antes de tudo ser eficazes, inscreve-se numa lógica mais geral de despersonalização do controle ou de “governança impessoal global” como a designou Carlo Bordoni, com “um grau cada vez menor de interferência dos políticos” e “um alto grau de controlo social” (2016, p.168) Que, no direito penal, não só reduz o delinquente ao “inimigo”desdimensionando-o no seu valor absoluto como pessoa -, mas abre ainda o caminho à “sociedade robotizada”, de que fala Zaffaroni (2006, p. 56), em que os humanos seriam os robots. Estados enfraquecidos para garantirem a segurança, comprometem-se cada vez mais na sua realização, exigindo, “qual gato doméstico, precisão de movimentos por entre cristais”(ZAF-
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localização de telefone celular, do uso da internet, dos drones e câmaras nas cidades. Mas, como alerta Bordini, é “muito mais sofisticado e complexo” (2016, p. 169) É a “desdemocratização”, de que fala Charles Tilly (citado por BORDINI; BAUMAN, 2016, p. 169), com normas para restringir liberdades e direitos individuais, limitação de direitos políticos ou medidas excepcionais para lidar com acontecimentos excepcionais (terrorismo, catástrofes naturais). Ou, numa perspetiva mais abrangente, é a “pós-democracia”, que Colin Crouch., (citado por BORDINI; BAUMAN, 2016, p. 176) conceituou como “crise do igualitarismo e de trivialização do processo democrático”, e cujo exemplo clássico, que aponta Bordini (2016, p. 176), é a insegurança no emprego de contratos a termo, cuja introdução se normaliza, como “prática necessária para satisfazer a exigência de flexibilização da indústria”. Como afirmou Innerarity (2009, p. 60) a propósito do terrorismo e ao procurar explicar o fenômeno, a sua “verdadeira gravidade” reside nas “injustiças e desigualdades” do mundo atual, disfarçadas ou “protegidas” na sua invisibilidade“por uma aparência correta”, e nas novas proibições, na vigilância, na insegurança e na ambiguidade em relação aos direitos garantidos.
É sabido como esta ideologia de segurança alimentou a indústria contra o crime e o business penitenciário. Para perceber esta orientação político-criminal é preciso compreender a evolução que se produziu nas formas de controle dos indivíduos.10 Quando a segurança tem a ver com perigosidade do delinquente - e não com culpa pela prática do crime - e com a suspeita de ser delinquente - e não com prova da prática do fato -, a utilização da prisão e a sua utilização por um tempo cada vez mais longo e como um mecanismo de confinamento do indivíduo definem o sistema punitivo. À luz desta lógica securitária, promove-se a ideia de que a prisão funciona e fomenta-se uma estratégia punitiva institucional. Se a prisão não pode fazer mais nada, pode retardar o início da atividade criminosa por parte de indivíduos perigosos. Esses períodos de tempo produzem a redução do crime na sociedade, embora sem mudar nem o delinquente, nem a sociedade. Esta tendência está ligada ao “desenvolvimento autoritário da justiça criminal”, de que falou Alessandro Baratta, (2001, p. 232) e é um aspeto de verificação generalizada, que atinge, quer os países europeus, quer o continente americano, com expressão paradigmática nos Estados Unidos da América, dando azo ao fenômeno de superpopulação carcerária. A alteração é substancial. Enquanto a “velha” penologia era baseada no indivíduo e estava preocupada com as causas do crime - onde quer que elas sejam encontradas -, tendo em vista responder-lhes, por 10
Sobre o que se segue, cf. RODRIGUES,Anabela Miranda. L’éxécution de la peine privative de liberte. Problémes de politiquecriminelle, L’éxécution des sanctions privatives de liberte et les impératifs de la sécurité/The implementation of prison sentences and aspects of security (sous la direction/under the direction of Peter Take t/and ManonJendly), Actes du Colloque de la FIPP, Budapest; Hongrie 16-19 février 2006/Proceedings of the Colloquium of the IPPF, Budapest, Hungary, 16-19 February 2006, p.51; id, «Novo olharsobre a questãopunitiva», Educar o outro. As questões do género, dos direitos humanos e da educação nas prisões portuguesas, Humana Global. Publicações Humanas, 2007, p. 117. Superpopulação carcerária. Controlo da execução e alternativas.Revista Eletrónica de Direito Penal, AIDP – GB, Ano1, Vol.I, n.1, jun. 2013.
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4 SISTEMA PUNITIVO E SEGURANÇA
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11 Cf. RelatórioPrison in Europe: overview and trends. Detention conditions in the European Union, apresentado em Roma, em setembro de 2013, da responsabilidade de Alessandro Maculan, Daniela Ronco e Francesca Vianello. 12
Cf. Recomendação Rec (2006)2 do Comité de Ministros aos Estados Membros sobre as Regras Penitenciárias Europeias (adotada pelo Comité de Ministros na 952ª reunião de Delegados dos Ministros, de 11 de Janeiro de 2006), Anexo à recomendação REC (2006) 2, Parte I, Princípios Fundamentais, 4.
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contraposição, à “nova” penologia passou a interessar a categoria ou o grupo de risco em que o indivíduo se insere, para o neutralizar, vigiar e controlar. A máxima de Casablanca, “prenda os indivíduos do costume”, foi substituída pela ordem de “prender os grupos do costume”. É a entronização da segurança. Já quanto às penas alternativas à prisão, verifica-se uma renovada manifestação de interesse quanto a elas por parte dos decisores políticos e assiste-se à criação de um crescente e complexo mosaico de sanções diferentes da privação de liberdade intramuros. Mas, vistas meramente como managerialistic tecnics que se destinam a limitar a liberdade de movimentos, reduzem os seus efeitos à intensificação do controle sobre o indivíduo, mais uma vez sem nada mudar quanto ao delinquente ou na sociedade. Para além disso, uma análise do movimento dos delinquentes ao longo de um certo período de tempo assinala uma corrente contínua de indivíduos entre a comunidade para cumprimento de sanções e a prisão, ligada a uma menor tolerância que, não por acaso, se verifica quanto à violação das condições que possibilitam o cumprimento das sanções na comunidade. O aspeto agora em causa é o da transincarceração, resultante do sistema autopoiético criado pela proliferação de sanções que se reforçam mutuamente, e que permite o que já se chamou a “reciclagem” do indivíduo, favorecendo a sua circulação por diferentes instâncias de controle. Desta forma, é, ainda, e mais uma vez, a utilização acrescida da prisão que está em causa, agora potenciada por uma expansão generalizada do sistema punitivo que favorece o encarceramento. A questão da segurança e do lugar que ocupa no Estado em mudança da atualidade coloca-se ainda sob o pano de fundo da influência que sobre ela tem a crise econômica que atravessa a década que estars-se a viver, como consequência dos abalos financeiros desencadeados em 2008. Esta situação foi denunciada, ao nível europeu, pelo European Prison Observatory, em 201311. A crise econêmica é apontada como diretamente responsável pela degradação das condições de detenção, em clara violação dos direitos humanos dos presos e das Regras Penitenciárias Europeias, que enunciam como princípio fundamental que “as condições de reclusão que violem os direitos humanos não podem ser justificadas com invocação da falta de recursos”.12 Com efeito, destaca-se que a crise econômica, em muitos Estados europeus, teve um impacto direto no orçamento anual destinado às administrações prisionais, que diminuiu. No discurso político, o contexto de “contenção financeira” é a razão de “vetar qualquer proposta para melhorar as condições de detenção”. Desta forma, denuncia-se como piorou a qualidade da vida quotidiana nas prisões, designadamente, ao nível dos serviços prestados e pelo que diz respeito à insuficiência de técnicos e trabalhadores sociais (MACULAN; RONCO; EDIZIONI, 2013, p. 53, 54). Já em Estados onde os orçamentos das administrações prisionais
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não diminuíram ou foram mesmo aumentados, a maior parte dos fundos adicionais foram destinados à construção de novas prisões, alimentando o business penitenciário que foi-se referido em vez de serem dirigidos a promover iniciativas de socialização (MACULAN; RONCO; EDIZIONI, 2013, p.53). A “insegurança econômica” das pessoas, elevada a níveis sem precedentes nos tempos mais recentes de bem-estar, acrescida da atitude de uma comunicação social que desfoca a atenção do público do alvo das elites econômicas e políticas, são também apontadas como contribuindo para um tratamento mais “punitivo” dos presos. (MACULAN; RONCO; EDIZIONI, 2013, p. 55). Por sobre tudo isto, e também como consequência da crise econômica, muitos governos europeus sentiram a necessidade de reduzir as taxas de população prisional: construir cada vez mais prisões para uma população prisional que não cessa de aumentar, é caro para o erário público, mesmo recorrendo a parcerias privadas. Verificou-se, então, tal como já se referiu, a expansão da utilização de penas “ditas” alternativas à prisão. O resultado pretendido pode obter-se a curto prazo, mas o Estado encobre a exasperação punitiva que significa a sua utilização como penas que visam o puro controle generalizado da vida dos cidadãos e desinteressa-se do efeito expansivo do sistema carcerário a longo prazo, pelo qual, com forte probabilidade, não terá de responder.
Foi feita uma proposta de percurso, de que já se cumpriu uma parte, mas encontra-se longe de um conjunto articulado de respostas de teor político-criminal. Ambiciona-se recolher à Sombra Maiúscula de um sociólogo como Zygmunt Bauman que, a propósito da nova ordem global, confessou não estar preparado para “visualizar” e “muito menos, desenhar uma planta” da “nova ordem global”, afirmando que “seria completamente irresponsável se o fizesse enquanto subimos, como estamos a fazer agora, uma encosta íngreme”, sem poder “ver o que há do outro lado do cume da montanha”. Concluindo que: “O máximo que podemos ousar é pensar nos obstáculos para o topo”, “nas coisas que temos de transpor ou remover do caminho” (BORDINI; BAUMAN, 2016, p. 187). A questão que conduz diretamente ao âmago do problema, é esta: exigem as condições da nova realidade criminológica, determinada pelas transformações assinaladas, uma atitude radical de abolição do direito penal e, com ele, do sistema punitivo? Entende-se que a melhor resposta é aquela que segue o eco de Radbruch: não quero algo diferente do direito penal, quero um direito penal melhor. E assim, quem sabe, talvez ele até deixe um dia de existir e desabem os poderes formais de controlo. No âmbito punitivo, entende-se que o compromisso do jurista deve ser com uma reflexão crítica sobre a trama do sistema, que se nutra do pensamento criminológico e sociológico. Estes saberes, com os seus movimentos e correntes e as ligações que estabelecem com o sistema penal, podem despertar alertas criativos. Partilha-se, neste trabalho, inteiramente da posição
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5 A REINTERPRETAÇÃO DO CONCEITO DE SOCIALIZAÇÃO
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Os desafios do Direito no século XXI. Entrevista especial com Álvaro Pires, Instituto Humanitas UNISINOS, ADITAL, 03 de abril de 2012.
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de Alvino Augusto de Sá (2014) em relação aos penalistas, e inspiro-se nela para defender que estes devem não só conhecer as reflexões oriundas daquelas áreas sobre o “ato de punir, as instâncias punitivas e a conduta que o sistema punitivo costumeiramente seleciona e pune”, como devem também “apropriar-se”das suas reflexões e sobretudo “angustiar-se sadiamente” com elas. Se caírem as pontes desta reflexão, crítica e atualizada, sobre o controle e a punição, haverá a continuação, mais e mais, da assistência ao aumento da criminalidade; e, mais e mais, a admitir a barbárie, com o regresso da tortura, das prisões em terra de ninguém, da prisão perpétua ou da pena de morte. Uma coisa é aceitar passivamente que a punição perpetua a injustiça e a desigualdade. Outra, diferente, é, nas palavras do criminólogo Álvaro Pires,13 “observar quais são as ideias que o sistema penal moderno valoriza e que constituem um obstáculo cognitivo da sua própria evolução. Em outras palavras, quais são as ideias que ele considera ainda boas, mas que, na verdade, o impedem de se transformar qualitativamente e de se adaptar para o novo milénio”. (2012, p. da internet) A reflexão de que não são satisfatórios os resultados da política securitária e de controle, com o aumento da severidade das penas para responder aos problemas da criminalidade na sociedade atual, é um bom e singelo exemplo da necessidade de “ressignificação” dos fatos, das condutas e das normas de que fala Alvino de Sá para o direito penal. (SÁ, 2014, p 10) A “ressignificação” da intervenção socializadora na execução da pena de prisão e das penas alternativas será, porventura, um dos grandes desafios do direito penal da atualidade, acompanhando a reinterpretação dos direitos sociais que está a marcar as transformações do Estado social. A questão não se reflete tanto na legitimação, quanto na compreensão do conteúdo do direito à socialização. Há que reconhecer que este direito se inscreve numa redefinição do Estado Social que enfrenta hoje uma espécie de “revolução sociológica”, no sentido de que “os seus sujeitos mudaram” (ROSANVALLON, 1995, p. 189). Deixaram de ser grupos ou classes relativamente homogêneas. Regressam os “indivíduos” - regressa a pessoa - que se encontram em situações específicas.O que está em causa é que, por variadas razões – entre elas, a desregulação estatal-econômica -, é hoje muito difícil “decifrar a sociedade”, que não é mais uma sociedade de grupos, organizada hierarquicamente e de movimentos relativamente lentos. O que se diz – é Rosanvallon que o afirma - é que a redefinição do Estado Social está a passar por uma “evolução cognitiva” e que as sua formas de intervenção se reconformam, abrindo-se ao “miolo social” (ROSANVALLON, 1995, p. 202, 201). O que isto significa é um novo enfoque (do) social (ROSANVALLON 1995, p. 194). Assim, a propósito dos fenômenos de exclusão - de que a delinquência pode ser um deles –, o que se observa é que não faz qualquer sentido tentar apreender os excluídos através de uma “classificação categorial”. O que importa
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Neste contexto, explicita Rosanvallon (1995, p. 195) que “os excluídos formam mesmo uma ‘não classe’, no sentido de que constituem a sombra projetada das disfuncionalidades da sociedade, resultam de uma (…) dessocialização no sentido forte do termo (…). Os fenómenos de exclusão são manifestações da diferença e da não agregação social (…). Neste sentido, a exclusão não é um novo problema social, é uma outra maneira de descrever as dificuldades para estabelecer solidariedades (…). Falar de inserção é então tratar das diferentes formas de agregação social existentes ou por promover”.
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Sobre a reinterpretação do conceito de socialização, aplicado aos presos, no sentido de “evitar a dessocialização” e de “promover a não dessocialização”, RODRIGUES, Anabela Miranda.Novo olhar sobre a questão penitenciária.2ª edição, Coimbra Editora, 2002, p.47; id, RBCC, cit, p.29s
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O Autor fala ainda, neste contexto, da via de um “individualismo contratual”, em que “o respeito essencial pelo indivíduo vai de par com a reconstrução do vínculo social” (1995, p. 180).
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é antes tomar em conta os “processos de exclusão” e “analisar a natureza das ‘trajetórias’ que conduzem às situações de exclusão, na medida em que estas são resultantes de um processo específico e particular”14. A par desta redefinição dos “sujeitos da ação social”, o Estado converte-se num “Estado Serviço”(ROSANVALLON 1995, p. 210): o objetivo do Estado (social) é agora oferecer a cada um os meios específicos – “propor ajudas diferenciadas” - para “modificar o curso de uma vida”, “superar uma rutura” ou “prever um problema”. A partir daqui, assiste-se a uma transformação global da relação dos indivíduos com as instituições sociais, no sentido da sua cada vez maior individualização, a que a justiça penal não é alheia.O que está em causa, como se observa, é uma reinterpretação dos direitos sociais, de acordo com uma perspetiva contratualista, que articula direitos e deveres. Na execução da prisão recupera-se o conceito de socialização que lhe aponta o sentido de prevenção da reincidência, isto é, que apela ao dever, por parte do Estado, de oferecer ao preso condições que lhe permitam voltar a viver em sociedade sem praticar crimes. Acentua-se, assim, que será muito difícil recusar que é tarefa do Estado responder à situação de especial necessidade que traduz o estado de reclusão. Uma socialização renovada funda-se no reconhecimento da necessidade de oferecer ao preso condições de aderir à intervenção – a palavra-chave é aqui motivação - e na importância e vantagens da utilização da noção de “contrato” para se obter a sua participação voluntária nos programas de tratamento. Na ótica contratualista, devem alargar-se os programas orientados para problemáticas específicas do preso. A adesão e a participação – em termos claros, o consentimento do preso – excluirão qualquer hipótese de intervenção coativa. Trata-se de sublinhar a necessidade de colocar serviços à sua disponibilidade. São várias as hipóteses: prestar ajudas aos reclusos desfavorecidos, promovendo a igualdade real; restabelecer a saúde física e mental e diminuir as taxas de suicídio; dotá-los de competências sociais tais como, criar o seu próprio trabalho ou arranjar emprego. Não pode-se aqui, alongar-se na análise detalhada do que nesta evolução está em causa.15 Apenas retenhe-se dela, com Rosanvallon,16(ROSANVALLON 1995, p. 172, 173 e 174) que, embora a pessoa possa estar numa situação de carência – como quem é punido está -, a sua
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relação com o Estado traduz “uma relação de reciprocidade”, uma “obrigação de meios da parte da sociedade” em relação a um “beneficiário” considerado como “ator do seu próprio futuro”. Visto como “sujeito da ação social”, é considerado como uma pessoa “autónoma, responsável, capaz de assumir compromissos e honrá-los”. O contrato de inserção permite voltar a ligar o indivíduo ao princípio gerador da sociedade, o contrato social. A obrigação que o acompanha não é uma forma de restrição da liberdade, é antes um momento de construção do social. Na execução da prisão recupera-se o conceito de socialização que lhe aponta o sentido de prevenção da reincidência, isto é, que apela ao dever, por parte do Estado, de oferecer ao preso condições que lhe permitam voltar a viver em sociedade sem praticar crimes. Por aqui passamposições como as de Salomão Shecaira (2014, p. 54) que entende que o criminoso “tem vontade própria”, uma “assombrosa capacidade de transcender, de superar o legado que recebeu e construir o seu próprio futuro”, e uma “capacidade ímpar de conservar a sua própria opinião e superar-se, transformando e transformando-se”. Ou, como tem-se defendido, que a ideia de socialização tem de voltar a ocupar lugar no sistema punitivo, fundada numa cultura de participação e consenso e de revalorização dos direitos humanos em que se deve buscar, cada vez mais, a relegitimação do penal, assim se promovendo a responsabilidade e a autonomia da pessoa, considerando-a na sua dignidade única.
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A vulnerabilidade da sociedadeestá exposta.Não são respostas securitárias, em que o controle social se exacerba e se penaliza, que lhes permitirá manter-se enquanto sociedades democráticas. O desafio reside em saber se essa mesma vulnerabilidade as pode tornar mais resistentes. Entende-se que a sua força reside na complexidade, na recusa a fecharem-se, na convicção inabalável de que o poder absoluto ou os populismos são sinais de desmoronamento da força da política. E na aprendizagem de que nenhuma sociedade se pode proteger totalmente contra o conflito ou contra o diferente ou alcançar a segurança total,mas pode transformar e transformar-se.
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ABSTRACT This study analyzes the social control and punishment in the risk and globalized society, in which is developed a highly harmful and generates high feelings of insecurity new criminality. The weakening of state power linked to question the social model, under the economic crisis
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RESPONSABILIDADE CIVIL DO PRODUTOR E NEXO DE CAUSALIDADE: BREVES CONSIDERAÇÕES Mafalda Miranda Barbosa1
1 INTRODUÇÃO Se a necessidade de garantir a proteção do consumidor determinou a consagração de uma hipótese de responsabilidade civil independentemente de culpa, fundada no risco que o produtor assume ao colocar no mercado um determinado produto defeituoso2, o certo é que a
1 2
Doutora em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professora Auxiliar da Faculdade de Direito de Coimbra. Investigadora do Instituto Jurídico da Faculdade de Direito de Coimbra. Cf., com amplo desenvolvimento, escreve João Calvão da Silva emResponsabilidade civil do produtor.
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RESUMO Tendo em conta que a jurisprudência portuguesa tem exigido, no âmbito da responsabilidade do produtor, a prova quer do defeito, quer da causalidade entre aquele e o dano gerado e que o Tribunal de Justiça da União Europeia, num caso concreto sobre o qual foi chamado a pronunciar-se, embora tenha afastado a exigência de uma prova científica e irrefutável do nexo causal, recusa igualmente a comprovação do requisito com apelo a uma presunção que leve a demonstrar automaticamente o nexo de causalidade, propomo-nos, neste artigo, confrontar o tradicional entendimento acerca da causalidade com uma perspetiva imputacional. No final, estaremos em condições de perceber em que medida a exigência da jurisprudência portuguesa e europeia faz ou não sentido. Palavras-chave: Responsabilidade do produtor. Jurisprudência. Nexo de causalidade.
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3 Sobre a questão de saber se, no domínio contratual, haveria ou não possibilidade de se obter o ressarcimento junto do produtor do bem, cf. Luís Menezes Leitão, “A responsabilidade civil do produtor pelos danos causados ao consumidor”, Panóptica, 6/2, 2011, 16 s. (www. panoptica.org), considerando a possibilidade de se aplicar o artigo 800º CC, vendo-se o produtor como um auxiliar do vendedor, o que permitiria tornar o último responsável perante o consumidor; ou a possibilidade de se configurar a existência de um contrato entre o produtor e o consumidor. 4 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Março de 2010, Processo nº 5521/03.OTBALM.S1, www.dgsi.pt 5 Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20 de Novembro de 2007, Processo nº0725464, www.dgsi.pt 6 Não se entende a decisão do Tribunal da Relação do Porto, por dois motivos. Em primeiro lugar, os postes de suporte da vinha não se destinavam a um uso não profissional; em segundo lugar, os danos que se verificaram não resultam de uma lesão num objeto diferente daquele que é reputado de defeituoso. A decisão, aliás, contraria a decisão do Tribunal da Relação do Porto de 17 de Junho de 2004, que distingue claramente, a propósito de um carro defeituoso, a responsabilidade do produtor e a responsabilidade do vendedor por falta de conformidade ou qualidade das coisas vendidas 7 Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 13 de Setembro de 2007 (Processo nº1139/07-2), www.dgsi.pt
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complexidade com que os problemas surgem na realidade não permitiu que só pela objetivação da responsabilidade se eliminassem todas as dificuldades que a esse nível se podem enfrentar. Na verdade, a previsão da responsabilidade do produtor garantiu que se ultrapassasse o estrito domínio contratual, viabilizando que o consumidor/adquirente de um bem que, por causa de um defeito que ele contivesse, sofresse danos demandasse o fabricante e não apenas o fornecedor direto3, ao mesmo tempo que permitiu afastar a necessidade de prova do desvalor objetivo de cuidado, sempre difícil de apurar pela intermediação dos diversos agentes do circuito produtivo. Mas nem por isso arredou a exigência quer da prova do defeito, quer da prova da causalidade entre aquele e o dano gerado. A jurisprudência portuguesa tem sido perentória na afirmação dessa exigência. O Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 25 de Março de 20104, recordou que, numa ação de responsabilidade do produtor, “o lesado terá de alegar e provar os seus elementos constitutivos: danos, defeitos, nexo causal entre estes e aqueles”, não obstante admitir que, porque a prova da causalidade se pode revelar extremamente árdua, “as regras da experiência da vida, o id quod plerumque accidit e a teoria da causalidade adequada poderão permitir a preponderância da evidência, uma espécie de causalidade” (CORDEIRO, 2010). Também no Acórdão de 20 de Novembro de 20075, a Relação do Porto, a propósito de um caso em que A, produtora de vinhos, adquiriu postes de suporte de vinha, que acabaram por se degradar e rachar, caindo e provocando danos decorrentes da necessidade de remoção dos mesmos, considerou que o “lesado não tem de provar a culpa e a ilicitude, bastando provar a existência do defeito, do dano e do nexo de causalidade entre um e outro”, razão pela qual se deveria conceder a indemnização solicitada, por aplicação do regime da responsabilidade do produtor6. E, no Acórdão de 13 de Setembro de 20077, a Relação de Évora voltou a repetir a disciplina, negando o ressarcimento, porque não foi demonstrada a existência do defeito, nem o nexo causal entre o defeito do automóvel que tinha sido adquirido e o acidente que com ele foi sofrido. A lição resulta, aliás, da disciplina legal, fruto da transposição da diretiva comunitária sobre responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos, segundo a qual cabe ao lesado a prova do dano, do defeito e do nexo causal. Não se estranha, por isso, que sejam diversas as ações que improcedem a este nível e que, em virtude disso, se procurem forjar expedientes de facilitação do ónus probandi. Menezes
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8 Cf. Comunicado de imprensa nº66/17
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Cordeiro (2010) aduz a este respeito que o ponto delicado da prova do vício e da causalidade “foi suplantado com a ideia de prova da primeira aparência (alemã) ou da res ipsa loquitur (common law): as coisas falam por si; se uma roda se desintegra, é porque houve negligência no seu fabrico, ainda que não seja possível provar como tal ocorreu”. Embora o autor se refira a um período anterior à consagração definitiva da responsabilidade objetiva do produtor, não é menos seguro afirmar que desses mesmos mecanismos se socorre hoje a jurisprudência e a doutrina para fazer face aos problemas que tem de enfrentar. A este propósito e recentemente, o Tribunal de Justiça da União Europeia, no Acórdão no processo C-621/158, foi chamado a pronunciar-se sobre a questão de saber se, numa situação em que não há um consenso científico, o juiz se pode ou não basear, a despeito da exigência de prova do dano, do defeito e do nexo causal pelo lesado, em indícios graves, precisos e concordantes para estabelecer a ligação que se exige entre um determinado produto e o resultado lesivo advindo. Em causa estava a administração de uma vacina, entre finais de 1998 e meados de 1999, contra a hepatite B, produzida pela Sanofi Pasteur. Em Agosto de 1999, o senhor a quem tinha sido administrada começou a apresentar diversas perturbações, que levaram ao diagnóstico de esclerose múltipla, acabando por falecer em 2011. No quadro da ação proposta contra a Sanofi para obter uma indemnização, a Cour d’Appel de Paris considerou que não estaria provado o nexo de causalidade, por não haver consenso científico entre a vacinação contra a hepatite B e o aparecimento de esclerose múltipla. Chamado a pronunciar-se, o Tribunal de Justiça da União Europeia, fazendo referência ao excelente estado de saúde anterior do lesado, à inexistência de antecedentes familiares e à relação temporal entre a vacinação e o aparecimento da doença, veio considerar que é compatível com a diretiva comunitária na matéria um regime probatório que, na falta de provas certas e irrefutáveis, permita ao juiz concluir pela existência de um defeito e do exigível nexo de causalidade. Basta que haja um conjunto de indícios que levem a considerar, com um grau suficientemente elevado de probabilidade, que essa conclusão corresponde à realidade. Tais indícios devem ser suficientemente graves e precisos, de molde a permitirem extrair as conclusões que se procuram. Mais considerou o Tribunal de Justiça da União Europeia que o legislador nacional não pode lançar mão de uma prova por presunção que leve a demonstrar automaticamente o nexo causal, quando estejam reunidos certos indícios predeterminados. Em face do exposto, suscitam-se diversas dúvidas. Com efeito, o Tribunal de Justiça da União Europeia orienta-se pela ideia de (elevado gau de) probabilidade, não indo ao ponto de impor a prova certa e irrefutável, ao mesmo tempo que recusa a possibilidade de comprovação do requisito com apelo a uma presunção que leve a demonstrar automaticamente o nexo de causalidade. Portanto, haverá que, em primeiro lugar, perceber qual a probabilidade relevante para este efeito. Tal não será, contudo, bastante: de facto, orientando-se a jurisprudência pelo critério da causalidade adequada, o centro nevrálgico da indagação é exatamente a probabilidade de que se fala. Simplesmente, a leitura atenta do acórdão em questão parece apontar para a ideia
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de que, ao invés de se recorrer ao juízo probabilístico próprio da adequação, se está a alijar o ónus probatório ao nível fáctico. Nessa medida, questiona-se se, afinal, não entra em cena um primeiro patamar de indagação causal, a identificar-se com uma noção de condicionalidade. O dado importa uma terceira consideração, talvez a mais relevante: saber, então, do que se fala quando se fala de causalidade, e, consequentemente, quando se lida com o problema da prova do nexo que se procura erigir.
O artigo 1º DL nº383/89, de 6 de Novembro, alterado pelo DL nº131/2001, de 24 de Abril, estabelece que o produtor é responsável, independentemente de culpa, pelos danos causados por defeitos dos produtos que põe em circulação, entendendo-se por produtor o fabricante do produto acabado, de uma parte componente ou de matéria-prima, e ainda quem se apresente como tal pela aposição no produto do seu nome, marca ou outro sinal distintivo (artigo 2º, nº1). De acordo com o nº2 do artigo 2º, é também considerado produtor aquele que, na Comunidade Económica Europeia e no exercício da sua atividade comercial, importe do exterior produto para venda, aluguer, locação financeira, ou qualquer outra forma de distribuição, bem como qualquer fornecedor do produto cujo produtor comunitário ou importador não esteja identificado, salvo se, uma vez notificado por escrito, comunicar ao lesado no prazo de três meses a identidade de um ou outro ou a de algum fornecedor precedente. Não basta que o produtor coloque o produto em circulação. É necessário que o produto seja defeituoso. O defeito de que se cura tem, no entanto, uma abrangência muito mais do que ampla do que aquela com que somos confrontados ao nível da linguagem corrente ou no quadro de outros regimes privatísticos. Na verdade, o produto tem-se por defeituoso quando não oferece a segurança com que legitimamente se pode contar, tendo em atenção todas as circunstâncias, designadamente a apresentação, a utilização que dele razoavelmente possa ser feita e o momento da sua entrada em circulação, nos termos do artigo 4º. Há, no entanto, exceções a esta responsabilidade, que estão consagradas no artigo 5º. O produtor não é responsável se provar que a) não pôs o produto em circulação; b) que, tendo em conta as circunstâncias, se pode razoavelmente admitir a inexistência do defeito no momento da entrada do produto em circulação; c) que não fabricou o produto para venda ou qualquer outra forma de distribuição com um objetivo económico, nem o produziu ou distribuiu no âmbito da sua atividade profissional; d) que o defeito é devido à conformidade do produto com as normas imperativas estabelecidas pelas autoridades públicas; e) que o estado dos conhecimentos científicos e técnicos, no momento em que pôs o produto em circulação, não permitia detetar a existência do defeito; f) que, no caso de parte componente, o defeito é imputável à conceção do produto em que foi incorporada ou às instruções dadas pelo fabricante do mesmo.
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2 O REGIME DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO PRODUTOR (BREVE EXCURSO). CAUSALIDADE ADEQUADA E CONDICIONALIDADE. A PROBABILIDADE DO SURGIMENTO DO DANO
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9 Veja-se, a este propósito, Wester-Ouisse, “Définition de la causalité dans les projets européens sur le droit de la responsabilité”, www. grerca.univ-rennes1.fr/digitalAssets/267/267962_vwesterouisse.pdf, 6, considerando que, no articulado em análise, a conditio sine qua non dá, em muitas situações, lugar à probabilidade, sendo consideradas pertinentes todas as causas que, de maneira provável, causaram ou contribuíram para causar o dano. No fundo, haveria uma aproximação à doutrina da causalidade adequada em casos como aqueles em que a) há múltiplas causas que isoladamente terão causado o dano; b) há múltiplas causas que, em conjunto, causaram o dano; c) há múltiplas putativas causas, não se sabendo qual delas causou efetivamente o dano; d) há muitas vítimas de uma atividade, a ser tratadas igualmente em termos de causa provável; e) há a contribuição causal da vítima. Para uma aproximação entre a doutrina da conditio sine qua non e da causalidade adequada, cf. Florence G’Sell-M acrez, Recherches sur la notion de causalité, Université Paris I – Pantheon – Sorbonne, 2005, 163 e 171. Afirma a autora francesa que a teoria da causalidade adequada implica, também, um raciocínio contrafactual na medida em que leva a interrogar sobre o aumento da probabilidade do dano gerado por um antecedente. Ao mesmo tempo, explica que, “mesmo centrando-nos no concreto e individual, temos de recorrer, pela referência ao curso normal das coisas, às regras da experiência, às generalizações causais que pensávamos reservadas para a teoria da causalidade adequada. De facto, a lógica probabilística da teoria da adequação ressurge quando o carácter sine qua non da condição examinada não se impõe pela evidência”, ou seja, “o raciocínio contrafactual supõe que se represente aquilo que teria sido o curso provável dos eventos na ausência do fator considerado”, pelo que “a resposta à questão da conditio sine qua non não é dada senão em termos de probabilidade”. Sobre o ponto, cf., também, Mafalda Miranda Barbosa, Do nexo de causalidade ao nexo de imputação. Contributo para a compreensão da natureza binária e personalística do requisito causal ao nível da responsabilidade civil extracontratual, Princípia, 2017, 98 s.
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Além disso, o artigo 8º estabelece um limite aos danos ressarcíveis, considerando que só o são os que resultem de morte ou lesão pessoal e os que ocorram em coisa diversa do produto defeituoso, desde que seja normalmente destinado ao uso ou consumo privado e o lesado lhe tenha dado principalmente este destino. E o artigo 9º consagra que os danos causados em coisas só são indemnizáveis na medida em que excedam o valor de 500 euros. Fundamental passa a ser, como se compreenderá, o estabelecimento de um nexo de ligação entre o defeito do produto e os danos que sobrevenham. Embora o diploma não se refira especificamente ao requisito, ele resulta com naturalidade quer da finalidade da responsabilidade civil do produtor (ressarcitória), quer do fundamento último que para ela encontremos: o produtor não deve ser onerado com uma hiper-responsabilidade, mas tão só deve ser chamado a responder pelos danos que tenham sido gerados pelo seu produto. O busílis da questão está em saber o que entender por este nexo de causalidade. Tradicionalmente, a doutrina maioritária tem deposto no sentido de que ele se descobre com base na questão “é normal e provável (adequado) que de um comportamento do tipo do do lesante – no caso, a colocação de um produto com aquele tipo de defeito em circulação – resulte um dano daquele género?”. Tal indagação surgiria na sequência de uma prévia inquirição condicional, por meio da qual se procuravam afastar todos os comportamentos irrelevantes para o surgimento do dano – haveria de determinar se o dano teria surgido se não tivesse existido aquele defeito. Porque a realidade não se nos oferece em termos determinísticos e continuamente lineares, a resposta que se pudesse obter para a questão da condicionalidade acabaria por ser oferecida, as mais das vezes, em termos probabilísticos. A aproximação entre os dois critérios de estabelecimento da causalidade passa, portanto, a ser notória, sem que, contudo, se confunda a sua intencionalidade9. Se a condicionalidade surge a depor no sentido de afastar comportamentos irrelevantes, a adequação pretenderia introduzir uma solução normativizada para o problema. Simplesmente, dependendo da perspetiva do observador que se assuma, assim chegaremos ou a uma formulação probabilística-estatística que não só quadra mal com a intencionalidade predicativa da juridicidade, como não nos permite avançar em relação ao resultado que se obtém com a conditio; ou a uma formulação que, porque baseada nos dados do conhecimento do
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3 AS CRÍTICAS À TEORIA DA CONDITIO SINE QUA NON E À TEORIA DA CAUSALIDADE ADEQUADA As dificuldades anunciadas no ponto expositivo anterior correspondem, afinal, às dificuldades a que somos conduzidos, isoladamente, pela teoria da conditio sine qua non e pela teoria da causalidade adequada. Segundo a doutrina da conditio sine qua non, uma conduta é causa do dano sempre
10 Sobre a teoria e a sua inviabilidade no quadro do ordenamento jurídico português, quer porque, numa perspetiva, afronta a intencionalidade predicativa da juridicidade, quer porque, mesmo que surja normativizada de acordo com um ideal de justiça, quadra mal com os dados intrassistemáticos, cf. Mafalda Miranda Barbosa, “Responsabilidade por danos em massa : reflexões em torno da market-share liability”, Estudos de Direito do Consumidor, nº10, 2016.
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agente concreto, nos aproxima da culpa, não permitindo dar uma resposta consistente para a indagação causal. Em tudo isto, o que se deteta é uma predominância da probabilidade, a cumprir diversos papéis. Por um lado, ela é critério do juízo causal, por outro lado é índice probatório de determinação do iter conducente ao dano. Percebe-se, portanto, que não existe um grande desvio entre as soluções a que chegamos no seio do nosso ordenamento jurídico e aquelas que são veiculadas pelo Tribunal de Justiça da União Europeia. A referência ao elevado grau de probabilidade parece, claramente, apontar no sentido da determinação da concatenação ao nível factual. E, se ela nos desonera em certa medida, por não nos impor a prova certa e irrefutável, nem por isso afasta todos os nossos problemas. Em primeiro lugar, haveremos de questionar qual o grau de probabilidade de que se cura. Exigir-se-á, apenas, uma probabilidade de 50% ou a elevada probabilidade implicará a presença de índices estatísticos superiores? Acresce que o facto de existir, por exemplo, uma probabilidade de 99% não garante que o facto efetivamente ocorrido não se situe no intervalo percentual remanescente, pelo que não se conseguirá determinar com certeza qual a causa natural do dano. Por outro lado, o critério probabilístico estatístico parece claudicar sempre que em causa esteja um comportamento omissivo ou qualquer outro que escape a uma lógica naturalística de regularidade causal. Ademais, o resultado que se obtém para a indagação variará consoante os termos de descrição dos eventos, mais ou menos pormenorizados, correndo-se o risco de termos de lidar com o que a doutrina designa, a propósito da causalidade adequada, por fórmula vazia. In fine, enfrentar-se-ão problemas sempre que a probabilidade estatística nos indicar mais do que um eventual efeito causador do dano, sem que nos ofereça, concomitantemente, a possibilidade de discernir com certeza sobre qual foi a verdadeira causa. No fundo, entramos aí no cerne do que vem conhecido por causalidade múltipla, com as suas nuances próprias, mais ou menos dilemáticas, que se agigantam nas hipóteses de causalidade alternativa incerta e justificaram, inclusivamente, no seio da responsabilidade do produtor, a teorização de critérios como o da market share liability10.
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que se conclua que este não se teria verificado sem aquela. Fortemente inspirada na doutrina filosófica de Stuart Mill11, percebe-se que a mesma tenha colhido grande entusiasmo no século XIX, fruto do clima cientista e positivista que naquela época se viveu12-13. Para o autor, a causa é tida como a soma de todas as condições que conjuntamente se mostrem suficientes para a produção de um evento de tal modo que, uma vez verificadas, invariavelmente o resultado será aquele. Importada para o mundo jurídico pelas mãos de Von Buri14, a recondução da causa à simples condição baseia-se, sobretudo, na impossibilidade científica de se eleger, de entre as várias circunstâncias potenciadoras do resultado, aquela que efetivamente possa ser vista como determinante15. A intervenção da condição seria necessária para a produção do dano e nessa medida suficiente para a imputação da responsabilidade 16. A despeito da aparente simplicidade da teoria, a granjear adeptos pela desoneração a que conduz o julgador, a verdade é que não só aquela é meramente aparente – conduzindo, na prática, ao artificialismo do critério mobilizado em concreto –, como se improcedente na prática judicativa17.
11 Para Stuart Mill, a causa real é o grupo de antecedentes que determinaram o fenómeno e sem o qual ele não teria lugar, pelo que “ninguém tem o direito, filosoficamente falando, de dar o nome de causa a um deles” (Sistema de lógica dedutiva e indutiva, apud Pereira Coelho, “Onexo de causalidade na responsabilidade civil”, Boletim da Faculdade de Direito, suplemento IX, 1951, 181. Cf., ainda, A system of logic: raciocinative and inductive, John W. Parker, London, 1843, 392 s.) 12 Sobre a justificação para esta equiparação entre a causa e qualquer condição sem a qual o evento não se teria verificado, cf. Pereira Coelho, “Onexo de causalidade na responsabilidade civil”, Boletim da Faculdade de Direito, suplemento IX, 1951, 183. Veja-se, ainda, Christophe Quézel-A mbrunaz, Essai sur la causalité en droit de la responsabilité civile, Dalloz, 2010, 31 s., expondo a transição entre o mundo da juridicidade da doutrina filosófica de Mill através da ideia de sinédoque. 13 Neste sentido, cf. A ntunes Varela, Das obrigações em geral, vol. I, 10º edição, Almedina, Coimbra, 2003, 883. Note-se que o autor, apesar de repudiar a teoria, salienta que a mesma configura já uma forma de delimitação dos danos a ressarcir, designadamente no cotejo com o critério puramente empírico do post hoc ergo propter hoc. Limita a obrigação de indemnizar aos danos que se inserem no processo de causalidade em que interfere aquele facto e, dentro desses, àqueles que não se verificariam sem tal facto. No mesmo sentido, cf. R ibeiro de Faria, Direito das Obrigações, I, 497. Veja-se, também, R ené Demogue, Traité des obligations en générale, I, Source des obligations, t. IV, Libraire A. Rousseau, Paris, 1923, 25. 14
Aderindo à doutrina, cf., ainda, Demogue, Traité des obligations en générale, I, Source des obligations, Libraire A. Rousseau, Paris, 1923, t. IV, 24.
16 Qualquer condição seria vista como causa e nessa medida todas as condições seriam equivalentes. Não há, portanto, uma importação literal do pensamento de Mill para o mundo jurídico, já que não é a soma das condições que determinaria a relevância da causa. É, aliás, neste ponto que se localiza a crítica de Birkmeyer a Von Buri. É que, partindo da ideia de que o evento só ocorre pelo concurso de todas as condições predispostas para o efeito, Von Buri, sustentando a impossibilidade de alguma se destacar das demais, defende a equivalência entre todas, recusando a ideia de causa eficiente ínsita à teoriaprotagonizada pelo primeiro autor. Acontece que este, exatamente porque todas se mostram necessárias para a produção do dano, deduz daqui o corolário da insuficiência dela, dizendo que, consentaneamente com o ponto de partida do autor, se deveria sustentar como causa a soma de todas as condições. Afasta, desta forma, a crítica que Von Buri lhe dirige relativamente à impossibilidade de eleição de uma causa eficiente entre as diversas condições. Cf., à frente, o que se explicita – de forma sumária – acerca da teoria daquele. Para uma análise comparatística entre os dois autores, cf. Pereira Coelho, “O nexo de causalidade”, 186 s. O autor afirma, contundentemente, que Von Buri parte de um sofisma. Parte da ideia de que todas as condições são necessárias para chegar à conclusão que o efeito é produto de cada uma delas, porque cada uma das condições torna causais as restantes. Ora, como salienta Pereira Coelho “se A+B+C+D são iguais a E, é evidente que só uma dessas grandezas não pode ser igual a E. E é isto que em resumo afirma Buri” (cf. pág. 187). Acentua, por isso, o autor a nuance da conceção hodierna da teoria da equivalência das condições. “Os jurisconsultos que hoje em dia defendem a teoria da conditio sine qua non limitam-se a acentuar que todas as condições são necessárias para o efeito e que portanto elas são, neste sentido, equivalentes, não sendo possível fazer entre elas qualquer distinção”. Dito de outro modo, todas podem ser consideradas causas. Cf., ainda, Oliveira Ascensão, Acção finalista e nexo causal, Dissertação do Curso Complementar de Ciências Jurídicas, Faculdade de Direito de Lisboa, 1956, 112 s. 17 Cf. G. M arty, “La relation de cause à effet comme condition de la responsabilité civile”, 691 s.; François Chabas, L’influence de la pluralité de causes, nº100;R aniero Bordon, Il nesso di causalità, 42. Para outras considerações, cf. M afalda Miranda Barbosa, Do nexo de causalidade ao nexo de imputação, cap. II
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15 Para outras considerações, veja-se A ntunes Varela, Das Obrigações, 916; Menezes Cordeiro, Da responsabilidade civil dos administradores das sociedades comerciais, Lex, Lisboa, 1997, 532 s.; M. Franzoni, “Dei fatti illeciti. Art. 2043-2059”, in F. Galgano (ed.), Commentario del codice civile Scialoja-Branca, 1993, 95 s.; Trimarchi, Causalità e danno, 194 s.; G. A lpa, M. Bessone, V. Zeno -Zenco vich, “I fatti illeciti”, Tratatto di diritto civile, 14, Obligazioni e Contratti, VI (a cura di Pietro R escigno), 2ª edição, UTET, Torino, 1995, 63 s.; Fritz H aueisen, “Die Theorie der wesentlichen Bedingund – ein wichtige Ursachenlehre”, Juristenzeitung, 16, Heft 1, 1961, 9 s.
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Na verdade, sempre que o processo causal seja integrado por uma dimensão psicológica torna-se extremamente difícil, ou mesmo impossível, raciocinar em termos contrafactuais. Será que, sem o conselho recebido, o lesado teria atuado de forma diferente? Mas isso não afeta o núcleo de autonomia que predica a decisão em que radica, afinal, o agir humano?
19 Nesse sentido, cf. Vaz Serra, “Obrigação de indemnização”, 22-23; Pereira Coelho, “O nexo de causalidade”, 189 s.; A ntunesVarela, Dasobrigações, 884-885; A lmeida Costa, Direito das Obrigações, 761-762; Pessoa Jorge, Ensaio, 390 s. e Direito das Obrigações, 1º vol., AAFDL, Lisboa, 1975/1976, 569 e 573; Sinde Monteiro, “Rudimentos da responsabilidade civil”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, ano 2º, 2005, 379; Carneiro da Frada,Direito Civil. Responsabilidade civil, 101; M anuel de A ndrade, Teoria geral das obrigações, 349; Menezes Cordeiro, Da responsabilidade civil dos administradores, 547 e Direito das Obrigações,334; R ibeiro de Faria, Direito das Obrigações, I, 498; Galvão Telles, Direito das Obrigações, 404 s.; Paulo Mota Pinto, Interesse contratual negativo, 655;Christophe Quézel-A mbrunaz, Essai sur la causalité, 35; R aniero Bordon, Il nesso di causalità, 45; G. Valcavi, “Intorno al rapporto di causalità nel torto civile”, 488; W.V.H. Rogers, Winfiel and Jolowicz 212 e 213, adiantando que a conditio sine qua non, identificada ao nível da Common Law com o but-for test, não serve para restringir a responsabilidade, sendo, amiúde, visto como um primeiro filtro no sentido da eliminação das condições irrelevantes.
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Assim, o critério quadra mal com a intencionalidade jurídica. Parte de uma visão determinística do mundo, que não é sequer aceite no campo das ciências exatas, esquecendo que, ao nível jurídico, o direito não pode ser determinado pelo ser, na medida em que se traduz num dever-ser. Por outro lado, deixa-nos sem resposta em todos os casos em que o dano tem origem no comportamento da vítima. Desde logo, há a considerar todos aqueles casos em que se desvela um comportamento do lesado que, concorrentemente, desempenha um papel ativo no processo causal. E não falamos só das hipóteses de concorrência de culpas do lesado – a encerrar a vexata quaestio da qualificação do seu âmago como um problema atinente à culpa ou à causalidade –, mas também daqueloutras em que o processo causal tem início num comportamento da vítima, adotado em face da influência psicológica que um terceiro sobre ela exerceu. Lembramo-nos, num exercício de chamada à colação de uma memória predisponível dos problemas com que o sistema se vai debatendo, das situações de responsabilidade por informações18. Ao mesmo tempo, conduz a uma extensão desmedida da responsabilidade19. Na verdade, o imbricamento em cadeia de acontecimentos opera-se com uma tal voracidade na realidade
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prática que torna imprestável um critério assente na pura conexão causal20-21. Do mesmo passo, mas sem contradição, restringe, noutras situações, a responsabilidade, impedindo uma decisão justa. Pense-se no âmbito de relevância dos casos em abstrato assimiláveis pela intencionalidade problemática do conceito de causalidade cumulativa ou alternativa. A e B disparam ao mesmo tempo sobre C, pelo que nenhum dos ferimentos pode ser visto como condição sem a qual o dano não teria ocorrido, já que qualquer um deles poderia desaparecer, continuando o processo
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Sobre esta crítica em especial, cf., inter alia, A ntunes Varela, Das obrigações, 885; Pereira Coelho, “O nexo de causalidade”, 80; Gomes da Silva, O dever de prestar, 67 s.; LuísMenezes Leitão, Direito das Obrigações, I, 359 e n.760.
Porque a doutrina da conditio sine qua non remonta, como dissemos, ao quadro filosófico de inspiração millesiana, importa dar aqui nota da advertência feita por Pereira Coelho (cf. “O nexo de causalidade181, n. 1). Na verdade, afirma-se amiúde que a doutrina em causa abre a porta ao infinito. Alerta o jurista português que tal não é necessariamente assim, no quadro filosófico do problema. E não é porque, quando Stuart Mill “define a causa como a totalidade das condições, não compreende entre tais condições também os seus antecedentes mediatos, isto é, as condições das condições”. Cf. Stuart Mill, A system of logic, 392 s. Diante da explicação – que, saliente-se, não leva o autor a aderir à posição jurídica equivalente – concita-se uma dúvida e afiguram-se razoáveis alguns esclarecimentos. Em bom rigor, como distinguir as condições das condições, os tais antecedentes mediatos, das condições imediatas e próprias? A imprestabilidade de tal juízo – quando normativamente assumido, ao vestir a roupagem da teoria da equivalência das condições – só se logrará compreender, porém, na bifurcação de perspetivas. Centrando-nos no dano concretamente sofrido, indagamos ex ante se ele foi causado pelo comportamento do putativo lesante para, de acordo com a doutrina em apreço, respondermos que sim, sempre que surja como uma condição sem a qual não teria sobrevindo. Pergunta-se, então, e se confluir mais do que uma causa juridicamente atendível como eleger uma como o polo de imputação da responsabilidade? Prospetivamente, olhamos para a multiplicidade de danos sobrevindos. Operando a realidade segundo uma cadeia de causas e efeitos, como balizar o dano indemnizável? Contrariamente à pressuposição epistemológica da condicionalidade como padrão explicativo da realidade, do ponto de vista da intencionalidade jurídica ela nada nos comunica, senão a idoneidade do meio para produzir um determinado dano. Tanto mais que, no seio do que pode ser identificado com o kantiano reino dos fins, a estrutura dos acontecimentos é menos linear e mais tentacular. No plano jurídico, Pereira Coelho mostra-se crítico da doutrina da conditio sine qua non exatamente pela “latitude verdadeiramente demarcada e incomportável” que ela fornece à noção de causa (cf. “O nexo de causalidade” 188 e 190 s. Nelas, o autor, afastando visões caricaturais acerca da teoria, mostra que o que releva é saber em que medida o dano pode ser causalmente reconduzido ao facto que viole ou ofenda um direito de outrem). Também no sentido de mostrar a impraticabilidade da adoção da doutrina da condition sine qua non no quadro do direito civil, embora não se pronuncie sobre a prestabilidade da mesma no âmbito penalista, cf. Vaz Serra, “Obrigação de indemnização”, 23; Oliveira Ascensão, Acção finalista e nexo causal, 115. Acerca da possível recondução do pensamento a um regresso ad infinitum, veja-se, ainda, Larenz, Schuldrecht, I, 434. Cf., igualmente, Paul Esmein, “Trois problèmes de responsabilité civile. Causalité. Concours des responsabilités. Conventions d’irresponsabilité”, 317-369. Para uma sistematização das críticas apontadas à doutrina, Christophe Quézel-A mbrunaz, Essai sur la causalité, 34 s. (alargamento desmesurado do número de potenciais responsáveis, risco de condução da responsabilidade ad infinitum, impossibilidade de repartição do encargo ressarcitório entre os diversos coautores ou entre a vítima e um dos autores do dano, insusceptibilidade de resolução dos problemas de sobredeterminação causal)
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22 Cf., no mesmo sentido, dando este exemplo, A ntunes Varela, Das obrigações, I, 884, n. 1 e 739 s. Note-se que a crítica pode ser contornada, considerando que o que importa para o estabelecimento da conexão causal é o evento concreto – a morte tal como ela ocorreu – e não abstrato. Cf. Pereira Coelho, O problema da causa virtual, 9, n. 6 e 180 s. [Entre os principais argumentos invocados pelo autor, referência nacional em matéria de causalidade, contam-se o facto de o juízo de condicionalidade dever ser um juízo puro, não devendo resvalar para nenhuma seleção segundo razões atinentes à valiosidade do comportamento e as dúvidas suscitadas pelos casos de causalidadecumulativa]; Vaz Serra, “Obrigação de indemnizar. Colocação. Fontes. Conceito e espécies de dano. Nexo causal. Extensão do dever de indemnizar. Espécies de indemnização. Direito de abstenção e de remoção”, Boletim do Ministério da Justiça, nº84, Março 1959, 63-64 e n. 185; Trimarchi, Causalità e danno, 5; Bydlinski, “Mittäterschaft im Schadenrecht”, Archiv für die civilistische Praxis, 158, 1959, 416 [De Bydlinski veja-se, porém, Probleme der Schadensverursachung nach deutschem und österreichischemRecht, F. Enke, Estugarda, 1964, 17, colocando em evidência algumas das aporias a que pode conduzir a consideração do resultado em concreto]; R ibeiro de Faria, Direito das Obrigações, 499; Geraldes de Carvalho, “A causalidade. Subsídios para uma teoria da responsabilidade jurídica em geral” , 26 s.; Jorge Carlos da Fonseca, “A relevância negativa da causa virtual ou hipotética na responsabilidade civil (Delimitação do problema. Sua incidência no Direito Português)”, Revista Jurídica, AAFDL, nº4, 1984, 43; H art e Honoré, Causation in the law, 2nd edition, Claredon Press, Oxford, 2002, reimpressão, 124, 235, 252 e ss.; Larenz, Lehrbuch des Schuldrechts,Allgemeiner Teil, 14 Auflage, Verlag C. H. Beck, München, 1987, I, 360; ChristophRothenfusser, Kausalitätund Nachteil, Beck, München, 2003, 75-81, mostrando-se crítico da configuração concreta do resultado (cf. pág. 60 s.). Sobre o ponto, cf., também, Vaz Serra, “Obrigação de indemnização”, 95. No âmbito dos trabalhos preparatórios do atual Código Civil, e aderindo previamente à doutrina da causalidade adequada, Vaz Serra pondera uma hipótese prática com uma intencionalidade análoga à que problematizámos em texto. Relativamente a ela, pode aí ler-se: “poderia julgar-se que falta a conexão causal entre o facto e um dos autores e o dano, pois esse facto não é condição sine qua non do dano. No entanto, tal não seria razoável. A vítima ficaria sem indemnização apesar de o facto de qualquer dos autores ter sido suficiente para produzir o dano. Portanto, deve cada um deles considerar-se responsável pelo dano total”. Note-se que o discurso do civilista se dirige à doutrina da causalidade adequada, mostrando, em sintonia com o que posteriormente denunciaremos, que, ao partir-se da doutrina da equivalência das condições para a corrigirmos, continuamos a ser contagiados com alguns dos seus anátemas. Saliente-se, ainda, que em debate está a possibilidade de, no seio do ordenamento jurídico pátrio, se chegar a uma solução como a que é viabilizada pelo §830 BGB. Mais se diga que, no que à teoria da conditio sine qua non tange, a possibilidade corretiva a que aqui aludimos se traduz, afinal, na total subversão do seu núcleo predicativo, já que com ela deixa-se de conseguir eliminar os acontecimentos irrelevantes para a emergência do resultado. Acerca desta problemática, veja-se, ainda, com amplo desenvolvimento, Paulo Mota Pinto, Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, volume I e II, Coimbra, Coimbra Editora, 2008,659 s.Fala o autor, ademais, num outro desafio lançado às teorias por si designadas de contrafactuais, a coincidir com a problemática da causalidade virtual, que receberia uma possível resposta com base no argumento da conformação concreta do resultado. E nesse ensejo, dualiza as posições dos autores, agrupando-as entre aqueles segundo os quais “é indispensável abstrair de algumas características do resultado, de acordo com um critério jurídica, sob pena de se chegar a resultados estranhos” e aqueloutros para quem há que “considerar o resultado na sua configuração concreta, com as suas características individualizadoras, isto é, tal como ocorreu, naquele momento e lugar e daquele modo”. Entre os primeiros encontrar-se-ia Traeger; entre os segundos Müller e Engisch. Ponderando argumentos a favor e contra cada uma das posições, Paulo Mota Pinto erige como nódulo problemático central destas lucubrações a indagação: “o problema é, pois, o de saber qual é a configuração concreta do resultado relevante e o que são circunstâncias adjacentes irrelevantes: a separação entre circunstâncias ou elementos laterais em relação à produção do resultado e irrelevantes para este (mas que o caracterizam em concreto), por um lado, e circunstâncias ou elementos relevantes para o resultado.” [A propósito do pensamento de Müller, cf. Die Bedeutung des Kausalzusammenhangs im Straf- und Schadensersatzrecht, Mohr, Tübingen, 1912] No fundo, parece resultar a dificuldade do facto de contra cada uma das posições poderem ser desferidas críticas que as atingem no seu cerne. Assim, no que à conformação concreta do resultado concerne, há que considerar a consequência da elevação de todas as circunstâncias acidentais a fatores causais (cf. Paulo Mota Pinto, Interesse contratual negativo, 661s., acompanhando de perto a lição de Canaris vertida em “Die Vermutung aufklärungsrichtigen Verhaltens und ihre Grundlagen”, Franz H äuser et alii, Festschrift für Walther Hadding zum 70. Geburststag, De Gruyter, Berlin, 2004, p. 3-24, aqui 13-14), bem como o facto de ela permitir “obter as conclusões causais que se pretender, manipulando a descrição do resultado, isto é, incluindo na descrição do resultado concreto justamente aquelas circunstâncias para as quais aquela pessoa, cujo comportamento se pretende que seja considerado causal para o resultado, põe uma condição necessária, caindo assim num círculo vicioso” (Paulo Mota Pinto, Interesse contratual negativo,663), pelo que se exigiria a seleção dos elementos relevantes à luz da intencionalidade da norma. É, aliás, essa a posição de Canaris (cf. “Die Vermutung aufklärungsrichtigen”, 15). Sobre a consideração do resultado em concreto, v., igualmente, Wolfgang B. Schünemann, “Unzulänglichkeit der Adäquanztheorie? AG und LG Regensburg, VersR 1977, 459”, Juristische Schulung, 19. Jahrgang, Heft 1, 1979, 22; e Christophe Quézel-A mbrunaz, Essai sur la causalité, 43 23
A teoria, tendo origem doutrinal, terá sido consagrada na jurisprudência tudesca em 1913 e confirmada em 1951, a propósito do naufrágio do navio Edelweiss – cf. H art e Honoré, Causation, 474 s. Com a mesma referência, acrescentando ainda um outro acórdão, datado de 1972, v. Florence G’Sell-M acrez, Recherches, 111.
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causal a seguir o seu curso letal22. Em face das inconcludências da doutrina da condicionalidade, os autores passaram, com formulações diversas, a propor um entendimento causal que – aparentemente – se afasta de uma impostação naturalista e lógica para abraçar, do ponto de vista da juridicidade, a específica intencionalidade que a predica23. Já não se indaga qual a causa do dano, mas olha-se para o comportamento do lesante para ver se, em abstrato, ele é ou não idóneo a produzir um dano daquele tipo. Encontra-se, por isso, o ponto de clivagem entre esta perspetiva e as doutrinas que
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24 A propósito da classificação das teorias causais, cf. Christophe Quézel-A mbrunaz, Essai sur la causalité, 23 s. Para outros desenvolvimentos e uma enunciação destas diversas doutrinas, cf. M afalda Miranda Barbosa, Do nexo de causalidade ao nexo de imputação, 86 s. 25 Para um acompanhamento mais pormenorizado das diversas críticas que lançamos sobre a causalidade adequada, cf. M afalda Miranda Barbosa, Do nexo de causalidade ao nexo de imputação, 99 s., bem como a demais bibliografia aí citada. 26 Menezes Cordeiro, Da responsabilidade, 534, ao afirmar que ela não é bitola de coisa nenhuma, mas “espaço que iremos preenchendo com base no senso comum e em juízos de tipo ético”; Menezes Leitão, A responsabilidade do gestor,325; Günther Bernert, “Die Leeformel von der Adäquanz”, Archiv für die civilistische Praxis, 169, 1969,421-442
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se integram naquilo que Honoré apelidou de necessity theories e de explanatory theories24. A questão que passa a orientar o jurista é – numa formulação positiva – a de saber se é normal e adequado (provável) que aquele tipo de comportamento gere aquele tipo de dano; ou – numa formulação negativa – a de saber se é de todo indiferente para a produção de um dano daquele tipo um comportamento como o do lesante. Sobre a doutrina da causalidade adequada haveremos desde já de considerar que ela não constitui um magma uniforme. Pelo contrário, no seu seio albergam-se formulações absolutamente díspares que vão desde uma visão probabilística-estatística, que quadra mal com a intencionalidade jurídica, até um conceito normativizado de causalidade. O certo, porém, é que mesmo numa visão normativa de adequação as inconcludências a que a doutrina aporta o jurista não são de pequena monta25. Assim, colocam-se desde logo problemas ao nível da descrição dos relatas, isto é, dos termos a relacionar. Na verdade, se se perguntar “é normal e provável que um pequeno golpe na face provoque a morte de uma pessoa”, a resposta será, em princípio, negativa. Mas se se perguntar “é normal e provável que um pequeno golpe na face provoque a morte de um hemofílico em último grau”, a resposta pode já ser afirmativa. Quer isto dizer que consoante a descrição que se faça dos eventos, assim a resposta já vai contida na indagação. E não será fácil optar por uma descrição dos relata em abstrato – porque se perde a necessária relevância do caso concreto – ou em concreto, porque a pormenorização pode, de facto, condicionar uma solução que, a priori, não deveria estar estabelecida. Isto quer dizer, no fundo, que – consoante afirmam certos autores – a adequação é critério de coisa alguma, uma fórmula vazia (Leeformel)26. Por outro lado, coloca-se o problema de saber qual o ponto de vista que se deve adotar nesta indagação: o ponto de vista do sujeito que atuou, o ponto de vista do homem médio ou o ponto de vista do observador ótimo e experiente? E devem ou não ter-se em conta os conhecimentos efetivos do lesante que, em concreto, podem alterar o juízo de prognose a encetar? Basta pensar, por exemplo, na hipótese em que o sujeito sabia da hemofilia da vítima e por isso desfere contra ela um golpe. Mas, ao considerarmos esta probabilidade corrigida por índices de subjetividade, não estamos a aproximar-nos da culpa e da previsibilidade, sendo certo que os autores a rejeitam – e bem – para estabelecer o nexo de causalidade? O mesmo não se poderá perguntar se o nosso juízo um juízo ex ante? Mas, por outro lado, se o juízo for absolutamente objetivo e formulado ex post, não estaremos a condenar-nos a uma resposta de tipo estatístico que quadra mal com a intencionalidade predicativa da juridicidade e nos afasta de soluções justas, como no exemplo apresentado anteriormente? E, in fine, qual o grau de probabilidade que
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deve ser requerido? A causalidade adequada mostra-se ainda falha noutras situações. Em primeiro lugar, ela não nos oferece uma resposta satisfatória sempre que esteja em causa a chamada causalidade psicológica, isto é, sempre que o sujeito atua para levar o lesado ou um terceiro a agir. Do mesmo modo, mostra-se insuficiente nas hipóteses de causalidade cumulativa necessária. Por último, ao partir de uma ideia de condicionalidade, acaba por ficar refém dos problemas anteriormente patenteados. As dúvidas e dificuldades expostas acerca da justeza das soluções alicerçadas na probabilidade refletem estes dados, embora, pela confluência a que aludimos entre a condicionalidade sem a qual e a causalidade adequada, eles possam surgir miscigenados. Do mesmo passo, permitem-nos perceber que não podemos – se quisermos ser congruentes na busca de uma solução normativamente fundada e materialmente justa – ficar presos às soluções doutrinais tradicionais. Há que, portanto, repensar o problema.
Metodologicamente, se toda a interpretação da norma faz apelo aos princípios que ela leva pressupostos, então o cumprimento das exigências de sentido comunicadas pelo direito – desvelável na ideia de liberdade e responsabilidade (no sentido da role-responsability colimada na pessoalidade) – só será logrado se e quando todas as categorias harmonicamente articuladas para fundar a sua procedência forem interpretadas, no cotejo com o caso concreto, tendo em consideração, não só as finalidades primárias desse ressarcimento, mas ainda a intencionalidade normativa dela. Na interpretação que se faça dos referidos requisitos, há que trancendê-los pela pressuposição da intencionalidade ético-axiológica daquele princípio da responsabilidade assente na pessoalidade. Assim, em relação à causalidade: mais do que ser vista como um problema normativo, há-de ser recortada, entre outros aspetos, com base na ideia de pessoalidade livre em que se ancora toda a juridicidade. A leitura ético-axiológica do pressuposto delitual não pode, contudo, apagar do nosso referente dialógico as outras notas que, num nível menos rarefeito de compreensão delitual, concorrem para a caracterização do sistema. Nessa medida, importa não esquecer a ideia de comutação a que somos conduzidos pela análise da teleologia primária da responsabilidade civil. Se a finalidade precípua do instituto é a reparação dos danos, torna-se urgente considerar o resultado lesivo, sem o qual a indemnização não terá razão de ser. É ele que torna a causalidade imprescindível como requisito delitual: permite estabelecer a ponte entre a teleonomologia e a teleologia da responsabilidade civil. Ou dito de outro modo, é ela que evita o desenho puramente sancionatório do instituto, impondo que este apenas assimile a relevância do caso concreto quando e se o comportamento ilícito e culposo se projete num dano. Na verdade, não basta que se olhe para uma dimensão de validade. Qualquer critério jurídico há-de ser perpassado por uma ideia de eficácia. Nessa medida, na busca dos contornos com que deve ser desenhada a causalidade, importa não obnubilar o dado ontológico envolvente. Será
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4 UMA PERSPETIVA IMPUTACIONAL DO PROBLEMA CAUSAL
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27 A este propósito – e em geral acerca de toda a responsabilidade do produtor –, cf. Calvão da Silva, Responsabilidade civil do produtor, 503 s., considerando que se trata de uma responsabilidade objetiva. Em sentido contrário, sustentando que em causa está uma responsabilidade subjetiva, veja-se Menezes Cordeiro, Tratadode Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, tomo III, Almedina, 2010, 692 28
Cf., para maiores desenvolvimentos, Mafalda Miranda Barbosa, Do nexo de causalidade ao nexo de imputação, 890 s. e 1130 s., bem como a demais bibliografia aí citada e que aqui damos por reproduzimos. Repristinamos algumas das conclusões a que, naquela investigação, chegámos.
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ele a chamar-nos a atenção quer para a complexidade causal, quer para o imbricamento condicional. Nesta medida, influenciará, numa dialética entretecida com o plano axiológico, a própria modelação da causalidade enquanto requisito do direito delitual. O risco é, assim, chamado para o centro do discurso do decidente. O apelo à conformação societária como uma comunidade de risco serve menos para evidenciar a perigosidade de cada ato concreto – ou atividade encabeçada – do que para mostrar que, sendo aquele risco imanente ao modus vivendi, não será possível ajuizar causalmente abstraindo do contexto relacional de esferas que se cruzam. É, aliás, este o único recorte compaginável com a noção de ação em se estrutura o nosso delito. Nas hipóteses de responsabilidade pelo risco, como aquela que estamos a contemplar a propósito da responsabilidade do produtor27, o risco cumpre, ainda, a função de fundamento da própria responsabilidade. A mutação de perspetiva é possível a partir do momento em que olhamos para a responsabilidade do ponto de vista ético-axiológico e não apenas dogmático28. A própria ação, de onde se parte, deve ser vista como uma categoria onto-axiológica o que, no diálogo com a pressuposição do risco, nos permite inverter alguns dos aspetos tradicionais do problema. Assim, e desde logo, podemos afirmar que o filão fundamentador da imputação objetiva não pode deixar de se encontrar numa esfera de risco que se assume. Não basta contemplar a esfera de risco assumida pelo agente de uma forma atomística, desenraizada da tessitura antropológico-social e mundanal em que ele está inserido. Dito de outro modo, e relacionando-se isso com o pertinentemente aceite em matéria de definição da conduta juridicamente relevante, salienta-se aqui que, porque o referencial de sentido de que partimos é a pessoa humana, matizada pelo dialéctico encontro entre o eu, componente da sua individualidade, e o tu, potenciador do desenvolvimento integral da sua personalidade, há que cotejá-la com a esfera de risco encabeçada pelo lesado, pelos terceiros que compõem teluricamente o horizonte de atuação daquele, e ainda com a esfera de risco geral da vida. Ao que, aliás, não será também estranho o facto de todo o problema vir enervado pela teleologia primária da responsabilidade delitual, ou seja, pelo escopo eminentemente reparador do instituto. A pessoa, ao agir, porque é livre, assume uma role responsibility, tendo de, no encontro com o seu semelhante, cumprir uma série de deveres de cuidado. Duas hipóteses são, então, em teoria, viáveis: ou a pessoa atua investida num especial papel/função ou se integra numa comunidade de perigo concretamente definida e, neste caso, a esfera de risco apta a alicerçar o juízo imputacional fica a priori desenhada, hipótese que ocorre, concretamente, no caso da responsabilidade objetiva; ou a esfera de risco/responsabilidade que abraça não é suficientemente definida para garantir o acerto daquele juízo. Exige-se, por isso, que haja um
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aumento do risco, que pode ser comprovado, exatamente, pela preterição daqueles deveres de cuidado. Estes cumprem uma dupla função. Por um lado, permitem desvelar a culpa (devendo, para tanto, haver previsibilidade da lesão e exigibilidade do comportamento contrário tendo como referente o homem médio); por outro lado, alicerçam o juízo imputacional, ao definirem um círculo de responsabilidade, a partir do qual se tem de determinar, posteriormente, se o dano pertence ou não ao seu núcleo. A culpabilidade não se confunde com a “causalidade”. Pode o epicentro da imputação objetiva residir na imputação subjetiva firmada, sem que, contudo, os dois planos se confundam. Condicionam-se dialeticamente, é certo, não indo ao ponto de se identificar. O condicionamento dialéctico de que se dá conta passa pela repercussão do âmbito de relevância da culpa em sede de imputação objetiva. Isto é, a partir do momento em que o agente atua de forma dolosa, encabeçando uma esfera de risco, as exigências comunicadas em sede do que tradicionalmente era entendido como o nexo de causalidade atenuam-se. Acresce que, ainda que a previsibilidade releve a este nível, o ponto de referência dela será diferente. Assim, a previsibilidade de que se cura deve ser entendida como cognoscibilidade do potencial lesante da esfera de risco que assume, que gera ou que incrementa. Ela não tem de se referir a todos os danos eventos. Designadamente, não terá de se referir aos danos subsequentes ou àqueles que resultem do agravamento da primeira lesão. Por isso, quando afirmamos que, ao nível da primeira modalidade de ilicitude, a culpa tem de se referir ao resultado, acompanhamos, entre outros, autores como Lindenmaier, Von Caemmerer ou Till Ristow, para sustentar que a previsibilidade que enforma a culpa deve recuar, no seu ponto referencial, até ao momento da edificação da esfera de risco que se passa a titular. Assim, para que haja imputação objetiva, tem de verificar-se a assunção de uma esfera de risco, donde a primeira tarefa do julgador será a de procurar o gérmen da sua emergência. São-lhe, por isso, em princípio, imputáveis todos os danos que tenham a sua raiz naquela esfera, donde, a priori, podemos fixar dois polos de desvelação da imputação: um negativo, a excluir a responsabilidade nos casos em que o dano se mostra impossível (impossibilidade do dano), ou por falta de objeto, ou por inidoneidade do meio; outro positivo, a afirmá-la diante de situações de aumento do risco. Exclui-se a imputação quando o risco não foi criado (não criação do risco), quando haja diminuição do risco e quando ocorra um facto fortuito ou de força maior. Impõe-se, ademais, a ponderação da problemática atinente ao comportamento lícito alternativo. No tocante à responsabilidade pelo risco, a esfera de risco é definida previamente pelo legislador, atento o modelo de tipicidade com que nos confrontamos, sendo encabeçada no momento em que o sujeito (pretensamente responsável) a assume. Abre-se, posteriormente, o segundo patamar da indagação “causal”. Contemplando, prima facie, a esfera de risco geral da vida, diremos que a imputação deveria ser recusada quando o facto do lesante, criando embora uma esfera de risco, apenas determina a presença do bem ou direito ofendido no tempo e lugar da lesão do mesmo. O cotejo com a esfera de risco natural permite antever que esta absorve o risco criado pelo agente, porquanto seja sempre presente e mais amplo que aquele. A pergunta que nos orienta é: um evento
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danoso do tipo do ocorrido distribui-se de modo substancialmente uniforme nesse tempo e nesse espaço, ou, de uma forma mais simplista, trata-se ou não de um risco a que todos – indiferenciadamente – estão expostos? O confronto com a esfera de risco titulada pelo lesado impõe-se de igual modo. São a este nível ponderadas as tradicionais hipóteses da existência de uma predisposição constitucional do lesado para sofrer o dano. Lidando-se com a questão das debilidades constitucionais do lesado, duas hipóteses são cogitáveis. Se elas forem conhecidas do lesante, afirma-se, em regra, a imputação, exceto se não for razoável considerar que ele fica, por esse especial conhecimento, investido numa posição de garante. Se não forem conhecidas, então a ponderação há-de ser outra. Partindo da contemplação da esfera de risco edificada pelo lesante, dir-se-á que, ao agir em contravenção com os deveres do tráfego que sobre ele impendem, assume a responsabilidade pelos danos que ali se inscrevam, pelo que haverá de suportar o risco de se cruzar com um lesado dotado de idiossincrasias que agravem a lesão perpetrada. Excluir-se-á, contudo, a imputação quando o lesado, em face de debilidades tão atípicas e tão profundas, devesse assumir especiais deveres para consigo mesmo. A mesma estrutura valorativa se mobiliza quando em causa não esteja uma dimensão constitutiva do lesado, mas sim uma conduta dele que permita erigir uma esfera de responsabilidade, pelo que, também nos casos de um comportamento não condicionado pelo seu biopsiquismo, a solução alcançada pelo cotejo referido pode ser intuída, em termos sistemáticos, a partir da ponderação aqui posta a nu. Há que determinar nestes casos em que medida existe ou não uma atuação livre do lesado que convoque uma ideia de autorresponsabilidade pela lesão sofrida. Não é outro o raciocínio encetado a propósito das debilidades constitucionais dele, tanto que a imputação só é negada quando se verifique a omissão de determinados deveres que nos oneram enquanto pessoas para salvaguarda de nós mesmos. Não se estranha, por isso, que o pensamento jurídico – mormente o pensamento jurídico transfronteiriço – tenha gizado como critério guia do decidente o critério da provocação. Tornam-se, também, operantes a este nível ideias como a autocolocação em risco ou a heterocolocação em risco consentido. Havendo essa atuação livre do lesado, temos que ver até que ponto os deveres que oneravam o lesante tinham ou não como objetivo obviar o comportamento do lesado. Tido isto em mente, bem como a gravidade da atuação de cada um, poderemos saber que esfera de risco absorve a outra ou, em alternativa, se se deve estabelecer um concurso entre ambas. O juízo comparatístico encetado e justificado não dista sobremaneira pelo facto de a titularidade da segunda esfera de risco, concorrente com aquela, vir encabeçada por um terceiro.A triangular assunção problemática a que nos referimos leva implícita uma prévia alocação imputacional, posto que ela envolve que, a jusante, se determine que o comportamento dele não é simples meio ou instrumento de atuação do primeiro lesante. Donde, afinal, o que está em causa é a distinção entre uma autoria mediata e um verdadeiro concurso de esferas de risco e responsabilidade, a fazer rememorar a lição de Forst, embora não a acolhamos plenamente. O segundo agente, que causa efetivamente o dano sofrido pelo lesado, não tem o domínio absoluto
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da sua vontade, ou porque houve indução à prática do ato, ou porque não lhe era exigível outro tipo de comportamento, atenta a conduta do primeiro agente (o nosso lesante, a quem queremos imputar a lesão). Neste caso, ou este último surge como um autor mediato e é responsável, ou a ulterior conduta lesiva se integra ainda na esfera de responsabilidade por ele erigida e a imputação também não pode ser negada. Maiores problemas se colocam, portanto, quando existe uma atuação livre por parte do terceiro que conduz ao dano. Há, aí, que ter em conta alguns aspetos. Desde logo, temos de saber se os deveres do tráfego que coloram a esfera de risco/responsabilidade encabeçada pelo lesante tinham ou não por finalidade imediata obviar o comportamento do terceiro, pois, nesse caso, torna-se líquida a resposta afirmativa à indagação imputacional. Não tendo tal finalidade, o juízo há-de ser outro. O confronto entre o círculo de responsabilidade desenhado pelo lesante e o círculo titulado pelo terceiro – independentemente de, em concreto, se verificarem, quanto a ele, os restantes requisitos delituais – torna-se urgente e leva o jurista decidente a ponderar se há ou não consunção de um pelo outro. Dito de outro modo, a gravidade do comportamento do terceiro pode ser de molde a consumir a responsabilidade do primeiro lesante. Mas, ao invés, a obliteração dos deveres de respeito – deveres de evitar o resultado – pelo primeiro lesante, levando à atualização da esfera de responsabilidade a jusante, pode implicar que a lesão perpetrada pelo terceiro seja imputável àquele. Como fatores relevantes de ponderação de uma e outra hipótese encontramos a intencionalidade da intervenção dita interruptiva e o nível de risco que foi assumido ou incrementado pelo lesante. O modelo cogitado para a causalidade, assim transmutada em imputação, continua a ser válido para a responsabilidade pelo risco. Pensemo-lo, então, por referência à responsabilidade do produtor. Ao colocar no mercado um determinado produto (defeituoso), o produtor assume uma esfera de risco, pelo que responderá, em regra, por todos os danos que possam ligar-se funcionalmente ao defeito detetado. Não se exige, para que a ligação se estabeleça, um qualquer grau de probabilidade bastante, contentando-nos antes com a mera possibilidade. Na verdade, a densificação da imputação que se começa, assim, a erigir será oferecida pelo cotejo entre esta esfera de risco com outras esferas de risco que com ela se confrontem. Tal como no caso da responsabilidade subjetiva, a esfera de risco geral da vida conduz à exclusão da imputação quando a atividade em questão (a colocação do produto defeituoso no mercado), identificando embora uma esfera de risco, apenas determina a presença do bem ou direito ofendido no tempo e lugar da lesão do mesmo. A consideração da esfera de risco do lesado, por seu turno, levar-nos-á, igualmente, a ponderar a este nível o problema das predisposições constitucionais do lesado. Ao assumir uma atividade arriscada, o agente assume a responsabilidade pelos danos que se inscrevem na sua esfera de risco, pelo que haverá de suportar o risco de se cruzar com um lesado dotado de idiossincrasias que agravem a lesão perpetrada. Excluir-se-á, contudo, a imputação quando o lesado, em face de debilidades tão atípicas e tão profundas, devesse assumir especiais deveres para consigo mesmo. Fundamental neste juízo – porque de uma responsabilidade alargada se
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trata – é considerar a própria intencionalidade da responsabilidade em questão. Ora, no caso da responsabilidade do produtor, a defeituosidade de que se parte implica a falta de segurança do produto, tendo em conta todas as circunstâncias, entre as quais a utilização que razoavelmente dele se faça, donde as predisposições constitucionais do lesado podem ser de molde a, se determinarem uma utilização não razoável do bem, excluir a imputação. Já não será esta a ponderação se o defeito não for afastado, mas o impacto que o produto tiver no lesado determinar uma lesão agravada. Nessa hipótese, parecem-nos ser mobilizáveis os critérios predispostos em geral para resolver a questão imputacional, a partir dos quais a responsabilidade pode ser excluída ou limitada. É nesse sentido que deve ser interpretado o artigo 7º/1 DL nº383/89, nos termos do qual, “quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para o dano, pode o tribunal, tendo em conta todas as circunstâncias, reduzir ou excluir a indemnização”. Tal como por referência ao artigo 570º CC, a ideia de culpa não deve ser compreendida em sentido estrito, por não ser possível fazer recair um juízo de censura ético-jurídica sobre a própria pessoa, pelo que a simples presença de uma predisposição constitucional não acompanhada dos deveres de cuidado em relação a si mesmo que deveriam ser adotados pode ser de molde a desencadear a consequência jurídica. Finalmente, há que confrontar a esfera de risco do lesante com a esfera de risco encabeçada por um terceiro. Fundamental é, então, perceber em que medida o comportamento do terceiro é ou não livre, qual a amplitude do risco assumido pelo lesante e qual a gravidade do comportamento do terceiro. Ao contrário do que se sustentou durante largo tempo, a disciplina da responsabilidade civil do produtor abre-nos as portas para situações de concurso entre culpa e risco, afastando soluções radicais de exclusão da responsabilidade pelo risco, sempre que se verifique uma hipótese concorrente de culpa29.
A aceitar-se como boa a perspetiva imputacional assim delineada, o problema da prova, ou melhor, do ónus probatório ganha outros contornos. Na verdade, transmutada numa questão imputacional, a causalidade adquire um cunho normativo, consubstanciando-se num juízo a ser levado a cabo pelo julgador. É claro que ele se há-de alicerçar em dados da realidade concreta. Mas, para tanto, basta que o lesado prove a edificação de uma esfera de risco e a existência do evento lesivo. O juízo acerca da pertença deste àquela esfera traduzir-se-á numa dimensão normativa da realização judicativo-decisória do direito. Perguntar-se-á, contudo, e sobretudo porque estamos diante de uma hipótese de responsabilidade pelo risco (em que a esfera de risco é assumida a montante, no momento em que se dá início a uma qualquer atividade tida pelo legislador como arriscada ao ponto de, com
29
Cf. artigo 6º e 7º DL nº383/89
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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base em critérios de justiça distributiva, se admitir a imposição de uma obrigação ressarcitória independentemente de culpa), se será bastante a comprovação da edificação/assunção da esfera de risco de que se cura, para, de imediato, se responder que urge, num caso como este, provar a interferência daquela atividade na história de surgimento do evento lesivo. Mas, para tanto, não nos precisamos de enredar numa lógica contrafáctica, própria de um juízo condicionalista (que, aliás, se mostra irrealizável em concreto), nem necessitamos de partir em busca de uma verdade científica acerca dos factos. Numa hipótese de responsabilidade do produtor, devemos contentar-nos com a prova da utilização/consumo/aquisição do produto defeituoso pelo lesado e do dano. A ligação entre a colocação do produto no mercado e a emergência da lesão implica o referido juízo normativo a cargo do julgador. Resta, porém, um problema de não pequena monta. Confrontados com a decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia, torna-se forçoso pensar em que medida é que o que fica dito é compatível com a ideia de que, embora haja a possibilidade de se dar por estabelecida a causalidade com base num grau suficientemente elevado de probabilidade, deixando de lado a exigência de uma verdade científica, se posterga a hipótese de se lançar mão de uma prova por presunção que leve a demonstrar automaticamente o nexo causal, quando estejam reunidos certos indícios predeterminados. A dúvida, sendo pertinente, não nos conduz a uma aporia. Em primeiro lugar, embora a diretiva pretenda harmonizar os diversos ordenamentos jurídicos nesta matéria, introduzindo uma proteção bastante para o consumidor e, assim, consolidando as bases de um mercado único, ela não vai ao ponto de impor uma dada conceção dogmática acerca dos pressupostos de procedência da pretensão indemnizatória em relação aos quais, explicitamente, não crie uma disciplina excecional. Embora no artigo 4º Diretiva 85/374/CEE se disponha que cabe ao lesado a prova do dano, do defeito e do nexo de causalidade, o certo é que a prova que se exige a este nível ficará sempre dependente do entendimento que se derrame sobre o requisito. Ora, a partir do momento em que a nossa perspetiva é imputacional, a prova que se requer não pode ir além do que ficou explicitado supra. Note-se, aliás, que, de acordo com o modelo que edificámos, não está em causa qualquer presunção de causalidade. O que se propõe não é que o julgador presuma a ligação exigível a partir de qualquer dado apresentado pelo lesado, mas que edifique um juízo normativo com base na comprovação da existência de uma esfera de risco, na comprovação da participação dessa esfera de risco na história de surgimento do evento e na comprovação do próprio evento lesivo. Estas provas terão de ser oferecidas pelo lesado, prescindindo-se, contudo, da prova da ligação entre eles. Se em certo sentido se pode aqui falar de uma inversão do ónus probatório, fazendo-se recair o risco processual sobre aquele que assume, ab initio, o risco substancial, não menos seguro é afirmar que tal inversão se alicerça quer nos princípios normativos operantes a este nível, quer em pressupostos metodológicos, não redundando na discussão fáctico-probabilística a que se refere o Tribunal de Justiça da União Europeia.
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REFERÊNCIAS BURI, Von, Die KausalitätundihrestrafrechtlicheBeziehung, 1885, nº308 e ÜberKausalität undderenVerantwortung, Leipzig, 1873. CORDEIRO, António Menezes. Tratado de Direito Civil PortuguêsII, Coimbra: Almedina. 2010. CORDEIRO, António Menezes. Tratado de Direito Civil Português III, Coimbra: Almedina. 2010. MILL, John Stuart. Sistema de lógica dedutiva e indutiva, 1843. SILVA, João Calvão da. Responsabilidade civil do produtor, Coimbra: Almedina, 1999. CIVIL LIABILITY OF THE PRODUCER AND NEXUS OF CAUSALITY: BRIEF CONSIDERATIONS
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ABSTRACT Taking into consideration that the Portuguese Courts, in the context of product liability, require the proof of defect and of causation between the defect and the damages and that the European Union Court of Justice, in a specific case, even considering that it is not required a scientific and irrefutable proof of the causal link, also refuses the proof by presumption that automatically demonstrates causation, we intend to confront the traditional understanding of causation with an imputational perspective of the requisite. In the end, we will be able to conclude to what extent the requirement of Portuguese and European case-law makes sense. KeywordsProducer liability. Jurisprudence. Nexus of causality.
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CONFLITO DE VALORES E FUNDAMENTO DA INTERVENÇÃO DO ESTADO NO CONTEXTO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA EM PORTUGAL Maria Elisabete Ferreira1
1 INTRODUÇÃO O sociólogo Giddens (2001, p. 193) não tem dúvidas em afirmar que: “O lar é o lugar mais perigoso nas sociedades modernas.”. Este autor sustenta que uma pessoa de qualquer sexo ou idade tem maiores probabilidades de vir a ser fisicamente atacada dentro de casa, do que na rua, à noite. Estamos em face do fenômeno da violência doméstica ou familiar.
1 Professora Auxiliar da Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa. Investigadora do CEID – Católica Research Centre for the Future of Law. Licenciada em Direito pela Escola de Direito do Porto da Universidade Católica Portuguesa, em 1999. Mestre em Direito pela Escola de Direito do Porto da Universidade Católica Portuguesa, na área das Ciências Jurídico-Civilísticas, em 2004. Doutoramento em Direito pela Escola de Direito do Porto da Universidade Católica Portuguesa, em 2014. Principal área de investigação: Direito Penal/ Violência Doméstica/ Direito das Crianças.
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RESUMO A violência doméstica é um grave problema social dos dias atuais. O presente trabalho pretende refletir sobre a legitimidade da intervenção do Estado, no contexto da violência conjugal e parental, à luz da legislação em vigor no ordenamento jurídico português, partindo da afirmação do princípio fundamental da não-ingerência na família, para o reconhecimento da necessidade de salvaguarda dos direitos fundamentais inalienáveis de cada um dos seus membros.A intervenção do Estado é constitucionalmente imposta, mas delimitada pelos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade. Palavras-chave: Violência doméstica. Estado. Intervenção. Limites imanentes. Proporcionalidade.
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Na sua abordagem são empregues, comummente, as expressões violência familiar ou violência doméstica, de forma mais ou menos indistinta. A expressão violência doméstica entrou no vocabulário jurídico, proveniente da sociologia anglófona, após se ter generalizado na linguagem comum (BELEZA, 2007, p. 2). Seria, porventura, mais apropriada a expressão violência familiar, mas a segunda acabou por dominar. Ambas as expressões traduzem, com a amplitude possível, este fenômeno, ainda que, numa perspetiva estritamente jurídica, nenhuma delas consiga, em rigor, abarcar todas as manifestações do mesmo. Em face das objeções apontadas a ambas as designações, será de preferir o emprego associado das mesmas – violência familiar e doméstica – expressão que beneficia de amplitude suficiente para deixar a coberto todas as situações que o legislador penal considerou serem dignas e carecidas de tutela jurídico-penal autônoma. Nos dias de hoje, encontra-se já afastado o modelo liberal de família. Neste modelo, ao Estado cabia a regulação da esfera pública, ao mesmo tempo que as instituições legais protegiam agressivamente a esfera privada contra a intervenção estatal, que era pouco solicitada, de modo a salvaguardar a intimidade e o livre desenvolvimento da família. Na atualidade, porém, parece seguro afirmar que o Estado se deve preocupar com a intervenção na família, procurando assegurar a sua proteção social, econômica e jurídica, mas também promovendo o respeito pelos direitos fundamentais de cada um dos seus membros. No presente trabalho, pretendemos discutir se, ou em que medida, é legítima ao Estado a intervenção junto da problemática da violência doméstica, em particular, da violência conjugal, stricto sensu, e da violência parental, tomando por referência a legislação vigente no ordenamento jurídico português a este respeito.
Mais antiga que o Estado, a família é um organismo natural que preexiste ao Direito escrito e dentro do qual vive uma ordenação íntima, complexa e difícil de racionalizar (COELHO; OLIVEIRA, 2011, p. 145; XAVIER, 2008, p. 59). À família, natural ou adotiva, é reconhecido um direito à proteção da sociedade e do Estado, sendo objeto de uma garantia institucional. Por essa razão, a família tem sido objeto de preocupação por parte de instrumentos jurídicos internacionais. A Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH) proclama afamília como elemento natural e fundamental da sociedade, no seu artigo 16.º, n.º 3, reconhecendo-lhe o direito à proteção desta e do Estado. Idêntica afirmação decorre, respectivamente, dos artigos 10.º e 23.º dos Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais e Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos. A Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) consagra no artigo 8.º o direito ao respeito pela vida privada e familiar, estabelecendo o princípio da não-ingerência da
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2 A INTERVENÇÃO DO ESTADO E O PRINCÍPIO DA NÃO-INGERÊNCIA NA FAMÍLIA
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3 A TUTELA CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS MEMBROS DA FAMÍLIA, EM PARTICULAR, DA INFÂNCIA
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Cfr. os artigos 36.º, 67.º, 68.º e 69.º da CRP.
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autoridade pública no exercício deste direito, senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que seja necessária para a proteção da saúde ou da moral, ou a proteção dos direitos e das liberdades de terceiros. No mesmo sentido, encontramos os artigos 7.º e 33.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia. No artigo 67.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), integrado já no capítulo dos direitos e deveres sociais, reconhece-se à Família, enquanto elemento fundamental da sociedade, o direito à proteção da sociedade e do Estado e à efetivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros. A Constituição da República Portuguesa (CRP) consagra diversas disposições à família, enquanto célula fundamental da sociedade, decorrendo das mesmas a afirmação de determinados princípios constitucionais do direito da família2, designadamente: o direito de constituir família; o princípio da igualdade dos cônjuges; o princípio da atribuição aos pais do poder-dever de educação dos filhos; o princípio da inseparabilidade dos filhos dos seus progenitores; o princípio da proteção da adoção; o princípio da proteção da família; o princípio da proteção da maternidade e paternidade (COELHO; OLIVEIRA, 2011, p. 111 e seg). Logo no artigo 36.º, n.º 1, a CRP prevê o direito de todos a constituir família e a contrair casamento em condições de plena igualdade, e no n.º 3 do mesmo preceito, a igualdade de direitos e deveres dos cônjuges, quanto à capacidade civil e política e à manutenção e educação dos filhos. No n.º 5 do artigo 36.º reconhece-se o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos. O artigo 68.º, relativo à proteção da maternidade e paternidade, reforça esta ideia, determinando que “Os pais e as mães têm direito à proteção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível ação em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação”. No n.º 2, o preceito reconhece a maternidade e a paternidade como valores sociais eminentes, admitindo-se, assim, um verdadeiro direito fundamental dos pais e das mães, enquanto tais, à proteção da sociedade e do Estado no desempenho dessa tarefa. Por sua vez, no n.º 6 do artigo 36.º da CRP, encontramos outro princípio fundamental no domínio das relações paterno-materno filiais: o princípio da inseparabilidade dos filhos dos pais, ressalvados os casos de incumprimento por estes dos seus deveres fundamentais para com os filhos, sempre mediante decisão judicial. Desta garantia constitucional decorre “a natureza primordial e insubstituível da intervenção dos pais na tarefa de educação e acompanhamento dos filhos, (...) só se justificando o afastamento de uns e outros em casos extremos, de irresponsabilidade ou negligência” (MIRANDA; MEDEIROS, 2010, p. 828 e 834).
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Cfr. o artigo 69.º, n.º 2, da CRP de 1976.
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Cfr. o artigo 1878.º, n.º 2 do Código Civil.
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Muito embora a Constituição confira tutela autônoma à família, enquanto tal, ela não perfilha uma conceção personalista da família e do casamento, não sendo admissível uma configuração legal da família de acordo com um modelo autoritário ou com uma visão que absolutize o interesse supra individual e coletivo da família, pese embora a tutela constitucional da família não se identifique com a proteção dos indivíduos que a integram (XAVIER, 2003, p. 154). Desde logo, a CRP reconheceu também às crianças um direito à proteção perante a sociedade e o Estado, ao acolher expressamente o direito das crianças à proteção contra o exercício abusivo da autoridade na família3. A reforma de 1977 do Código Civil pôs termo à referência ao poder de correção, para passar a consagrar apenas um dever de obediência dos filhos em relação aos pais. Hoje, em particular, desde a entrada em vigor da Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro, no que respeita à proteção das crianças e dos jovens, o Código Civil não se limita a estabelecer limites ao exercício da autoridade, mas impõe aos pais um dever positivo de respeito pela personalidade dos filhos4. O preceito constitucional de que decorre o princípio da proteção à infância é o artigo 69.º da CRP, que, sob a epígrafe Infância, declara, no seu n.º 1, que “As crianças têm direito à proteção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições.”. Nesta norma da CRP, encontra-se consagrado um direito das crianças à proteção, “impondo-se os correlativos deveres de prestação ou atividade ao Estado e à sociedade” (CANOTILHO; VITAL MOREIRA, 2007, p. 869). Está em causa um direito social típico, que implica deveres de legislação e de ação administrativa para a sua realização e concretização, mas que pressupõe um direito negativo das crianças a não serem abandonadas, discriminadas ou oprimidas. Os sujeitos passivos deste direito são não só o Estado como os poderes públicos e a sociedade em geral, incluindo a família e, dentro desta, os pais. Este mesmo n.º 1 do artigo 69.º impõe também a definição legal e a limitação da autoridade sobre as crianças no seio da família, justificando a concretização legislativa das inibições e limitações ao exercício das responsabilidades parentais, bem como as medidas de vigilância e punição dos maus tratos e das sevícias contra as crianças no ambiente doméstico (CANOTILHO; MOREIRA, 2007, p. 870). No n.º 2 do artigo 69.º proclama-se a especial proteção que o Estado deverá assegurar às crianças órfãs, abandonadas ou por qualquer forma privadas de um ambiente familiar normal, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições. Estas formas de abandono, discriminação e opressão incluem a violência física e psíquica, tais como as sevícias ou o abandono, mas também a exploração econômica e social (CANOTILHO; MOREIRA, 2007, p. 870).Neste n.º 2 encontra-se assim delimitadas três situações de perigo para as crian-
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ças, a saber: a orfandade, o abandono e a privação de um ambiente familiar normal, mas no âmbito normativo deste preceito poderão entrar outras situações, como a violência doméstica, as atividades ou trabalhos excessivos ou inadequados à idade da criança, os comportamentos e atividades gravemente lesivas da sua saúde, segurança, formação, educação ou desenvolvimento, conferindo-se à criança especial proteção contra o exercício abusivo da autoridade na família (CANOTILHO; VITAL MOREIRA, 2007, p. 871). Finalmente, no domínio dos Direitos, Liberdades e Garantias, encontramos nos artigos 24.º a 27.º o reconhecimento, respetivamente, dos direitos fundamentais à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação, à liberdade e à segurança. Todos estes direitos poderão resultar ameaçados ou violados, nos casos de violência doméstica. É no âmbito deste enquadramento constitucional que terá que perspetivar-se a intervenção estatal no contexto da violência doméstica. Caberá ao Estado tomar posição quanto ao conflito de valores aqui subjacente: a privacidade e o direito à diversidade das famílias – a não-ingerência – por um lado, e a tutela dos direitos fundamentais de cada membro da família – os cônjuges e as crianças, por outro.
A intervenção do Estado na violência doméstica constitui o maior dos desafios, ao introduzir-se naquela que é por todos considerada como a mais privada das esferas. Ao Estado impõe-se a proteção social, econômica e jurídica da família, mas também a promoção do respeito pelos direitos fundamentais de cada um dos seus membros (ROCA, 1999, p. 80). “Todas as medidas pressupõem um envolvimento do Estado, assumindo a função de proteção das vítimas (...) uma vez que neste tipo de crimes está em causa, em regra, a proteção de vítimas que estão especialmente desprotegidas face aos seus agressores.” (SILVA, 2011, p. 305). Desconstruindo o dilema em face do qual se encontra o Estado, reconheça-se a família como unidade fundamental natural da sociedade, ambiente natural para o crescimento e bem-estar de todos os seus membros, particularmente das crianças. À família cabe o papel principal como garante da segurança física e emocional dos seus membros, num ambiente marcado pela privacidade e pela autonomia, valores prezados em todas as sociedades e reconhecidos pelos instrumentos internacionais. Mas afirme-se, ao mesmo tempo, que o direito de cada um dos membrosda família à vida, à sobrevivência, ao desenvolvimento, à dignidade e à integridade física não podem ficar à porta da casa de morada da família.“O momento regulativo encara hoje dilemas de enorme importância e difícil discernimento: dimensão comunitária e respeito pelos direitos individuais; (…) enquadramento institucional e autonomia privada, respeito pela auto-regulação e orientação das condutas.” (XAVIER, 2008, p. 17). Do ponto de vista jurídico-constitucional, estão em jogo, em grande medida, os direi-
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4 O CONFLITO DE VALORES
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4.1 O caso particular da violência parental: limites imanentes e abuso institucional do direito (?) Os direitos, liberdades e garantias não são absolutos nem ilimitados, visto que a comunidade liga os direitos a uma ideia de responsabilidade social e integra-os no conjunto dos valores comunitários (ANDRADE, 2012, p. 263). Todos os direitos fundamentais têm limites, que consistem essencialmente num conflito prático entre valores, entre os valores próprios dos direitos, ou entre esses e outros valores comunitários, no contexto do sistema constitucional 5
Cfr. a Resolução n.º 55/99, do Conselho de Ministros, de 15 de junho.
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tos que fazem parte da tutela geral da personalidade, consagrada no artigo 26º da CRP. Esta tutela constitui uma expressão direta do postulado básico da dignidade humana (MIRANDA; MEDEIROS, 2010, p. 613). Nela se inclui o direito à própria formação da personalidade, que abarca o direito ao desenvolvimento de todas as potencialidades e capacidades, assumindo particular importância quando estão em causa crianças ou jovens ainda em formação da sua personalidade (MIRANDA; MEDEIROS, 2010, p. 614). Por outro lado, no âmbito desta tutela geral da personalidade, encontramos também presente o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar (MIRANDA; MEDEIROS, 2010, p. 620). Este direito não é um direito ilimitável. Ao contrário, em matéria de colisão de direitos fundamentais, é daqueles direitos que apresenta um maior índice de conflitualidade possível de antecipar (MIRANDA; MEDEIROS, 2010, p. 624). O Estado encontra-se perante um dilema, que se poderia representar pela imagem de uma balança cujos pratos buscam incessantemente o equilíbrio. Se por um lado, a intervenção do Estado é imposta, como forma de garantir o respeito pelos mais elementares direitos dos membros individuais da família, ou a reintegração destes direitos, por vezes grosseiramente violados, por outro lado, não poderemos deixar de perceber que tal intervenção se faz no seio da família, a quem é reconhecida liberdade, autonomia e reserva da vida privada. Mas o princípio da não-ingerência nos assuntos privados não pode ser invocado para impedir a luta contra a violência doméstica5. Mas esta intervenção do Estado só será admissível se lograr obter um justo equilíbrio entre os dois pratos da balança. No que concerne àviolência parental, por exemplo, nem mesmo a Convenção dos Direitos da Criança (CDC) nos sugere critérios infalíveis de decisão, que permitam assegurar uma justa composição entre os interesses em presença, tais como o direito dos filhos a estar e conviver com os seus progenitores e o direito a serem protegidos contra os maus tratos. Torna-se, por isso, indispensável realizar a avaliação dos diferentes interesses em crise, no caso concreto (HAMMARBERGcitado por CLEMENTE, 2009, p. 51). Esta dicotomia torna delicada, mas ao mesmo tempo, mais aliciante, a definição de estratégias de intervenção. A consecução do objetivo de equilíbrio entre este conjunto de valores fundamentais constitui o maior desafio que ao Estado se coloca no plano da intervenção no contexto da violência doméstica.
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6 Vide, a este respeito VIEIRA DE ANDRADE(2012, p. 267), que sustenta a admissibilidade de uma interpretação das normas constitucionais que permita restringir à partida o âmbito de proteção da norma que prevê o direito fundamental, excluindo os conteúdos que possam considerar-se in limineconstitucionalmente inadmissíveis. O direito pessoal à reserva da intimidade da vida privada e familiar, constitucionalmente protegido pelo artigo 26.º, n.º 1 da CRP, não comporta todas as configurações imagináveis de exercício desse direito. Torna-se aqui necessário proceder a uma interpretação restritiva, em abstrato, da norma constitucional que prevê este direito, que se justifica como forma de assegurar plenamente o núcleo essencial de outros direitos fundamentais em presença.
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(ANDRADE, 2012, p. 264). A solução para o conflito enunciado no ponto precedente, no caso da violência parental, entre o direito à reserva da intimidade da vida privada, ao direito dos pais à educação e manutenção dos filhos e sua inseparabilidade, consagrados nos artigos 26.º e 36.º, n.ºs 5 e 6, da CRP, por um lado, e a garantia dos direitos fundamentais da criança, por outro, poderá obter-se através do reconhecimento de limites imanentes ou intrínsecos a estes direitos, ou mesmo pela constatação de verdadeiras colisões de direitos, carecidas de uma resolução particular, atinente aos dados do caso concreto. A doutrina utiliza a expressão limites imanentes para designar os contornos de consagração constitucional de um direito consagrado na Constituição. “A expressão não é, porém, inteiramente feliz, mormente quando ela é utilizada no sentido de limites máximos de conteúdo ou de limites do objeto, pois deste modo não se expressa claramente que o designado limite imanente está fora da proteção constitucional.” (VAZ, 1996, p. 316). Os limites imanentes constituem restrições constitucionais, expressas ou implícitas, ao conteúdo “natural” do direito (VAZ, 1996, p. 317). Estamos à procura do conteúdo protegido por cada preceito, uma vez que a Constituição não dá cobertura a todas as situações, formas ou modos de exercício pensáveis para cada um dos direitos. Pode-se encontrar limites expressamente formulados no texto constitucional, no próprio preceito, ou em outros preceitos constitucionais, ou, noutros casos, essas limitações só são determináveis por via interpretativa. Em qualquer destas hipóteses, o direito não existe enquanto dimensão constitucional protegida, pelo que não se chega a levantar o problema da restrição legal, ou de colisão de direitos. Concretamente a respeito da violência parental, Vieira De Andrade (2012, p. 273) questiona: “Fará sentido invocar o direito de educar os filhos para os espancar violentamente?” Para logo concluir que, neste, como em muitos outros casos, não estamos propriamente numa situação de conflito entre o direito invocado e outros direitos ou valores, mas é o próprio preceito constitucional que não protege essas formas de exercício do direito fundamental. Assim, deveremos entender que a reserva da vida privada e os outros direitos constitucionais conflituantes apenas têm um determinado âmbito de proteção constitucional, havendo, pois, esferas de ação no exercício deste direito que se encontram a descoberto desta proteção6. A unidade valorativa da Constituição coloca-as fora da proteção constitucional ou é mesmo contrária a essa unidade valorativa. “A Constituição confere uma unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema de direitos fundamentais. E ela repousa na dignidade da pessoa humana, ou seja, na conceção que faz da pessoa fundamento e fim da sociedade e do Estado” (MIRANDA, 2012, p. 219). No Direito Internacional encontramos disposições que afloram este conceito: o artigo
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7 Cfr. o artigo 334.º do Código Civil: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
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30.º da DUDH determina que “Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada de maneira a envolver para qualquer Estado, agrupamento ou indivíduo o direito de se entregar a alguma atividade ou de praticar algum ato destinado a destruir os direitos e liberdades aqui enunciados.”. Em sentido quase coincidente encontramos o artigo 17.º da CEDH e o artigo 54.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. No plano infraconstitucional, no Direito Civil, encontramos consagrado o instituto do abuso do direito7, que talvez nem necessitasse de prescrição positiva, porquanto se trata de um princípio normativo (NEVES citado por ABREU, 2006, p. 49). “O instituto do abuso do direito representa o controlo institucional da ordem jurídica quanto ao exercício dos direitos subjetivos privados, garantindo a autenticidade das suas funções”(HÖRSTER, 1992, p. 281). Resulta evidente que a ordem jurídica implica a delimitação de poderes, podendo, nessa medida, afirmar-se que todos os direitos são relativos, porque circunscritos por necessários limites legais, a fim de que os vários poderes possam coexistir (ABREU, 2006, p. 39). Por essa razão, no plano infraconstitucional, aintervenção legislativa estatal tanto poderá traduzir-se numa atividade concretizadora, isto é, uma tarefa de interpretação dos limites imanentes do direito fundamental impressos no preceito constitucional, nada acrescentando, ou retirando ao conteúdo constitucional, como numa atividade restritiva, desta feita, apenas se estiver protegida aquela dimensão constitucional do exercício do direito(VAZ, 1996,p. 313, 317). Os direitos familiares pessoais característicos da relação jurídica paterno-materno filial são poderes individuais que correm o risco de ser objeto de um exercício abusivo. Quem age em abuso do direito invoca um poder que aparentemente lhe pertence, mas que não tem fundamento material. “Há abuso de direito quando um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na não realização de interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem.” (neste caso, os interesses do filho) (ABREU, 2009, p. 43). Por comportamento entender-se-á tanto uma ação como uma omissão. Hörster (1992, p. 283) distingue entre o abuso institucional e o abuso individual. Quando o pai ou a mãe invocam o seu direito de educação para, por hipótese, aplicar regularmente castigos corporais ao filho, por força do artigo 1878.º do Código Civil, a questão coloca-se no plano do abuso institucional. O direito é, neste caso, invocado para fins que estão fora dos objetivos para os quais ele foi atribuído pela norma. A norma não confere este direito com o conteúdo invocado. Encontra-se, em rigor, perante o exercício de um direito apenas aparente, mas não existente na realidade (HÖRSTER,1992, p. 283).É caraterística desta forma de abuso, a contradição com os princípios fundamentais da ordem jurídica, ou a desvirtuação da função, ou dos objetivos de um dado instituto jurídico – no caso, o das responsabilidades parentais. Para a maioria da doutrina, contudo, os direitos abrangidos no conteúdo das responsabilidades parentais não encaixam perfeitamente na categoria dos direitos subjetivos em sentido
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estrito, tratando-se antes de direitos de estrutura complexa que, do ponto de vista do seu conteúdo, apresentam uma natureza específica, que comporta direitos e deveres (HÖRSTER, 1992, p. 256-257). Leite De Campos (1997, p. 139), reforça este entendimento: “o titular do poder não o exerce no seu interesse, mas antes (“também”) no interesse do sujeito passivo.” O seu exercício não é inteiramente livre, mas controlado pela ordem jurídica, tendo em conta as funções a que de destina. Por essa razão, a tese da invocabilidade do instituto do abuso do direito consagrado no artigo 334.º do Código Civil ao exercício das responsabilidades parentais não é pacífica na doutrina. Ao invés, só é admitida por aqueles autores que as classificam como direitos subjetivos stricto sensu(em sentido estrito). Recorde-se aqui a posição defendida por Jorge Miranda(2006, p. 28-29), segundo a qual, os limites a impor ao exercício das responsabilidades parentais explicam-se pela categoria geral que pode aplicar-se a quaisquer direitos subjetivos – a noção de abuso de direito. O autor acolhe a ideia de que todo o direito é conferido para desempenho de uma função, razão que motiva a sua adesão ao conceito de abuso do direito para as hipóteses em que os pais, em vez de educarem, pervertem ou deixam perverter a função em razão da qual esse direito foi concedido – a formação da personalidade do filho e o desenvolvimento da sua própria personalidade; então, cessarão as razões porque lhes foi reservado o correspondente poder. Em sentido inverso, Meneses Cordeiro (2011, p. 242), ao deter-se sobre a interpretação a conferir aos diversos segmentos da norma prevista no artigo 334.º do Código Civil, pronuncia-se sobre o entendimento a retirar da locução “fim social ou económico do direito”. Referindo-se em detalhe às diversas teorias do abuso do direito(2011, p. 351 e seg.), o autor recusa que nas teorias funcionais se possa encontrar a chave do abuso. Os direitos podem ser concedidos com uma certa função – são direitos ou poderes funcionais ou direitos-deveres, mas, quando tal suceda, as normas em jogo devem ser respeitadas sob pena de ilicitude, não havendo lugar a abuso – os valores sociais devem ser defendidos, mas com clareza e em face de normas a tanto dirigidas; não há aqui planos para o abuso (CORDEIRO, 2011, p. 354-355). Há ainda autores que aproximam os poderes-deveres ou poderes funcionais dos poderes discricionários das autoridades administrativas. A liberdade de que goza o titular destes poderes-deveres – no caso, as responsabilidades parentais – seria idêntica àquela de que disfrutam os órgãos da Administração quando, no uso da discricionariedade, escolhem o se, o como ou o quando da atuação em concreto do interesse público. Falar-se-ia a este respeito de desvio de poder e não de abuso do direito (ABREU, 2006,p. 81). Mas Coutinho De Abreu (2006,p. 82-83) acaba por concluir que estar-se aqui perante direitos subjetivos, na medida em que podemos ainda falar de uma livre disposição, muito embora resulte inegável a menor liberdade de atuação nos poderes funcionais, do que nos típicos direitos subjetivos. A despeito destas afirmações, recusada a aplicabilidade a estas hipóteses do desvio de poder, o autor acaba também por concluir pela inaplicabilidade do abuso do direito, ao considerar que, em consonância com a intensidade dos laços afetivos materno-paterno filiais, são proibidos aos pais determinados comportamentos, podendo decretar-se a inibição do exercício das responsabilidades parentais, quando esses
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poderes-deveres não possam, ou não sejam, devidamente exercidos – por essa razão, Coutinho De Abreu(2006,p. 84) rejeita a aplicabilidade da cláusula geral do abuso do direito a este nível das relações entre o titular do poder funcional e do beneficiário deste, enquanto Castro Mendes (1979, p. 117) refere explicitamente o abuso do direito a propósito do n.º 2 do artigo 69.º da CRP, relativo ao exercício abusivo da autoridade na família. Por fim, ainda será pensável a verificação de uma colisão ou conflito de direitos, em sentido estrito, quando se puder entender que a Constituição protege simultaneamente os dois valores ou bens, em contradição numa determinada situação concreta (real ou hipotética) (ANDRADE, 2012, p. 299). Quando as dimensões dos dois direitos são constitucionalmente protegidas, o aplicador do Direito tem que conferir a ambas proteção jurídica. No domínio das relações paterno-materno filiais, Vieira De Andrade (2012, p. 299) interroga-se se deverá punir-se por homicídio um pai que, por convicção religiosa, não permita a realização de uma transfusão de sangue a um filho menor, indispensável à sua sobrevivência. “Até que ponto podem os pais dispor da maneira de viver dos filhos?” A solução dos conflitos e colisões entre direitos, liberdades e garantias não pode ser resolvida sistematicamente através de uma preferência abstrata, com o mero recurso à ideia de uma ordem hierárquica dos valores constitucionais. Nas situações de verdadeiros conflitos de direitos, ou seja, na ausência de disposição legislativa que o preveja e dirima, antecipadamente, lançar-se-á mão, de acordo com a doutrina constitucional, do princípio da harmonização ou da concordância prática, procurando que o conteúdo essencial dos direitos em conflito nunca seja afetado e pugnando pela realização máxima de cada um desses direitos. Vieira De Andrade (2012, p. 299-300) propõe para estas hipóteses de conflitos de direitos a atinência a três fatores, ponderando, num juízo global, em função de cada um deles, todas as circunstâncias relevantes no caso concreto. Deverá atender-se ao âmbito e graduação do conteúdo dos preceitos constitucionais em conflito, à natureza do caso, apreciando o tipo, o conteúdo, a forma e as demais circunstâncias objetivas do facto conflitual; e finalmente, a condição e o comportamento das pessoas envolvidas, que podem ditar soluções diferenciadas. No contexto da intervenção do Estado na violência parental, o problema prende-se muito mais com a delimitação de limites imanentes e, logo, pelo preenchimento do conteúdo constitucionalmente protegido do direito, ou princípio fundamental em causa, do que com o conflito de direitos, uma vez que, da exposição precedente, resulta que os princípios constitucionais de Direito da Família e os direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição aos pais não comportam um conteúdo protegido, ou formas de exercício tais, que coloquem em causa os direitos constitucionalmente reconhecidos à criança. Hipóteses de genuíno conflito de direitos, a solucionar em face do caso concreto, à luz dos critérios propostos por Vieira De Andrade, são pouco frequentes.
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5 FUNDAMENTO DA INTERVENÇÃO: A INTERVENÇÃO DO ESTADO COMO EXCEÇÃO AO PRINCÍPIO DA NÃO-INGERÊNCIA - REQUISITOS DE ADMISSIBILIDADE ESPECIFICAMENTE EM SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA PARENTAL
Gerais, decorre o princípio da Universalidade, que determina que todos os cidadãos gozam dos direitos consignados na Constituição, proclamando o artigo 13.º a mesma dignidade social e a igualdade de todos os cidadãos perante a lei. A base constitucional do princípio da igualdade é a igual dignidade de todos os cidadãos, traduzindo-se num corolário da igual dignidade humana de todas as pessoas, significando que todos os cidadãos têm idêntica validade cívica, independentemente da sua inserção económica, social, cultural e política, proibindo formas de tratamento discriminatórias (CANOTILHO; MOREIRA, 2007, p. 338 e seg). Mas o princípio da igualdade é compatível e até impõe a diferenciação, como forma de compensar a desigualdade de oportunidades, o que pressupõe a eliminação, pelos poderes públicos, de desigualdades fácticas de natureza social, econômica e cultural. Proíbe, em síntese, os privilégios no gozo de qualquer direito, ou na isenção de qualquer dever, mas também a proibição de prejuízo na privação de qualquer direito ou na imposição de qualquer dever. A obrigação de diferenciação – sustentam estes autores – deriva da função social do princípio da igualdade, que pressupõe o dever de eliminar ou atenuar as desigualdades sociais, econômicas e culturais, a fim de se assegurar a igualdade material. Nesse sentido se devem interpretar normas como as constantes do artigo 69.º, n.º 2, por exemplo, que consagram, neste caso, uma discriminação positiva, imposta constitucionalmente e que, a não existir, fundamentaria uma
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O fundamento para a intervenção estatal no contexto da violência doméstica resulta do disposto em instrumentos internacionais, entre os quais a CEDH. O seu artigo 3.º, sobre a proibição da tortura, impõe ao Estado obrigações substantivas: uma negativa, de não aplicar a tortura, ou os tratamentos desumanos, ou degradantes; outra positiva, de proteger contra os atos que violam a integridade física, mesmo quando infligidos por particulares (ALVES, 2008,p. 30). A vida privada entra em jogo, quando está em causa a integridade física e moral das pessoas – a intervenção judiciária e administrativa acontece, obviamente, em contextos de crise e conflito (XAVIER, 2008, p. 18). A intervenção estatal encontra também fundamento em diversos preceitos constitucionais, sistematicamente distintos. O legislador constitucional consagrou, no artigo 9.º, na definição dos Princípios Fundamentais, como tarefa fundamental do Estado, a garantia dos direitos e liberdades fundamentais – existe uma vinculação positiva do Estado aos direitos fundamentais, incluindo direitos, liberdades e garantias, daí decorrendo o dever de proteger o interesse dos membros da família e, em última análise, o dever de proteger a sua vida, a sua integridade pessoal, o desenvolvimento da sua personalidade e outros direitos fundamentais (MIRANDA; MEDEIROS, 2010, p. 1381). A violência doméstica constitui um atentado dos direitos fundamentais dassuas vítimas. Do artigo 12.º, constante do capítulo concernente aos Princípios
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inconstitucionalidade por omissão. A acentuação da privacidade das relações familiares expôs as fragilidades das famílias e recordou a importância da intervenção do Estado, no sentido da proteção dos mais vulneráveis. Mas esta intervenção deve reger-se pelo princípio da subsidiariedade. dirigindo-se, sobretudo, à promoção e à proteção dos direitos destas pessoas mais frágeis. Esta intervenção estatal deve traduzir-se numa atividade de regulação e fiscalização, mas também de promoção e facilitação das funções próprias das famílias (RITA LOBO XAVIER, 2010, p. 368). A intervenção do Estado na família e, particularmente, no problema da violência doméstica, deve reger-se por dois princípios fundamentais: a subsidiariedade da intervenção e a cooperação do Estado com a família. Assim, os problemas derivados das fragilidades das famílias e das ruturas familiares devem ser encarados nas suas causas e as soluções para os mesmos devem procurar-se, através de ações que visem regular e prevenir a desagregação familiar (XAVIER, 2010, p. 370). O artigo 8.º da CEDH consagra, como vimos, o direito ao respeito pela vida privada e familiar, estabelecendo o princípio da não-ingerência da autoridade pública no exercício deste direito, senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que seja necessária para a proteção da saúde, ou da moral, ou para a proteção dos direitos e das liberdades de terceiros. Do n.º 2 do artigo 8.º da CEDH decorre a afirmação do princípio da proporcionalidade – as medidas excecionais aí previstas têm que ser proporcionais. Por sua vez, o artigo 18.º, n.º 1, da CRP proclama que “Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam entidades públicas e privadas”. Sendo entidades públicas, “desde logo, os poderes públicos: o legislador, o governo/administração, e os Tribunais” (CANOTILHO, 2000, p. 437). Detendo-se mais concretamente sobre a figura do legislador, a vinculação deste assume uma importante dimensão positiva, que se traduz no dever de o legislador conformar “as relações da vida, as relações entre o Estado e os cidadãos e as relações entre os indivíduos, segundo as medidas e diretivas materiais consubstanciadas nas normas garantidoras de direitos, liberdades e garantias. Neste sentido, o legislador deve “realizar” os direitos, liberdades e garantias, otimizando a sua normatividade e atualidade.” (CANOTILHO, 2000, p. 438). Dito de outra forma, no domínio concreto da violência doméstica, incumbe ao legislador adotar as medidas legislativas que tiver por convenientes, para assegurar a plena realização dos direitos, liberdades e garantias dos membros da família: “Porque ao falar-se de violência doméstica é a dignidade do ser humano que é posta em causa de forma intensa e, frequentemente, de um modo dramático, cabe ao Estado, em constante articulação com as respostas, válidas mas insuficientes, que têm sido dadas pela sociedade civil, um papel fundamental na sua identificação, prevenção e combate.” (LOURENÇO; CARVALHO, 2001, p. 101). O n.º 2 do artigo 18.º da Constituição determina que: “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente
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A noção de necessidade implica a proporcionalidade da ingerência relativamente ao fim visado (ALVES, 2008, p. 215).
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protegidos”. Toda a intervenção estatal no domínio da salvaguarda dos direitos fundamentais das vítimas de violência doméstica, terá que reger-se pelo princípio da proporcionalidade, espelhado em critérios de indispensabilidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito. O princípio da proporcionalidade, também denominado princípio da proibição do excesso, desdobra-se em três subprincípios: princípio da adequação ou idoneidade; princípio da necessidade, exigibilidade ou indispensabilidade e princípio da racionalidade ou proporcionalidade em sentido estrito (CANOTILHO; MOREIRA, 2007, p. 392-393)(MIRANDA, 2012, p. 308-309). Pressuposta a legitimidade do fim consignado na norma, a idoneidade ou adequação traduz-se na existência de um meio adequado à sua prossecução. Perante um bem juridicamente protegido, a intervenção ou a providência a adotar, seja ela legislativa, ou de outra índole, deve constituir um meio adequado à prossecução dos fins visados pela lei, que serão, à partida, a salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos. Colocada a questão em relação à violência parental, o princípio da proporcionalidade, nesta vertente, só estará respeitado se a intervenção estatal proposta no caso permitir satisfazer adequadamente as necessidades de proteção dos direitos fundamentais da criança, violados ou colocados em risco. De destacar que, a par de violações do princípio por excesso de proteção, poderão também verificar-se violações por defeito, isto é, derivadas do incumprimento, por parte do Estado, de deveres de proteção relativos ao exercício dos direitos fundamentais. Constituirá intervenção violadora do princípio da proporcionalidade, por hipótese, aquela intervenção do Estado que se traduza no afastamento do filho dos progenitores, após a constatação da inflição esporádica de castigos corporais de pouca gravidade, sem a prévia tentativa de colaboração com os pais, no sentido da sua reeducação para a parentalidade, como a não intervenção do Estado, perante a sinalização de uma situação de maus tratos físicos, ou psicológicos, de gravidade apreciável, de que venha a decorrer dano para o desenvolvimento da criança. A necessidade do meio, ou se preferirmos, a exigibilidade ou indispensabilidade, traduz-se na imposição para o Estado de, perante várias soluções em abstrato aplicáveis ao problema versado, se decidir pela adoção daquela que melhor satisfizer, em concreto, a realização do fim a atingir, seja por força dos menores custos, ou eventualmente dos maiores benefícios, que aquela solução possa representar – as medidas devem ser necessárias8, porque os fins visados pela lei não podiam ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias. Finalmente, no que concerne à racionalidade, ou proporcionalidade em sentido estrito, pretende com isto significar-se que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa “justa medida”, impedindo-se a utilização de medidas desproporcionadas, ou excessivas, em relação aos fins obtidos (CANOTILHO; MOREIRA, 2007, p. 392-393). Implica que o órgão em causa proceda a uma correta avaliação da providência em termos quantitativos, de maneira a que ela não fique além, ou aquém do necessário, para se alcançar o resultado al-
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mejado (MIRANDA, 2012, p. 308). A intervenção do Estado deverá ser excecional e conformar-se pelos princípios da necessidade e da proporcionalidade. Mas incumbe ao Estado o direito – e o dever – de intervir, quando o gozo, ou o exercício de direitos cívicos, sociais, econômicos, ou culturais, de que cada membro da família é titular, são ameaçados por fatores que lhe são exteriores, como a incúria, a exclusão social, o abandono, ou os maus tratos (RODRIGUES, 2003, p. 8). No conflito de interesses pais-filhos, prevalecerá o interesse dos filhos (ALVES, 2008, p. 203). No ordenamento jurídico português, esta afirmação terá que ser entendida cum grano salis (como um grão de sal), uma vez que a prevalência do superior interesse da criança terá que ser sempre interpretada em consonância com as regras constitucionalmente vigentes para a resolução de conflitos de direitos, que não estabelecem prevalência absoluta de nenhum direito fundamental em relação aos demais. O artigo 8.º da CEDH impõe às autoridades nacionais o estabelecimento de um justo equilíbrio entre os interesses da criança e os interesses dos pais e a atribuição de particular relevância ao superior interesse dacriança que, de acordo com a natureza e a gravidade do caso, poderá justificar a prevalência sobre o interesse dos pais (ALVES, 2008, p. 203). Por essa razão, muito embora se reconheça a importância da convivência em família de pais e filhos, o artigo 8.º não autoriza, por exemplo, a pretensão do progenitor a que sejam tomadas medidas prejudiciais à saúde, ou ao desenvolvimento da criança.
Em fase do que supra de escreveu, será forçoso concluir-se que a intervenção do Estado no domínio da violência doméstica se encontra internacional e constitucionalmente imposta, desde que contida dentro dos limites definidos pelos artigos 8.º, n.º 2, da CEDH, e 18.º, n.º 2 da CRP, designadamente, para a proteção da vida, da integridade física e psíquica, da identidade pessoal, do livre desenvolvimento da personalidade dos membros da família e do seu desenvolvimento integral como pessoa. É pacífica, na atualidade, a aceitação da necessidade de intervenção do Estado na família, mas não se confunda intervenção, com intromissão. Numa perspetiva da prática concreta, a intervenção é por vezes objeto de “tibieza, de bloqueios e de confusão de conceitos que não são confundíveis: intervenção, que implica a capacidade de decisão oportuna; e invasão, de que resulta uma intromissão sem decisão oportuna, inútil” (FONSECA 2002, p. 9). É um direito dos cidadãos que o Estado intervenha, sempre que a segurança, a saúde, a formação, o desenvolvimento físico, psíquico e emocional, o bem-estar, de um membro da família estejam em perigo. E nessa perspetiva, a intervenção só deverá verificar-se, quando for necessária para defender e assegurar os direitos fundamentais constitucionalmente protegidos e deverá ser feita de harmonia com os princípios orientadores decorrentes da Constituição e da Lei.
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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Recebido 21/07/2017 Aceito 30/10/2017
O PAPEL DO DIREITO NO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SUA RELAÇÃO COM A ECONOMIA POLÍTICA Rogério Cesar Marques1
1 INTRODUÇÃO Uma questão importante no panorama da América Latina diz respeito ao desenvolvimento econômico, seu conceito e como este deve ser alcançado. Isso porque deve-se estabele-
1 Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP em 2009. Pós Graduado em Direito Empresarial, com ênfase em Planejamento Tributário pela Fundação Getúlio Vargas – GV Law em 2011. Mestre em Direito Econômico, com ênfase em Tributação e Desenvolvimento Econômico pela Universidade de São Paulo – USP em 2017. Advogado Tributarista em São Paulo, no escritório Gasparini, De Cresci e Nogueira Lima Advogados.
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RESUMO A discussão sobre o papel do Direito e a economia política no desenvolvimento econômico é complexa, remetendo à problemática de definição de desenvolvimento e instituição. As instituições são essenciais ao desenvolvimento, se impregnando na sociedade por meio do Direito. O próprio ordenamento jurídico é uma instituição, sendo a mais importante delas uma vez que cria, modifica e extingue outros arranjos institucionais. A economia política auxilia neste estudo, facilitando o entendimento das instituições existentes na sociedade em um determinado contexto histórico. É importante em razão da influência que exerce na seara jurídica e nas instituições, sendo um princípio estruturante do Direito. PALAVRAS-CHAVE: Desenvolvimento. Direito. Instituições. Economia. Sociedade.
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cer, desde logo, a premissa de que o desenvolvimento somente pode ser alcançado se houver a disponibilização de instituições para toda a sociedade, sendo papel do Direito criar instrumentos que possibilitem esta disponibilidade. Surge, assim, a necessidade de se estudar qual o papel do ordenamento jurídico no desenvolvimento e a sua relação com a economia política. Para tal, deve-se analisar o conceito de arranjos institucionais e sua função dentro do desenvolvimento, uma vez que o próprio Direito é uma instituição. Essa discussão envolve questões complexas e termos de textura aberta, dificultando a delimitação de importantes conceitos acerca do assunto. Para auxiliar na presente análise, deve-se socorrer do campo da economia política, o qual, além de possuir importantes reflexos no Direito e nos arranjos institucionais, facilita a compreensão das instituições e arranjos jurídicos existentes na sociedade. Pretende-se analisar até que ponto o ordenamento jurídico é elemento apto a conferir meios de desenvolvimento ao país, a importância das instituições para tal, bem como a influência da economia política neste debate. Também serão tecidas considerações acerca do caso do Brasil, que muito embora tenha conseguido progressos recentes, ainda não conseguiu se livrar do subdesenvolvimento. A solução para alterar o referido cenário varia de acordo com as inflexões de economia política vividas no Brasil, existindo momentos nos quais é defendida maior presença do Estado na economia, com momentos mais liberais. As alterações de paradigmas criam desafios institucionais em decorrência da necessidade de adaptação ao novo contexto. Um exemplo é a emergência, no país, do denominado Novo Ativismo Estatal, o qual fez surgir importantes desafios ao Direito, que terá de repensar os arranjos institucionais existentes no Brasil, de forma a criar novos e adaptar os existentes para atender essa nova conformação de economia política.
Ao analisar o campo do Direito e desenvolvimento, um primeiro desafio que surge é justamente trazer uma definição para desenvolvimento. Tal se deve uma vez tratar-se de uma questão complexa que não pode ter a sua compreensão apequenada, tratando-o tão somente como aumento do produto interno bruto de um país ou geração de riquezas. De acordo com Fábio Nusdeo (2001, p. 349), desenvolvimento é mais do que o simples crescimento econômico, envolvendo “uma série infindável de modificações de ordem qualitativa e quantitativa de tal maneira a conduzir a uma radical mudança de estrutura na economia e da própria sociedade do país em questão”. No mesmo sentido, Amartya Sen (2010, p. 16) amplia o conceito de desenvolvimento, entendendo-o como algo que “requer que se removam as principais fontes de privação da liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destruição social sistemática, negligencias dos serviços públicos e intolerância ou interferência de Estados repressivos”.
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2 A FUNÇÃO DO DIREITO NO DESENVOLVIMENTO
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Não obstante, embora o crescimento econômico possa ser considerado meio de se promover o desenvolvimento, ambos não podem ser confundidos. Para que um Estado se desenvolva, são necessárias alterações estruturais na própria sociedade de sorte que haja uma redução do mal-estar causado pelo subdesenvolvimento, conferindo-se formas para que todos usufruam dos bens de consumo e tenham suas necessidades básicas saciadas. Tomando por base o referido conceito de desenvolvimento, cumpre verificar se há ou não uma relação com o Direito. Kevin Davis e Michael Trebilcock (2008, p. 4-5) identificam uma corrente teórica que acredita ser possível a utilização dos arranjos jurídicos para gerar mudanças estruturais, bem como outra, segundo a qual o Direito, ou é incapaz, ou é dispensável, na determinação de mudanças estruturais na sociedade. Focar-se-á na primeira, conhecida como corrente otimista, a qual, segundo Kevin Davis e Michael Trebilcock (2008, p. 5), é majoritária. Dentro da referida corrente teórica, chama-se atenção para a análise funcional do ordenamento jurídico, que tenta compreendê-lo de acordo com sua efetiva ação na sociedade. Deve-se, assim, buscar a criação e manutenção de uma estrutura jurídica organizada, sendo esta condição necessária para expansão do capitalismo e crescimento econômico, sendo uma das principais funções do Direito conferir previsibilidade e segurança jurídica ao mercado, fundamentais para uma ação conjunta das instituições estatais e organizações privadas em prol do crescimento econômico que, muito embora não seja o desenvolvimento propriamente dito, é um dos meios pelo qual deve ser alcançado. No mesmo sentido, Dani Rodrik, Arnind Subramanian e Francesco Trebbi (2002, p. 22), analisando o desenvolvimento de China e Rússia, concluíram que a diferença verificada entre ambos os países relaciona-se à certeza e à segurança dos investidores em relação à proteção da propriedade, sendo que o Estado chinês é mais bem sucedido na atração de investimentos, uma vez que a proteção da propriedade é maior na China do que na Rússia. Não obstante este entendimento dos autores, destaca-se o alerta de Ha-Joon Chang (2006, p. 8) de que a segurança da propriedade não deve ser um fim em si mesmo, havendo a necessidade de o Direito determinar em quais circunstâncias e condições haverá esta proteção. Ainda dentro da corrente otimista, Marina Mota Prado (2010, p. 3) identifica duas teorias: i) direito no desenvolvimento, a qual possui uma visão instrumental do Direito, sendo este um meio para viabilizar o desenvolvimento, com enfoque no crescimento econômico, quer por meio de intervenção estatal, quer por meio de uma presença mínima do Estado; e, ii) direito como desenvolvimento, com uma visão finalística do Direito, com o enfoque maior nos avanços sociais, os quais devem ser garantidos pelos arranjos jurídicos. Prado (2010, p. 19) destaca que a principal diferença entre ambas é que, enquanto a primeira entende o desenvolvimento mais relacionado com o crescimento econômico, a segunda se alinha à teoria de Sen (2010), relacionando desenvolvimento como garantia de liberdades individuais. Ainda de acordo com Prado (2010, p. 6), deve-se identificar interconectividades entre as correntes teóricas do Direito no desenvolvimento e do Direito como desenvolvimento, afir-
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mando que não são excludentes, mas que uma serve como meio para outra. Assim, ao mesmo tempo em que os arranjos jurídicos podem prover as instituições necessárias para garantir os objetivos alcançados, podem ser concomitantemente um meio para se alcançar outras metas de desenvolvimentos, sendo ambas funções complementares. Conforme destacado por Davis e Trebilcock (2008, p. 11-12), outro enfoque da corrente teórica em análise acerca de Direito e desenvolvimento relaciona-se com o surgimento da Nova Economia Institucional, que defende a existência, nos países desenvolvidos, de uma relação próxima entre instituições públicas e organizações privadas, no sentido de serem criados estímulos para a sociedade. Estes estímulos podem ser no sentido de incentivar atividades produtivas, bem como distribuição dos ganhos, permitindo acesso da população à riqueza gerada, permitindo o desenvolvimento do Estado. Por outro lado, segundo Douglass North (1995, p. 20), os países do terceiro mundo não seriam desenvolvidos por não terem logrado êxito em construir instituições que fossem eficientemente voltadas para a criação destes estímulos produtivos. Prado (2010, p. 14), embora destaque a importância da teoria institucional no campo do Direito e desenvolvimento, apresenta algumas críticas à referida teoria, dentre as quais: i) falta de consenso sobre o conceito de instituição; ii) incapacidade de explicar a existência, em países desenvolvidos, de instituições ruins. Tais críticas não a tornam menos importante, haja vista que, como apontado por Davis e Trebilcock (2008, p. 60), há um entendimento crescente no sentido de que existe uma relação entre instituições e desenvolvimento. Este debate termina remetendo, invariavelmente, à análise do conceito de instituição e seu papel dentro do desenvolvimento, pois, conforme será abordado, o próprio Direito é um arranjo institucional. O Direito é responsável por criar e dar efetividade às demais instituições da sociedade, já que o ordenamento jurídico é um elemento essencial ao desenvolvimento.
Os debates sobre Direito e desenvolvimento remetem à análise de outra discussão que é tão, ou mais, complexa e problemática, qual seja, a relação entre o ordenamento jurídico e as instituições. Tal qual ocorrido em relação ao desenvolvimento, não há uniformidade de entendimentos sobre qual a definição de instituições, sendo que o primeiro desafio corresponde, exatamente, a se estabelecer o seu conceito e se determinar sua relação com o ordenamento jurídico. Dentro da perspectiva da Nova Economia Institucional, North (1995, p. 23) entende que “as instituições são limitações comportamentais criadas pela própria sociedade, dentro de sua estrutura, abrangendo regras formais e restrições informais, bem como os meios de aplicação coercitiva de ambos”. Devem ser assim entendidas como as regras do jogo existentes em determinada sociedade que constrangem o comportamento dos indivíduos, induzindo-os a agir ou não agir de determinada maneira. Sob a óptica institucionalista, Geoffrey Hodgson (2006, p. 2) entende que instituições
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3 O ORDENAMENTO JURÍDICO COMO INSTITUIÇÃO CRIADORA DE ARRANJOS INSTITUCIONAIS
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são importantes estruturas da sociedade, responsáveis por disciplinar a vida social, permitindo ou limitando comportamentos individuais para conferir previsibilidade e estabilidade às expectativas comportamentais dos indivíduos. Para a teoria de Hodgson, instituições são regras, incluindo neste conceito as normas jurídicas, normas sociais e organizações. Destaca-se o fato que, por uma questão de recorde metodológico, optou-se por manter a objetividade do presente trabalho e não adentrar na crítica que Hodgson (2006) faz à North (1995) em relação ao conceito deste acerca de instituição, que a diferencia de organização, abarcada no entendimento de instituição apresentada por Hodgson (2006). Porém, apenas registra-se a existência da referida divergência entre os autores. Para Hodgson (1998, p. 179-180) “o cerne das instituições são os hábitos, os quais são o resultado da consolidação de uma conduta usual dos indivíduos, alterada quando há uma mudança de comportamento”. Ademais, segundo John Harris (2003, p. 347-348), “também devem ser consideradas questões culturais e políticas, uma vez que, por estarem impregnadas no tecido social, influenciam diretamente no comportamento individual e, consequentemente, nos arranjos institucionais”. Verifica-se, assim, que entre instituição e indivíduo há uma relação de retroalimentação, por meio da qual na medida em que um evolui, influencia mudanças no outro de sorte a acompanhar esta alteração. Sob a ótica jurídica, Maurice Hauriou (1925, p. 97-98) conceitua instituições como formas estáveis de organização da sociedade, correspondendo a fenômenos sociais, impessoais e coletivos, com elementos de dinamismo e mutabilidade, que se infiltram, por meio do Direito, no meio social, mas com ele não se confundindo. Santi Romano (2008, p. 85-86), por sua vez, entende que o Direito é um arranjo institucional, se enquadrando no conceito por ele apresentado, segundo o qual “instituições são agências fechadas, existentes em termos concretos e objetivos, constituindo-se como um elemento social detentor de autonomia e separabilidade relativa”. Romano (2008, p. 92-93) traz, ainda, outro elemento marcante das instituições, que diz respeito à noção de objetivação, a qual corresponde ao fato de transcenderem, por meio do ordenamento jurídico, às pessoas que as compõem, sendo independentemente identificáveis. Portanto, tratam-se as instituições de um fenômeno social, impessoal e coletivo, tendo o hábito da coletividade como elemento central. É por meio delas que são estabelecidas limitações aos indivíduos por meio de normas jurídicas e sociais, aplicadas coercitivamente, que estimulam os indivíduos a agir de determinada maneira. Possuem por função disciplinar a vida social, permitindo ou restringindo ações individuais para conferir previsibilidade e estabilidade às expectativas comportamentais da sociedade. Conforme destacado por Hauriou (1925) e por Romano (2008), as instituições se impregnam no corpo social pelo do Direito, sendo por meio deste que ocorre a sua institucionalização e objetivação, configurando-se, o ordenamento jurídico, um elemento de conservação e mudanças institucionais. É por meio do Direito que os arranjos institucionais são criados,
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modificados e extintos, configurando-se como a mais importante instituição social. Pois bem, conforme estudo de Rodrik, Subramanian e Trebbi (2002, p. 4), no âmbito do desenvolvimento, as instituições preponderam sobre as demais variáveis por eles identificadas, quais sejam, geográfica e de integração do comércio internacional. As instituições exercem, conforme bem apontado por Chang (2006, p. 2), três funções principais, na promoção do desenvolvimento econômico, sendo elas: i) coordenação e administração; ii) aprendizagem e inovação; e, iii) distribuição de renda e coesão social. Cabe ao ordenamento jurídico, segundo Rodrik, Subramanian e Trebbi (2002, p. 2122), a construção dos arranjos institucionais específicos, de acordo com as vicissitudes ambientais da sociedade, em atenção ao contexto no qual o Estado está inserido. O referido processo de criação e adaptação das instituições deve se dar por meio de um complexo processo de articulação e balanceamento das formas das instituições e funções que se esperam destes arranjos. O enfoque dos referidos autores está em linha com a teoria de Roberto Mangabeira Unger (1996, p. 19), o qual entende “ser tarefa do Direito auxiliar na imaginação institucional, mapeando e criticando os arranjos institucionais existentes de sorte a reestruturá-los, se necessário for, conferindo-lhes maior eficiência”. Verifica-se que, a construção dos arranjos institucionais, bem como a manutenção e eventual extinção de instituições, é um processo complexo, envolvendo todo contexto no qual a sociedade está envolvida, abrangendo questões históricas, políticas e culturais. As peculiaridades de cada país apareceram no processo de imaginação institucional, sendo importante que os arranjos institucionais sejam desenhados de acordo com as características intrínsecas de cada país, em respeito ao contexto no qual a sociedade se faz inserida. Assim, é importante destacar que o Direito não age sozinho, mas em conjunto com as conformações de economia política existentes em determinado país, que auxiliam o sistema jurídico na criação, manutenção, aprimoramento ou extinção de outros arranjos institucionais.
Na esteira da teoria de Romano (2008) em relação ao seu entendimento de que o Direito é uma instituição, cumpre analisar a influência da economia política no ordenamento jurídico, refletindo em seu mister de conformar os arranjos institucionais de uma determinada sociedade. Isto porque o estudo do conceito e evolução da economia política auxilia na verificação de como o contexto histórico, político e cultural influenciaram nas instituições existentes. O cerne da questão é a não existência de uma economia pura, sendo esta uma construção jurídico-institucional, cabendo à economia política, por meio do ordenamento jurídico, criar limitações à ação política na economia. De acordo com Unger (1996, p. 20), “Direito e economia política atuam conjuntamente no mister da imaginação institucional”. Dessa forma, o campo da economia política termina por agregar elementos importantes na análise institucional, tais
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4 INFLUÊNCIA DA ECONOMIA POLÍTICA NA CONFORMAÇÃO DOS ARRANJOS INSTITUCIONAIS
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como: historicidade, distribuição de riquezas, conflito distributivo, democracia, legitimidade e variabilidade institucional. Tal empreitada ocorre por meio de análise empírica, realizada segundo as conformações de economia política vigente, refletindo o contexto no qual a sociedade está inserida. A partir de tal crítica, por meio do ordenamento jurídico, são formatadas ferramentas para discutir as condições básicas da vida social, reformando os arranjos institucionais existentes, conferindo-lhes maior eficácia, bem como criando ou extinguindo instituições conforme seja necessário. Para se entender esta relação, cumpre analisar, inicialmente, o conceito de economia política, o qual parte do pressuposto de que política e economia são indivisíveis, ou seja, as decisões econômicas possuem um viés político, devendo ser analisadas dentro do contexto social. Este foi a primeiro nome que a ciência econômica teve em sua história, se referindo, nos séculos XVII e XVIII, à produção, circulação e distribuição de riqueza, não sendo possível dissociar a economia da política. A economia política é o campo que busca compreender a realidade econômica em seu contexto político, social, histórico, geográfico e jurídico. Para Nusdeo (2001, p. 92):
Jonh Reitz (2001, p. 1.123-1.124) entende, corretamente, que a economia política é um princípio estruturante do Direito, correspondendo ao meio pelo qual o Estado interfere na esfera individual econômica do indivíduo, variando ao longo do tempo de acordo com o contexto no qual a sociedade esta inserida. De acordo com Reitz (2001, p. 1.124), os princípios de economia política são enunciados normativos que refletem os conceitos que predominam dentro dos países acerca de qual deve ser a relação adequada entre os indivíduos e o Estado, figurando, assim, como um importante elemento que modela o Direito de cada país, sendo possível, por meio de uma análise histórica de suas conformações, entender as vicissitudes de cada ordenamento jurídico. Diogo Coutinho e Mario Shapiro (2013, p.1-2) entendem que: a economia política e Direito possuem uma relação de vasos comunicantes no seguinte sentido: i) a economia política refere-se às opções de organização econômica e o modo que atenderão as necessidades da população, refletindo na estruturação do Direito e das instituições; e, ii) o ordenamento jurídico oferece os instrumentos normativos e arranjos institucionais pelos quais os objetivos da política econômica serão concretizados por meio de políticas públicas, forjando as ferramentas de intervenção estatal na economia.
Verifica-se que, em qualquer teoria de economia política, o Estado tem papel central, tanto para se defender uma maior autuação deste na economia, quanto o contrário, sendo a de-
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a economia política é o segmento ou a versão didática da ciência econômica com um enfoque destinado precisamente a fazer a síntese entre análise estrita e aplicação, entre teoria e prescrições normativas, juntando as partes artificialmente separadas para efeito de análise, com vistas a apresentar o fenômeno econômico na sua inteireza e em todas as suas dimensões.
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cisão de não intervenção também uma decisão estatal. Ao analisar a questão, Reitz (2001, p. 1.139-1.140) identifica duas correntes filosóficas que explicam a concepção do papel do Estado na economia: i) a primeira é baseada na filosofia de Thomas Hobbes, a qual permite uma interpretação mais abrangente da atuação do Estado; e, ii) a segunda concepção é a que considera a teoria de John Locke, que interpreta o Estado como um moderador entre os vários grupos sociais, com uma participação menor na economia. Segundo a teoria de Reitz, quanto mais centrada a economia política no Estado, como acontece na França e na Alemanha, maior a valorização, pelo Direito, da burocracia estatal, havendo maior presença do Estado na economia. Por sua vez, quanto mais focada no mercado for a economia política, como ocorre nos Estados Unidos, maior a valorização do indivíduo em detrimento da burocracia estatal, com um Estado regulador menos presente na economia. O que é possível verificar é que Direito e economia política possuem uma intrínseca relação de influência mútua, retroalimentando-se mutuamente ao longo do tempo, conforme o ambiente sócio-político da sociedade se altera. A economia política está equidistante entre o direito, de um lado, e a economia do outro, sendo possível, através de sua análise, entender questões concernentes ao ordenamento jurídico de um determinado país. O ordenamento jurídico é a instituição basilar dos demais arranjos institucionais, os quais foram juridicamente moldados de acordo com as conformidades da economia política. Dessa forma, é correto o entendimento de que o Direito é o arranjo institucional necessário a institucionalizar e objetivar os conceitos do capitalismo, que irão servir de força motriz da economia do país. Porém, ao fazê-lo, não o realiza de forma independente, mas sim dentro dos contornos e cenários traçados pela economia política, que lhe servem como princípio estruturante que delimita seus contornos. De acordo com Diogo Coutinho e Mario Shapiro (2013, p. 3-4), a economia política admite que o capitalismo é processo histórico, somente podendo ser analisado através do contexto no qual a sociedade encontra-se inserida. Segundo essa teoria, em cada época há uma ligação peculiar entre o papel do Estado e instituições jurídicas dentro de um cenário econômico, de acordo com as variações peculiares de cada momento. Portanto, deve-se reconhecer que o capitalismo varia de acordo com aspectos ideológicos referentes ao mercado e ao Estado, bem como relativos aos arranjos institucionais de cultura, política, economia e Direito. De tal sorte, não há uma economia política homogênea, mas tantas quantas forem os contextos históricos nos quais a sociedade está inserida. No Brasil, a Constituição de 1988 apresenta diversos dispositivos para regular a ação estatal na economia, determinando momentos de maior ou menor atuação, bem como elencando os arranjos institucionais disponíveis para o Estado intervir, direta ou indiretamente, no domínio econômico. Nestas conformações, faz-se presente a economia política, que variaram de acordo com a evolução do contexto sócio-político da sociedade brasileira.
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5 O NOVO ATIVISMO ESTATAL DO BRASIL E OS DESAFIOS JURÍDICOS Assim como em outros países, o Brasil vivenciou momentos históricos desenvolvimentistas alternados com momentos liberais, ou seja, contextos de maior presença do Estado na economia com de maior distanciamento estatal do mercado, sempre refletindo inflexões de economia política. As alterações nestas conformações terminam por criar desafios institucionais, em decorrência da necessidade de adaptação ao novo contexto. Para se entender o atual desenho institucional do Brasil e os desafios existentes, deve-se traçar um estudo histórico da evolução da economia política brasileira. Ao analisar a questão, Coutinho e Shapiro (2013, p. 2) identificam três momentos: i) desenvolvimentismo e o direito econômico interventor, existente no país principalmente nas décadas de 1960 e 1970; ii) neoliberalismo moderado e regulacionismo econômico, com seu auge na década de 1990; iii) novo ativismo estatal e direito econômico seletivo e indutor, designado de Novo Ativismo Estatal, iniciado a partir de 2002, que ganhou força após a crise financeira de 2008. Coutinho e Shapiro (2013, p. 19) afirmam que o Novo Ativismo Estatal trata-se de uma configuração de economia política que reúne: i) ativismo estatal indutor e seletivo; ii) moderação na discricionariedade e reforço de mecanismos de legitimidade democrática; e, iii) indução desenvolvimentista com políticas industriais e de redução da desigualdade. Acerca deste contexto histórico das conformações de economia política existentes no Brasil, algumas considerações devem ser feitas. Em primeiro lugar, deve-se notar que, dentro dos modelos de Reitz (2001, p. 1.139-1.140), o Brasil, mesmo nos momentos de neoliberalismo moderado, entendendo necessária uma presença maior do Estado na economia, de sorte a pos-
o seu surgimento foi algo não planejado, referindo-se a uma experiência de desenvolvimento não acabada ou consolidada, tendo sido gerado por diversos fatores relativos ao contexto político, econômico e social, dos quais merecem destaque: i) oportunidade política, relativa a eleição, em 2002, do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, representando a chegada ao poder de um partido ideologicamente comprometido com um maior papel do Estado na economia e na sociedade; ii) insatisfação do setor produtivo com o cenário econômico de desaceleração do crescimento e alta taxa de desemprego; e, iii) cenário, a partir de 2008, de pós-crise financeira global.
Ademais, ainda em conformidade com Coutinho, Shapiro e Trubek (2013, p. 7-8), este modelo é marcado pela experimentação institucional e mudança gradual, caracterizando-se, fundamentalmente: i) pela continuidade da política macroeconômica neoliberal do governo anterior, lastreada na responsabilidade fiscal, taxa de câmbio flutuante e metas de inflação; e, ii) pela adoção de políticas microeconômicas de indução de crescimento que compensam os efeitos
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sibilitar o desenvolvimento econômico, conferindo bem-estar geral à população, ou seja, privilegiando a ideia de Estado de bem-estar social; Em segundo lugar, interessante notar algumas características deste Novo Ativismo Estatal. Coutinho, Shapiro e Trubek (2013, p. 12-13) fazem o seguinte destaque acerca do assunto:
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muito embora economistas afirmem que as elevadas taxas de juros são explicadas pela política monetária ortodoxa, metas e ajustes fiscais insuficientes para garantir um resultado nominal positivo ou subsequentes choques externos e internos que aumentam a percepção de risco do país no cenário internacional, o principal motivo
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colaterais dessa política de origem neoliberal, tais como política industrial e política social mais robusta. Em terceiro lugar, é interessante observar que este novo ativismo estatal brasileiro está em linha com uma corrente otimista que defende a função instrumental do ordenamento jurídico no desenvolvimento, denominada direito nos Estados em desenvolvimentos, segundo a qual, de acordo com Prado (2010, p. 6), “para que o Direito possa atingir plenamente o seu mister, é necessária uma presença estatal no sentido de garantir o desenvolvimento”. A atuação do Estado, assim, é um importante meio de promoção, pelo ordenamento jurídico, do desenvolvimento, devendo ser realizado para estruturar os arranjos institucionais que os instrumentalizam. Neste sentido, Chang e Peter Evans (2000, p. 2) afirmam que “o desenvolvimentismo é um clássico exemplo de como as instituições podem atuar no sentido de promover o desenvolvimento”. Importante pontuar aqui a análise de Evans (1992, p. 163), a qual entende que a atuação estatal pode ser determinante para o desenvolvimento do país, como no caso de Japão, Coréia do Sul e Taiwan, na hipótese de haver uma burocracia eficiente, capaz de criar um ambiente propício para a conjunção de investimentos externos com os esforços domésticos, buscando uma parceria entre as instituições e organizações. Por outro lado, Evans (1992, p. 149-150) cita o modelo do Estado predatório “no qual a atuação estatal gera empecilhos ao desenvolvimento em razão de uma burocracia corrupta e de arranjos institucionais ineficientes, como é o caso do Zaire”. Neste Estado, a falta de arranjos institucionais adequados e a existência de uma estrutura política e estatal corrupta, voltada exclusivamente aos seus próprios interesses e não aos da coletividade, levaram o país a uma grave crise econômica e social, causando enormes problemas humanitários, ou seja, em outras palavras, foram na direção oposta do desenvolvimento econômico. De acordo com Evans (1992, p. 166), o Brasil está enquadrado em um terceiro modelo, composto por países que, não obstante tenham conseguido avanços recentes, ainda encontram dificuldades para se desenvolver. No caso brasileiro, muito embora tenha se verificado certo grau de desenvolvimento nos últimos anos, ainda existem problemas institucionais decorrentes de instrumentos burocráticos sem muita base técnica, ineficientes e com surtos de corrupção. Tais entraves institucionais afetam a produção, crescimento e distribuição das riquezas, fazendo com que o desenvolvimento não alcance toda população. Logo, o Brasil não conseguiu estruturar arranjos institucionais sólidos que possibilitem o desenvolvimento. Os reflexos destes problemas institucionais, por exemplo, são as altas taxas de juros, que atravancam o crescimento econômico e o desenvolvimento brasileiro. Nesse sentido, importante destacar o entendimento de Pérsio Árida, Edmar Lisboa Bacha e André Lara-Rezende (2004, p. 2-3):
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é a incerteza jurisdicional, que pode ser decomposta: i) no risco do Estado alterar o valor do contrato antes do momento de sua execução; ii) na hipótese de interpretação desfavorável ao investidor no caso de judicialização da relação contratual.
i) viabilizar o arcabouço normativo e institucional, tanto no sentido de funcionalizar novos objetivos de economia política, quanto no sentido de combinar ferramentas e instrumentos jurídicos já existentes; ii) assegurar a legitimidade, almejando uma melhor combinação possível entre efetividade e legitimidade, entre capacidades políticas e capacidades técnico-administrativas; e, iii) forjar governança institucional, por meio de imaginação institucional para mapear problemas e formular novas arquiteturas institucionais.
Verifica-se, portanto, que na referida nova conformação de economia política, o Direito deve instrumentalizar o Estado de meios para remover as barreiras estruturais que impedem
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Um interessante aspecto levantado pelos autores é que esta incerteza jurisdicional é resultado de uma longa tradição do país de um processo histórico, no qual houve manipulação de indexadores, mudanças de padrões monetários, congelamento de bens financeiros, anulação judicial de cláusulas de reajuste, alterações repentinas de entendimento tributário sobre os contratos em vigor, atrasos nos pagamentos de débitos perante terceiros. Em decorrência destas práticas, houve um aumento na percepção de risco do país, com investidores exigindo um prêmio maior em operações de longo prazo com o governo. O conceito de incerteza jurisdicional se conforma, segundo Arida, Bacha e Lara-Resende (2004, p. 7), com o crescente consenso de que as instituições de determinada sociedade são determinantes para seu desempenho econômico. Neste sentido, verifica-se que o principal problema do Brasil refere-se à incapacidade do país de desenvolver instituições sólidas, lastreadas em uma burocracia estatal crível, que crie os estímulos necessários para o desenvolvimento. Assim, para que o novo ativismo estatal surta efeito, deve-se resolver tais entraves institucionais, aperfeiçoando-se as instituições para conferir maior eficiência ao aparato estatal e sanar o ambiente de incerteza jurisdicional, podendo ser este um dos grandes desafios do Direito neste novo cenário. Ademais, conforme anteriormente mencionado, a economia política e o ordenamento jurídico possuem uma relação de influência mútua. Dessa forma, os arranjos jurídicos do Novo Ativismo Estatal possuem algumas feições próprias que tanto influenciam como são influenciadas por esta nova experiência estatal. Neste sentido, Coutinho, Shapiro e Trubek (2013, p. 22-23) afirmam que este novo modelo traz para o Direito o desafio de desempenhar novas funções, quais sejam: i) salvaguardar a flexibilidade das políticas e regras emanadas pelo Estado; ii) estimular a sincronia entre instituições públicas e organizações privadas; iii) estruturar a sinergia entre os atores; e iv) assegurar legitimidade das intervenções estatais. Em outro texto, Coutinho e Shapiro (2013, p. 26) identificam as seguintes funções do Direito:
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o desenvolvimento, aperfeiçoando os arranjos institucionais, aumentando a eficiência da burocracia estatal, de sorte a conferir os estímulos necessários ao desenvolvimento.
Verificou-se que o campo do Direito e desenvolvimento é complexo por tratar de conceitos de textura aberta e em constante evolução, que variam de acordo com os modelos de desenvolvimento de cada contexto de economia política. Cada momento histórico de economia política vai atribuir um papel diferente ao ordenamento jurídico de cada Estado, influenciando nos arranjos institucionais existentes. As instituições são essenciais ao desenvolvimento, impregnando-se na sociedade por meio do Direito, sendo este o responsável pela sua objetivação e institucionalização. Ademais, o próprio ordenamento jurídico, por ser o mais importante arranjo institucional, uma vez que cria, modifica e extingue instituições, também é um elemento primordial para o desenvolvimento. As instituições são importantes por se tratar de regras que estruturam relações sociais que alteram e são alteradas pela sociedade, não apenas para restringir, mas também para promover e constituir comportamentos que pavimentem o caminho do desenvolvimento. A variabilidade institucional é histórica e politicamente situada, de modo que não há modelo replicável em qualquer momento e em qualquer lugar que posa ser adotado. Importante destacar que, em seu mister de arquitetar e imaginar os arranjos institucionais, o Direito não age sozinho, sendo as conformações de economia política existentes em determinado país de grande importância, auxiliando na criação, manutenção, aprimoramento ou, inclusive, extinção de outros arranjos institucionais. Pois bem, na história econômica brasileira é possível identificar momentos de maior e de menor presença do Estado neste cenário. Atualmente, vem ganhando força desde a última década o modelo do Novo Ativismo Estatal, o qual criou desafios ao Direito, que passou a ter de exercer funções que instrumentalizam o Estado de meios para viabilizar e construir comportamentos que levem ao desenvolvimento, tendo-o mais como ator deste processo. O desenvolvimento do país somente será alcançado com a remoção de barreiras estruturais que excluem parcela da sociedade da vida econômica, cabendo ao Direito criar meios de remover estes empecilhos, por meio de sua função de arquitetar e imaginar novos arranjos institucionais, bem como aperfeiçoar os já existentes.
REFERÊNCIAS ARIDA, Persio; BACHA, Edmar Lisboa; LARA-RESENDE, André. Credit, interest, and jurisdictional uncertainty: conjectures on the case of Brazil. Rio de Janeiro, 2004. CHANG, Ha-Joon. Institutions and economic development: theory, policy and history in
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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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ABSTRACT The discussion on the Law and economic development is complex, creating the necessity of defining development and institutions. Institutions are important for development, is embedded in society through Law, and through this it is the objectification and institutionalization of institutional arrangements. The legal system is the most important institution because it is through it that institutional arrangements are created, modified and extinguished. The political economy helps, facilitating the understanding of existing institutions in society. It is also important because of the influence it exerts on legal harvest and institutional arrangements, being an architectural principal of Law. KEY-WORDS: Development. Law. Institutions. Economy. society.v
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THE FUNCTION OF LAW IN THE ECONOMIC DEVELOPMENT AND ITS RELATION WITH THE POLITICAL ECONOMY
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A RAZÃO PRÁTICA COMO LIAME ENTRE O RACIONAL E O RAZOÁVEL EM “UMA TEORIA DA JUSTIÇA” Victor Cristiano da Silva Maia1
RESUMO O presente artigo busca compreender qual é o papel da razão prática na interpretação rawlsiana de Kant. Para isso, leva em consideração a maneira pela qual a própria racionalidade prática kantiana repercute no conceito de razoabilidade em Rawls, no intuito de identificar os distintos estatutos e âmbitos de sua aplicação. Propõe-se, portanto, entender como a racionalidade prática kantiana é aproveitada e reconfigurada por Rawls à luz da especificidade da proposta teórico-política de “Uma teoria da justiça”, notadamente no que diz respeito à noção de consenso sobreposto. Palavras-chave: Razão Prática. Racionalidade. Razoabilidade.
“A justiça é a virtude primeira das instituições sociais, assim como a verdade o é dos sistemas de pensamento.”
1 INTRODUÇÃO As sociedades contemporâneas são pautadas pelo dissenso moral, uma vez que o pluralismo de ideias, advindo do ideal democrático, faz com que o Estado não imponha uma con1 Graduando do curso de Direito da Universidade Federal de Lavras (UFLA).
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(John Rawls)
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cepção única de bem, excelência humana ou valor moral supremo, cabendo aos seus cidadãos seguirem seus próprios ideais de vida. Assim, o respeito com relação àqueles que devem ser considerados como os fins últimos de cada cidadão é uma condição necessária para o bom funcionamento das instituições políticas, notadamente em uma concepção teórica, liberal e igualitária. No intuito de alcançar um conteúdo consensual mínimo que possa pautar essas decisões morais, John Rawls busca encontrar uma determinada configuração de valores que seja capaz de enfrentar essa problemática. A tal fim, como é notório, Rawls propõe que os indivíduos sejam compreendidos, na posição original, como pessoas morais, isto é, agentes livres que, através do uso de racionalidade, são capazes de identificar princípios aptos à formulação de uma concepção de justiça. O projeto de Rawls, portanto, a partir do pressuposto do intrínseco pluralismo moral que caracteriza as sociedades contemporâneas, propõe-se a dar um passo no intuito de articular uma perspectiva normativa preferível a outras, a saber, que respeite um rol de questões políticas que envolvam um desacordo moral. Na busca dessa determinada configuração de princípios e valores orientadores da sociedade, Rawls enfrenta a doutrina utilitarista, a qual julga dominante no campo teórico-político e amplamente aceita até então. Para isso, ele se debruça em uma interpretação profunda da matriz kantiana no sentido de buscar um princípio que possa servir de base para a escolha de princípios e valores, sem, contudo, partir de uma configuração predeterminada do conteúdo normativo. Em outras palavras, Rawls aproveita a filosofia moral kantiana para retomar uma concepção político-liberal-igualitária, que leve em conta o valor fundamental dos indivíduos como pessoas racionais, livres e iguais. Assim, a interpretação rawlsiana de Kant adapta, no contexto de Uma teoria da justiça, algumas formulações teóricas do filosofo prussiano. Nessa senda, o artigo pretende expor a forma como John Rawls promove essa interpretação dos conceitos kantianos e os adapta à sua teoria, através da reformulação dos conceitos da razão pura prática e da razão prática empírica, reestruturados como racionalidade e razoabilidade na obra rawlsiana.
Um primeiro aspecto importante é a delimitação do objeto de Uma teoria da justiça, que pode ser abordado em uma perspectiva estreitamente política. De acordo com Rawls, é a estrutura básica da sociedade e de suas instituições que se torna objeto fundamental da análise da teoria política. Nesse sentido (RAWLS, 2016, p.8) reconhece: [...] o modo como as principais instituições sociais distribuem os direitos e deveres fundamentais e determinam a divisão das vantagens decorrentes da cooperação social. Por instituições mais importantes entendo a constituição política e os arranjos sociais mais importantes [...]
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2 CONCEITOS FUNDAMENTAIS
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A estrutura básica da sociedade, portanto, busca encontrar os arranjos sociais fundamentais, oriundos de um consenso sobreposto de valores que surge a partir de um acordo original, análogo, segundo Rawls, ao pacto social no estado de natureza do contratualismo clássico (cf. RAWLS, 2016, p.14). É partindo dessa situação hipotética, reconfigurada sob a forma de posição original, que Rawls pretende chegar a uma determinada configuração de valores fundamentais, no intuito de definir os princípios que atribuirão direitos e deveres fundamentais aos cidadãos, através da formulação de uma concepção de estrutura básica razoavelmente justa ou equitativa. Faz-se necessário, portanto, que, na determinação de princípios e valores fundamentais, seja minimizado o conflito entre as diversas doutrinas, uma vez que cada cidadão possui um projeto particular de vida, o que, de certa forma, acabaria por influenciar nas escolhas dos bens primários e dos próprios princípios de justiça. Nesse sentido, pode-se observar, conforme o filósofo Kymlicka (2006, p.66) que: [...]a concepção de justiça é composta de uma ideia central: todos os bens primários sociais – liberdade e oportunidade, renda e riqueza, e as bases do respeito de si mesmo – devem ser distribuídos igualmente, a menos que uma distribuição desigual de qualquer um ou de todos estes bens seja vantajosa para os menos favorecidos.
[...] Rawls sugere a posição original como método para que se possa entrar em acordo acerca de princípios de justiça válidos em uma sociedade liberal e democrática, sendo que, desde início, tal objetivo define a própria posição original no que diz respeito às condições de possibilidade. De outro lado, a caracterização da posição original em tais termos não deve deixar pensar em uma operação de abstração falha ou incompleta, mas apenas orientada, pois, como apontamos, a aceitação de determinados pressupostos e condições – isto é, que estejamos nos referindo a seres racionais que mutuamente se reconhecem como livres e iguais do ponto de vista de sua organização jurídico-política – não representa senão a delimitação de um contexto do qual a própria concepção da justiça como equidade não pode prescindir.
3 DE KANT A RAWLS: UMA INTERPRETAÇÃO
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Dois são os objetivos principais da teoria de Rawls. O primeiro é contrastar sua teoria com o que ele considera a ideologia prevalecente no que se refere à justiça distributiva, a saber, o ideal da igualdade de oportunidades. O segundo é a utilização de princípios de justiça baseados em um contrato social hipotético que sirva de fundamento para a definição de princípios de governo da sociedade. Esse contrato social hipotético, como dito, é chamado de posição original ou de véu da ignorância. Contudo, conforme alerta o professor Tredanaro (2017, p.72), não se pode confundir a posição original como uma situação de absoluta neutralidade, pois:
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Os agentes racionais, livres e iguais tentam chegar a uma configuração específica de princípios e valores capaz de levar em consideração uma concepção política que possa servir de base à razão pública, na determinação dos elementos essenciais de uma sociedade em que cada cidadão possa dedicar-se a busca e realizar seu próprio projeto de vida. Nesse aspecto, a cooperação e a razoabilidade assumem um papel relevante, a fim de viabilizar concretamente certo consenso sobreposto acerca de valores políticos básicos. Com isso, Rawls retoma os conceitos de razão prática pura e da razão prática empírica da obra de Kant e reconstrói esses conceitos no intuito de adequá-los à sua teoria. De modo particular, Rawls refere-se à Fundamentação da metafísica dos costumes ressaltando que:
Kant, na segunda seção da Fundamentação da metafísica dos costumes, ao refletir sobre a causalidade e sobre o imperativo moral, chega à conclusão de que “Só um ser racional tem a faculdade de agir segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios, ou uma vontade. Visto que se exige a razão para derivar de leis as ações, a vontade nada mais é do que razão prática” (KANT,2009, p.185). Logo em seguida, Kant propõe a diferenciação entre imperativo categórico e imperativo hipotético, atribuindo somente ao primeiro um valor moral, uma vez que só esse, por se tratar de universal e incondicionado, pode ser fundamento do juízo moral, ou seja, do juízo prático determinado pela razão pura. O imperativo categórico assume essa feição, uma vez que o conteúdo valorativo do princípio prático é esvaziado, sendo a ação orientada pura e simplesmente pela mera forma da razão que impulsiona a vontade, e não com vistas a um determinado fim exterior a ele. O imperativo hipotético, por sua vez, tendo em vista o fato de que o fim que guia a ação já está determinado, oferece ao agente um conteúdo valorativo particular e condicionado, não podendo possuir um valor moral e nem ser visto como fundamento para a universalização dos juízos, mas apenas como determinação racional, embora não pura, da vontade (KANT, 2009, p.189). Nesse sentido, parece que Rawls utiliza a razão pura prática kantiana reconduzindo-a à esfera da razoabilidade, enquanto a razão (instrumental) prática ficaria atrelada em Rawls à esfera da racionalidade em sua acepção calculadora dos meios mais adequados a determinados fins. As doutrinas teleológicas, neste ponto, são severamente criticadas por Kant, uma vez que, tendo em vista o fato de que o valor moral que as fundamentam é justamente um fim predeterminado, como por exemplo, a busca da “felicidade” ou qualquer outro elemento que as justifique, não levam em consideração a vontade “boa”, e a ação não é deliberada por mero dever, mas deixa-se levar pelas inclinações. A doutrina moral por excelência conforme Kant (2009, 169) deveria esvaziar-se de conteúdo e guiar-se a partir de um mandamento da razão pura à vontade, expresso através do imperativo categórico, pois, somente assim, encontra-se o valor
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A distinção entre o razoável e o racional remonta, acredito, a Kant: ela se expressa na distinção de Kant entre imperativo categórico e imperativo hipotético, em Foundations e em outros de seus textos. O primeiro representa a razão prática pura e o segundo a razão prática empírica. (2011, p.57, nota de rodapé)
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supremo da moralidade. Neste aspecto, Rawls também enfrenta um problema análogo ao de Kant, uma vez que há uma predominância das doutrinas que buscam uma determinada configuração específica de valores, entre elas destaca-se o utilitarismo, o qual apresenta uma concepção de justiça mera e simplesmente conceituada através da soma de felicidades individuais. Assim como Kant, Rawls também tem que lutar contra uma concepção teórica popular amplamente aceita na filosofia política de seu tempo. Rawls busca, então, legitimar a escolha de determinados princípios normativos que possam orientar a sociedade, sem, contudo, configurarem-se previamente através de um conteúdo valorativo determinado, pois, do contrário, seria impossível respeitar a convivência entre cidadãos livres e iguais, tanto do ponto de vista moral, quanto do ponto de vista político. Ou seja, seriam impossíveis arranjos sociais que respeitassem um razoável pluralismo de valores. Ao efetuar esse “procedimento de escolha” o filósofo americano busca, com isso, aproximar-se ao máximo do esvaziamento de todo e qualquer conteúdo exterior que possa influenciar no processo de determinação dos princípios de justiça da estrutura básica. Portanto, apesar da reconstrução do imperativo categórico de Kant como ligado à ideia de razoabilidade, Rawls é fiel ao espírito do legado kantiano na medida em que considera a razão prática pura, a qual, expressa através do seu uso público, serve como base para a fundamentação e justificação dos juízos morais, isto é, de juízos fundamentais acerca dos quais é impossível não chegar, em âmbito político, a um consenso sobreposto. Contudo, no que diz respeito à letra da filosofia kantiana, não se pode deixar de notar certo salto dado por Rawls, ao conferir ao imperativo categórico uma função essencial em sua teoria, na medida em que a normatividade categórica é relacionada à razoabilidade, enquanto em Kant não há rastro dessa noção. Em sua concepção estreitamente política de justiça, Rawls parece buscar um sentido mais restrito também para o uso da razão pura prática, que manda categoricamente do ponto de vista moral. Rawls vê nessa ideia um papel político mais específico que a razão passa a assumir, como disposição de reconhecer os limites de execução de princípios práticos que, embora não determinados racionalmente a partir de valores prévios, só se realizam em determinadas consequências político-sociais, já postas. Por outras palavras, os princípios de justiça identificados na posição original sob o véu de ignorância, deverão ser compreendidos como princípios exequíveis em um dado contexto político-social de pluralismo de valores substantivos. Não se pretende, assim, desvalorizar o importante papel que Rawls confere ao véu da ignorância na definição e escolhas dos princípios, uma vez que o fato de os agentes racionais não saberem qual posição social irão ocupar e como irão participar da distribuição de bens permite que eles deliberem de forma a excluir preferências ligadas a valores previamente determinados. Nesse ponto, a racionalidade pura prática é expressa como razoabilidade graças à possiblidade de que todos exerçam sua faculdade de escolha como sujeitos incondicionados, isto é, livres e iguais. Nesse sentido, Rawls interpreta Kant: “[...] quando nos sugere testar nossa
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máxima ponderando como as coisas passariam a ser se ela fosse uma lei universal da natureza, Kant tem de supor que não conhecemos nosso lugar dentro desse sistema natural imaginado” (RAWLS, 2016, p.166, nota de rodapé). 3.1 A reformulação rawlsiana O filósofo americano, vê na ideia do razoável, por outro lado, como o exercício de uma virtude, ou seja, uma disposição – e não um mandamento da razão – que se propõe a fazer com que haja uma espécie de adequação dos fins particulares ao fim superior do conjunto político-social, de forma que todos ponderem em conjunto e, assim, decidam qual a melhor configuração dos valores primeiros que irão servir de guia na definição dos direitos e deveres fundamentais e na divisão dos benefícios, sem, contudo, que ninguém conheça qual o seu respectivo quinhão social. Assim, [...] o racional é uma deia distinta do razoável e se aplica a um agente único e unificado
Desta forma, a razão expressa através da ideia de razoabilidade dá um passo além daquela trazida através de sua expressão como estreita racionalidade, uma vez que esta passa a reconhecer, não mais só o que é racional escolher, mas também aquilo que todos sujeitos em uma mesma condição, qual seja, de livres e iguais, escolheriam, ou tenderiam a escolher. Ressalta-se aqui, portanto, o importante papel que assume a cooperação social, o fato de que, estes indivíduos, inseridos em uma esfera pública, esperam que todos os outros cooperem a fim de encontrar um consenso, um equilíbrio, o mais razoável possível que oriente essa dada condição de pluralismo de valores. Neste ponto, Rawls se vale ideia do imperativo categórico uma vez que passa a considerar que todos os sujeitos, pelo fato de serem racionais, decidiriam conforme uma maneira que levasse em consideração cada outra pessoa, fazendo com que, cada máxima individual pudesse se tornar universal. Assim, ele reconhece um mandamento da razão, pois tende a identificar um dever de cooperação. Conforme Tredanaro, “racionalidade das partes e razoabilidades das restrições, juntamente, concorrem a especificar os requisitos do raciocínio correto para a escolha dos princípios que devem regular as instituições básicas de uma sociedade aceita como liberal e democrática” (2017, p.72). A racionalidade, apesar de não se confundir com a razoabilidade encontra-se com esta relacionada, e é um componente da escolha e execução de princípios para uma ideia de socieda-
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(quer se trate de um indivíduo ou de uma pessoa jurídica), dotado das faculdades de julgamento e deliberação, ao buscar realizar fins e interesses que são peculiarmente seus. O racional aplica-se ao modo como esses fins e interesses são adotados e promovidos, bem como à forma como são priorizados. Mas os agentes racionais não se limitam ao cálculo de adequação meios-fins, porque se veem obrigados a avaliar fins últimos de acordo com o significado que têm para o próprio plano de vida como um todo e segundo o modo como esses fins se coadunam e se complementam mutuamente. (RAWLS, 2011, p.60)
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de cujo fim é a cooperação equitativa. A esse respeito é preciso pontuar que os agentes racionais na posição original não têm uma moral específica visando à cooperação social; trata-se, antes, apenas da moralidade compreendida kantianamente como razão pura prática que confere aos agentes racionais a possibilidade de emitirem juízos e se valerem de um senso de justiça. Uma vez escolhidos os princípios incondicionados orientadores e uma determinada concepção de justiça embasada nesses princípios, há uma expressão equitativa e cooperativa de valores, que, por sua vez, passam pelo crivo da razoabilidade, no intuito de chegar a um equilíbrio. A esse equilíbrio, Rawls denomina como equilíbrio reflexivo, que é a forma pela qual cada pessoa decide, por meio de uma reflexão racional, aquilo que constitui e define sua própria concepção de “bem” através de um juízo ponderado, isto é, um sistema de fins que lhe é razoável procurar. Há uma pressuposição de que a pessoa, ao emitir o juízo, tem a capacidade, a oportunidade e o desejo de chegar a uma decisão correta, e assim também o fazem os outros membros do grupo, levando em consideração a concepção de “bem” adotada. Juntos, todos os sujeitos morais de uma sociedade democrática buscam chegar a um consenso de valores reconhecidos por todos, na tentativa de compatibilizar os princípios escolhidos e os juízos ponderados.
Com base nessas ideias, é perceptível que Rawls atribui ao razoável um sentido mais restrito e a ele associa, primeiro, a disposição de propor e sujeitar-se a termos equitativos de cooperação e, segundo, a disposição de reconhecer a necessidade de ponderação do juízo político e aceitar suas consequências. Note-se que Rawls deixa claro o fato de que falar de razoabilidade é fazer referência a uma disposição, ao contrário da razão pura prática de Kant, que consiste em uma verdadeira imposição. Isso é um aspecto crucial na interpretação do conceito de razoabilidade, uma vez que essa disposição é decorrente do fato de que estão se considerando indivíduos em uma relação social e não isolados. Lembra-se aqui o fato de que sua busca por uma concepção de justiça é política e não metafísica. Nesse sentido, busca-se uma concepção de justiça capaz de se amoldar ao paradigma do Estado democrático de direito, que tenha como fundamento uma perspectiva moral elaborada com vistas a atender as instituições econômicas e sociais, levando em consideração uma concepção específica de justiça fundada na estrutura básica. É nesse aspecto que os conceitos de razoabilidade e racionalidade se destacam, pois são condição de possibilidade para a fundamentação dos juízos morais que servirão de base para a crítica das instituições. Diante disso, pode-se perceber que os conceitos de razoabilidade e racionalidade são conceitos práticos, que devem ser analisados no âmbito da ação política, mais precisamente como formas orientadoras para a estrutura básica da sociedade. Assim, a ideia central de Rawls é a de articular, de uma forma sistemática, uma teoria pela qual os indivíduos possam conceber a si próprios como cidadãos de uma sociedade liberal democrática. Para isso, seria essencial levarem consideração uma determinada configuração de valores políticos razoáveis, a fim de
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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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escapar de uma visão substancialista e única do bem, conforme a proposta pelo utilitarismo, no intuito de fazer conviver diferentes concepções morais no âmbito político. Ademais, tanto racionalidade quanto razoabilidade são articulações essenciais da razão pura prática, para que se possa chegar à ideia política fundamental, qual seja, proporcionar aos cidadãos a capacidade de escolherem princípios de justiça e uma concepção do bem não substancialista. Deve-se destacar o fato de que, apesar de serem distintas, racionalidade e razoabilidade operam em conjunto, no intuito de fazer com que os sujeitos políticos que deliberam na esfera pública possam confiar em certo grau de cooperação por partes dos outros, de modo que todos possam se beneficiar em relação a essas escolhas.
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_______, Uma teoria da justiça. 4. ed. Tradução de Jussara Simões. Revisão técnica e da tradução de Álvaro de Vita. São Paulo: Martins Fontes, 2016.
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in which Kantian practical rationality itself has repercussions on the concept of reasonableness in Rawls, in order to identify the different statutes and scope of its application. It is therefore proposed to understand how Kantian practical rationality is harnessed and reconfigured by Rawls in the light of the specificity of the theoretical-political proposal of â&#x20AC;&#x153;A Theory of Justiceâ&#x20AC;?, notably with regard to the notion of overlapping consensus. Keywords: Practical Reason. Rationality. Reasonability.
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A TUTELA DOS DIREITOS DOS USUÁRIOS DOS SERVIÇOS PÚBLICOS: BREVES APONTAMENTOS SOBRE A LEI Nº 13.460/2017 Júlio César Souza dos Santos1
RESUMO O presente artigo tem por escopo realizar breves comentários a respeito da recente Lei nº 13.460/2017, que dispõe sobre a defesa dos direitos dos usuários dos serviços públicos. Inicialmente, o estudo parte da exigência constitucional de regulamentação do tema e das circunstâncias de surgimento da lei. Contextualizado este cenário, serão analisadas suas principais disposições legais para que, criticamente, verifique-se até que ponto o diploma legislativo sedimenta, inova ou contradiz os aspectos defendidos pela doutrina pátria acerca dos serviços públicos. Palavras-chave: Serviços públicos. Lei nº 13.460/2017. Direitos dos usuários.
A constante adaptação diante das transformações organizacionais da sociedade traz consigo a necessidade perene de discussão acerca da amplitude do conceito de serviço público, tema debatido há séculos. Nesse sentido, o regime jurídico dos serviços públicos constitui uma das mais relevantes concepções do Direito Administrativo brasileiro, considerando-se sua matriz constitucional que traz ínsita em si diversos deveres do Estado perante a sociedade. Todavia, sabe-se que a coletividade experimenta, há décadas, uma crise de confiança
1 Graduando do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e pós-graduando em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG).
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1 INTRODUÇÃO
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em relação aos serviços públicos, ainda que prestados de forma indireta. Mesmo após a exigência de eficiência enquanto garantia constitucional, insculpida no caput do art. 37 da Constituição Federal de 1988 através da Emenda Constitucional nº 19/1998, a prestação de serviços públicos muito pouco evoluiu, notadamente em face da existência de mecanismos precários de controle administrativo. Assim, a descrença nos serviços estatais deve-se, em parte, à deficitária regulamentação capaz de garantir direitos básicos e mecanismos de controle a serem utilizados pelos cidadãos. Nessa ordem de ideias, buscou-se superar tal fato através da recente Lei nº 13.460/2017, publicada em 26 de junho de 2017. A justificativa do presente trabalho decorre da relevância jurídica e social do tema, tendo em vista a, até então, ausência de legislação garantidora de direitos básicos dos usuários dos serviços públicos. Justifica-se, ademais, pela amplitude da prestação de tais serviços, que irradia por toda a sociedade. Nessa perspectiva, o presente artigo possui como objetivo analisar criticamente as principais disposições da Lei nº 13.460/2017. De forma específica, buscar-se-á refletir até que ponto o diploma legislativo sedimenta, inova ou contradiz os aspectos defendidos pela doutrina pátria acerca dos serviços públicos. Outrossim, também se buscará verificar se a normativa, de fato, traz mecanismos de proteção aos usuários dos serviços públicos. Para tanto, será realizada uma breve contextualização sobre o tema a partir de sua exigência constitucional e das circunstâncias que levaram ao surgimento da lei objeto de estudo. Por fim, serão analisados os principais dispositivos da nova legislação, destacando-se as inovações e sua conformidade com o ordenamento jurídico pátrio.
O texto originário da Constituição Federal de 1988 já previa, em seu art. 1752, a exigência de edição de lei que dispusesse sobre o direito dos usuários e a obrigação de manutenção de um serviço público adequado (par. un., inc. II e IV, respectivamente). Não obstante a existência da Lei nº 8.987/95, aplicável ao regime de permissões e concessões públicas, a regulamentação dos direitos dos usuários dos serviços públicos prestados de forma direta pelo Estado ainda se demonstrava carente. De forma mais particular, a Emenda Constitucional nº 19/98 inseriu o § 3º no art. 37
2 Embora a Constituição Federal de 1988 tenha sido influenciada pela Escola Francesa do Serviço Público, nota-se a adesão a um modelo misto, fortemente influenciado pelo regime norte-americano das public utilities (utilidades públicas, em tradução literal). A principal distinção entre estes dois modelos reside na titularidade, pois enquanto no modelo francês o serviço público é titularizado pelo Estado, no modelo americano as public utilities são de titularidade dos particulares, com limitações estatais decorrentes do poder de polícia. Dessa forma, em decorrência do caráter historicamente liberal de sua ordem econômica, nos Estados Unidos não existe a categoria dos serviços públicos tal como conhecida no Brasil. Salvo raras exceções, as atividades são livres aos particulares, mas, em virtude do relevante interesse público, são submetidas a forte regulação estatal e controles diferenciados. Por conseguinte, ao reconhecer o caráter econômico dos serviços públicos constantes no art. 175 e subordinar a sua atuação aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, a Constituição Federal de 1988 aproximou os regimes citados, de forma semelhante ao ocorrido no âmbito da União Europeia (OLIVEIRA, 2011, p. 4-6).
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2 EXIGÊNCIA CONSTITUCIONAL E CONTEXTO DE SURGIMENTO
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da Constituição Federal de 1988, estabelecendo o prazo de 120 (cento e vinte) dias para a edição de lei que regulasse as formas de participação dos usuários, notadamente em relação às reclamações, avaliações periódicas da qualidade dos serviços, acesso aos registros e representação contra o exercício insatisfatório dos agentes públicos. Frente a esse cenário, no ano seguinte iniciou-se o trâmite legislativo do Projeto de Lei do Senado 439/1999, que tinha como objetivo regulamentar a matéria da proteção e defesa dos usuários dos serviços públicos. Após três anos de tramitação no Senado Federal, o projeto de lei seguiu para a Câmara dos Deputados como Projeto de Lei 6.953/2002. Contudo, diante da morosa tramitação do PL, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ingressou, no ano de 2013, com a Ação Direita de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 24, requerendo provimento jurisdicional que determinasse liminarmente a edição da legislação objeto do estudo. Pleiteou, ainda, em caráter cautelar, que fosse determinada a aplicação provisória do Código de Defesa do Consumidor (CDC) aos serviços públicos – em consonância com o entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal de Justiça3– enquanto não houvesse a edição da lei. No mesmo ano, o relator, Ministro Dias Toffoli, deferiu a liminar e fixou o prazo de 120 (cento e vinte) dias para a edição da lei em questão. Entretanto, não autorizou a aplicação subsidiária e provisória do Código de Defesa do Consumidor. O Congresso Nacional, no entanto, manteve-se inerte mesmo após a decisão do Supremo Tribunal Federal. Apenas no ano de 2015, treze anos após seu recebimento, a Câmara dos Deputados aprovou emenda substitutiva global e reenviou o projeto de lei ao Senado Federal, que aprovou o substitutivo com pequenas alterações no dia 06/06/2017. Finalmente, em 26/06/2017 foi sancionada e publicada a referida norma, tornando-se, então, a Lei nº 13.460/2017.
A Lei nº 13.460/2017 instituiu uma codificação mínima, que dispõe sobre normas gerais acerca dos mecanismos de proteção, defesa e participação dos usuários dos serviços públicos. Não obstante a inércia legislativa diante da necessidade imediata de sua edição, a entrada em vigor de tal instituto busca garantir respeito e efetividade a um agrupamento mínimo de direitos dos usuários, indispensáveis para a satisfação de direitos fundamentais. Nesse viés, o presente estudo passará a discorrer sobre os principais aspectos polêmicos e modernizadores trazidos em seu bojo. Deve-se advertir, inicialmente, que as disposições da lei não se aplicam imediatamente, de forma que os prestadores de serviço público terão razoável prazo para adaptarem-se às novas exigências legais. 3 Nesse sentido: SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1.659.509/SE. Segunda Turma. Rel. Min. Herman Benjamin. j. 02/05/2017. DJe 12/05/2017; SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AgInt no REsp 1.569.566/MT. Segunda Turma. Rel. Min. Herman Benjamin. J. 07/03/2017. DJe 27/04/2017; SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AgRg no AREsp 239.416/RJ. Primeira Turma. Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho. j. 26/02/2013. DJe 06/03/2013; SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AgRg no AREsp 183.812/SP. Segunda Turma. Rel. Min. Mauro Campbell Marques. j. 06/11/2012. DJe 12/11/2012.
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3 CONSIDERAÇÕES SOBRE LEI Nº 13.460/2017
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Assim, estabelece o seu art. 25 o período de vacância da lei de 360 (trezentos e sessenta) dias para a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios com mais de 500.000 (quinhentos mil) habitantes; 540 (quinhentos e quarenta) dias para os municípios que possuam entre 100.000 (cem mil) e 500.000 (quinhentos mil) habitantes; e 720 (setecentos e vinte) dias para os municípios com menos de 100.000 (cem mil) habitantes.
O art. 1º, § 1º, da Lei nº 13.460/2017 estabelece que seu âmbito de aplicação abrange a Administração Pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Todavia, tal dispositivo será aplicado apenas de forma subsidiária em relação aos serviços públicos prestados por particular. Vale destacar que o recente regulamento não aponta de modo preciso a quais leis suas disposições serão aplicadas subsidiariamente. E mais, também não especifica quais particulares estão sujeitos a sua disciplina. Apesar da imprecisão, os particulares aos quais a lei se refere diz respeito aos concessionários e permissionários, não se destinando aos prestadores de serviço público não privativo, posto que exploram o serviço em regime de atividade econômica em sentido estrito. De outro lado, o art. 2º, inc. III, afirma que Administração Pública é “órgão ou entidade integrante da Administração Pública de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, a Advocacia Pública e a Defensoria Pública”. À vista disso, verifica-se, inicialmente, a falta de rigor técnico do legislador ao excluir do conceito de Administração Pública o Ministério Público e o Tribunal de Contas. Por óbvio, são órgãos que também fazem parte do conceito de Administração Pública proposto pela lei e, por conseguinte, devem se submeter às suas disposições. Contudo, o novo diploma não se absteve de conceituar o alcance do serviço público. Saliente-se que, de acordo com o art. 2º, inciso II, considera-se serviço público a “atividade administrativa ou de prestação direta ou indireta de bens ou serviços à população, exercida por órgão ou entidade da Administração Pública”. Face as asserções apresentadas, este conceito aproxima-se da concepção de serviço público proposto pela l’Ècole du Service Publique (Escola do Serviço Público francesa) no início do século XX, que teve em Léon Duguit seu maior exponente4. Na definição de Duguit, serviço público seria toda e qualquer atividade que vise atender as necessidades coletivas. Em outras palavras, seriam as atividades cujo cumprimento deve ser assegurado, regulado e controlado
4 Costuma-se afirmar que a noção de serviço público surgiu na França após a Revolução Francesa, cujo marco inicial ocorreu com o caso Blanco. Neste caso, foi requerida indenização em razão do atropelamento da menina Agnés Blanco por um vagão da Cia. Nacional do Fumo, entidade integrante da Administração Pública francesa. Dessa forma, suscitou-se, durante o curso do processo, conflito de atribuição entre a jurisdição comum e o contencioso administrativo perante o Tribunal de Conflitos, o qual decidiu pela competência da jurisdição administrativa decorrente da responsabilidade pela prestação de serviço público (GROTTI, 2003, p. 27-28). Acórdão disponível em: <http://www.conseil-etat.fr/Decisions-Avis-Publications/Decisions/Les-decisions-les-plus-importantes-du-Conseil-d-Etat/Tribunal-des-conflits-8-fevrier-1873-Blanco> e <https://www.legifrance.gouv.fr/affichJuriAdmin.do?idTexte=CETATEXT000007605886>. Acesso em: 23 out. 2017.
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3.1 Âmbito de aplicação, princípios e normas de integração
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É o mais complexo dos três conceitos, em que a preocupação central é averiguar a real necessidade e oportunidade de determinadas ações estatais, deixando claro que setores são beneficiados e em detrimento de que outros atores sociais. Essa averiguação da necessidade e oportunidade deve ser a mais democrática, transparente e responsável possível, buscando sintonizar e sensibilizara população para a implementação das políticas públicas. Este conceito não se relaciona estritamente com a ideia de eficiência, que tem uma conotação econômica muito forte, haja vista que nada mais impróprio para a administração pública do que fazer com eficiência o que simplesmente não precisa ser feito.
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pelo Estado, porquanto seriam indispensáveis ao desenvolvimento social e deveriam, por isto, ser por este prestadas. O Estado seria, então, uma cooperação de serviços públicos a ser controlado e organizado pelos governantes (DUGUIT citado por PEREIRA, 2002, p. 2). O dispositivo deixa clara a intenção do legislador de excluir do seu âmbito de aplicação as Organizações Sociais (OS), as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) e as Organizações da Sociedade Civil (OSC). Em que pese a atuação em cooperação com Poder Público para a consecução de finalidades públicas, tratam-se de entidades não integrantes da Administração Pública e, portanto, não sujeitas às disposições da lei em comento. Ao avançar nas disposições preliminares, o art. 4º da Lei nº 13.460/2017 elenca o rol de princípios a serem observados na prestação dos serviços públicos e no atendimento aos usuários: regularidade, continuidade, efetividade, segurança, atualidade, generalidade, transparência e cortesia. Em apertada síntese, pode-se dizer que a regularidade determina que os serviços públicos sejam prestados de acordo com padrões de qualidade e quantidade impostos pela Administração Pública; a continuidade implica que os serviços devem possuir caráter contínuo, sucessivo e sem interrupções capazes de prejudicar os usuários; a segurança, ao seu turno, diz respeito à observância de normas que não coloquem em risco os usuários do serviço público, terceiros e, ainda, bens públicos e particulares; a atualidade envolve a ideia de que a prestação dos serviços públicos deve acompanhar as técnicas modernas de oferecimento aos usuários; a generalidade impõe o dever de oferecer o serviço público de forma isonômica, sem quaisquer discriminações; já a transparência refere-se à ampla publicidade dos procedimentos adotados na prestação do serviço, fundamental para o exercício do controle por parte dos usuários; em última instância, a cortesia, afinal, vincula à Administração Pública a função de oferecer um tratamento urbano e cortês a todos os usuários, haja vista que a prestação não é um dever (GASPARINI, 2008, p. 301-303). Interessante notar que o legislador optou por fazer menção expressa ao princípio da efetividade, e não da eficiência – previsto no caput do art. 37 da Constituição Federal de 1988 – ou da eficácia. Neste ponto, houve inclinação efetiva do legislador no sentido de valorizar em que medida os resultados da prestação dos serviços públicos trazem benefício à coletividade. A noção de efetividade, segundo Marcelo Douglas de Figueiredo Torres (2004, p. 175):
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Ademais, o legislador perdeu importante oportunidade para inserir o princípio da modicidade de forma expressa na lei6. A ideia do princípio da modicidade é de que a tarifa ou a taxa a ser paga pelos usuários dos serviços corresponda à “menor tarifa em face do custo e do menor custo em face da adequação do serviço”, nas palavras de Marçal Justen Filho (2003, p. 308). O respeito à modicidade representa uma vedação à instituição de tarifas que onerem excessivamente os usuários do serviço público. Ou seja, a remuneração pela prestação dos serviços públicos deve ser proporcional ao custo do respectivo serviço, visto que, salvo raras exceções7, é plenamente possível a cobrança de contraprestação pecuniária dos serviços públicos. De mais a mais, o § 2º do art. 1º traz normas de integração legislativa. Os inc. I e II determinam que a aplicação da Lei nº 13.460/2017 não afasta o cumprimento do disposto em normas específicas, quando se tratar de serviço ou atividade sujeitos a regulação ou supervisão, ou o disposto no Código de Defesa do Consumidor, quando caracterizada relação de consumo. A sua primeira parte trata-se de previsão sem teor semântico inovador, visto que todo e qualquer serviço público, ainda que prestado por particulares, está sujeito a normas regulamentares ou regulatórias, as quais não seriam afastadas em decorrência da nova legislação, que possui caráter geral. Entretanto, o novo diploma silencia quanto ao modo de integração entre a Lei nº 13.460/2017 e o Código de Defesa do Consumidor de forma a surgir a seguinte indagação: qual norma seria utilizada subsidiariamente? A resposta a essa pergunta, pelo menos em uma análise inicial, dependerá da espécie de relação tratada. Caso estejam presentes os requisitos da relação de consumo na prestação do serviço público, a Lei nº 13.460/2017 será aplicada subsidiariamente; se inexistentes, o Código de Defesa do Consumidor deve ser aplicado subsidiariamente – em circunstância de compatibilidade – e apenas para garantir maior amplitude aos direitos dos usuários. Destarte, o acesso do usuário às informações deve obedecer aos procedimentos previstos na Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011), em conformidade com o art. 2º, par. un., da Lei nº 13.460/2017. 5
A parte inicial do capítulo II da Lei nº 13.460/2017 dispõe sobre os direitos e deveres básicos dos usuários dos serviços públicos. Por esse ângulo, o caput do art. 5º, em redação semelhante a constante na lei de concessões de serviços públicos, determina que os usuários têm direito à prestação do serviço de forma adequada, embora não estabeleça o conteúdo jurídico do termo adequação. Dentre os quinze incisos que estabelecem diretrizes para a prestação dos serviços pú-
5 O termo “modicidade” deriva do latim modicus, que significa algo que se opõe à exorbitância, ou seja, moderado, parco, proporcional ou reduzido (SILVA, 2014, p. 928). 6 O princípio da modicidade encontra previsão expressa no art. 6º, §1º, da lei de concessão de serviços públicos (Lei nº 8.987/2995). 7 Apresenta-se, como exemplos, a gratuidade dos serviços públicos de ensino em estabelecimentos oficiais (CF/88, art. 206, inc. IV) e do transporte coletivo urbano aos idosos (CF/88, art. 230, § 2º).
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3.2 Direitos e deveres dos usuários
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8 Insta asseverar que a necessidade de linguagem simples, clara e compreensível já possuía previsão semelhante no Código de Defesa do Consumidor enquanto direito básico do consumidor (art. 6º, inc.III). 9 No âmbito do Poder Executivo federal, os usuários poderão utilizar-se do mecanismo de Solicitação de Simplificação, que consiste na utilização do formulário Simplifique! para a proposição de melhorias na prestação do serviço (Decreto nº 9.094/2017, arts. 13 e 14).
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blicos, alguns pontos merecem destaque. O inc. III traz importante disposição que busca dar efetividade ao princípio da isonomia, visto que garante a ordem cronológica de atendimento dos usuários, ressalvados os casos de urgência, de possibilidade de agendamento e de prioridades legais (gestantes, idosos, deficientes, dentre outros). Sem dúvida, mais uma vez o legislador perdeu a oportunidade de proporcionar máxima efetividade ao princípio da isonomia, tendo em vista que, para além do mero atendimento, deveria ser assegurada aos usuários dos serviços públicos a garantia da observância da ordem cronológica em relação aos pleitos formulados perante o responsável pelo serviço público, de modo semelhante à sistemática constante no art. 12 do Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015). Outrossim, a análise conjunta dos inc. IX, XI, XIII e XIV demonstra a intenção do legislador de emprestar maior carga de informalidade às relações com os usuários. Dessa forma, a autenticação de documentos deverá ser realizada pelo próprio agente público diante da apresentação dos originais pelo usuário. Ademais, é vedada a exigência de reconhecimento de firma, exceto quando houver dúvida de autenticidade, procedimentos que possuem igual previsão no art. 22 da Lei de Processo Administrativo Federal (Lei nº 9.784/1999). Além disso, na prestação dos serviços públicos devem ser eliminadas as formalidades e exigências cujo custo econômico ou social seja superior ao risco envolvido (inc. XI). Do mesmo modo, devem ser aplicados mecanismos tecnológicos que visem a simplificação de processos e procedimentos de atendimento aos usuários (inc. XIII), utilizando-se linguagem simples e compreensível8 e abstendo-se de usar siglas, jargões e estrangeirismos (inc. XIV)9. Sob outra perspectiva, a Lei nº 13.460/2017, em seu art. 7º, impõe o dever de divulgação de Carta de Serviços ao usuário por parte de órgãos e entidades. Trata-se, na verdade, de mera reprodução do antigo art. 11 do Decreto nº 6.932/2009, aplicável apenas no âmbito do Poder Executivo Federal e em vigor na data de publicação da lei. Contudo, em 17 de julho de 2017, foi publicado o Decreto nº 9.094, que revogou por completo o Decreto nº 6.932/2009, embora ainda se verifique o elevado grau de similitude com o diploma legal em análise. Segundo o dispositivo, a Carta de Serviços ao Usuário diz respeito a uma espécie de cartilha que terá como objetivo trazer informações claras, precisas e sucintas sobre os serviços prestados; forma e requisitos de acesso; prazos e forma de prestação do serviço; formas de apresentação de manifestação, dentre outros. É dever do prestador, ainda, manter constantemente atualizado o documento em questão.
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Entretanto, ao contrário do disposto no art. 18 do Decreto nº 9.094/201710, a lei determina a sua publicação unicamente no sítio eletrônico do órgão ou entidade (art. 7º, § 4º). Sob o espectro dos destinatários dos serviços, tal previsão representa elevado grau de segregação, incompatível com a análise sistemática da norma e com os princípios reitores da atividade administrativa, pois impõe barreiras físicas, financeiras e informacionais ao amplo acesso à informação.
O sistema de manifestações dos usuários representa, em linhas gerais, a consagração do direito de petição (Constituição Federal de 1988, art. 5º, inc. XXXIV) no âmbito dos serviços públicos. No que concerne ao expresso, dispõe o art. 10, § 4º, que este direito deve ser garantido da forma ampla, porquanto deve ser assegurada a manifestação por meio eletrônico, por correspondência ou verbalmente, oportunidade na qual deverá ser reduzida a termo. Para garantir a amplitude de participação, é dever dos órgãos e entidades oferecer ao usuário formulários simplificados e de fácil compreensão para que suas manifestações sejam apresentadas (art. 10, § 6º). Nada obstante, as petições dos usuários deverão ser marcadas pela informalidade, pois a necessidade de identificação do usuário não poderá conter exigências que impeçam ou dificultem sua manifestação (art. 10, § 1º). Da mesma forma, não é possível ao prestador do serviço impor qualquer exigência relacionada aos motivos que determinaram a sua apresentação (art. 10, § 2º). Para garantir maior segurança jurídica aos usuários, deve ser emitido comprovante de recebimento da manifestação (art. 12, inc. II), da mesma forma que é direito do usuário a ciência da decisão administrativa final (art. 12, inc. IV e V). A Lei nº 13.460/2017 também traz normas gerais para a instituição de ouvidorias11. Contudo, de forma contraditória, não há previsão expressa acerca do dever dos órgãos e entidades de instituir ouvidorias. Ademais, consoante o art. 10, § 3º, na ausência de ouvidoria, os usuários poderão apresentar manifestações “diretamente ao órgão ou entidade responsável pela execução do serviço e ao órgão ou entidade a que se subordinem ou se vinculem”. O rol de atribuições da ouvidoria, constante no art. 13, é meramente exemplificativo, a teor da previsão consignada em seu caput. Dentre elas, destaca-se a promoção da participação dos usuários, o acompanhamento da prestação dos serviços visando a garantia da efetividade, o auxílio na prevenção e correção de atos e procedimentos, a promoção da mediação e da conciliação entre os usuários e o prestador do serviço (art. 13). Outrossim, devem as ouvidorias elaborar relatório de gestão, com periodicidade anual, o qual deve consolidar informações relacionadas às manifestações de seus usuários (art. 14) e ser publicado integralmente na internet (art. 15, par. un., inc. II). Conterá, como conteúdo míni-
10 De acordo com o aludido diploma, a Carta de Serviços ao Usuário deverá ser divulgada permanentemente aos usuários dos serviços públicos e disponibilizados nos locais de atendimento, nos portais institucionais na internet e no Portal de Serviços do Governo Federal, disponível no sítio eletrônico www.servicos.gov.br. 11 De acordo com Rubens Pinto Lyra, a primeira concepção de ouvidoria remete ao século XIX, na Suécia, com a figura do ombudsman, que significa representante do cidadão, o qual deveria atuar como conexão entre o povo e qualquer instituição estatal (2010, p. 19-51).
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3.3 Manifestações dos usuários e ouvidorias
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mo, informações acerca do número e motivos de manifestações, análise de pontos recorrentes e providências tomadas pela Administração Pública (art. 15, inc. I a IV). De mais a mais, buscou o art. 16 estabelecer limites temporais para a prolação de decisão administrativa final, a qual deve ocorrer no prazo de trinta dias, prorrogável uma vez por igual período, mediante justificativa. Ao contrário do disposto no art. 49 da Lei nº 9.784/1999, considera-se como termo inicial de contagem do prazo o dia da efetiva provocação do usuário, e não a data de finalização da instrução. Acertadamente, visou o legislador imprimir maior celeridade à apreciação dos pleitos dos usuários, que não precisarão aguardar o término da instrução para a contagem de prazo. Desse modo, o direito de manifestação dos usuários e a possibilidade de instituição de ouvidorias harmonizam-se com os princípios da motivação e do controle. De acordo com o primeiro, aqueles que prestam serviço público possuem o dever de fundamentar satisfatoriamente todas as decisões relacionadas à prestação do serviço; o segundo, por sua vez, determina o conjunto de mecanismos necessários para a fiscalização e revisão da atividade administrativa.
Com os arts. 18 a 22 da Lei nº 13.460/2017, pretendeu-se garantir a participação efetiva dos usuários na avaliação, proposição de melhorias e acompanhamento da atuação do ouvidor. Trata-se, por conseguinte, de importante mecanismo de democracia participativa12 posta à disposição dos usuários dos serviços públicos e fundamental para o aprimoramento da atuação administrativa. Nessa sistemática, passa-se a utilizar o termo democracia no sentido de democracia de funcionamento, ou seja, a partir da adoção de instrumentos capazes de exercer influência no modo de agir da Administração Pública, de forma a torná-la mais disponível a influências externas ou aos imputs (em tradução livre, reações ou respostas) dos administrados (MEDAUAR, 2004, p. 27). Não obstante, assegurou-se também, em tese, a aplicação do princípio da transparência, que, conforme Celso Antônio Bandeira de Mello (2015, p. 702), busca dar a maior publicidade possível ao público em geral de tudo que se refere ao serviço público e à sua prestação. Os conselhos de usuários13, na dicção do par. un. do art. 18, possuem natureza de órgãos consultivos. Para emprestar legitimidade a este processo de interferência, a composição destes órgãos deve garantir o equilíbrio de participação a partir de procedimento concorrencial
12 De acordo com Guillermo Gassman: “Hoje, num contexto de pluralismo político, e diante de acontecimentos nacionais e internacionais que parecem reforçar a necessidade de consideração da opinião diretamente expressada pelas populações administradas, o conceito de democracia aproxima-se da busca de ‘um consenso mais amplo sobre a escolha de políticas públicas’ mais que do simples ‘consenso na escolha de pessoas’ (representantes), aproximando-se de um caráter substancial. Trata-se do reforço da legitimidade na atuação do Estado, reduzindo a conflito e ampliando a aceitação social das normas (sejam abstratas ou concretas).” (2016, p. 105) 13 O sistema de conselho de usuários já era utilizado por alguns prestadores de serviço público, principalmente concessionários. Cite-se,
por exemplo, a Resolução da Agência Nacional de Telecomunicações (ANEEL) nº 623, de 18 de outubro de 2013 – que revogou a Resolução nº 490, de 24 de janeiro de 2008. Em seu art. 4º, determina a implantação de conselhos de usuários em cada uma das regiões do país por parte das prestadoras de serviços de telecomunicações.
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3.4 Conselho de usuários
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aberto ao público, considerando-se as espécies classes representadas (art. 19). Atente-se ao fato de que a participação dos usuários será considerada serviço relevante e, por consequência, não haverá contraprestação pecuniária ou qualquer espécie de vínculo contratual. Considerando-se tal característica, não se esquivou o legislador em estabelecer dispositivo de acautelamento para impedir que demandas judiciais sejam propostas com a finalidade de reconhecer vínculo laboral e o consequente pagamento de parcelas remuneratórias. A fim de evitar a ineficácia dos conselhos de usuários, as regulamentações a serem editadas devem garantir a concreta participação dos usuários, considerando-se as dimensões do território abrangido pelo serviço público. Sendo assim, serviços prestados nacionalmente ou em grandes estados ou municípios devem possuir mais de um conselho e observar a distribuição regional e/ou local dos usuários. Finalmente, o art. 20 abre a possibilidade de consulta do conselho de usuários quanto à indicação do ouvidor. Todavia, a legislação permanece silente quanto ao seu procedimento de escolha, o que demonstra, mais uma vez, a necessidade de edição de normas regulamentares capazes de suprir estas lacunas da lei. 3.5 Avaliação continuada dos serviços públicos
ticas de informalidade, simplicidade e clareza, proporcionando a todos os usuários, independentemente de sua condição, a oportunidade de manifestar-se e contribuir para a melhoria dos serviços públicos, de modo similar à previsão constante no art. 10, § 4º. Por fim, determina o art. 23, § 2º, que o resultado da avaliação deve ser publicado, em sua íntegra, na página virtual do órgão ou entidade, incluindo ranking que conste as entidades com maior incidência de reclamação dos usuários. Todavia, a elaboração de ranking comparativo de entidades, nos moldes previstos na lei, é de difícil implementação, pois pressupõe a utilização de técnicas uniformizadas de avaliação estatística e a precisa alimentação dos bancos de dados.
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Através do penúltimo capítulo da Lei nº 13.460/2017, foi implantada a avaliação continuada dos serviços públicos, a ser realizada pelos órgãos e entidades responsáveis pela prestação do serviço, considerando os aspectos constantes no art. 23, inc. I a V. O mecanismo em questão busca, assim, promover o constante aperfeiçoamento da prestação dos serviços públicos a partir do retorno dos próprios usuários. O sistema de avaliação contínua se coaduna com o princípio da adaptabilidade, fundamento do regime jurídico dos serviços públicos. Em consonância com este princípio, os serviços públicos devem ser constantemente atualizados e modernizados dentro das possibilidades econômicas do Estado (MELLO, 2015, p. 702). A princípio, a avaliação continuada será realizada através de pesquisa de satisfação ou outro meio que conserve a significância estatística dos resultados, com periodicidade mínima de um ano (art. 23, § 1º). Nesse sentido, o sistema de avaliação deve revestir-se das caracterís-
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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS A prestação de serviços públicos, tal como reconhecida hodiernamente, é fruto da permanente evolução da doutrina administrativista, com início antes do século XVIII. No Brasil, o advento da Constituição Federal de 1988 foi determinante para o reconhecimento de caracteres mínimos para a prestação dos serviços públicos, quer prestados de forma direta pelo Estado, quer de forma indireta. Porém, a mera previsão de princípios reitores da atividade administrativa não são suficientes caso não haja mecanismos de controle por parte dos usuários. Nessa lógica, a Lei nº 13.460/2017 surge para regulamentar o art. 175 da Constituição Federal de 1988 e garantir mecanismos de proteção dos direitos e participação dos usuários dos serviços públicos. Conforme demonstrado, a nova legislação pecou pela regulamentação ineficiente em alguns pontos, a exemplo do conceito de serviço público, do seu âmbito de aplicação e das normas de integração. A despeito dessa deficiência, apresenta-se como importante avanço na tutela dos usuários dos serviços públicos, notadamente em relação ao reconhecimento de direitos básicos e à maior participação direta dos usuários. Saliente-se, nesse último ponto, a maior carga de informalidade das manifestações dos usuários e a regulamentação das ouvidorias e dos conselhos de usuários, fundamentais para garantir a efetiva participação popular. Sendo assim, a existência dessas lacunas traz para a comunidade jurídica diversas abordagens a serem discutidas para que seja oferecida máxima efetividade ao conteúdo da lei. O papel do Poder Judiciário e dos órgãos e entidades no exercício do poder regulamentar, portanto, será essencial para superar os hiatos existentes na nova legislação.
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quirement of regulation of the subject and the circumstances of the law’s appearance. In the context of this scenario, its main legal provisions will be analyzed in order to critically verify the extent to which the legislative act sediments, innovates or contradicts the aspects defended by the homeland doctrine about public services. Keywords: Public services. Law n. 13.460/2017. Rights of users.
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ABSTRACT The purpose of this article is to make brief comments on the recent Law n. 13.460/2017, which deals with the defense of the rights of users of public services. Initially, the study starts from the constitutional re-
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Recebido 06/08/2017 Aceito 30/10/2017
PROCESSO JUDICIAL ELETRÔNICO: CONCRETIZAÇÃO DOS PRINCÍPIOS PROCESSUAIS? Ana Carolina Guilherme Coêlho1 Ingrid de Lima Barbosa2
1 INTRODUÇÃO A informatização do direito processual teve como marco inicial a Lei n° 8.245/91, que inseriu em seu artigo 58, inciso IV, a possibilidade de citar, intimar ou notificar por meio de “telex ou fac-símile” as partes. Posteriormente, houve grande desenvolvimento das ferramentas
1 Advogada e docente. Mestra em estudos urbanos e regionais e doutoranda em arquitetura e urbanismo, ambos pela UFRN. Membro da Comissão de direito ambiental da OAB RN. Pesquisadora do grupo de pesquisa Estúdio Conceito. 2 Graduanda do Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
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RESUMO O presente trabalho se propõe a uma análise do processo judicial eletrônico e suas implicações dentro de um escopo principiológico e prático. Serão analisados os princípios aplicados ao processo judicial e com isso uma reflexão sobre a consecução dos objetivos pretendidos com a mudança. Para a realização do estudo, utilizou-se metodologia qualitativa, com revisão bibliográfica. Concluiu-se que o processo judicial eletrônico segue uma tendência mundial da informatização e facilitação ao acesso, mas ainda existem algumas lacunas que precisam de ajuste para que os princípios que orientam o processo judicial eletrônico atinjam sua concretização. Palavras-chave: Princípios processuais. Processo judicial eletrônico. Informatização judicial. Tramitação eletrônica.
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digitais que culminou com a edição da Lei nº 11.419/06, que disciplina as regras gerais do processo eletrônico, buscando permitir o exercício dos direitos fundamentais, também chamados princípios, do devido processo legal e do acesso à justiça. Com a abertura do Judiciário à informatização, diversos sistemas eletrônicos foram desenvolvidos, o que passou a dificultar a uniformização do acesso e utilização do processo eletrônico, de modo que, em 2013, o Conselho Nacional de Justiça implantou o Processo Judicial Eletrônico, sistema-chave que deve ser implantado em todos os Tribunais até 2018 (artigo 34, §3º da Resolução nº 185/2013). Não obstante as transformações positivas ocorridas com a implantação do processo eletrônico, o qual contribui para a concretização dos princípios da celeridade e economia processual, da publicidade, do acesso à justiça e do devido processo legal, há ainda muitos entraves no que tange sua exclusiva utilização na tramitação processual, surgindo diversas críticas dos profissionais em razão das instabilidades, falhas e insegurança jurídica observadas. Desse modo, como o processo eletrônico, da mesma forma que o processo físico, toma como lastro os princípios elencados na Constituição Federal e no Código de Processo Civil, busca-se, por meio de pesquisa qualitativa calcada em revisão bibliográfica, analisar a concretização dos princípios informadores do processo civil com a utilização do Processo Judicial Eletrônico, verificando os benefícios e as dificuldades dos operadores no cotidiano forense.
Segundo Cappelletti e Garth (1988, p.31), a recente preocupação com o efetivo acesso à justiça deu origem a três ondas de transformações: a) assistência jurídica aos necessitados: concessão da assistência judiciária gratuita para aqueles que não têm condições de arcar com as custas processuais; b) representação jurídica para os interesses difusos, mormente nas áreas do consumidor e do meio ambiente; c) enfoque no acesso à justiça, no qual pode se encaixar o processo eletrônico. O processo brasileiro vem, no decorrer dos anos, sofrendo diversas mudanças de modo a facilitar o acesso à justiça pela sociedade, e, consequentemente, concretizar os princípios processuais constitucionais e infraconstitucionais que estruturam o ordenamento pátrio. O foco é simples: dar maior celeridade à tramitação processual, garantindo o devido processo legal (MAHLMEISTER, [20--]. Nessa onda revolucionária, diversas leis foram promulgadas paulatinamente, introduzindo na processualística brasileira os mecanismos eletrônicos postos à disposição da população com a Era da Computação, como a Lei nº 8.245/1991 e a Lei nº 9.800/99, as quais representam os primeiros passos que culminaram no atual processo judicial eletrônico, regulado pela Lei nº 11.419/2006. Antes da Lei nº 11. 419 de 19 de dezembro de 2006, diante da lentidão quase intransponível do Judiciário, foi promulgada a Lei nº 8.245 de 18 de outubro de 1991, a qual dispõe sobre
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2 INFORMATIZAÇÃO DO PROCESSO JUDICIAL
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3 O PROCESSO JUDICIAL ELETRÔNICO E O CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015 A Lei nº 11.419/06 possui 4 capítulos: 1) Da informatização do processo judicial, tratando da admissão da prática dos atos processuais por meio eletrônico; 2) Da comunicação eletrônica dos atos processuais; 3) Do processo eletrônico, dispondo sobre a implantação do processo eletrônico em detrimento do processo físico; 4) Das disposições gerais e finais. Verifica-se, portanto, que foi disciplinado, de modo geral, o entendimento sobre a validade dos atos processuais eletrônicos, sobre a necessidade da assinatura eletrônica, e sobre os efeitos dos atos eletrônicos no curso processual, de modo que as normas do processo civil per-
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locação de imóveis urbanos e os procedimentos inerentes. Tal diploma previu, no artigo 58, inciso IV, que, desde que autorizado no contrato de locação, “a citação, intimação ou notificação far-se-á mediante correspondência com aviso de recebimento, ou, tratando-se de pessoa jurídica ou firma individual, também mediante telex ou fac-símile [...]” (REZENDE, 2016). Posteriormente, em 26 de maio de 1999, foi promulgada a Lei nº 9.800, que permitiu às partes a utilização de sistema de transmissão de dados para a prática de atos processuais, dispondo que tal não prejudicaria o cumprimento dos prazos, posto que as partes deveriam deixar os originais das peças em cinco (05) dias em Juízo (artigo 2º). A lei também previa a responsabilidade das partes sobre os documentos enviados, bem como pela entrega em modo físico (artigo 4º) (REZENDE, 2016). Importante ressaltar a inovação trazida pela Lei nº 10.259 de 12 de julho de 2001, a qual instituiu os Juizados Especiais Federais, que em seu artigo 8º, §2º, prevê que os Tribunais poderão organizar o serviço de intimação das partes e recebimento das petições de forma eletrônica, dando mais um passo em direção à informatização do processo brasileiro. Nessa mesma sintonia, em dezembro de 2004, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região implantou o Sistema Digital dos Juizados Especiais (CRETA), por meio da Resolução nº 19 de 15 de setembro de 2004 (SILVA, 2017). Tal sistema é gratuito, não exigindo a utilização de certificado digital, apenas o acesso à internet, e até hoje é utilizado pela Justiça Federal, no que toca aos Juizados Especiais. Com a Lei nº 11.419 de 19 de dezembro de 2006, houve grande revolução no ordenamento jurídico brasileiro, possibilitando a implementação do Processo Judicial Eletrônico (PJE), assim como o Processo Judicial Digital (PROJUDI), este último exclusivo ao âmbito dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (REZENDE, 2016). O processo judicial eletrônico, como se observa, foi introduzido com moderação no ordenamento jurídico brasileiro, buscando concretizar o princípio da tutela jurisdicional satisfativa, por meio de técnicas e tecnologias mais acessíveis, e que proporcionassem mais segurança e agilidade à tramitação processual. Atualmente, há diversos mecanismos, formas e meios de acesso, os quais serão mais discutidos nos tópicos seguintes.
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maneciam, embora as partes devessem se adequar às normas técnicas que passaram a regular a prática do ato processual no (novo) meio digital. Vale salientar que em seu artigo 18, a Lei do Processo Eletrônico permite aos órgãos do Poder Judiciário regulamentá-la no âmbito das suas respectivas competências, o que na prática oportunizou aos Tribunais a, por meio de portarias, resoluções, criarem sistemas eletrônicos diferentes e, muitas vezes, incompatíveis entre si (CORDEIRO e BORGES, 2014). Não por outro motivo, o Conselho Nacional de Justiça passou a coordenar a implementação dos sistemas processuais eletrônicos, na tentativa de reunir num único sistema todos os mecanismos, tendo lançado em 2011, junto a diversos Tribunais, o Processo Judicial Eletrônico, sucessor do PROJUDI, antes utilizado em 19 Estados da Federação (CORDEIRO e BORGES, 2014). Num primeiro momento, o sistema foi instalado na subseção judiciária de Natal/RN, em abril de 2010, e depois em outros órgãos do Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Em dezembro do mesmo ano, o sistema foi introduzido no Tribunal Regional Federal da 3ª Região. O intuito do Conselho Nacional de Justiça era que, com a implantação de um sistema único e gratuito, todos os profissionais do direito pudessem acompanhar o andamento processual com mais celeridade e facilidade, adequando-o às suas necessidades e contribuindo com necessárias mudanças e melhorias (CORDEIRO e BORGES, 2014). Efetivamente, a Resolução nº 185/2013, a qual institui o PJE, dispõe em seu artigo 35 que o Tribunal ou Conselho deve divulgar o cronograma de execução do sistema nos órgãos julgadores, demonstrando a necessidade de adesão pelo Poder Judiciário brasileiro como um todo para a melhoria da prestação jurisdicional, embora ainda haja dificuldade na implementação em Comarcas do interior, sendo mais comum a utilização nas capitais e região metropolitana. Com as transformações trazidas pela Lei nº 11.419/06 no processo judicial, acentuou-se a necessidade de adaptação do Código de Processo Civil às novas estruturas do trâmite processual. Por isso, o novo Código de Processo Civil, promulgado em 2015, trouxe algumas novidades no tocante ao processo eletrônico, apesar de não tanto quanto se esperava, a fim de conferir maior celeridade e garantir o acesso à justiça. O artigo 229, §2º preleciona que, caso o processo seja eletrônico, não se aplicará o prazo em dobro aos litisconsortes com advogados distintos, vez que o acesso aos autos é simultâneo. Os artigos 236, §3º, 453, §1º e 461, §2º dispõem sobre a possibilidade de realização de audiências por videoconferência, ou qualquer outro meio de transmissão em tempo real, podendo, inclusive, testemunhas serem ouvidas por esse meio, se residentes em Comarca diferente da que tramita o processo (SILVA, 2017). Os artigos 246, V, 477, § 4º, 513, § 11º, III e 1.019, III preveem a possibilidade de citação e intimação das partes por meio eletrônico, e como a contagem do prazo processual se dará. O artigo 246, §§1º e 2º estabelece a necessidade das empresas públicas e privadas se cadastrarem no PJE para que possam receber as citações e intimações mais facilmente, sendo facultativo para as empresas de pequeno porte e microempresários (SILVA, 2017).
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Logo, percebe-se que a tendência atual é de informatização do processo judicial, com a busca por mecanismos que cada vez mais simplifiquem o trâmite processual para garantir o devido processo legal, e contornar as deficiências na prestação da tutela jurisdicional, em razão da demora, da dificuldade de publicização, e da estrutura deficitária do Judiciário, a qual não acompanha as mudanças sociais.
4 PRINCÍPIOS DO PROCESSO CIVIL ELETRÔNICO O inciso LIV do artigo 5º da Constituição Federal dispõe que ninguém será privado de seus bens ou da sua liberdade sem o devido processo legal. O processo deve estar de acordo não só com a lei, mas com o direito como um todo, de modo que são incluídos os princípios, normas que estruturam o ordenamento jurídico (DIDIER JÚNIOR, 2015). No decorrer do tempo, diversos princípios foram se agregando ao devido processo legal, como forma de conferir substância nas particularidades de aplicação desse último. Assim, o direito ao contraditório, ampla defesa, publicidade, celeridade processual, decorrem da garantia máxima do devido processo legal, direito fundamental de todos os cidadãos (DIDIER JÚNIOR, 2015). Logo, não obstante ser recente, o processo eletrônico, assim como o processo físico, tem suporte numa gama de princípios, legitimando-o e orientando o seu desenvolvimento. Os princípios processuais clássicos, os quais já norteavam o processo físico, passaram a se amoldar ao processo eletrônico, devido às mudanças que foram introduzidas e a necessidade de novas balizas para garantir a segurança jurídica às partes (CORDEIRO e BORGES, 2014). Entre os princípios que dão suporte ao processo eletrônico, pode-se citar: o acesso à justiça, devido processo legal, razoável duração do processo/celeridade, economia processual, e publicidade, os quais serão delineados nas próximas seções.
O princípio do acesso à justiça está expresso no artigo 5º, incisoXXXV da Constituição Federal, o qual preleciona que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.” Segundo Cappelletti e Garth (1988), a expressão “acesso à justiça” serve para conceituar dois propósitos do sistema jurídico: 1) a acessibilidade ao sistema judicial; 2) a prestação jurisdicional efetiva e satisfativa. Portanto, a todos deve ser garantido o direito de acesso ao judiciário. Nas palavras de André Ramos Tavares (2015), Assim, superada está a ideia de que bastaria proclamar a abertura do Judiciário a todos, impõe-se, adicionalmente, reconhecer que também não basta a efetivação do acesso caso a Justiça, especialmente a Justiça Constitucional, não esteja consciente de seu papel na realização do Estado Constitucional e, com ela, na implementação do Estado social.
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4.1Acesso à justiça
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A primeira Constituição Federal a prever o direito de amplo acesso ao Poder Judiciário foi a de 1946, sendo um dos pilares que estruturam a própria razão de ser do sistema jurídico. O Judiciário, como um dos três Poderes, na clássica disposição de Montesquieu3, é um dos atores responsáveis pela efetivação das prescrições da Constituição, devendo, assim, ser garantido aos cidadãos o direito de ação, de petição, e de defesa (TAVARES, 2015). Dessa forma, o processo eletrônico busca garantir o pleno acesso ao Judiciário, facilitando a postulação dos interesses em juízo e a redução das custas do processo, ampliando a participação para aqueles que não possuem recursos financeiros suficientes se encartados na realidade dos processos físicos (CORDEIRO e BORGES, 2014). 4.2 Devido processo legal O princípio do devido processo legal, como já se afirmou, está encartado no artigo 5º, inciso LIV da Constituição Federal. Tal princípio transparece a garantia concedida às partes para se utilizar de todos os meios jurídicos possíveis, de modo que haja a paridade de armas dos envolvidos, sendo garantido pelo Estado a higidez na tramitação processual (TAVARES, 2015). O devido processo legal, portanto, é uma garantia do desenvolvimento do processo conforme as normas já estabelecidas, retirando do arbítrio do julgador ou das partes a decisão sobre como irá proceder o andamento do litígio. Esse princípio garante o direito, dito fundamental, ao processo justo, efetivo, e devido, com observância não só da lei, mas do ordenamento jurídico (CORDEIRO e BORGES, 2014). Segundo Puerari e Isaia (2012), “a Convenção Americana de Direitos Humanos é um dos principais diplomas em defesa do devido processo legal.”, em cujo artigo 8º é garantido o direito de ser ouvido, com as devidas garantias, dentro de um prazo razoável, o que acaba por estabelecer uma relação entre o princípio em comento e o da celeridade processual. Conforme entendimento de Fredie Didier Júnior (2015),
Inobstante a mudança na estrutura do processo, de físico para eletrônico, permanece a necessidade premente de obediência a esse princípio, de modo que o processo judicial eletrônico está amparado por esse direito fundamental, devendo atender às garantias previstas na Constituição Federal, bem como nas leis ordinárias, para que seja devido e efetivo (CORDEIRO e BORGES, 2014).
3 Montesquieu foi filósofo social e escritor francês, além de presidente do Parlamento de Bordeaux e membro da Academia Francesa. Em 1748, escreveu o livro “O espírito das leis”, por meio do qual defendeu a divisão do poder em três: Executivo, Legislativo e Judiciário, influenciando governos liberais desde então (FRAZÃO, Dilva. Montesquieu. 2016. Disponível em:<https://www.ebiografia.com/montesquieu/>. Acesso em: 03 set. 2017.; MONTESQUIEU. O espírito das leis. São Paulo, Martins Fontes, 2000.851p.).
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Assim, além de público, paritário, tempestivo etc., adjetivos que correspondem às normas constitucionais expressamente consagradas (citadas acima), o processo, para ser devido, há de ter outros atributos. Um processo, para ser devido, precisa ser adequado, leal e efetivo.
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4.3 Razoável duração do processo e Celeridade processual A exigência da duração razoável do processo está prevista no artigo 5º, inciso LXXVIII da CF/1988, inserida pela Emenda Constitucional nº 45/2004, bem como no Código de Processo Civil, em seu artigo 4º e 139, II. O novo Código, inclusive, inseriu tal garantia dentre os direitos das partes processuais, dispondo que “as partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa. ” (DIDIER JÚNIOR. 2015). Segundo Tavares (2015), ao utilizar a expressão “razoável duração”, o constituinte inseriu a ideia de celeridade, mas não exclusivamente ligada à rapidez, mas com atribuição do tempo necessário para que não haja a violação do direito ao devido processo legal. Portanto, a celeridade está intrinsecamente relacionada com a razoável duração do processo. A celeridade processual, assim, apresenta-se como uma forma de transpor o obstáculo que acaba por caracterizar o Judiciário: a morosidade. Buscando mais do que um processo rápido, tal princípio, como bem expresso no Diploma Processual, pretende que as partes obtenham a tutela jurisdicional satisfativa, isto é, o melhor resultado possível dentro de um espaço de tempo adequado. O processo eletrônico, nesse cenário, torna-se uma das soluções pretendidas pelo Judiciário para alcançar a rapidez na prestação jurisdicional. “Sendo assim, o princípio da celeridade processual é, inevitavelmente, o corolário da informatização da Justiça.” (CORDEIRO e BORGES, 2014). 4.4 Economia processual
Segundo Studer (2007, p. 12), “é fato incontroverso e notório, que todos os operadores do direito e a Sociedade aspiram uma Justiça menos expensa possível e também no menor tempo praticável”, sendo o dispêndio de recursos o maior obstáculo para o acesso à justiça. Entretanto, tal princípio engloba a necessidade geral de eficiência do Poder Judiciário, não só restrita a economia de valores. Quanto a esse princípio, o processo eletrônico representa a maior economia de recursos em face do automatismo (REZENDE, 2016). Consoante entendimento de Fraga (2013, p. 31), “o processo eletrônico é a tradução de economia processual, pois através de vários instrumentos e ferramentas ele tem tornando o processo, economicamente, muito mais viável”. O processo eletrônico reduziu o tempo, as etapas, os custos e os atos processuais para
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O princípio da economia processual está previsto em várias passagens do ordenamento jurídico, como no artigo 283, parágrafo único do CPC, o qual dispõe “dar-se-á o aproveitamento dos atos praticados desde que não resulte prejuízo à defesa de qualquer parte.”, tratando, portanto, do aproveitamento dos atos processuais. Esse princípio representa a necessidade de se reduzir os esforços, no que toca à prática dos atos processuais, o gasto com valores e bens, a fim de obter um resultado satisfatório em contraposição ao uso mínimo de recursos(CORDEIRO e BORGES, 2014).
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a concretização de um mesmo resultado, a prestação da tutela jurisdicional. Dessa forma, é possível vislumbrar a concretização desse princípio pela nova sistemática instituída pela informatização do Judiciário. 4.5 Publicidade O direito fundamental à publicidade dos atos processuais está previsto no artigo 5º, inciso LX da Constituição Federal. Os artigos 8º e 11º do Código de Processo Civil ratificam essa necessidade para a devida tramitação do processo judicial, nos seguintes termos: LX - a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem; (Artigo 5º da Constituição Federal) Art. 8o Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência. (Código de Processo Civil). Art. 11. Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade. (Código de Processo Civil).
Art. 189. Os atos processuais são públicos, todavia tramitam em segredo de justiça os processos: I - em que o exija o interesse público ou social; II - que versem sobre casamento, separação de corpos, divórcio, separação, união estável, filiação, alimentos e guarda de crianças e adolescentes; III - em que constem dados protegidos pelo direito constitucional à intimidade; IV - que versem sobre arbitragem, inclusive sobre cumprimento de carta arbitral, desde que a confidencialidade estipulada na arbitragem seja comprovada perante o juízo.
Acresça que, para Tavares (2015, p. 604), a falta de fundamentação de uma decisão judicial já pode ser considerada violação ao princípio da publicidade, uma vez que “a motivação propicia a comunicação ou divulgação do iter seguido pelo magistrado para prolatar sua decisão neste ou naquele sentido.”. Ressalta, ainda, o jurista que a publicidade exige uma linguagem adequada para a transmissão da mensagem, a fim de que seja atingido o seu objetivo.
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Segundo Fredie Didier Júnior (2015), os atos processuais devem ser públicos. Desse modo, o princípio da publicidade tem dois propósitos: 1) proteger as partes da arbitrariedade das decisões e demais atos jurisdicionais; 2) oportunizar o controle da sociedade sobre a atividade jurisdicional. Essas duas funções desembocam em duas dimensões: 1) interna: publicidade entre as partes; 2) externa: publicidade para terceiros. Nesse sentido, a Constituição Federal apenas restringe a publicidade quando para a proteção da intimidade e o interesse social exigir, tendo em vista que a regra é da publicidade, a exceção é do sigilo. Por isso, o Código de Processo Civil, em seu artigo 189, traz as hipóteses expressas em que a publicidade pode ser restringida:
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O processo eletrônico está amparado pelo princípio em comento, vez que pode ser acessado por qualquer pessoa cadastrada no sistema, de qualquer lugar, através da internet (REZENDE, 2016). Ademais, o acompanhamento do processo é em tempo real, também oportunizado por meio do Serviço de Acompanhamento por E-mail, o qual notifica as partes dos andamentos processuais, enviando um e-mail com a informação.
5 PROCESSO JUDICIAL ELETRÔNICO E A CONCRETIZAÇÃO DOS PRINCÍPIOS PROCESSUAIS A informatização judicial, uma nova ferramenta para combater a lentidão do processo e permitir a concretização, num novo nível, do acesso à justiça, atualmente é permeado por muitas controvérsias, embora seja possível ressaltar os avanços que trouxe, como a praticidade e a simplicidade do andamento do processo, o que faz com que surja o questionamento sobre a concretização dos princípios processuais acima discutidos. Por isso, buscando discutir a efetividade do processo eletrônico, serão tratados diversos pontos levantados atualmente quanto as fragilidades e os benefícios do novo sistema que abriga o trâmite processual, a fim de, ao final, verificar quais mudanças são ainda necessárias para promoção de acessibilidade da justiça aos cidadãos, nos moldes propostos pela Constituição Federal.
Segundo Puerari e Isaia (2012), o processo judicial eletrônico não resolveu o problema da demora do Judiciário, uma vez que o processo em si é lento, além de que as alterações trazidas pela Lei nº 11.419/2006 não repercutiram no Processo Civil. O novo Código, ainda que ressalte a imprescindibilidade da celeridade processual, priorizou o efetivo contraditório, concedendo mais tempo para que as partes pudessem praticar os atos processuais, como dispõe o artigo 212. Ademais, o sistema, por passar por diversas instabilidades diárias, interfere na otimização dos atos processuais, uma vez que se gasta mais tempo para realizar um protocolo, para acessar ao sistema (seja na Secretaria da Vara ou no escritório de advocacia), do que seria necessário para imprimir a petição, a decisão, ou despacho, e juntar aos autos físicos, como outrora era feito, o que definitivamente não se encaixa no ideal do processo eletrônico. Entretanto, para Cordeiro e Borges (2014), o ideal do processo eletrônico está conectado com o princípio da celeridade processual, visto que o a informatização afasta o problema do chamado “tempo morto”, período de tempo em que o processo fica sem qualquer movimentação entre um ato judicial e outro, da mesma forma que suprime etapas cartorárias as quais consumiam tempo, como a numeração de folhas. Conforme Silva (2017), o processo eletrônico concretiza o princípio da celeridade processual quando aperfeiçoou a atividade dos magistrados, no tocante à possibilidade de produ-
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5.1 Celeridade Processual
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ção de despachos em lote, decisões iguais para casos iguais, bem como quanto ao julgamento de diversos processos ao mesmo tempo, o que se pode dizer que economiza tempo e acelera a finalização do processo. 5.2 Acesso à justiça
A grande dificuldade quanto ao Processo Judicial eletrônico é a deficiência na infraestrutura, muitas vezes a dificuldade de conexão, e quedas no fornecimento de energia, acarretam prejuízos ao peticionamento online, e com isso o tempo da tramitação da ação judicial ainda padece com atraso, pois alguns Tribunais não investem num departamento de tecnologia eficiente, com provedores e servidores mais qualificados para solucionarem os problemas que venham a surgir.
4 BOCCHINI, Bruno. Pesquisa mostra que 58% da população brasileira usam a internet. 2016. Disponível em:<http://agenciabrasil. ebc.com.br/pesquisa-e-inovacao/noticia/2016-09/pesquisa-mostra-que-58-da-populacao-brasileira-usam-internet>. Acesso em: 23 jul. 217.
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Outro ponto a ser discutido é a questão da carência de acessibilidade ao sistema. O processo eletrônico se destaca pela facilidade em ser acessado de qualquer lugar com internet, em qualquer horário, eliminando barreiras que limitavam o tempo útil da atividade jurisdicional. Entretanto, a estrutura deficiente da internet, com as dificuldades de conexão traz muitos prejuízos para aqueles que dependem do sistema, vez que muitos lugares do país não possuem internet eficiente, ou não possuem no geral (GONÇALVES, 2014). Segundo a 11ª Edição da pesquisa TIC Domicílios 2015, a qual menciona a posse, o uso, o acesso, e os hábitos da população no que toca às tecnologias da informação e da comunicação, ficou demonstrado que somente 58% da população tem acesso à internet, representando 102 milhões de pessoas. À medida que vai se caminhando para a classe D e E o porcentual de utilização vai caindo demasiadamente, o que comprova a desigualdade no uso das tecnologias de informação (BOCCHINI, 2016)4. Consoante afirma Rezende (2016), a carência da infraestrutura da internet é notada em cidades do interior do país, sendo difícil se conectar a uma conexão 3G, e até mesmo conexão banda larga, prejudicando sobremaneira o peticionamento eletrônico nas Comarcas interioranas, e, por conseguinte, criando barreiras para o acesso à justiça. Na mesma perspectiva, tem-se a instabilidade das plataformas dos sistemas do processo eletrônico. Resultante dos problemas da conectividade, os problemas de envio e download dos documentos contribui para a dificuldade de acesso ao processo eletrônico, o que acaba exigindo maiores conhecimentos de informática, ou o dispêndio de recursos para a contratação de técnicos para resolução da inacessibilidade (REZENDE, 2016). Juliana de Moura Silva (2017) corrobora com esse entendimento, destacando as consequências geradas pela deficiência da infraestrutura que leva ao atraso no andamento dos processos:
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Maralha, Penha e Rangel (2014) acrescentam que, aliado às dificuldades da deficitária estrutura da internet no país, estão as diversas versões do PJE e a exigência de preparo imediato dos profissionais a todas as situações e os transtornos possíveis, criando mais entraves para o acesso à justiça: Em se tratando dos advogados recém-formados que estão entrando no mercado de trabalho, com as 46 versões do PJe, eles deverão se estruturar para estarem atualizados, o que é uma grande barreira dada a condição financeira para os recém formados, já que terão que dispor de vários equipamentos e não somente de um simples computador, dificultando, sobremaneira, o acesso destes ao mercado de trabalho. Está-se diante de um dilema. A informatização será capaz de efetivamente agilizar o sistema, reduzir as idas e vindas dos profissionais do direito, possibilitar o recebimento de petições durante as 24 horas do dia, dentre tantos outros pontos positivos, entretanto, o PJe apresenta vários equívocos no que diz respeito a sua aplicação prática, visto que o legislador foi descuidado ao tentar impor um procedimento novo sem observar as devidas precauções estruturais dos serviços, no que diz respeito a seriedade dos fornecedores, de todo o sistema de informática implantado, e todas as suas vulnerabilidades, além do atendimento de péssima qualidade por grande parte dos envolvidos, que não dá segurança a seus usuários. Além disso, deve-se considerar, também, a instabilidade da tecnologia, e seus vícios de transmissão e armazenamento de dados na internet, aliado a isso, a estrutura física dos cartórios e a falta de qualificação e de pessoal não garantem assim, a prática tempestiva dos atos processuais. Poderíamos estar caminhando para o rompimento com o artigo 5º, XXXV da Constituição Federal, o direito de acesso à justiça por todos os cidadãos e estaria caindo por terra o princípio constitucional da inafastabilidade do acesso ao poder judiciário.
O Poder Público promoverá a eliminação de barreiras na comunicação e estabelecerá mecanismos e alternativas técnicas que tornem acessíveis os sistemas de comunicação e sinalização às pessoas portadoras de deficiência sensorial e com dificuldade de comunicação, para garantir-lhes o direito de acesso à informação, à comunicação, ao trabalho, à educação, ao transporte, à cultura, ao esporte e ao lazer.
Assim, observa-se que, a despeito das inovações e das transformações trazidas pela informatização da justiça como um todo, há entraves que ainda necessitam de soluções, como a deficiência na infraestrutura da internet, as dificuldades de acesso ao sistema devido às instabilidades das plataformas, a insuficiência no amparo aos portadores de deficiência, entre outros, o que viola diretamente o princípio do acesso à justiça. 5.3 Economia processual
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Por fim, não é despiciendo ressaltar que, num olhar perfunctório, verifica-se que o processo eletrônico não possui mecanismos acessíveis para as pessoas com deficiência (REZENDE, 2016), o que não condiz com o artigo 17 da Lei nº 10.098 de 19 de dezembro de 2000, o qual dispõe que
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Conforme Silva (2017), em termos de desenvolvimento sustentável, houve grande avanço com a introdução do PJE, em razão da redução da necessidade de se gastar papel com impressão, visto que, agora, todos os documentos são produzidos eletronicamente, acessíveis por meio de download, o que transpareceria maior segurança, sem o risco do extravio de documentos. Nesse sentido, destaca Silva (2017)
Contudo, alguns juristas se mostram preocupados com a vulnerabilidade do PJE, uma vez que, como o sistema exige a utilização da internet, Gonçalves (2014) entende que estaria passível de invasão por hackers, ocasionando insegurança quanto à sua utilização. Ressalta a estudiosa que o Brasil é um dos países mais frágeis em termos de segurança informática, sendo um problema para a utilização do PJE. Acresça-se que, consoante Rezende (2016), a não regulamentação sobre a guarda dos documentos incluídos no sistema pelos servidores do Judiciário é outra fragilidade da segurança, vez que, se esses documentos necessitem de qualquer análise, devem estar à disposição das partes, em razão da publicidade e autenticidade dos atos processuais. Marcos Patrick Chaves Barroso (2014) destaca que é necessário de se garantir maior segurança quanto às informações digitais no processo a partir de três regras: a) disponibilidade: os usuários devem ter a todo o momento acesso às informações, significando investimento na rede de comunicação para evitar paradas de funcionamento; b) acesso: mesmo se tratando de acesso a todos, seria necessário um cadastro presencial para possibilitá-lo; e, c) cópia de segurança: é imprescindível investir em cópia de dados, meios de armazenamento e ambientes para, caso preciso, restaurar os documentos. Por fim, ressalte-se que ainda é um desafio se acostumar com a leitura de processos em meio eletrônico para alguns profissionais, vez que, embora a virtualização do processo proporciona melhorias para o meio ambiente, e para o andamento processual, trabalhar com autos eletrônicos ainda não se mostra agradável para todos, causando cansaço e indisposição, em razão do grande dispêndio de tempo em frente ao computador e sua radiação luminosa (BARROSO, 2014). 5.4 Devido processo legal Outro ponto a se discutir são os prazos processuais. Segundo Porto Júnior e Porto Neto (2014), há insegurança jurídica quando, por instabilidade no sistema do PJE, os prazos neces-
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Outro ponto positivo em relação ao processo virtual é que evita eventuais perdas, furtos e extravios de processos e respectivos documentos, com a possibilidade de se fazer os downloads de todo o conteúdo e de todas as peças processuais existente nos autos, trazendo maior segurança das informações contidas nos documentos. Sem falar que alguns prazos processuais correrão em igual período para todas as partes, bem como a parte terá a ferramenta solicitar sigilo para juntada de petição sigilosa.
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sitem ser prorrogados, haja vista que os Tribunais nem sempre têm ciência sobre as falhas, ou, por serem às vezes falhas pontuais, atingindo poucos usuários, passam despercebidas pelo setor de apoio do Tribunal, dificultando o reconhecimento da necessidade de prorrogação dos prazos processuais.
Atualmente, os Tribunais disponibilizam certidões de indisponibilidade do sistema no próprio site, bastando que seja indicado o dia em que o profissional ficou impossibilitado de acessar. Ocorre que nem sempre são disponibilizadas tais certidões, porque nem sempre a falha do sistema chega ao conhecimento do setor de apoio ao PJE dos Tribunais, podendo, em alguns casos, não funcionar no escritório de um advogado e no Tribunal estar em pleno funcionamento, o que foge a explicações rápidas e simples para aqueles que possuem prazos a cumprir. Ademais, Porto Júnior e Porto Neto (2014) destacam que também já se constatou falhas quando se trata da contagem dos prazos processuais quando se trata de feriados locais ou pontos facultativos, o que prejudica demasiadamente os profissionais que se confiam nos prazos gerados pelo sistema. Destaque-se ainda que no PJE as partes são intimadas eletronicamente, no próprio sistema. Assim, caso o usuário não acesse frequentemente o sistema, será surpreendido com a perda de um ou mais prazos, visto que ele dispõe de em média 10 dias para ciência voluntária do ato processual, no final do qual será oficialmente considerado intimado, começando a correr o prazo respectivo. A Ordem dos Advogados do Brasil, ao discutir em 2013 os problemas do processo eletrônico, destacou que são encontrados problemas, inclusive, no controle de prazos, posto que num mesmo processo há contagem de prazos diferenciados para advogados representantes do mesmo polo, contribuindo para a incerteza no fiel cumprimento das determinações judiciais (OAB, 2013).5 As mencionadas dificuldades de acesso (falhas, quedas de energia, conexão) e a defi5 BRASIL. OAB. OAB aponta os cinco maiores problemas do Processo Judicial Eletrônico. 2013. Disponível em:<http://www.oab. org.br/noticia/25217/oab-aponta-os-cinco-maiores-problemas-do-processo-judicial-eletronico>. Acesso em: 23 jul. 2017.
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Em tais hipóteses é evidente o advogado poderá ser prejudicado diante da não inserção de uma indisponibilidade no relatório geral de incidentes. E, então, se pergunta como provar que, não constando a interrupção no quadro de avisos, o sistema estava, de fato, inoperante? Eis um contratempo fatigante porque a primeira vista seria fácil, bastaria salvar a tela informando o empecilho e então o prazo ficaria prorrogado. Todavia, não é assim que tem entendido o Superior Tribunal de Justiça, o qual, inclusive, tem jurisprudência firme recusando documentos extraídos da internet, senão vejamos um dos precedentes que ratifica o contrassenso que ainda impera entre a jurisprudência de seus órgãos e o interesse pela implantação de sistemas informatizados nos Tribunais, verbis: “Documento extraído da Internet – Ausência de Fé Pública – Deserção –Acórdão Recorrido em Harmonia com o Entendimento Desta Corte – Arts. 244 e 250 do CPC”.
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ciente infraestrutura da internet no país são fatores que tornam a exigência de acesso constante ao sistema para a conferência de prazos um desafio e um ônus extremamente penoso para os profissionais, principalmente aos advogados que são cotidianamente cobrados em seus prazos. Mais uma dificuldade pode ser encontrada na ausência de uniformização dos sistemas processuais eletrônicos dos Tribunais, haja vista que, embora o Conselho Nacional de Justiça esteja se esforçando para padronizá-los com a implantação do PJE em 2013, há ainda grande diversidade de plataformas no país, dificultando a intercomunicação dos órgãos jurisdicionais (BARROSO, 2014). Em alguns casos, a diversidade de sistemas do processo eletrônico decorre das várias falhas e problemas percebidos pelos Tribunais na utilização do mesmo, de modo que se busca, muitas vezes, flexibilizar a utilização do PJE, desenvolvido pelo CNJ, para que os jurisdicionados sejam melhor atendidos. Tal ocorreu com a Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais que recentemente substituiu o PJE pelo e-proc6, desenvolvido desde 2003 na Justiça Federal da 4ª Região (LUCHETE, 2017). Foram listados vários problemas observados com o uso do PJE, como instabilidade recorrente, demora na resolução dos problemas técnicos, enquanto que o e-proc apresenta, pelo menos, 7 vantagens em relação ao PJE, como “acesso por aplicativos móveis, funcionalidade simples e ferramentas para separar, publicar e enviar processos em lote” (LUCHETE, 2017). Logo, verifica-se que a implementação geral do PJE tem sido flexibilizada em razão dos problemas que surgem cotidianamente, tendo, inclusive, a Ministra Carmem Lúcia do Supremo Tribunal Federal suspendido no ano passado a implantação do sistema no STF, e anunciado em maio deste ano no Plenário do CNJ a permissão para flexibilização do uso da plataforma (LUCHETE, 2017).
Diante do exposto, conclui-se que o processo eletrônico é uma realidade presente e futura, passando a ser utilizado em todos os Tribunais do país, adentrando as Comarcas do interior, embora ainda a passos lentos. Detendo diversos benefícios, como a contribuição para a duração razoável do processo, a economia processual, eliminando etapas e esforços, a redução de gastos, o PJE apresenta o intuito de facilitar o acesso à justiça, tanto formal como substancialmente. O processo digital assume relevante importância no combate à morosidade do Judiciário, de modo que exige maior investimento no setor da informática para o aprimoramento do sistema, que ainda apresenta distorções e fragilidades, culminando na efetiva concretização do
6 O e-proc (Sistema de Transmissão Eletrônica de Atos Processuais da Justiça Federal) foi instituído pela Resolução 13, de 11 de março de 2004, pelo presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, permitindo, inicialmente, a tramitação eletrônica de processos do âmbito do juizado especial cível. Atualmente, os processos da justiça comum, bem como o segundo grau são abrangidos pelo sistema (MARCIELI. E-PROC. 2012. Disponível em:< http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/e-proc>. Acesso em: 03 set. 2017).
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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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devido processo legal, assegurado no rol de direitos fundamentais, pela Constituição Federal. Diversos entraves acompanham a utilização diária do sistema, o que não está passando despercebido nem mesmo pelos Tribunais, que vêm flexibilizando sua implantação e/ou substituindo-o por sistemas diferentes do padrão institucionalizado pelo CNJ para promover maior acessibilidade aos jurisdicionados, inobstante seja urgente a necessidade de unificação dos sistemas, padronizando as versões, e a adoção de uma postura definitiva dos responsáveis. É imperioso o desenvolvimento da informática para redução das falhas e instabilidades do processo eletrônico, uma vez que a insegurança jurídica é sentimento constante dos profissionais e partes, os quais se submetem diariamente às reviravoltas do sistema, que tem como objetivo maior o de facilitar o trâmite processual, com a mudança do meio em que ocorre o desenvolvimento da demanda. A informatização do Judiciário não resolverá todos os problemas que o permeiam, sendo mais uma forma de aprimorar a prestação da tutela jurisdicional, que estava se mostrando ineficiente. Por isso, torna-se imprescindível o constante desenvolvimento dos sistemas eletrônicos para que o fornecimento da tutela satisfativa seja feito de forma eficiente, com qualidade, segurança, e transparência, ancorado nos princípios processuais. Há muitos entraves a serem transpostos pelos operadores do direito, visto que o Processo Judicial Eletrônico está longe da perfeição almejada, sendo preciso maior capacitação dos servidores, a uniformização dos sistemas, a correção das instabilidades e falhas das plataformas, instituindo, enquanto não resolvidos tais problemas, uma alternativa viável para que aqueles que dependem do bom funcionamento do sistema, como a possibilidade de protocolo físico em algumas situações, visto que, sendo um direito fundamental, a prestação jurisdicional não pode falhar ou faltar àqueles que dela necessitam.
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ABSTRACT The present work proposes an analysis of the electronic judicial process and its implications within a practical and principological scope. The principles applied to the judicial process will be analyzed and with it a reflection on the attainment of the intended objectives with the change. For the accomplishment of the study, a qualitative methodology was used, with bibliographical revision. It is concluded that the electronic judicial process follows a worldwide trend of computerization and facilitation of access, but there are still some gaps that need adjustment so that the principles guiding the electronic judicial process reach their fulfillment. Keywords: Procedural principles. Electronic judicial process. Judicial computerization. Electronic procedure.
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Recebido 02/08/2017 Aceito 30/10/2017
O PROBLEMA DA JUSTIÇA: TOTALITARISMO, DIREITO E A ASCENSÃO DAS DEMOCRACIAS CONSTITUCIONAIS1 Gabriel Campos Soares da Fonseca2
1 INTRODUÇÃO A 2ª Guerra Mundial representou um período de mudanças nas diversas áreas do conhecimento e da vida em sociedade. Com a derrocada dos regimes totalitários e autoritários, diversas alterações sociais, políticas, econômicas e jurídicas abriram espaço para a expansão de uma visão mais humanista e pragmática do Direito. Tal ponto de vista passou a se preocupar mais com a proteção e o provimento dos direitos tidos como salvaguardas dos indivíduos frente
1 Agradeço ao Professor Otavio Maciel pelos comentários essenciais para este artigo. 2 Graduando da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (FD/UnB). Visiting Student (2016) em “Democrazia e Sviluppo” na Università degli Studi di Siena (UniSi-Itália). Bolsista (FUB) do Programa de Iniciação Científica (PIBIC/UnB).
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RESUMO O presente artigo trata, em linhas gerais, dos impactos do contexto do fim da 2ª Guerra Mundial no Direito, em especial na Filosofia do Direito e no Direito Constitucional. Para tanto, analisou-se criticamente a literatura acerca do tema, partindo-se da seguinte indagação: de que forma os paradigmas jusfilosófico e constitucional da época foram alterados? Visando responder esta pergunta, toma-se o conceito de “Justiça” – essencial para o sistema jurídico – como exemplo para investigar tal questionamento na seara da Filosofia do Direito. Em seguida, explora-se a consolidação do modelo de Democracia Constitucional como dominante após as atrocidades cometidas no período. Palavras-chave: Justiça. Totalitarismo. Democracia Constitucional.
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3 KELSEN, Hans, O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 4 ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
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às possíveis novas ingerências abusivas de líderes de Governo. Além disso, tal cenário elucidou também a relevância de um sistema jurídico estruturado e afeito aos ideais democráticos. Nessa linha, o presente artigo busca explorar, como panorama geral, os impactos do contexto do fim da 2ª Guerra Mundial no Direito, em especial no âmbito da Filosofia do Direito e do Direito Constitucional. Para tanto, indaga-se: de que forma os paradigmas jusfilosófico e constitucional foram alterados pelo advento da 2ª Guerra Mundial? Visando responder a tal pergunta, toma-se o conceito de Justiça – essencial para o sistema jurídico – como exemplo para investigar este questionamento acerca das alterações radicais das estruturas do paradigma jusfilosófico da época. Destarte, almeja-se expor um panorama geral do contraste entre as concepções de Justiça de dois prestigiosos autores: Hannah Arendt e Hans Kelsen. Essa escolha se dá não somente pela importância de ambos para o contexto, tampouco pela discrepância das linhas argumentativas deles. Em verdade, ambos os autores sofreram perseguições por parte do regime nazista à vista de inclinações político-ideológicas e de preferências religiosas, em especial ao judaísmo. Por isso, aparentam, ao fundo de suas obras, ter a preocupação precípua de instituir mecanismos sólidos de luta contra as mazelas do totalitarismo. Outrossim, é preciso analisar as exposições críticas externadas por ambos, para então, diferenciá-los e, posteriormente, explorar o possível encontro desses dois marcos teóricos. Com isso, intenta-se em visualizar o legado e a importância de ambos para o pensamento jusfilosófico ulterior. Assim, a despeito da concomitante análise bibliográfica de diversos escritos de ambos os autores, tem-se como foco desta parte da investigação duas obras: “O Problema da Justiça”3, de Hans Kelsen e “As Origens do Totalitarismo”4, de Hannah Arendt. Na primeira parte deste trabalho, almeja-se compreender a concepção de Hans Kelsen acerca do problema da Justiça. Tendo em vista a missão do autor de realizar uma teoria pura do Direito capaz de isolá-lo da Moral, a Justiça, para ele, se situaria como algo fora do campo de estudo da Ciência do Direito, pois carregaria forte conteúdo moral intrínseco a qualquer discussão que a envolvesse. Nesse sentido, o direito positivo estaria autorizado a ir de encontro com mandamentos de justiça de modo que isso não o tornaria inválido. Dessa maneira, o autor prossegue e demonstra a necessidade de se ver com maior cautela o problema da “Justiça” à vista das possíveis manipulações ideológicas que o conceito pode vir a receber. A segunda parte do trabalho intenta em observar, igualmente, a visão de Hannah Arendt no que diz respeito ao conceito de Justiça. Sua perspectiva diferencia-se da de Kelsen na medida em que, de forma diluída, suscita um entrelaço entre Direito, Moral e Política. Nesse raciocínio, expõe seu pensamento no qual a Justiça, sob uma perspectiva pragmática, parece se apresentar somente no caso em concreto. Para tanto, a autora expõe os riscos que uma visão abstrata de direitos (humanos) pode acarretar, bem como os perigos de se olhar os indivíduos
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2 A JUSTIÇA PARA HANS KELSEN Em primeiro lugar, é importante ressaltar que a abordagem de Kelsen acerca da Justiça deve ser lida em vista de sua luta contra as concepções que, ao seu ver, desarmavam os indivíduos contra o advento de regimes totalitários (NETO, 2010, p. 94). Isso, porque o autor acreditava que as “fórmulas de justiça” poderiam ser utilizadas para “maquiar” ideologicamente uma série de abusos.
5 Ver: BICALHO, Guilherme P.D.; FERNANDES, Ricardo VC. Do positivismo ao pós-positivismo jurídico: O atual paradigma jusfilosófico constitucional. Brasília: Revista de Informação Legislativa, a. 48, n. 189, jan. /mar. 2011.
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sob uma perspectiva genérica e abstrata. Argumenta, então, que tal postura acabou por permitir que esses humanos ficassem legalmente desprotegidos e que se propagasse um forte desinteresse pela vida humana. Dessa maneira, para a autora, o efetivo provimento de direitos gera a necessidade de se estabelecer mecanismos práticos e Instituições fortes capazes de garanti-los no caso concreto. Em suma, Arendt visa efetivar um modelo de Justiça particular e concreto e evitar uma abstração da própria vida humana, sob pena de se perder a dimensão de sua real relevância. Não obstante as visíveis diferenças e os caminhos percorridos distantes entre si, na terceira parte deste artigo, objetiva-se evidenciar os possíveis entrelaçamentos entre as ideias expostas pelos dois autores. Isso, com o propósito de demonstrar que, apesar de linhas argumentativas bem distintas, ambos almejam os mesmos fins: o provimento de direitos, a formulação de procedimentos normativos legítimos capazes de garantir concretamente tais direitos e a desconstrução de um paradigma totalitário. Indo além, na persecução desses fins, os pensamentos da Filosofia do Direito e do Direito Constitucional da época acabaram por se influenciar mutua e reciprocamente, encontrando-se no intuito de proteger os cidadãos contra as barbáries do totalitarismo e no apego à escolha de procedimentos normativos seguros e legítimos que visassem a consolidação e a fruição dos direitos fundamentais. Por fim, a última parte deste artigo se preocupa em esclarecer como a 2ª Guerra Mundial foi importante para a mudança do paradigma constitucional da época. A maioria da literatura5 a respeito do tema acaba por dar maior foco na derrocada do positivismo jurídico e a consequente ascensão do pós-positivismo, especialmente no que tange à passagem de uma visão do Direito mais afeita à rigidez das regras para a ascensão das teorias principiológicas e o reencontro do Direito com a Moral. Diferentemente, aqui, a intenção é demonstrar que este cenário foi responsável por: (i) permitir a ascensão das Democracias Constitucionais ao redor de diversos países do mundo; (ii) solidificar a compreensão de que Constitucionalismo e Democracia exercem uma relação tensa e conflitiva, porém crucial; (iii) fazer com que os direitos fundamentais passassem a ser a razão de existência e de legitimidade das Constituições posteriores; e (iv) fortificar o papel do Poder Judiciário na manutenção da Democracia;
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Hans Kelsen, ao postular sua teoria, buscava alicerçar a pureza do Direito com o fato de que esse não deveria se entrelaçar com a Moral, assim, evitando sincretismos metodológicos entre o Direito e outras áreas na medida em que isso obscureceria a essência do estudo jurídico. Para ele, o Direito seria sempre o dito direito positivo e tal positividade repousaria no fato de que sua anulação e sua criação residiriam em decisões de seres humanos sendo, portanto, independentes da moralidade de sistemas (KELSEN, 2009, pp. 166-168).O Direito, assim, sob um giro decisionista, adviria, em última instância, da autoridade. Por conseguinte, sob tal óptica normativista, Kelsen trata a Justiça como algo para além de sua Teoria Pura e, consequentemente, fora da Ciência Jurídica. Sendo assim, ela poderia ser relacionada a um agente ou a um ato, todavia não a uma norma. Dessa forma, a Justiça estaria relacionada com o âmbito das virtudes e seria simplesmente um atributo humano específico a um indivíduo ou frente à sua conduta social. Por exemplo, um juiz poderia ser justo ou injusto, porém esta constatação não seria aplicável às normas que ele aplica, mas sim apenas ao modo em que ele as aplica. Dessa maneira, o problema da Justiça pertenceria a reflexões do âmbito da Ética e da Filosofia, mas não do Direito. Isso à vista de que as ditas “normas de justiça” seriam, ao fundo, normas morais (NETO, 2010, p. 95).Nessa perspectiva, portanto, o autor somente se preocupava com a autoridade válida positivamente. Seguindo tal adensamento teórico, a visão kelseniana de Justiça demonstra que essa virtude e as normas advindas dela estariam relacionadas com qualidades morais fora do direito positivo. Havendo choque ou contradição entre “normas de justiça” e “normas positivas”, Kelsen criticava o jusnaturalismo e afirmava a inexistência de tal conflito, pois não seria juridicamente possível avaliar se uma norma positiva era justa ou não. A corrente teórica jusnaturalistaafirmava que as normas positivas estariam vinculadas ao direito natural e só seriam válidas – vinculariam as pessoas obrigando-as à conduzirem-se de acordo com o seu mandamento – em face de sua consonância com as “normas naturais” ou com as “normas de justiça”. Malgrado, o autor austríaco realizou uma abordagem na qual ele concluía com o posicionamento de que não seria possível realizar juízos de valor sob normas. Assim, as normas positivas, sob o ponto de vista da validade, existiriam independentemente de estarem em conformidade com as normas de justiça (KELSEN, 1998, pp. 5-9). Diferentemente, para a doutrina jusnaturalista, como já afirmado, o direito positivo apenas seria válido na medida em que estivesse adequado ao direito natural, isto é, somente o “Direito justo” seria, de fato, Direito (MATOS, 2004, p. 81). Por isso, na visão kelseniana, a avaliação se uma norma seria justa ou injusta seria um verdadeiro erro lógico, pois normas jurídicas somente poderiam ser analisadas a partir de critérios de validade, ou seja, só seria possível avaliar se elas seriam válidas ou inválidas. Caso contrário, chegar-se-ia ao absurdo de reconhecer que duas normas igualmente válidas seriam contraditórias (MATOS, 2004, p. 78). Destarte, Kelsen, ao tratar deste assunto, perpassa por diferentes tipos de “normas de justiça” buscando demonstrar tal característica ideológica intrínseca a elas. Basicamente, dividiu tais normas em: (i) metafísico-religiosas – com a pretensão de fundar um ideal de justiça
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3 A JUSTIÇA PARA HANNAH ARENDT Hannah Arendt buscou expor as atrocidades advindas do totalitarismo e do contexto que permitiu o surgimento dos apátridas no decorrer de suas obras. Esses grupos de indivíduos acabavam por perder os ditos “direitos do homem” na medida em que viviam sem nação e eram,
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absoluto que seja oriundo de uma instância superior propagadora de um conhecimento inatingível ao conhecimento humano experimental – expondo como exemplo a justiça na concepção de Platão e a justiça no ideário cristão e (ii) racionais – passíveis de compreensão pela racionalidade humana, assim como instituídas por atos humanos de vontade – exemplificando o ideário de justiça comunista de Karl Marx, o meio termo de Aristóteles e muitos outros meandros que envolvem até mesmo o dito preceito do “amor ao próximo” (KELSEN, 1998, pp. 16-17). A Justiça, em não raras vezes, poderia ser utilizada como um instrumento de legitimação da dominação (KELSEN, 2008, p. 151). Portanto, Kelsen busca demonstrar que o Direito não necessita respeitar um dito mínimo moral para ser, assim, aceito como tal, pois sua validade e sua própria natureza requerem somente valor jurídico (KELSEN, 1976, p. 104). Em outras palavras, a lei tal como posta pelo legislador, caso tenha seguido os procedimentos adequados e tenha respeitado os moldes hierárquicos necessários, firma-se no ordenamento jurídico e assim “adquire” validade. Desse modo, a discussão acerca da Justiça é extremamente relevante, todavia não constitui objeto de estudo da Ciência do Direito, mas, sim, da Ética, tendo em vista o inerente conteúdo moral de tais normas de justiça. Sucintamente, o raciocínio jurídico deveria, em verdade, se preocupar apenas sobre os seguintes juízos acerca das normas: lícito/ilícito, o legal/ilegal, constitucional/inconstitucional, válido/inválido. Por isso, Kelsen se preocupa em estudar este tão importante conceito, no entanto, faz questão de deixar explícito que tal juízo de valor não encontra solo em sua Teoria Pura, pois, para ele, tal discussão se situa fora do escopo de estudo do próprio Direito. Kelsen, como neokantiano, trata a Justiça de modo relativizado, isto é, excluindo a possibilidade de um ideal de Justiça absoluto e universal. O autor apresenta esta visão relativista do conceito na qual não seria possível elucidar, conceituar ou conceber a Justiça de maneira absoluta, pois ela não seria um conceito estanque e inerte comum a todos os homens (BITTAR, 2000, p. 554). Ao contrário disso, em verdade, a Justiça só poderia ser entendida sob uma concepção particular que contemplasse sua adequação ao caso em concreto. Assim, sucintamente, não seria possível, portanto, observar uma espécie de “Justiça universal”. Vale ressaltar que o autor, entretanto, na obra estudada com maior enfoque, não adentrou explicitamente no mérito da existência ou inexistência da Justiça, apenas pressupõe a impossibilidade de se formular juízos de valor jurídico acerca dela e da possível manipulação que normas de justiça podem sofrer. Todavia, ao longo de seus escritos, ele fornece fortes e claros indícios de acreditar que só seria possível verificar tal conceito no caso em concreto e fora do raciocínio estritamente jurídico.
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6 É valido ressaltar, nesse mesmo raciocínio, que “ao atribuir as culpas [das atrocidades oriundas destes regimes] não devemos esquecer que os nazistas, na verdade, aplicaram em prática diversas teorias e políticas dominantes desde o fim da década de 20 na Europa. Essa variável nos ajuda a compreender o ‘espírito colaboracionista’ de tantos cidadãos (tanto alemães quanto de outros países dominados por este regime) com as políticas de extermínio “ (tradução livre). Para uma maior compreensão, ver: GALAIN PALERMO, Pablo. La culpa de la guerra en Hannah Arendt y Karl Jaspers. São Leopoldo: RECHTD, v. 7, n. 2, 2015. p. 129
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consequentemente, regidos por leis de exceção como o “Tratados de Minorias”. Além disso, eles tinham como seu organismo protetor uma entidade abstrata e distante comandada pelos mesmos países que negavam o reconhecimento da sua cidadania, a Liga das Nações (ARENDT, 1998, p. 306). Dessa forma, a condição de apátrida, por exemplo, na verdade, para ela, foi resultado do próprio desinteresse pela vida humana6e não do inchaço populacional dos países ou até mesmo da aversão ao “outro” (estrangeiro) à vista da conjectura que se passava. Em sua exposição, Hannah Arendt demonstrou a contradição e o paradoxo do apego ao discurso da época da presença de direitos humanos vistos como inalienáveis, não obstante em notável contraste com a presença de milhões de indivíduos vivendo sem direito algum (ARENDT, 1998, p. 312). Nessa linha, também suscitou uma importante crítica em relação à ideia abstrata de direitos humanos para questionar sua relevância no contexto prático e real: quem seriam, de verdade, os homens protegidos pelos “direitos do homem”? Ao se formular generalizações e formatar um indivíduo comum e abstrato, perdeu-se a essência e a particularidade de todos os homens. Consequentemente, impossibilitou-se a concretização real dos direitos prometidos na medida em que eles necessitam ser particularizados à luz das demandas do caso concreto para de fato existirem. A autora questiona, dessa forma, a validade pragmática da propagação retórica de direitos humanos abstratos e da efetividade de se intentar em tutelar uma condição humana universal. Ao deixar tais pessoas à mercê da sorte e sem nenhuma jurisdição, os ordenamentos legais de diversos países foram afetados, pois tais pessoas sem direito algum começaram, por exemplo, a transgredir a lei à vista de que os criminosos detinham uma melhor posição jurídica e um melhor tratamento legal do que os apátridas (ARENDT, 1998, p. 320) em diversos Estados. Todo esse descaso com a dignidade da pessoa humana acabou por causar uma grande crise de confiança acerca da universalidade dos direitos humanos e das próprias leis baseadas neles (ARENDT, 1998, p. 324). Tal desconfiança foi gerada pela percepção prática de que os direitos humanos, que deveriam existir independentemente de governos, acabavam não sendo garantidos na ausência de Instituições sólidas que pudessem assegurá-los. Assim, ao ser expulso de uma nação, o indivíduo acabava sendo expulso de todas as nações, consequentemente, posicionando-se fora de toda legalidade (ARENDT, 1998, pp. 327-328). Tais situações fáticas deixavam os afetados com uma a última baliza legal: o direito a se ter direitos. Em tal situação, em que a única coisa que resta a alguém é o fato de ser humano e por isso ter direito a ter direitos, nota-se que o sentido e a essência humana foram esvaziados e a vida acaba por perder o seu real valor. Assim, no momento em que o sentido de algo escapa aos homens, o mundo manifesta sua inospitalidade, tendo em vista que o mundo e os laços que vinculam os homens dependem, ao fundo, da significação que estes lhe dão (SILVA, 2011, p. 112).
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Os direitos fundamentais, anteriormente, eram justificados sob uma espécie de lei imutável da natureza pela qual existiriam direitos naturais coletivos referentes às castas sociais. Isto é, o pensamento vigente via o lugar social de cada indivíduo como algo pré-estabelecido e os seus respectivos direitos seriam providos sob a ideia de “dar a cada um o que é seu”. Não obstante, na modernidade, buscou-se estruturar um suposto mais individual. Com o surgimento do jusnaturalismo racionalista, intentou-se em propiciar os direitos como supostos individuais na medida em que cada pessoa seria titular desses, independentemente de seu lugar na sociedade. A partir dessa visão individualista, em verdade, é que se formatou a ideia de universalidade dos direitos. Arendt, nesse raciocínio, expôs uma espécie de jusnaturalismo bem diferente daquele advindo das teorias do mundo Clássico, pois notava-se nele ainda resquícios da religião, mais especificamente da mitologia grega. Criticando tal concepção Clássica, Arendt acaba por demonstrar que em tal condição fundamental de privação de direitos, a natureza não traz leis inerentes à condição humana capazes de proteger os indivíduos. Na verdade, para ela, mais do que isso, seria necessário que houvesse a presença de governos, de Instituições e de mecanismos responsáveis por um efetivo abrigo. Em suma, tal contexto totalitário demonstrou que paradoxalmente era possível perder os direitos humanos em geral na medida em que o indivíduo era considerado, unicamente e meramente, humano (ARENDT, 1998, p. 335).Destarte, o ideal da Justiça, para Arendt, não diria respeito a uma virtude moral primordial que alicerça todas as outras, tampouco significaria a conformidade da conduta com a norma (SILVA, 2011, p. 113). A autora, assim, expõe um conceito de Justiça que é, sim, universal no qual todos os homens têm o direito a ter direitos. No entanto, observa, também, que isso não é forte o bastante para proteger tais indivíduos. Assim, o esvaziamento das Instituições e do próprio Poder-Nação acabaria por desproteger, como um todo, os direitos humanos e as garantias fundamentais. Isso, pois, com isso, ficam ausentes os mecanismos capazes de concretizá-los e efetivá-los sob uma óptica pragmática. O ideal da Justiça, então, acaba deixando de ser um bem em si, inatingível, e passa a se tornar uma ideia teórica, todavia que só poderia ser observada nas particularidades do caso em concreto. Portanto, a Justiça para Hannah Arendt encontra-se diluída em suas obras. Sob sua óptica, o Direito, alicerçado em padrões jurídicos fortes, traz legitimidade jurídica, política e social à comunidade tornando-se, então, um elemento crucial para a concretização da Justiça. Nessa linha, ela se sustenta a partir da legitimidade advinda do Direito aplicado por referenciais claros oriundos de um corpo estruturado de leis, regras e princípios. Na mesma medida, tal conceito, em Arendt, passa a ser observado a partir da noção de equidade – entendida como um elemento de adequação do Direito ao caso concreto (FREITAS, 2014, p. 136), essencialmente, fugindo de tais abstrações e generalidades que permitiram o desamparo de inúmeros indivíduos à luz dos horrores do totalitarismo.
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4 CAMINHOS DIFERENTES PARA UM MESMO FIM: PROCEDIMENTOS NORMATIVOS E O PROVIMENTO DE DIREITOS
Por isso, para o autor, uma concepção meramente abstrata de Justiça dentro do Direito poderia permitir que ele fosse corrompido por ideologias e que sua aplicação ficasse passível de manipulação. Afinal, como outrora o autor afirmou “a guerra é o pai de todas as coisas, o rei de todas elas. [...] Alguns, ela demonstra serem deuses; outros, homens. A alguns, ela faz escravos; a outros, homens livres” (KELSEN, 2008, p. 22). Arendt, por outro lado, vinculou-se de certa forma ao jusnaturalismo demonstrando uma espécie de apego ao “direito natural a ter direitos” pelo qual qualquer pessoa teria“direito a ter direitos”. Todavia, o que é relevante para tal comparação é que a própria autora demonstra que isso não é suficiente. Para ela, a presença de procedimentos normativos que permitam a garantia de tais direitos é o elemento essencial para a garantia pragmática e concreta desse “direito a ter direitos”. Nesse sentido, Arendt postula que seria importante promover a existência de mecanismos institucionais e de instituições fortes a fim de defender, fiscalizar e garantir tais direitos quando afrontados e violados. Em suma, partindo-se do pressuposto de que as pessoas têm direito a ter direitos, Arendt observava a Justiça de forma universal, porém concreta, porque visualizava a importância de sua realização na prática e acreditava que ela somente poderia ser densificada no caso concreto. Kelsen, de outra maneira, acreditava que os estudos acerca do problema da Justiça representam uma reflexão extrajurídica, isto é, fora de sua Teoria Pura, isso implicava em dizer, então, que esta reflexão não seria objeto de análise da Ciência do Direito. No entanto, apesar de 7 Esta expressão, aqui, abarca os procedimentos legislativos realizados a partir da deliberação de autoridades legítimas e que têm o intuito de construir previsões legais de proteção dos indivíduos, em especial de minorias, blindando-os contra as possíveis ingerências abusivas do Estado frente aos direitos fundamentais dos cidadãos. Cabe expor que, para ambos, tais procedimentos normativos deveriam prever a existência de Instituições fortes e independentes capazes de garantir o “enforcement” e a fiscalização de suas previsões legais. 8 Para melhor compreender como tal modelo é operacionalizado, ver: KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 4ª ed. Coimbra: Armênio Armado, 1976.
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À vista dos males oriundos da Segunda Guerra Mundial, Kelsen e Arendt foram perseguidos por causa de suas ideias. Em consequência disso, sempre criticaram as consequências que tais regimes ofereciam a diferentes áreas da vida e do conhecimento. A despeito dos métodos extremamente diferentes e da divergência de perspectivas especialmente no que tange à relevância do conceito de Justiça, o apego aos procedimentos normativos seguros7 para o caso concreto acabou por unir tais posicionamentos teóricos. Ou seja, apesar de apresentarem pontos de vista bem diferentes, ambos, em verdade, lutam contra a mesma coisa: a onda totalitária que abarcou o contexto vivenciado por eles. Para tanto, observavam que era preciso propagar um maior apreço aos moldes teóricos e institucionais capazes de garantir mais segurança aos procedimentos legislativos e normativos. No caso de Kelsen, nota-se tal apego de forma clara durante toda a estruturação e formatação de sua obra. Isso, pois ele dedicou-se até mesmo à elucidação de possibilidades de atuação de tais procedimentos dentro do sistema jurídico, bem como de possíveis modelos seguros para a operacionalização deles8, pois sem eles o Direito seria somente mera abstração.
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tais diferenças no que tange ao papel da Justiça, ambos concebiam a importância de uma visão pragmática e concreta dessa, assim como partilham da noção de que dever-se-ia prestar maior atenção aos procedimentos normativos/institucionais do Estado com o intuito de superar as atrocidades dos regimes totalitários para que elas não se repetissem.
Karl Loewenstein, ao escrever neste mesmo contexto durante a Guerra e no pós-Guerra, abordou a expansão do constitucionalismo9 como um fenômeno relativamente difundido pelo mundo. As Constituições, especialmente ao longo da Europa, detinham inegáveis semelhanças, todavia apresentavam enormes diferenças na maneira em que eram operadas. O autor classificava, assim, as Constituições de sua época em três tipos: as Constituições Normativas, as Constituições Nominais e, por fim, as Constituições Semânticas (LOEWENSTEIN, 1976, pp. 215-216).Entretanto, para os fins deste trabalho, é interessante observar especificamente somente as Constituições Semânticas - as Constituições que seriam, em verdade, meros instrumentos de governo a fim de concentrar poder na mão de poucos e desproteger os governados. Desse modo, elas teriam sido responsáveis por trair o sentido original atinente à qualquer Constituição e, assim, mascarar os males trazidos por esses governos totalitários e autoritários (LOEWENSTEIN, 1976, p. 217). Não obstante as incontáveis atrocidades geradas, tais Constituições permitiram, também, após o final da Guerra, a ascensão de um ideal democrático que, agora, no entanto, pressupunha a limitação e a contenção do poder (FONSECA, 2016, p. 308) de forma substancial. Consequentemente, o constitucionalismo - entendido tal como é hoje - acabou por reforçar a centralidade de características como a observância de direitos fundamentais e a estipulação dos limites ao poder de Governo (ROSENFELD, 2003, pp. 36-37).Outrossim, talvez a maior contribuição dada pelo século XX ao pensamento constitucional foi a de alertar os atores políticos e jurídicos da época da necessidade de conformar os textos constitucionais aos direitos fundamentais (FURTADO, 2016, p. 31). Isso implicou em dizer que os direitos fundamentais não somente começaram a impregnar a fundamentação do ordenamento constitucional e a estruturação do Estado, como também passaram a fazer parte de sua própria essência, sua razão de ser. Em consequência disso, os direitos fundamentais passaram a ser entendidos como aquisições evolutivas, isto é, oriundos de um percurso histórico-constitucional socialmente criado. Em outras palavras, nessa linha, tais direitos passaram a se apresentar como “direitos institucionalizados em uma sociedade improvável, complexa” (CARVALHO NETTO, 2003, p. 9 Faz-se necessário ressaltar que esta expressão apresenta diversos significados e diferentes posicionamentos ideológicos e intelectuais. Existem vários “constitucionalismos”, no entanto, a estrondosa maioria apresenta bases comuns mencionadas ao longo do texto como, por exemplo, a limitação do poder de Governo e o respeito aos direitos fundamentais. Para uma boa explanação acerca do tema, ver: SOUSA, Inês Alves de; MARÓN, Manuel Fondevila. Divergências e convergências entre as teorias de Rudolf Smend e Konrad Hesse na interpretação dos direitos fundamentais. São Leopoldo: RECHTD, v. 9, n. 1, 2017. pp. 12-14
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142) afeita ao respeito à diversidade e à defesa do pluralismo social. Desse modo, é fácil perceber que os direitos fundamentais se firmaram, de fato, como limites materiais à deliberação democrática, fixando eles longe do alcance de maiorias eventuais. Portanto, a 2ª Guerra Mundial serviu como evento paradigmático para reestruturar o sistema jurídico à luz dos horrores advindos da utilização da estrutura burocrática do Estado para massacres (ARENDT, 1964, p. 135). Por exemplo, na esteira da lição do professor Bruce Ackerman, a situação alemã pós-nazismo criou um cenário de “Novo Começo” no qual a Constituição se apresentou como um marco simbólico de grande transição na vida política da nação (ACKERMAN, 1996, p. 778).Nesse diapasão, grande parte dos atos de reminiscência do holocausto, inclusive a própria posterior Constituição alemã, fixaram-se como símbolos relacionados à luta contra o totalitarismo. Outrossim, o intento era o de se evidenciar o potencial democrático do uso da memória para informar a comunidade internacional acerca da violação sistemático e/ou generalizada de direitos (PAIXÃO; FRISSO, 2016, p. 192) que ocorreu. À luz disso, é preciso perceber que essa mudança paradigmática não influenciou apenas o conceito de Justiça no âmbito da Filosofia do Direito e da Teoria do Direito, mas também propagou a difusão do modelo de Democracia Constitucional ao redor do mundo. Nesse caminho, tem-se um novo paradigma jusfilosóficoe constitucional em que o apego à escolha de procedimentos normativos seguros com o intuito de consolidar a fruição dos direitos fundamentais – semelhança apontada entre Kelsen e Arendt - consubstanciou-se como égide do pensamento político-constitucional posterior. Aqui, Filosofia do Direito, Teoria do Direito e Direito Constitucional parecem ter se encontrado. Com a consolidação deste modelo de democracia constitucional, especialmente nos países ocidentais, após as terríveis experiências de totalitarismo e autoritarismo, a ideia da existência de uma tensão inexorável entre constitucionalismo e democracia tornou-se cada vez mais forte (CHUEIRI, 2012, p. 2). A legitimidade popular de alguns governantes para cometer barbáries e a adesão massiva da população a estes regimes fizeram com que se chegasse à conclusão de que o princípio majoritário, sozinho, não seria capaz de assegurar por completo a igualdade política. Em verdade, a expressão das urnas – voto majoritário, por exemplo, diria respeito à voz dos vencedores e não necessariamente ao dito “bem comum” ou ao interesse da sociedade como um todo (KOZICKI; BARBOZA, 2008, p. 152).A democracia firmou-se, então, como expressão da vontade da maioria, todavia respeitando as minorias existentes. Mais do que isso, o Poder Judiciário começou a realizar um importante papel na proteção, realização e interpretação dos direitos fundamentais positivados nas Constituições dessa nova era. Assim, foi possível perceber, com clareza solar, a difusão de Cortes Constitucionais ao redor do planeta, bem como seu paulatino ganho de força com a implementação e consolidação do controle de constitucionalidade (BARBOZA, 2013, pp. 43-44) como meio para proteger
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minorias, prover direitos e expandir a autoridade do Judiciário.10 Nesse cenário, por conseguinte, tal tensão demonstrou que ambos elementos precisariam conviver de forma conflituosa e paradoxal a fim de se produzir uma relação produtiva e rica entre eles. Dessa forma, democracia e constitucionalismo passaram a se apresentar como fundamentos co-originários e reciprocamente constitutivos na medida em que se constatou que sem um não há, efetivamente, o outro, sob pena de se ver novamente instauradas as mazelas geradas pelos regimes totalitários. Em suma, a democracia sem o constitucionalismo poderia gerar uma vontade ilimitada da maioria, uma ditadura da maioria. Por outro lado, o constitucionalismo só é constitucional e íntegro, caso esteja inserido em um ambiente democrático (CARVALHO NETTO, 2003, p. 15). Em decorrência disso, constituiu-se uma sociedade em que o fundamento filosófico da legitimidade do Estado tornou-se o de que o povo se autogoverna à luz das bases teóricas do governo majoritário, porém tal governo e tais decisões populares deveriam ser limitadas pela lei das leis, a Constituição (CHUEIRI; GODOY, 2010, p. 159). Invertendo o entendimento anterior, as normas constitucionais não seriam mais os instrumentos de legitimidade dos direitos fundamentais, pelo contrário, a Constituição só adquiriria legitimidade na medida em que fosse balizada pelos direitos fundamentais (STRECK, 2010, p. 51). Afinal, defender a legitimidade democrática de um regime constitucional significa dizer que ele é compatível com o exercício da democracia na dimensão da relação do povo com sua Constituição (COLON-RÍOS, 2011, p. 2). Por isso, o advento da Segunda Guerra Mundial e as discussões tocantes aos efeitos do totalitarismo fixaram a tarefa básica dos constitucionalistas e jusfilósofos posteriores: “Sem abrir mão do conhecimento crítico acerca das inegáveis possibilidades de usos abusivos do Direito em geral, do Constitucional em especial, [deve-se] resgatar, em um contexto de racionalidade que se sabe limitada, o reencantamento com o Direito e com a Democracia; enfim, com os direitos fundamentais e com o constitucionalismo” (CARVALHO NETTO; SCOTTI, 2011, p. 40)
O intuito aqui, portanto, é demonstrar que a 2ª Guerra Mundial representou um evento paradigmático para o Direito na medida em que fez com que o modo em que ele era operado e legitimado fosse radicalmente alterado. Indo além, a banalização da vida humana e a propaga-
10 É preciso perceber que atualmente, em especial no Brasil, observa-se a inversão do problema. A dita legitimidade “contramajoritária” do Judiciário tem feito com que ele se hipertrofiasse de maneira perigosa à luz de uma postura ativista além dos limites benéficos a um ambiente democrático. Nessa linha, atualmente, as Supremas Cortes aparentam ser as detentoras da última palavra sobre assuntos relevantes para a sociedade. No entanto, a premissa deve ser clara: busca-se uma Supremacia Constitucional e não Judicial. Para uma crítica mais atenta, ver: GODOY, Miguel Gualano de. Devolver a Constituição ao Povo: Crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2017.
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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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ção de atrocidades por via do aparato estatal acabaram por, paradoxalmente, gerar a consciência social e teórica posterior capaz de instaurar um modelo de Estado Democrático de Direito substancial e material. A literatura costuma indicar que, à luz do percurso histórico-político da humanidade, inúmeros processos de escrita de uma Constituição mais democrática costumam se originar a partir de revoluções populares (HUTCHINSON; COLON-RÍOS, 2013, p. 1).Na mesma linha, historicamente, constata-se a visão de que, em não raras vezes, momentos de extremo sofrimento humano e de sacrifício dos direitos fundamentais parecem propagar, posteriormente, movimentos sociais e teóricos inclusivos e afeitos à fruição e à proteção de direitos. Para além de uma aproximação entre as duas teorias, é possível perceber, ao analisar criticamente as obras de ambos autores, a importância que tal debate acerca do conceito de Justiça trouxe para a prática jurídica posterior e para o próprio pensamento jusfilósofico subsequente. As elucidações a respeito da relevância da Justiça para o direito positivo permitiram, a partir das concatenações de Kelsen, a percepção dos perigos que possíveis manipulações ideológicas de normas jurídicas podem acarretar. Por outro lado, a partir de Arendt, constatou-se, então, a importância da existência de mecanismos e de instituições capazes de garantir, efetivamente, o provimento de direitos aos indivíduos e de propagar o próprio ideário de Justiça no caso concreto. Constatou-se, portanto, sucintamente, a complexidade das questões atinentes à possível instrumentalização da prática jurídica e a importância da criação de bases teóricas de legitimação das instituições, das Constituições e dos governos por meio de procedimentos normativos seguros arraigados em princípios democráticos.
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CONSTITUTIONAL DEMOCRACIES
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ABSTRACT This paper aims to provide an overview about the World War II’s impacts on Law, particularly on Philosophy of Law and Constitutional Law. In order to do so, I critically analyze the previous literature on the subject, starting from the following question: how the paradigms of these legal subjects were changed? To answer this question, the concept of “Justice” – essential for the legal system – is taken as an example to investigate the impacts on the first legal field (Philosophy of Law). Therefore, first, I present Hans Kelsen’s vision of Justice, which is, for him, an issue that is outside Law’s scope of study. Secondly, I present Hannah Arendt’s perspective on the matter of “Justice” which is seen in a pragmatic way, that is, it must be strengthen in the “real life cases”. Next, despite the distant argumentative lines, I try to present the similarities between both theories. That is, both theories aim to combat the totalitarian wave by means of safe normative procedures in order to protect and promote fundamental rights. Finally, then, I explore the consolidation of the Constitutional Democracy’s model- seen as dominant after the atrocities that happened in World War II. Keywords: Justice. Totalitarism. Constitutional Democracy. Hans Kelsen. Hannah Arendt.
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Recebido 06/08/2017 Aceito 30/10/2017
REFORMA OU REVOLUÇÃO? A VISÃO DE KANT SOBRE O DIREITO DE RESISTÊNCIA Suzana Melo de Oliveira1
RESUMO Este trabalho objetiva, a partir da justificativa do Estado civil de Kant na obra A Metafisica dos Costumes, analisar a existência ou não de um direito de resistência, bem como o caminho da reforma do direito. Para tanto, buscou-se identificar o posicionamento de Kant quanto a Revolução Francesa, tanto do ponto de vista de seu conteúdo, quanto do ponto de vista de seu procedimento. Defendendo-se, por fim, que, apesar de uma primeira leitura sugerir um Kant estritamente contrário a resistência, uma visão mais detalhada desse tema em suas obras pode sugerir, na revolução, uma chave para o agir cidadão. Palavras-chave: Revolução. Reforma. Kant. Filosofia do Direito.
O tema da revolução tem sido objeto de intensas pesquisas, especialmente no que diz respeito ao posicionamento de Immanuel Kant em relação à Revolução Francesa, considerada o maior evento de ruptura ocorrido no século XVIII. Há trabalhos defendendo um Kant rigidamente conservador, beirando a estupidez, até um Kant revolucionário. O ponto é que as obras desse filósofo singular podem mesmo levar a essas duas conclusões dependendo do ponto de partida, não sendo, necessariamente, visões contraditórias. No presente trabalho, o que se objetiva é analisar esta temática na obra jurídica por
1 Graduanda do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
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1 INTRODUÇÃO
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excelência de Immanuel Kant, A Metafisica dos Costumes, especificamente, a sua primeira parte, intitulada A Doutrina do Direito. Nesta obra, Kant faz uma distinção entre ações i) contrárias ao dever, ii) conforme o dever e iii) ações por dever. As primeiras seriam tidas como imorais, as segundas seriam amorais e apenas as terceiras seriam consideradas éticas, pois seriam realizadas segundo o imperativo categórico. Desta forma, Kant distingue o Direito da Ética, sendo o agir ético necessariamente um agir por dever, enquanto o Direito pode ser conforme ou contrário ao dever. Além disso, enquanto as leis éticas regulam ações internas e externas e não implicam a existência do Estado, as leis jurídicas somente conseguem regular ações externas. Neste sentido, a Doutrina do Direito procura responder: como são possíveis leis jurídicas morais? Como o Estado pode ser justo? Para Kant, essas são questões relevantes, na medida em que é possível e legítimo estudar o Direito partindo-se apenas de uma perspectiva do direito positivo. Entretanto, não se pode limitar o direito apenas ao direito que está posto, pois, parafraseando o filósofo aqui em análise, seria como uma cabeça provavelmente bonita, mas impossibilitada de pensar. Devendo-se, portanto, falar em justiça. Desta feita, e partindo-se de tais pressupostos, foi analisado o fundamento do Estado de Direito na doutrina kantiana e se há algum espaço para resistência a esse Estado ou modificação de suas leis em caso de injustiça.
2 DO ESTADO DE NATUREZA AO ESTADO DE DIREITO: A GARANTIA DA LIBERDADE
“É verdade que o estado de natureza não necessita, simplesmente por ser natural, de ser um estado de injustiça, de tratar-se mutuamente apenas em termos do grau de força que cada um tem. Mas ainda persistiria sendo um estado destituído de justiça, no qual, quando os direitos estão em disputa, não haveria juiz competente para proferir uma sentença detentora de força jurídica” (KANT, 2008a, p. 154).
Como pode-se perceber, diferentemente de Hobbes (2014), Kant não anula o estado de natureza com o surgimento da sociedade civil, pois, embora já houvesse direito numa sociedade sem Estado, este se dava de maneira equívoca, com muitos problemas para se manter. Desta
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A constituição do Estado civil em Kant não surge de um contrato original real, mas de um interesse comum da razão universal. Um ato da razão legisladora de homens que se permitem estar abaixo de leis de coação, sem prejuízo de sua liberdade. Esta união se dá para que haja igual liberdade e autonomia, na medida em que fundamenta os atos públicos em preceitos racionais, controlando os impulsos da fragilidade humana, e, assim, distanciando-se da injustiça presente no estado de natureza. Para Kant:
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feita, a formação de um ordenamento político-jurídico racional torna viável os direitos naturais (privados), que antes eram obstaculizados pelo caos. Neste sentido, o Estado é moralmente necessário para estabelecer as regras de um direito inequívoco, porque estabelece o modo racional de relação entre sujeitos de direito, garantindo igual liberdade para todos. Assim, mesmo uma sociedade “feita de anjos” necessitaria do Estado para julgar as eventuais discordâncias entre o direito mais adequado a ser aplicado. Para Hobbes (2014), o quadro constante de guerra é a razão de ser do Estado civil, no entanto, para Kant, embora a guerra impulsione a criação do Estado, ela não é a sua justificativa2. Pois, como dito anteriormente, o Estado trata-se de um mandamento moral, um imperativo categórico: “E não se pode dizer: o ser humano num Estado sacrificou uma parte de sua liberdade externa inata a favor de um fim, mas, ao contrário, que ele renunciou inteiramente à sua liberdade selvagem e sem lei para se ver com sua liberdade toda não reduzida numa dependência às leis, ou seja, numa condição jurídica, uma vez que essa dependência surge de sua própria vontade legisladora” (KANT, 2008a, p. 158).
Vê-se aqui uma preocupação em restringir o exercício da liberdade natural movida por impulsos,na transição do estado de natureza para a condição civil, a fim de reprimir o perigo à coexistência dos indivíduos pelo exercício de uma liberdade obediente. Logo, pode-se dizer que o estabelecimento de condições legais de permissão e vedação, e a necessidade dos indivíduos conformarem seu agir a esse conteúdo coercitivo publicamente imposto, é, implicitamente, o primeiro dos deveres jurídicos. Dito isso, ver-se-á se há a possibilidade de resistência dentro da ideia do contrato originário, que, como pode-se concluir até aqui, possui um intuito nitidamente ordenador, de instalação e manutenção da paz.
A resistência política é uma ideia presente desde a antiguidade, passando pelo medievo e sendo melhor trabalhada conceitualmente na Idade Moderna pelos pensadores contratualistas, como Thomas Hobbes, John Locke e Jean Jacques Rousseau.O tratamento dado à resistência variou,ao longo do tempo, desde a relação pejorativa de ato exercido por facção até a ação legítima em contextos de opressão. Locke (2005), por exemplo, defendia a legitimidade de resistência dos súditos quando o soberano conduzisse o governo em prestígio exclusivo de seus interesses
2 Nas palavras de Holtman (2002, p. 215), “The Kantian state is necessary, then, not to transform a chaos ruled by force and wiles into an order where appetites are coercively reigned in for mutual advantage. It is required to ensure that persons can treat others, and ensure that they themselves are treated, as free, equal, and independent citizens”. [“O estado kantiano é necessário, então, não para transformar um caos governado pela força e astúcia em uma ordem onde as paixões são coercitivamente dominadas para vantagem mútua. É necessário garantir que as pessoas possam tratar os outros e garantir que elas mesmas sejam tratadas, como cidadãos livres, iguais e independentes]. Livre tradução.
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3 O DIREITO DE RESISTÊNCIA EM KANT
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privados. No entanto, na obra A Metafísica dos Costumes, Kant demonstra um esforço no sentido oposto aos seus predecessores, numa tentativa de demonstrar a contradição existente em se admitir um direito de resistência dentro da sociedade civil. Neste sentido, esclarece Rodrigues (2012, p. 19): “Como admitir que a mesma razão universal – que conduziu os indivíduos a imperativa consolidação de uma sociedade apaziguada, conduzida pelo soberano – pudesse, ao mesmo tempo, conter uma cláusula autorizadora de mecanismos jurídicos legítimos para o questionamento do poder institucional estabilizador?”.
Tal posicionamento, aos olhos hodiernos, demonstra-se sobremaneira conservador, porém, a aversão de Kant a insurreição dos cidadãos, justifica-se pela coerência com o fundamento pelo qual a condição civil foi pactuada e pelo temor em comprometer e/ou até dissolver qualquer projeto jurídico para o futuro em comunidade:
Conforme a citação anterior, os riscos em torno do direito a resistência são desenvolvidos a partir da aplicação do Princípio Transcendental da Publicidade, princípio este trabalhado mais profundamente na obra Á Paz Perpétua (KANT, 2011), na qual declara-se que o agir sobre direitos alheios que não puder ser publicizado, devendo ser ocultado por medo da universalização da prática, será necessariamente injusto. Grande parte do esforço de Kant (2008) concentra-se em demonstrar, com argumentos sólidos, a contradição jurídica interna que haveria se a própria constituição permitisse ao povo ir de encontro a seus representantes (o legislativo soberano). O autor questiona como poderia haver autoridade competente para julgar eventual conflito e aponta o erro em o povo querer ser juiz da própria causa: “(...) mesmo a constituição não pode conter nenhum artigo que possibilitasse a existência de algum poder no Estado para resistir ao comandante supremo no caso de haver por parte dele a violação da lei da constituição, de modo a restringi-lo. Pois alguém a quem cabe limitar a autoridade num Estado precisa ter ainda mais poder do que quem é por ele limitado, ou, ao menos, tanto poder quanto ele; e, como um senhor legitimo que dirige os súditos a resistência, precisa também ser capaz de protegê-lo e prover julgamentos que detenham força jurídica em quaisquer casos que surjam, devendo, por conseguinte, ser capaz de comandar publicamente a resistência. Neste
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“A razão do dever que tem um povo de tolerar até o que é tido como um abuso insuportável da autoridade suprema é sua resistência a legislação maior nunca poder ser considerado algo distinto daquilo que contraria a lei (...) Para que um povo estivesse autorizado a oferecer resistência, seria necessário haver uma lei pública que lhe facultasse resistir, isto é, a legislação maior teria que encerrar uma disposição de que não é soberana, e que torna o povo, na qualidade de súdito, por um e o mesmo critério, soberano sobre aquele ao qual está submetido” (KANT, 2008a, p. 163). [grifo nosso].
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caso, entretanto, o comandante supremo num Estado não é o comandante supremo; ao contrário, é aquele que é capaz de lhe oferecer resistência, o que é contraditório”. (KANT, 2008a, p.162). [grifo nosso].
Segundo Rodrigues (2012), a permissão legal a resistência, significaria, em última instância, que os indivíduos insatisfeitos com o poderio estatal instaurado com a constituição civil, teriam, em posição notadamente privilegiada no contrato, aparatos jurídicos aparentemente institucionalizados para o exercício arbitrário das próprias razões, o que retiraria deles a qualidade de súditos. Um dos trechos mais relevantes presentes em A Metafísica dos Costumes, que fundamenta o não direito a resistência é o seguinte: “O poder legislativo pode pertencer somente à vontade unida do povo, pois uma vez que todo o direito deve dele proceder, a ninguém é capaz de causar injustiça mediante sua lei. Ora, quando alguém realiza disposições tocantes a outra pessoa, é sempre possível que cause injustiça a esta; entretanto, jamais é capaz de produzir injustiça em suas decisões concernentes a si mesmo. Portanto, somente a vontade concorrente e unida de todos (...) pode legislar” (KANT, 2008a, p. 156). [grifo nosso].
Aqui, Kant afirma a responsabilidade do povo em honrar com a primeira das obrigações políticas firmadas no pacto inicial, qual seja, a obediência as leis instituídas em unidade. Tanto é assim, que, em A Metafísica dos Costumes, os cidadãos são chamados de súditos e o representante legislador de soberano. Logo, se o direito emana do povo, o povo não pode decidir quem fica fora do direito. Por essa razão, há uma contradição interna no abandono da ideia de direito pelo povo, através da resistência.
4 O JULGAMENTO DE KANT SOBRE A REVOLUÇÃO
“Se um súdito, após ter ponderado sobre a origem última da autoridade então soberana, quisesse se opor a esta autoridade, seria punido, exterminado ou expulso (como um fora da lei) de acordo com a leis dessa autoridade, ou seja, com todos os direitos” (KANT, 2008a, p. 161).
Fica claro então, que tal comportamento não deve ser tolerado, pois trata-se de um golpe. Logo, se não houver êxito na revolução, quem lhe deu causa deve ser punido segundo o ordenamento vigente. Por outro lado, se houver êxito, e uma nova ordem entrar em vigor, as ações tomadas anteriormente a ela não devem ser justificadas moralmente. Para entender melhor o posicionamento kantiano quanto a esse tema, é importante
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Seguindo a ideia do tópico anterior, Kant é enfático ao expor as consequências de rebelar-se contra o Estado. Na seção Dos efeitos jurídicos que se seguem da natureza da associação civil, ele declara:
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analisar como ele interpretou o momento histórico da Revolução Francesa, visão esta, que, dentre outras obras, pode ser encontrada em O conflito das faculdades(KANT, 2008b). Nela, Kant demonstra-se favorável as ações motoras da Revolução, por coerência aos ideais por ele defendidos, criticando o Antigo Regime como uma fase que devesse ser superada por esquecer e insultar os direitos do homem. Por outro lado, o filósofo manifesta indignação pelo procedimento radical adotado no curso revolucionário. Para ele, o radicalismo levado a concreto pelo movimento revolucionário francês representou um absurdo: “é como se o Estado cometesse suicídio” (KANT, 2008a, p.165).Trata-se de um desfazimento completo do contrato originário e um retorno ao estado de natureza e à ausência de juridicidade. Segundo Bobbio (1997, p. 149) “(...) a atitude de Kant é ao mesmo tempo de atração e de repulsão, de entusiasmo pela grandiosidade dos eventos e de pavor pelo desencadeamento das paixões”. É importante ressaltar, como assinala Ricardo Terra (2003), que os juízos kantianos sobre a revolução podem ser vistos em diferentes perspectivas: do ponto de vista jurídico, como já exposto até aqui, e, no que concerne a liberdade, do ponto de vista da filosofia da história, que melhor pode elucidar as aparentes contradições do filósofo. Do ponto de vista da análise do progresso humano, a “experiência universal” do entusiasmo causado pela Revolução Francesa pode indicar uma disposição moral do caráter humano, a qual permite a progressão para o melhor. De acordo com Fonseca (2010, p. 38):
Com efeito, Kant (2008b) não perde a oportunidade também de afirmar que se um homem “bem pensante” esperasse repetir um tal acontecimento, não deveria, se reparasse nos custos de uma revolução, querer empreendê-la mais uma vez. Porém, esta discussão presta-se a uma análise mais cuidadosa da filosofia da história kantiana, cujo presente trabalho não comporta fazer. Dito isto,pode-se concluir que Kant não pressupõe uma perfeição racional das leis elaboradas na condição civil, como se poderia pensar em um primeiro momento, mas admite a necessidade de eventuais alterações, sendo estas realizadas dentro de um procedimento legítimo e positivado.
5 O QUE FAZER QUANDO AS REGRAS DO JOGO NÃO SÃO RESPEITADAS Ao longo de toda obra em análise, Kant mostra-se um completo positivista, pois aplica
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“A revolução pode estabelecer um melhor estado de coisas ou fracassar por completo, pois o que importa não é a revolução tomada em particular, sob o ponto de vista de algum dos seus atores ou até mesmo de um espectador, o que importa é encontrar nela algo que revele uma disposição moral no gênero humano, o que já é um ganho significativo se pensarmos que “esse ganho” pode conduzir a política e a vida pública doravante”.
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todos os esforços para salvar o Direito, acreditando nele, e, sobretudo, acreditando na política para corrigi-lo e transformá-lo. Para Kant, na condição civil aliena-se o direito de usar a força. Pode-se ter o direito de reclamar, mas nunca de usar a força contra o Estado, pois tal conduta seria juridicamente insustentável, como já exposto: “Mesmo que o órgão do soberano, o governante, proceda contra a lei, por exemplo, se opor-se a lei da igualdade na distribuição do ônus do Estado em matéria de tributos, recrutamento, etc., os súditos poderão realmente fazer oposição a essa injustiça mediante queixas, mas não por meio de resistência” (KANT, 2008a, p.162). [grifo nosso].
Kant admite a ocasião de reformas graduais na constituição defeituosa, desde que promovidas pelo poder legislativo, ideia essa decorrente do conceito de soberania, cuja titularidade pertence ao corpo de cidadãos e é diretamente exercida pelos órgãos destinados à atividade legiferante, sendo qualquer reforma, portanto, conduzida de forma legítima, somente por este:
É possível indicar, que a possibilidade de resistência jurídica existe apenas em sua forma passiva, uma vez que os cidadãos não concordem com certas medidas dadas pelo governo, o povo pode, através de seus representantes legislativos, se opor à execução daquelas. Não se pode, no entanto, ter uma visão tão isolada deste assunto. Embora esteja claro que não se pode tentar remover as autoridades estatais, o que se pode fazer é abster-se de realizar quaisquer atos imorais que o Estado possa exigir de seus cidadãos. Faz-se imperioso destacar, como Kant repetidamente deixa claro, que as ações de um Estado servem plenamente aos propósitos que justificam sua existência apenas quando são justos. Elas devem estar em conformidade com o padrão que exige respeito pela liberdade, igualdade e independência de cada um. Embora, na teoria do direito de Kant (2008), em tese, deveres e direitos, não colidam, na prática, podem haver colisões. Isso ocorre numa situação em que as pessoas ajam de maneira irracional ou incoerente, podendo colocar os outros em um dilema. É importante deixar claro que o paradoxo ocorre numa situação específica, não no sistema, e, que, apesar de existirem
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“Uma mudança da constituição (deficiente), que pode certamente ser necessária ocasionalmente, é exequível, portanto, somente através de reforma do próprio soberano, porém não do povo, e por via de consequência, não por meio de revolução; e quando tal mudança ocorre, a reforma só pode afetar o poder executivo, não o legislativo” (KANT, 2008a, p. 165).
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casos que escapem a racionalidade, isso não justifica aceitar casuísmos3. No entanto, mesmo que se pense em uma lei que claramente contraria a justiça kantiana, ainda surgem problemas sobre a melhor maneira de responder a ela. Holtman sugere que a chave dessa resposta esteja no “espírito de liberdade” em Kant, cuja expressão se dá:
Neste sentido, embora haja razões formais suficientes para ser contrário a resistência, também existem, no pensamento kantiano, razões para se concluir que a ideia da revolução não seja inevitavelmente contrária à justiça, como uma resposta inicial sugere. Sarah Holtman(2002) elenca quatro implicações, que relacionadas a justiça kantiana, confirmam essa ideia, as quais sejam:“visão, senso de justiça, orientação e autoconcepção” (HOLTMAN, 2002, p. 229-231). Com relação a primeira implicação, em geral, quem sofre as tensões psicológicas sociais, pode ter dificuldade em formar uma imagem abrangente dos maus que estão sendo praticados e das etapas necessárias para mudanças positivas. A notícia do ato revolucionário pode ser um catalisador para o pensamento, preparando aqueles, agora quase incapacitados, para entender os erros cometidos, pois o medo e o horror têm o poder de fechar os olhos ao papel de avaliação como cidadãos. O senso de justiça é aquele que desperta nas pessoas acometidas pelo medo, uma paixão pela justiça. A busca por alguma maneira de explicar um ato surpreendente de bravura ou tolice (a resistência) pode provocar o reconhecimento intelectual da injustiça que deve ser corrigida. Mas, ver profundamente, perceptivamente, o que deve ser feito e ser movido para o fazer, normalmente exige mais. A quarta implicação consiste em que, por vezes, a sensação de obediência suprema por parte do povo pode ajudar a evitar que os cidadãos reconheçam a profundidade dos erros cometidos em torno deles. Neste cenário, o ato revolucionário pode ser também um fator de orientação, na medida em que me possibilita a comparação entre uma injustiça e outra. A autoconcepção está relacionada ao cidadão idealizado por Kant não ser meramente uma criança a ser dirigida. Ele participa e tenta corrigir erros em leis e instituições, considerando-se responsável por isso.
3 “Justice may indeed be underdetermined for some, even many, circumstances. This does not mean, though, that it is underdetermined in all circumstances and for all questions. Certain laws and institutions will clearly contravene basic Kantian commitments (…) This seems to be the case, for example, where what is at issue is the state’s participation in genocide, slavery, or severe discrimination on cultural, religious, or racial grounds” (HOLTMAN,2002, p.225). [A justiça pode, de fato, ser subdeterminada para algumas circunstâncias, mesmo muitas. Isso não significa, porém, que está subdeterminada em todas as circunstâncias e para todas as questões. Certas leis e instituições irão violar claramente os compromissos básicos de Kant (...) Este parece ser o caso, por exemplo, onde o que está em causa é a participação do estado no genocídio, no esquecimento ou na discriminação severa por motivos culturais, religiosos ou raciais”]. Livre tradução. 4 “(…) not only by giving our opinion on political issues, but by refusing on occasion to honour or comply with the requests of the head of state. The spirit of freedom is thus not simply contemplative; to avoid contradiction, the Kantian citizen must act, not merely think” (HOLTMAN, 2002, p. 226).
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“(...) não só dando nossa opinião sobre questões políticas, mas recusando, ocasionalmente, honrar ou cumprir os pedidos do chefe de Estado. O espírito de liberdade não é, portanto, simplesmente contemplativo; para evitar a contradição, o cidadão kantiano deve agir, não apenas pensar” (HOLTMAN, 2002, p.226)4.
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Por fim, para Holtman (2002), apesar dos perigos da revolução, às vezes respeitamos os cidadãos livres, iguais e independentes, tentando remover o governo de seu lugar. Embora o método revolucionário seja questionável, o poder de despertar e informar a capacidade da cidadania nos outros e preservá-la em nós mesmos será melhor do que a decisão de nunca agir em uma situação controversa.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS A Doutrina do Direito de Kant, sem dúvida, revela um filósofo republicano e positivista, que, em nome da coerência metodológica adotada na construção do Estado civil, demonstra a impossibilidade e a contradição na existência de uma cláusula de exceção, que viesse a inverter os papéis de súdito e soberano, impossibilitando a existência de uma autoridade competente para mediar esse conflito, direcionando-nos estreitamente pelo caminho da reforma paulatina. Por outro lado, através de outros textos do autor, pode-se perceber uma visão mais ampla de Kant quanto a resistência, por coerência aos ideais iluministas por ele defendidos. Se em uma primeira leitura, a primeira parte de A Metafísica dos Costumes pode parecer ingênua e distante da realidade presente - desconsiderando as possíveis injustiças legislativas e impossibilitando o cidadão de voltar-se contra elas - fazendo do lento processo de reforma política a única alternativa; um olhar mais demorado sobre as bases do conjunto de obras do filósofo (o fundamento do contrato originário, a igual liberdade, o princípio da publicidade, etc.) leva a concluir que, apesar dos altos riscos inerentes a revolução, os ideais que a impulsiona e a ameaça de sua possibilidade pode despertar um agir cidadão crítico e autônomo, aproximando-a da ideia de justiça, fim último do direito, cujo direito positivo sozinho, jamais pode alcançar.
REFERÊNCIAS
FONSECA, Thiago Santana. Kant e a Revolução Francesa: direito de resistência e entusiasmo. 2010. 56 f. Monografia (Bacharel em Filosofia) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2010. HOBBES, Thomas. Compêndio Leviatã. Trad. de Jackson Pierre de Andrade e Ricardo Marcelino Palo Rodrigues. São Paulo: Hunterbooks, 2014. HOLTMAN, Sarah Williams. Revolution, Contradiction, and Kantian Citizenship (209-231 p.)In:Kant’s Metaphysics of Morals: Interpretative Essays. Edited by Mark Timmons, New York: Oxford University Press, 2002.
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BOBBIO, Norberto. Direito e estado no pensamento de Emanuel Kant. Trad. de Alfredo Fait; Revisão técnica Estevão Rezende Martins. Brasília, Unb, 1997.
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KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. 2. ed. Tradução, textos adicionais e notas de Edson Bini. Bauru: Edipro, 2008. ______. O conflito das faculdades. Trad. de Artur Morão. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2008. (Coleção Textos Clássicos da Filosofia). ______. À paz perpétua. Tradução e prefácio de Marco Zingano. Porto Alegre: L&PM Editores, 2011. (Coleção L&PM POCKET). LOCKE, John. Dos tratados sobre o governo. Trad. de Julio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 2005. RODRIGUES, Anna Beatriz Alvim da Cunha Pereira.Direito e Revolução em Kant. 2012. 60 f. Monografia (Bacharel em Direito) - Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012. TERRA, Ricardo Ribeiro. Passagens: estudos sobre a filosofia de Kant. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003. REFORM OR REVOLUTION? KANT’S VISION ON THE RIGHT OF RESISTANCE ABSTRACT This paper aims, from the justification of the civil state, in the work
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The Metaphysics of Morals, to analyze whether or not a right of resistance, as well as the way of the reform of the law. In order to do so, we sought to identify Kant’s position regarding the French Revolution, both in terms of its content and in the point of view of its procedure. Finally, it is argued that, although a first reading suggests a Kant strictly against resistance, a more detailed view of this theme in his works may suggest, in the revolution, a key to the citizen action. Keywords: Revolution. Reform. Kant. Philosophy of Law.
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Recebido 14/08/2017 Aceito 30/10/2017
POLÍTICAS PÚBLICAS E A EDUCAÇÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Valter da Costa Santos1
“Amanham-se as plantas pela cultura e os homens pela educação. Se o homem nascesse grande e forte, seu porte e sua força seriam inúteis até que ele tivesse aprendido a deles servir-se” (Jean-Jacques Rousseau).
1 INTRODUÇÃO
1 Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Pós-Graduando em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Estadual de Londrina. Técnico em Administração de Empresas. Integrante do Grupo de “Hermenêutica Constitucional: a judicialização e o limite interpretativo do poder judiciário” da Universidade Estadual de Londrina.
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RESUMO A pesquisa trata da importância da educação como direito fundamental e social, na concretização do paradigma do Estado Democrático de Direito. Defende a importância de políticas públicas para a efetivação do direito à educação como direito fundamental. Assevera o direito à educação como elemento essencial na vivência da própria dignidade da pessoa humana. Ao tratar-se da educação como direito fundamental social, demonstra-se que não há uma autoaplicabilidade, sendo imprescindíveis as ações estatais e a participação de toda a população para uma eficácia social na concretização do paradigma do Estado Democrático de Direito. Palavras-chave: Educação. Políticas públicas. Estado Democrático de Direito.
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A educação como direito fundamental social ocorre por meio de políticas públicas adequadas e através da participação efetiva de todos os cidadãos, sendo que esses só podem participar efetivamente por meio de um processo educacional, possibilitando-lhes a plena compreensão do paradigma do Estado Democrático de Direito com seus pressupostos e exigências. Para a realização da democracia, não basta atribuir a um elevado número de cidadãos o direito de participar, direta ou indiretamente, da tomada de decisões coletivas. Para que a população tenha efetivamente a possibilidade de um exercício democrático, o direito fundamental à educação é essencial para a formação de todo ser humano, uma vez que a educação funciona como processo de interação social e participação política, inclusive na elaboração das leis. O Estado Democrático de Direito é decorrência de uma democracia representativa, participativa e pluralista, garantindo a realização de prática dos direitos fundamentais, inclusive dos direitos sociais. A Constituição Federal, artigo 6º, traz a lume que a educação é um direito social, bem como um direito fundamental, de modo que o artigo205 da Constituição Federal trata da educação como direito de todos e dever do Estado e, inclusive, da família, asseverando que a educação será incentivada e promovida com a colaboração de toda sociedade. Nesse espeque, o alcance para todas essas garantias contidas no texto constitucional, para uma participação efetiva do intérprete, só é possível através de um processo educacional, vez que a ausência de uma educação básica e integral do indivíduo ocasiona sua exclusão, com consequente ausência de participação política. O método utilizado é o dedutivo, através do qual se inicia a pesquisa por meio de conceitos gerais do significado semântico e sócio-político de Estado Democrático de Direito para, após, buscar-se a compreensão da importância da formação educacional em relação às normas jurídico-constitucionais, onde o intérprete, através de uma formação adequada, participe e desfrute efetivamente da democracia. Para tanto, utiliza-se de dados obtidos a partir de levantamento bibliográfico, apoderando-se, como fonte de pesquisa, do estudo legal e doutrinário.
A educação possui grande importância na atualidade, uma vez que trata-se dedireito fundamental social. Sendo assim, uma breveincursão histórica se faznecessária para o entendimento das problemáticas hodiernas. Os gregos preocupados em relação à interação entre o processo histórico da formação do ser humano e o seu processo espiritual, produziram seu projeto ideal de humanidade: Os antigos estavam convencidos de que a educação e a cultura não constituem uma arte formal ou uma teoria abstrata, distintas da estrutura histórica objetiva da vida espiritual de uma nação; para eles, tais valores concretizavam-se na leitura, que é a expressão real de toda cultura superior (JAEGER, 2003, p. 3).
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2 A EDUCAÇÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
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A educação não seria propriedade apenas de alguns indivíduos, mas de toda a comunidade, bem como “em nenhuma parte o influxo da comunidade nos seus membros” teria maior força que no esforço contínuo de educar (JAEGER, 2003, p. 4). Deveria ser um processo de construção consciente, “só a este tipo de educação se pode aplicar com propriedade a palavra formação” (JAEGER, 2003, p. 13). Como aponta Jaeger: A palavra alemã Bildung (formação, configuração), é a que designa do modo mais intuitivo a essência da educação no sentido grego e platônico. Contém ao mesmo tempo a configuração artística e plástica, e a imagem, “idéia”, ou “tipo” normativo que se descobre na intimidade do artista. Em todo lugar onde esta idéia reaparece mais tarde na História, ela é uma herança dos Gregos, e aparece sempre que o espírito humano abandona a idéia de um adestramento em função de fins exteriores e reflete na essência própria da educação (JAEGER, 2003, p. 14-15grifo do autor).
Para o povo grego, acima do homem supostamente autônomo, seria necessário compreender o homem como um ser universal. A essência da educação consistiria, justamente, na modelagem dos indivíduos pelas normas da comunidade (JAEGER, 2003, p. 14). A educação, no sentido mais amplo, significa:
O processo educacional é imprescindível para o desenvolvimento do ser humano, uma vez que tem a possibilidade de despertar o interesse e a coragem para a realização de uma grande transformação no âmbito das relações humanas.Infelizmente, além de existiruma crise patente de ilegalidades e de legitimidade, as ações políticas dos representantes do povo não se coadunam com a vontade social, onde a atuação estatal não reflete a legitimação popular (FREIRE, 2001, p. 23). O texto constitucional é iluminado por fundamentos que apontam para a necessidade do ser humano desenvolver possibilidades para a convivência em sociedade (GOMES, 2011, p. 209). Uma Constituição deve ser efetiva e útil atoda população, desse modo, “será totalmente inútil todo cuidado para elaborar uma boa Constituição se ela não for efetivamente aplicada e respeitada por todos, governantes e governados” (DALLARI, 2010, p. 195). Porém, devem adequar-se os instrumentos propícios para a construção da história humana (ALFLEN DA SILVA, 2000, p. 15). Nesse passo, só a educação tem a força de libertar
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[...] um processo de atuação de uma comunidade sobre o desenvolvimento do indivíduo a fim de que ele possa atuar em uma sociedade pronta para a busca da aceitação dos objetivos coletivos. Para tal educação, devemos considerar o homem no plano físico e intelectual consciente das possibilidades e limitações, capaz de compreender e refletir sobre a realidade do mundo que o cerca, devendo considerar seu papel de transformação social como uma sociedade que supere nos dias atuais a economia e a política, buscando solidariedade entre as pessoas, respeitando as diferenças individuais de cada um (BOBBIO, 1986)
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os seres humanos para uma construção e participação autônomas na criação de sua própria história. A ordem jurídica “que de modo algum é pressuposto, não está dada, porém, pelo contrário, constitui uma tarefa, pois o processo de formação de uma unidade política e de uma ordem jurídica é, antes de tudo, um processo histórico concreto” (ALFLEN DA SILVA, 2000, p. 349/350), o qual reclama uma colaboração consciente de toda a sociedade. A educação por uma série de fins úteis é indicada: a) como instrumento, sinaliza a construção do conhecimento e, como fim, a preocupação em torno da humanização da realidade e da vida; b) ligada à construção do conhecimento, impacta de modo decisivo tanto a cidadania quanto a competitividade, ganhando o foro de investimento mais estratégico; c) como expediente formativo, primordial das novas gerações, apresenta procedimento dos mais pertinentes em termos de qualificar a população, tanto para fazer os meios como para atingir os fins; principalmente, estando na base da formação do sujeito histórico crítico e criativo, educação perfaz a estratégia mais decisiva de fazer oportunidade (DEMO, 2009, 15).
2.1 O Estado Democrático de Direito É importante trazer à tona o conceito de Estado Democrático de Direito, uma vez que énele que a educação deve ocorrer e ser concretizada. Sendo assim, José Afonso da Silva traz abordagem relevante quanto ao conceito de democracia: A democracia, como realização de valores (igualdade, liberdade e dignidade da pessoa) de convivência humana, é conceito mais abrangente do que o de Estado de Direito, que surgiu como expressão jurídica da democracia liberal. A superação do
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Educação é um conceito rico, é o horizonte de qualidade política, o humanismo, a formação da cidadania, a cultura comum.A educação é fenômeno intenso. No processo educativo é preciso a capacidade de construir, de participar, “ultrapassando a situação de objeto para consolidar a de sujeito histórico crítico e criativo” (DEMO, 2009, p. 16). É preciso acreditar no ser humano como um ente dotado de infinitas possibilidades para transformar o seu modo de ser, ver, fazer, viver, para conviver da melhor forma possível em seu meio, ampliando o seu potencial como “ponto de partida necessário para a prática de ações que contribuam no desenvolvimento equilibrado [...]” (GOMES, 2011, p. 431). Para compreender é preciso o exercício do educar. Todavia, o direito à educação não se dá à sorrelfa de valores importantes, uma vez que trata-se de direito fundamental e socialquese efetiva por meio de políticas públicas adequadas, as quais devem possibilitar a todos os cidadãos a plena compreensão do paradigma do Estado Democrático de Direito, que servirão de fio condutorpara a compreensão do ordenamento jurídico, em cujos limites o intérprete “lato sensu”, ou seja, a população com um todo - não somente algumas camadas da sociedade - desenvolvam uma atividade hermenêutico-compreensiva (GOMES, 2011, p. 453).
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liberalismo colocou em debate a questão da sintonia entre o Estado de Direito e a sociedade democrática. A evolução desvendou sua insuficiência e produziu o conceito de Estado Social de Direito, nem sempre de conteúdo democrático. (AFONSO DA SILVA, 2013, p. 114,grifo do autor).
Evoluiu o Estado. Nesse processo de aperfeiçoamento das instituições, chega-se ao Estado Democrático de Direito. A Constituição estabelece em seu artigo 1º, como elemento fundamental, o regime adotado, o Estado Democrático de Direito. Este, além de albergar princípios do Estado de Direito, não é mera junção de preceitos formais e vazios, “porque, em verdade, revela um conceito novo que os supera, na medida em que incorpora um componente revolucionário de transformação do status quo” (Afonso da Silva, 2013, p. 114). Para a realização da democracia, não basta atribuir a um elevado número de cidadãos o direito de participar, direta ou indiretamente, da tomada de decisões coletivas. Nem a existência de regras de procedimento como a da maioria (BOBBIO, 1986, p. 20). É imprescindível uma terceira condição:
E “seja qual for o fundamento filosófico destes direitos, eles são o pressuposto necessário para o correto funcionamento dos próprios mecanismos predominantemente procedimentais que caracterizam um regime democrático” (BOBBIO, 1986, p. 20). Para que os cidadãos tenham efetivamente a possibilidade de um exercício democrático, o direito fundamental à educação é essencial para a formação de todo ser humano, uma vez que a educação funciona como processo de mediação de sociabilidade. “Ou seja, a prática educativa tem também a finalidade intrínseca de inserir os sujeitos oriundos das novas gerações no universo social, uma vez que eles não poderão existir fora do tecido social” (SEVERINO, 1994, p. 71). Deve haver a ideia vinculada de proteção aos direitos fundamentais, uma vez que “a norma jurídica emanada do poder competente deve ter como primazia a garantia do respeito inarredável dos direitos individuais e sociais fundamentais do homem” (PRADO, 2010, p. 63): Desse modo, e coerentemente com a sua finalidade maior, o Estado democrático de Direito e social deve consagrar e garantir o primado dos direitos fundamentais, abstendo-se de práticas a eles lesivas, como também propiciar condições para que sejam respeitados, inclusive com a eventual remoção de obstáculos à sua total realização
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[...] que aqueles que são chamados a decidir ou a eleger os que deverão decidir sejam colocados diante de alternativas reais e postos em condição de poder escolher entre uma e outra. Para que se realize esta condição é necessário que aos chamados a decidir sejam garantidos os assim denominados direitos de liberdade, de opinião, de expressão das próprias opiniões, de reunião, de associação, etc. — os direitos à base dos quais nasceu o estado liberal e foi construída a doutrina do estado de direito em sentido forte, isto é, do estado que não apenas exerce o poder sub lege, mas o exerce dentro de limites derivados do reconhecimento constitucional dos direitos “invioláveis” do indivíduo (BOBBIO, 1986, p. 20, grifo do autor)
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Nesse sentido: A moderna noção de Estado de Direito, como Estado constitucional, não se coaduna mais com o mero Estado legal regulado por leis, mas como um modelo material de organização política regrado fundamentalmente por três princípios: a) subordinação de toda atividade estatal a normas emanadas de órgãos representativos e vinculadas às garantias e direitos fundamentais dos cidadãos; b) a publicidade dos atos legislativos, administrativos e judiciais; c) o controle da atividade estatal mediante jurisdição independente e controle político exercido pelo Poder Legislativo, na forma estabelecida em lei (PRADO, 2010, p. 161).
A educação é elemento fundamental para a participação do intérprete no Estado Democrático de Direito, no sentido de nortear os relacionamentos dos indivíduos em sociedade, com base em valores considerados fundamentais à convivência. É necessário um aprendizado e formação a respeito de valores, como por exemplo, a vida, a justiça, a liberdade, a igualdade, a dignidade, entre tantos outros que são contemplados no texto constitucional, como elementos essenciais ao viver democrático, e esse viver só ocorre através da educação (GOMES, 2011, p. 212).
A educação deve ser também um processo de construção consciente, só assim pode se defender uma verdadeira formação de todo ente humano. O ser humano se transforma, e o processo de formação só se dá através da educação e de mecanismos assecuratórios para fazer valer tal direito (JAEGER, 2003, p. 7). OEstado Democrático de Direito “é aquele que se estrutura através de uma democracia representativa, participativa e pluralista, bem como o que garante a realização prática dos direitos fundamentais, inclusive dos direitos sociais”, de modo que é preciso instrumentos adequados e próprios aos cidadãos, em respeito à dignidade da pessoa humana (MAGALHÃES FILHO, 2002, p. 114). Como um valor relevante na esfera jurídica e como um direito fundamental, o direito à educação é essencial por se tratar de um direito social diretamente vinculado ao direito à vida. E o direito à vida dentre os cinco direitos fundamentais básicos, tais como a liberdade, a igualdade, a segurança e a propriedade, apresenta-se como um direito fundamental previsto no artigo 5º, caput, da Constituição Federal (GOMES, p. de internet). A garantia ao direito à educação é essencial para a formação e desenvolvimento do ente humano, uma vez que afeta vários aspectos sua vida, como a própria existência e o modo de ser do indivíduo. Em razão disso, a educação mereceu a proteção do Direito pelo reconhecimento de sua essencialidade (GOMES, p. de internet). O regime da ConstituiçãoFederalfunda-se no princípio democrático. Preambularmente, enuncia o artigo 1º, a instituição de um Estado Democrático de Direito, tema desenvolvido
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2.2 A educação como direito fundamental social à luz do Estado Democrático de Direito
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no segundo tópico. Compreende-se que há premissas destinadas a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, livre, justa e solidária e sem preconceitos, com fundamento na soberania, na cidadania, na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e no pluralismo político (AFONSO DA SILVA, 2013, p. 127). Conforme a própria Constituição Federal “o poder emana do povo”, ou seja, ouo poder é concretizado por meio de representantes eleitos indiretamente, através do voto, ou o poder é exercido pela participação direta da população. O artigo 6º traz à tona que a educação é um direito social, e é um direito fundamental. Segundo o artigo 205 da Constituição brasileira, a educação é erigida como direito de todos e dever do Estado e da família, será incentivada e promovida com a colaboração de toda sociedade. O alcance para todas essas garantias delineadas pelo texto constitucional, para uma participação efetiva do intérprete, só é possível através da educação. A carência de uma educação básica e integral do indivíduo é fator excludente de sua participação política (GOMES, 2002, p. 12).
Estipulada constitucionalmente, a educação serve também como determinação de limites e vínculos jurídicos a todas as esferas do poder: legislativo, executivo e judiciário. E “é possível de se afirmar a existência de um vértice comum ao seu pensamento, conferido pela expressão garantismo jurídico” (FERRAJOLI, 2011, p. 5). Igualmente, todos os poderes devem conduzir-se em conformidade com o texto constitucional, onde o poder constituinte delineou seus esforços e indica um dever ser a realizar-se constantemente no “mundo da vida”, para que a Constituição Brasileira não passe de “uma folha de papel” (LASSALE, 2001, 17/27). A norma afirmada na premissa maior é o fundamento de validade da norma afirmada na conclusão. “A proposição de ser que funciona como premissa menor é apenas conditio sine qua non relativamente à conclusão” (KELSEN, 1999, p. 136). Significa que “o fato da ordem do ser verificado (afirmado) na premissa menor não é o fundamento de validade da norma afirmada na conclusão” (KELSEN, 1999, p. 136). Segundo Hans Kelsen, “todas as normas cuja validade pode ser reconduzida a uma e mesma norma fundamental formam um sistema de normas, uma ordem normativa” (KELSEN, 1999, p. 136). A norma fundamental é a fonte comum da validade de todas as normas pertencentes a uma e mesma ordem normativa, o seu fundamento de validade comum, nesse sentido, o direito à educação encontra-se em um patamar de norma fundamental (KELSEN, 1999, p. 136). E não é só isso, porque, inclusive, entre a norma e a realidade existe uma tensão per-
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3 POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O IMPLEMENTO DA EDUCAÇÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
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manente, da qual derivam as possibilidades e os limites do direito constitucional (BARROSO, 2009, p. 80). Não é à toa que Konrad Hesse diz que a Constituição tem força normativa e: A condição de eficácia da Constituição jurídica, isto é, a coincidência de realidade e norma, constitui apenas um limite hipotético extremo. É que, entre a norma fundamentalmente estática e racional e a realidade fluida e irracional, existe uma tensão necessária e imanente que não se deixa eliminar. Para essa concepção do Direito Constitucional, está configurada permanentemente uma situação de conflito: a Constituição jurídica, no que tem de fundamental, isto é, nas disposições não propriamente de índole técnica, sucumbe cotidianamente em face da Constituição real (HESSE, 1991, p. 3).
Konrad Hesse assevera que a Constituição não pode, por si só, realizar nada, ela pode impor afazeres. Essas tarefas, para serem efetivamente praticadas, requerem ações que orientem a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, assim sendo, a Constituição transforma-se em força ativa. Por isso, é importante que se façam vigentes no pensamento coletivo e dos entes públicos “na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional –, não só a vontade de poder, mas também a vontade de Constituição” (HESSE, 1991, p. 7).
Desenvolver ações que visem concretizar a educação como direito fundamental social é de extrema relevância. Sendo assim, épreciso que, por meio de políticas públicas, se estabeleça dentro do contexto do Estado Social de Direitos, um plexo de ações voltadas à intervenção Estatal e à sociedade como um todo, no sentido de concretização daquilo que está previsto na Constituição (SIQUEIRA, 2011, et seq). Ademais, o Estado atual deve repudiar as bases da filosofia político-liberal e ser “a providência do seu povo”, no sentido de assumir para si certas funções essenciais ligadas à vida e desenvolvimento da nação e dos indivíduos que a compõe, em atento com o que preceitua a Constituição Brasileira. Isso não quer dizer que o Estado esteja sendo extremamente paternalista, porque não é verdade. O Estado deve se distanciar da ultrapassada filosofia política do Estado Liberal, que era extremamente restritiva quanto às funções estatais. Além do mais, a educação como direito fundamental e social deve guiar a responsabilidade estatal, na busca de se preservar e fortalecer valores humanos como o da personalidade (CINTRA, 2012, p. 46). Conforme o artigo 193 da Constituição Federal, o Estado nacional tem como base o primado do trabalho, e, por conseguinte, como objetivo, o bem-estar e a justiça sociais. O estado chama para si tais responsabilidades para a efetividade dos direitos sociais. Em suas aspirações para o cumprimento de suas pretensões, tende a desenvolver variadas atividades em benefício da população, “inclusive intervindo na ordem econômica e na social na medida em que isso seja necessário à consecução do bem comum, ou bem-estar social” (CINTRA; GRINOVER;
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3.1 Políticas públicas para a implementação da educação como direito fundamental social
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DINAMARCO, 2012, p. 46/47). Portanto, “essa atividade compreende obras e prestação de serviços relacionados com a ordem social econômica e compreende também as providências [...]” (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2012, p. 46/47). E “a igualdade de oportunidades e a asseguração do mínimo existencial somente poderão surgir se a todos for assegurado o direito a processo educacional adequado (SOUZA, 2009, p. 88). Há, portanto, uma dependência da ação estatal. E as normas sociais se enquadram como normas de eficácia limitada, necessitando de regulamentação e intervenção Estatal, e sem a ação estatal, a eficácia da norma não se produz por completo (SILVA, 2010, p. 233). Segundo Virgílio Afonso da Silva, “a limitação dessa eficácia ficaria ainda mais clara em face dos custos que esses direitos implicam para o Estado, que, por isso, não tem condições de agir da forma esperada”. Além do mais, “a baixa efetividade desses direitos seria uma demonstração do caráter limitado das normas que os garantem” (SILVA, 2010, p. 233/234). É possível sedimentar uma conclusão que defenda normas garantidoras de direitos fundamentais sociais. No entanto, para que essas normas produzam materialmente seus efeitos, transcendendo o âmbito formal, exigem regulamentações. Nesses casos, de normas de eficácia limitada, onde o direito à educação se enquadra, “também os direitos sociais devem ser concebidos como direitos com suporte fático amplo” (SILVA, 2010, p. 238). 3.2 Desafios para o século XXI na realização de medidas para a concretização da educação
menêutica não depende só da atividade jurisdicional e/ou da administração em geral” (SILVA, 2000, p. 356). É um processo dialógico entre população e o poder público estatal, já que não basta, simplesmente, inserir um rol de enunciados formais para justificar a produção de leis desatentas à realidade. São necessários mecanismos que tornem efetiva a transformação do ser humano em sua formação, criando, conforme demonstra Pablo Lucas Verdú (2006, p. 55),o sentir constitucional como modo de integração política. Não se deve esquecer afunção social e pública que a educação representa na sociedade contemporânea (LOMBARDI, 2001, p. 39). A educação é um direito fundamental social necessário para a concretização do Estado Democrático de Direito. Como bem expende Hans-Georg Gadamer, a formação propicia o
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Pedro Demo, (2004, p. 20), aduz que se deve acenar para a modernidade, haja vista os desafios que o futuro aponta para as novas gerações. Mas, também, o entendimento de tendências típicas das sociedades atuais e futuras, a capacidade de se adequar e responder aos desafios da modernidade, capacidade de entender, questionar, e, principalmente, de enfrentar novas anomalias sociais, capacidades que só serão ampliadas através de uma educação de base. Todo esse processo requer tempo e consciência da grande importância de que é um investimento precioso, e não custo, isso porque é algo em construção, posto que “não nascemos prontos” (CORTELLA, 2006, p. 11). A participação efetiva da população como um todo só se dá através da educação, uma vez que “o conteúdo da norma e o resultado da concretização her-
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aperfeiçoar humano, suas faculdades e aptidões. Assim, tem-se que, há uma transferência que deve ser compreendida, depreendendo-se que, o resultado da formação não é produzido como intento tecnicista, ou seja, não há uma finalidade técnica, mas traz consigo a ideia do nascimento, do despertar de um processo interno de constituição e formação, que permanece em constante evolução e aperfeiçoamento (2009, p. 212). No intento de formação do ser humano, e não de deformá-lo, é preciso ter em mente, como alerta Paulo Freire (2001, p. 17), “os homens educam-se uns aos outros mediatizados pelo mundo”. Todavia, é preciso uma educação que liberte os cidadãos, possibilitando-lhes tornar sujeitos em busca de sua ocupação política, afastando-se elementos incertos, tornando-se sujeitos transformadores da história, em solidariedade à coletividade (SCHMIED-KOWARZIK, 1983, p. 69-70).
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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O Estado Democrático de Direito não está anteriormente dado aos seres humanos como algo acabado, estático e definitivo. Pelo contrário, é fundamental a educação básica dos indivíduos, porque a educação é um processo de mudança da interpretação da realidade e possibilita a realização da democracia e do próprio paradigma estatal insculpido no preâmbulo da Constituição Federal. A educação é direito fundamental social no Estado Democrático de Direito e prescinde de políticas públicas para a sua realização, bem como é imprescindível para a concretização do Estado Democrático de Direito que não é algo pronto, mas requer constante aperfeiçoamento, em constante construção, para que toda a humanidade vivencie uma verdadeira democracia. Desse modo, fazem-se necessárias ferramentas que tornem efetiva a transformação do ser humano através de um processo educacional.Assim,de um lado existe uma dependência da ação estatal,vez que as normas sociais se amoldam como normas de eficácia limitada, necessitando de regulamentação e intervenção estatal, e sem a ação estatal, a eficácia da norma não se produz por completo, todavia, toda essa estrutura requer a participação do povo.
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The research deals with the importance of education as a fundamental and social right, in the implementation of the paradigm of the Democratic State of Law. It defends the importance of public policies for the realization of the right to education as a fundamental right. It had affirmed the right to education as an essential element in the realization of the dignity of the human person. When it comes to education as a fundamental social right, it demonstrates that there is no self-application, and state actions and the entire population are essential in a participatory manner for social efficiency. Keywords: Education. Public policy. Democratic state.
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EL FENÓMENO JURÍDICO Y FORMAS BÁSICAS DE PENSAR EL DERECHO1
RESUMEN4 Este artículo presenta el lugar apropiado donde se sitúa la Asignatura de Filosofía del Derecho, como relación que se establece entre los campos de la Filosofía y de los estudios jurídicos, seguido de posibles articulaciones conceptuales del Derecho, como fenómeno normativo, político, social e histórico. Evidencia, igualmente, dos enfoques metodológicos para tratar el asunto: la fusión de horizontes entre las concepciones filosóficas y propiamente jurídicas, históricamente consideradas; así como las cuatro concepciones fundamentales del Derecho surgidas en el pensamiento occidental: el Derecho Natural, antiguo y moderno; el Derecho Racional, el Derecho como fuerza y como técnica social: el Derecho Positivo. A la exposición de los postulados de las teorías, se añade un breve muestreo de cómo se puede hacer problemático un análisis filosófico de dichos enfoques. En las consideraciones finales se presenta una propuesta de discusión para el tema e indicación, en las Referencias, de los principales autores enfocados. Palabras clave: Filosofía. Naturalismo. Racionalismo. Positivismo.
1 Artículo para estudiantes de Ciencias Jurídicas y Sociales, operadores e investigadores de Derecho que deseen profundizar em la interfaz entre lãs concepciones filosóficas y legales presentes em el pensamiento occidental. 2 Licenciado em Derecho, Maestria em Filosofía, Profesor de la Universidade Feevale, doctor por el Programa de Postgrado de Unisinos em la Línea de Investigación del Lenguaje, Racionalidad y Discurso de la Ciéncia. Av Pernambuco, 1690 - CP 90240-002 - Porto Alegre / RS, correo electrónico: henriquek@feevale.br. Teléfono: 051 - 999.55.27.01 3 Doctora em Derecho por la Universidad de Burgos (España), Maestra em Derecho de la Universidade de Santa Cruz do Sul, Especialista em Derecho por la Universidade de Santa Cruz do Sul. Abogada. 4 Traductora: Andrea de Araújo Rubert, Licenciada en Letras por la Universidad Federal del Rio Grande del Sur e por el Programa de Postgrado de la Universidade do Minho, en Portugal, em la línea de investigación de Português como segunda língua.
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Henrique Alexander Grazzi Keske2 Claudine Rodembuch Rocha3
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1 SITUANDO LA ASIGNATURA En un estudio como este, la mejor metodología que se puede emplear es, antes de otras consideraciones, situar la Asignatura de la Filosofía del Derecho, no sólo como una de las posibilidades de los Currículos de las Carreras de Derecho, sino como un campo que pretende reunir conocimientos más específicos, originado, de forma directa, de la relación constitutiva que se establece entre la Filosofía y el propio Derecho. Ese procedimiento es seguido por la mejor doctrina, de tal forma que, al discurrir sobre la Filosofía General, como sistematización del pensamiento y enfrentamiento del propio pensamiento acerca del mundo y del ser, Mascaro coloca a la Filosofía del Derecho como un objeto específico de aquella, en la medida en que “(...) la Filosofía del Derecho no es más que la Filosofía General con un tema específico de análisis, el Derecho” (MASCARO, 2010, p. 10). En ese esfuerzo de situar la Asignatura, por lo tanto, según el mismo autor, se exige “(...) una doble especificidad: ella es una rama específica de la Filosofía General y el máximo pensamiento posible sobre el Derecho”; de modo que: Siendo la Filosofía del Derecho la propia Filosofía General, con un objeto específico, el Derecho, la indagación que se pone preliminarmente, se refiere a la propia ubicación de lo que sea jurídico, ya que es esto lo que da identidad a la Filosofía del Derecho. (MASCARO, 2010, p. 18).
Seguimos, en ese recorrido. En primer plano, situamos la Asignatura, señalando lo que algunos adoctrinadores afirman acerca de su objeto y, concomitantemente, pasamos a delinear el campo propio de sus investigaciones, en lo que se refiere al carácter específico del que sea lo jurídico, desde su enfoque. Con ese propósito, obtenemos de Carreiro la afirmación de que:
Se percibe, ya de pronto, un procedimiento explicativo propio, ya que, en la tarea de relacionar ambos campos de saber, es decir, al buscar situar la Asignatura, necesariamente se presenta el enfoque específico de que trata, mejor dicho, ya se busca presentar las características esenciales del fenómeno jurídico a ser tratado por los análisis filosóficos aplicados al Derecho. En este sentido, se refiere al carácter de la dinamicidad propia que se establece al conceptuar propiamente el Derecho, pero enfocado en su condición histórica, en cuanto hecho social y que, por lo tanto, se transforma, no sólo como norma específica, sino también en cuanto a los conceptos generales que lo informan, desde el debate doctrinal y pasando, inexorablemente, por su aplicación mediante sentencias de cualquier tipo.
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Podemos considerar que la Filosofía del Derecho busca estudiar la conceptualización del Derecho en sí, explicando las causas determinantes de su transformación, en el tiempo y en el espacio, en relación con los demás elementos sociales. Su finalidad es, pues, examinar el Derecho en su pleno desarrollo, a través de sus leyes generales de movimiento. (CARREIRO, 2000, p. 25)
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Por su parte, Miguel Reale así se posiciona: La Filosofía del Derecho, al contrario, en lugar de ir de las normas jurídicas a sus consecuencias, vuelve a la fuente primordial de donde esos dictámenes de acción necesariamente emanan, o sea, no observa la experiencia jurídica como un dato, o un objeto externo, pero como ‘hominisinteriore.’” (el hombre interior - énfasis añadido). (REALE, 2009, p. 290).
Aprovechándose del mismo procedimiento explicativo, Reale, presenta, otra de las cuestiones fundamentales a ser estudiadas por la Filosofía del Derecho, es decir, el fundamento primero y último del propio Derecho, enfocado, no en el examen de la complejidad de las normas jurídicas, consideradas como objeto a ser manipulado por los operadores del Derecho, pero colocando el fenómeno jurídico en su fuente: el interior del ser humano, es decir, como perteneciente a la propia condición de esto que se considera como esencia humana, presentando, por lo tanto, el derecho como un fenómeno existencial humano, como caracterizador de nuestra humanidad. Se establece, así, el Derecho, no sólo como fenómeno propio del ser humano, individualmente considerado, sino propio de su intrínseca y constitutiva condición social, entendiendo el cuestionamiento de la Filosofía del Derecho como algo que abarca la experiencia jurídica como un todo, ya que para Bittar y Almeida:
Estos autores ahora citados, por lo tanto, añaden a la Asignatura su carácter crítico, en el sentido de buscar no sólo cuestionar los fundamentos del Derecho, como también el de analizar el propio pensamiento, la propia característica del modo en que opera el razonamiento jurídico, en sus instancias, sus institutos, en la formulación de sus postulados, para, además de verificar en cuanto a su naturaleza, provocar los cambios que la dinamicidad de sus construcciones conlleva. A su vez, Cretella Jr. explica que: “Filosofía del Derecho es la exposición crítico- evaluativa de experiencia legal, en la universalidad de sus aspectos, mediante la indagación de los primeros principios que informan a los institutos jurídicos, los derechos y los sistemas.” (CRETELLA JR., 1999, p. 15). Otro aspecto, se suma a la especificidad de la Asignatura ya presentada en su carácter crítico, el de operar de forma a cuestionar la propia articulación de los valores que, en determinada circunstancia, informaron, o mejor, sirvieron de base constitutiva para los principios jurídicos, los diversos derechos erigidos sobre la base de tales valores y, aún, los sistemas jurí-
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La Filosofía del Derecho es un saber crítico acerca de las construcciones jurídicas erigidas por la Ciencia del Derecho y por la propia praxis del Derecho. Más que eso, es su tarea buscar los fundamentos del Derecho, sea para cerciorarse de su naturaleza, sea para criticar el asiento sobre el que se fundan las estructuras del raciocinio jurídico, provocando a veces fisuras en el edificio que, por encima de las mismas, se alza. (BITTAR Y ALMEIDA, 2001, p. 12).
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dicos como un todo que compone la estructura compleja del Derecho. De esta forma, se busca por su universalidad, no sólo enfocada en los aspectos referentes a sus ordenamientos formales, esto es, de su conjunto propio de leyes, no sólo en aquello que tales ordenamientos albergan de aplicaciones prácticas a la convivencia humana, sino en lo que tales institutos sirven como base que hace posible tal convivencia y tal sociabilidad intrínseca a la condición humana. Podemos, ahora, con Bittar y Almeida, afirmar que, al cuestionar los fundamentos de la experiencia jurídica como un todo, en su teoría y práctica, las investigaciones propias de la Filosofía del Derecho, se prestan a abrir horizontes para otras posibilidades de sentido de los institutos jurídicos, como, por ejemplo, proponer algunas metas y tareas que están comprendidas en esas perspectivas, que pueden expresarse así:
Al aclarar una posible especificidad de la Filosofía del Derecho, así como, concomitantemente, presentar algunas consideraciones acerca de los aspectos del fenómeno jurídico que se propone averiguar, ese elenco de tareas que se puede realizar con sus investigaciones pueden colocarnos en un espacio seguro en cuanto a los propósitos de la Asignatura, una vez que, por el examen de esos postulados, se puede cuestionar y analizar el fenómeno jurídico en aspectos que la distinguen de los demás enfoques propios de otras investigaciones jurídicas. Por lo tanto, en su conjunto de cuestiones, sin duda, se incluyen preguntas acerca de la postura ética de los operadores del Derecho, en su totalidad, incluyendo aquí a los integrantes tanto del Poder Legislativo, como del Judicial y Ejecutivo y, de la misma forma, preguntas sobre las prácticas específicas de tales operadores y de las operaciones realizadas, en lo tocante también al ejercicio de la abogacía como un todo. Además, la Filosofía del Derecho también analiza cuestiones fundamentales en cuanto a la legitimidad de las leyes, es decir, del marco legislativo vigente, las condiciones de su efectuación y elaboración, pudiendo ofrecer algunos paradigmas,
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a. proceder a la crítica de las prácticas, de las actitudes y de las actividades de los operadores del Derecho; b. evaluar y cuestionar la actividad de legislar, así como ofrecer apoyo reflexivo al legislador; c. proceder a la evaluación del papel desempeñado por la ciencia jurídica y el comportamiento del jurista sobre ella; d. investigar las causas de la desestructuración, el debilitamiento o la ruina de un sistema jurídico; e. depurar el lenguaje jurídico, los conceptos filosóficos y científicos del Derecho; f. investigar la eficacia de los institutos jurídicos, su acción social y su compromiso con cuestiones sociales, ya sea con respecto a los individuos, ya sea con respecto a los grupos o comunidades, así como a las preocupaciones humanas universales; g. aclarar y definir la teleología del Derecho, su aspecto evaluativo y sus relaciones con la sociedad y losanhelos culturales; h. rescatar orígenes y valores fundantes de los procesos e institutos jurídicos; i. mediante la crítica conceptual, institucional, valorativa, política y procesal, asistir al juez en el proceso decisorio. (BITTAR y ALMEIDA, 2001, p.16)
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o sea, bases referenciales para la actividad propia de legislar, bien como de las condiciones de aplicabilidad de las leyes por los órganos jurisdiccionales del Estado. Su tarea de evaluación se vuelve igualmente al papel que la ciencia jurídica desempeña en el contexto de la sociedad y al papel del jurista ante ella, también aclara en ese sentido, la dinámica de los institutos jurídicos que, una vez vigentes y una vez constituidos en un sistema, pasan por modificaciones, a veces tan profundas a punto de desnaturalizarse y de no sólo dejar de ser significativas en una determinada sociedad y contexto histórico, como de perder su eficacia y aplicabilidad, siendo sustituidos por otros. En la tarea de buscar por los fundamentos del Derecho, no se puede dejar de analizar el lenguaje conceptual de que se constituyen los institutos jurídicos, su corrección terminológica, su adecuación correcta a los principios generales informadores del Derecho, buscando aclarar los valores estatuidos por las normas, y por la propia finalidad de las normas, en el sentido de verificar si, efectivamente, corresponden a los anhelos de dada cultura, en sus aspectos constitutivos más basilares. De la misma forma, las investigaciones de la Asignatura analizan la dinamicidad propia del Derecho, cuando éste se dirige a establecer las relaciones entre los individuos y grupos integrantes de las sociedades y de la propia colectividad como un todo, enfocadas en los valores, predisposiciones y nociones y concepciones que digan respeto a la condición humana, en sus aspectos particulares y universales. En ese sentido, no podía dejar de asesorar al Poder Jurisdiccional del Estado en su momento máximo, es decir, el de la decisión del juez, en sus instancias apropiadas.
Después de exponer las aplicaciones de la Filosofía del Derecho, enseñando algunas de las tareas a las cuales se propone, seguimos el recorrido metodológico que adoptamos. Ofrecemos, ahora, por lo menos en líneas generales, algunas de las características básicas de su temática u objeto de estudio, es decir, el Derecho, en el sentido de presentar elementos que nos lleven a una posibilidad conceptual, a partir del enfoque propio de la Asignatura. Para responder a la pregunta ¿qué es el Derecho?, Venosa, en lugar de proponer una definición fija, prefiere seguir el camino metodológico de presentar algunas características esenciales del fenómeno jurídico como un todo, relacionándolo, de inmediato, como una de las expresiones del contexto social, en el que se articulan aspectos perennes y, de forma paradójica, esencialmente dinámicos: El derecho es dinámico, como dinámica es la sociedad (...). En la ley no hay dogmas, sino principios, normas y leyes que pueden y deben ser cambiados de acuerdo a las necesidades sociales. Hay, sin duda, principios más o menos solidificados, cuya alteración demanda mayor o menor mediación social. El Derecho es esencialmente
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2 LÍNEAS GENERALES PARA UNA CONCEPTUALIZACIÓN DEL FENÓMENO FURÍDICO
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dialéctico. De la discusión entre varias corrientes, se buscan las soluciones legislativas. (VENOSA, 2009, p. 06)
El Derecho es un fenómeno histórico. Cualquier relación jurídica sólo puede ser despojada por completo con el conocimiento de la historia. La historia es el laboratorio del jurista. (...) El Derecho refleja la experiencia de la historia. (...) Los marcos jurídicos, de la más simple y la más compleja ley, nunca surgen de la nada; siempre surgen de una base histórica, conceptos y aspiraciones conocidos. (VENOSA, 2009, p. 06).
Por ese aspecto histórico del Derecho, se refuerza su carácter esencialmente dialéctico, ya que la experiencia histórica de los pueblos y naciones puede ser averiguada a partir de las construcciones jurídicas instituidas en una época que se quiera analizar, de tal forma que, en cada período considerado, se pueden ver los valores estatuidos como norma jurídica y de ahí
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Se trata, pues, de un fenómeno intrínsecamente social, pero que añade a la sociedad su carácter propio, en el sentido de promover un hecho social a una dimensión jurídica, a través de la normatividad, de la elaboración de normas, reglas, leyes, como soluciones legislativas para la propia dinámica de las interacciones que ocurren en el interior de las sociedades y en las sociedades entre sí. Por ser y constituirse en esa mediación legal de las relaciones sociales, se fundamenta en el carácter dialéctico, o sea, en la búsqueda de la síntesis entre las varias concepciones, a menudo contradictorias, presentes en el medio social, pero tendientes a establecer una orden, un arte o técnica de convivencia armónica. Con el mismo autor, podemos, igualmente, afirmar: “El Derecho es necesario. La sociedad no existe sin él. No se trata de una creación abstracta. El derecho no sobrevive sobre entidades abstractas. El derecho se concreta en la sociedad. Hay toda una actividad racional orientada hacia la creación del Derecho.” (VENOSA, 2009, p. 06). Ese carácter necesario del Derecho se refleja en todas las sociedades humanas, de modo que se puede afirmar que ninguna sociedad se ha estructurado sin un marco de normas, aunque no leyes en el sentido estricto de la técnica jurídica que se tiene hoy, sino de reglas que ponían las relaciones sociales en determinado orden, de acuerdo con determinado objetivo, de forma que se puede afirmar la relación originaria entre Derecho y sociedad, como fenómenos mutuamente constitutivos de lo que se puede definir como el carácter existencial humano. Eso es tan relevante que, pese a toda la actividad racional que se emplea en la elaboración de leyes, reglas y reglamentos, ninguno de estos procedimientos pasa a tener eficacia mientras se refiere a entidades abstractas, o sea, no relacionadas directa y constitutivamente a los hechos sociales que intentan ordenar. Una de las tareas de la Asignatura puede ser, precisamente, la de verificar por qué institutos jurídicos, por mejor elaborados intelectual y racionalmente, no se convirtieron en prácticas efectivas de determinada sociedad. En ese sentido, la respuesta es inmediata: porque, en Derecho, no se trata sólo de abstracciones conceptuales y, sí, de conceptos jurídicos, regulados, que se refieren a la concreción de las relaciones sociales. Otro aspecto fundamental de nuestro análisis, retiramos, igualmente, de Venosa:
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deducir su dinámica propia, reflejo de los institutos que permanecen y quese deshacen, en relación directa con las concepciones que las sociedades pudieron elaborar como reglas o normas para regular su propia conducta. El aspecto paradójico de este movimiento proviene del hecho de que, al analizar estos institutos jurídicos en su experimentación histórica, se puede percibir que datos fundamentales, como, por ejemplo, la protección de la vida, siempre estuvieron presentes en las normas y legislaciones, a pesar de las diferentes formas con las que se presentaron. Otro de esos principios básicos y que permea todo el ámbito del Derecho, se refiere a las concepciones de Justicia: variables en cada cultura, en cada momento histórico, en cada conjunto de normas objetivas que se encargan de su ejecución, pero presente en su universalidad en cada uno de esos aspectos. No se tiene, por tanto, en el Derecho, solamente la relatividad de los valores, como ya se ha mencionado, sino la perennidad de valores, considerados en su aspecto universal, como principios informadores que el propio género humano elaboró para sí mismo y en función directa de las concepciones de su propia humanidad. En su Diccionario de Filosofía, Abbagnano propone una larga conceptualización de Derecho, también apunta algunas de las características marcadas ya presentadas en ese estudio acerca del fenómeno jurídico:
Por lo tanto, el Derecho se define aquí en el ámbito propio de la coexistencia humana como técnica, es decir, una capacidad, o arte, que comprende todo un conjunto de reglas aptas para dirigir eficazmente una actividad cualquiera. Sólo que esa actividad no es una simple actividad humana, sino aquella que da condiciones de posibilidad a la existencia misma de los seres humanos, mientras se organizan en sociedades y, dado que no se tiene el factor humano destituido de ese carácter social, esa técnica de normalizar las relaciones, es constitutiva y originaria de la condición humana. Sin embargo, no se trata sólo de un conjunto de reglas, dado que esa normatividad, es esencial a la definición de lo que es jurídico, a su vez, es el aspecto en que se concreta el Derecho, pero, al hacerlo concreto, No se agotan los significados y sentidos de constituirse en una expresión más original y aún más amplia que la propia regla y técnica, eso es, las normas, reglas y leyes son las estructuras a través de las cuales este se expresa, para hacer posible una condición Humana básica: la reciprocidad del comportamiento; por lo tanto, el derecho se pone como una mediación fundamental e intrínseca de esas relaciones. Así, el Derecho se expresa por la técnica de mediar las relaciones humanas recíprocas, por el conjunto de normas que vienen de ese proceso, pero, se constituye, concomitantemente,
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En sentido general y fundamental, la técnica de la convivencia humana, es decir, la técnica orientada a hacer posible la coexistencia de los hombres. Como técnica, el Derecho se concreta en un conjunto de reglas (que, en ese caso, son leyes y normas); y tales reglas tienen por objeto el comportamiento intersubjetivo, es decir, el comportamiento recíproco de los hombres entre sí. (ABBAGNANO, 1982, p. 260).
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en la técnica que, al mediar las relaciones recíprocas fundamentales, posibilita la existencia humana como coexistencia, como convivencia ordenada de las relaciones sociales; e de esa forma se establece el carácter mutuamente constitutivo entre Derecho y sociedad. En ese sentido, también se posiciona Venosa, al establecer las relaciones entre técnica, conjunto de reglas y relaciones humanas fundamentales de convivencia intersubjetiva:
Es importante resaltar aquí, una característica fundamental del Derecho, ademas de las otras posibilidades conceptuales presentadas, o sea, su coercibilidad. Puesto que su conjunto de normas se refiere a conductas obligatorias, no a meras facultades de actuar en ese o en aquel sentido, libremente al gusto de la subjetividad de cada individuo, pero de obligar a un orden general, aunque opere excepciones fundamentales a la condición de cada uno individualmente, o, en sentido propiamente jurídico, a las personas que interactúan en ese contexto. Se constata, de pronto, otra de las condiciones de la dinámica del fenómeno jurídico, ya que establece las dialécticas y contradictorias relaciones entre lo que es personal, subjetivo y lo que se refiere al conjunto del ordenamiento social, como reglas coercitivas de convivencia recíprocas, no como forma de anular una u otra, sino de presentarlas en una síntesis armoniosa y armonizadora de las mismas relaciones, en la multiplicidad y diversidad de sus aspectos. Se sigue, por ejemplo, que el ser humano como individuo, puede elegir por no seguir tales reglas, lo que trae consecuencias obvias: o no podrá vivir en sociedad, o tendrá que arcar con las cargas/ castigos, derivados de sus propias prácticas. El autor arriba mencionado, concluye con la afirmación de que la profundización de esas cuestiones pertenece a la Filosofía del Derecho y, luego, podemos apuntar otro doctrinador que, al conceptuar el fenómeno jurídico, elabora una teoría tridimensional del Derecho, de la cual no se aparta ninguna expresión de la experiencia jurídica, en cuanto hecho social, valor y norma. Nos referimos, pues, a Miguel Reale, que así se posiciona: La integración de los tres elementos de la experiencia jurídica (el axiológico - valores establecidos, los hechos - hechos sociales que apoyan las normas y la técnica formal - las reglas adecuadamente consideradas), revela la precariedad de cualquier comprensión del Derecho de manera aislada, como un hecho, como valor, o como estándar y, de manera especial, la idea errónea de una comprensión de la ley como una forma pura, capaz de alojar con total indiferencia, las infinitas y conflictivas posibilidades de interés humano. (Grifo nuestro). (REALE, 2009, p. 699).
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(...) el Derecho traduce una realidad histórico-cultural. No hay Derecho fuera del mundo de la cultura, insertado en el contexto histórico. Por esa razón se afirma que el Derecho es atributivo, porque realiza, permanentemente, valores de convivencia. Realizar el Derecho es, por lo tanto, realizar la sociedad como comunidad concreta, que no se reduce a un amorfo conglomerado de personas, sino que forma un orden de cooperación, de comunión de finalidades. Para poder reaccionar este desiderato, el Derecho es coercible, debe ser impuesto por normas de conducta. Este objetivo deriva de elecciones entre imperativos que integrarán las normas. (VENOSA, 2009, p. 16)
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En consonancia con el enfoque seguido en el presente estudio, el mismo autor considera que: Realizar el Derecho es, por lo tanto, realizar los valores de coexistencia, no este o aquél individuo, no este o aquel grupo, pero de la comunidad, concebida de manera concreta, es decir, como una unidad de orden que tiene valor propio, sin ofensa uolvido de los valores peculiares a las formas de vida de los individuos o de los grupos. “(REALE, 2009, p. 701).
Un poco adelante, en la misma obra, Reale aclara que usa la expresión ordenación, con el propósito claro de añadir otro carácter fundamental del Derecho, o sea, la problemática cuestión relacionada al poder, a través del cual, en su núcleo, el Derecho tiene el objetivo de, incluso por el ejercicio de la fuerza, realizar los valores estatuidos por las normas vigentes en una determinada sociedad, en cierto contexto histórico. Por lo tanto, el Derecho presenta una forma ordenadora específica y el poder como garantía de su actualización, o sea, de su realización efectiva. Por lo expuesto, se percibe, una vez más, el Derecho, considerado en sus aspectos amplios y universales, no sólo como normas abstractas, formuladas sin vínculos con los contextos sociales e históricos a los que se refieren, sino, al contrario, como sustancialmente vinculados a esos mismos contextos, como una forma específica de presentarles en cierto orden, en función de los valores humanos seleccionados, tanto en sus aspectos relativos, como perennes. Así, en un análisis de tales contextos, no se podría huir de un examen de los institutos jurídicos que los componen, justamente por eso, porque los constituyen, porque los posibilitan, porque es a través del Derecho que se presenta una de las más concretas articulaciones de las estructuras sociales e históricas que corresponden a la experiencia humana. Y la existencia de la sociedad no puede prescindir, a su vez, de la realización del Derecho, como ya se ha mencionado anteriormente, de su efectividad como experiencia propiamente humana.
Este artículo presenta cuatro de las concepciones fundamentales que se sucedieron, o se entrecruzaron, en la forma de pensar el fenómeno jurídico en sus fundamentos filosóficos, al discutir sobre la validez del Derecho. Se trata, por lo tanto, de las formas básicas de presentar las cuestiones relativas a los fundamentos del Derecho, pero que se interrelacionan intrínsecamente. Lo hacemos, por lo tanto, de manera solamente introductoria, como una invitación a la reflexión y la profundización de investigaciones posteriores. En este estudio, nunca es demasiado repetir, se presentan tales caminos fundamentales, más como un estímulo a la investigación y profundización posterior, dado que una exposición crítica que se propusiera a ser exhaustiva, tal vez no encontrase espacio completo ni siquiera en
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3 ENFOQUE METODOLÓGICO EMPLEADO PARA TRATAR LAS CONCEPCIONES GENERALES DEL DERECHO
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los innumerables tratados que se presentan sobre el tema. Se trata de presentar, en ese estudio, las principales temáticas y pensadores, en su situación histórica, así como con una breve problematización filosófica, a partir de un enfoque fenomenológico, que evidencia las concepciones generales del Derecho, no como definiciones cerradas, sino como definiciones que se comunican y se construyen conjuntamente, en el sentido de ser presentadas como posibilidades de pensar el fenómeno jurídico. Sin embargo, al enumerar, aunque no exhaustivamente tales pensadores y temas, dejamos la provocación en el sentido de que se hace siempre necesaria la investigación posterior, a partir de un texto introductorio de tales enfoques, como ya se ha mencionado.
4 CONCEPCIONES GENERALES DEL DERECHO En este recorrido metodológico, tenemos la agrupación de cuatro concepciones fundantes del Derecho, a lo largo de la historia del pensamiento occidental, filosófico y jurídico, de forma que pensadores e ideas se muestran a partir de paradigmas comunes y, por ellos mismos diferenciados. Ese recorrido obtenemos a partir de Abbagnano, que nos informa que, en ese sentido, tenemos las siguientes cuatro acepciones:
Se justifica la presentación de esa posibilidad de enfoque, en el sentido de mostrar que, al averiguar la complejidad del fenómeno jurídico, no se dispone de sólo un camino, sino que podemos analizar el objeto de otras formas igualmente eficaces. Eso nos parece ser uno de los aspectos más característicos del estudio del Derecho, es decir, no sólo la polisemia de sentidos de sus conceptos debe ser empleada, sino también los diversos métodos de análisis, pues son capaces de proporcionar diversas perspectivas interpretativas. Es así que, en Filosofía del Derecho y en la propia Ciencia del Derecho, objeto y método realizan una auto-referenciabilidad mutuamente constitutiva, de suerte que el mismo concepto, enfocado de otras formas, presenta más posibilidades de sentido, significados y aplicaciones. 4.1 Derecho Natural La primera de las concepciones, o sea, la del Derecho Natural resulta de las especulaciones filosóficas que también buscaban un fundamento para el conocimiento como un todo,
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a) la que considera el derecho positivo, es decir, el conjunto de derechos - normas/leyes que las diversas sociedades humanas reconocen, como fundado en una ley natural, eterno, inmutable y necesario; b) la que juzga el Derecho fundado en la moral y lo considera, por lo tanto, una forma de moralidad; c) la que reduce el derecho a la fuerza, es decir, una realidad histórica políticamente organizada; d) la que considera el Derecho como una técnica social. (ABBAGNANO 1982, p. 260)
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al reconocer en la racionalidad humana las condiciones de una validez universal y necesaria de los conceptos, en contraposición con la variabilidad de las formas y objetos que se abrían a las facultades cognitivas. La tarea de esta forma de pensar el Derecho era la de se lo dar un fundamento constante e invariable, que apoyara su validez universal, en principios perennes, que no representasen la mutabilidad de las formas accidentales y transitorias, constantes en las legislaciones específicas de los diversos pueblos y naciones. Se hizo una especie de primer estudio comparado de las diversas legislaciones vigentes en el mundo antiguo, verificándose que determinados pueblos y naciones valoraban ciertos aspectos y otros no; y tal variabilidad condujo a la idea de imperfección de tales ordenamientos, principalmente porque surgían las primeras formas de pensar la organización perfecta de las sociedades humanas. Por eso, Abbagnano, en la obra citada, afirma que: “El Derecho natural es la perfecta racionalidad de la norma, es decir, la perfecta adecuación de la norma a su propósito de garantizar la posibilidad de la vida asociativa. Los diversos derechos positivos son realizaciones imperfectas o aproximativas de esa normatividad perfecta.” (ABBAGNANO, 1982, p. 260). Así, el fundamento del Derecho es la normatividad perfecta que, a su vez, es la expresión de una perfecta capacidad racional de ordenar los dispares factores de la condición humana, considerados desde el punto de vista individual o colectivo, para instaurar una convivencia humana recíproca, en principios universales y necesarios. Esta fase también se puede dividir en Derecho Natural Antiguo y Derecho Natural Moderno, cada una de las subdivisiones que presentan variaciones del diseño en general, como lo vemos ahora. 4.1.1 Fase Antigua
condición humana. A su vez, ese orden perfecto no sólo se expresa en la racionalidad humana, como es la capacidad racional que puede conocer a la multiplicidad, porque comulga, originalmente, de ese factor de orden o principio único. Pero de la misma manera que ese orden se encuentra en la naturaleza, también debe realizarse en la condición humana, basada en la vida social fundadora de las personas, por lo que la ley fue vista como el instrumento para lograr ese orden perfecto, en el sentido de que siempre que sea determinado por la razón, los conceptos legales representan ese orden perenne, ese principio de ordenación de las confusas relaciones recíprocas de los seres humanos entre sí. Dado que ese es el más antiguo de los conceptos de Derecho, en sus casi dos mil años
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En la Fase Antigua, considerada clásica, la ley natural emana del orden racional perfecto del universo y lleva a cabo esa orden en la comunidad humana. Ese principio se basa en el concepto griego de Cosmos, a saber, de un inicio caótico, un tipo de desorden primitivo, donde los elementos que forman la materia y energías primordiales estaban en dispersión confusa, surge un único principio, capaz de ordenar todos los fenómenos que, a partir de sus acciones, produce el orden perfecto de los mismos elementos y crea el universo conocido, incluyendo la
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de historia, esos conceptos eran pasados por la experiencia humana histórica de ese período, por lo que esas ideas básicas resultaron bien adaptadas a la lógica cristiana del período siguiente, que adaptó conceptos filosóficos griegos a los postulados de un Dios único, presentado como la fuente de todo proceso de creación. En consecuencia, ese factor de ordenación quedó definido como el acto creador divino, es decir, ese orden universal o es el mismo Dios o viene de Dios. El acceso a dicha voluntad divina se llevó a cabo por la Iglesia como intérprete de dicha orden por lo cual se entiende como incuestionable. La ley se basa, por tanto, en el mismo Dios y su tarea es realizar el orden divino en la tierra. Ese entendimiento dominó casi todo el período histórico de la Edad Media. 4.1.2 Fase Moderna
leza humana, entendida como racionalidad y necesaria sociabilidad, el objetivo del ejercicio de la técnica es deducir la norma legal correcta que, siendo una adaptación necesaria a esa doble condición del ser humano, permiten, a su vez, las correctas relaciones de convivencia de las comunidades y las sociedades. Como es la naturaleza del fenómeno jurídico, tales consideraciones básicas también sufrieron contrastes significativos, que incluyen las aportaciones de pensadores ya mencionados, así como de Hobbes y Locke y también Puttendorf y Hume, que finalmente transforman ese carácter de racionalidad necesaria de la técnica que elabora la norma y de la propia norma. Ya no es un aspecto unívoco que la norma determina siempre la condición humana en sus relaciones recíprocas y es el complemento perfecto a esta condición, sino que se establece un
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La Fase Moderna del Derecho Natural sigue el movimiento cíclico de un retorno a la Antigüedad Clásica, objeto incluso del Renacimiento, por rescatar a la racionalidad humana y buscar la autonomía de la Filosofía, del Derecho y de las concepciones de Estado, eliminando la dependencia de los conceptos teológicos dominantes a lo largo de la Edad Media, asegurando el Derecho Natural como una disciplina, un orden de base necesariamente racional, sin embargo, independiente tanto del orden cósmico, como de Dios. Por lo tanto, con el fin de lograr dicha independencia, el Derecho Natural aparece como “concepto de una técnica que puede y debe regular, en la forma más conveniente, las relaciones humanas”, así como “se convierte en una técnica racional de la convivencia humana.” (ABBAGNANO, 1982, p. 263). Es, por lo tanto, una técnica racional, de base matemática, es decir, se emplearía el mismo proceso que utilizan las fórmulas que expresan razonamientos lógicos exactos inferidos indispensablemente de principios evidentes, requeridos necesariamente para ordenar a la vida humana en sociedad. A este respecto, uno de los grandes eruditos de la época, Grocio, citado por Abbagnano (1982, p. 263), afirma que “el acuerdo necesario entre la norma y la naturaleza racional y social (...) significa el carácter de indispensabilidad de la norma en vista de las relaciones entre los hombres”; es decir, debido a que la base de la normatividad se establece en la misma natura-
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concepto más flexible de una técnica más maleable, y una norma tal cual, ahora considerada como un ordenamiento razonable de las relaciones humanas, que relativiza ese carácter fijo e implacable de la normatividad como expresión perfecta de la racionalidad y la sociabilidad humanas. La norma deja de ser necesaria y absoluta, para ser considerada como razonable en un contexto dado. 4.2 Derecho y Moral – Derecho Racional El segundo diseño distingue Derecho y moral, puesto que las características que se atribuyeron al Derecho, pasan a ser identificadas con la moralidad, que se entenderá como una obligación interna del ser humano, lo que le obliga a una acción desde su fuero íntimo, mientras que el Derecho se entenderá como una obligación externa, es decir, la obediencia a una regla o norma social. Kant establece así la diferencia entre legalidad y moralidad, “La pura concordancia y discordancia de una acción con la ley, independientemente del motivo de la acción misma, se llama legalidad, mientras que, cuando la idea de deber deriva de la ley es, al mismo tiempo, motivo de la acción, se llama moralidad.” (KANT, 1984, párrafo 3). Por consiguiente, si alguien cumple los mandamientos de la ley, por ser obligado a hacerlo, agota los requisitos del Derecho, es decir, cumple con la ley. Ahora bien, si a esa obligación externa se añade que, no sólo se siente obligado externamente por la ley, pero también en lo íntimo sus acciones están motivadas a dicho cumplimiento, se dice que es la esfera moral: no solo actúa de acuerdo con la ley, como también actúa por deber moral. Sin embargo, esa moral para Kant no se refería al mero cumplimiento de una persona con las costumbres de una sociedad determinada, sino también a los motivos íntimos de la acción humana, dictados por la razón, considerada objetiva e inmutable. Por esta razón, el Derecho es considerado como una forma derivada e incluso imperfecta de la moralidad, pues, por ley, se obliga a alguien, externamente, a actuar en consecuencia o en conformidad con una norma determinada, mientras que la moral verdadera, puede incluso prescindir de un orden externo. Esas ideas tuvieron un fuerte impacto y diversos desarrollos sucesivos en la enseñanza del Derecho, ya que las declaraciones de Kant, en las cuales está basado el Derecho Racional se
a) el carácter primario y fundamental de la norma moral que es la única ley racional y, por tanto, la derivación de las reglas del Derecho de esa ley; b) el carácter externo, luego ‘imperfecto’ de la norma de Derecho, y, por consiguiente, la naturaleza imperfecta e incompleta de la acción legal en vista de la acción moral; c) el carácter necesariamente coercitivo de la ley. (ABBAGNANO, 1982, p. 267).
La problemática filosófica de esos postulados resulta extremadamente fructífera en la medida en que va a cuestionar el concepto de racionalidad en Kant, entendida como una esfera objetiva y absoluta del ser, desconectado de las peculiaridades de la formación de cada indivi-
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pueden destacar tres puntos principales:
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duo, considerados por separado, sin tener en cuenta sus singularidades, ni las sociedades en las que se insertan; así como de una facultad que, como un atributo superior, fuera capaz de dictar normas perfectas para el actuar humano y de obligar, desde el fuero más íntimo del ser, a que ese actuar fuera completa y totalmente adecuados a esos dictámenes. Una vez que se cuestiona la misma razón que sirve como el fundamento de la moral, se pregunta, además, si hay un carácter de universalidad práctica de la ley moral. Por ello, entonces, es que el carácter fundamental del Derecho, con la tarea de promover la convivencia humana adecuada, es coercitivo. Es posible también discutir la legitimidad misma de esa legislatura, incluso cuando se establece normas de conducta externa, es decir, las leyes: ¿qué criterios se utiliza para determinar que se debe ser obligado a hacer esto o aquello, y no otra cosa cualquier?, es decir, ¿qué supuestos se articulan en sus opciones? Y una vez identificados esos supuestos, podemos preguntar: ¿están dotados de validez absoluta? ¿Hay dicha racionalidad y dicha moralidad de carácter objetivo? 4.3 El Derecho como Fuerza
individuo, ya que Hegel ve en el estado precisamente la posibilidad de síntesis entre lo social y lo individual, ya que construye su Filosofía del Derecho no en el individuo, sino en el Estado y señala el cambio para el estado como el momento en el que el Derecho se hizo pleno, o en palabras de Mascaro: Al considerar el Estado la razón en sí misma, sin embargo, Hegel no propone una filosofía política del tipo absolutista. Su entendimiento no es reaccionario, en el sentido de negar la individualidad del sujeto de derecho a cambio de un Estado pleno. Por el contrario, Hegel procede a una dialéctica entre el Estado y el individuo. Es precisamente el Estado que garantiza al sujeto como un ciudadano, sus derechos. (MASCARO, 2010, p.84)
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La tercera concepción del Derecho, centra sus supuestos sobre el punto de la comprensión de la ley como fuerza coercitiva que garantiza la realización de la propia norma, desde las instituciones asentadas históricamente, entre las que se destaca el Estado como su fundamento. Así pues, el Estado se presenta como la realidad histórica final, que es la culminación de la evolución histórica del ser humano, como el único verdadero y definitivo logro del Derecho. Esa concepción del Derecho nace con Hegel, ya que se supone que la razón y la realidad se identifican de tal manera, que es en el Derecho y en el Estado que se ve la racionalidad celebrada, hecha efectiva, plena, desde lo que se establece para sí mismo. En ese sentido, la ley no es más que la realización de la libertad en el Estado, de manera que, el Derecho sólo existe como ley del Estado y, a su vez, la libertad existe sólo como obediencia a las leyes estatales. Por lo tanto, todavía en las palabras de Hegel, en la misma obra: “El individuo obedece a las leyes y sabe que, por esa obediencia, tiene su libertad; tiene en ella la relación con su propia voluntad.” (Hegel, 2000, p. 99). No se debe pensar, sin embargo, que en esa relación se establece la desaparición del
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Otra consideración importante es que, al ser el hombre la manifestación del espíritu, la realización de este espíritu se da en la historia. Hegel se dedica a mostrar el espíritu en sus manifestaciones, es decir, en las diversas formas que pueden aparecer en la historia. Una de esas posibilidades efectivas de manifestación del espíritu se da como Espíritu Objetivo, que se expresa como Derecho, a través de la realización de la racionalidad en la experiencia histórica del hombre y, según esa racionalidad avanza en su presencia y existencia histórica, en otras palabras, en esa expansión permanente, están los objetivos de racionalidad jurídica: “El dominio del Derecho es el espíritu en general; su propia base, su punto de partida es el libre albedrío, por lo que la libertad es su sustancia y su destino y que el sistema del Derecho es el imperio de la libertad llevado a cabo (...).” (Hegel, 2000, p. 248). Para explicar esos conceptos que buscan el fundamento del Derecho, por la relación entre ese entendimiento del Derecho como una fuerza que sostiene y constituye el Estado y también emana del Estado; y que, dialécticamente, mientras opera la síntesis máxima de las contradicciones humanas individuales, ofrece la máxima libertad y por lo tanto es un poder que emana del espíritu mismo en su experiencia objetiva, Bittar y Almeida explican que:
Mientras máxima abstracción, podemos entender la Ley como expresión del Estado, a través de sus leyes objetivas y ese sistema legal que es sostenido y que sostiene el Derecho, que se expresa y es una consecuencia de ese Estado; y el Estado, a su vez, se constituye en otra máxima abstracción, como un enunciado perfecto, ideal, donde las libertades individuales máximas y las garantías sociales podrían ser consideradas en un equilibrio armonioso y perfecto. Eso es, sin duda, una amplia y máxima idealización lógica, tal vez un logro a ser alcanzado. Ahora, decir que tales elaboraciones lógico-racionales se expresan de manera efectiva en la Historia, a través de la concreción de las leyes objetivas e incluso de la estructura y del sistema legal de los Estados Nacionales, concretamente existentes y presentes en la Historia en sí, nos debe llevar a niveles muy graves de análisis y cuestionamiento. Por lo tanto, si nos centramos los Estados totalitarios, terroristas y genocidas, cuyo sistema jurídico no sólo autorizó, como también estableció mandamientos explícitos de cese de las libertades y garantías individuales y colectivas, como produjo la muerte sistemática de sus propios ciudadanos o de otros seres humanos, debemos revisar la lógica de la legitimidad del estado y las leyes, por sí mismos. Ejemplos claros de los regímenes nazi e incluso del socialismo de Stalin y de los regímenes de Europa del Este, y también algunos regímenes de orientación musulmana, cuya lógica jurídica positiva todavía existe, como asaltos violentos contra los derechos humanos básicos. Desde las consideraciones de Hegel, en el sentido de Estado y de Derecho, no se puede
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La esencia del Derecho (la máxima libertad), se hace acontecimiento de Derecho (la libertad concreta), se manifiesta en este o aquel conjunto de leyes, de tal o cual Estado, de tal o cual cultura. De esa manera, surgen las leyes, los códigos, el derecho positivo, que son realizaciones de la noción abstracta del Derecho.” (BITTAR Y ALMEIDA, 2001, p. 79)
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decir que esos casos constituyen excepciones a la regla del Derecho, siendo excepciones, tales como el régimen militar en Brasil, teniendo en cuenta que todos esos sistemas legales tenían su legitimidad por la fuerza concreta de los titulares del poder del Estado, en las instituciones políticas establecidas y legitimaban su estructura legal por la fuerza. De manera que su lógica perfecta representó, de hecho, la máxima barbarie y la negación de lo que puede interpretarse como el Derecho. En palabras de Hegel: “Lo que es el Derecho, en sí mismo, se hace constar en su existencia objetiva, es decir, se define para la conciencia por el pensamiento. Se le conoce como que, con justicia, es la ley. Dicho Derecho es, de acuerdo con esta determinación, el Derecho positivo en general. “(Hegel, 2000 p. 258). Sin embargo, una vez más, nos preguntamos si la positividad de las normas es efectivamente capaz de realizar en lo concreto de sus mandamientos, lo que es el Derecho, en sí mismo; al igual que, si el Derecho positivo puede resumir las consideraciones de valor, para garantizar las libertades individuales y colectivas completas y todavía llevar a cabo actualmente en la Historia, los significados de Justicia, al máximo. Tal vez eso se pueda poner como meta. Algo que debemos tratar de lograr, pero no declarar como un poder pleno, realizado, que expresa, específicamente, tales ideales. 4.4 El Derecho como Técnica social – Derecho Positivo
(...) se puede juzgar en cuanto a su eficiencia, es decir, su capacidad para garantizar una ordenación (cualquiera) de la sociedad humana. En este sentido, se reconocerá el Derecho como un deber ser, esto es, como reglas para la conducta humana, con lo que ese comportamiento puede, en realidad, no ajustarse. (ABBAGNANO, 1982, p. 269).
Los orígenes históricos de este positivismo jurídico son los mismos que el positivismo científico que alcanzó su apogeo en el siglo XIX; y de cuyos principios se valió su mayor teórico, Hans Kelsen, en su esfuerzo por presentar, en la época contemporánea, una ciencia pura del Derecho que tuviera su fundamento en la propia estructura lógico-formal del sistema legal, basada en un estándar eminentemente lógico, desde donde emanarían todas las demás reglas, dependiendo de las condiciones de su validez, determinadas por el propio sistema legal. Este esfuerzo de desarrollo tiene como objetivo alcanzar una Ciencia del Derecho, purgada de aspectos antropológicos, sociológicos o económicos, éticos o metafísicos y religiosos,
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La cuarta concepción del Derecho, aunque haya diversas variables, comprende el Derecho como una técnica social, desde el punto de vista centrado en el positivismo jurídico, esto es, en la especificidad de las normas legales, entendidas no como un sistema diseñado para alcanzar valores perennes e idealizados de la condición humana, especialmente en lo que se refiere a un concepto universal de Justicia, considerada como el tipo de perfecta convivencia entre los seres humanos, sino como un instrumento para lograr ciertos fines y luego como una herramienta:
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buscando el carácter de lo que es jurídico, en la estructura del sistema formal del Derecho que, a su vez, se apoya en un método propio, definido por el Derecho mismo, mientras se opera con sus variables, es decir, desde la operación de un sistema dado, con su conjunto de leyes, centrado en la existencia de la norma jurídica puede tener su validez cuestionada desde lo que se observa:
Por lo tanto, aunque los aspectos antropológicos y sociológicos, económicos o sociales, éticos o metafísicos y religiosos, se han refugiado en una legislación dada, para convertirse en normas positivas del Derecho, sigue una lógica propia, que pertenece al sistema legal y de acuerdo con una metodología específica de la ley, de modo que no puede, desde su vigencia, utilizar de estos mismos argumentos para justificar su no aplicabilidad. El marco legal les da su propio carácter, es decir, asigna a estos elementos su condición de legalidad. Que se puede y se debe buscar una Ciencia del Derecho, delimitada en su objeto lo más perfectamente posible, definiéndose lo más claramente posible sus límites, alcances y el funcionamiento de su sistema es tarea incuestionable. Sin embargo, cuando se trata de la búsqueda de su fundación, se debe cuestionar si es posible desvincularse el Derecho de esos otros principios generales que lo informan e informaron en su evolución histórica, sobre todo porque si echamos un breve vistazo a la Historia, nos damos cuenta de que los sistemas legales consistentes, y que cumplieron la finalidad a la que se propusieron, terminaron por hacerse exactamente contrarios al Derecho, entendido en un sentido más amplio, como se mencionó anteriormente: Derecho, Estado y leyes al servicio de la instrumentalización de la barbarie, como herramienta racional y lógica de supresión y opresión de la dignidad humana. No obstante, seguramente podemos identificar en los sistemas legales su propia lógica y que la validez de las leyes objetivas se rige por la misma lógica normativa del sistema. Sin embargo, si queremos hacer frente a este sistema lógico con este tipo de norma fundamental afirmada por Kelsen, nos enfrentamos a cuestiones muy importantes, tales como: - si dicha norma lógica fundamental existe como paradigma del sistema jurídico en su conjunto, ¿en dónde se coloca? - si no es sólo la coherencia de un sistema dado, pero su paradigma, entonces, o se encuentra fuera del sistema, o emana del sistema y está por encima de él, en alguna instancia metafísica; - y sobre todo si existe tal regla lógica como fundamento, ¿quién la puso?, es decir, ¿quién la propuso?, ¿o se ha “auto-colocado”? y ¿cómo algo puede ponerse a sí mismo? ¿o si se la fue puesta por la intervención ser humano?, ¿cómo fue el acceso a esta racionalidad pura, despojada de su contexto?
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La forma, el rito, el momento, el modo, la estructura, la jerarquía, la lógica y la producción normativa prevista por el ordenamiento jurídico. La validez no somete a la norma al juicio de correcto o incorrecto, pero al juicio jurídico en sí, es decir, el juicio de la existencia o no (que pertenece a un sistema formal) de cierto sistema legal. (BITTAR Y ALMEIDA, 2001, p. 123).
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- y, por último, ¿podemos excluir de cualquier formulación lógica del Derecho positivo la complejidad del ser humano, como verdadero paradigma y autor de cualquier orden?
En la presentación de este breve estudio de las consideraciones filosóficas, a través de la mirada de la Filosofía del Derecho, realizada tanto por los filósofos de la tradición occidental, como por los estudiosos del Derecho, nos hemos guiado por una meta que tenía por objetivo enfatizar el carácter dinámico de los diversos significados que intentaron conceptualizar y trabajar con el fenómeno jurídico, para mostrar la dinámica del fenómeno jurídico mismo. De ese dinamismo, se puede deducir el carácter dialéctico que constituye, desde las primeras formulaciones acerca del Derecho, hasta las más recientes, así como el carácter dialéctico del ejercicio práctico de la experiencia legal, en su conjunto, ya que, en una vivencia fundamental e intrínseca de las sociedades humanas, se entrecruzaron y aún se contraponen concepciones fundamentales acerca de la propia naturaleza humana, de lo que sea sociedad, de la estructura política del Estado, así como una multitud de valores fundamentales y específicos, producidos y alojados dentro de las más diferentes culturas en su recorrido histórico. La exposición metodológica no significa, sin embargo, que tales concepciones son herméticas y han tenido éxito en la superación de las otras el flujo de la historia, sino que, a penas las exponemos, ya que cuando operamos con el Derecho, podemos hacer uso de tal o cual concepción general, en la búsqueda de adecuación razonable de estas disposiciones generales, a los casos particulares que tratan de evaluar los sistemas jurídicos, incluso cuando la base de tales sistemas puede ser objeto de debate y debe ser discutido. Además, en ese largo tiempo de existencia, no sólo se perciben las rupturas, sino también un proceso similar a una fusión de horizontes entre las distintas concepciones y prácticas propias de los sistemas jurídicos, lo que garantiza al fenómeno jurídico su propia especificidad, capaz de insertarlo en una Ciencia Jurídica específica, pero que lo pone en el amplio espectro de las Ciencias Humanas, con la excelente adjetivación de Ciencia Humana Aplicada, esto es, dirigida a las mismas realidades sociales que su positividad intrínseca, de acuerdo con sus propósitos, tiene como objetivo lograr, pues, una ciencia del ser humano, para el ser humano e por el ser humano. Puede causar una cierta extrañeza el hecho de no hacer referencia a una quinta posibilidad de enfoque del fenómeno jurídico y que nace, no como un sustituto de otras formas de pensamiento jurídico, pero como complemento a una experiencia conceptual y, por lo tanto, la experiencia humana de este mismo fenómeno considerado universalmente; es decir, la ausencia de una referencia directa a la hermenéutica jurídica, ya sea tratada como la hermenéutica clásica, en la que se discuten los métodos de interpretación necesarios para aplicar las leyes, así como su tendencia contemporánea, es decir, desde el cambio lingüístico-hermenéutico operado en el pensamiento occidental, a partir de las formulaciones de los filósofos Heidegger y Gada-
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5 CONSIDERACIONES FINALES
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mer. Dejamos entonces registrado, y este es otro estímulo para la investigación adicional, que tales consideraciones podrían extrapolar las posibilidades y condiciones de este estudio, con el fin de limitarnos sólo a presentar lo que ahora autores como Lênio Streck consideran una crítica hermenéutica al Derecho. En este sentido, hay que destacar, lo más brevemente posible, ese enfoque. Podemos considerar que, a partir de la aplicación del círculo hermenéutico como condición de la comprensión del fenómeno jurídico, mientras que conforma como su propia forma de ser en el mundo, en su función de regular, normativamente, a sí mismo, así como la vida social en el que está insertado; ya que toda la experiencia de establecer estos sentidos normativos se da en, y a través del lenguaje, desde donde se llega al carácter inagotable del Derecho en todas sus instancias. Este es el reto que se presenta: no prescindir de la norma legal y, concomitantemente, permanecer en estado de alerta para que no se ocurra, a través del Derecho, el encubrimiento del hecho por el propio texto normativo. Se cree, por lo tanto, en la norma como inseparable de su texto, así como la aplicación de la norma como inseparable de su interpretación: no es posible aplicar la norma sin interpretarla. Se trata de mostrar el Derecho como una permanente construcción e instauración del sentido normativo de la existencia, a la que se llega por la comprensión de la dimensión abierta de esa construcción continua, mientras que una unidad de sentido inmanente presente en la existencia. Por último, registramos, de manera explícita, que una mirada más atenta a las consideraciones filosóficas que presentan las escuelas anteriores del pensamiento jurídico, de hecho, se revisten de esa mirada hermenéutico-interpretativa, dejada, aquí, como ejemplo de un ejercicio primero de análisis a qué tal pensar puede llevarnos.
6 REFERENCIAS ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução coordenada e revista por Alfredo Bosi. São Paulo: Mestre Jou, 1982, 2ª. Ed. ADEODATO, João Maurício. Filosofia do Direito: uma crítica à verdade na ética e na ciência.
BITTAR, C.B. e ALMEIDA, Assis de. Curso de Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2001, 1ª. Ed. CARREIRO, C.H. Porto. Notas sobre Filosofia do Direito. São Paulo: Alba, 2000. CRETELLA, Jr. Curso de Filosofia do Direito. Rio de Janeiro. Forense, 1999. DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. Coimbra, Portugal: Armênio Amado, 1979, in Coleção Stvdivm, 58 e 59. Temas filosóficos, jurídicos e sociais.
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São Paulo: Atlas, 2009, 4ª. Ed.
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HEGEL, Georg W. F. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000, 2ª. Ed. KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. In Coleção “Os Pensadores”. São Paulo, Abril Cultural, 1984, 2ª. Ed. MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2010, 1ª. Ed. RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito, trad. De l. Cabral de Moncada. Coimbra, Portugal: Armênio Amado, 1997, 6ª Ed. REALE, Miguel. Filosofia do Direito. Saraiva: São Paulo, 2009, 20ª. Ed. ROCHA, Manuel de Sacadura. Atlas: São Paulo, 2007, 1ª. Ed. VENOSA, Sílvio de Salvo. Introdução ao Estudo do Direito. In Coleção “Primeiras Linhas”. São Paulo: Atlas, 2009, 2ª. Ed. THE JURIDICAL PHENOMENON: BASICS FORMS OF TO THINK THE LAW
tation of the postulates of the theories, is added a brief sampling of how problematic it can become a philosophical analysis of such approaches. In the final consideration brings a proposal for discussion to the topic and indicating, in References, major authors focused. Key-words: Philosophy. Jusnaturalism. Rationalism. Positivism.
O FENÔMENO JURÍDICO: FORMAS BÁSICAS DE PENSAR O DIREITO RESUMO O presente artigo apresenta o lugar apropriado onde se situa a Disci-
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ABSTRACT The present article presents the proper place where lies the Discipline, as the relationship established between the fields of Philosophy and legal studies, followed by conceptual articulations of Law as a phenomenon normative, political, social and historical. Evidence also has two methodological approaches to deal with the focus: the fusion of horizons between the philosophical and legal properly, historically considered, as well as the four fundamental concepts of Law, which emerged in occidental thought: the natural law, ancient and modern, the jusrationalism, the Law as a force and as a social technique: juspositivism. The presen-
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plina, como relação que se estabelece entre os campos da Filosofia e dos estudos jurídicos, seguido de possíveis articulações conceituais do Direito, enquanto fenômeno normativo, político, social e histórico. Evidencia, igualmente, duas abordagens metodológicas para tratar do enfoque: a fusão de horizontes entre as concepções filosóficas e propriamente jurídicas, historicamente consideradas; bem como as quatro concepções fundamentais de Direito, surgidas no pensamento ocidental: o jus naturalismo, antigo e moderno; o jus racionalismo, o Direito como força e como Técnica Social: o jus positivismo. À exposição dos postulados das teorias, acrescenta-se uma breve amostragem de como se pode tornar problemática uma análise filosófica de tais enfoques. Nas considerações finais traz uma proposta de discussão para o tema e indicação, nas Referências, dos principais autores focados. Palavras-Chave: Filosofia. Jus naturalismo. Racionalismo. Positivismo.
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SOCIAL CONTROL PERSPECTIVE
THROUGH
SHAME
SANCTION:
AN
AMERICAN
ABSTRACT This paper aims to investigate why we can identify in the so called Postmodern Western Civilization the increase of shame sanctions with the scope of social rehabilitation instead of the traditional coercive power of Law. The hypothesis that I will work on is the possibility of Individualization process dispenses the reference of the Alter, i.e. the State as Institution of Law, in the conduct establishment process as well as its control in a social perspective. This movement would be clarified through the contemporary psychoanalysis debate, in its social standards. The present paper will be structured as it follows, always considering a theoretical perspective: 1) The presentation of the modern shame sanction matter; 2) Identification of what kind of relation there is judges of modern and democratic civilizations, decisions and Shame Sanctions 3) Identification of perspective in Post-modern society change in a psychoanalysis perspective and 4) Its impact in the comprehension of the dynamic between Law and Society, considering the social generalization of Law through guilt and its individual subjective potential tendency through the Shame. Key-words: Modern Shame-sanctions. Rule of Law: Western Civilization. Post-Modern mentality. Psychoanalysis in social theory.
1 Full professor at University of São Paulo – Law School from Ribeirão Preto.
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Jonathan Hernandes Marcantonio1
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Western Law in its modern standards used to reject Shame as a legitimate way of enforcement. The reasons relay on heritage middle age forms of use shame as punishment, usually associate that with some kind of physically or psychologically violence. So, in modern form of law, the Rule of Law, followed by Due process of law and the idea that Freedom was suppose to be the most important value in an western society, turning at this point the medieval concept of punishment in a more rational and civilized way, which resulted in an banishment of shame of every modern European law doctrine or jurisprudence tradition. The political reason of that was consolidated in the Democracy mentality, especially under the argument the State should not be responsible of revenge acts. Instead of it, the rationality must be the guiding line to government decisions and juridical sentences. However, the modern World has seen in the cradle of modern way of democracy, local sentences that inflict Shame as sanctions manifested in many forms. Almost instantly there were critical papers about it, as well some defenders one. In this way I believe the works of James Q. Whitman2 and Tony M. Massaro3 can be used as outstanding references, among others. This debate enlighten us of some moral perspective in using shame sanctions in modern law systems whose can be raised in two premises: (1) Differentiate Modern and Medieval ways of Shame sanctions arguing that both has no similarity with each other, especially when the first one is not allowed causing, through shame, violence, specially physical one. (2) Through this statement, the discussions about the forms of Modern Shame Sanctions were established in the attempt of answer the same question: Are shame sanctions, in a modern perspective, morally good and congruent of Modern Law Systems those democratically legitimate? I do not believe that I could contribute to this kind of discussion, specially because I truly believe the works cited above would be able to reach the most important points in the pursuit of answering the question earlier cited. However, I believe that there is a deeper point that the previous question does not have condition to reach and I believe that it could be the central problem of the Modern use of Shame Sanctions. It is about another perspective of the use of Shame as sanctions, not just about if it is good or bad the use of Shame sanctions in modern western societies but why modern judges and courts try to do social adjustment through the inflicting of shame sanctions, especially when the modern societies supposed to guide their sentences in a rational way, try to stipulate guilt in conducts and, then inflicting a civilized sentence? This question cannot be answered precisely and certainly not without letting many other questions in the air. So I will attempt to pointing some theoretical references that could be able to make us organize and identify some good points of question with no intention of solve
2
WHITMAN, James Q. What is Wrong with Inflicting Shame Sanctions?. (1998). Faculty Scholarship Series. Paper 655.
3 MASSARO, Tony M. Shame, culture Arizona Legal Studies Discussion Paper.
and
American
criminal
Law.
89
Michigan
Law
Review
1880
(1991)
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1 INTRODUCTION
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this problem in few pages. Much less than that, I will try to turn our eyes of some movements of society and then try to identify good points that could guide our answer or, better, improve my question.
2 THE PERSONAL PERSPECTIVE OF LAW
3 BASICS PSYCHOANALISYS PERSPECTIVE It is hard to suppose intuitively there could be any change in contemporary society that has as one of its consequences this type of change in Law mentality, especially when the social theory available discusses those kinds of emotion, i.e., Shame and Guilt having as reference in some level the psychoanalysis theory. Thanks to Freud, the Civilization Process has been understood and followed by some kind of emotions control, by suppressing them, and that was what make the Western Civilization possible, and, at the same time, brought the most important subjective pathologies to the mankind. Trying to explaining this movement, Freud in his most
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The question about the use of Shame Sanctions would be easily solved if we try relaying some kind of bad responsibility on the Judges or Courts those sentenced Shame sanctions. In this way, we could simply say that those Judges are judging wrongly and they are exceptions in the Rule of Law’s World. But it is not that simple. Contemporary and Western Judges know a lot about Democratic standards of Due process of Law and the duty of the Law pro Social Order by respecting some fundamental rights. This constitutional essence of Modern Law is present in every democratic western Nation. It would not be different in the United States of America, where lays the beginning of all of it. We should, then, try understanding this phenomenon, in the first place, through the eyes of the Judges. They could have realized something, consciously or not, that turn practical the use of shame sanctions and, more, make that compatible with the democratic principles than the other sentences those I will entitle here as “Guilt Sanctions” (Which has its origins in an rational analysis of person responsibility). So, pragmatically, they try to make a choice whereas the Shame could support those principles, democratic ones and, more, could be eventually more effective than “Guilt Sanctions”. I cannot also simply agree that is just a Moral reaction matter of the Judges, in a response of an unorganized, chaotic and libertine society. The Christianity argument can be definitely use and present in these inferences, but it is not a new thing. It was always there. I believe that we have investigate what is changed in the last decades that make acceptable, the fact that Judges try to solve juridical issues with the use Shame. If we want identify that, we cannot call that a retrocession simply, reducing this phenomenon to some delay of part of the American Judges. We, then, have to suppose that, when this choice was made, it was due some possible change of social mentality. That is precisely my hypothesis.
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4 FREUD, Sigmund. Das Unbehagen in der Kultur. (1930). In Studienausgabe – Bd. IX – Fragen der Gesellschaft Ursprünge der Religion. Frankfurt a.M. Fischer. 2000. pp. 191-270. 5 Totem und Tabu. (1912-13). In Studienausgabe – Bd. IX – Fragen der Gesellschaft Ursprünge der Religion. Frankfurt a.M. Fischer. 2000. pp. 287-444. 6 ELIAS, Norbert. Über den Prozess der Zivilisation. Bd. II. Frankfurt a.M. Suhrkamp. 1976. pp. 397-8. 7 For instance: LOTTER, Maria-Sybilla. Scham, Schuld, Verantwortung. Frankfurt a.M. Suhrkamp. 2012, and LIETZMANN, Anja. Theorie der Scham. Eine anthropologische Perspektive auf ein menschiliches Charakiteristikum. Hamburg. Fischer. 2007.
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used work in social theory4 express some kind of appearance order of this emotions in primitive social groups. First came Shame (Scham) than Guilt (Schuld). Actually, there is just one passage of the work cited above that put those emotions in that order – a footnote, by the way (p. 229) – and Freud already had wrote about Guilt almost two decades earlier that5. Anyway, one of the greatest Social thinker of 20th Century, Norbert Elias, as a ratification, described that passage as a process, the civilization process6. This Idea was adopted by the most part of Europeans social thinkers and established as some kind of “theoretical common sense” about how the western civilization was developed. This positioning has been consolidated due the several serious works in this sense7. At this point, the civilization theoretical status which establishes the Modern Law, could be understood exclusively through the management of Guilt in several degrees of Individual Life, what also cover the social and institutional spheres, relaying on Shame just a relevant historical social perspective, which do not have a significant part in contemporary society, especially to the effectiveness of Rule of Law. To that, a third created “person” has the role (as a symbolical Father) – through the emotional mechanism of guilt – making possible the interaction of people. In this sense, “modern Law” would be the concretization of this mechanism, consolidating the idea that the western Civilization was emotionally built under the management of Guilt in Conscious and Unconscious level. This symbolical Father is, in Psychoanalysis, the Superego, which could be manifested in many forms, depending on the psychic structure present in each person, individually; Socially, and to what is important in this work, that could be the Modern State. What happens, though, if this symbolical figure has no longer the power of provoking Guilt, neither by its presence, nor by its rules and norms? To a relevant part of the authors of this area affirms that the psychic mechanism cited above must be rearranged. To explain that I will use as reference one of the most important contemporary thinkers of this mechanism, i.e., Dany-Robert Dufour, who says the change of capitalism forms, since 1929, was followed by a drastic change of social behavior, but internally of the individuals, those who became more egoistic. With that change, the Guilt, which requires a worry to others, was slowly losing its power of adjustment to Civilization. In that sense, all the legal Structure, based on Guilt, has no longer the same relevance, in an individual psychic perspective (Consciously or not), in the role of adjusting socially. According to Dufour (2013, p. 105-110), Shame became the most predominant feeling of so called post-modern society (that after 1929), precisely due the narcissism reference
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of this kind of emotion. As consequent, would be almost “natural” that this type of dynamic urged in Law enforcement. I am not saying – actually, I hardly doubt – that the Judges whose applied Shame Sanctions had read Dufour, not even have the awareness of all this process, or else, this kind of theoretical debate. But, this process can be perceptible in Society and a Judge, especially Counties one, can be the unconscious and intuitive comprehension of this phenomenon, trying solving the problem by changing the emotional framework of their sentences. I can use, as example, the interview given to Los Angeles Time, from a Texas district Judge about the reason that he use to inflict Shame Sanctions in some kind of crimes convicted persons. He said that: “The people I see have too good a self-esteem, I want them to feel guilty about what they’ve done. I don’t want ‘em to leave the courthouse having warm fuzzies inside.”8. Of course there is some serious consequences of this kind of emotional management in Juridical Sentences and the local Judges usually do not reflect the consequences of this sort of decision to Law System or mentality, precisely because they have a pragmatic perspective of Law. But what they have in mind when they inflict some Shame Sanctions it is precisely what all of western civilization can experience in some level. The change of some Social establishment, what comes also from inside the individuals and not just from some change of social references. All the new standards of Modern Society - New-liberalism, globalism, Internet, Democracy and so on – are leading changes in so many levels of society and individuals, that it is completely impossible to Law as whole keep the same sphere of act and modus operandi. The change came to everyone and everything.
REFERENCES DUFOUR, Dany-Robert. L´art de réduire lês têtes. Paris. Denoeil. 2003. DUFOUR, Dany-Robert. La Cité Perverse. Liberalism er Pornographie. Paris. Denoeil. 2009.
ELIAS, Norbert. Über den Prozess der Zivilisation. Bd. II. Frankfurt a.M. Suhrkamp. 1976. FREUD, Sigmund. Das Unbehagen in der Kultur. (1930). In Studienausgabe – Bd. IX – Fragen der Gesellschaft Ursprünge der Religion. Frankfurt a.M. Fischer. 2000. FREUD, Sigmund. Totem und Tabu. (1912-13). In Studienausgabe – Bd. IX – Fragen der
8 SHATZKIN, Kate. Judges Are Resorting to Shame in Sentencing Criminals. Los Angeles Times. In April 26th 1998. Available at:: http://articles.latimes.com/1998/apr/26/news/mn-43159
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DUFOUR, Dany-Robert. Le tournant libidinal du capitalisme. Revue du MAUSS nº 44. 2014/2. pp. 27-46.
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Gesellschaft Ursprünge der Religion. Frankfurt a.M. Fischer. 2000. LIETZMANN, Anja. Theorie der Scham. Eine anthropologische Perspektive auf ein menschiliches Charakiteristikum. Hamburg. Fischer. 2007. LOTTER, Maria-Sybilla. Scham, Schuld, Verantwortung. Frankfurt a.M. Suhrkamp. 2012. MASSARO, Tony M. Shame, culture and American criminal Law. 89th Michigan Law Review 1880. 1991. WHITMAN, James Q. What is Wrong with Inflicting Shame Sanctions? Faculty Scholarship Series. Paper 655. 1998. CONTROLE SOCIAL ATRAVÉS DA SHAME SANCTION: UMA PERSPECTIVA AMERICANA
Esse artigo almeja investigar o porquê de podermos identificar na então chamada civilização ocidental pós-moderna o crescimento de shame sanctions com o escopo de reabilitação social ao invés do tradicional poder coercitivo da Lei. A hipótese que será utilizada é a possiblidade do processo de Individualização dispensar a referência ao Alter, ou seja, o Estado como uma Instituição de Direito, no processo de estabelecimento da conduta, bem como no seu controle em uma perspectiva social. Esse movimento vai ser evidenciado através do debate psicanalítico contemporâneo, nos seus parâmetros sociais. O presente artigo será estruturado assim como segue, sempre considerando uma perspectiva teórica: 1) A apresentação do assunto da moderna shame sanction; 2) Identificação de qual tipo de relação existe entre os juízes das modernas e democráticas civilizações, decisões e shame sanction; 3) Identificação da perspectiva de mudança na sociedade pós-moderna em um viés psicanalítico; e 4) O seu impacto na compreensão do dinamismo entre Lei e Sociedade, considerando a generalização da Lei através da culpa e sua tendência como potencial subjetivo individual sob o viés da vergonha. Palavras-chave: Shame sanctions modernas. Estado de direito: Civilização Ocidental. Mentalidade pós-moderna. Psicanálise na teoria social.
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RESUMO
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A DESGRAÇA DA CULTURA DO ÓDIO NA “DESONRA” DE COETZEE: LIÇÃO PARA OS CONTURBADOS DIAS ATUAIS
A primeira leitura da orelha do livro “Desonra”2, que rendeu o prêmio Booker Prize (pela segunda vez) ao escritor sul-africano John Coetzee – posteriormente agraciado com o Nobel de Literatura (2003) – pode indicar para uma ficção desenrolada em torno das máculas decorrentes de abusos sexuais, e a nódoa à honra que representam. Mas o livro, ao final de sua leitura, termina revelando discussão muito mais ampla – por isso seu título original (Disgrace) talvez lhe faça melhor julgamento. A narrativa fluida e simples parte do desnudamento do protagonista David Lurie, que depois de exercer anos de fascínio sobre as mulheres, vê-se confortável com a extravasão de seus instintos sexuais nos encontros previsíveis e ascéticos com uma prostituta, em dia e horário marcados, uma vez por semana. Quando esse pacto tácito é quebrado, ele se vê encorajado a seduzir uma de suas alunas – a insegura Melanie – e, mesmo sem tê-la obrigado por força física à consumação dos atos sexuais, termina sendo acusado de conduta antiética no âmbito da Universidade Técnica do Cabo, onde “ganha a vida”. E é justamente essa vida, previsível e ordenada, que começa a se desarranjar a partir de seu julgamento perante uma comissão de inquérito constituída de seus colegas professores para “investigar” eventual desvio ético de sua parte. Em princípio, garante-se uma apuração igualmente previsível e ordenada, onde “o assunto vai ser tratado com a maior discrição” e os nomes do acusado e da vítima serão preservados (p. 50), mas, para além do formalismo dessa apuração, a comunidade acadêmica, aos burburinhos e muxoxos, já expõe sua condenação – bem ao gosto da espetacularização de operações de investigações no Brasil nos dias atuais: “primeiro a sentença, depois o julgamento” (p. 52).
1 Professor efetivo da UFRN, Doutor em Ciências Jurídicas pela UFPB, Mestre em Direito Constitucional pela UFRN, Promotor de Justiça e co-fundador da Revista Fides. 2 Para esta resenha, utilizou-se a seguinte edição: COETZEE, J. M. Desonra. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
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Morton Luiz Faria de Medeiros1
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3 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 322.
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No âmbito da comissão, porém, presa às formalidades da hipocrisia e das soluções de aparência, há interesse em evitar a medida drástica da demissão do investigado, que perante ela confessou todos os atos pelos quais foi acusado, simplesmente por não enxergar neles desvio algum. O reitor pede a David que ele assine uma declaração pública de admissão dos “sérios abusos aos direitos humanos da reclamante” (p. 69), como se a consolidar seu arrependimento, o que desperta no investigado irresignação: a corte perante a qual se apresentou, juridicamente instituída como um “braço da lei”, deveria lhe dirigir uma solução jurídica; e não exigir-lhe adesão ao espírito do arrependimento, pertencente a outra ordem ética. Nisso enxerga-se claramente a distinção entre o dever jurídico e o dever moral: para a satisfação daquele seu simples cumprimento já basta, afinal não se pode, juridicamente, exigir do devedor de impostos que cumpra sua obrigação feliz e satisfeito; por outro lado, somente imbuído do arrependimento é que o dever moral poderia ser atendido por David, porquanto o preceito moral não admite “a separação entre a ação motivada e o motivo da ação”3, a tornar solidários o arrependimento (motivo) e a declaração pública (ação). Convicto de sua posição, o protagonista, assumidamente despreparado para reformas (p. 91), resolveu deixar a universidade espontaneamente, para passar uns dias com sua filha, Lucy, que possuía no Município de Salem uma pequena propriedade rural. Nesse lugar sua desgraça continua: sua rotina sem sabor é quebrada por um violento assalto capitaneado por três homens locais, que resulta em sério atentado a sua vida (por pouco não consumida pelo fogo) e na violência sexual de sua filha. Desde esse acontecimento, é tomado por ódio crescente de seus agressores, diante da falta de perspectiva de que respondam por seus atos, sentimento que ele próprio reconhece: “A vingança é como um fogo. Quanto mais devora, mais quer devorar” (p. 130). A associação ao “fogo”, que derreteu seu cabelo e parte de sua orelha e quase o consumiu por completo não é por acaso: a fagulha do ódio que David já nutria por aquela comunidade e seus integrantes começa a tomar conta de todos os seus pensamentos, a ponto de desejar aos seus agressores “tudo de mal, onde quer que estejam” (p. 125). Esse mesmo fogo é confundido com a justiça, que para ele se revelaria quando os três homens fossem “presos, julgados e castigados” (p. 138) – embora, na verdade, sua aspiração era a da mais crua vindita. Eis a razão de David não compreender a passividade de Lucy diante da violência por ela experimentada – apesar de desonrada, abdica até de comunicar à polícia o estupro coletivo a que foi submetida! Surge, então, outra pertinente discussão quando da apuração do ilícito: a posição da vítima. Para o pai, cuja honra foi igualmente maculada, nada mais natural, talvez até imperativo, do que a busca desesperada pela vingança: “Você vai ter de testemunhar” (p. 176). O inconformismo de David com a falta de colaboração de Lucy para a descoberta de seus vilipendiadores contrasta com o interesse desta em ver respeitada, em princípio, sua intimidade,
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4 RODRIGUES, Roger de Melo. A tutela da vítima no processo penal brasileiro. Curitiba: Juruá, 2014, p. 92. 5 BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. Trad. David Jardim. 34. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006, p. 159.
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seu recato, diante de ato tão aviltante, como quando, com o olhar, desafia seu pai a contradizê-la enquanto narra sua versão do que ocorreu às autoridades policiais locais. Trata-se do direito da vítima à participação, que pode consistir no condicionamento da ação penal à sua manifestação4, tal como ocorre no vigente ordenamento jurídico brasileiro, que prevê para o crime de estupro ação penal condicionada à representação como regra (art. 225, caput). Imperiosa, assim, é a pergunta a ser feita à vítima por ela mesma em crimes desse jaez, e que David dirigiu à filha como mero ornamento retórico: “Está pronta para testemunhar?” O que David não enxerga, porém, é que aquele ato pode ter decorrido justamente do mesmo sentimento que ele alimenta e tenta incubar em sua filha: o ódio. Ódio de quem se viu tratado como animal de carga, historicamente afastado dos mais elementares direitos sob o regime colonial e de apartheid experimentado na África do Sul. Ódio a retribuir idêntico sentimento dos forasteiros que, por não ostentarem pele escura, auferiam o que de melhor aquele país podia proporcionar, enquanto os “nativos” eram segregados e oprimidos. A desigualdade social é secamente apresentada pelo autor: “Um risco possuir coisas: um carro, um par de sapatos, um maço de cigarros. Coisas insuficientes em circulação, carros, sapatos, cigarros insuficientes. Gente demais, coisas de menos” (p. 114). Pode-se sempre esperar a resignação de um povo inteiro que se vê impedido de possuir um par de sapatos? É então que se revela a verdadeira missão de Lucy, simbolizada pela sua gravidez resultante do ato de violência: dar à luz um novo pacto, uma nova sociedade, em que o ódio, que durante tantos anos separou as pessoas naquele país, dê lugar à compreensão, tolerância e convivência pacífica. Isso fica claro quando Lucy reprime a violência de seu pai contra ato desrespeitoso de um de seus agressores (Pollux), talvez o pai biológico do nascituro: “David, não dá para continuar assim. Estava tudo assentado, tudo em paz de novo, até você voltar. Preciso de paz à minha volta. Estou pronta para fazer qualquer coisa, qualquer sacrifício, para ter paz” (p. 234). É, assim, a paz da justiça restaurativa que ela almeja, diferentemente de seu pai. Seu nome, aliás, indica seu papel no roteiro da obra, como o de muitos personagens na obra. A palavra Lucy deriva do latim lux, a sinalizar a luz que esta protagonista representa sobre as trevas de uma realidade social de traumas e ódio – sem mencionar que dá nome à mais conhecida obra do poeta romântico William Wordsworth (The Lucy poems), não por acaso uma das mais importantes referências do acadêmico David Lurie. O nome deste, por seu turno, se origina do hebraico e significa “o amado”, a indicar a trajetória de conquistas amorosas do sedutor professor, agora enfrentando seu ocaso. Tampouco foge da livre escolha do autor o nome dado ao único dos estupradores que merece possuí-lo: Pollux, que tinha como gêmeo – embora de pais diferentes – Castor5, segundo a mitologia grega, uniu-se a este na empreitada do rapto de Hilária e Febe, comungando de seu homônimo criado por Coetzee as circunstâncias de haver atentado contra uma mulher e de ter agido coletivamente, junto com seus “irmãos”. Por fim,
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aquele que um dia se apresentou como mero trabalhador de Lucy, depois dos acontecimentos afigura-se como seu protetor, a tal ponto que se dispõe até a desposá-la e assumir a paternidade do filho que ela espera: Petrus, que o autor nomeia em sua forma latina mesmo, para nem sequer tentar dissimular sua função de porto-seguro, de rocha sobre a qual Lucy poderá erigir sua árdua obra de reconstrução daquela sociedade. Apresenta-se, assim, um desfecho para a desgraça anunciada pelo autor, sob a perspectiva iluminada de Lucy: a expiação de culpas de seus antepassados, decorrentes da opressão aos nativos do país, e a ruptura da cultura de ódio de que ela própria foi vítima. Ainda que pareça por demais elevada sua postura para que os meros mortais possam segui-la, é inconteste sua lição de que é possível traçar caminho diferente do muito comumente difundido nos dias de hoje, patenteado pelas máximas “bandido bom é bandido morto”, “fora, estrangeiros” ou “morte aos infiéis”. Apesar da “desistência” de seu pai (p. 246) – representando toda sua geração – Lucy convoca a que se assuma comportamento diverso diante da violência, alinhado à justiça restaurativa, como a mostrar que o mais certo produto do ódio e da intolerância é, simplesmente: mais ódio e intolerância, verdadeiro justiciamento, jamais uma forma de justiça.
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HARRY POTTER, JURAMENTO INQUEBRÁVEL E CLAÚSULA PENAL Rute Saraiva1
As aventuras de um jovem feiticeiro, sobretudo quando dirigidas a um público juvenil, podem parecer desadequadas à seriedade da análise jus-literária, não apenas pela sua dimensão pop como igualmente pelo registo aparentemente menos problematizante e metafórico da realidade social que interessa ao Direito. Estas mesmas características colocam, porém, a saga de Harry Potter numa posição privilegiada para uma reflexão no âmbito do movimento de Literatura e Direito. Afinal, trata-se de um conto moral que, mesmo num universo entre o mágico e o não mágico (muggle), retrata dilemas quotidianos, alguns dos quais com relevância jurídica (vejam-se, por exemplo, as questões e garantias processuais no funcionamento do Wizengamot, o tribunal dos feiticeiros; as sanções criminais e a sua adequação, designadamente o beijo dos Dementores que suga a alma dos condenados; ou a proibição dos feitiços imperdoáveis – dominação da vontade, tortura e morte – ou a existência de estatutos diferenciados para as diversas criaturas mágicas, mormente com a situação de quase escravidão dos elfos domésticos, e a protecção dos direitos fundamentais). Por outro lado, o seu sucesso mundial junto de audiências e escalões etários tão alargados assegura-lhe uma dimensão didáctica nada despicienda. Neste contexto, parece-nos interessante analisar aqui brevemente a temática da cláusula penal em torno da figura do Juramento Inquebrável2 de modo a perceber melhor o alcance, vantagens e desvantagens deste instrumento.
2 O JURAMENTO INQUEBRÁVEL: O CONTRATO DOS CONTRATOS MÁGICOS
1 Professora da Universidade de Lisboa, Faculdade de Direito. rutesaraiva@fd.ul.pt 2 Unbreakable vowl no original. Em Portugal (editora Presença), traduzido como Juramento Inquebrável e, no Brasil (Editora Rocco), como Voto Perpétuo.
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1 INTRODUÇÃO
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i)
Proteger Draco enquanto ele estiver a tentar cumprir as ordens de Voldemort;
ii)
Proteger Draco, dentro das suas possibilidades, de todo o mal;
iii)
Se necessário, designadamente por incapacidade de Draco na realização da tarefa que lhe foi incumbida pelo Senhor das Trevas, levá-la a cabo, em sua substituição.
Neste caso, as três obrigações reforçam-se, tentando cobrir qualquer lacuna que possa ser utilizada para o obrigado se eximir ao seu cumprimento, procurando garantir ao máximo a vida, integridade física e emocional e a segurança de Draco para descanso de sua mãe. Note-se, porém, que, sendo Snape professor em Hogwarts e exímio mágico e vivendo o protegido na escola durante grande parte do ano e do período em que se encontra ao serviço de Voldemort e sendo Hogwarts raramente frequentada por sujeitos que aí não estudem ou trabalhem e estando fortemente defendida por feitiços (incluindo para impedir materializações e aparecimentos no recinto escolar) e professores fiéis a Dumbledore, dificilmente Malfoy correrá grande risco (incluindo ser punido por Voldemort) e as duas primeiras promessas de Snape são fácil e naturalmente exequíveis. Já a terceira obriga a um nível de comprometimento e de intencionalidade diferentes e mais escrupulosos que bem poderiam ajudar a explicar o recurso à cláusula penal inerente ao Juramento Inquebrável (morte em caso de inadimplemento), para além do sentimento de desespero de Narcissa e da desconfiança exacerbada de Bellatrix. Todavia, mesmo aqui, recorde-se que Snape (simulando ou não) reconhece que Voldemort deseja que ele avoque
3 Harry Potter and the Half-Blood Prince no original. Harry Potter e o Enigma do Príncipe, no Brasil, e Harry Potter e o Príncipe Misterioso, em Portugal.
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O Juramento Inquebrável, que surge evidenciado no Livro VI da coleção3, consiste num contrato entre dois feiticeiros, avalizado e testemunhado por um terceiro que o celebra com a ajuda de uma varinha mágica, em que uma das Partes se compromete a cumprir obrigações acordadas com a outra Parte. O contrato, realizado simbolicamente de mãos dadas, é selado por línguas de chamas como arame incandescente disparadas da varinha da testemunha e por lindas correntes brilhantes que envolvem e ligam as mãos unidas como uma corda. A quebra de contrato resulta na morte do incumpridor, ou seja do devedor, o que parece constituir, para todos os efeitos, uma cláusula penal. Na saga, além da tentativa dos gémeos Weasley, gorada pelo pai muito aflito, de induzirem o irmão Ron, ainda pequeno, a se vincular, o Juramento Inquebrável é celebrado entre Narcissa, mãe de Malfoy, aterrorizada por perder o filho único na realização da tarefa de assassinar Dumbledore a mando de Voldemort, e Snape, Devorador da Morte preferido do Senhor das Trevas e professor de Draco em Hogwarts, em casa daquele, com o apoio de uma desconfiada Bellatrix, irmã de Narcissa e fidelíssima seguidora de Voldemort. O seu objecto prende-se genericamente com a protecção de Draco por parte de Snape. Em rigor, subdivide-se em três obrigações cumulativas e cada vez mais específicas e exigentes, a saber:
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4 Note-se que no episódio que envolve Ron e os gémeos não se fornecem pormenores quanto ao conteúdo contratual.
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o encargo de matar Dumbledore depois de Draco (falhar), pelo que, até pelo historial vingativo do Senhor das Trevas, o próprio Severus enfrenta já risco de morte antes de fazer o Juramento, tanto mais que é traidor da causa daquele, fazendo um jogo perigosíssimo de contra-contra espionagem. Antes de se avançar, contudo, quanto a esta questão, e ainda no que respeita a descrição do tipo contratual, sublinhe-se, que não havendo nos sete livros, nem no material extra oficialmente fornecido amiúde pela autora, por exemplo, online, qualquer outro voto desta natureza4 não se pode ao certo recortá-lo, designadamente determinar se implica a celebração necessária de três promessas interligadas substancialmente e cada vez mais detalhadas ou se o seu número, coesão e lógica de reforço são característicos. Acresce que não é claro se o Juramento é unilateral ou bilateral, ou seja se contém obrigações apenas para uma das Partes ou se as duas (ou mais?) partes envolvidas podem comprometer-se a uma qualquer prestação. No caso em concreto, as obrigações apenas recaem em Snape não sendo Narcissa onerada com qualquer outra enquanto contrapartida directa ou não das assumidas pela outra parte. Todavia, no site oficial, a propósito deste feitiço, e apesar de se começar por apresentar uma lógica de unilateralidade, definindo-o como uma promessa feita por um mágico a outro, refere-se que a quebra do pacto por qualquer uma das Partes é sancionada com a morte. Ora, tal implica que ambas assumam obrigações (não necessariamente sinalagmáticas), o que não sucede no exemplo do livro, salvo se considerarmos que haverá do lado de Narcissa a obrigação de manter segredo quanto ao pacto, um pouco na lógica do encantamento Fidelius, devido à preocupação em não revelar a tarefa atribuída por Voldemort a Draco. Quanto ao Juramento Inquebrável, em si, desconhece-se ademais qual o encantamento usado em termos verbais, apenas se sabendo, quanto aos aspectos formais, a necessidade de varinha e de Testemunha e a vinculação simbolizada por línguas de chamas e correntes, numa alusão clara à sua solidez e seriedade, relembrando que se pode confiar (i.e.“pôr as mãos no fogo por alguém”) e que não se deve ser leviano (i.e. “brincar com o fogo”) sob pena de sanção danosa (i.e.“fogo eterno”), ficando-se eternamente preso (corrente) ao voto feito. Uma outra dúvida prende-se com o que acontece ao contrato no caso da Testemunha/ Avalizadora falecer primeiro do que o devedor e de este cumprir as suas obrigações. O problema, que não surge na saga pois não só Severus morre primeiro que Bella como executa o comprometido, nasce em boa parte da semelhança deste tipo contratual com o feitiço Fidelius e com a existência neste de um Guardador do Segredo. Será que o Juramento é quebrado, libertando as partes, ou será que o poder avalizador é transferido para outrem, mormente as Partes? Não se encontram na obra de J. K. Rowling dados que permitam responder, pese embora o paralelismo com a dinâmica do feitiço Fidelius possa conferir alguma luz. Note-se, igualmente, que na situação em apreço, e pelo sucesso na elaboração do feitiço com a sua selagem mágica sem aparente reacção secundária (como sucede nos livros para
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3 A CLÁUSULA PENAL NO JURAMENTO INQUEBRÁVEL
5 Veja-se que Narcissa (e Snape que acaba por concordar) pressente na tarefa essa impossibilidade ao equacionar que esta se trata essencialmente de um castigo velado de Voldemort à sua família, em especial quanto aos maus resultados de Lucius na obtenção da Profecia, procurando penalizá-los com a morte de Draco, seja no seu confronto com Dumbledore, seja pelo próprio Senhor das Trevas em caso de incumprimento (mais do que provável). Afinal, Draco é apenas um jovem feiticeiro que deverá enfrentar, num ambiente favorável ao Director de Hogwarts, um dos maiores mágicos da história.
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vários feitiços e poções inadequadamente feitos), parece possível um objecto contratual ilícito, já que o terceiro compromisso obriga Snape a substituir Malfoy no assassinato de Dumbledore, malgrado, inteligentemente, tal não seja explicitado, remetendo para um outro acordo, esse sim ilícito (e, em última análise, considerando a tarefa e os envolvidos, impossível5). Ou seja, a assunção da posição de comissário por Snape no juramento celebrado não especifica formalmente o conteúdo ilegal e contrário à ordem pública, pelo que talvez as Partes tenham encontrado nesta formulação remissiva um meio para contornar uma eventual proibição jurídica de negócios de conteúdo ilegal, frequente na maioria dos ordenamentos jurídicos (veja-se, por exemplo, o artigo 280 do Código Civil português ou 166 inciso II do Código Civil brasileiro). Hesitação semelhante levantariam igualmente os dois primeiros compromissos, visto que Narcissa pretende a protecção do filho enquanto este prepara e executa a maligna tarefa entregue pelo Senhor das Trevas, isto é, o seu objecto decorre de um pacto ilegal (entre dois sujeitos que não são parte do actual Juramento Inquebrável). Ainda assim, considerando esta última ressalva e o facto de não se pretender uma prestação que em si possa constituir um ato ilegal (pelo contrário, pretende-se salvar uma vida e salvaguardar a sua integridade – mesmo que seja durante um processo de actuação vil), parece um pouco mais difícil de considerar estes dois primeiros compromissos ilícitos e nulos. Ora, assumindo a nulidade da terceira parte do Juramento Inquebrável, naturalmente se suscita de seguida a questão da nulidade da totalidade do Juramento ou da sua redução ou conversão. Na hipótese de redução, pressupondo a existência no universo mágico de Harry Potter de uma norma semelhante à do artigo 292 do Código Civil português ou do 170 do Código Civil brasileiro, coloca-se a dúvida sobre a celebração do contrato, sobretudo por Narcissa (e Bellatrix), sem a terceira tarefa, visto que, no fundo, é esta que acaba por ser a maior garantia de protecção de Draco pois o receio é mais que seja vítima da fúria de Voldemort do que das tentativas de assassinar Dumbledore, além de que para a Testemunha se apresenta, pela sua concretização, como prova de boa-fé de Snape e de ser, afinal, um fiel seguidor do Senhor das Trevas e, enquanto tal, confiável para os Devoradores da Morte. Por último, saliente-se que o que parece certo, até pelo tom sarcástico e desconfiado de Bellatrix que goza com promessas e tentativas vãs de Severus, é que o pacto não seria selado sem a cláusula penal subjacente ao Juramento Inquebrável e que o torna, até pelo seu carácter fatal e perpétuo, no contrato dos contratos mágicos uma vez que vincula irreversivelmente as Partes e exige, por isso, uma solenidade formal e cuidados especiais na sua delimitação substantiva.
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6 Note-se que tal não impede que a cláusula penal venha a assumir uma dimensão sancionatória, sendo que o valor definido, neste caso, não deve ser tanto pensado em função dos danos (patrimoniais e não patrimoniais) mas da penalização desejada, pelo que a sua eventual excessividade deverá ser equacionada com recurso a critérios como a boa-fé ou ineficiência econômica. SILVEIRA, Marcelo Amaro da. Análise Ecônomica da Cláusula Penal em Obrigações Acessórias Negativas, Revista Jurídica Luso-Brasileira, Lisboa, Ano 3, n.º 3, 682-683. 7 M. A. Silveira (2017). P. 678 e ss, 720. Por todos, MONTEIRO, António Pinto. Cláusula penal e indemnização. Tese de Doutoramento, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1990, que defende mesmo a existência de três tipos de cláusulas penais: cláusula penal em sentido; cláusula de fixação antecipada da indemnização; cláusula penal exclusivamente compulsória,. Rejeitando, portanto, a posição doutrinária tradicional que propugna a cláusula penal como uma figura unitária, com uma dupla função e natureza mista.
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De modo sucinto, a cláusula penal, intensamente trabalhada no plano doutrinário e que remonta pelo menos ao Direito romano, traduz a liberdade contratual das Partes e a sua autonomia na determinação e construção dos termos negociais, consistindo num pacto acessório para incentivar e reforçar o cumprimento de alguma obrigação, principal ou acessória, estabelecida num contrato (ou negócio jurídico) através da estipulação de uma pena, em regra pecuniária, a ser imposta ao devedor (ou, eventualmente, a terceiro). No fundo, num exercício endógeno e coaseano das partes, o devedor aceita levar a cabo uma prestação diversa da reforçada na hipótese de não cumprir fielmente (de todo, em parte ou no prazo fixado), dentro das suas possibilidades, com a obrigação acordada em benefício do credor (ou de outrem). A cláusula penal apresenta pois, numa lógica pessoal e obrigacional, uma dimensão eminentemente ressarcitória e coercitiva, variando no tempo e no espaço o seu maior ou menor pendor indenizatório e/ou punitivo, substituindo-se a imposições legais (supletivas) exógenas. A sua fixação pressupõe um cálculo e pré-determinação de perdas e danos, vedando hoje o Direito português e o brasileiro, respectivamente nos artigos 811, n.º 3 e 412, que o valor da cláusula penal exceda o do prejuízo resultante do incumprimento da obrigação principal, podendo ser reduzida judicialmente, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente ou quando a obrigação tiver sido parcialmente cumprida, sob pena de invalidade6. Em suma, a cláusula penal caracteriza-se pela sua acessoriedade, obrigatoriedade e condicionalidade. Note-se, porém, algumas distinções entre os regimes de Civil e Common Law. Em termos históricos, no primeiro, por influência do Código napoleónico, até ao princípio do século XX, a cláusula penal tinha sobretudo uma função indenizatória, não podendo o valor fixado pelas Partes ser alterado a posteriori, nem mesmo no plano judicial. Com o Código Civil alemão, no início de novecentos, o seu papel passa a assumir uma função predominantemente coercitiva e de mínimo compensatório, embora predominando a primeira nos países de matriz mais germânica e a segunda nos latinos. A partir da década de 80 torna-se evidente uma abordagem unifuncional mais próxima da anglo-saxónica em que se distingue a verdadeira cláusula penal (penalty clause) com dimensão sancionatória e funcionando como pena privada (e proibida genericamente na Common Law) da cláusula de liquidação antecipada do dano (liquidated damages clause).7 Ora, no Juramento Inquebrável, em primeiro lugar, e ao contrário do que sucede no mundo dos muggles, o conteúdo da cláusula penal não pode ser convencionado pelas partes e
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8 Por todos, em português, sobre a perspectiva da Law and Economics e da Teoria Econômica do Contrato e a cláusula penal/penalty doctrine, ARAÚJO, Fernando. Teoria Económica do Contrato. Coimbra: Almedina, 2007, p. 921-922 e 927-940. Ver ainda, preferindo uma lógica de Law and Economics, a solução da Civil Law, HATZIS, Aristides N. Having the Cake and Eating it too: Efficient Penalty Clauses in Common and Civil Contract Law. International Review of Law & Economics, Vol. 22, No. 4, Dezembro, 2002.
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não tem natureza pecuniária. Independentemente das obrigações acordadas, está sempre em causa, existindo inadimplemento, a morte do incumpridor, como decorre quer do exemplo de Snape e Narcissa como dos irmãos Weasley. Assim, e como a pena capital é entendida na maioria dos ordenamentos jurídicos como a sanção mais pesada atendendo ao valor do bem jurídico fundamental da vida, a sua utilização como cláusula penal parece revestir uma dimensão sobretudo sancionatória e não meramente compensatória visto que dificilmente o incumprimento de uma qualquer obrigação “corrente” ou “quotidiana” produzirá danos equiparáveis à morte de um ser humano. A severidade da sanção traduz aliás a solenidade do contrato e o seu provável recurso em situações muito excepcionais. Ou seja, se considerarmos que a acção se desenrola no Reino Unido então, no mundo mágico paralelo, a solução seria contrária à existente no mundo muggle que rejeita a cláusula penal (penalty doctrine), indo portanto ao encontro dos ensinamentos de parte da literatura da Law and Economics que prefere ponderações custo-benefício a proibições genéricas.8 No pacto celebrado no Livro VI seria, contudo, possível equacionar uma natureza indenizatória para lá da mais óbvia componente sancionatória face à elevada parada em causa. Afinal, as obrigações assumidas por Snape visam garantir a integridade e vida de Draco na sua interacção com dois dos maiores feiticeiros de todos os tempos (Dumbledore e Voldemort) pelo que na hipótese de falhanço se pagaria a morte de Draco (ou a sucção da sua alma por Dementores em Azkaban) pela de Severus, ou seja o sacrifício de uma vida pela não salvação de outra. Ademais, subjacente e a montante do Juramento Inquebrável está um acordo de assassinato entre Malfoy e o Senhor das Trevas, mesmo que não fique claro se o primeiro foi coagido a celebrá-lo (por medo por si e pelos seus) ou se aderiu voluntariamente, designadamente pelo prestígio e posição privilegiada que poderia obter junto do mandante. Todavia, pode-se admitir, em especial conhecendo Dumbledore (até porque este até à sua morte sempre procurou proteger e ajudar Draco de forma a não manchar a sua alma, tendo inclusive combinado previamente com Snape que seria este a matá-lo, recordando-lho no final) e a protecção existente em Hogwarts contra os Devoradores da Morte, que a atuação de Malfoy dificilmente culminaria num desfecho fatal, podendo, no limite, ser expulso da escola ou simplesmente julgado pelo Wizengamot e encarcerado em Azkaban. Deste modo, ressalta uma vez mais a dimensão punitiva da cláusula penal do Juramento Inquebrável. Aliás, também uma outra diferença sobressai em relação ao regime jurídico muggle, tanto de Civil como de Common Law: a cláusula penal do Juramento Inquebrável, pelo seu peso e natureza que, no fundo, conferem e explicam a solenidade contratual subjacente, não se reduz a um mero pacto acessório; pelo contrário, a sua severidade inusitada parece ser a razão de ser do próprio Juramento e da sua celebração pela força que lhe confere, intensificando o vínculo
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9 No limite, também se pode equacionar que Narcissa também opta pelo Juramento Inquebrável para garantir o segredo do seu conteúdo perante Voldemort, sendo que o seu inadimplemento culminaria na morte de Snape, única testemunha, para além da irmã Bellatrix, da sua desconfiança em relação ao Senhor das Trevas e de violação do sigilo em torno da tarefa atribuída a Draco.
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contratual, e incentivo extremo para o seu cumprimento. Narcissa, enfim, na sua profunda aflição de mãe, apenas propõe este tipo contratual para assegurar a protecção vital do filho9e para Bellatrix trata-se da única forma de atestar verdadeira e eficazmente a boa-fé e convicção de Severus. Posto de outra maneira, no universo mágico, a cláusula penal é a razão de ser e o que define o Juramento Inquebrável mais do que os compromissos convencionados pelas Partes. A dúvida natural daqui resultante prende-se com a motivação das Partes para enveredar por este tipo contratual. Em regra, o recurso a uma cláusula penal tem como propósito primordial, como se vem assinalando, o reforço do cumprimento da obrigação principal, servindo como incentivo adicional e, simultaneamente, como sinalização do lado do devedor da sua motivação em cumprir. Por outras palavras, para o obrigado funciona como estímulo e pressão, uma vez que coloca um preço mais elevado no incumprimento do que no cumprimento obrigacional e no acionamento da cláusula do que no resultado do regime supletivo de inadimplemento, alterando as suas preferências em benefício do cumprimento. Ou seja, a sua diligência e motivação são fomentadas, combatendo portanto o característico risco moral pós-contratual. Para o credor, a cláusula penal surge como garantia da confiança na outra parte num contexto de assimetrias informativas, mormente em relação a novos devedores ou a devedores que têm, como Snape junto dos Devoradores da Morte, especialmente com Bellatrix, um histórico de cumprimento e lealdade dúbios, ajudando, deste modo, a vencer as reticências dos credores mais avessos ao risco. Se é expectável que, por estas razões, seja o credor a propor uma cláusula penal, como acontece com Narcissa, tal não impede que o devedor também a sugira como meio de vencer a suspeita da outra parte, funcionando, portanto, como seguro contratual e instrumento fundamental para ultrapassar a tendência para a não contratação por receio de um dos lados quando não conhece devidamente a contraparte. Neste último cenário espera-se, porém, que o devedor saiba devida e racionalmente avaliar os seus riscos de incumprimento, visto que, de outra forma, se estará a onerar excessivamente e a subestimar a probabilidade de inadimplemento, com todas as ineficiências e custos pessoais e sociais consequentes de um jogo de sinalização viciado (bluff ) para impressionar e manipular (ARAÚJO, 2007, p. 696); (SILVEIRA, 2017, P. 689-690). Por outro lado, numa perspectiva compensatória (mas também sancionatória), a existência de uma cláusula penal pode diminuir custos pós-contratuais (pese embora possa significar pela sua negociação e procura da completude contratual um acréscimo de custos de transação pré-contratuais, até porque uma das partes pode encarar a proposta como um ataque à sua seriedade e retidão) pela “sua exigibilidade de pleno jure e a desnecessidade de alegação e prova do dano”(SOMBRA, 2012). Por outras palavras, a cláusula é acionada automaticamente na hipótese de incumprimento substituindo a necessidade de uma acção judicial para apurar prejuízos e fixar uma indemnização, evitando o arrastamento moroso do caso em tribunal,
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i)
dificilmente aparecerá alguém que ofereça um acordo melhor que justifique a quebra do Juramento, quanto mais não seja pelo carácter secreto deste (para evitar a fúria de Voldemort e o conhecimento de traição dentro do seu grupo de seguidores) e por pressupor um potencial confronto com dois dos maiores mágicos de sempre (Dumbledore em legítima defesa e Voldemort por vingança e punição de falhas);
ii)
não é do interesse de Narcissa defraudar o cumprimento das obrigações estipuladas visto que o seu objectivo primário é assegurar o salvamento do filho e não de todo conseguir a morte de Severus. Esta ameaça apenas serve para fortalecer e estimular a prossecução das tarefas ajuramentadas; e
iii)
à semelhança do que se verifica noutros ordenamentos jurídicos, a cláusula só pode ser acionada na hipótese do inadimplemento ser imputável ao devedor, ou seja, quan-
10 Ceteris Paribus é um termo da língua latina que significa “todas as demais coisas permanecem iguais”. 11 Contra, WILKINSON-RYAN, Tess. Do Liquidated Damages Encourage Breach? A Psychological Experiment. Michigan Law Review, Vol. 108, 2010, defende, após verificação experimental, que a existência de uma cláusula de liquidação antecipada do dano ou até mesmo penal clarifica as expectativas normativas das partes com a revelação de uma disposição de procurar oportunidades e aceitar a quebra contratual por um preço mais baixo, possibilitando uma quebra eficiente do contrato.
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com todos os (muitos) custos (incluindo emocionais) associados. Resumindo, se os custos de litigância poupados forem inferiores aos custos de negociação da cláusula penal, então esta justifica-se, ceteris paribus10, pela sua eficiência em termos de uma redução agregada dos custos de transação. Tal pode suceder, em especial, em situações em que os danos derivados do incumprimento são difíceis de calcular ou quando as partes antevêem e concordam com o valor compensatório, evitando avaliações (judiciais) erróneas (SILVEIRA, 2017, P. 692-693). Não se retire abusivamente destas palavras a universalidade da eficiência da cláusula penal, sendo pois necessária uma avaliação casuística que atente, entre outros, ao valor fixado (relativamente aos danos efetivos resultantes do incumprimento), à profundidade das assimetrias informativas e da clivagem (de poder) entre as Partes e à influência de uma maior ou menor racionalidade e vontade limitadas. Veja-se que se a cláusula penal fixar um preço demasiado baixo (mais comum se a lógica for compensatória) ou demasiado alto (característico da função punitiva) as ineficiências podem surgir, no primeiro caso ao facilitar o incumprimento e, no segundo, ao impedir uma quebra eficiente do contrato11, levar a um cumprimento ineficiente do mesmo e potenciar comportamentos sabotadores e de duplo risco moral do credor (que ficaria a ganhar com o accionamento da cláusula relativamente ao cumprimento contratual), para além de conduzir a um aumento dos custos de transação por despoletar um processo de revisão equitativa da cláusula (SILVEIRA, 2017, P. 695-696 e 699). Ora, no Juramento Inquebrável, o preço pelo incumprimento é, como se viu, na maior parte das vezes, muito superior aos possíveis danos originados pelo inadimplemento devido à sua natureza eminentemente punitiva, com os consequentes riscos de ineficiência. No entanto, no contrato celebrado entre Narcissa e Snape, não se antecipam alguns dos possíveis problemas equacionados:
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Na relação entre Snape e Narcissa não se verificam igualmente abusos relacionados com a diferença de poder (incluindo económico e social) entre as Partes que poderia desequilibrar o contrato, mormente através da manipulação e imposição, até mesmo coactiva, pela mais forte, de uma cláusula penal excessiva (shotgun clauses) no caso de ser credora ou ridícula na hipótese de ser o devedora. Aqui ambos são excelentes mágicos e, se Narcissa vem de famílias de classe alta e Snape de classe baixa, a primeira caiu em desgraça junto do Senhor das Trevas, sendo o segundo o seu favorito. Ademais, este desempenha funções docentes em Hogwarts, o que é prestigiante. Já no que respeita a tentativa de Juramento Inquebrável pelos irmãos Weasley, pela diferença de idades, poder-se-ia levantar a questão de algum abuso tanto por desequilíbrio de poder como por assimetrias informativas penalizadoras de Ron. Todavia, sendo os três envolvidos menores, a verdadeira questão que se coloca é a da sua capacidade para a celebração deste tipo de feitiço contratual. Face ao susto do pai, presume-se que, ao contrário do que sucede a mais das vezes no universo muggle, a menoridade não determina automaticamente a incapacidade de exercício contratual, bastando pois a intenção de contratar, quiçá por questões de protecção de terceiros de boa-fé.12 No entanto, estranha-se esta solução quando, nos livros, se descreve um regime diferenciado para menores que inclui a proibição de fazer magia fora da escola e a colocação de um localizador. Ainda assim, o fato da autora da saga ser britânica pode ajudar a explicar esta opção por se verificar nos ordenamentos anglo-saxónicos uma maior predisposição para responsabilizar os menores nos mesmos termos que os adultos, mesmo no plano criminal. Quanto a assimetrias informativas, que, aliás, podem justificar a própria exigência de uma cláusula penal e gerar ineficiências no seu desenho com consequências contratuais e no adimplemento, não deixa de ser curioso o que sucede entre Snape e Narcissa. Com efeito, esta impõe a pena de morte não só como incentivo extremo ao cumprimento contratual como também como forma de ultrapassar a desconfiança quanto ao perfil e motivações de Severus, no fundo considerando ter jogado um trunfo. Contudo, a vantagem encontra-se duplamente do lado deste. Afinal, não só tem conhecimento de que Dumbledore está a morrer devido à maldição libertada na destruição de um Horcrux como o Diretor de Hogwarts lhe pediu para o matar com o intuito de evitar o seu fim angustiante e de não manchar a alma de Draco, tendo ele concordado. Ou seja, Snape acabará por matar Dumbledore não como agente de Narcissa (e Voldemort) mas como agente de Dumbledore. Será suicídio assistido e não homicídio, permitindo, porém, cumprir o Juramento Inquebrável, em que o que interessa é o resultado, e, deste modo, manter-se
12 Sobre a importância da intencionalidade na celebração de contratos no universo de Harry Potter e na Common Law, HALL, Timothy S. [et al.]. Harry Potter and the Law. University of Louisville School of Law Legal Studies Research Paper Series No. 2007-05, Louisville, 2007, pp. 32-36.
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do ele haja com culpa ou negligência. Ora, esta delimitação encontra-se no recorte da segunda obrigação quando se fixa expressamente o seu cumprimento dentro das possibilidades de Severus.
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(de modo ingrato) como espião infiltrado (e solitário) junto dos Devoradores da Morte, mesmo se sem o devido reconhecimento por parte dos membros da Ordem da Fénix. Neste contexto, rapidamente se percebe que Snape não sofre de alguns dos enviusamentos cognitivos frequentes nos devedores que os conduzem a aceitar cláusulas penais demasiado onerosas, a saber o excesso de confiança quanto às suas capacidades para o cumprimento das obrigações assumidas, o sobre-optimismo quanto às condições envolventes favoráveis para o adimplemento e o desconto hiperbólico quanto ao momento (e dimensão) de efectivação das obrigações, sobre-avaliando-se a celebração imediata do contrato e a sinalização dada e sub-estimando-se o esforço a prazo para o cumprimento, pese embora as reticências exibidas no momento de executar Dumbledore possam suscitar algumas reservas. No limite, pelo privilégio informativo de que dispõe e pela posição dentro de Hogwarts e junto a Dumbledore, poderá sofrer de uma ilusão de controlo da situação. Narcissa, pelo seu lado, parece evidenciar algum efeito de dotação com a exigência da celebração do Juramento Inquebrável, atribuindo ao cumprimento contratual um valor excessivo devido a uma acentuada aversão à perda (afinal está em causa a vida e integridade do seu único filho) que se traduz na exigência do preço pelo inadimplemento ser a vida de Snape. Não fora o papel de agente “triplo” de Snape e das preciosas vantagens informativas que detém, certamente a proposição de um Juramento Inquebrável com uma cláusula penal de vida ou morte levantaria enormes custos de transacção (ex ante), com Snape a querer negociar a cláusula (ou tipo contratual), ou, simplesmente, levaria à não celebração de um contrato (SILVEIRA, 2017, P. 706). Resumindo, é possível imaginar várias situações em que a celebração do Juramento Inquebrável com a sua cláusula penal de vida ou morte possa revelar-se ineficiente.
Em jeito de conclusão, apura-se que, em rigor, o Juramento Inquebrável não apresenta uma cláusula penal nos termos do Direito muggle, anglo-saxónico ou continental. Afinal não só a pena de morte associada ao incumprimento obrigacional se assume como elemento essencial e não meramente acessório do contrato, definindo-o por excelência como o contrato dos contratos, como o seu carácter eminentemente punitivo e não pecuniário o afastam da figura não mágica. A celebração de um Juramento Inquebrável, que se justifica pela liberdade contratual, apenas se explicará, deste modo, para situações graves (de vida e de morte) ou em que as Partes revelem vieses cognitivos exagerados, designadamente um excesso de confiança nas suas capacidades e sobre-optimismo quanto às condições de cumprimento. Para evitar fatalidades desnecessárias, até pela aparente facilidade na celebração deste tipo de contratos como resulta do episódio dos irmãos Weasley, deveriam ser introduzidos procedimentos que ajudassem a desmontar eventuais distorções racionais, mormente fomentando um período de reflexão, por
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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exemplo, prevendo um hiato entre a celebração do contrato e a sua vigência e vinculação e obrigando a uma (re)confirmação formal expressa, ou o acompanhamento da negociação contratual por um terceiro, um pouco à semelhança do papel de Bellatrix, e que vem revelando um interessante potencial desenviusador em instituições com estruturas hierárquicas13. Estes mecanismos teriam a vantagem aparente de não apresentarem custos de transacção significativos sobretudo quando comparados com a solução tradicional de correção equitativa judicial ex post de cláusulas penais excessivas. Estas reflexões poderão, em última análise, servir igualmente para o melhoramento do Direito contratual muggle.
REFERÊNCIAS ARAÚJO, Fernando. Teoria Económica do Contrato. Coimbra: Almedina, 2007. BAFFI, Enrico. Efficient Penalty Clauses with Debiasing: Lessons from Cognitive Psychology. Università Degli Studi Guglielmo Marconi, Roma, nov. 2007. Disponível em: <https://ssrn.com/abstract=1029926>. Acesso em: 1 out. 2017. HALL, Timothy S. e outros. Harry Potter and the Law. University of Louisville School of Law Legal Studies Research Paper Series, Louisville, n. 2007-05, out. 2005. Disponível em: < http://ssrn.com/abstract=829344>. Acesso em: 1 out. 2017. HATZIS, Aristides N. Having the Cake and Eating it too: Efficient Penalty Clauses in Common and Civil Contract Law. International Review of Law & Economics. Vol. 22, n. 4, dez. 2002. MONTEIRO, António Pinto. Cláusula penal e indemnização. Tese de Doutoramento Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1990.
SOMBRA, Thiago Santos. As arras e a cláusula penal no Código Civil de 2002. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 917, Ano 101, mar. 2012. WILKINSON-RYAN, Tess. Do Liquidated Damages Encourage Breach? A Psychological Experiment. Michigan Law Review, Michigan, vol. 108, jan. 2010. Disponível em: < http:// repository.law.umich.edu/mlr/vol108/iss5/1>. Acesso em: 1 out. 2017.
13 BAFFI, Enrico. Efficient Penalty Clauses with Debiasing: Lessons from Cognitive Psychology. Università degli Studi Roma Tre, Roma, 2007. https://ssrn.com/abstract=1029926
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SUPREMO OU SOBERANO?
“A Constituição diz o que o Supremo diz que ela diz”2, é algo que ouvimos com uma certa frequência nos meios jurídicos (acadêmicos ou jurisdicionais). Será que a Constituição efetivamente diz o que o Supremo diz que ela diz? Essa afirmação não é criação da doutrina nacional (como muitas coisas em nosso sistema jurídico) e retrata a realidade dos Estados Unidos. A Constituição americana possui menos de 8000 palavras, incluindo as assinaturas e as emendas constitucionais, tendo sido o resultado de um pacto federativo realizado em 1787 por 13 ex-colônias que gozavam, à época, de soberania. O texto da Constituição americana é bastante sintético e sofreu poucas alterações ao longo dos seus 230 anos de história – foram apenas 27 emendas, sendo que as primeiras datam ainda do final do século XVIII. A própria função da Suprema Corte americana não está totalmente delineada no texto constitucional, de modo que a atuação efetiva da Corte e a habilidade política dos Chief Justices que a dirigiram ao longo da história acabaram por definir os limites da atuação judicial nos Estados Unidos. No Brasil a situação é bem diversa. Nossa primeira Constituição é mais nova que a Constituição americana (data de 1824 o primeiro texto do “Império do Brazil”, independente de Portugal e chefiado pelo herdeiro da coroa portuguesa), tendo sido sucessivamente substituída por seis outras Constituições (1891, 1934, 1937, 1946, 1967/693 e 1988), sem contar as inúmeras emendas que todas elas sofreram. Só a Constituição vigente, que sequer chegou à terceira década, já foi objeto de 96 emendas de reforma4 e 6 emendas de revisão. Na data de hoje – e em se tratando do Brasil, é importante dizer isso, pois as alterações
1 Ana Beatriz Ferreira Rebello Presgrave. Doutora em Direito Constitucional pela UFPE. Mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Graduada em Direito pela PUC-SP. Professora do Curso de Graduação e do Programa de Pós-graduação em Direito da UFRN. Estágio pós-doutoral na WestifälischeWilhelms-Universität Münster (WWU). Membro da diretoria do IPPC. Membro da ABDPRO. Membro do IBDP. 2 Versão tupiniquim da famosafrase de Charles Hughes “We are under a Constitution, but the Constitution is what the judges say it is.” 3 Ousete, pois a EC n. 1 de 1969, dada a sua extensão e o conteúdo dos dispositivos que alterou, pode ser considerada como uma nova Constituição. 4 Até 31 de agosto de 2017.
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5 “A norma jurídica não se encontra já pronta nos textos legais; nestes encontram-se apenas formas primárias, os textos normativos. A norma só será produzida em cada processo particular de solução jurídica de um caso, em cada decisão judicial. (...) A “norma jurídica” torna-se, dessa forma, um conceito complexo, composto do âmbito normativo e do progrma normativo (isto é, do resultado da interpretação de todos os dados linguísticos.)” (MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes, 3ª. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p.135) 6 Não é demais lembrar que o STF, assim como todos os poderes instituídos são criações do Poder Constituinte Originário, ou seja, são “criaturas” e não “criadores”. 7 Art. 102, CF. É de se observar que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios também o são (art. 23, I, CF). 8 Exemplos recentes não faltam. Para citar um caso em que o desrespeito ao texto se mostrou grotesco, veja-se a “interpretação” dada ao art. 52, X na decisão liminar proferida pelo Ministro Gilmar Mendes na Rcl 4335-AC, em que afirmou haver uma “mutação constitucional” no referido artigo, o que alteraria a competência atribuída pelo Constituinte originário ao Senado, para o STF. 9 Já dizia GeogesRipert que quando o direito ignora a realidade, a realidade se vinga e ignora o direito. 10 ZAGREBELSKY, Gustavo. Historia y constitución, trad. Miguel Carbonell. Madrid: Trota, 2011, p. 27-28
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constitucionais são constantes – a Constituição brasileira, com menos de 30 anos de idade, conta com mais de 84.000 (oitenta e quatro mil) palavras. Ou seja, não temos falta de texto... A norma constitucional, entretanto, não se confunde com o texto5, sendo certo que a atividade interpretativa extrai a norma jurídica a partir do texto constitucional. Mas isso não significa dizer, de modo algum, que o texto constitucional é irrelevante, ou que não há limites para a interpretação da Constituição. Ou seja, há uma distância enorme entre assumir que a norma jurídica não se confunde com o texto da lei ou da Constituição, e dizer que o texto pode ser relevado na interpretação. O texto da Constituição funciona como limite aos poderes instituídos6, definindo suas competências, o modo de sua atuação e estabelecendo os direitos e garantias que devem ser respeitados. O texto também é um limite para a interpretação da Constituição. Em outras palavras, o STF não pode, sob o argumento de ser “o guardião da Constituição”7, criar normas desconectadas com o texto escrito da Constituição. A necessária observância das normas da Constituição é fundamento do Estado Democrático de Direito, sendo fundamental para a manutenção de um Estado Constitucional. Há determinados artigos da Constituição que permitem uma certa maleabilidade interpretativa (como o conteúdo do devido processo legal, da igualdade), mas há outros que não permitem qualquer tipo de flexibilidade – como as regras de competência. Descumprir regras expressas da Constituição, argumentando que se trata de “mutação constitucional”8, somente colabora para uma discricionariedade judicial sem limites (se o limite não está na Constituição, estará onde?). A relação entre “direito e moral” e “direito e sociedade” deve ser muito bem estabelecida para que não corramos o risco de estabelecer padrões morais ou sociológicos nos julgamentos jurídicos. É claro que a adequação social das normas jurídicas é uma necessidade9, mas atribuir, sem comando constitucional expresso, essa “competência de adequação” ao judiciário, sem limites, permitindo-se a inovação, é minimamente temeroso. O direito constitucional, com afirma Zagrebelsky10, não pode contentar-se em ser um subproduto da história e da política, propondo soluções voltadas ao passado; ao contrário, deve voltar-se ao futuro, convertendo-se em força autonomamente constitutiva tanto da história quanto da política.
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11 HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Trad. Gilmar Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 15-16 12 O autor, quando se refere a uma das leis do Reich alemão (que permitia a condenação de um homem à pena de morte se fosse denunciado pelo “crime” de criticar Hitler), afirma que “a corrupção das mentes é obtida através da desinformação maciça e da proibição de toda crítica”. (CAPPELLETTI, Mauro. Repudiando Montesquieu? A expansão e a legitimidade da “justiça constitucional”. Trad. Fernando Sá. Porto Alegre. Revista do TRF – 4ª. Região, ano 12, n. 40, p. 15-49, 2001, p. 18-19). 13 A alteração do sentido da norma em decorrência de alterações subjetivas, objetivas, circunstanciais e temporais.
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Surge, então, um novo pensamento no campo jurídico, por meio do qual se atribui força maior às normas constitucionais, capaz não apenas de fazer prevalecer no ordenamento jurídico somente as normas que estejam em conformidade formal e material com o seu conteúdo, mas também com força suficiente para conformar a sociedade em que estão inseridas tais normas: é a chamada “força normativa da Constituição”11. Afirmar que a Constituição possui força normativa significa dizer que a Constituição tem o poder de conformar a sociedade, possuindo as normas constitucionais um status diferenciado das demais normas do ordenamento jurídico. Essa percepção tornou premente a modificação de diversos institutos e instrumentos jurídicos, como a expansão da jurisdição constitucional, e a instituição de novos instrumentos de controle de constitucionalidade. O poder político ilimitado, que não possui controle, pode perverter-se numa grande máquina corruptora, como ocorreu na Alemanha com o nazismo, na Itália com o fascismo e na Rússia com o stalinismo12. Acreditar que transferir esse poder ilimitado ao judiciário não terá as mesmas consequências perversas é, minimante, ingênuo. Percebe-se, assim, que a observação da norma constitucional é elemento nuclear para que haja coerência e integridade no sistema jurídico, haja vista tornar menor o espaço de discricionariedade judicial. A Constituição é o limite para a atuação do Estado, e o texto da Constituição, embora não se confunda com a norma que dele se extrai, é um limitador à atividade hermenêutica. Para se compreender essa relação, a metáfora com as cores é bastante esclarecedora dos limites e certezas hermenêuticas. Quando se fala sobre a cor salmão (um misto de laranja com rosa, às vezes mais claro, às vezes mais escuro), há uma certa margem de discussão sobre qual seria exatamente essa cor. Dependendo da incidência da luz (que também pode ser mais amarelada, ou esbranquiçada), e das pré-concepções de quem vê, o salmão pode se parecer mais com o laranja. Em sendo diversas as circunstâncias, o salmão pode ficar mais próximo do vermelho, do rosa, ou até mesmo do bege. Mas ele jamais será preto, azul ou verde. Ou seja, na interpretação há zonas cinzentas, em que a configuração da norma dependerá efetivamente das circunstâncias concretas13, Há zonas de certeza negativa. Assim como, há zonas de certeza positiva. Nestas zonas, qualquer confronto significa arbítrio. A competência legislativa – inovação do direito – foi conferida pelo constituinte originário ao órgão legislativo. Ao judiciário foi atribuída a competência precípua de julgar causas, de modo que é defeso a qualquer órgão do judiciário extrapolar os limites impostos pelo texto
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14 O controle de constitucionalidade, através de suas diversas técnicas, é a única maneira constitucionalmente aceitável de se permitir ao Estado-juiz deixar de aplicar uma lei.
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da Constituição e das leis com ela compatíveis.14 O sistema jurídico é um complexo de normas, hierarquicamente organizadas a partir da Constituição. Esse fato torna o Estado Democrático de Direito possível, pois que pautado em um ponto de confluência, resultado das escolhas políticas e sociais de um povo, num determinado território, exercendo sua soberania em sua expressão máxima: o Poder Constituinte Originário. Assim, resta patente que, em um verdadeiro Estado Democrático de Direito não existe ampla liberdade ao Estado-julgador. Ao contrário, deverá ele estar estritamente vinculado aos limites impostos pelo ordenamento jurídico, já que a atuação estatal, limitadora que é das liberdades individuais, deverá se pautar nas normas estabelecidas pela sociedade para o seu regular funcionamento (ordenamento jurídico, todo ele com fundamento de validade retirado, em última instância, da Constituição Federal). O Estado-juiz, assim, não tem liberdade irrestrita para “reescrever” o texto na atividade interpretativa. O texto não é suficiente, mas também não pode ser ignorado. Quando a Constituição diz o que ela é, não cabe ao Supremo desdizê-la. O Supremo é supremo, e não soberano. A Constituição diz o que ela diz, e não o que o STF diz que ela diz.
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WEAK COURTS, STRONG RIGHTS Recensão do livro1: TUSHNET, Mark. Weak Courts, Strong Rights: judicial review and social welfare rights in comparative constitutional law. Princeton, Princeton University Press, 2008. 272p. (ISBN 978-0-691-13092-7), $26,13.
Mark Tushnet, Professor William Nelson Cromwell de Direito da Universidade de Harvard, expõe no seu livro uma clara proclamação política do controle de constitucionalidade numa democracia moderna ou, de modo mais preciso, a necessidade de diálogo entre a Corte Constitucional, o Legislador e o Poder Executivo, incluindo-se, evidentemente, o povo, por meio dos segmentos sociais, na árdua promoção dos direitos sociais (p. 34). Aliás, a revisão judicial fraca3 (weak-form judicial review) exige um permamente e inevitável diálogo entre a Corte Constitucional e o Legislativo (p. 66) e, numa que se revela mais importante, a intensificação da responsabilidade política do legislador, sempre tão sofrível nos tempos hipermodernos. Aqui, sem sombra de dúvida, representa um dos mais importantes aspectos do livro: um reforço do envolvimento político na atividade interpretativa do texto constitucional4. Quando a dinâmica decisória dos direitos consagra inolvidáveis custos políticos, isto é, revela-se impopular, é comum o Poder Legislativo ausentar-se de suas responsabibilidades, então, nesse ponto, o
1 Todas as páginas grafadas no texto, entre parênteses, referem-se à obra recensionada. 2 Doutorando em Direito Público/Universidade de Coimbra. 3 A palavra débil não se afigura adequada, ainda que largamente empregada, porquanto essa revisão não demonstra debilidade, mas necessária obtemperação nos ordinários prognósticos da coercibilidade dos julgados constitucionais. 4 Aliás, a importância do envolvimento político na interpretação constitucional é igualmente defendida em outros livros do autor, especialmente no primeiro destes: (a) Taking the Constitution Away from the Courts. Princeton: Princeton University Press, 1999, p. 154-176; e (b) Why the Constitution Matters.New Haven: Yale University Press, 2010, p. 151-174. Nesse ponto, é até mesmo importante questionar se o autor rompe com a ideia de que a Constituição deve ficar distante das Cortes e, em função disso, assumir uma posição menos radical pela adoção da weak-form judicial review, assim, mantendo firme uma compreensão mais dialógica da política constitucional, mas sem defender tão incisivamente o constitucionalismo popular, tal como se observa nesta ligeira passagem: “Populism constitutional law does not determine the outcomes of political controversies or dictate much about public policy. Instead, it orients us as we think about and discuss where our country ought to go” (Mark TUSHNET, Taking the Constitution Away from the Courts, 1999, p. 194).
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5 Que possui sua origem na aplicação da Décima Quarta Emenda da Constituição dos Estados Unidos (Civil Rights Cases), com particular destaque ao caso Lochner v. New York [198 U.S. 45 (1905)]. Em verdade, ao destacar a liberdade de contratar, que, inclusive, não era um direito expresso na Constituição, em detrimento da saúde do trabalhador (negro), a corte norte-americana promoveu verdadeira política em vez de interpretar o direito (Paul KENS, Lochner v. New York, In: Kermit. L. HALL (ed.), The Oxford Guide to United States Supreme Court Decisions,Oxford: Oxford University Press, 1999, p. 161-163, p. 163). 6 O modelo da revisão judicial fraca foi inicialmente ventilado por: GARDBAUM, Stephen, “The new Commonwealth Model of Constitutionalism”, The American Journal of Comparative Law,Ann Arbor, vol. 49, p. 707-760, 2001. Aliás, observa-se uma clara delimitação na adoção do modelo, isto é, limitando-se à Commonwealth, não dispensando Mark Tushnet a mesma delimitação político-cultural, no que fez bem, porquanto a dinâmica da revisão judicial fraca, que consagra a importância de diálogo entre os Poderes, ainda que possua considerável exigência de ordem político-democrática, não pode centrar-se numa experiência constitucional de uma determinada comunidade de nações, pois ela demanda uma nova forma de enxergar a revisão judicial e não necessariamente o surgimento de um novo modelo de Constituição, não é por outro motivo que Tushnet apregoa a mudança, nos Estados Unidos, da revisão judicial forte para revisão judicial fraca em matéria de direitos econômicos e sociais.Ora, esse entendimento resta patente nesta passagem: “That is, weakform review does not make sense in such a culture.Perhaps the transformation of weak-into strong-form review, if it occurs, indicates only that the nation that have adopted weak-form review actually have political-legal cultures more suitable for strong-form review”(p. 51). Em artigo mais recente, Stephen Gardbaum destaca um razoável sucesso do novo modelo como alternativa intermediária entre a supremacia judicial e a supremacia do Parlamento (GARDBAUM,Stephen,“Reassessing the new Commonwealth model of constitutionalism”, International Journal of Constitutional Law, Oxford, vol. 08, nº 02, p. 167-206, 2010, p. 205-206). 7 Ainda que ela possa ser marcada pelo famoso julgado Marbury v. Madison[5 U.S., 137 (1803)], na imorredoura contribuição de John Marshall.
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diálogo entre a Corte Constitucional e o Poder Legislativo corporifica um providencial propósito responsabilizador dos atores políticos. Prendendo-se à programação do livro, Tushnet divide-o em 03 (três) partes, totalizando 08 (oito) capítulos, no seguinte modo: (a) na primeira, apresentam-se os necessários esclarecimentos sobre a revisão judicial forte e a revisão judicial fraca, destacando importantes questões sobre o direito constitucional comparado, formas alternativas de revisão judicial e a possível instabilidade da revisão judicial fraca e suas implicações; (b) na segunda, destaca a responsabilidade do Poder Legislativo na aplicação da Constituição, discorrendo sobre a atividade interpretativa do legislador e, também, sobre as decisões de cunho constitucional fora das cortes, o que bem evidencia a existência de diversos corpos decisórios revelantes no Estado; por fim, (c) na terceira parte, o autor discute a aplicação judicial dos direitos econômicos e sociais, pontuando sobre a conflitiva relação entre a state action doctrine5e os direitos sociais e econômicos, a estrutura operacional da revisão judicial, efeitos horizontais e direitos sociais, findando com a discursiva e/ou conflitiva questão da aplicação dos direitos econômicos e sociais. Vale lembrar que a proposta discursiva do livro, como proposta conteudística, prende-se à dificuldade em aplicar judicialmente os direitos econômicos e sociais nos Estados Unidos. A partir disso, e com o coligir de outras fontes constitucionais, o autor consagra a importância de um novo modelo de revisão judicial: a revisão judicial fraca6. Desde já, é importante destacar que a Constituição dos Estados Unidos não criou qualquer modelo de revisão judicial [forte], logo, ela decorreu de um longo processo de evolução jurisprudencial7, de maneira que não há uma razoável garantia constitucional de que uma consciente ação política não possa romper com o modelo atual (p. 74, nota 88). De plano, Tushnet já destaca um dado precioso sobre a revisão judicial fraca, qual seja, de que no constitucionalismo moderno o povo de uma nação deve ter o compromisso de escolher suas políticas e, com isso, assumir o ônus de uma autogovernação democrática (p. 18), o que impõe, evidentemente, a possibilidade de impor limites às escolhas políticas numa perspec-
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8 O caso Cooper v. Aaron [358 U.S., 1, 18 (1958)] foi considerado pelo autor como a articulação moderna da revisão judicial forte (p. 21). 9 “Wherever an enactment can be given a meaning that is consistent with the rights and freedoms contained in this Bill of Rights, that meaning shall be preferred to any other meaning”. Disponível em: <http://www.legislation.govt.nz/act/public/1990/0109/latest/ DLM225502.html>. Acesso em 26 abr. 2015. 10 Daí a razão do necessário cometimento na adoção do instituto, aliás, inicialmente pensado como um compromisso político e, hoje, expressa uma verdadeira instituição constitucional nova, uma forma de constitucionalismo suave, que exige o diálogo entre o legislador e o juiz (BARAK,Aharon,Proportionality. Constitutional Rights and their Limitations. Translator Doron Klair. Cambridge: Cambridge University Press, 2012, p. 170).
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tiva democrática (p. 19), daí a particular importância desse modelo de revisão judicial: consagra o reconhecimento da autogovernação democrática no constitucionalismo moderno. Se, por um lado, a democracia nem sempre revela a melhor solução aos dilemas da sociedade, e toda sociedade democrática bem sabe disso; por outro, ela deve denunciar os responsáveis pelas decisões políticas fundamentais do Estado. É impensável qualquer liberdade, num regime democrático, sem as inflexões das providenciais ou sofríveis opções políticas do povo. Nisso resulta que a revisão judial forte, na qual os julgamentos da corte são defintivos e não revisáveis8, não se compatibiliza propriamente com a autodeterminação democrática de um povo, mesmo que tal modelo, e que isso seja fora de dúvida, tenha o propósito de assegurar os direitos desse povo. O que parece bem evidente é a tensão constante entre o modelo de revisão judicial forte na defesa ou aplicação dos limites constitucionais e o exercício de um autogoverno democrático (p. 22). Nesse ponto, como forma de revisão judicial fraca, é bem interessante a figura do mandato interpretativo (interpretative mandate) estampado no § 6 do New Zealand Bill of Rights Act9, de 1990, porquanto consagra uma atuação judicial com nítida deferência ao legislador e, por outro lado, formenta uma atuação legislativa cônscia dos limites substantivos claramente impostos pela corte (p. 27). Por outro lado, a Seção 33 da Carta Canadense de Direitos e Liberdades de 1982, na discutível técnica da cláusula não obstante, expressa uma possível instabilidade na adoção da revisão judicial fraca, uma vez que permite uma compreensão da atividade legislativa dissonante da perspectiva judicial (override); contudo, o custo político dessa atuação acaba por demover qualquer perspectiva não dialogal entre a corte e o legislativo (p. 51)10; de todo modo, num sistema dialogal, as tratativas sobre os grandes problemas constitucionais não encerram apenas respostas do Legislador, mas, também, da Corte Constitucional (p. 46). Dentre tantos posicionamentos do autor, um parece ganhar ares de inegável consistência: a revisão judicial forte acaba por estimular uma atuação legislativa de mera tomada de posição, isto é, sem o necessário compromisso político e sem a exigível responsabilidade na interpretação constitucional (p. 82), pois o modelo de atuação judicial acaba por reduzir a importância do Legislador como intérprete constitucional, até porque reduz, ou mesmo fulmina, uma diversidade de interpretações razoáveis sobre o sentido da Constituição e, com isso, impede a alteração de entendimento sobre determinada matéria. O imobilismo pela segurança, também pode ser uma forma de gerar mais insegurança diante das vicissitudes da hipermodernidade. Além disso, a mera tomada de posição do Legislador acaba por desaguar num danoso efeito em cadeia, a saber, a questão constitucional é basicamente ignorada por acreditar que apenas outra
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seara decisória é capaz de enfrentá-la, passando, assim, do Legislador ao Presidente, na linear compreensão de que a questão constitucional seja decidida pela via excepcional do veto; o Poder Executivo, por sua vez, empreende o entendimento de que a questão constitucional seja finalmente definida pelas cortes através das demandas judiciais (p. 89-90). O efeito em cadeia, em verdade, não passa de um expediente de transferência de responsabilidade sobre a interpretação da Constituição, possuindo, dessa forma, um efeito imobilizante dos atores eminentes políticos na interpretação constitucional. Por seu turno, com maior carga de responsabilidade política, a revisão judicial fraca pode incentivar o legislador a levar sua Constituição a sério (p. 91). O autor compreende que a interpretação realizada pelos orgãos não judiciais não é pior que a interpretação promovida pelos órgãos judiciais, observando-se, evidentemente, a diversidade de perspectiva que cada atuação apresenta no exercício de suas competências constitucionais (p. 106). Portanto, Tushnet destaca que o Legislador pode ser um bom intérprete constucional (p. 96), especialmente quando amparado por uma experiente equipe técnica, que, na qualidade de intérpretes constitucionais qualificados, são capazes de expressar os efetivos riscos na adoção de determinada regulamentação, ainda que, numa perspectiva empírica, alguns assessores possam ser fortemente politizados, no que pode enfraquecer eventual análise de questão constitucional (p. 99). Ademais, a dinâmica da decisão política, no que compreende a interpretação constitucional, não define a ideia de erro em função da discordância de entendimento sobre o sentido da Constituição, daí que o Legislador não erra por discordar da posição firmada pela corte, mas, tão-somente, corporifica o regular e legítimo exercício de intérprete constitucional (p. 103), até porque decidir por último é errar por derradeiro e, assim, não necessariamente colocar em evidência qualquer erro do Legislador. Tushnet promove, ainda, uma demorada exposição sobre o processo decisório constitucional fora das cortes, pontuando, sobretudo, acerca dos órgãos relevantes da estrutura de poder do Estado norte-americano, por exemplo, a atuação do Congresso no caso de impeachment do ex-presidente Bill Clinton (p. 115) ou da atuação do Office of Legal Counsel do Departamento de Justiça no assessoramento do Poder Executivo, que, numa posição desinteressada sobre a questão constitucional, pode expressar limites e possibilidades de eventual interpretação constitucional defendida pelo Presidente da República (p. 134). O autor destaca até mesmo disposição da Constituição Portuguesa sobre a inconstitucionalidade por omissão, que, sem dúvida, revela-se um claro instrumento constitucional de diálogo entre a corte constitucional e o legislativo, porquanto o reconhecimento da omissão consagra uma clara responsabilidade política ao Legislador (p. 156). De todo modo, a tônica do livro não justifica a defesa da revisão judicial fraca em função da proeminência interpretativa do Legislador, mas, sobretudo, da importância do diálogo na formação dos direitos a partir da interpretação constitucional, isto é, a dinâmica constitutiva dos direitos perpassa pelo controle democrático do processo político, mas sem perder o necessário rigor da justiciabilidade dos direitos. Tem-se, assim, um suporte compreensivo do texto constitutional que exige e fomenta uma perspectiva dialogal a partir da diversidade de atuação
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11 Obviamente, nessa perspectiva dialogal, a dinâmica diretivo-conformativa do Legislador sempre será destacada por meio do princípio democrático. 12 A SAD, sigla impensável o seu uso no idioma inglês, já revela algo de deprimentena mencionada doutrina.
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entre os poderes e, sobretudo, do efetivo controle recíproco entre eles, porquanto a lógica da última palavra, impositiva e restritiva, típica da revisão judicial forte (strong-form judicial review), perde espaço na tentativa de uma atuação judicial diretiva e receptiva. Diretiva11, porque trava um diálogo franco sobre o significado do texto constitucional e, com isso, empreende uma clara posição de responsabilidade na concretização do texto constitucional, fazendo com que o Legislativo possa sofrer o alto custo político de uma atuação declaradamente inconstitucional. Receptiva, porque a análise do texto constitucional parte da compreensão de que as decisões da corte podem ser revistas em curto prazo de tempo (p. 34), tudo em função do diálogo construtivo com o Legislativo. Disso resulta uma questão importante: a interpretação constitucional passa a absorver múltiplas vias de compreensão, melhor dizendo, alcança novos e importantes autores na decantação do texto constitucional, denotando, dessa forma, uma possívele necessária realidade ao significado da Constituição e coloca a autogovernação democrática no centro das possibilidades políticas da aplicação dos direitos econômicos e sociais. Quiçá, o incremento de novas vias interpretativas, numa relação de complementariedade, portanto, dialogal, demonstre ser a forma de revisão judicial mais consentânea com a democracia moderna, pois, não alijando a importância do Poder Judiciário, prestigia o sentido plural que a expressão política dos demais poderes arvora na determinação do significado do texto constitucional. A revisão judicial fraca, por certo, possui os seus empeços, e isso será apresentado adiante, mas ela possui o inegável mérito de fazer rediscutir posições judiciais, justamente porque a dinâmica revisional dos direitos é mais ativa, pois o diálogo intenso com o Legislativo impõe uma descoberta de novas formas de promover a efetivação dos direitos, o que exige, muitas vezes, mudança de entendimento da corte, especialmente sobre questões relativas ao modo de efetivação dos direitos sociais. Assim, a revisão judicial fraca possui o grande triunfo de permitir que os julgamentos, nos quais são decantadas as interpretações constitucionais, sejam revistos em curto espaço de tempo por uma legislatura, inclusive sopesando a importância da posição tomada judicialmente nos processos legislativos (p. 24), sem falar que os mecanismos ordinários da atuação legislativa não se encontram vedados, isto é, não é necessário empreender o complexo processo de emenda constitucional para tentar aperfeiçoar a disciplina normativa dos direitos econômicos e sociais. Nesse sentido, é inegável que a revisão judicial fraca é um modelo mais democrático, porque simplesmente é mais representativo da sociedade civil, uma vez que o diálogo é aberto e possui uma seara própria de discussão inegavelmente mais ampla que a verificada na ambiência judicial. Nos Estados Unidos, por exemplo, a state action doctrine12, que persiste como ranço de uma empedernida cultura constitucional, seria alvo de uma intensa e discursiva análise pela via da revisão judicial fraca, porquanto os julgados demandariam novas formas de enxergar
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13 Conforme os escólios da jurisprudência alemã. Nesse ponto, é sempre bom lembrar que o Tribunal Constitucional Federal Alemão limitou-se a reconhecer que uma autoridade pública (corte subalterna) não considerou devidamente a liberdade de expressão de Erich Lüth, isto é, não se pronunciou adequadamente sobre uma ordem objetiva de valores que se aplica tanto ao direito público quanto ao direito privado (p. 221). O que se questiona é justamente sobre essa pretendida ordem objetiva de valores, como se fosse um dado objetivo e mesmo uma ordem, mas, a depender das circunstâncias, apenas um mecanismo para decantar casuisticamente a tirania dos valores. 14 Claro que se trata de uma manifesta imposição normativa, que, evidentemente, carreia a obrigação moral e política, especialmente quando são expressamente cotejadas nos textos constitucionais, como é o caso das constituições brasileira e portuguesa.
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a conflituosa questão da doutrina dos efeitos horizontais indiretos13, muito embora o autor reconheça a dificuldade de sua aplicação na estrutura da revisão judicial nos Estados Unidos (p. 198). Tushnet defende que o direito constitucional comparado seja capaz de ventilar luzes sobre a problemática da efetivação dos direitos econômicos e sociais na estrutura do direito constitucional doméstico (p. 163) e, nesse sentido, o autor promoveu uma demorada exposição sobre a inconsistência teórico-funcional da state action doctrine em relação a outros institutos do direito constitucional comparado. De qualquer forma, o que assoma em importância na revisão judicial fraca é a clara possibilidade de aplicação da doutrina dos efeitos horizontais e, com isso, a aplicação judicial dos direitos sociais e econômicos, notadamente quando tal aplicação acabe por atrair a responsabilidade dos órgãos estatais em função de uma inegável questão de fundo constitucional (substantive constitutional norm), exigindo-se, assim, o dever de uma disciplina legislativa mais precisa desses direitos. A state action doctrine revela um inevitável dilema: não há diferença substancial entre os danos possivelmente causados pelo Poder Público daqueles eventualmente produzidos pelos particulares à luz das normas constitucionais (p. 179). A pretendida distinção, portanto, é superficial e sem critério, o que, evidentemente, pode causar enormes injustiças no caso concreto. Tushnet chega a desabafar que a state action doctrine não passa de uma expressão de valores constitucionais dos Estados Unidos, porém não é uma regra legal defensável analiticamente (p. 185). De todo modo, a concretização dos direitos sociais, a partir da perspectiva dialogal, decorreria de mecanismos processuais capazes de impor o entendimento judicial sobre a matéria, de forma que a proteção constitucional dos direitos seja empreendida mesmo quando as cortes não tenham a última e definitiva palavra sobre os direitos. Tushnet destaca muitos julgados sobre questões decorrentes de cortes de diversos países, aliás, com considerável convencimento sobre a viabilidade de suas conclusões (p. 197-226), atentando-se que a obrigação moral ou política do Legislador, imposta constitucionalmente14, de assegurar a aplicação dos direitos econômicos e sociais, não quer dizer que eles sejam necessariamente exigíveis judicialmente ou, pelo menos, que não sejam por meio da revisão judicial forte (p. 230-231). Destaca-se, ainda, que a revisão judicial fraca tem a pretensão de ser mais adequada no sistema de constituições multiníveis, porquanto assegura o processo democrático, sem fragilizar as minorias, por conta da intensa reflexividade na aplicação dos direitos numa regime de compatibilização de diversos textos constitucionais, fato que é facilmente percebido na tensão, nada rara, entre Convenção Europeia e a legislação interna, constitucional ou não, de cada Estado membro da União Europeia (p. 31). Não se questiona que isso representa uma importante
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pretensão, pois permite rediscutir rapidamente posições já decididas numa conjuntura de profundas e frequentes mudanças político-econômicas, especialmente no contexto de grave crise econômica. Tushnet parte, portanto, da compreensão de que as cortes devem ser pensadas numa clara e sincera relação com outras instituições, notadamente com o Poder Legislativo, resultando, assim, um processo político mais efetivo e esclarecedor sobre a efetivação dos direitos, justamente porque a atividade legislativa tende a ser mais responsável na definição do sentido da Constituição e, com isso, na elaboração das leis a partir dos desígnios constitucionais. A revisão judicial fraca possui, assim, o desafio de firmar o entendimento de que as previsões gerais e abstratas da Constituição podem ser concebidas ou interpretadas por várias formas igualmente razoáveis, destacando uma atuação legislativa capaz de oferecer uma interpretação alternativa do significado da Constituição (p. 49). Nesse ponto, é plenamente questionável se mecanismos processuais fracos poderiam efetivamente concretizar direitos, para tanto, basta compreender que a dinâmica da concretização dos direitos depende mais do alcance político da atuação do Poder Público do que precisamente da exigibilidade judicial dos direitos. Daí que a nota de experimentalismo da revisão judicial fraca parece compreender e harmonizar melhor a dinâmica política da efetivação dos direitos que a revisão judicial forte. Prendendo-se uma ligeira análise crítica do livro, cumpre lembrar que o autor, a despeito de arvorar a importância do direito constitucional comparado, escreveu sua tese baseada em realidades constitucionais bem diversas da América Latina, ainda que faça ligeiras considerações a uma decisão de um tribunal argentino (p. 178), percebe-se que os pressupostos teóricos da revisão judicial fraca exigem uma sociedade civil vigilante e, mais que isso, uma democracia consolidada, lastreada, portanto, em instituições fortes e cônscias de suas competências constitucionalmente estabelecidas (p. 253). É dizer, a revisão judicial fraca não se compatibiliza com a debilidade das instituições democráticas, uma vez que, nesse contexto, o diálogo político não alcançará uma magnitude necessária para identificar uma dinâmica decisória pautada na autonomia da sociedade civil numa democracia representativa. É dizer, instituições fracas sempre sucumbem numa ambiência de controvertidas lutas político-ideológicas sobre as decisões fundamentais do Estado. Não obstante tais considerações, os dilemas constitucionais dos países latino-americanos, em particular o Brasil, podem ser vistos numa dinâmica compreensiva diversa da revisão judicial forte, que, evidentemente, exigem soluções constitucionais próprias, mas que não dispensam a necessidade de diálogo entre os Poderes, residindo, aqui, uma indiscutível qualidade da revisão judicial fraca. Outro ponto importante é a dualidade inerente à própria revisão judicial fraca, pois a resistência da atividade legislativa em admitir os nortes do diálogo político, isto é, o contorno da conformação constitucional, vai desaguar numa premente atuação, cada vez mais impositiva, do Poder Judiciário, recaindo, mais adiante, nas pretensões de decisões judiciais finais e não revisáveis pelo Poder Legislativo e, ainda, a revisão judicial fraca pode consagrar uma revisão judicial forte quando o legislativo sempre endossa as interpretações da
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corte (p. 47). O novo modelo exige temperamentos e precisa de decantação teórico-funcional para galgar maior espaço no constitucionalismo moderno, afinal, o reduzido número de países que o adota, sem falar na considerável variação do seu modo operativo, faz com que muita reflexão seja necessária para sua efetiva adoção nos países latino-americanos, ainda tão afeitos aos arroubos políticos na interpretação constitucional e à instabilidade democrática nas relações institucionais. Uma assertiva afigura-se defensável: a predisposição ao diálogo entre o Legislador e a Corte Constitucional e, em seguida, os resultados políticos desse efetivo diálogo, por romper com a dinâmica decisória de superposição da revisão judicial forte, parece ser um cenário mais adequado para superar os grandes dilemas constitucionais de um povo; todavia, essa forma de revisão judicial surge mais da maturidade político-institucional de um país do que propriamente das felizes experiências constitucionais de outras nações. De qualquer forma, a revisão judicial fraca planta sementes para uma necessária rediscussão da revisão judicial forte, tendo em vista os motivos já declinados nesta recensão.
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O CUIDADO ENTRE A ILICITUDE E A CULPA Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde1
Durante o século XIX e ao longo da primeira metade do século XX, a teoria da responsabilidade (civil e criminal) foi dominada pela prevalência quase incontestada de uma concepção naturalística da ação, entendida como uma modificação do mundo exterior, ligada causalmente à vontade do agente, indiferente a qualquer juízo de valor. Por seu lado, a ilicitude concentrava a chamada “matéria objectiva” do facto, sendo definida pela violação ou perigo de violação de bens jurídicos dotados de protecção delitual, caso não sobreviesse uma causa de justificação. Por seu turno, a ação ilícita seria culposa, sempre que se comprovasse a existência entre o agente e o facto de um nexo psíquico passível de fundar a sua imputação, fosse a título de dolo, enquanto conhecimento e vontade de realização do ilícito, ou negligência, entendida como deficiente tensão de vontade, impeditiva de uma correta previsão do fato, por isso se fala de uma concepção psicológica da culpa. Deste modo, o pensamento clássico organizava a matéria delitual segundo uma divisão bipartida, que encerrava integralmente a dimensão “objetiva” do fato na ilicitude e concentrava a sua dimensão “subjectiva”, também por inteiro, na culpa. A partir de certo momento2, a tese naturalística de ação conheceu ásperas e justificadas críticas dirigidas contra os seus principais pilares conceptuais. Deste logo, além do entorse de alguns delitos comissivos (assim, as injúrias representariam a emissão de vibrações sonoras que provocavam processos psicológicos no sistema nervoso do ofendido3…), manifesta-se a sua total impropriedade para abarcar a categoria das omissões. Este despojamento integral de elementos valorativos, impeditivo da apreensão da normatividade imprescindível à relevância jurí-
1 Professor Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. 2 Com respeito à teoria da infração criminal, informa EDUARDO CORREIA, Direito Criminal, Volume I, Coimbra, Livraria Almedina, 1971, p. 205, que as primeiras oposições à construção naturalística do conceito de acção datam de finais do século XIX, sendo protagonizadas pela Escola sud-ocidental alemã ou de Baden. 3 Assim, GÜNTHER JAKOBS, Derecho penal, Parte general. Fundamentos y teoria de la imputacion, Madrid, Marcial Pons, Ediciones Jurídicas, 2ª edição, 1997, p. 161, citando VON LIZT.
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1 A TEORIA CLÁSSICA DA RESPONSABILIDADE: APRECIAÇÃO CRÍTICA
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4 São fundamentais neste contexto as críticas dirigidas por FIGUEIREDO DIAS. Direito Penal– Parte Geral, Questões Fundamentais – A doutrina geral do crime. Tomo I, 2ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 240-242 e RIBEIRO FARIA. Algumas notas sobre o finalismo no direito civil. BFDUC, Volume LXX (1994), p. 187. Segundo ARTHUR KAUFMANN. Das Schuldprinzip: eine strafrechtlich-rechtsphilosophische Untersuchung. Heidelberg, 1961, coube a REINHARD FRANK. Über den Aufbau des Schuldbegriffs. Giessen, 1907, a demonstração pioneira da inviabilidade da concepção psicológica da culpa, com base no estado de necessidade desculpante que exclui a culpa, apesar de o agente atuar com dolo. 5 Assim, ANTUNES VARELA. Das Obrigações em Geral. Almedina, Coimbra, 5ª edição, 1986, pp. 464-465. 6 ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, pp. 448-449.
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dica das omissões, também se fazia sentir na concepção “negativa” da ilicitude, reduzida à mera ausência de uma causa de justificação, desprovendo-a do desvalor ínsito a um comportamento contrário a um dever de conduta imposto em ordem à proteção de posições jurídicas alheias. Por seu turno, a concepção psicológica da culpa também se prestava a várias críticas. Por um lado, ignorava a possibilidade de o inimputável – por definição, incapaz de culpa – poder agir com dolo ou negligência, bem como a falta de qualquer relação psicológica entre o agente e o facto na negligência inconsciente. Por outro, a inclusão do dolo e da negligência na culpa confundia valoração do objeto e objeto da valoração, uma vez que tanto o dolo como a negligência constituem elementos do próprio comportamento, ou seja, do substrato que é valorado em sede de culpa, não podendo por isso pertencer-lhe. 4 Estas incongruências reflectiam-se no tratamento da matéria do cuidado, que era integralmente remetido para a negligência, entendida como modalidade de culpa, a qual compreenderia a falta ao dever objetivo de cuidado, tanto no seu aspecto objetivo ou exterior (padrão pelo qual se mede o grau de capacidade, destreza ou diligência necessária), como sob o ponto de vista subjectivo ou interior (grau de aptidão ou diligência possível em face das circunstâncias reais do caso, da capacidade pessoal do agente, etc.); estes dois aspectos estariam intimamente associados na óptica da responsabilidade civil, nenhuma vantagem se obtendo com a sua distribuição por conceitos diferentes, como a ilicitude e a culpa. 5 São essencialmente duas as razões que impedem a procedência desta orientação: Por um lado, a inclusão da violação do dever objectivo de cuidado na culpa constituía um paradoxo teórico, porque ordena na mesma instância dogmática o objeto da valoração – infração do dever – e a valoração do objeto – avaliação da reprovabilidade daquela violação. A culpa não contém deveres, antes pressupõe a sua violação, servindo para avaliar se a sua prevaricação é ou não censurável. Por outro, o teor das considerações essenciais desenvolvidas em sede de culpa não correspondia minimamente ao anunciado, quando se distinguia o “aspecto objectivo ou exterior” do “ponto de vista subjectivo ou interior” do dever objectivo de cuidado; ao invés, toda a análise da culpa se concentrava no “lado interior”, contrapondo a negligência consciente à inconsciente, conforme, respectivamente, o agente previsse a produção do fato ilícito como possível, embora acreditando por leviandade ou incúria na sua não verificação e não tomando por isso as providências necessárias para o evitar ou nem sequer concebesse essa possibilidade, podendo e devendo prevê-lo, evitando a sua verificação, se empregasse a diligência devida. 6 Em suma, o tratamento do dever objetivo de cuidado, que supostamente faria parte
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da negligência, era afinal omisso na doutrina clássica da responsabilidade, não se explicando verdadeiramente em que consistia, os critérios que o determinavam nem as fontes de que promanava. Os desenvolvimentos esgotavam-se no que hoje se designa por “cuidado interno”, olvidando o conteúdo e as características do comportamento devido para evitar lesões nos bens juridicamente protegidos pela tutela delitual.
2 A RECONSTRUÇÃO TEÓRICA – EM ESPECIAL, OS ELEMENTOS SUBJETIVOS DA ILICITUDE
3 O DESDOBRAMENTO DOGMÁTICO DA NEGLIGÊNCIA A negligência apresenta assim um conteúdo complexo, composto pela violação de um dever objetivo de cuidado, cujo incumprimento se deveu a uma de duas hipóteses: o agente tanto pode ter representado a realização do resultado ilícito como possível mas ainda assim, ter agido porque confiou levianamente na sua não verificação (negligência consciente), como, por descuido ou imprevidência, nem sequer representar essa possibilidade, embora pudesse e devesse tê-lo feito para evitar a produção do evento (negligência inconsciente). Da negligência fazem assim
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A evolução doutrinária provocou a reconstrução global da teoria da responsabilidade. Com respeito à ilicitude, em particular, entende-se atualmente que o seu núcleo assenta na violação do dever de conduta aplicável ao caso concreto, de que resulta a lesão ou o perigo de lesão de bens jurídicos, conforme se trate da ofensa de direitos subjetivos ou normas de protecção. Deste modo, enquanto violação da regra de conduta pertinente, a ilicitude ou bem que foi cometida com dolo, se o agente quis infringir a regra ou bem que foi realizada com negligência, se o agente descurou a sua observância, embora a pudesse cumprir. Logo, ao contrário do que sempre sustentou a tese clássica, que concentrava integralmente a dimensão subjectiva do facto na categoria da culpa, pode sustentar-se a conclusão de que, ao lado dos elementos objetivos que compõem a ilicitude, o dolo e a negligência são os elementos subjetivos constitutivos do comportamento ilícito, fazendo parte do substrato que vai ser avaliado em sede de culpa. Esta conclusão não significa contudo que o dolo e a negligência operem exclusivamente ao nível da ilicitude, não desempenhando qualquer função no plano da culpa. Pelo contrário, o dolo e a negligência são conceitos complexos que compreendem diversos componentes, alguns dos quais se situam no campo da ilicitude e outros no domínio da culpa. Enquanto conhecimento e vontade de realização do facto proibido, o dolo apresenta-se como elemento subjectivo constitutivo do ilícito doloso, ao passo que a prevaricação do dever de cuidado representa um elemento subjectivo constitutivo do ilícito negligente; por seu lado, o dolo, enquanto expressão de uma atitude pessoal de oposição ou indiferença à conduta devida e a negligência, enquanto expressão de uma atitude pessoal de descuido ou leviandade em relação ao dever-ser, são, respectivamente, elementos constitutivos da culpa dolosa e negligente.
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parte um elemento material, a infracção do dever objetivo de cuidado e um elemento psíquico, a deficiente ou inexistente representação do evento. Esta complexidade heterogénea que estrutura a negligência justifica a repartição dogmática dos seus elementos componentes. A violação do dever objectivo de cuidado, com a consequente criação de um perigo não permitido de lesão para um bem juridicamente protegido, faz parte da ilicitude, enquanto a reprovável atitude pessoal de imprudência que se traduziu na deficiente ou inexistente representação da possibilidade de verificação do resultado ilícito, não pode deixar de pertencer à culpa.7 A inserção do dever objectivo de cuidado na ilicitude encontra a sua razão de ser no fato de se tratar de um dever instrumental, imposto para evitar lesões nos bens jurídicos protegidos pela própria ilicitude. Logo, em termos de construção teorética, seria paradoxal que esse dever fosse ordenado numa categoria dogmática, a culpa, que, por definição, pressupõe consumada a ilicitude, ou seja, a lesão ou o perigo de lesão dos bens jurídicos que o dever objetivo de cuidado se propõe, justamente, acautelar. Tal localização sistemática representaria uma nova confusão metodológica entre o objeto da avaliação e a avaliação do objeto. Por seu lado, já pertence ao foro exclusivo da culpa saber se o incumprimento do cuidado objectivamente devido podia ter sido evitado e, decidir, por conseguinte, da respectiva censurabilidade.
A repartição dos elementos componentes da negligência pela ilicitude e culpa reflece-se no tratamento dogmático do cuidado, cuja preterição constitui precisamente o núcleo da negligência. Em regra, o conceito de “cuidado” costuma ser utilizado em vários sentidos, tanto podendo designar uma atitude interna de reflexão (a pessoa que pensa bem antes de agir), como comportamentos cautelosos (a pessoa cujos atos revelam o cuidado adequado às circunstâncias do caso). São estas duas facetas do cuidado que importa agora analisar com algum desenvolvimento. De um lado, temos uma certa prestação de concentração intelectual e psíquica, necessária para formar percepções corretas dos fatos e preparar as decisões correspondentes, que referem-se ao chamado “cuidado interno”. De outro lado, temos o comportamento apropriado para esconjurar perigos, evitando 7 Assim, ULRICH HUBER. Zivilrechtliche Fahrlässigkeit. FS für Ernst Rudolf Huber, Göttingen, 1973, p. 256-257: “A evolução levou a que atualmente se reconheça no juízo de negligência – ou seja no conceito de “cuidado exigível no tráfego” – em parte um juízo de ilicitude e em parte de culpa”. Como sublinham JOSEF ESSER/HANS – LEO WEYERS, Schuldrecht, Band II – Besonderer Teil, Teilband 2 – Gesetzliche Schuldverhältnisse. Heidelberg, 8ª edição, 2000, p. 170, saber “se o responsável não terá observado o necessário cuidado no tráfego, que foi anteriormente concebida apenas como uma questão de culpa, resulta, de acordo com a opinião correcta e importante, de apurar se ele agiu de forma ilícita. Ou de forma concisa: a violação do dever de cuidado é uma característica da ilicitude”. Também FRANZ WIEACKER. Rechtswidrigkeit Und Fahrlässigkeit Im Bürgerlichen Recht. JZ 7- 1957, p. 536, defendia a divisão do conceito de negligência, ao incluir o exame do cumprimento do cuidado objectivamente necessário na ilicitude e a imputação do comportamento desaprovado na culpa.
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4 CUIDADO EXTERNO E ILICITUDE – CUIDADO INTERNO E CULPA
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8 Aos interesses de integridade (ou de conservação) correspondem os bens jurídicos existentes (status quo) e que são protegidos pela responsabilidade extracontratual, enquanto os interesses de movimento correspondem aos bens jurídicos a adquirir (status ad quem) através do comércio jurídico (mormente, tráfego negocial) e são defendidos pela responsabilidade contratual.
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lesões, o qual corresponde ao chamado “cuidado externo” (circular à velocidade aconselhável pelas condições do tráfego, assinalar o piso molhado em centros comerciais, fixar corrimãos nas escadas para que as pessoas se possam segurar, etc.). Embora o emprego do cuidado interno seja em regra pressuposto de cumprimento do cuidado externo, as duas formas de cuidado revelam-se perfeitamente dissociáveis, sendo imagináveis situações em que apesar de se ter observado elevada reflexão, se agiu, ainda assim, de forma imprudente, de que é exemplo o atirador que, durante uma caçada, se esforça muitíssimo – mas em vão – para não atingir o batedor, juntamente com a presa; embora o caçador devesse ter omitido o tiro, não esteve contudo desatento. De todo o modo, o comportamento do agente não foi cuidadoso, porque não evitou a realização da ofensa. Em suma, não houve “cuidado externo”, apesar de se ter observado “cuidado interno”. A situação inversa também se pode configurar facilmente, como sucede com os comportamentos apropriados casuais, que não foram precedidos de “cuidado interno”; será o caso do automobilista que, apesar de distraído, conduz à velocidade regulamentar ou que se deteve antes de uma passagem de peões sem se ter apercebido da sua existência. O cuidado externo exprime-se através dos deveres de conduta aplicáveis às circunstâncias de cada caso e cuja violação gera a ilicitude do comportamento, servindo assim a defesa dos bens jurídicos cristalizados nos chamados interesses de integridade8. Logo, o correspondente dever de conduta deve obedecer ao estalão do cuidado máximo, vigorando ainda que o vinculado não o possa cumprir nas condições concretas que se lhe deparam: por exemplo, a avaria de um taquímetro ou o fato de uma placa com indicação da velocidade máxima estar tapada por uma árvore, não isentam o condutor de respeitar a velocidade máxima. Enquanto tarefa fundamental das regras delituais, a proteção dos referidos interesses de conservação exige a excelência dos comportamentos adotados para os prevenir de lesões. A “excelência” não constitui uma abstração inatingível: o automobilista que se apercebe de um caminhão mal estacionado a encobrir um certo espaço, pode perfeitamente representar a hipótese de estar tapada uma placa de trânsito e nesse caso decide parar o veículo para avaliar as circunstâncias, concluindo que existia mesmo uma tal placa. Ninguém provavelmente procede deste modo, mas a conduta é possível e é esse padrão de cuidado que a regra espera a final de quem participa no tráfego, razão pela qual, não sendo cumprido, comina o comportamento com o juízo de ilicitude, porque não cumpriu o dever objetivo de cuidado apesar de materialmente o poder cumprir. Por seu lado, o cuidado interno compreende a identificação das circunstâncias que impõem o dever de comportamento e a preparação das decisões conducentes ao seu cumprimento. Servem de exemplo os procedimentos que devem anteceder uma ultrapassagem: antes de a efetuar, o condutor deve verificar, de modo a evitar uma colisão, se nesse momento não existe outro
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9 Assim, ULRICH HUBER, Zivilrechtliche Fahrlässigkeit, p. 266. 10 Como observa ULRICH HUBER, Zivilrechtliche Fahrlässigkeit, p. 280 (nota 98), as dificuldades que presidem à determinação do que seja previsível, resultam do duplo significado que pode ser associado ao conceito, incluindo tanto as consequências que se pode prever mediante a utilização do bom senso, como as que não se pode excluir, fazendo igualmente uso do bom senso, entendendo que a previsibilidade apenas deve abranger as consequências cuja eventual ocorrência possa servir de fio condutor para os actos momentâneos e a ausência dos mesmos por parte de uma pessoa prudente. Neste mesmo sentido, PESSOA JORGE, Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil (reedição), Lisboa, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, 1972, p. 87, frisando que a previsibilidade se limitava às lesões prováveis. Segundo LARENZ, Lehrbuch des Schuldrechts, Band I, Allgemeiner Teil, 14ª edição, 1987, p. 283, o comerciante que vende fósforos a uma criança que não conhece, age negligentemente e, por isso, poderá ser responsabilizado pelos prejuízos de um incêndio, se não se interessar pela finalidade da compra e se não tiver nenhuma razão para supor que a criança agiu a pedido de adultos ou será vigiada suficientemente por eles, na utilização dos fósforos. 11 Como assinala LARENZ, Lehrbuch des Schuldrechts, Band I, Allgemeiner Teil, p. 283, a avaliação da culpa tem sempre que tomar em consideração a situação concreta, não sendo possível determinar esquematicamente a exata medida necessária no caso.
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veículo atrás de si que esteja também a realizar a mesma manobra; o fato de não ter visto o outro automóvel por este se encontrar no ângulo de sombra do espelho retrovisor, ainda assim não impedirá a imputação negligente, uma vez que, antes da ultrapassagem, deveria ter olhado pela sua janela lateral de forma a apurar se o ângulo “morto” se encontrava realmente vazio; de igual modo, o médico prudente presta atenção ao fato de não deixar zaragatoas no corpo do doente que está ser operado; este dever de “prudência interna” é transformado pelo juiz em “prudência externa” através da seguinte constatação: o médico consciente das suas responsabilidades evita o esquecimento de zaragatoas, mandando contá-las antes e depois da operação.9 Estão, assim, fundamentalmente em causa, as capacidades físicas, intelectuais e emocionais que permitem ao agente antever a possibilidade de verificação do facto ilícito e decidir-se pela sua evitação, razão pela qual os elementos constitutivos da culpa negligente consistem na previsibilidade e evitabilidade do evento. A previsibilidade não significa, contudo, que o agente tenha que tomar em consideração toda e qualquer possibilidade de lesão, por remota que seja, sob pena de se comprometer irremediavelmente a liberdade geral de ação, mas apenas as que, segundo as regras da experiência, se apresentem como prováveis. Os exemplos abundam: quem coloca em circulação objetos cuja utilização imprópria poderão estar ligados a perigos – v. g., facas, machados ou artigos pirotécnicos – não age negligentemente, se não houver razão para supor o fato que semelhante utilização irá acontecer, a qual já será contudo natural quando se vende artigos pirotécnicos, fósforos ou isqueiros a crianças e adolescentes: as crianças gostam de “brincar com o fogo” de maneira descuidada, e, por isso, causam frequentemente incêndios;do mesmo modo, pode ser descurada a possibilidade de se causar uma lesão durante uma caçada pela utilização de um cartucho defeituoso, quando, por experiência, se sabe que existem entre 100 a 500 cartuchos regulares.10 Em suma, no âmbito da culpa negligente, investiga-se se a pessoa comum do círculo de tráfego a que pertence o agente, agindo nas condições concretas deste e empregando as normais capacidades intelectuais, emocionais e físicas, poderia ter previsto a verificação do evento e evitá-lo, mediante a adoção do comportamento apropriado. 11 O processo de imputação delitual constitui um sistema de “pesos e contrapesos” que balanceia e equilibra a defesa de bens jurídicos relativamente antagónicos (liberdade versus
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12 Como observa ERWIN DEUTSCH, Der Begriff der Fahrlässigkeit im Zivilrecht, Jura 9-1987, p. 508, a negligência está sempre dependente das circunstâncias: se um transeunte sofre, na rua, um ataque de asfixia, então um médico que passa pelo local pode efectuar um corte de traqueia até com o canivete para salvar o doente; em exames de raio X em série numa cidade alemão destruída com a guerra, puderam ser aplicadas medidas de precaução mais reduzidas contra a confusão de imagens de raio X do que as geralmente habituais.
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interesses de integridade). Enquanto a definição do dever de cuidado, para efeitos de ilicitude, obedece a um critério estritamente objectivo, aferido pelos interesses de integridade e nessa medida se norteia pela posição do lesado, a avaliação, em sede de culpado, seu incumprimento visa salvaguardar a liberdade de ação, orientando-se agora pela posição do lesante. Quem cumpre o cuidado que, em regra, é necessário para evitar lesões de bens jurídicos, não tem que indenizar os danos causados; privilegia-se, assim, os processos dinâmicos à situação existente, reservando-se um espaço de livre atuação, pois caso se tivesse que responder por qualquer causação de prejuízos, os comportamentos humanos orientar-se-iam sobretudo pela sua prevenção, mais do que pela criação de bens novos. O princípio da culpa vem, assim, corrigir os desequilíbrios criados pela vigência predominante de fatores objetivos ao nível da determinação da regra cuja violação gera a ilicitude do comportamento. Deste modo, condutas ilícitas, como o caso do automobilista que desrespeitou a velocidade máxima por o velocímetro, apesar de realizada a inspecção devida, se ter avariado ou por não se ter apercebido do sinal de trânsito que estava encoberto por um camião mal estacionado, serão agora isentas de culpa, em virtude de não ter havido falta de cuidado interno, impedindo portanto o preenchimento da negligência. Não se exige, em suma, nada de impossível ao agente, estando, antes, em causa, determinar a medida de cuidado que, nas condições do caso, uma pessoa comum pertencente ao seu círculo de tráfego poderia tomar para impedir a ofensa dos interesses de integridade. 12
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RESPONSABILIDADE SOCIAL DAS EMPRESAS: RECENTES ESCÂNDALOS E PROPOSTAS DE SOLUÇÃO
Em 2009, o Comissário para as Empresas e Indústria afirmava que a Europa só poderá florescer e alcançar os seus objetivos de sustentabilidade nos seus três pilares fundamentais — competitividade, proteção do meio ambiente e inclusão social — se as empresas merecerem confiança e forem avaliadas pela sua contribuição para a sociedade. No fundo, é o mesmo que dizer que as empresas têm de adotar políticas de responsabilidade social. Quando falamos em Responsabilidade Social da Empresa (RSE) ou corporate social responsibility, tal como resulta do Livro Verde da Comissão Europeia de 2001, falamos na integração voluntária de preocupações sociais e ambientais por parte das empresas nas suas operações e na sua interação com outras partes interessadas. A importância do papel das empresas na defesa dos direitos dos seus trabalhadores, dos seus parceiros comerciais, do ambiente ou do desenvolvimento sustentável é tanto mais marcada quanto mais se ultrapassam constantes crises, sejam financeiras ou de sucessivas violações de direitos humanos, em ambientes de guerra, de exploração por grandes empresas ou, simplesmente, por descriminação em função do gênero, raça ou religião. A RSE não substitui a legislação sobre direitos sociais, ambientais ou qualquer outra norma de caráter geral, mas antes fomenta que as empresas vão para lá dos imperativos legais e encetem comportamentos socialmente responsáveis, sempre numa base voluntária. Porém, a adoção destas políticas dependerá, em larga medida, da existência de investidores e consumidores, também eles, socialmente responsáveis. Os clientes terão de assumir os custos de políticas responsáveis, que serão necessariamente repercutidos nos preços dos produtos oferecidos, o que, pelo menos para os millenials, parece não ser um problema: um estudo de 2015 revela que 73% dos jovens estão dispostos a pagar mais por produtos sustentáveis. É, aliás, por isso, que muitas startups, nomeadamentede FinTech, apostam nestas políticas e, em 1 Assistente convidada e doutoranda na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
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Madalena Perestrelo de Oliveira1
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particular, na utilização de “rótulos sociais”. Do lado dos investidores, tem-se divulgado a ideia de Investimento Socialmente Responsável (ISR), ou seja, de incluir, na decisão de investimento, outros critérios para além da performance financeira das empresas. Tem-se, inclusivamente, assistido ao surgimento de entidades gestoras de fundos especialmente orientados para investir em empresas socialmente responsáveis. O crescimento deste tipo de investimento não reflete apenas uma moral e uma ética coletivas, mas, acima de tudo, uma expetativa de resultados de longo prazo assentes na adesão a políticas responsáveis. É, aliás, muito interessante acompanhar o surgimento de índices bolsistas que agrupam empresas que preenchem alguns critérios de sustentabilidade, como o Advanced Sustainable Performance Index (ASPI Eurozone), o FTSE4Good (Financial Times Stock Exchange for good), bem como o Dow Jones Sustainability Group Index. O investimento socialmente responsável tem vindo a ganhar terreno, pelo que as empresas optam por entrar nestes índices, de forma a reforçar a sua cotação no mercado bolsista. Porém, e apesar dos múltiplos avanços que se têm sentido no mercado e no comportamento das empresas e dos consumidores, houve uma série de escândalos recentes que puseram a descoberto variadas falhas das políticas de RSE. Pensemos no caso Volkswagen: a empresa deliberadamente encetou estratégias para contornar as regras sobre emissões poluentes, ao mesmo tempo que se apresentava no mercado como o produtor n.º 1 de automóveis a nível mundial e como uma empresa amiga do ambiente. No fundo, a Volkswagen utilizava as suas campanhas de responsabilidade social da empresa como uma mera ferramenta de marketing. Infelizmente, esta conclusão pode ser estendida a um conjunto de grandes empresas, que, por via de campanhas verdes e de defesa dos direitos humanos, levam os consumidores a acreditar que estas se vão autorregular. Porém, para lá dos atos ocasionais e simbólicos, invariavelmente as empresas revelam que o seu único objetivo é maximizar o lucro a qualquer custo. O caso da Volkswagen é nítido. Produzia mais 40% de gases tóxicos do que o permitido por lei, ao mesmo tempo que o seu relatório anual documentava inúmeros projetos sociais apoiados. A Volkswagen foi, inclusivamente, globalmente graduada como a décima primeira melhor sociedade do mundo para trabalhar em termos de responsabilidade social e, em 2015, o Dow Jones Sustainability Index escolheu-a como a líder global na indústria automóvel pelo seu compromisso com o meio ambiente. No ano anterior — em 2014 — o World Environment Center tinha-lhe atribuído uma medalha de ouro pelo seu contributo para o desenvolvimento sustentável. A verdade é que, hoje em dia, as ações de responsabilidade social da empresa são praticamente obrigatórias para todas as multinacionais que queiram preservar a sua imagem no mercado. De acordo com estudos independentes, estima-se que as empresas da Fortune 500 gastam entre 15 e 19 biliões de dólares em campanhas deste tipo. Embora este financiamento beneficie as instituições e causas apoiadas, o grande problema é que a RSE se transformou numa bandeira que as empresas ostentam para aparecerem
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com uma imagem limpa e transparente, ainda que ao mesmo tempo os seus standards internos não sejam o que aparentam. Por exemplo, a BP antes do derrame no golfo do México havia encetado uma campanha denominada “beyond petroleum”, na qual se apresentava como empresa verde e ecologicamente sustentável. Porém, se a Volkswagen foi a vilã do ano 2015, a Exxon foi a vilã de uma vida. Em setembro de 2015, uma investigação aos documentos da empresa revelou que investigações feitas pela própria sociedades alertavam para os perigos de alterações climáticas já em 1981. A Exxon em vez de promover um debate alargado sobre como fazer a transição para uma economia sustentável, investiu milhões de dólares no financiamento de lobbys dedicados a denegrir os estudos científicos sobre alterações climáticas. Aliás, a prática de financiamento de lobbys deste tipo tornou-se tão comum que têm vindo a ser lançadas campanhas por ONGs, subordinadas ao tema “clean words, dirty lobby”, precisamente para diminuir o gap existente entre as ações e as palavras das empresas. Apesar dos variados casos em que as políticas de responsabilidade social das empresas se revelaram insuficientes ou uma mera fachada, há que deixar uma nota ironicamente positiva. O efeito Trump nas políticas de RSE tem sido estrondoso. Ao contrário do que seria de se esperar, o presidente tornou convencional a discussão e adoção de políticas RSE. Por exemplo, na sequência da ordem executiva anti-imigração, várias empresas americanas, porque ficaram em risco de perder alguns dos seus melhores trabalhadores, ergueram-se na defesa dos direitos humanos. Embora a sua motivação não tenha sido altruísta nem filantrópica, há muito quem diga que podemos falar num novo capítulo da responsabilidade social da empresa. De fato, se há uns tempos atrás fizéssemos uma pesquisa sobre quais as empresas empenhadas, v.g., na defesa e integração dos refugiados, apenas teríamos encontrado o TripAdvidor. Hoje, pelo contrário, assistimos a CEOs de centenas de empresas a defender os mais básicos direitos humanos e até a Starbucks foi ao ponto de se comprometer a contratar 10.000 refugiados. Por isso, com toda a ironia, temos de agradecer a Trump ter impulsionado uma nova era de responsabilidade social da empresa. Para utilizar a expressão do Presidente Obama, vivemos hoje numa “era de responsabilidade”, que, porém, só será absoluta se soubermos reagir às falhas das políticas de responsabilidade social. Ou seja, o que devemos fazer quando as políticas anunciadas não forem cumpridas. Na nossa opinião, a solução pode passar por uma adequada interpretação da legislação societária. De acordo com o artigo 64 do Código das Sociedades Comerciais português, a administração de uma sociedade que seja regida pela lei portuguesa, não deverá orientar a sua atuação apenas pela velha máxima do shareholder profit, ou seja, pela procura de lucro para os sócios a qualquer custo, mas deverá, antes, ter em consideração os interesses dos stakeholders (grupos estratégicos). Claro que há que questionar se é legítimo, numa perspetiva de corporate governance (governança corporativa), que os administradores se afastem da prossecução estrita dos interesses dos sócios, para considerarem também os interesses de outros intervenientes. A dificuldade é clara: os administradores não se encontram diretamente ao serviço de outros
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2 Mesmo que responsabilidade por danos.
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sujeitos que não os sócios. No entanto, cada vez mais tem sido aceite que os administradores estão vinculados a deveres de lealdade perante a própria sociedade, os sócios e até os credores sociais e tem-se avançado para uma ideia de post-shareholder value. Ou seja, que os administradores não se devem deixar conduzir por uma absoluta primazia dos interesses dos acionistas e estão também vinculados a um multi-stakeholder director’s fiduciary duties, que é o mesmo que dizer que os administradores estão vinculados a deveres fiduciários perante múltiplas partes interessadas. Ainda assim, resta saber o que fazer naqueles casos em que os administradores não respeitam estas diretivas de atuação ou em que as empresas transmitem ao mercado a informação que adotam políticas RSE estando, afinal, a poluir o ambiente ou a violar direito humanos. Julgamos que se as empresas estiverem admitidas à negociação no mercado regulamentado poderá existir responsabilidade civil por divulgação de informações falsas ou enganadoras. A ideia que temos vindo a defender, ainda que noutra sede, é que a responsabilidade civil no mercado de capitais, apesar de aparentemente delitual, se deve pautar pelo regime obrigacional. Quer estejamos a falar de investidores que compraram instrumentos financeiros à própria empresa que divulgou informação enganadora, caso em que não pode haver dúvidas que o regime aplicável é o obrigacional, quer daqueles casos em que o investidor comprou instrumentos financeiros no mercado secundário ou a um intermediário financeiro, a responsabilidade será ainda obrigacional. Não tenho dúvidas em considerar que não estamos perante um comum dever geral de respeito da sociedade que divulga a informação perante os investidores no mercado. Estamos, sim, perante deveres já específicos, em que se identifica uma “ligação especial” (a ideia alemã de Sonderverbindung2), embora com as especificidades próprias do anonimato que caracteriza o mercado de capitais. Fora dos casos em que existe um contrato ou vínculo equivalente (em que não surge qualquer dúvida), o critério para impor deveres de cuidado e proteção reforçados em relação ao dever geral de respeito não é a existência de uma relação de confiança ou de um contacto direto entre os sujeitos. Decisivo será o poder de influência sobre a esfera jurídica alheia resultante da posição funcional do lesante. O lesante, em vez de surgir como um qualquer terceiro, encontra-se numa especial posição para causar danos. A sua responsabilidade não é a típica Jedermannhaftung (responsabilidade de todos). Está já a caminho da responsabilidade obrigacional, surgindo como uma terceira via, intermédia entre as duas modalidades de responsabilidade. Da perspetiva dos consumidores que compraram produtos da empresa a resposta é ainda mais simples. Existirá, de forma indubitável, responsabilidade civil da empresa que divulgou informação falsa, com fundamento no incumprimento contratual dos deveres acessórios que se integram na relação obrigacional. Embora as empresas não estejam vinculadas a seguir políticas de responsabilidade social, a partir do momento em que se apresentam perante o consumidor como socialmente responsáveis, terão de o fazer de forma séria, transparente e que não induza
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os seus consumidores em erro. Assim, nos termos gerais da responsabilidade civil obrigacional, tudo dependerá das expetativas dos consumidores. Aqueles que contratem com empresas conhecidas por reiteradas violações de direitos humanos, não se poderão espantar — e reclamar uma indenização — se descobrirem que a empresa utiliza trabalho infantil no fabrico dos seus produtos. Pelo contrário, se estiver em causa uma empresa como a Ben & Jerry’s, conhecida pelo seu empenho na defesa do comércio justo, do ambiente ou da paz, seria uma frustração absoluta das expetativas descobrir que, afinal, maltratava vacas para produzir gelados. Em suma, a adoção de políticas de responsabilidade social das empresas é sempre voluntária. Tem de o ser, sob pena de excessiva limitação da sua liberdade econômica. No entanto, há um conjunto de mecanismos preventivos e punitivos que podem ser desenvolvidos para garantir que se gera um ambiente favorável à adoção destas políticas. Os primeiros passos já têm sido dados e passam por mecanismos societários: a consagração da relevância dos interesses dos stakeholders na atuação dos administradores ou a obrigação de publicar balanços sociais em que se dê nota das políticas sociais das empresas. Do lado repressivo, é essencial construir uma teoria de responsabilidade civil que impeça que as empresas utilizem a responsabilidade social como mera fachada para efeitos de marketing. O desenvolvimento de um sistema vigoroso de responsabilidade civil será o maior incentivo a que as empresas sejam coerente e finalmente deixemos de ter no mercado empresas que se apresentam como sustentáveis, ao mesmo tempo que poluem de forma irreversível o ambiente, como aconteceu no caso da BP ou da Volkswagen.
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O DESAFIO DO ENSINO CONTEMPORÂNEO
DA
SOCIOLOGIA
JURÍDICA
NO
BRASIL
Ser professora nos ocupa desde o final dos anos 90, no nosso caso, por tradição familiar e também por inconformismo com a distância entre o direito dos livros e o direito dos tribunais. A advocacia nos intricados meandros de textos mutantes e estruturas engessadas incomodou, apesar de acreditar e prestigiar qualquer das inúmeras faces da profissão jurídica e recomendar a atividade advocatícia sempre aos alunos iniciantes no direito, por crer que não existe escola melhor do que a prática do fórum, do cliente no seu escritório. É, sobretudo, um exercício de maturidade de vida a advocacia. Lecionar sociologia jurídica é de extrema importância. A missão é despertar nos alunos o gosto pela crítica social e do direito, fundamental para o exercício de qualquer profissão jurídica. Em conjunto com as turmas, faz-se um esforço para influenciar os alunos pelo gosto da pesquisa acadêmica, pois acredita-se que seja essa a ferramenta indispensável da formação e atuação do jurista (GUIMARÃES, 2010). Não raro, ao longo do semestre, atuam monitores alunos de graduação e estagiários de docência assistida, alunos do mestrado em direito. São prontamente incluídos na rotina da docência, oportunizando-se aos mesmos a prática de sala de aula, com a idealização de que se sintam vocacionados para a mais essencial das profissões. Procura-se repassar para eles, com humildade, conceitos de didática aprendidos ao longo da trajetória multidisciplinar, tanto de formação, quanto de atuação, além do gosto pela docência. Aprendemos mais com nossos professores do que percebemos, à primeira vista. Bons professores nos inspiram ao longo da vida toda. Já se tem dito que deve-se lecionar com carinho, pois nunca se sabe se naquele momento, você é a única reserva moral ou referência de vida daquelas pessoas.
1 Doutora em Recursos Naturais pela Universidade Federal de Campina Grande (2010). É Advogada e Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), no Departamento de Direito Processual e Propedêutica (DEPRO).
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Patrícia Borba Vilar Guimarães1
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Este conjunto de ineficiências democráticas cria um vácuo para que os próprios países desenvolvidos repensem suas instituições, repensem o estado de direito, para torná-los
2 Cf. WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico: Fundamentos de uma nova cultura do Direito. 3 ed. São Paulo: Editora alfa ômega, 2001. 3 Cf. Para um aprofundamento do tema das formação do bacharel em direito. Botelho, Eliane Junqueira. Faculdades de Direito ou Fábricas de Ilusões?. Rio de Janeiro: LetraCapital/IDES, 1999. JUNQUEIRA, E. B. . Diretrizes curriculares para o Curso de Direito. Revista da Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior. Brasília, v. 16, n.12, p. 49-74, 1998.
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Os alunos têm chegado à universidade cada vez mais jovens. Nos cursos de direito em instituições públicas, vimos ao longo dos últimos anos os perfis se modificarem, passando de uma origem mais aristocrática e elitista, o que era comum nos cursos de direito em instituições públicas, fruto das características do nosso sistema de ensino, para um perfil mais plural, graças às cotas para ingresso, bem diversificadas. Nas salas de aula que conduzimos, em geral são oferecidas, primeiramente, ao aluno ferramentas de análise em três eixos: acesso à justiça, pluralismo jurídico, eficácia do direito. Temas diversos são trabalhados, visando a desenvolver competências para a pesquisa e a prática oral, com a produção de seminários temáticos, com temas da atualidade. Textos acadêmicos, músicas, séries de TV, o jornal de ontem, os blogs locais, tudo é alvo de discussão jurídica, buscando compreender a função do direito para o controle social e suas características aplicadas. Sim, os alunos precisam saber que o direito não está só nos livros... a codificação e sistematização teórica, que será fornecida ao longo de cerca de 5 anos de formação é essencial para o bom perfil profissional. Do mesmo modo, a capacidade de enxergar o direito e nas suas relações com a economia, a política, a psicologia, a vida das pessoas, enfim.2 Muito se tem dito acerca dos currículos e da formação jurídica ao longo do tempo.3 Depois de 1988, temos mudanças de toda ordem a nos influenciar e demandar cada vez mais uma visão crítica do sistema jurídico. No papel de avaliadora institucional de cursos de direito, enxergamos ao longo dos anos bastante diversidade de norte a sul do país. Preconceitos de avaliadores e avaliados (sim!) em relação à formação em rede pública ou privada de ensino superior são frequentes. Essa vivência mostrou que quanto mais interdisciplinaridade os cursos de direito vivenciam, muitas vezes mais por questões de gestão e sobrevivência, dadas as peculiaridades regionais e locais, mais as formações jurídicas se beneficiam. Em tempos de crise ética e moral no país, cremos que nunca o direito foi tão comentado e debatido, gerando naturais dúvidas e incompreensões, por tamanha massa de brasileiros. Meandros da teoria do processo vieram à público, curiosidade sobre a composição dos tribunais e órgãos judiciários. Direito penal na rua... torcidas organizadas diante de horas de juridiquês na televisão, tal qual ocorre nos campeonatos de futebol. Ao discorrer sobre o histórico da formação do jurista no Brasil e relacionar esse percurso aos aspectos do déficit de adequação social do ensino jurídico na atualidade e sua relação com o déficit democrático, Joaquim Falcão (2014) afirma que:
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mais favoráveis à liberdade e à igualdade. Para que afastem seus fantasmas, antes que eles se tornem realidade e os engulam. Este vácuo de eficiência democrática é uma oportunidade para que o ensino jurídico de qualquer país, inclusive e sobretudo do Brasil, seja mais autonomamente ambicioso.
A introdução de temas atuais e aplicados, sem duvida faculta ao aluno a compreensão de um cenário global dinâmico e diversificado, para o qual o direito deve ser uma ferramenta de diminuição de conflitos. Marcus Faro de Castro aponta algumas incongruências entre o direito e a formação o jurista no ambiente global, ressaltando o fato de que o direito nacional causa entraves à interpretação consentânea com a demandas globalizadas. Chama a atenção nesse contexto, como proposta inovadora o movimento social #novodireitobr ou #newlawbr4 O #novodireitobr é um movimento social que se articula, sobretudo em redes virtuais, sendo guiado pelo propósito de questionar e mudar as ideias, práticas e instituições do direito brasileiro no século XXI.
O direito brasileiro convencional é envelhecido, e suas instituições são predominantemente ineficientes, opressoras e injustas. Esse velho direito tem raízes firmes na sociedade estamental brasileira do século XIX e tem historicamente servido aos interesses políticos e econômicos de grupos minoritários, perenizando hierarquias sociais perversas e o eterno retorno do subdesenvolvimento. Esse velho direito brasileiro abriga-se atrás de formalismos intelectuais autorreferenciados e vazios, que dominam a prática do direito e se incorporam a ritualismos institucionais. Tais formalismos, cultuados no direito brasileiro convencional, frequentemente promovem a politização velada do direito, oferecendo a determinados atores atalhos intelectuais para um sem-número de arbitrariedades, que permanecem disfarçadas sob o manto da aparente correção jurídica.
Iniciativas como essa revelam que o cenário do ensino jurídico do país ainda há de se movimentar bastante no sentido da crítica das suas instituições e do despertar de sentimentos questionadores da sua prática nos alunos de direito. Diversidade de pontos de vista, interdisciplinaridade, criatividade na didática para a
4 Movimento #novodireitobr. Disponível em: <https://novodireitobr.wordpress.com/novodireitobr/>. Acesso em 07 jul. 2017. 5 Movimento #novodireitobr. Disponível em: <https://novodireitobr.wordpress.com/novodireitobr/>. Acesso em 07 jul. 2017.
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Tal movimento, iniciado em 2017, surge num contexto crise das instituições brasileiras, inclusive as jurídicas, e clama pela ação dos juristas contra a crise de pensamento, “comprometedora da democracia e do desenvolvimento econômico do país”. No documento base, argumenta-se no sentido de que5:
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orientação dos conteúdos, pois o jovem se comunica digitalmente, a fim de evitar o distanciamento dos mestres, dada à questão geracional envolvida, são a tônica do ensino da sociologia jurídica na contemporaneidade.
REFERÊNCIAS BOTELHO, Eliane Junqueira. Faculdades de Direito ou Fábricas de Ilusões?. Rio de Janeiro: LetraCapital/IDES, 1999. ______. JUNQUEIRA, E. B.. Diretrizes curriculares para o Curso de Direito. Revista da Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior. Brasília, v. 16, n.12, p. 49-74, 1998. CASTRO, Marcus Faro de. Faculty of Law, Universidade de Brasília at the the Global Legal Education Forum. Day 2. Panel: ‘Globalization, Crisis and Legal Education’. Held at the Harvard Law School – Cambridge, MA, on March 23-25, 2012. Recurso eletrônico. Disponível em: <https://economialegal.wordpress.com/2012/03/31/legal-ideas-institutions-andlegal-education-challenges-posed-by-globalization/>. Acesso em: 02 jul. 2017. FALCÃO, Joaquim. Ensino jurídico local-global. CADERNOS FGV DIREITO RIO. Educação e Direito - V. 09 - Rio de Janeiro, 2014, p. 21-30. GUIMARÃES, Patrícia Borba Vilar. O papel da pesquisa em sociologia do direito. FIDES, Natal, v. 1, n. 1, jan./jun. 2010. pp. 33-37.
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WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico: Fundamentos de uma nova cultura do Direito. 3 ed. São Paulo: Editora alfa ômega, 2001.
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HÁ POSSIBILIDADE DE CANDIDATURAS INDEPENDENTES NO BRASIL? UMA ANÁLISE À LUZ DO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS Thiago Oliveira Moreira1
Em 22 de setembro de 2017, o juiz eleitoral Hamilton Gomes Carneiro concedeu liminar para autorizar o autor da ação a realizar seu registro de candidatura nas Eleições Gerais de 2018 de forma independente, ou seja, sem a necessidade de filiação partidária. O autor fundamentou seu pedido, basicamente, na Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência3 (CDPD) e na Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH). Com efeito, ditos instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos preceituam, em suma, que qualquer cidadão tem direito a ser votado. Além disso, ainda alegou que os tratados internacionais mencionados estão vigentes no Brasil e gozam de hierarquia constitucional. Em consequência, teriam revogado o dispositivo da Constituição que exige a filiação partidária como condição de elegibilidade, uma vez que suas normas conferem uma maior proteção aos indivíduos com relação à CF/88. Diante de tais argumentos, o magistrado, levando em consideração que o § 2º do art. 5º da CF/88 é uma cláusula de abertura, que as normas contidas em tratados internacionais de direitos humanos são de aplicação imediata, que ditos tratados possuem hierarquia constitucional no ordenamento jurídico brasileiro e, por fim, que o eventual conflito entre a Constituição e os referidos tratados resolve-se com a aplicação do princípio pro persona (pro homine), concedeu limitar com autorização para realização de registro de candidatura independente nas Eleições Gerais de 2018, mesmo na hipótese de não preenchimento da condição de filiação partidária. A presente decisão, muito embora proferida em caráter liminar, em primeira instância, 1 Professor Adjunto da UFRN (Departamento de Direito Privado). Doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra (UC-PT) e pela Universidade do País Basco (UPV/EHU - ES). Mestre em Direito pela UFRN e pela UPV/EHU – ES. Membro do Conselho Nacional da Academia Brasileira de Direito Internacional. 2 BRASIL. Tribunal Regional Eleitoral do Estado de Goiás. Ação Ordinária, 25-54.2017.6.09.0132. Mauro Junqueira e União Federal. Relator: Hamilton Gomes Carneiro. 22/09/2017. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/dl/tre-go-candidatura-avulsa.pdf >. Acesso em: 26 set. 2017. 3 Ratificada, no Brasil, pelo Decreto nº 6.949/2009. Cabe mencionar que dito tratado obedeceu o rito do § 3º do art. 5º da CF/88 e, portanto, goza de hierarquia equivalente as emendas constitucionais.
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4 “...no que concerne à aplicação, não deve prosperar a tese de que os tratados de direitos humanos só terão aplicabilidade imediata após a aprovação pelo quórum estabelecido no § 3º do art. 5º da Constituição de 1988, pois quando o Constituinte originário preceituou que ‘as normas de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata’, incluiu as normas expressas no texto constitucional, bem como as normas implícitas e também as definidoras desses direitos e garantias decorrentes dos tratados internacionais, sem estipular quais deveriam ser essas normas, se provenientes do direito interno ou do direito internacional, acentuando apenas que todas elas têm aplicação imediata, independente de serem ou não aprovadas por maioria simples ou qualificada. (GUERRA, 2014, p. 272 – 273).
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absolutamente sujeita a diversos recursos e contrária, em alguns de seus fundamentos, ao entendimento do próprio Supremo Tribunal Federal (STF), merece ser analisada à luz da relação entre Direito Internacional e Direito Constitucional. Nesse contexto, o presente escrito irá enfrentar, ainda que de modo breve, cada um dos argumentos elencados. Para tanto, algumas constatações teóricas serão trazidas, para, logo após, debater sobre o mérito da decisão, seja do ponto de vista da competência do juiz para afastar a aplicação de uma norma constitucional originária diante de sua eventual incompatibilidade com os tratados internacionais de direitos humanos, bem como sobre a própria (in)convencionalidade da exigência de filiação partidária como condição de elegibilidade. Inicialmente, não há qualquer divergência relevante no que concerne a natureza de cláusula de abertura/atipicidade conferida ao § 2º do art. 5º da CF/88, conforme já afirmei em outra oportunidade (MOREIRA, 2016, p. 42 – 45). Com relação à aplicabilidade imediata das normas protetivas de direitos humanos previstas em tratados internacionais, ao que parece, não há qualquer polêmica. Há claros fundamentos no Direito Internacional e no próprio Direito brasileiro para embasar tal entendimento. No âmbito do Direito Internacional, a própria Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), em sua Opinião Consultiva 07-96, considerou que a CADH é autoaplicável (CARVALHO RAMOS, 2013, p. 215). Por outro lado, a CF/88, no § 1º do art. 5º, reza que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Portanto, resta inquestionável que as normas internacionais citadas na fundamentação da decisão em comento são autoaplicáveis, pois tais tratados foram devidamente incorporados4. Vale ressaltar que o magistrado que prolatou a decisão em tela equivocou-se ao afirmar “que este tipo de tratado, por ter aplicação imediata quando o Brasil se torna signatário, não há necessidade de aprovação em dois turnos do Congresso Nacional”. Dois erros: primeiro, os tratados somente vigoram no Brasil após a sua ratificação e não com a simples assinatura; segundo, todos os tratados internacionais de direitos humanos devem passar pelo crivo do Congresso Nacional. Sendo que a aprovação em dois turnos, segundo o entendimento do STF, apenas iria conferir a força equivalente das emendas constitucionais. No que tange à hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro, o STF, conforme tratei outrora (MOREIRA, 2015), firmou posicionamento, ao nosso sentir equivocado, que ditos instrumentos internacionais possuem hierarquia supralegal. Dessa forma, invalidariam as leis ordinárias que dispusessem em sentido contrário. Com relação aos tratados incorporados pelo rito do §3º do art. 5º, como é o caso da CDPD, são, diante da previsão constitucional, equivalentes às emendas. Nesse ponto, o entendimento do
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5 “É ainda importante esclarecer que, segundo a ótica do sistema internacional de direitos humanos, o controle de convencionalidade pode ser exercido inclusive em face do texto constitucional, a fim de compatibilizá-lo com os instrumentos internacionais de direitos humanos”. (MAZZUOLI, 2016, p. 184). 6 Para uma análise mais detida sobre o exercício do Controle de Convencionalidade pela Corte IDH, vide: (MOREIRA, 2017, p. 251 – 271). 7 A Sala Constitucional da Corte Suprema de Justiça da Nicarágua, ainda que de forma seletiva, declarou a inconvencionalidade das normas constitucionais que vedavam a reeleição, conforme leciona Jorge Ernesto Roa Roa (2017, p. 149 – 150).
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juiz eleitoral não se encontra de acordo com o pensamento do STF. Com efeito, talvez uma das questões mais delicadas seja o entendimento de que há conflito entre a norma constitucional que estabelece a filiação partidária como condição de elegibilidade e o disposto no art. 29 da CDPD e no art. 23 da CADH. Nesse ponto, o cerne da questão consiste em saber se o texto dos citados dispositivos, ao garantirem a igualdade de condições na disputa pelos cargos políticos e estabelecerem os limites ao exercício de tal direito, vedam o acréscimos de outros requisitos pelo direito estatal. Sem embargo, vê-se que o constituinte originário de 88 optou por positivar a filiação partidária como condição de elegibilidade, nos termos do inc. V, do §3º do art. 5º. Ocorre que a CADH, conforme o item 2 do art. 23, preceituou que “a lei pode regular o exercício dos direitos e oportunidades a que se refere o inciso anterior, exclusivamente por motivos de idade, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou mental, ou condenação, por juiz competente, em processo penal”. Observa-se que não há entre as possibilidades de limitação do exercício dos direitos políticos a “filiação partidária”. Desse modo, levando em consideração o princípio do “efeito útil”, penso que há incompatibilidade entre a exigência de filiação partidária e os limites autorizados pela CADH. Ainda que não se adote o posicionamento acima, é preciso fazer uma analogia ao caso da prisão civil por dívida do depositário infiel, pois, mesmo ainda estando prevista na Constituição brasileira, segundo decidiu o STF, não há mais legislação infraconstitucional que a regulamente, em virtude da força supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos. Aplicando esse mesmo entendimento, a exigência de filiação partidária, uma vez que limita o exercício de um direito político, precisa ser regulamentada. Porém, não mais subsiste tal regulamentação legal, se considerarmos que o rol de limites aos direitos políticos previstos no art. 23, 2, da CADH é taxativo. Mesmo sem fazer menção nítida, é visível que o magistrado exercitou o controle de convencionalidade, uma vez que afastou a aplicação da norma constitucional tomando como parâmetro os tratados internacionais de direitos humanos5. Nesse ponto, eis que surge uma questão que também é de largo relevo. Poderia um juiz de primeira instância exercer o controle de convencionalidade sobre normas constitucionais? Mesmo diante da omissão da legislação brasileira com relação ao controle de convencionalidade e apesar do célebre entendimento que “não há normas constitucionais inconstitucionais”, defendo que é totalmente possível a declaração de inconvencionalidade das normas constitucionais, ou seja, é possível a invalidação de “normas constitucionais inconvencionais”, seja no âmbito da Corte IDH6 ou mesmo pelos tribunais domésticos7. Entretanto, no momento, firmo posição no sentido de que todo e qualquer magistrado terá o dever de examinar a compatibilidade das normas internas,
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8 Corte IDH. Caso Yatama Vs. Nicaragua. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 23 de junio de 2005. Serie C No. 127. 9 Corte IDH. Caso Castañeda Gutman Vs. México. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 6 de agosto de 2008. Serie C No. 184. 10 STF. 1.054.490 (1246). Pleno. Relator Min. Roberto Barroso. 05/10/2017. DJU 13/10/17.
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incluindo a própria Constituição, com o bloco de convencionalidade. Portanto, reconheço que o outrora mencionado juiz eleitoral atuou dentro de sua competência, no que concerne a aplicação das normas internacionais. Com relação ao tema das candidaturas independentes, a Corte IDH já se manifestou, de certo modo, em duas oportunidades. No Caso Yatama contra Nicarágua8, a Corte IDH afirmou que a Nicarágua violou os direitos políticos, previstos no art. 23 da CADH, em prejuízo dos candidatos propostos por YATAMA para participar das eleições municipais. Em suma, houve o reconhecimento de que não existe disposição na CADH que permite sustentar que os cidadãos só podem exercer o direito a candidatar-se a cargos eletivos através de um partido político. Portanto, tal limitação constitui uma restrição indevida ao exercício do direito político, principalmente, se levarmos em consideração o fato que a organização em partido político não é comum para determinados grupos sociais minoritários. Entretanto, no Caso Castañeda Gutman contra México9, a Corte IDH reconheceu a ampla discricionariedade dos Estados para a configuração de um sistema eleitoral, porém, ao mesmo tempo, indicou que este caso não era comparável ao Yatama. De certa forma, considerou que a obrigação do Estado a configurar outros meios para o acesso de minorias aos processos eleitorais, distintos dos partidos políticos, não é aplicável ao processo eleitoral quando as minorias não estão em risco de verem seus direitos políticos tolhidos pela exigência de filiação partidária (TORRES ZÚÑIGA, 2017, p. 113 – 114). Ao que parece, não é esse o caso do autor da ação, pois não houve qualquer menção ao fato do mesmo integrar algum grupo social minoritário e/ou politicamente vulnerável. É incontestável que a CADH não impõe o dever dos Estados optarem por um sistema majoritário ou proporcional. O que acarreta numa margem de apreciação nacional indiscutível, nesse ponto. Mas isso não significa que o Estado possa definir de modo absolutamente discricionário as regras de exclusão de candidatos ou os requisitos para o efetivo exercício do direito de ser eleito (ROA ROA, 2017, p. 154). A querela também vem sendo discutida no âmbito da Jurisdição Constitucional brasileira. Em sede de Recurso Extraordinário com Agravo (ARE)10, cujo Relator é o Min. Barroso, o STF terá que decidir acerca da constitucionalidade e/ou convencionalidade da exigência de filiação partidária como condição de elegibilidade, bem como sobre o próprio acerto da decisão do Tribunal Superior Eleitoral, que negou o registro da candidatura independente. Com relação ao julgamento do mencionado ARE, vale ressaltar que o Ministério Público Federal emitiu parecer favorável as candidaturas independentes, cujos principais pontos no que concerne ao mérito da questão são: a) os tratados internacionais de direitos humanos, uma vez incorporados, são dotados de hierarquia constitucional, por força do art. 5º, § 2º da
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11 BRASIL. Ministério Público Federal. Recurso extraordinário com agravo. Eleitoral. Candidaturas avulsas garantidas em tratados internacionais contra a letra expressa do art. 14, § 3º, v, da CR. Parecer, n. 22790, 1/10/2017. Disponível em: <https://www.conjur.com. br/dl/parecer-mp-avulsa.pdf>. Acesso em: 09/10/2017. 12 Acompanhamento Processual. Disponível te=5208032>. Acesso em: 09/10/2013.
em:
<http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?inciden-
13 Para um estudo aprofundado do tema, vide: ACOSTA ALVARADO, Paola Andrea. Diálogo Judicial y Constitucionalismo Multinivel. El caso interamericano. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2015. 14 Disponível em: <http://www.mpgo.mp.br/portal/arquivos/2017/09/26/17_40_24_26_A%C3%A7%C3%A3o_eleitoral_Uni%C3%A3o_ regulamenta%C3%A7%C3%A3o_candidaturas_avulsas.pdf>. Acesso em: 27 set. 2017.
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CF/88; b) o art. 23, inc. 1, b, e o inc. 2, da CADH proíbe a restrição da capacidade eleitoral passiva por razões diversas das ali estabelecidas, entre as quais não se inclui a filiação partidária, portanto, o art. 14, § 3º, da CF/88 foi por ele privado de eficácia; c) não há incompatibilidade entre a mencionada norma internacional e as cláusulas pétreas11. Com efeito, dando andamento ao julgamento, o STF, por unanimidade, resolveu atribuir repercussão geral à questão constitucional em tela, em 05 de outubro de 201712.Certamente, em breve, ter-se-á mais uma oportunidade em que o STF poderá manter ou rever o seu posicionamento acerca da hierarquia das normas protetivas de direitos humanos, bem como sobre a própria relação entre o Direito Internacional e o Estatal. Muito embora, insisto, deva-se abandonar a questão hierárquica e buscar harmonizar o sistema jurídico através da visão de um constitucionalismo multinível13. Sem embargo, a discussão não se limita ao STF, pois outros tribunais já se deparam com ações cujo objeto é a autorização para candidaturas independentes da filiação partidária. Talvez um dos exemplos mais interessantes seja a Ação Civil Pública (ACP) movida pelo Ministério Público Eleitoral de Goiás (MPE-GO), que tramita na 133ª Zona Eleitoral, Comarca de Goiânia14. Protocolada em 20 de setembro de 2017, a referida ACP fundamenta sua pretensão, em síntese, nos seguintes pontos: a CDPD, tratado internacional equivalente à emenda constitucional, revogou o art. 14, § 3º, inc. V da CF/88, bem como toda a legislação ordinária em sentido contrário, no que concerne as normas limitadoras do direito de participação política; a CADH, ao não estabelecer a filiação partidária como limite ao direito de participação política e de ocupar cargos políticos, retirou a eficácia de toda a legislação infraconstitucional, pois não há lei ordinária que regulamente a exigência de filiação a partido político. Diante do exposto, sou favorável às candidaturas independentes, desde que para cargos majoritários, uma vez que tal não se harmoniza com o sistema proporcional. No que concerne ao sistema eleitoral proporcional, entendo que os integrantes de grupos sociais minoritários, desde que politicamente vulneráveis e que demonstrem a impossibilidade de formarem um partido político ou de seus membros filiarem-se a uma agremiação política já existente, também seria dispensada a filiação partidária. Nesse caso, o grupo poderia ser dotado de uma personalidade jurídica anômala, somente para fins de participação no processo eleitoral. Com efeito, a solução acima apontada deriva de uma interpretação conforme o direito internacional dos direitos humanos, de uma quebra do pensamento hierárquico, de um diálogo
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das fontes, bem como de um diálogo com os entendimentos da Corte IDH. Por fim, se me perguntarem se eu acredito que o STF irá reconhecer a inconvencionalidade da exigência de filiação partidária, responderei que não, pois o nosso mais alto tribunal não é nenhum exemplo de boa aplicação do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Além disso, do ponto de vista político, o qual procurei “fugir” ao longo de todo o texto, nosso Congresso não tomará qualquer medida legislativa que possa dificultar ou gerar qualquer incerteza na reeleição dos atuais ocupantes de mandato eletivo.
REFERÊNCIAS ACOSTA ALVARADO, Paola Andrea. Diálogo Judicial y Constitucionalismo Multinivel. El caso interamericano. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2015. CARVALHO RAMOS, André de. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013. GUERRA, Sidney. Direitos Humanos: na ordem jurídica internacional e reflexos na ordem constitucional brasileira. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2014. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O Controle de Convencionalidade das Leis. 4ª ed. São Paulo: RT, 2016. MOREIRA, Thiago Oliveira. A aplicação dos tratados internacionais de direitos humanos pela jurisdição brasileira. Natal: EDUFRN, 2015.
MOREIRA, Thiago Oliveira. O Exercício do Controle de Convencionalidade pela Corte Interamericana de Direitos Humanos: uma década de decisões assimétricas. In. MENEZES, Wagner (Org.). Direito Internacional em Expansão. Anais do XV Congresso Brasileiro de Direito Internacional. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2017, p. 251 – 271. ROA ROA, Jorge Ernesto. Las Antinomias entre las Constituciones y la Convención Americana sobre Derechos Humanos: el gran dilema del juez constitucional y convencional interamericano. In.: SAIZ ARNAIZ, Alejandro (Dir.); ROA ROA, Jorge Ernesto; SOLANES MULLOR, Joan (Coords.). Diálogos Judiciales en el Sistema Interamericano de Derechos Humanos. Valencia, TirantloBranch, 2017, p. 137 – 162.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
MOREIRA, Thiago Oliveira. A Abertura do Estado ao Direito Internacional e a Jurisdição Cooperativa: uma análise a partir do pensamento de Peter Häberle. In.: MENEZES, Wagner (Org.). Direito Internacional em Expansão. Anais do XIV Congresso Brasileiro de Direito Internacional. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2016, p. 40 – 59.
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FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
TORRES ZÚÑIGA, Natalia. Control de Normas Constitucionales por la Corte Interamericana de Derechos Humanos: subsidiariedade, deferencia e impacto en la teoría del cambio constitucional. In.: SAIZ ARNAIZ, Alejandro (Dir.); ROA ROA, Jorge Ernesto; SOLANES MULLOR, Joan (Coords.). Diálogos Judiciales en el Sistema Interamericano de Derechos Humanos. Valencia: TirantloBranch, 2017, p. 89 – 126.
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APONTAMENTOS SOBRE A APURAÇÃO, SANÇÃO E REPARAÇÃO À TORTURA NO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS Eloísa Machado de Almeida1
1 INTRODUÇÃO A proibição da tortura é uma norma imperativa de direito internacional que gera obrigações ao Estado, inclusive quando inexistir uma lei que a proíba. É parte de uma norma ius cogens baseada na ideia de que não há qualquer circunstância que justifique o uso de tortura2, constituindo-se em um direito humano de núcleo duro no qual o impedimento do uso de tortura é absoluto. A conceituação trazida pela Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes das Nações Unidas, a seguir denominada apenas Convenção, designa como tortura:
1 Professora da FGV Direito SP. Doutora em Direitos Humanos (USP) e mestre em Ciências Sociais (PUC/SP). Parte desse trabalho foi desenvolvido por solicitação do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura – CNPCT, em 2015. 2
A noção de ius cogens é prevista no artigo 53 da Convenção de Viena de 23 de maio de 1969 e a tortura foi reconhecida como parte destas normas pelo Comitê de Direitos Humanos, nas Observações Gerais nº 24.8: “ReservationsthatoffendperemptorynormswouldnotbecompatiblewiththeobjectandpurposeoftheCovenant. Although treaties that are mere exchanges of obligations between States allow them to reserve inter se application of rules of general international law, it is otherwise in human rights treaties, which are for the benefit of persons within their jurisdiction. Accordingly, provisions in the Covenant that represent customary international law (and a fortiori when they have the character of peremptory norms) may not be the subject of reservations. Accordingly, a State may not reserve the right to engage in slavery, to torture, to subject persons to cruel, inhuman or degrading treatment or punishment, to arbitrarily deprive persons of their lives, to arbitrarily arrest and detain persons, to deny freedom of thought, conscience and religion, to presume a person guilty unless he proves his innocence, to execute pregnant women or children, to permit the advocacy of national, racial or religious hatred, to deny to persons of marriageable age the right to marry, or to deny to minorities the right to enjoy their own culture, profess their own religion, or use their own language. And while reservations to particular clauses of article 14 may be acceptable, a general reservation to the right to a fair trial would not be”. CPR/C/21/Rev.1/Add.6.
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Artigo 1.1 da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes das Nações Unidas, promulgada pelo Decreto nº 40 de 15 de fevereiro de 1991.
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qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência[...]3.
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Estão compreendidos nesta definição quatro elementos constitutivos essenciais da tortura, como expôs o Relator Especial das Nações Unidas para Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes das Nações Unidas, no Estudo sobre o fenômeno da tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes no mundo, incluindo condições de detenção4: i. Infligir dores ou sofrimentos agudos5, físicos ou mentais; ii. Fazê-lo intencionalmente; iii. Ter um propósito concreto, quer seja para discriminar, intimidar, coagir ou para fins de castigo, contenção, para obter informações econfissões; iv. Quando há participação ou aquiescência de um funcionário do Estado6. Estes elementos são fundamentais para uma compreensão dos atos de tortura e também para sua diferenciação frente às demais formas de maus tratos ou tratamentos degradantes ou desumanos. Para o direito internacional dos direitos humanos, a consequência mais clara da imposição de obrigações positivas pela Convenção é a compreensão de que omissões (e não apenas ações) podem caracterizar um ato de tortura e de que a intencionalidade fica caracterizada a partir da prática da tortura com um propósito específico, seja de castigo, discriminação ou intimidação7. A prática de tortura ainda é mais comum em situações nas quais há uma clara assimetria de poder, como frente às pessoas privadas de liberdade8. Em acréscimo, os Princípios de Yogyakarta (Princípios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero) demandam que “toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com humanidade e com respeito pela dignidade inerente à pessoa humana”, prevendo regras e interpretações específicas para as pessoas privadas de liberdade que,
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O Relator Especial das Nações Unidas para Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes das Nações Unidas, no Estudo sobre o fenômeno da tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes no mundo, incluindo condições de detenção já referido no texto deste parecer alerta para os problemas advindos desta concepção equivocada de tortura e a excessiva ênfase na busca de lesões físicas. “74. [...] The definition of torture often relates to the infliction of injuries. Time and again, my counterparts were surprised when I emphasized that the definition of torture does not require any bodily injuries, let alone any lasting impairment. The particular evil of torture is the deliberate infliction of severe pain or suffering on a powerless person, and not the infliction of injuries. Injuries can be an aggravating factor, but it is impermissible to reduce torture to such a concept. Many methods of torture, such as waterboarding or asphyxiation with plastic bags do not lead to any injuries. 75. Furthermore, the insistence on injuries is particularly worrying, since more and more of the torture methods applied are designed not to leave any traces. Survivors of such practices find it much more difficult to obtain recognition of their suffering and to initiate a criminal investigation. Modern forensic examinations which could corroborate the victims’ reports and secure evidence are almost never available. As such, torture methods that leave no traces do constitute an additional challenge to hold perpetrators accountable. 76. A further misconception relates to the involvement of public officials. Despite the unambiguous wording of the Convention, I encountered a lack of awareness for the scope of the accountability of State agents on numerous occasions. Public officials or any other persons acting in their official capacities are under the obligation to intervene whenever severe pain or suffering is inflicted in the circumstances described in article 1 [...]”. A/HRC/13/39/ Add.5, par 74 a 76. A/HRC/13/39/Add.5, par. 30. A/HRC/13/39/Add.5, par. 34: “34. The element of intent contained in the definition of torture in the Convention requires that severe pain or suffering be intentionally inflicted on the victim in order to achieve a certain purpose. From this follows that torture can never be inflicted by negligence. [...]It is also important to underline that the intentional infliction of severe pain or suffering has to be committed for a specific purpose referred to in the Convention, such as the extraction of a confession or information. For example, severe pain, inflicted during a medical intervention, with the purpose of treating a patient, does not satisfy the element of intent”. Observações Gerais adotadas pelo Comitê Contra a Tortura. Observação Geral nº 2 (2007), par. 3, CAT/C/GC/2.
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4 Report of the Special Rapporteur on torture and other cruel, in human or degrading treatment or punishment, Manfred Nowak, Addendum , Study on the phenomena of torture, cruel, in human or degrading treatment or punishment in the world, including an assessment of conditions of detention. A/HRC/13/39/Add.5
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já vulneráveis, ficam ainda mais expostas em razão de discriminação por orientação sexual: “a orientação sexual e identidade de gênero são partes essenciais da dignidade de cada pessoa”,, reconhece a especial vulnerabilidade das travestis, exigindo do Estado “implantar medidas de proteção para todos os presos e presas vulneráveis à violência ou abuso por causa de sua orientação sexual, identidade ou expressão de gênero”9.
Tendo em vista que a convenção não exclui conceituações mais amplas produzidas pelas legislações nacionais, é importante mencionar que a Lei 9.455/97 incorpora as principais noções da Convenção e deixa explícita a responsabilidade de investigação e apuração da prática de tortura, criando uma pena especifica para “aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las”.
2 OBRIGAÇÕES DE INVESTIGAR, SANCIONAR E REPARAR A TORTURA
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Princípios de Yogyakarta, art. 9.
10 Como obrigações gerais estariam incluídas também a abstenção da prática da tortura, prevenir, reprimir e sancionar a tortura através de um sistema de justiça criminal; reparar os danos materiais e morais sofridos pelas vítimas, além da adoção de medidas de reparação coletiva e da facilitação da investigação e do ajuizamento de denúncias de tortura perpetradas em outros países. 11 As medidas de prevenção à tortura são aquelas que, por exemplo, diminuem a vulnerabilidade das vítimas. Não estão predeterminadas e tem amplo alcance, além de precisarem sempre de revisão e inovação. Observação Geral nº 2 (2007), par 1 a 3, CAT/C/GC/2. Este parecer, por se voltar a atos já praticados, não tratará de medidas preventivas. 12 ACNUDH, APT y Foro Asia-Pacifico. Prevención de la tortura: Guía operacional para lasInstitucionesNacionales deDerechos Humanos, 2000, p. 10.
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Conforme mencionado anteriormente, tanto a proibição ius cogens de prática de tortura como a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes das Nações Unidas impõem uma série de obrigações ao Estado - para além das obrigações gerais10 de adotar as medidas legislativas, administrativas, judiciais previstas no artigo 2.1 – e também às respectivas instituições do sistema de justiça na criação de políticas de prevenção11, sanção e reparação por tortura. É certo que a prevenção da tortura possui estreita relação com a sanção de sua prática, sobretudo diante do efeito indireto, dissuasório12. Além de ser uma forma geral de prevenção ao impedir a impunidade, a sanção compreende também a dimensão de garantir os direitos das vítimas de receber uma adequada proteção judicial. A sanção compreende, por sua vez, três etapas que demandam obrigações específicas dos Estados: a investigação, o ajuizamento e, por fim, a sanção, sendo que a falha em cumprir cada uma destas etapas deve gerar, como consequência, a determinação de autoria ou cumplicidade com a tortura que foi tolerada ou aquiescida. A omissão nos procedimentos de investigação, processo e sanção de atos de tortura é considerada, assim, uma forma de incentivo à sua prática e deve ser, portanto, combatida. Este é o conteúdo essencial das obrigações de sancionar
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a tortura previsto nas Observações Gerais feitas pelo Comitê contra a Tortura13. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, em sua jurisprudência e de forma consistente, também se vale destas três fases para determinar as obrigações dos Estados diante de um caso de tortura: a realização de uma investigação que respeite os direitos humanos, que permita a participação das vítimas e que seja célere; a promoção célere de julgamento dos acusados e, por fim, a efetiva responsabilização e sanção dos envolvidos na prática de tortura. Sob esta perspectiva, os parâmetros de atuação impostos às instituições do sistema de justiça são bastante exigentes e demandam nada menos que a intolerância com a prática de tortura. O dever de investigar, pelos parâmetros produzidos pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, é uma obrigação de meios e não de resultado, que deve ser assumida pelo Estado como um dever jurídico próprio e não como uma simples formalidade, condenada antecipadamente a ser infrutífera, ou como uma mera gestão de interesses particulares, que dependa da iniciativa processual das vítimas, de seus familiares ou do oferecimento privado de meios probatórios14.
Diante desta obrigação, espera-se do Estado e das instituições do sistema de justiça que empreendam todos os esforços a produzir uma correta investigação, célere eprodutiva. O primeiro ponto a ser exigido em uma investigação recai sobre as autoridades estatais que tenham conhecimento dos fatos: devem iniciar, imediatamente e de ofício, os procedimentos para uma “investigação séria, imparcial e efetiva”15. A própria Convenção dispõe que o Estado assegurará:
13 CAT/C/GC/2, par. 18.”18.The Committee has made clear that where State authorities or others acting in official capacity or under colour of law, know or have reasonable grounds to believe that acts of torture or ill-treatment are being committed by non-State officials or private actors and they fail to exercise due diligence to prevent, investigate, prosecute and punish such non-State officials or private actors consistently with the Convention, the State bears responsibility and its officials should be considered as authors, complicit or otherwise responsible under the Convention for consenting to or acquiescing in such impermissible acts. Since the failure of the State to exercise due diligence to intervene to stop, sanction and provide remedies to victims of torture facilitates and enables non-State actors to commit acts impermissible under the Convention with impunity, the State’s indifference or inaction provides a form of encouragement and/or de facto permission. The Committee has applied this principle to States parties’ failure to prevent and protect victims from gender-based violence, such as rape, domestic violence, female genital mutilation, and trafficking”. 14 Tradução livre. Corte Interamericana de Derechos Humanos, Caso Velásquez Rodríguez. Fondo, supra nota 25, párrs. 166 y 167; Caso Fernández Ortega y otros, supra nota 53, párr. 191, y Caso Rosendo Cantú y otra, supra nota 45, párr. 175. 15 Corte Interamericana de Derechos Humanos, Caso del Masacre de Pueblo Bello, supra nota 139, párr. 143; Caso Rosendo Cantú y otra, supra nota 45, párr. 175, y Caso Ibsen Cárdenas e Ibsen Peña, supra nota 24, párr. 65. 16
Conforme explica Novak, são duas as razões principais para a rapidez na investigação: a primeira é assegurar que a vítima não mais esteja sob risco de sofrer nova tortura e a segunda reside no fato de que lesões desaparecem rapidamente, prejudicando a construção de evidências para o caso. A/HRC/13/39/Add.5, par. 137
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[que] suas autoridades competentes procederão imediatamente a uma investigação imparcial sempre que houver motivos razoáveis para crer que um ato de tortura tenha sido cometido em qualquer território sob sua jurisdição (artigo 12) e que qualquer pessoa que alegue ter sido submetida a tortura em qualquer território sob sua jurisdição o direito de apresentar queixa perante as autoridades competentes do referido Estado, que procederão imediatamente16 e com imparcialidade ao exame do seu caso (artigo13).
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Esta obrigação deriva do fato de que as vítimas raramente estão em condições de denunciar práticas de tortura sofridas, sobretudo em ambientes de privação de liberdade, nas quais estão mais sujeitas a riscos e represálias. É por esta razão que o artigo 12 impõe esta obrigação e responsabilidade às autoridades estatais17, sobre a qualnão possuem qualquer discricionariedade18, ou seja, não podem escolher não agir. Trata-se de um dever, de uma normaimperativa. Ao analisar estas exigências percebe-se que bastam motivos razoáveis, indícios ou a palavra da vítima para que sejam iniciados procedimentos de investigação pela prática de tortura, mesmo que a tortura. Em qualquer caso em que houver indícios de sua ocorrência, o Estado deverá iniciar uma investigação19, que conte com a presença de um advogado em todas as fases do processo20, evitando represálias, quer como elemento garantidor da qualidade da prova ao criar um ambiente livre e seguro para o depoimento. Afinal, não é “aconselhável que se confie as investigações apenas a estes profissionais que têm estritos vínculos com as pessoas suspeitas de terem praticado tortura”21. O quesito imparcialidade22, assim, demanda que outras instituições também tenham o poder de investigar, julgar e responsabilizar atos de tortura23. Sob esta perspectiva, a presença de procedimentos alternativos à investigação feita pela polícia pode ser benéfica, mas não afasta a responsabilidade primordial daqueles que tiveram o primeiro contato com os indícios de tortura. É importante que se reconheça que estas vias alternativas possuem severas limitações e podem gerar, em última instância, a perpetuação da impunidade. Por estes motivos, a adoção de
17 A/HRC/13/39/Add.5, par. 135. “135 [...] As outlined earlier, victims are in most cases not in the position to file a complaint without putting themselves into further danger and risk suffering reprisals. In order to counterbalance the vulnerability of the victim and the de facto inaccessibility of complaints mechanisms, particularly in the context of detention, article 12 CAT shifts the responsibility to initiate an investigation from the victim to the State authority most directly involved”. 19
Corte Interamericana de Derechos Humanos, Caso Bayarri Vs. Argentina. Sentencia del 30 de octubre de 2008, Serie C No. 187, párrafo 92.
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CAT/OP/BRA/1, par 67.“67.A detainee must have the right to legal assistance of his/her own choosing, and from the outset of detention. An independent legal representative should be entitled to be present and assist the detainee during all police interviews and during appearances before a judge, as a fundamental safeguard against torture and ill-treatment. If a detainee has been subjected to torture or ill-treatment, this access to defence will facilitate the right to complaint, in addition to performing a preventive function”.
21 A/HRC/13/39/Add.5, par. 148. “148. While investigations by police chiefs, prison directors and public prosecutors often are necessary as a first step for a prompt investigation, it is advisable not to entrust the investigation solely to persons who have close personal or professional links with the persons suspected of having committed torture or ill-treatment, or who may have an interest in protecting these persons or the particular unit to which they belong. It is not surprising that countries where only police officers are investigating allegations against the police, military officers against the military and so on, are often not able to present a single conviction for torture, despite well-founded allegations to the contrary”. 22
O mesmo é dito pelo ponto 74 do Protocolo de Istambul: “Caso os procedimentos de inquérito se revelem inadequados devido à escassez de recursos ou falta de capacidade técnica, possível falta de imparcialidade, indícios da existência de abusos sistemáticos ou outros motivos relevantes, os Estados deverão garantir que as investigações sejam levadas a cabo por uma comissão de inquérito independente ou mecanismo análogo. Os membros desta comissão deverão ser selecionados com base na sua reconhecida imparcialidade, competência e independência pessoal. Deverão, em particular, ser independentes de quaisquer suspeitos e das instituições ou agências a que estes pertençam”.
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/HRC/13/39/Add.5, par. 149. “149. When impartial and vested with full investigative powers, competent authorities for investigations into torture allegations include inter alia courts, national human rights institutions, ombuds-institutions, detention monitoring commissions, public prosecutors and special independent police investigators entrusted with the sole task of investigating torture and CIDT by police officials (so-called ‘police-police’). While NHRI’s, ombuds institutions and detention monitoring commissions usually lack full powers of criminal investigations, a special ‘police-police’, if truly independent from the police, may be in a better position to collect the evidence necessary to bring the perpetrators of torture to justice”.
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18 A/HRC/13/39/Add.5, par. 136.
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estratégias alternativas não pode representar o abandono das vias usuais de responsabilização24, que devem ser usadas de forma rotineira na investigação de atos de tortura25. A dimensão da concorrência e controle entre instituições é fundamental para que se impeça a tortura. De acordo com o Protocolo de Istambul, uma investigação eficaz da tortura tem, entre outros, os seguintes objetivos: a) Esclarecimento dos fatos, bem como o estabelecimento e reconhecimento da responsabilidade individual e estadual perante as vítimas e suas famílias; b) Identificação das medidas necessárias para evitar que os factos se repitam; c) Facilitar o exercício da ação penal ou, sendo caso disso, a aplicação de sanções disciplinares, contra as pessoas cuja responsabilidade se tenha apurado na sequência do inquérito, e demonstrar a necessidade de plena reparação e ressarcimento por parte do Estado, incluindo a necessidade de atribuir uma indenização justa e adequada e de disponibilizar os meios necessários ao tratamento médico e à reabilitação26.
Além disso, o Protocolo impõe uma série de regras a serem observadas em todas as etapas da investigação, constituindo-se verdadeiramente em um Manual de Investigação e Sanção da Tortura. As obrigações de investigar e de provar a tortura não podem recair sobre a vítima; tanto o contrário, é obrigação do Estado demonstrar que seus agentes não cometeram atos de tortura27. Assim, outros elementos de prova devem ser buscados com celeridade, com o intuito de preservar a possibilidade de o inquérito servir, de fato, aos seus objetivos, como, por exemplo, as perícias médicas28. Pessoas privadas de liberdade estão mais sujeitas à tortura e os processos nos quais respondem pelos crimes (que originam as suas medidas de privação de liberdade) e, por isso, devem ter mecanismos que assegurem que a sanção penal se dê sem a prática de tortura, como, 24 CAT/OP/BRA/1, par 53. “53 . The SPT recommends that all allegations of torture and ill-treatment be thoroughly investigated as a matter of routine and that perpetrators be held accountable for their actions. The State party should issue a strong condemnation, at the highest level of authority, declaring that torture will not be tolerated under any circumstances. This message of “zero tolerance” of torture and ill-treatment should be delivered at regular intervals to all security forces and custodial staff, including through professional training”.
26 Protocolo de Istambul, par. 77. 27 SPT. Tradução libre. Informe sobre la visita a México del Subcomité para la Prevención de la Tortura y Otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes. ONU doc. CAT/OP/MEX/1, 31/05/2010, par. 39. 28 Protocolo de Istambul, par 82: “82. [...] O perito médico deverá elaborar imediatamente um relatório escrito rigoroso. Este relatório deverá incluir, no mínimo, os seguintes elementos: a) As circunstâncias em que decorre o exame - - nome da pessoa examinada e nome e função de todos quantos estejam presentes no exame; hora e data exatas do exame; localização, natureza e morada (incluindo, se necessário, a sala) da instituição onde se realiza o exame (por exemplo, estabelecimento prisional, clínica, casa particular); condições em que se encontra a pessoa no momento do exame (por exemplo, natureza de quaisquer restrições que lhe tenham sido impostas aquando da chegada ao local do exame ou no decurso do mesmo, presença de forças de segurança durante o exame, comportamento das pessoas que acompanham o detido, ameaças proferidas contra a pessoa que efetua o exame) e quaisquer outros fatores relevantes; b) Historial – registo detalhado dos factos relatados pela pessoa em causa no decurso do exame, incluindo os alegados métodos de tortura ou maus tratos, momento em que se alega ter ocorrido a tortura ou os maus tratos e todos os sintomas físicos ou psicológicos que a pessoa afirme sofrer; c) Observações físicas e psicológicas – registo de todos os resultados obtidos na sequência do exame, a nível físico e psicológico, incluindo os testes de diagnóstico apropriados e, sempre que possível, fotografias a cores de todas as lesões; d) Parecer – interpretação quanto à relação provável entre os resultados do exame físico e psicológico e a eventual ocorrência de tortura ou maus tratos. Deverá ser formulada uma recomendação quanto à necessidade de qualquer tratamento médico ou psicológico ou exame ulterior; e) Autoria – o relatório deverá identificar claramente as pessoas que procederam ao exame e deverá ser assinado”.
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25 O parágrafo 84 do Protocolo de Istambul traz as hipóteses nas quais deve-se investir na criação de uma comissão independente de inquérito para apurar casos de tortura, em substituição às instâncias ordinárias.
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por exemplo demanda a Convenção (artigo 11), quer para obtenção de confissões e provas29: [mantendo] sistematicamente sob exame as normas, instruções, métodos e práticas de interrogatório, bem como as disposições sobre a custódia e o tratamento das pessoas submetidas, em qualquer território sob a sua jurisdição, a qualquer forma de prisão, detenção ou reclusão, com vistas a evitar qualquer caso de tortura
Na mesma linha de raciocínio, pessoas privadas de liberdade devem ter contato pessoal com o juiz de seu caso30, justamente como uma medida capaz não só de averiguar a legalidade da prisão, mas também de evitar e, se for o caso, constatar o emprego de maus tratos ou tortura. Ambas as ponderações sobre a imparcialidade e a celeridade do procedimento interferem em sua seriedade, na medida em que é diminuída sua capacidade de oferecer respostas eficazes. Além disso, a ausência da figura de um investigador que crie laços de confiança com as vítimas e que tenha a condição de acompanhar a maior parte da produção de provas31 pode também representar um prejuízo à eficácia da investigação que, conforme já mencionamos, é uma obrigação de meio que deve ser cumprida com a maior diligência pelas instituições do sistema de justiça. A exigência de celeridade, por sua vez, tem por objetivo a preservação da integridade das provas32, além de permitir à vítima uma rápida prestação jurisdicional que se traduz, para o direito internacional dos direitos humanos, enquanto direito humano de garantia e proteção judicial.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS O direito internacional dos direitos humanos – quer nos tratados internacionais, quer nas interpretações autênticas dos mesmos – impõe aos Estados uma série de obrigações de respeito, proteção e garantia dos direitos humanos. Especificamente em relação à prevenção,
30 O artigo 7.5 da Convenção Americana de Direitos Humanos dispõe “Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo”. Este dispositivo tem sido usado para a criação de audiências de custódia para pessoas privadas de liberdade. Neste sentido, JUNIOR AURY, Lopes; PAIVA, Caio. Audiência de custódia e a imediata apresentação do preso ao juiz: rumo à evolução civilizatória do processo penal. Revista Liberdades nº 17, setembro/dezembro de 2014. 31 Protocolo de Istambul, par 89, menciona a necessidade de seleção de um investigador responsável a dirigir os trabalhos: “89. As autoridades responsáveis pela condução do processo de inquérito deverão designar uma pessoa como principal responsável pelo interrogatório da presumível vítima. Embora esta última possa ter necessidade de discutir o seu caso com profissionais das áreas do Direito e da saúde, a equipe de investigação deverá envidar todos os esforços para evitar que a pessoa se veja obrigada a repetir desnecessariamente a sua história”. 32
Corte Interamericana de Direitos Humanos, Cf. Caso Baldeón García, Sentença de 6 de abril de 2006. Série C, nº 147, par. 142; Caso Lori BerensonMejía. Sentença de 25 de novembro de 2004. Série C, nº 119, par. 133; e Caso Juan Humberto Sánchez, Sentença de7 de junho de 2003. Série C, nº 99, par. 120. No caso Ximenes Lopes vs Brasil, por exemplo, a demora em identificar e inquirir testemunhas foi considerada uma grave falha do inquérito quando à sua seriedade e celeridade: “189. Houve uma falha das autoridades estatais quanto à devida diligência, ao não iniciarem imediatamente a investigação dos fatos, o que impediu inclusive a oportuna preservação e coleta da prova e a identificação de testemunhas oculares” (Caso Ximenes Lopes, Sentença de 4 de julho de 2006, Série C, N. 149), gerando uma consequente violação do direito de proteção judicial previsto no artigo 8º da Convenção Americana de Direitos Humanos.
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29 “A/HRC/13/39/Add.5, par 93. “93. The inadmissibility of evidence obtained under torture is one of the most crucial safeguards against abuse in the criminal justice system. Its purpose is twofold: first, given that the vast majority of torture is inflicted in the course of criminal investigations with the purpose to extract a confession, the safeguard intends to remove a prime incentive for torture. Second, evidence obtained under torture is highly unreliable concerning the veracity of the statements obtained. Declaring the evidence inadmissible helps ensure that no innocent person is convicted”.
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reparação e sanção à tortura, as instituições nacionais – e sobretudo as instituições do sistema de justiça – são espaços em que esse direito pode ser realizado com observância dos parâmetros internacionais ou podem se tornar os espaços nos quais são perpetradas novas violações.
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Revista de Filosofia do Direito, do Estado e da Sociedade w w w. r e v i s t a f i d e s . c o m