FIDES, Natal, v. 10, n. 1, jan./jun. 2019. ISSN 2177-1383
EDITORAS GERAIS Gabrielle Santos Bezerril Luiza Fernandes de Abrantes Barbosa
DIRETORIA DE EDITORAÇÃO Alyssa Caroline de Souza Ramalho André Luiz da Silva Costa Fausto Pereira Neto Isabelly Thayse Araújo Alves Marcos Vinícius Alves Diniz Rafaela Ribeiro Cabral Renan Rodrigues Pessoa Saliza Furtado da Câmara Oliveira
PROFESSORES ORIENTADORES Anderson Souza da Silva Lanzillo (UFRN) Fabiana Dantas Soares Alves da Mota (UFRN) Zéu Palmeira Sobrinho (UFRN)
Edição da Capa Isabelly Thayse Araújo Alves Diagramação Gabrielle Santos Bezerril
V
EDITORIAL
É com muita satisfação que a Revista de Filosofia do Direito, do Estado e da Sociedade (FIDES) divulga mais uma edição. Durante toda a sua trajetória, a FIDES tem se mantido fiel em seu compromisso de incentivar a pesquisa no âmbito acadêmico. Nesta 19ª edição, o periódico renova este compromisso, publicando trabalhos que combinam excelência com uma linguagem simples e acessível, sempre com fins de promover a democratização do conhecimento. Frente às dificuldades inerentes às atividades de pesquisa no Brasil, a Revista FIDES parabeniza a todos os pesquisadores cujos trabalhos compõem esta edição. Agradecemos ainda aos membros do Conselho Editorial por desempenharem com louvor todas as atividades necessárias ao fluxo editorial deste periódico. Não obstante, manifestamos nossa gratidão aos membros do Conselho Científico, que contribuíram com valiosas publicações e meticulosa avaliação de todos os trabalhos submetidos à análise deste periódico, provendo subsídio vital para a publicação de mais uma edição. Neste semestre, o evento de lançamento da 19ª edição da Revista FIDES oportunizou o debate de questão de extrema relevância no momento político vivido na atualidade, qual seja, “Tendências atuais das políticas públicas no Brasil”, fazendo disto também o tema desta edição. A FIDES deseja a todos uma excelente e profícua leitura.
Natal, 30 de junho de 2019 Conselho Editorial
CONSELHO CIENTÍFICO Fabiana Dantas Soares Alves da Mota
(UFRN)
Anderson Souza da Silva Lanzillo
(UFRN)
Zéu Palmeira Sobrinho
(UFRN)
Cleanto Fortunato da Silva
(UFRN)
Maria Victória Ferreira da Rocha
(Universidade Católica Portuguesa)
Pablo Henrique Hubner de Lanna França
(UEMG)
Volnei Rosalen
(UFSC)
José Anselmo de Carvalho Júnior
(UERN)
Rute Saraiva Ana Raquel Moniz Neuro José Zambam Luiz Felipe Monteiro Seixas
(Universidade de Lisboa) (Universidade de Coimbra) (IMED) (UFERSA)
Luciana Ribeiro Campos
(UERN)
Luiz Ricardo Ramalho de Almeida
(UERN)
Lauro Ericksen Cavalcante de Oliveira
(UFRN)
Miriam Cláudia Sousa Silva Afonso Brigas Daniel Alves Pessoa
(Universidade de Lisboa) (UFRN) (UFERSA)
Mário Sérgio Falcão Maia
(UFRN)
Fabrício Germano Alves
(UFMA)
Paulo Sérgio Velten Pereira
(UFES)
Júlio César Pompeu
(UFRN)
Thiago Oliveira Moreira
(UFRN)
Érica Verícia Canuto de Oliveira Veras
ARTIGOS CONVIDADOS
11
AS POLÍTICAS PÚBLICAS E O AUSTERICÍDIO NEOLIBERAL: A DESCONSTRUÇÃO DA CIDADANIA E O RETORNO DO ESTADO POLICIAL ZÉU PALMEIRA SOBRINHO
29
NOVA (REFORMA DA) PREVIDÊNCIA: POR QUE A PEC 06/2019 DEVERIA “POUPAR” APENAS OS MORTOS? RAIMUNDO MÁRCIO RIBEIRO LIMA
56
A MULHER NO CÓDIGO CIVIL DE 1867 - O LENTO RECONHECIMENTO DE DIREITOS DO SUJEITO JURÍDICO FEMININO MÍRIAM AFONSO BRIGAS
80
O QUE SIGNIFICA “SER CIVILIZADO”? INTERPRETANDO O TIPO CONSTITUCIONAL MODERNO MÁRIO SÉRGIO FALCÃO MAIA
ARTIGOS CIENTÍFICOS
90
A CIDADANIA FISCAL COMO INSTRUMENTO PARA FORTALECIMENTO DA TRANSPARÊNCIA PÚBLICA FELIPE DE MACEDO TEIXEIRA
102
A MÍDIA TELEVISIONADA COMO FATOR METAJURÍDICO DO PROCESSO DECISÓRIO JUDICIAL GABRIEL VICTOR RODRIGUES PINTO THAÍS DO NASCIMENTO CORTEZ
119
A PRESUNÇÃO DE NÃO CULPABILIDADE NO ÂMBITO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO
SANCIONADOR:
REFLEXÕES
ACERCA
DO
CONTEÚDO JURÍDICO E SUAS IMPLICAÇÕES LETÍCIA MACIEL EMERENCIANO DANIEL CÉSAR NEVES E SILVA
136
A PROTEÇÃO AO REFUGIADO E A SOBERANIA NO FECHAMENTO DE FRONTEIRAS:
ANÁLISE
DO
FECHAMENTO
TEMPORÁRIO
DA
FRONTEIRA BRASIL–VENEZUELA RAFAELA CÂMARA SILVA FLORA CORALINA MENDES SILVA
156
A TEORIA DO DIREITO EM HEGEL: O MÉTODO DIALÉTICO APLICADO AO DIREITO VÍTOR FERNANDES DA SILVA GONÇALVES
175
CONCESSÃO DA NACIONALIDADE BRASILEIRA ÀS IRMÃS MAHA E SOUAD MAMO: AVANÇO DA PROTEÇÃO AOS APÁTRIDAS NA NOVA LEI DE MIGRAÇÃO JÉSSICA MACÊDO FILGUEIRA DE FREITAS WINNIE ALENCAR FARIAS
193
CONTROLE DE MÉRITO DOS ATOS ADMINISTRATIVOS PELO PODER JUDICIÁRIO: ANÁLISE DOS LIMITES DA DISCRICIONARIEDADE DO AGENTE PÚBLICO EM RELAÇÃO AOS ATOS ADMINISTRATIVOS DISCRICIONÁRIOS ANDRÉ MARINHO MEDEIROS SOARES DE SOUSA MARIA EDUARDA MONTE NUNES ARAÚJO
214
CONTROLE SOCIAL: UM ESTUDO ACERCA DO CONSELHO MUNICIPAL DE SAÚDE DE APODI MACIANA DE FREITAS E SOUZA FRANCISCO VIEIRA DE SOUZA JUNIOR
229
DISTRIBUIÇÃO
DAS
DESPESAS
E
CARGA
TRIBUTÁRIA:
CONTRAPRESTAÇÃO SATISFATÓRIA E SOLIDARIEDADE SOCIAL - UM PARALELO COM A TEORIA DOS JOGOS ISABELA ARAÚJO BARROSO
241
ESTADO DE EXCEÇÃO E SUJEITOS VULNERÁVEIS NA REALIDADE BRASILEIRA LORRANE ANDREZA SALOMÃO CARNEIRO
253
ESTUDO DAS ATECNIAS JURÍDICAS NO JULGAMENTO DA ADI Nº 4277 À LUZ DA TEORIA LIBERAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS INGRID GABRIELA SARAIVA DE MELO LAYSE RHAYANA MARCELINO DIAS
267
GÊNERO E VIOLÊNCIA: UMA ANÁLISE DA (IN)EFICÁCIA DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA DA LEI MARIA DA PENHA BRENDA BORBA DOS SANTOS NERIS
284
HABEAS CORPUS COLETIVO Nº 143.641 E A TUTELA DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS NO CASO DAS GESTANTES E MÃES PRESAS PREVENTIVAMENTE ANDRÉA KARLA DA SILVA ALVES
299
MEIOS CONSENSUAIS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS - POSSÍVEIS CAMINHOS PARA DIMINUIR A CONFLITUALIDADE E ENSEJAR A CULTURA DA PAZ CRISTIANE DE LIMA GEIST
320
O ABUSO DOS PRINCÍPIOS À LUZ DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 4650 DIEGO FERREIRA PIMENTEL VICTOR FRANK CORSO SEMPLE
341
O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NO ÂMBITO DO TCU: UM EXAME DA SÚMULA Nº 347 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SOB A PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL E JURISPRUDENCIAL BRASILEIRA GARDEL IGOR GUIMARÃES CHAVES BRENDA NOVAES SARAIVA
361
O
DEBATE
HART-DWORKIN
IDIOSSINCRÁTICA VINÍCIUS NAGUTI
(RE)VISTO
SOB
UMA
ÓTICA
375
O TRABALHO ESCRAVO NA ATIVIDADE AGRÁRIA DO ESTADO DO PARÁ
393
OS PRINCÍPIOS CONTRATUAIS DA BOA-FÉ OBJETIVA E DA FUNÇÃO
FERNANDO HENRIQUE SILVA DE ASSIS
SOCIAL DO CONTRATO PERANTE O CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO CÍCERO FILHO TAVARES
412
OS
REMÉDIOS
CONSTITUCIONAIS E
ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO ROSSINI GUSTAVO MEDEIROS FELIPE DE LIMA
SUA
IMPORTÂNCIA
NO
ARTIGOS CONVIDADOS
AS
POLÍTICAS
PÚBLICAS
E
O
AUSTERICÍDIO
NEOLIBERAL:
A
DESCONSTRUÇÃO DA CIDADANIA E O RETORNO DO ESTADO POLICIAL Zéu Palmeira Sobrinho1
RESUMO O presente artigo tenta evidenciar que o receituário austericida do neoliberalismo, no Brasil atual, vem exterminando o que sobrou do espólio do Estado de bem-estar social e que foi idealizado pelo constituinte de 1988. O texto aborda, ainda, o modo como o neoliberalismo está a desconstruir o conceito de cidadania, promovendo a afirmação do Estado Policial por meio do resgate da necropolítica como prática social de descartabilidade dos excluídos sociais. Palavras-chave: Austericídio neoliberal. Políticas públicas. Estado policial.
O presente artigo versa sobre a influência do neoliberalismo sobre as políticas públicas em dois momentos críticos do Brasil: o primeiro, na década de 1990, com o projeto privatista de Fernando Henrique Cardoso; o segundo, no período da retomada do neoliberalismo a partir do Golpe de 2016, ocasião em que foi afastada do governo a presidente Dilma Roussef.
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Juiz titular da 10ª Vara do Trabalho e do Juízo Auxiliar da Infância e Juventude, no âmbito da Justiça do Trabalho do RN, mestre e doutor em Ciências Sociais pela UFRN, pós-doutor em Sociologia Jurídica (Universidade de Coimbra), professor associado da Faculdade de Direito da UFRN.
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1 INTRODUÇÃO
Em ambos os períodos citados estão em análise as principais deliberações sobre as políticas públicas, entendidas estas como um conjunto de medidas adotadas pelo poder estatal que interferem no acesso e gozo dos direitos sociais e no que historicamente se convencionou chamar de questão social. A questão social é o modo como o capitalismo atua no contexto do conflito de classe com a finalidade de controlar os trabalhadores. A questão social, sob o capitalismo, tomou outro tratamento após a pressão dos trabalhadores no ponto de vista do espectro da Revolução Bolchevique. Assim, foi o receio das classes perigosas e a luta histórica contra a forma brutalizante de exploração da força de trabalho pelo capitalismo que surgiram as primeiras ideias e práticas do chamado Estado social. Importante ressaltar que o Estado social passou a ser assimilado pelas forças políticas ideológicas que dão sustentação ao capitalismo. Dentro da convulsão social em que o mundo estava mergulhado nas primeiras décadas do século passado, observava-se a tentativa de cooptação dos trabalhadores por meio da instrumentalização do Estado capitalista. Os direitos sociais, portanto, surgiram juntamente com um conjunto de políticas públicas, muitas das quais criadas como meras promessas. Isso explica porque o Estado de bem-estar social, apesar do nome, já nasceu socialmente limitado, ou seja, vocacionado a não cumprir o que foi prometido à classe trabalhadora. Assim, utilizouse uma forma de cooptar os trabalhadores a não abandonarem o capitalismo em troca de experiências socialistas. É nesse contexto que o Estado de bem-estar social já nasceu sob o signo de um Estado placebo, ou seja, o estado que tem políticas de proteção que nunca se consolidam, que traz para a pauta pública uma preferência pela lógica mercantil, mas também marcadas pela cooptação do estado. As políticas públicas do estado capitalista, portanto, a partir da década de 1980 foram instituídas como promessas, mas continuam sendo ambiguamente administradas como
aponta para a austeridade e a restrição das políticas públicas e a privatização da repressão, seja pelo protagonismo do poder de polícia na segurança privada, seja pela privatização da gestão das penitenciárias, seja pelo surgimento emergente do papel das milícias no controle da punição (ANITUA, 2015).
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elementos disfuncionais ao liberalismo do mercado. No século XXI, a força do neoliberalismo
2 O NEOLIBERALISMO E O CONSENSO DE WASHINGTON: AS POLÍTICAS PÚBLICAS RESTRICIONISTAS NO BRASIL
Embora possa se identificar resquícios de um ideário neoliberal na primeira metade do século XX, o neoliberalismo como um complexo de decisões políticas para a viabilização do Estado neoliberal ou Estado mínimo é uma prática socioeconômica da segunda metade do século XX. Em realidade, o neoliberalismo ganhou reputação sob a égide do Consenso de Washington, conjunto de práticas que serviram para se construir a sua identidade a partir das seguintes diretrizes: a redução do déficit fiscal; a promoção de privatização; a desregulamentação de direitos; a flexibilização das relações de trabalho; a liberalização da economia; e a mercantilização dos bens sociais. Segundo David Ibarra, o neoliberalismo tem sido um fiasco global, haja vista a desproporcionalidade entre as medidas adotadas em seu nome e os resultados obtidos. A rigor, sob o neoliberalismo, a taxa de crescimento per capita mundial, no lapso temporal de 1975 a 2003, foi de menos da metade dos resultados apresentados em relação ao período de 1950-1975 (IBARRA, 2011). Para Rubens Casara, sob o neoliberalismo, o que parece crise é na realidade uma onda permanente de interdição da democracia, que se opera ora se invocando as regras legais excepcionais, ora se expandindo os limites interpretativos dos valores democráticos a ponto de desfigurá-los (CASARA, 2017). Na prática, o neoliberalismo se tornou uma práxis de insensibilidade social, uma política de acumulação capitalista a um altíssimo custo de pobreza, miséria social, elevação do desemprego e de extermínio dos indesejáveis. Não por acaso, na primeira década do século XXI, as populações rejeitaram nas urnas as propostas neoliberais. Tal rejeição não foi suficiente para se debelar do mapa político a presença do Estado neoliberal. Acertadamente Perry Anderson reconhece que o neoliberalismo fracassou, ao criar sociedades profundamente
um projeto inacabado à procura de uma nova aventura (ANDERSON, 1995). Tais decisões foram construídas inicialmente sob o espectro da crise do petróleo e da reestruturação produtiva, objetivando a inovação na forma de apropriação do capital pela redução do déficit fiscal, desregulamentação de direitos sociais, mercantilização dos bens sociais e privatização (HARVEY, 2014). As experiências vividas pelo ocidente com o neoliberalismo foram traumáticas, posto que ambiguamente a sua austeridade conseguiu um controle relativo sobre a despesa pública, mas ao mesmo tempo frustrou a economia nacional na medida em que o mercado não cumpriu a sua promessa de equilibrar as relações sociais. Por 13
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desiguais, mas nem esse retumbante fracasso retirou do neoliberalismo a característica de ser
outro lado, sob o neoliberalismo, o Estado perdeu a sua capacidade de indutor do desenvolvimento econômico e praticamente viu esfacelar-se o seu protagonismo exercido no combate à desigualdade social. Após a Nova República, medidas neoliberais foram colocadas em prática em maior recorrência sob a égide do período de Fernando Henrique Cardoso. Privatizações, contingenciamento de políticas públicas, desregulamentação, flexibilização de direitos, medidas de contenção da inflação e a redução do tamanho do Estado na economia foram empreendidas, mas não impediram que o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), partido de Fernando Henrique Cardoso, sucumbisse nas urnas diante do candidato do Partido dos Trabalhadores. Na primeira década do século XXI, o neoliberalismo no Brasil conseguiu emplacar o seu receituário de forma mais enfática, mas o seu desempenho foi parcialmente bloqueado pela tentativa precária de afirmação do Estado Social desenhado pela Constituição Federal de 1988. Isso coincide com a chegada ao poder do Partido dos Trabalhadores. Com esse partido no poder, as políticas públicas neoliberais não foram completamente abolidas e o mercado financeiro não deixou de obter lucros estratosféricos. Sob o governo Lula (2003-2006 e 2007-2010) houve uma revalorização do Estado como indutor do desenvolvimento e como mobilizador de iniciativas e programas de redução da pobreza. Isso se deu principalmente com os inúmeros empregos gerados pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e com políticas de valorização do salário mínimo, políticas públicas de transferência de renda, a exemplo do bolsa família, políticas de inserção de jovens na educação superior, políticas de acesso à moradia popular, medicamentos e políticas de massificação da educação. No campo da educação, por exemplo, se comparados os investimentos nos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso em relação aos dois mandatos de Lula, naquele as matrículas chegaram a um milhão e setecentos mil, em 1995, ao passo que
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no governo do petista as matrículas atingiram seis milhões e trezentos mil em 2010 (AGUIAR, 2016).
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3 O GOLPE DE 2016 E A RETOMADA DA HEGEMONIA NEOLIBERAL NO BRASIL:
O
OPORTUNISMO
DA
VIA
AUTORITÁRIA
E
A
RUPTURA
DEMOCRÁTICA
O Governo Fernando Henrique Cardoso implantou um plano econômico que conseguiu debelar o processo inflacionário, mas a um enorme custo social, ou seja, as medidas econômicas trouxeram como efeitos colaterais o aumento da concentração de renda, o baixo crescimento econômico, a redução do poder aquisitivo dos trabalhadores e o aumento da miséria e da pobreza. Sob o comando desse ex-presidente, o Brasil viu florescer uma onda de repulsa da sociedade às medidas neoliberais. Não por acaso, nas eleições presidenciais de 2006, o candidato de Fernando Henrique Cardoso contra Lula era o paulista Geraldo Alckmin, que chegou a fazer a campanha eleitoral vestindo a farda da empresa de Correios e anunciando que jamais privatizaria a citada corporação, embora o fato do seu partido defender historicamente a privatização ampla das empresas estatais. No Brasil, o mercado estigmatizou os governos do Partido dos Trabalhadores (PT) como populistas, perdulários e corruptos. Ao mercado incomodou o fato de que tais governos insistiram na manutenção de políticas públicas focalizadas, de modo a permitirem precariamente o acesso dos pobres ao orçamento público, ainda que esse fenômeno tenha ocorrido com ambiguidades e em pequeníssima escala. Ambiguidades dos governos de petistas à parte, se considerados os governos anteriores, o governo do Partido dos Trabalhadores deu um tratamento diferenciado nas relações de classe no tocante à política pública. Sob Lula, a elite é chamada a se reinventar e a aparentemente demonstrar que se descolou de uma velha elite. Essa nova elite, embora desconfiada e nunca confiável, sentiu-se cooptada por Lula quando este lançou em 2002 a Carta ao povo brasileiro, sob o lema de que a esperança venceu o medo. É nessa linha
desenvolvidos e com justiça social. A nova elite foi, portanto, chamada por Lula a assumir um papel colaboracionista em troca da permanência da sua hegemonia. Não demorou até que essa nova elite demonstrasse que não era outra senão a de sempre. Não demorou para essa informar quem efetivamente manda e manipula o processo democrático. Ela mostrou que como detentora do dinheiro e do poder não havia perdido a sua capacidade de adestrar, atiçar e insuflar os representantes da classe média como seus leões de chácara, estimulando entre estes, além do ódio de classes, a defesa da ideia-força de que a corrupção é algo que está no Estado, e não no mercado. A elite brasileira foi um mero 15
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discursiva que Lula objetivou aproximar e selar um pacto entre dois Brasil pacificados,
instrumento para situar o mercado em estado de invisibilidade e, aproveitando-se do oportunismo das metamorfoses globais geopolíticas, blindou qualquer iniciativa que não fosse seletivamente direcionada para promover o caos e atacar o Estado social como o alvo inimigo. É nesse contexto que se desenrolou uma espécie de guerra indireta ou híbrida que envolveu a população, a mídia, as forças armadas e quadros burocráticos do Parlamento e do Judiciário, tudo sob a liderança silenciosa dos representantes do mercado financeiro enquanto agentes da política estratégica estadunidense (KORYBKO, 2018). Tamanha violência à democracia não resultou apenas no Golpe de 2016, mas no início da desconstrução do que restou de espólio do Estado de bem-estar social no Brasil Etiquetar ou rotular um governo de corrupto não representava combater ilicitudes, mas significava criar uma narrativa para justificar uma ruptura democrática. Assim ocorreu com a elite derrotada nas eleições de 2014, na qual o candidato derrotado Aécio Neves foi um dos protagonistas da irresignação da elite brasileira. Na versão de Neves era chegado o momento de dar um basta ao modo como o Estado manipulava clientelisticamente as políticas públicas contra o mercado. O processo de manipulação política que culminou na derrubada da presidente Dilma, e da guerra jurídica (Lawfare) que resultou na prisão e condenação do ex-presidente Lula, não teriam obtido êxito se não houvesse o envolvimento do mercado financeiro, a defender os interesses geopolíticos dos Estados Unidos da América (EUA), e da mídia hegemônica capitaneada pela Rede Globo. No dizer de Sousa (2017), a fração protofascista da classe média, assumindo a condição de tropa de choque dos interesses da elite econômica, encontrou eco na chamada Operação Lava Jato. A classe média e a Lava Jato, ovacionadas pelas hegemônicas redes midiáticas, ao criarem uma cortina consubstanciada de acusações seletivas e de discursos moralistas conseguiram, ainda que com disfarces precários, vingar-se de forma odiosa contra a ascensão e a mobilidade social que a ralé brasileira tinha obtido por meio das precárias políticas
4 OS SUJEITOS DE DIREITOS COMO PRIVILEGIADOS E DETENTORES DE ABUSOS ADQUIRIDOS: O POPULISMO PENAL E O RETORNO DA QUESTÃO SOCIAL COMO QUESTÃO DE POLÍCIA
No modo de produção capitalista, as crises não são fenômenos que eclodem pelo acaso. Com efeito, as crises são da essência do desenvolvimento capitalista e não há a reprodução 16
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públicas engendradas pelos governos Lula e Dilma.
deste sem o conflito de classes que chancela e naturaliza a relação entre perdedores e ganhadores. Crises de superprodução ou crises de liquidez são cíclicas ao capitalismo e são expressões dos circuitos que ora transformam a mercadoria em dinheiro e o dinheiro em mercadoria. É no contexto dessas crises de desaceleração da expansão material que as leis de movimento capitalista evidenciam a queda tendencial da taxa de lucros com impacto direto sobre os tributos que financiam as políticas públicas. A crise de lucratividade coincide com um quadro em que estão presentes a compressão salarial, a precarização do trabalho, a desestruturação dos capitais mais fracos, o desemprego, o aumento do exército de reserva, a elevação do subconsumo e o aumento do pauperismo. A contradição consiste no fato de que sem expansão material o capitalismo não garante a reprodução do trabalhador explorado e, em consequência, a sua própria reprodução. Nesse sentido explicita Marx:
Com o próprio funcionamento, o processo capitalista de produção reproduz, portanto, a separação entre a força de trabalho e as condições de trabalho, perpetuando, assim, as condições de exploração do trabalhador. Compele sempre o trabalhador vender sua força de trabalho para viver, e capacitar sempre o capitalista a comprá-la para enriquecer-se. Não é mais o acaso que leva o trabalhador e o capitalista a se encontrarem no mercado, como vendedor e comprador. [...] Na realidade o trabalhador pertence ao capital antes de vender-se ao capitalista. Sua servidão econômica se concretiza e se dissimula, ao mesmo tempo, pela venda periódica de si mesmo [...] A produção capitalista, encarada em seu conjunto, ou como processo de reprodução, produz não só mercadoria, não só mais-valia; produz e reproduz a relação capitalista: de um lado, o capitalista e do outro, o assalariado (MARX, 1994, p. 672673).
Conforme a descrição de Marx em relação às leis do movimento do modo produção vigente, se o capitalismo reproduz a relação capitalista, as políticas públicas desse tipo de
trabalhador num contexto de servidão. Para dinamizar o processo de apropriação da mais valia o capitalismo cria, recria, mascara ou destrói novas e velhas formas de manutenção da relação de exploração. Após a guerra fria e a primeira fase de insucesso do neoliberalismo, nas duas últimas décadas do Século XX, a inovação das formas jurídicas na relação capitalista principia com o processo histórico de obsoletização do conceito burguês de cidadania. Se, sob o capitalismo do estado de bem-estar (welfare state), ser cidadão significou a condição de um indivíduo ser destinatário de direitos, sob o neoliberalismo o conceito de cidadania tende a se tornar num 17
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Estado não reproduzem outra coisa senão as coerções estruturais da exploração que põem o
discurso revivalista e fossilizado. É nesse contexto de saudosismo de corte liberal, cultivado ainda sob os escombros desse tipo de estado, que os atuais trabalhadores empunham bandeiras de lutas que outrora foram criticadas e rechaçadas pelas chamadas classes perigosas. O processo de obsoletização do conceito de cidadania é uma constante sob o capitalismo e não se confunde com o conceito de cidadania dos gregos. Para os gregos atenienses cidadão era quem tinha o poder de deliberar, poder que não era reconhecido aos escravos, as mulheres e aos estrangeiros. A cidadania contemporânea foi apresentada como um modo jurídico universal do homem como detentor de direitos ou, no dizer de Schwarcz e Botelho (2012), consumidor de direitos. A despeito da luta histórica dos homens em busca da emancipação, sob o domínio da burguesia a cidadania foi prometida como espécie de melhoria (upgrade) para garantir a legitimidade do modo de produção vigente. Com efeito, a mistificação da cidadania sob o Estado capitalista apresentou-se por meio de uma regulação abstrata e universal, estruturada segundo a ideologia liberal, para considerar o cidadão como o destinatário de todos os direitos, em condição de igualdade, fraternidade e liberdade. A burguesia sabia que as promessas distributivistas de cidadania, estampadas sob a égide dos direitos abstratos e universais, seriam desmascaradas e instigariam mais e mais o conflito de classes. Não por acaso, a classe trabalhadora – ainda que de forma não sincrônica – empreendeu lutas históricas e tentou retirar implicações democráticas dos direitos abstratos e universais. Para estancar o avanço da classe trabalhadora e as possíveis implicações da efetivação de direitos sociais, a partir do século XX frações do capital financeiro manipularam e intensificaram o cultivo de ideologias conservadoras para esvaziar de conteúdo o precário conceito de cidadania. Sob o neoliberalismo o ataque à cidadania veio com a desregulamentação de direitos, a privatização, a precarização dos direitos sociais e o discurso da desordem do
Estado de direito como Estado da desordem, das regalias, do jeitinho e das vantagens indevidas. Construiu-se assim uma narrativa moralista que, além de proclamar a obsolescência do Estado de direito, dividiu o país em duas classes de pessoas: os corruptos, cheios de regalias, e os neoliberais, autoproclamados guardiães da ordem. Essa política maniqueísta que divide o mundo entre os homens de bem e os inimigos, segundo Janson Stanley (2018), é marcada pelo medo, pela chantagem e pela violência:
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Estado dirigista. Os neoliberais, assumindo a defesa do rentismo, passaram a tecer a crítica do
Quando classificações e divisões sociais se solidificam, o medo substitui a compreensão entre os grupos. Qualquer processo para um grupo minoritário estimula sentimentos de vitimização na população dominante. Política de apelo e da ordem tem apelo de massa, lançando nós como cidadãos legítimos e eles, em contraste, como criminosos sem lei, cujo comportamento representa uma ameaça existencial à masculinidade da nação.
A estigmatização empreendida pelos neoliberais não poupa os trabalhadores, sejam estes do setor privado, do setor público, do setor urbano, sejam os rurais ou os domésticos. Com efeito, os empregados domésticos no Brasil foram acusados de espertalhões em busca de regalias. Não por acaso, durante a campanha eleitoral, o atual presidente da República, além de dizer que daquela data em diante os trabalhadores deveriam preferir os empregos aos direitos, orgulhava-se de dizer que foi o único parlamentar a votar contra os direitos dos domésticos nos dois turnos de votação na Câmara dos Deputados. Sob o pretexto de banir a desordem e os privilégios, os neoliberais no Brasil aglutinaram bandeiras autoritárias de luta que contemplavam dentre outros os interesses de banqueiros, militares, de mercenários da mídia e de uma elite raivosa que não escondeu seu ódio de classe e seu caráter misógino, patriarcalista, xenofóbico e colonialista. É dessa elite que se levantam, por exemplo, evangélicos e carismáticos a reivindicarem um Estado teológico capaz de concomitantemente empurrar sua pauta de costumes na goela do povo e coagir o Estado a realizar reformas para suprimir ou limitar direitos. Os conservadores neoliberais, ao se autoproclamaram soldados contra a corrupção, contra os privilégios e os privilegiados, passaram a estigmatizar os detentores de direitos sociais como portadores de abusos adquiridos e até como supostos criminosos. É no âmbito dessa estocada contra os trabalhadores que eclode a narrativa dos cortes de direitos. Essa afirmação pode ser ilustrada com os seguintes fatos: Em 2016 se promulga a Emenda Constitucional 95
trabalhista com a supressão de vários direitos dos trabalhadores; em 2018, de cada 10 (dez) benefícios revisados pelos peritos, 8 (oito) foram cortados; ainda em 2018, mais da metade dos benefícios assistenciais do programa de Benefícios de Prestação Continuada (BPC) só foram outorgados após judicialização; em 2019, por meio da Medida Provisória 871, o governo edita norma criando programas permanentes de revisões e cortes de benefícios sociais; ainda em 2019, o Governo Federal apresenta uma proposta de reforma da previdência que, se aprovada, implodirá a política pública de seguridade social do país.
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que congela por 10 anos os gastos com bens primários; em 2017 é aprovada a reforma
Sob o fundamentalismo neoliberal os detentores de direitos passaram a ser agredidos, violentados, inferiorizados, ridicularizados, humilhados e insultados como aproveitadores, trapaceiros, trambiqueiros, escamoteadores, ludibriadores e parasitas, por exemplos. É sob esse clima de ataque aos direitos dos trabalhadores que várias políticas públicas focalistas, de nítida índole liberal, foram destruídas. Detentores de direitos passam a ser privilegiados a serem combatidos e destruídos por serem considerados supostos inimigos ou meliantes. E na qualidade de criminoso, esses supostos inimigos devem ser tratados pelo Estado Policial e pelo seu populismo penal. O populismo penal é uma prática política de afirmação do poder de vingança da classe dominante que, sob o argumento de ordenação do social, reproduz as desigualdades sociais como condição de manutenção de poder, seja da elite econômica que controla o processo de acumulação capitalista, seja da elite burocrática estatal que é empregada para alimentar essa estrutura. No frigir dos ovos o populismo penal é uma política inspirada num direito penal repressivo, num moralismo recluso centrista, num punitivismo marcado pelo instinto da autoridade arbitrária, encarceradora e utilitarista, do tipo que adota uma prática, judicial ou policialesca, que suporta a tese de que os fins que justificam os meios. As medidas engendradas pelo populismo penal, como não são suficientes para a superação dos problemas sociais, atingem os pobres como adversários, pois são os pobres, os moradores da periferia, os negros, as mulheres das classes baixas, enfim, os menos aptos a uma defesa processual de blindagem contra as arbitrariedades, o escárnio e o achincalhe público, a indiscrição e o sarcasmo da autoridade e, enfim, contra a violência cometida pelo Estado e pela mídia que o chancela. Isso faz que aqueles que são mais vulneráveis diante do ataque do Estado se tornem mais frágeis ainda. Desse modo, o populismo penal, além de mascarar, ele também reproduz as desigualdades e a injustiça. Enfim, é nesse processo em que o modo de produção vigente contribui para
século XIX, volta a ser uma questão de polícia, e não uma questão de acesso a direitos.
5 A VORACIDADE DO NEOLIBERALISMO SOB A ÉGIDE DO AUSTERICÍDIO
Nunca na história um governo foi tão premido pela estratégia política de demonstrar que o Estado deve diminuir de tamanho, mas sobretudo deve mergulhar numa austeridade capaz de não apenas cortar suas próprias gorduras, mas cortar no osso daqueles que de algum modo 20
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desconstruir o conceito de cidadania que a velha questão social, a exemplo do que ocorreu no
dependem da assistência pública e dos investimentos estatais. A esse fenômeno se denomina de austericídio, que é a conduta gerencialista dolosa que consiste em restringir, suprimir ou contingenciar recursos e investimentos, com tanta voracidade e severidade, a ponto de gerar efeitos colaterais, sobre a economia pública e sobre as pessoas atingidas, que vão desde a instauração do caos, à reprodução da miséria e o rebaixamento do custo da reprodução da força de trabalho por meio de precarização do trabalho e a utilização do hiper-encarceramento como produtor de proletários (MELOSSI; PAVARINI, 2017). Em menos de um semestre do governo Bolsonaro, já foram bloqueados integralmente o orçamento referente a execução de 140 (cento e quarenta) projetos de políticas públicas, conforme estudo da Associação Contas Abertas, a pedido do jornal Estado de São Paulo (RODRIGUES; BRONZATI, 2019). O contingenciamento, mais do que uma expressão da austeridade da equipe econômica em matéria de investimentos sociais, evidencia a insensibilidade e o desprezo em relação às implicações sobre o público atingido. Os efeitos colaterais do austericídio afetam de forma mais impactante as populações em estado de vulnerabilidade, mas afeta também a manutenção dos empregos e a continuidade dos serviços públicos. O austericídio do governo Bolsonaro é uma violência aos princípios constitucionais da moralidade, da eficiência e da continuidade dos serviços públicos. Com efeito, a dose de contingenciamento foi tão desproporcional que a economia do país entrou na Unidade de Tratamento Intenso (UTI). O país paralisou construções e manutenções importantíssimas e que de uma forma ou de outra já trouxe um prejuízo descomunal, pois a quebra de continuidade dos serviços gerou por si uma descontinuidade e uma obsoletização das obras. Estas doravante dificilmente serão retomadas sem antes se proceder a reparações decorrentes da interrupção e que elevarão sensivelmente o custo final de tais empreendimentos. Para se ter uma ideia de como o corte de políticas públicas impactou a vida nacional,
relação aos serviços suprimidos ou interrompidos, a saber: •
Obras de contenção ou amortecimento de cheias e inundações;
•
Ligações intradomiciliares de esgotos sanitários e módulos sanitários domiciliares;
•
Serviços de apoio a medidas de moderação de tráfego;
•
Obras de manutenção e de construção de rodovias, ferrovias, hospitais;
•
Revitalização das bacias hidrográficas do Rio São Francisco e do Rio Parnaíba;
•
Serviços de assistência técnica e extensão rural para agricultura familiar;
21
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basta que se utilize o acesso aos dados que a Secretaria de Orçamento Federal disponibiliza em
•
Serviços de assistência técnica e extensão rural para a reforma agrária;
•
Programas de fomento à inovação e às tecnologias inovadoras;
•
Implantação do Centro Espacial de Alcântara;
•
Construção do parque tecnológico do Inmetro;
•
Programas de prevenção do uso de drogas. Outras medidas tendem a impactar as políticas públicas, eis que foram adotadas sem
qualquer debate com a sociedade, dentre as quais se destacam: •
Flexibilização e ampliação das hipóteses de aquisição, posse e porte de armas;
•
O fim da mesa nacional de negociação do Sistema Único de Saúde;
•
Desarticulação e extinção anunciada do Programa Mais Médicos;
•
Extinção do Ministério do Trabalho;
•
Afrouxamento das regras de trânsito para beneficiar infratores e prejudicar a política de contenção da violência no trânsito;
•
Extinção de centenas de conselhos de participação social, inclusive o Conselho Nacional da Pessoa Idosa e o Conselho Nacional da Pessoa com Deficiência;
•
A volta dos manicômios, inclusive com a possibilidade de internação compulsória e a adoção do tratamento com eletrochoque;
•
Institui grupos de estudos para viabilizar a redução de impostos sobre cigarros;
•
Revisão, inclusive para fins de extinção, de todas as Unidades de Conservação ecológica do país, incluindo a possibilidade de extinção do Parque Nacional de Itatiaia, criado em 1934;
•
Liberação da exploração de petróleo no Arquipélago de Abrolhos, que é hoje reconhecido como a reserva do maior banco de corais do Oceano Atlântico e da maior biodiversidade marinha, inclusive sendo o maior berçário das baleias-jubarte; Liberação de 197 agrotóxicos, inclusive alguns com glifosato que é reconhecidamente cancerígeno e que é banido nos Estados Unidos da América e Europa, tornando o Brasil o maior mercado mundial de agrotóxico e um dos raros locais onde se comercializam ainda herbicidas extremamente nocivos à natureza, tais como como o Paraquat e Atrazina e o inseticida Acefato;
•
Fim da política de valorização do salário mínimo, na medida em que não prevê qualquer forma de recomposição do seu poder aquisitivo;
•
Aparelhamento e corte de recursos para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) de modo a inviabilizar a reforma agrária; 22
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•
•
Restrição do acesso ao auxílio-reclusão, com a instituição de carência de 24 meses e de outorga somente ao dependente do preso recluso, excluindo os dependentes dos presos em regime semiaberto;
•
Instituição de programas permanentes para revisão e cortes de benefícios com a instituição de bônus para os peritos e analistas previdenciários, resultando de tal medida numa elevada supressão de benefícios. As medidas de contingenciamento de recursos foram adotadas sem qualquer concessão
aos setores mais críticos. Nem os quase 60 milhões referentes às políticas de promoção do emprego escaparam do corte de verbas, apesar de o país amargar 13 milhões de desempregados. Ademais, toda a propaganda para a destruição urgente dos direitos é disseminada por meio de um discurso que dissemina as denominadas notícias falsas (fake news), outro modismo comunicacional para se batizar as mentiras. As mentiras principiam pela versão de que as gestões petistas anteriores instituíram o caos e que por isso o país quebrou. Além de inverdades, o governo neoliberal explora e chantageia apocalipticamente a ignorância da população, colocando-a sob o estado permanente de medo e pânico. A Emenda Constitucional 95, aprovada sob o comando do governo Temer, congelou por vinte exercícios financeiros os gastos com bens primários, dentre os quais se inclui os investimentos da educação. Aprofundando o fosso, o governo Bolsonaro corta 30% nos investimentos das universidades federais (MARIZ, 2019). Promove ainda o corte de quase 1 bilhão de reais da educação básica, afetando o acesso a itens básicos, tais como transporte de estudantes, merenda escolar, capacitação de docentes e manutenção de escolas e creches. Não por acaso, a reação da população gerou no Brasil a maior manifestação de rua voltada exclusivamente para a defesa da educação em 15 de maio de 2019.
Os adeptos do neoliberalismo ora praticam uma violência discreta ao adotarem a percepção de que os excluídos têm o destino que merecem, ora deixam escapar a sua intolerância por meio de reformas draconianas que amplificam as possibilidades de morte dos indesejáveis. Assim, algumas vezes com sofisticados discursos do empreendedorismo, eles recusam qualquer forma de misericórdia ou solidariedade e tendem a adotar uma política que sinaliza para três caminhos trágicos: primeiro, o do total descompromisso do Estado em relação ao combate à desigualdade; segundo, a adoção da percepção de que a morte é um caminho 23
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6 O NEOLIBERALISMO COMO EXPRESSÃO E RESGATE DA NECROPOLÍTICA
natural para os excluídos; e terceiro, a exigência de uma tolerância hiper-resiliente por parte dos pobres, como se a ausência de indignação fosse ao mesmo tempo uma qualidade e a hipertolerância fosse uma condição de sua existência. No raciocínio de Valverde (2019), sob o neoliberalismo abandona-se o lema de matar os pobres e abraça-se o lema de deixá-los morrer. Por isso mesmo, um conceito central para a ultradireita neoliberal é o de necropolítica, cujo vocábulo origina-se do grego necro, que quer dizer morte. Assim, a necropolítica consiste na prática social de descartabilidade daqueles que estão excluídos da reprodução do capitalismo por serem considerados estranhos, diferentes, doentes, miseráveis, refugiados, sem renda, sem trabalho, sem previdência social, sem assistência social, sem-teto, incapacitados, enfim, por serem estigmatizados como parasitas ou imprestáveis para gerar lucros. O neoliberalismo manifesta o seu caráter neofascista ao resgatar da necropolítica hitleriana uma forma pragmática e sofisticada de mascarar a autorização da eutanásia. O programa de eutanásia de Hitler autorizava a eliminação da vida indigna de ser vivida, uma espécie de reconhecimento da legitimidade do Estado para autorizar e executar os indesejáveis. Esse fenômeno, no dizer de Giorgio Agambem, é a nova vocação biopolítica do poder soberano de decidir sobre a vida nua ou sobre a descartabilidade daquilo que vem a ser qualificado como vida sem valor:
A nova categoria jurídica de vida sem valor (ou indigna de ser vivida) corresponde ponto por ponto, ainda que em uma direção pelo menos aparentemente diversa, à vida nua do homo sacer [...] É como se toda valorização e politização da vida (como está implícita, no fundo, na soberania do indivíduo sobre a sua própria existência), implicar-se necessariamente numa nova decisão sobre o limiar além do qual a vida cessa de ser politicamente relevante, é então somente vida sacra e, como tal, pode ser
Não é coincidência que Estados autoritários, mesmo que governados sob o invólucro do sufrágio universal, a exemplo do Brasil, venham a apresentar como alternativa ao problema social uma política de armamento da população ou o pacote anticrime do Ministro Sérgio Moro que aposta ora no hiper-encarceramento, ora na ampliação das excludentes de ilicitude para os policiais, o que tende a impulsionar a escalada de matança indiscriminada dos indesejáveis. É no contexto da necropolítica que o Estado põe em ação a máquina policial que comete assassinatos, mas sobretudo põe em prática as políticas de austeridade, que excluem os imprestáveis do acesso aos bens sociais básicos e os condena à fome, ao desprezo, aos maus 24
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impunemente eliminada (AGAMBEM, 2007, p. 146).
tratos ou às listas de espera por cirurgias, tratamentos médicos e medicamentos, por exemplos (VALVERDE, 2019).
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das considerações elencadas sobre a temática das políticas públicas e o austericídio neoliberal, resta uma primeira conclusão óbvia que consiste no modo como esse neoliberalismo vem implodindo o conceito de cidadania que o constituinte de 1988 tentou historicamente resgatar, sob o pálio das pressões pela redemocratização do país na década de 1980. Porém, não menos importantes, são as percepções conclusivas em relação ao ataque que o neoliberalismo empreendeu nas últimas décadas contra os direitos sociais, as quais podem ser arroladas e sintetizadas da seguinte forma: a) O histórico do neoliberalismo tem coincidido com a imposição de políticas de austeridade que, além de ter como alvo a derrubada do espólio da política pública que resta do Estado Social, vem reproduzindo em escalas crescentes a miséria social, a violência do capital instrumentalizada pelo Estado Policial e, por fim, a descartabilidade daqueles que são os detentores da chamada vida sem valor; b) A destruição do marco normativo das políticas públicas do Estado social começou a ser articulado, no plano nacional, a partir da guerra jurídica (Lawfare) que resultou na destituição da presidente Dilma Roussef e na prisão política de Luis Inácio Lula da Silva, maior líder de esquerda brasileira que foi retirado abruptamente da condição de candidato a presidente da república para não atrapalhar a eleição de Jair Bolsonaro; c) As estratégias de dominação entre as classes modificaram-se com o estágio de desenvolvimento capitalista e hoje pressionam os trabalhadores seja por meio da
de exploração que, com a utilização das novas tecnologias de informação e comunicação, tentam ocultar ou mascarar a relação de assalariamento; d) O neoliberalismo no Brasil, em sua segunda fase, é mais violento por guiar-se segundo a perspectiva da necropolítica e da interdição do Estado democrático. A necropolítica representa a prática social de descartabilidade daqueles que estão excluídos da reprodução do capitalismo por serem considerados indesejáveis ou imprestáveis para gerar lucros; e) Sob a necropolítica, a maior ilusão dos incluídos é se acharem em permanente estado de salvação e não perceberem que são ao mesmo tempo chantageados e estimulados a 25
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precarização e do aumento do exército de reserva, seja por meio de novas formas jurídicas
reproduzir a sua antipatia e desconfiança em relação aos excluídos. Todavia, a prática neoliberal adverte constantemente que, segundo as regras do jogo estabelecidas pelo mercado, nenhum incluído está suficientemente protegido que não possa vir a se tornar num excluído; f) A forma mais eficaz de enfrentamento do neoliberalismo ainda é a reinvenção da luta política pela emancipação capaz de unir local e globalmente os trabalhadores e a sociedade, seja nos espaços das ruas ou nos espaços de trabalho, pela construção de uma alternativa ao capitalismo, haja vista a impossibilidade histórica de compatibilizar uma política social democrática e a reprodução do modo de produção vigente.
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2018.
PUBLIC
POLICIES
AND
THE
NEOLIBERAL
AUSTERITY:
THE
DECONSTRUCTION OF CITIZENSHIP AND THE RETURN OF THE POLICE STATE
ABSTRACT The presente article aims to evidence that the austericide prescription of neoliberalism, in Brazil, exterminates what was left of the welfare state idealized by the 1988 constituent. The article adresses yet the way neoliberalism is deconstructing the concept of citizienship, thus promoting the Police State through the rescue of necropolitics as a social practice of descartability of socially excluded.
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Keywords: Neoliberal austericide. Public policies. Police state.
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NOVA (REFORMA DA) PREVIDÊNCIA: POR QUE A PEC 06/2019 DEVERIA “POUPAR” APENAS OS MORTOS? Raimundo Márcio Ribeiro Lima 1
RESUMO O artigo discute a situação do sistema público de previdência, denunciando a inviabilidade do modelo, seja pelo déficit crescente, seja pela capacidade de promover concentração de renda. Analisa-se a importância do controle da atividade fiscal do Estado, destacando pontos positivos e negativos da proposta de reforma previdenciária, sobretudo sobre a racionalidade do modelo de capitalização nocional, especialmente, seus efeitos na estabilidade fiscal e na capacidade de investimento público e privado, que também, reflete sobre o impacto da dinâmica demográfica na previdência social. Por fim, questiona-se a teoria imunizadora dos direitos adquiridos, pois assegura a desigualdade na distribuição de renda da previdência social, muito
Palavras-chave:
Reforma
da
previdência.
Direito
adquirido.
Sustentabilidade previdenciária. Solidariedade.
1
Professor Adjunto do Curso de Direito da UERN. Doutor em Direito Constitucional pela UFC. Doutorando em Direito Público pela Universidade de Coimbra. Mestre em Direito Constitucional pela UFRN. Procurador Federal/AGU. Advogado OAB/RN. Associado do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública (IBAP).
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embora seja uma garantia constitucional.
“Aqueles intelectuais que não atuam no campo dos estudos em economia mostram, em grande parte, uma notável falta de interesse em aprender até mesmos os fundamentos mais básicos da ciência econômica. No entanto, sempre que podem não hesitam em proferir pronunciamentos bombásticos sobre a situação econômica, o mundo dos negócios e questões em torno do que é chamado de ‘distribuição de renda”. (Thomas Sowell)
1 INTRODUÇÃO
A batalha da reforma previdenciária sempre desperta paixões que tentam demover a razão no processo político-discursivo das alterações legislativas, até porque mudanças compreendem custos pessoais ou institucionais, sobretudo, quando decorrentes de reformas profundas ou sistêmicas numa área totalmente sensível dos direitos fundamentais sociais: previdência social. Numa conjuntura de indiscutível crise fiscal dos entes políticos, é totalmente compreensível que qualquer proposta legislativa exija sacrifícios da sociedade, porém, e isso precisa ficar claro, a Proposta de Emenda Constitucional nº 06/2019 (PEC 06/2019), apesar de ser a mais abrangente de nossa recente história constitucional, inclusive alcançando diretamente setores que passaram incólumes nas reformas anteriores (militares e parlamentares), ainda peca por não distribuir adequadamente os sacrifícios financeiros por todos os segmentos sociais. Como a reforma decorre, a priori, da falta de sustentabilidade financeira do atual modelo de previdência, como bem comprova os déficits recorrentes no orçamento da seguridade social, sobretudo, a partir de 2014, a pretensão de reduzir o custo desse modelo é
e, sobretudo, identificar suas vantagens diante dos grandes desafios da previdência social no mundo: (a) demografia: (b) desemprego; e (c) dívida (LOUREIRO, 2014). Nesse cenário, há uma importante agenda a ser empreendida pelo governo reformista: (a) demonstrar a erronia do atual modelo; (b) evidenciar que o país se encontra, em determinados aspectos, numa posição ímpar no cenário mundial; e, no que se revela mais importante, (c) pontuar os benefícios concretos da proposta apresentada diante do cenário agonizante de crise fiscal da federação brasileira. Dessa forma, este breve artigo expõe os dilemas que encerram a previdência social, revelando sua curiosa capacidade de gerar desigualdades e, também, inviabilizar o investimento 30
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legítimo, porém, é necessário compreender os meios escolhidos para atender a esse propósito
público em bens sociais coletivos, somando-se, ainda, sua particular interferência no fluxo de recursos privados na economia brasileira, isto é, de afugentar investimentos privados. Além disso, serão destacados alguns dispositivos importantes da proposta, bem como promovidas necessárias críticas a dispositivos danosos aos segurados, sobretudo, quanto ao perfil (a) da regra de transição, (b) da forma de composição dos cálculos, (c) do benefício assistencial e (d) da aposentadoria rural. Quanto aos aspectos metodológicos, trata-se de pesquisa qualitativa, mediante revisão bibliográfica, e quantitativa, porquanto são consideradas informações estatísticas ou dados oficiais, nos quais reforçarão os pontos ventilados na investigação científica.
2 DINÂMICA DEMOGRÁFICA OU QUANDO O PESO DO TEMPO EXIGE SOLIDARIEDADE
Negar os efeitos da dinâmica demográfica é como tentar evitar o nascer do sol: uma quimera. Os notáveis avanços das intervenções biogerontológicas tornarão ainda mais tormentosa qualquer tentativa de sustentabilidade financeira e atuarial dos regimes de previdência (FEESER-LICHTERFELD, 2008). Assim, a discussão sobre os meios e modos de contornar esse dilema é, a cada dia, mais evidente nos círculos discursivos sobre a proteção social previdenciária. Desse modo, não há nada de surpreendente que o processo de envelhecimento global acarrete reformas em todo o mundo (COSTANZI, ANSILIERO, 2017), o que causa surpresa mesmo é a histeria política em função dessa patente constatação, como se o Brasil pudesse continuar vivendo o sono profundo da irresponsabilidade política diante do colapso da previdência pública. A realidade brasileira não é mais de país jovem à espera de um futuro, que tarda em
ou conquistas dignas em função dos esforços e das esperanças nacionais, numa temporalidade sofrível de poucos progressos. Conquistas pontuais, é bom que se diga, devem ser reconhecidas, mas como admitir saltos econômico-sociais, mesmo após a desejada redemocratização, se o país ainda caminha muito distante das nações desenvolvidas, inclusive de países bem pobres há 40 anos, que, hoje, possuem alto Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), tais como, Coreia do Sul e Cingapura. Na América do Sul, o Chile é emblemático, porquanto a proximidade nos flagelos não representou uma desculpa eterna para o caminho seguro do subdesenvolvimento,
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chegar. A lógica é outra, na qual denuncia o seguinte: o futuro chegou, ainda que sem avanços
afinal, é tão fácil seguir por não ter (a)onde ir2. Urge afirmar que não se discute a importância de como um povo enxerga seus dilemas econômico-sociais e, sobretudo, como a classe política enfrenta essas questões. De qualquer sorte, o bônus demográfico tem sido desprezado pelo culto do proselitismo social, que inviabilizou reformas importantes na sociedade brasileira, tais como, previdenciária, tributária e, em parte, a trabalhista. É dizer, com a população ainda jovem, e ainda sem o peso social da velhice de longo curso, a força propulsora do labor da juventude tem sido colocada na lata de lixo da história. O fluxo contributivo da empregabilidade foi limitado por uma legislação anacrônica, que sacrifica o setor produtivo, ainda baseada no ideário fascista italiano, da primeira metade do século passado, de indiscutíveis raízes sindicais, que, aliás, guiou a ditadura de Getúlio Vargas, a mais sangrenta que o país já vivenciou, muito embora a historiografia tradicional não reporte tal fato. Vale lembrar que o modelo que internaliza os custos da proteção social na relação entre empregador e empregado, típico de economias de matiz socialista, acaba por sufocar a dinâmica protetiva do próprio trabalho, uma vez que a imposição tributária penaliza o emprego, mas não tributa adequadamente o produto do trabalho (ZACHER, 1988). Ademais, a gestão fiscal inadequada das receitas previdenciárias, para além da indiscutível falta de transparência, no que rende discussões infindáveis e inócuas sobre eventuais desvios de recursos das contribuições previdenciárias, ainda compromete a imperiosa lógica compreensiva da reserva técnica em qualquer regime previdenciário. Para ser mais claro: a previdência pública não tem reserva de recursos (ausência de sustentabilidade atuarial), apenas déficits contínuos e crescentes (ausência de sustentabilidade financeira). Nesse ponto, vale lembrar que a PEC 06/2019, no artigo 39, extingue a Desvinculação de Receitas da União (DRU) sobre as contribuições sociais destinadas à seguridade social, o que nada altera sobre a existência de déficit previdenciário, mas gera transparência na gestão
os recursos desvinculados são posteriormente repassados, via orçamento fiscal, ao orçamento da seguridade social. Assim, só interferiria no déficit da previdência se os recursos desvinculados do orçamento da seguridade social fossem maiores que os recursos repassados ao próprio orçamento da seguridade social através do orçamento fiscal, isso, inclusive, consta expressamente na Lei Orçamentária Anual, precisamente no artigo 3º, § 1º, da Lei nº 13.808/2019.
2
Verso da música Maluco Beleza, de Raul Seixas, do álbum O dia em que a Terra parou, lançado em 1977.
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dos recursos. A DRU é apenas mecanismo de flexibilização na execução orçamentária, logo,
Dessa forma, a falta de acompanhamento e adequado tratamento da sustentabilidade financeira (despesas atuais) e atuarial (despesas futuras) dos regimes previdenciários, por mais que se pense o contrário, denuncia verdadeiro voo cego da política de proteção social previdenciária no Brasil. E a razão é simples para isso: a indiferença quanto à situação alarmante do sistema previdenciário não prejudica os que podem fazer algo para mudar esse estado de coisas, mas, sim, os mais pobres, que são sempre vulneráveis à gestão fiscal irresponsável do Estado. Aliás, as recentes experiências latino-americanas explicam isso, com destaque para a Argentina e Venezuela. Aqui, como em qualquer lugar, a previdência social é um tema indigesto no plano político e desafiador no plano econômico: todos sabem de sua importância, mas nenhum grupo político deseja assumir o ônus da reforma previdenciária. Defendê-la é assumir o ônus de uma torrente sem fim de críticas oportunistas, quase sempre amparadas num proselitismo social fantasioso, todavia, os verdadeiros objetivos, aliás, inconfessáveis, são facilmente identificados em função dos benefícios gerados pelo sistema público de previdência no Brasil, isto é, Regime Próprio de Previdência Social (RPPS), que são muitos, e Regime Geral de Previdência Social (RGPS). Explica-se: em 2016, os servidores da União, sem distinção entre civis e militares, contribuíram com apenas 17% para manutenção do RPPS, nos Estados membros, por sua vez, o percentual é ainda menor, a saber, 15%, já o RGPS, portanto, dos trabalhadores da iniciativa privada, o percentual alcança 25% (TAFNER, NERY, 2019). Além disso, como a União (artigo 8º da Lei nº 10.887/2004) e os Estados membros contribuem para a manutenção de cada RPPS, bem como assumem os seus respectivos déficits (artigo 8º, § único, da Lei nº 10.887/2004); então, todo o restante da despesa é pago pela sociedade. Esta suporta a transferência de renda para garantir a manutenção das aposentadorias e pensões dos servidores públicos, lembrando-se que recursos públicos são, simplesmente, aqueles que são subtraídos compulsoriamente da disponibilidade financeira dos contribuintes,
penalizados: (a) suportam uma tributação escorchante e, no que se revela ainda pior, regressiva, pois eles, proporcionalmente, pagam mais tributos que os ricos; (b) sustentam as pomposas aposentadorias de boa parte dos servidores públicos; e (c) não são contemplados com investimentos públicos em bens sociais coletivos, pois os recursos são quase que totalmente canalizados para manter cada RPPS - e, claro, o próprio RGPS. Se o sistema público consagra desigualdades, a melhor forma de preservá-lo é tentar legitimá-lo a partir da falsa defesa ou proteção dos mais pobres, isto é, por meio de discurso pomposo e emotivo, arvorando uma forma de proselitismo social nitidamente falacioso. 33
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logo, de todos os cidadãos. Nesse cenário nada equânime, os pobres são triplamente
Por isso, toda reforma da previdência é denunciada pelas corporações como uma forma de agressão aos mais vulneráveis econômica e socialmente, pois, diante da inegável simpatia do discurso ludibriante, terá maiores chances de manter o nefasto sistema de concentração de renda. Nesse contexto, a solidariedade previdenciária serve apenas aos interesses das grandes corporações, isto é, das carreiras de servidores públicos mais bem remuneradas. Com relação à manutenção do RGPS, cumpre afirmar que os empregadores ainda contribuem com o percentual de 46% e o restante, ou seja, o agonizante déficit, que fica a cargo da União, representa o percentual de 29% (TAFNER, NERY, 2019). Para mais fácil compreensão sobre do dilema da União, os dados são coligidos na singela tabela abaixo:
Contribuição
União – RGPS
União - RPPS
Empregado
25%
17%
Empregador
46%
25%
Déficit
29%
58%
Disso resulta uma importante constatação: os empregadores, tão satanizados por considerável parte da academia brasileira, são responsáveis diretamente, pela via contributiva, por quase metade dos custos do RGPS, sem falar na sua contribuição indireta, via fiscal, na manutenção de todos os regimes previdenciários. Uma empresa, de uma vez por todas, ou dá lucro ou dá desemprego. No primeiro caso, tem-se uma equação em que todos ganham; no último, poucos ganham ou não perdem, dentre eles, políticos e servidores, porquanto o orçamento deles não depende diretamente da pujança do setor produtivo. Quer dizer, apenas num cenário de colapso total da atividade fiscal do Estado, e isso já é visto em alguns Estados membros, é que os servidores serão diretamente afetados, seja com atrasos recorrentes nos pagamentos, seja com
Com relação aos políticos, nem isso ocorre, pelo contrário, alguns até se fortalecem diante do flagelo das massas operárias. Em São Paulo, Estado membro mais rico da federação, quase 80% das sociedades limitadas possuem o capital social inferior a R$ 50.000,00, bem como mais da metade delas são microempresas, sem falar que 98,34% das limitadas não possuem um administrador profissional (MATOS FILHO ET. AL., 2014), muito embora representem o núcleo propulsor da empregabilidade no Brasil. Assim, não se compreende a demonização do empreendedorismo por boa parte da academia brasileira.
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a impossibilidade material de prestar qualquer serviço público.
O peso do tempo exige solidariedade, mas o que isso quer dizer? Se a população envelhece, se a taxa de fecundidade cai drasticamente, se a relação entre o número de trabalhador e aposentado recua vertiginosamente, se a economia tropeça no cenário nacional ou internacional, se o desemprego aumenta e se a dívida pública se encontra sem controle, então, diante de tantos eventos sofríveis, como insistir na tese de que a reforma da previdência é necessariamente contrária aos pobres? Como atrair investimentos e, com isso, empregabilidade, para um país que apenas prova, ano após ano, que deve mais ainda? Como obter financiamentos menos onerosos nesse contexto, aliás, como adquirir recursos no mercado se o empreendedor concorre, sem a mínima chance de êxito, com o próprio Estado, este para pagar a dívida pública - ou mesmo os juros da dívida - e aquele na arriscada tentativa de investir no setor produtivo? De qualquer maneira, a resposta para esses questionamentos não pode prescindir do reconhecimento de que o envelhecimento de longo prazo possui sérios reflexos na evolução dos gastos previdenciários, bem como assistenciais. Não mais se sustenta a tese de que o brasileiro morre cedo, sobretudo, no Norte e Nordeste. Trata-se de falácia defendida pelos discursos oportunistas das corporações e, claro, dos políticos que vivem do proselitismo social, mas que nada contribui de concreto à socialidade brasileira. Dados recentes do IBGE, com base na Tábua Completa de Mortalidade de 2016, denunciam que a expectativa de vida dos brasileiros, a partir de 65 anos, possui a idade máxima de 85,1 anos, verificada no Espírito Santo, e a mínima de 80,9 anos, aferida em Rondônia, portanto, uma variação de 4,2 anos (TAFNER, NERY, 2019). Então, é possível defender que a velhice de longo curso já é uma realidade no Brasil. Assim, não há como confundir, para fins previdenciários, a expectativa de sobrevida, isto é, a partir da aposentadoria, com a expectativa de vida ao nascer. Esta, por evidente, é mais baixa, tendo em vista, dentre outros fatores, a mortalidade infantil e a violência na juventude, tanto que varia de 79,1 anos, verificada em Santa Catarina, para 70,6 anos, que é a média encontrada no Maranhão (TAFNER, NERY, 2019). Dessa maneira, é possível afirmar que o bônus
e com poucos idosos, fazendo com que o inegável benefício da força de trabalho da juventude não tenha a mesma dimensão do passado (GIAMBIAGI, ZEIDAN, 2018). O fardo pesado do tempo diz muitas coisas, mas duas são bem evidentes: (a) não há como manter o regime de previdência idealizado para outras épocas, cujas relações de trabalho eram totalmente diversas, com dinâmica demográfica amplamente favorável à formação de reserva técnica, na difícil e complexa teia de encargos sociais da hipermodernidade (LIPOVETSKY, 2004); (b) a ideia de solidariedade não pode ser sustentada para gerar desigualdade ou, de modo mais claro, concentrar riquezas, ao revés, ela deve ser prestigiada 35
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demográfico tem chegado ao fim, isto é, não mais se observa a população com a maioria jovem
para gerar distribuição de renda, seja pelo tratamento equânime entre os segurados, seja pela oferta de bens sociais coletivos. Os desafios da dinâmica demográfica, levando-se em conta o ano de 2014, podem ser facilmente demonstrados com a relação PIB/Previdência, na qual demonstra que o Brasil é verdadeiramente um ponto fora da curva, pois, mesmo sendo uma nação com pouco menos de 10% da população acima de 65 anos, já possui gastos superiores a 10% do PIB com a previdência social, enquanto outros países, com a população no mesmo perfil, tais gastos não passam de 5% do PIB (TAFNER, NERY, 2019). Essa dura realidade só tende a se agravar, pois, em 2050, a população acima de 65 anos, mesmo numa projeção considerada conservadora, representará o percentual de 22,7% (GIAMBIAGI, TAFNER, 2010). Assim, qualquer hipótese de crescimento na projeção dos gastos previdenciários, por mais que isso revele a necessidade de sacrifícios atuais e futuros, denuncia que não existe a menor dúvida de que o modelo de previdência vigente é totalmente inviável. Desse modo, negar a influência da dinâmica demográfica nos gastos previdenciários e, portanto, na atividade financeira do Estado, é uma atitude mais que irresponsável, é simplesmente suicida, colocando gerações inteiras em inevitável flagelo social. Nesse sentido, basta lembrar que, em 2018, das despesas primárias do orçamento da União, que compreendem todas as despesas realizadas com exceção daquelas decorrentes da dívida pública e dos seus juros, 58% foram destinadas à previdência social (TAFNER, NERY, 2019). Somando-se com mais 13% com pessoal, observa-se que 71% das despesas primárias são diretamente destinados à folha de pagamento (TAFNER, NERY, 2019). Nessa toada, em poucos anos, a previdência social tornará inviável qualquer investimento público, sem falar na redução da margem de recursos no custeio da máquina pública, inclusive, em função do teto dos gastos (EC 95/2016). Ademais, sem a reforma da previdência, há estimativas de que, em 2026, apenas a previdência social representará 79% das despesas primárias da União
Desse modo, não soa alarmista o entendimento de que a reforma da previdência é o caminho necessário para alcançar o controle dos gastos públicos e, com isso, a estabilidade fiscal, recuperando, em seguida, o fluxo econômico por meio de investimentos públicos e privados. Todavia, mesmo com o retorno do crescimento econômico, com o aumento na arrecadação, tal como pretendido pela reforma da previdência, não há como garantir a sustentabilidade do regime de repartição simples se relação de dependência, isto é, a relação entre o número de trabalhadores (segurados) e aposentados ou pensionistas (beneficiários) não 36
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(TAFNER, NERY, 2019).
se revelar viável atuarialmente. É dizer, como o pacto intergeracional é da essência do regime de repartição simples, a expectativa legítima de gozo dos direitos (benefícios e serviços), por mais que diga o contrário, vai sendo reduzida na mesma proporção em que ocorre a redução do número de trabalhadores em relação ao número de aposentados ou pensionistas. Logo, o regime de proteção social, baseado na solidariedade previdenciária, não pode permitir a manutenção de privilégios por dois motivos: (a) o custo de manutenção de cada geração será maior que o da anterior; e (b) a disponibilidade financeira de cada geração será menor que a da anterior. E não há crescimento econômico contínuo, algo bem raro de acontecer, que possa superar tais objeções, justamente porque o fluxo contributivo será menor em função da redução do número de trabalhadores. Dessa forma, a mudança de regime de repartição simples para o regime de capitalização e, portanto, superando a solidariedade de grupo, é o meio mais racional de alcançar a estabilidade financeira do sistema previdenciário. Contudo, há uma séria objeção: não é possível admitir um regime de capitalização puro, porquanto deixaria cada trabalhador à sua própria sorte. Para superá-la a PEC 06/2019, por meio da inserção do artigo 201-A e da inclusão do artigo 115 na ADCT, prevê a instituição de regime de capitalização nocional, de maneira que um fundo público, como mecanismo de solidariedade social, suportaria o valor mínimo dos benefícios, evitando-se, assim, o processo de dessocialização da proteção social, pontuando a ideia de propriedade social, na qual pontifica o progresso social nas sociedades hipermodernas e, portanto, amenizando a perspectiva estrutural da vulnerabilidade social (SOULET, 2008). Por isso, a capitalização representaria uma saída razoável, por dois motivos: (a) libera o governo para investir mais em bens sociais coletivos, já que as despesas primárias, no futuro, não serão dragadas pela previdência social; (b) o fundo público não pagará aposentadorias ou pensões de grande vulto, mas, sim, valor mínimo que promova a proteção social que a sociedade pode pagar.
prejudicados? A resposta é negativa. O regime de capitalização possui caráter nitidamente prospectivo, de maneira que, se instituído, não atingirá nem mesmo os servidores públicos que, hoje, ainda poderão gozar de pomposas aposentadorias, aliás, bem mais rareadas com a instituição de regime de previdência complementar, de caráter facultativo, destinado ao servidor que se encontra submetido, ou não, ao teto do RGPS. Os servidores mais antigos serão afetados pelas regras de transição do RPPS e não pela futura instituição do regime de capitalização. Neste, sem dúvida, há uma verdadeira revolução, mas, ainda assim, o recente Resultado do RGPS (BRASIL, 2019c), que é relativo ao mês de abril de 2019, traz uma informação bastante 37
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Nesse ponto, surge a recorrente pergunta: os mais pobres serão os maiores
esclarecedora, a saber, 65,3% dos benefícios do RGPS possuem o valor de 01 (um) salário mínimo; logo, para esses beneficiários pouco importa se o regime é de repartição simples ou de capitalização, porquanto o valor do benefício seria o mesmo, isto é, na capitalização nocional, o fundo público (solidário) garantiria o benefício no valor de 01 (um) salário mínimo. Portanto, se a grande maioria dos pobres já recebe 01 (um) salário mínimo, então, a situação vai até melhorar, pois: (a) terá mais investimento em bens sociais coletivos (saúde, educação, saneamento, infraestrutura etc.); e (b) alcançará maior disponibilidade de emprego, tendo em vista maior fluxo de investimento no setor produtivo. De todo modo, o maior custo do RPPS decorre do modelo de proteção social dos servidores mais antigos, pois, como se sabe, os benefícios já concedidos são amparados pela garantia constitucional dos direitos adquiridos, independentemente do regime a que pertença. Desse modo, a futura instituição do regime de capitalização nocional, que permitirá uma migração alternativa diante de cada RPPS e do RGPS, não interfere tanto na dinâmica das aposentadorias dos servidores mais novos, exigindo, contudo, maior programação financeira durante a vida laboral, e, quanto aos mais velhos, que representa o grande gasto previdenciário do RPPS, a proteção decorrente dos direitos adquiridos, ainda que não assegure a imutabilidade do regime, vai garantindo, caso a caso, quando do atendimento das regras de transição, a concessão de benefícios mais generosos. Aliás, qualquer reforma previdenciária, especialmente numa tão abrangente como a PEC 06/2019, a transição, ou mesmo a transição da transição, sempre comporta redobrados cuidados, por razões de segurança jurídica, seja pela proteção da confiança legítima, seja pela observância da proporcionalidade e razoabilidade, justamente para assegurar que as alterações empreendidas comportam uma transição racional e equitativa (MODESTO, 2017). Nesse cenário, o que mais preocupa é o custo de transição entre os regimes: (a) do RPPS sem previdência complementar para (b) RPPS com previdência complementar e, mais
complementar, para o regime de capitalização nocional. Explica-se: como o fluxo contributivo diminui, então, os recursos para suportar os aposentados dos regimes anteriores serão pagos, em grande parte, pelo orçamento fiscal. Trata-se de temática que exigirá redobrados esforços da área econômica, sobretudo, diante da teoria imunizadora dos direitos adquiridos. Então, uma pergunta se impõe: se há o custo de transição entre os regimes é expressivo, então, qual o sentido de mudar totalmente o modelo de proteção social? Dos males, sempre o menor: no modelo atual, tanto do RPPS quanto do RGPS, o déficit do sistema público de previdência, por conta da dinâmica demográfica, é 38
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adiante, representando a transição mais onerosa, (c) do RGPS ou RPPS, com previdência
crescente e insustentável; enquanto no modelo de capitalização o déficit, diante da impossibilidade de o fundo público pagar benefício com valor expressivo, é decrescente e programável. O que não se pode admitir é o voo cego, com queda iminente, do atual modelo de previdência pública, pois implicaria o sacrifício de gerações inteiras, sem falar no colapso fiscal do Estado. Assim, não há dúvida de que alguns trabalhadores terão ligeiras perdas com as regras de transição do RPPS e do RGPS, bem como com as novas regras, pretensamente estáveis, desses regimes, mas, certamente, os maiores efeitos da reforma da previdência serão suportados pela futura elite do funcionalismo público, que não poderão gozar dos privilégios do passado. Isto é, tecnicamente não terão perdas, porque simplesmente não terão um regime mais generoso a defender e adotar. É contra isso que as corporações fazem resistência. Não se trata, portanto, de uma defesa altruística dos mais pobres. Se a capitalização, com fundo público, não passar na PEC 06/2019, por certo, será objeto de outra, não é uma questão de opção política, mas de patente imposição financeiro-atuarial. Um questionamento parece certo: se o servidor, sobretudo, federal e estadual, percebe uma remuneração bem superior ao seu equivalente na iniciativa privada, chegando, não raramente, a ser mais de 10 (dez) vezes maior (TAFNER, NERY, 2019); então, qual a lógica de a sociedade ainda pagar pela maior parte de sua aposentadoria? É disso que a reforma trata e, obviamente, tenta mudar.
3 DIREITOS ADQUIRIDOS OU TEORIA IMUNIZADORA DA DESIGUALDADE
A defesa dos direitos adquiridos (artigo 5º, inciso XXXVI, da CRFB) tem causado um sério inconveniente: a redução do nível de proteção previdenciária dos trabalhadores
carreiras de servidores públicos, sobretudo, com generosas aposentadorias. Trata-se de verdadeira tragédia nacional: concentração de renda por meio de sistema público de proteção social, que, em tese, deveria distribuí-la. Explica-se: a redução do nível de proteção social não se revela na imperiosa constituição de um requisito etário na concessão das aposentadorias do RGPS, até porque os mais pobres já se aposentam mais tarde, mas, sim, na forma de composição do cálculo dos benefícios previdenciários do RGPS e do próprio RPPS, que se tornou mais exigente do ponto de vista contributivo e, por conseguinte, menos pessoas terão 100% do Salário de Benefício 39
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economicamente vulneráveis e, paradoxalmente, a manutenção dos privilégios de algumas
(SB). Essa é apenas uma das diversas fórmulas encontradas para tentar equilibrar as contas do RGPS e, com isso, dentre os principais objetivos, viabilizar o pagamento do generoso parâmetro de cálculo dos benefícios já concedidos. Por que seria tão generoso? As razões são diversas, contudo, vale mencionar duas delas. Para além da questão da paridade (com ativos) e integralidade (da última remuneração) das aposentadorias, cumpre lembrar que a exigência de efetivo tempo de contribuição é relativamente recente (EC 20/1998), logo, no que se refere à insuficiência do dever contributivo dos segurados, o peso financeiro do RGPS - e, sobretudo, do RPPS -, decorre das aposentadorias e pensões mais antigas, nas quais a média de tempo de contribuição era muito baixa. Desse modo, não é destituído de sentido afirmar que a comprovação de período contributivo completo, para fins de concessão de aposentarias, era excepcional, agravada, ainda, pelas aposentadorias proporcionais, que ainda persistem apenas como regra de transição da EC 20/1998. Além disso, há quatro décadas, o país era preponderantemente agrário, de sorte que o processo acelerado de urbanização trouxe sérias consequências no custeio da previdência social: tempo de atividade rural para qualquer tipo de aposentadoria urbana. Assim, era bem frequente, hoje, um pouco menos, a concessão de aposentadoria urbana com a comprovação de alguns anos de atividade rural. Assim, apesar de urbana, a aposentadoria, seja integral ou proporcional, não necessariamente espelha tempo efetivo de contribuição. Aliás, ainda hoje, a ausência de efetiva contribuição dos segurados especiais, a despeito de previsão legal (artigo 25, § 1º, da Lei nº 8.212/1991), tem causado dois grandes dissabores: (a) concessão de benefício previdenciário com caráter assistencial; (b) estímulo às fraudes, já que a aposentadoria de trabalhador rural é muito mais generosa que o Benefício de Prestação Continuada (BPC) à pessoa idosa. Daí, como inevitável decorrência da sustentabilidade previdenciária (financeira e atuarial), é necessário promover um pacto intergeracional não apenas progressivo (ativos), mas
constitucionalidade da contribuição dos inativos, apresentou mecanismo importante para atenuar os custos das aposentadorias mais antigas ou, de modo mais claro, os reflexos negativos da teoria imunizadora da dos direitos adquiridos (LOUREIRO, 2010), na qual aprofunda a desigualdade de renda por meio do sistema público de previdência. Com efeito, a PEC 06/2019 tenta equacionar essa questão através do seu artigo 1º, que promoverá nova redação ao artigo 149 da CRFB, com a inclusão dos §§ 1º, 1ª-A, 1º-B, 1º-C, 1º-D e 5º, nos quais irão pavimentar as bases de uma dinâmica contributiva mais onerosa aos servidores ativos ou inativos e pensionistas na manutenção do RPPS. Nesse ponto, vale 40
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também regressivo (aposentados e pensionistas). A PEC 06/2019, tendo em vista a reconhecida
mencionar que os §§ 1º-C e § 1º-D, de maneira análoga à solução portuguesa, encerra uma forma de contribuição extraordinária. Evidentemente, o custo de oportunidade de sua criação será objeto de escrutínio do Parlamento. De todo modo, até a efetiva instituição da contribuição extraordinária, conforme os seus condicionantes, os servidores ativos e inativos serão submetidos à contribuição ordinária disciplinada no artigo 14 da PEC 06/2019. A questão não é difícil de ser entendida: como não há direito adquirido onde não há dinheiro adquirido, como bem denunciou, recentemente, a realidade fiscal portuguesa e grega, e justamente para evitar esse fato, o cenário de mudanças deveria alcançar de modo mais efetivo os atuais aposentados e pensionistas, não todos, mas os que dispõem de maior disponibilidade econômica. A eterna desculpa de que não vai faltar dinheiro para a seguridade social, haja vista o disposto no artigo 195 da CRFB, que tem transformado o orçamento público numa excomunal folha de pagamento, não pode colocar em xeque a pauta de investimento do Estado, cujos efeitos sociais são desastrosos, pois um país que não investe em bens sociais coletivos não é capaz de incorporar ou fomentar novas realidades econômicas, políticas ou sociais, mas, quando muito, e com sacrifício da maior parte da população, apenas consegue manter as estruturas de domínio econômico, político e social. A salvação da previdência social não pode advir de qualquer mecanismo de autofagia orçamentária. Quer dizer, a seguridade social não pode prestigiar a previdência social em detrimento da saúde ou assistência social. Ademais, o orçamento da seguridade social não pode retirar expressivos recursos do orçamento fiscal e, com isso, das áreas sensíveis para o desenvolvimento nacional, tais como, educação, ciência e tecnologia, infraestrutura, saneamento e segurança pública. De pouco adianta a salvaguarda normativa da proteção previdenciária se o país não cumprir, minimamente, as pautas de desenvolvimento econômicosocial. Dito de outro modo, a implementação dos direitos sociais vai muito além da previdência social, pois, a despeito de sua importância, o Estado deve coligar esforços para alavancar
Todavia, sem a reforma da previdência, a expansão do gasto previdenciário, a partir de 2021, praticamente inviabilizará o fluxo de recursos com despesas discricionárias (LEAL, PORTELA, 2018), logo, o Estado não terá recursos para empreender os investimentos necessários ao desenvolvimento nacional. Trata-se, portanto, de algo fácil de ser compreendido, porém todo segmento social possui clara dificuldade em aceitar sua cota de sacrifício, notadamente, o mais prestigiado pelo sistema de previdência: as mais bem remuneradas carreiras de servidores.
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investimentos em áreas igualmente sensíveis, como ciência e tecnologia ou ensino básico.
Enfim, o desafio do desenvolvimento brasileiro passa pela reforma previdenciária e, com ela, as demais reformas estruturantes da República, notadamente, tributária e política. A lógica da reforma previdenciária vai muito além da sustentabilidade financeira dos regimes previdenciários, porquanto recai na própria capacidade de investimento do Estado e, claro, dos investidores privados nacionais ou internacionais. Portanto, o maior estímulo econômico ao mercado que o Brasil pode empreender é promover a reforma previdenciária, acenando, assim, com a pretensão de equilíbrio fiscal e seus efeitos positivos numa perspectiva macroeconômica, para um novo de círculo de investimento no setor produtivo.
4 CRISE SEM FIM OU APENAS OS MORTOS VERÃO O FIM DA GUERRA
Uma coisa que ainda resiste no imaginário nacional: a ideia de um sistema público de previdenciária longevo e, sobretudo, com poucas alterações. Tal visão, aliás, bem míope, possivelmente decorre de equivocadas compreensões político-ideológicas sobre os fundamentos dos sistemas previdenciários, porém, cumpre advertir: não há reformas previdenciárias com efeitos de longo curso, de maneira que os desafios na correção de trajetória dos modelos normativos são uma demanda constante no universo da proteção social, sobretudo, na seara previdenciária. De uma realidade cambiante, que congrega esforços de diversas áreas do complexo social, tais como a economia, demografia ou o direito, não pode exsurgir qualquer solução perene, mas, tão somente, transitória. Por isso, essa guerra não tem fim e todos são diretamente afetados - uns mais, outros menos – pelos gastos previdenciários. Outro mito, aliás, bem típico do proselitismo social que consagra a concentração de renda, é a tese de que a previdência social é o maior distribuidor de renda do país, no sentido de que nela os pobres encontram, ainda que tardiamente, o afago da mão perdulária do Estado.
quintil mais pobre, isto é, os 20% mais pobre no Brasil, porém a situação consegue ser ainda pior no caso das aposentadorias urbanas, uma vez que alcançam apenas 11% do quintil mais pobre (TAFNER, NERY, 2019). Esses dados denunciam que a disputa pela proteção previdenciária é duplamente assimétrica: (a) a riqueza é concentrada nos mais ricos, porém são os mais pobres que legitimam essa concentração, justamente porque são ludibriados pelo mito de que o atual sistema previdenciário é justo; (b) como a previdência absorve mais da metade das despesas primárias, o Estado não tem capacidade de investimento nas demais áreas da socialidade e, portanto, sacrifica os mais pobres com a carência de bens ou serviços públicos. 42
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Nada mais sem sentido, pois apenas 38% dos recursos das aposentadorias rurais alcançam o
Dessa forma, os arranjos sociais em torno da questão previdenciária sempre vão comportar renhidas discussões no meio social, pois as alterações legislativas alcançam toda a sociedade, fazendo que, no tabuleiro das forças políticas, ocorra uma disputa sem fim entre os diversos segmentos da sociedade, haja vista o custo político das reformas previdenciárias, justamente porque elas devem enfrentar os inevitáveis conflitos gerados pela escassez de recursos financeiros ou de algumas odiáveis desigualdades na legislação vigente, que, inclusive, causam sérias consequências em termos intergeracionais. Quer dizer, o aprofundamento da crise fiscal é o resultado da conta de uma festa nababesca feita por uma geração e suportada por outra, mas que, de toda maneira, serão sempre os mais pobres os sacrificados. O discurso de proteção incondicional aos mais pobres, por mais bem intencionado que seja, pouco pode fazer para atenuar a pobreza se não for acompanhado de medidas concretas de geração de renda das pessoas economicamente vulneráveis e, por certo, tornar a população pobre dependente do Estado não é a melhor saída. Claro que a vulnerabilidade não se limita a uma dimensão econômica, contudo, ela representa um passo importante para superá-la. Ademais, os sistemas previdenciários, por mais estáveis que possam parecer, sempre exigem reformas periódicas, até porque o substrato de análise da proteção social previdenciária é extremamente dinâmico: demográfico, laboral e econômico. Sabendo disso, no que torna mais surreal a visão geral da sociedade brasileira sobre a temática, resta induvidosamente compreensível que a legislação previdenciária deve ser cambiante para possibilitar a sustentabilidade financeira e a atuarial dos regimes de previdência. Assim, é possível afirmar o seguinte: não há reforma previdenciária para 40 anos ou mais; quer dizer, não é possível, hoje, defender parâmetros de benefícios criados há quadro décadas. Ela é necessária não em função de lustros ou décadas, mas, sim diante dos indicadores de sua sustentabilidade. No caso brasileiro, não há dúvida de que a previdência social se encontra numa situação difícil - apesar dos engenhosos expedientes de contabilidade criativa
grupos privilegiados da República, notadamente o alto escalão de servidores dos entes políticos. Negar a existência dos verdadeiros dilemas dos sistemas previdenciários, como se isso alterasse a substancia do problema, revelou-se a bandeira mais evidente do discurso sedutor, porém fantasioso, do proselitismo social, fazendo com que a temática não seja discutida em termos concretos - e, portanto, necessariamente realísticos -, sobre a equação dos custos da previdência social no Brasil. Apesar de o dilema da previdência social ser estrutural e não conjuntural, cumpre mencionar que a negativa do déficit previdenciário pode ser compreendida mediante duas 43
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levantados por alguns críticos da reforma -, mas tal fato ainda é sistematicamente negado por
categorias de expedientes: (a) presunções inaceitáveis; e (b) omissões inacreditáveis. Dentre as presunções inaceitáveis sem encontram as seguintes (LEAL, PORTELA, 2018): (a) exclusão dos servidores civis e militares do cálculo do orçamento da seguridade social. Aqui, é preciso fazer um largo e equivocado esforço interpretativo para excluir o RPPS do orçamento da seguridade social. Indaga-se: qual o sentido de a União promover uma ampla base de financiamento da seguridade social, se ela tivesse que considerar o RPPS como despesa específica do orçamento fiscal? Nenhum. Além disso, não seria o RPPS uma previdência social? Vale lembrar que até a contribuição dos servidores da União é chamada de contribuição para a seguridade social. Soma-se, ainda, o fato de que não há qualquer dispositivo constitucional que exclua o RPPS da seguridade social. Como a seguridade social, sendo financiada por toda sociedade, de forma direta e indireta, só poderia contemplar recursos para o RGPS e não para o RPPS? O próprio § 1º do artigo 195 da CRFB, corroborando o aqui exposto, estabelece que: “[a]s receitas dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios destinadas à seguridade social constarão dos respectivos orçamentos, não integrando o orçamento da União”. Se os demais entes políticos da federação contribuem para a sua respectiva seguridade social, então, é possível deduzir que a União também faça o mesmo, isto é, canalize recursos para a seguridade social, que compreende o RGPS, o RPPS e, também, os Militares, que, mesmo com suas especificidades, figuram como uma forma de regime próprio, aliás, será totalmente remodelado com as propostas legislativas em curso. Vê-se que a presunção é, de fato, inaceitável e, portanto, as despesas do RPPS fazem parte do orçamento da seguridade social; (b) tratamento da receita da seguridade social como uma única peça contábil. O mecanismo tem apenas o fundado propósito de velar o déficit da previdência social em função da junção com os recursos da saúde e assistência social, tendo fazer com que os déficits da previdência social sejam absorvidos pelos recursos dos demais pilares da seguridade social. A
seguridade social, justamente para evitar, como já ocorre há muito tempo, drenagem dos recursos da saúde e assistência social para a previdência social; (c) inclusão dos valores das renúncias fiscais como se fossem recursos de tributos efetivamente recolhidos. Aqui, em verdade, há uma dupla presunção: (1) de que os tributos seriam recolhidos se fossem efetivamente exigíveis; e (2) de que a renúncia não tem impacto positivo na economia e, com isso, não seria capaz de gerar mais empregabilidade e, assim, mais contribuição previdenciária. É, portanto, bastante forçoso o expediente e, desse modo, não convence; 44
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PEC 06/2019 trará mais transparência à temática, pois exigirá a divisão das receitas da
(d) a cobrança da dívida assegura a autossuficiência do regime previdenciário. A presunção é tão simplista que não merece maiores considerações. Se o déficit da previdência social quase alcança três centenas de bilhões de reais, como solucionar tão expressivo gasto arrecadando apenas, em média, pouco mais de 04 bilhões de reais (LEAL, PORTELA, 2018). Além disso, em 2018, dentre os 50 maiores devedores da previdência, 24% deles pertenciam ao setor público, denunciando que o pagamento da cobrança será custeado pela própria sociedade; outros 34% eram do setor privado, porém, no que se revela mais grave, os outros 42% eram débitos de massa falida ou recuperação judicial, portanto, de difícil ou impossível recuperação (TAFNER, NERY, 2019). Noutro giro, mas igualmente condenável do ponto de vista fiscal, são as omissões inacreditáveis diante dos evidentes dilemas intergeracionais que encerram a questão previdenciária, nestes termos: (a) ausência de projeção atuarial do gasto previdenciário. A dinâmica do custo do regime previdenciário é totalmente retrospectiva, isto é, como se a suficiência financeira da previdência social dependesse apenas do controle contábil dos pagamentos pretéritos ou correntes (LEAL, PORTELA, 2018); (b) desconsideração da dinâmica demográfica. É dizer, como se os parâmetros contributivos em função da força laboral fossem estáveis e, nessa qualidade, não necessitassem de constantes ajustes diante do envelhecimento populacional; (c) negação da dinâmica laboral. Isto é, num futuro próximo, o universo das relações trabalhistas será totalmente modificado, seja pela supressão de empregos ou profissões, seja pela dificuldade da capacitação profissional altamente especializada diante do avanço da robótica (HARARI, 2018), logo, a baixa inclusão previdenciária a partir da empregabilidade, que já preocupa muito a gestão fiscal, pode ser agravada. Com relação à DRU, inclusive já discutido em tópico anterior, cumpre afirmar que o
resultados da previdência, sem falar que confirmou a regularidade da sistemática de cálculo da seguridade social realizada pelo Governo Federal (BRASIL, 2017). Aliás, é curioso destacar o seguinte: todos os governos após a democratização do país, dos mais diferentes matizes político-ideológicos, atestaram a existência do déficit da previdência social, então, como defender a tese de que ele não existe, mas apenas representaria um álibi do atual governo para promover a reforma da previdência? Como já afirmado anteriormente, o déficit é notório, mas mesmo que não existisse a reforma seria necessária, haja vista o dilema global da dinâmica demográfica e, sobretudo, do rápido envelhecimento da população brasileira. 45
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Tribunal de Contas da União (TCU) já se pronunciou de que ela possui impacto nulo sobre os
Como são muitos os aspectos jurídicos da PEC 06/2019, e tendo em vista a necessária brevidade deste artigo, cumpre destacar 04 (quatro) pontos sensíveis da reforma previdenciária, pois, independentemente de aprovação, vão carrear infindáveis discussões no Congresso Nacional por muito tempo, quais sejam: (a) BPC/LOAS adaptativo; (b) aposentadoria rural; (c) parâmetro de cálculo; e (d) regra de transição. Esses pontos não serão analisados pormenorizadamente, pois o que se objetiva é apenas demonstrar alguns importantes aspectos negativos e positivos dessas propostas. Pois bem. No que concerne à regra de transição, a PEC 06/2019 não segue os parâmetros das reformas previdenciárias anteriores. Uma coisa, desde logo, deve ser destacada: quanto mais lenta se revelar qualquer transição mais ela acentua no tempo a desigualdade de tratamento entre os segurados e, claro, entre os regimes que, em tese, serão convergidos no futuro. Em termos ainda mais claros: a segurança jurídica não se confunde com a manutenção do status quo, logo, se a reforma propõe mudanças para assegurar a manutenção do sistema público de previdência, então, não faz o menor sentido de que tudo continue como defendido pelas corporações, isto é: imutável. A questão da idade é um nítido exemplo de como, em nome da segurança jurídica, pretende-se perenizar parâmetro etário do passado que afiguram incompatível com a realidade previdenciária de outros países da América Latina (TAFNER, NERY, 2019). Um ponto da regra de transição tem sido objeto de crítica, a saber, a ausência de rampa etária para o servidor que ingressou no serviço público em cargo efetivo até 31 de dezembro de 2003, ou, de modo mais simples, aos servidores anteriores à EC 20/1998 e à 41/2003 (MODESTO, 2019). A crítica é pertinente, muito embora a ausência de rampa etária (menos onerosa) não justifique qualquer instituição da regra do pedágio (mais onerosa). Nesse ponto, cumpre transcrever o regramento do direito à integralidade do valor da aposentadoria aos servidores mencionados acima, que se encontra no § 7º, do artigo 3º, da PEC 06/2019, nestes
§ 7º. Os proventos das aposentadorias concedidas nos termos do disposto neste artigo corresponderão: I - à totalidade da remuneração do servidor público no cargo efetivo em que se der a aposentadoria, observado o disposto no § 10, para o servidor público que tenha ingressado no serviço público em cargo efetivo até 31 de dezembro de 2003 e que se aposente aos sessenta e dois anos de idade, se mulher, e aos sessenta e cinco anos de idade, se homem, ou aos sessenta anos de idade, se titulares do cargo de professor de que trata o § 5º, para ambos os sexos;
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termos (BRASIL, 2019b):
A regra de transição é injusta, porquanto sequer facultou a regra dos pontos, aliás, encampada no caput, §§ 1º a 4º, do mesmo artigo, denunciando a ausência de tratamento isonômico quanto à constituição de rampa etária. Por outro lado, a regra do pedágio seria muito benéfica, pois representaria um fluxo permanente de tratamento diferenciado a um número considerável de servidores, diferentemente da regra dos pontos, pois seria temporalmente mais definido, isto é, há prazo certo para alcançar o limite máximo de pontuação e, assim, acaba a transição quanto ao requisito etário. A defesa da regra do pedágio com percentual uniforme destoaria da lógica, aliás, já ventilada neste artigo, de que os servidores anteriores à EC 41/2003 gozam de posição jurídica privilegiada no RPPS e, desse modo, o sacrifício suportado seria aceitável, sobretudo, quando se considera a posição jurídica dos servidores mais jovens. Além disso, se não existe direito adquirido ao estatuto jurídico do regime previdenciário, então, de igual modo, também não existiria em relação à regra de transição. Soma-se, ainda, que a idade não é um elemento neutro para fins previdenciários, se a reforma contempla justamente a necessidade de revisão do requisito etário, logo, não faz o menor sentido de que a regra de transição a despreze simplesmente porque as reformas anteriores não se atentaram a esse aspecto. Quanto ao critério de reajustamento da aposentadoria dos servidores anteriores à EC 41/2003, a regra de transição se encontra delineada no § 8º, inciso I, do artigo 3º, da PEC 09/2019, c/c artigo 7º da EC 41/2003, nestes termos (BRASIL, 2019b):
§ 8º. Os proventos das aposentadorias concedidas nos termos do disposto neste artigo não serão inferiores ao valor a que se refere o § 2º do art. 201 da Constituição e serão reajustados: I - de acordo com o disposto no art. 7º da Emenda Constitucional nº 41, de 19 de
Art. 7º. Observado o disposto no art. 37, XI, da Constituição, os proventos de aposentadoria dos servidores públicos titulares de cargo efetivo e as pensões dos seus dependentes pagos pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, em fruição na data de publicação desta Emenda, bem como os proventos de aposentadoria dos servidores e as pensões dos dependentes abrangidos pelo art. 3º desta Emenda, serão revistos na mesma proporção e na mesma data, sempre que se modificar a remuneração dos servidores em atividade, sendo também estendidos aos aposentados e pensionistas quaisquer benefícios ou vantagens posteriormente concedidos aos servidores em atividade, inclusive quando decorrentes
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dezembro de 2003, se concedidas nos termos do disposto no inciso I do § 7º;
da transformação ou reclassificação do cargo ou função em que se deu a aposentadoria ou que serviu de referência para a concessão da pensão, na forma da lei.
Dessa forma, com a manutenção da integralidade e paridade, não se observa, nesse ponto, uma regra de transição injusta ou irrazoável aos servidores anteriores à EC 41/2003, contanto que seja estabelecida uma rampa etária, ainda que menos onerosa, como o caso da regra dos pontos. No caso, há uma proposta que exige sacrifícios, portanto, algo bem diferente de uma transição da transição nos moldes das reformas anteriores, que reformavam a CRFB, mas que mantinham, na medida do possível, os privilégios que justificavam a própria criação das reformas, como bem explica a contrarreforma da EC 47/2005. Aqui, no que se referem aos servidores anteriores à EC 41/2003, basta fazer a seguinte reflexão: se a sociedade pagará por mais de 80% da aposentadoria dos servidores públicos federais (TAFNER, NERY, 2019), seria uma demasiada quota de sacrifício exigir que eles trabalhem por mais tempo, sobretudo, quando esse tempo se revela compatível com os parâmetros dos países da América Latina? De todo modo, há um ponto particularmente dissonante, e totalmente merecedor de crítica, é a situação dos policiais civis e agentes penitenciários que, de forma francamente paradoxal, adquiriram o direito à integralidade, nos termos do artigo 4º, § 3º, inciso I, da PEC 06/2019, denunciando uma forma de austeridade seletiva, no que vai de encontro aos objetivos da reforma (MODESTO, 2019). Quanto à forma de composição dos cálculos das aposentadorias, não é possível adentrar em detalhes, porém a reposição dos valores dos benefícios sofreu forte, por vezes, injusta, alteração para menor. Assim, excetuando-se os contemplados com as regras de transição mais favoráveis, os cálculos de benefícios não vamos mais desprezar 20% dos menores Salários de Contribuição (SC), de maneira que 100% (cem por cento) do período contributivo do segurado serão considerados para fins de definição do Salário de Benefício
contribuição, até a Data de Entrada do Requerimento (DER). Acaba-se, assim, uma forma de subsídio, porquanto assegurava uma maior média aritmética simples do SC. Percebe-se, que a ideia de esforço contributivo ganhou notória efetividade, muito além da perspectiva meramente relacionada à carência da EC 20/1998. Soma-se, ainda, outra mudança bastante significativa: a reposição do valor dos benefícios. Com a PEC 06/2019, e isso precisa ficar claro, raras são as hipóteses de aposentadorias com 100% do SB, porquanto elas partem de 60%, com acréscimo de 2%, a cada ano que exceder 20 (vinte) anos de contribuição, observando, de todo modo, o teto do RGPS. 48
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(SB), isto é, o período que vai de julho de 1994, ou deste o início da competência da
Portanto, é um critério mais exigente e fará com que o segurado tenha que contribuir por mais tempo, senão o valor do benefício será menor. É uma regra bastante austera, inclusive, digna de crítica, pois acaba por penalizar demasiadamente os trabalhadores que possuem maior dificuldade de inserção e permaneça no mercado de trabalho. A questão é particularmente danosa no caso de aposentadoria por invalidez (artigo 26 da PEC 06/2019), pois apenas no caso de acidente do trabalho, doenças profissionais e doenças do trabalho, portanto, no universo restrito à dinâmica laboral, o benefício seria de 100% do SB, tanto que o Parecer Final da Comissão Especial, da relatoria do Deputado Samuel Moreira, denuncia a existência de 03 (três) emendas à PEC 06/2019 sobre a temática (BRASIL, 2019a). Outros pontos, menos lesivos, poderiam ser aventados, mas os destacados são os mais relevantes e, por certo, exigirá maior reflexão no Congresso Nacional. Quanto ao BPC/LOAS adaptativo (artigo 41 da PEC 06/2019), cumpre mencionar que a proposta é bem interessante diante dos objetivos abrangentes da reforma da previdência. Explica-se: com a instituição, elevação e relativa padronização do requisito etário nos benefícios programados do RPPS e RGPS, revela-se bem compreensível que os benefícios assistenciais sofram alteração, sobretudo, quanto ao requisito etário, porquanto os estímulos importam, e muito, num cenário de consideráveis adversidades mercadológicas (THALER, SUNSTEIN, 2008). É dizer, se o requisito etário se revelar o mesmo para benefício assistencial e previdenciário, por certo, um free-rider problem é inevitável. Então, de modo racional, a PEC 06/2019 prevê que o idoso hipossuficiente, com 60 (sessenta) anos, perceberia R$ 400,00 e, diante das possibilidades de inserção mercadológica, poderá receber benefício previdenciário aos 65 (sessenta e cinco) anos (aposentadoria por idade urbana) ou um benefício assistencial aos 70 (setenta) anos, no valor de 01 (um) salário mínimo. Infelizmente, a proposta não tem sido bem aceita, sobretudo, pelo discurso oportunista do proselitismo social, tanto que o Parecer Final da Comissão Especial, da relatoria do deputado Samuel Moreira, rechaçou a boa ideia da
as dificuldades de qualquer cidadão viver com R$ 400,00 por mês, porém, mais difícil ainda é viver sem recurso algum aos 60 (sessenta) anos, como prevê a legislação em vigor (artigo 20, caput, da Lei nº 8.742/1993), pois exige a idade mínima de 65 (sessenta e cinco) anos para conseguir um PBC/LOAS, que possui o valor de um salário mínimo. A questão é particularmente contraproducente quando se considera que a focalização dos recursos é mais útil à população no Programa Bolsa Família (PBF), isto é, possui maior capacidade de afastar o flagelo da pobreza entre os mais pobres (RAVALLION, 2016), pois o PBF atinge 61% do quintil mais pobre da população, enquanto o BPC não passa de 12% (TAFNER, NERY, 2019). 49
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equipe econômica do governo (BRASIL, 2019a). É comum a indagação dos deputados sobre
Já a questão do segurado especial, uma espécie do gênero trabalhador rural, exige apenas bom senso: entender que a proteção social dos trabalhadores rurais vulneráveis não justifica a permanência duma legislação que facilita a promoção de fraudes. Aliás, há mais aposentados rurais que idosos na zona rural (TAFNER, NERY, 2019), logo, isso é um claro indicativo de que a legislação não tem tratado adequadamente os requisitos concessórios do benefício. Tanto que, mesmo com a aprovação da MP 871, ainda submetida à sanção presidencial, a situação do segurado especial anda longe de ser solucionada, pois ainda persiste o matiz assistencial de benefício que deveria ser previdenciário, portanto, sob o jugo da efetiva contributividade. Com o artigo 1º da PEC 06/2019, que traz nova redação ao § 8º do artigo 195 da CRFB, bem como inclui o § 8º-A no mesmo artigo, o risco de exclusão previdenciária do segurado especial, que efetivamente teria de contribuir ao RGPS, seria mesmo até menor que o suportado pelo trabalhador de baixa renda, nos termos artigo 21, §§ 2º, 3º e 4º, da Lei nº 8.212/1991, no qual estipula alíquota de 5% sobre 01 (um) salário mínimo. A prova do tratamento particular do segurado especial é bem demonstrada no artigo 35 da PEC 06/2019, nestes termos (BRASIL, 2019b):
Art. 35. Até que entre em vigor a nova lei a que se referem os § 8º e § 8º-A do art. 195 da Constituição, o valor mínimo anual de contribuição previdenciária do grupo familiar será de R$ 600,00 (seiscentos reais). § 1º. Na hipótese de não haver comercialização da produção rural durante o ano civil, ou de comercialização da produção insuficiente para atingir o valor mínimo a que se refere o caput, o segurado deverá realizar o recolhimento da contribuição pelo valor mínimo ou a complementação necessária até o dia 30 de junho do exercício seguinte. § 2º. Na hipótese de não ser recolhido o valor mínimo anual da contribuição previdenciária do grupo familiar até o prazo a que se refere o § 1º, o período correspondente não será considerado como tempo de contribuição ao Regime Geral
Vê-se que o grupo familiar, portanto, mais de uma pessoa, manteria a qualidade de segurado especial com uma contribuição anual de R$ 600,00, no que traduziria a importância de R$ 50,00 por mês. A PEC nº 06/2019 não almeja propriamente arrecadação, mas evitar as fraudes, sobretudo, quando a União, em 2017, gastou mais com a previdência rural do que com a educação (TAFNER, NERY, 2019). Desse modo, se a dona de casa, dentre outros trabalhadores de baixa renda, gasta menos com a fraude previdenciária, isto é, se passar por
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de Previdência Social.
segurado especial, do que contribuir ao RGPS, na qualidade de segurada facultativa; então, não há dúvida de que o número de concessões indevidas de aposentadoria rural não cairá sem a alteração constitucional pretendida pela PEC 06/2019. E a razão é simples: o crime, de modo geral, é um cálculo racional e, no caso, impulsionado por pretensas condições pessoais de vulnerabilidade social, esta, a despeito de não ser excludente de ilicitude, tende a acarretar reduzidíssimas possibilidades de repressão penal. Todavia, o Parecer Final da Comissão Especial, da relatoria do Deputado Samuel Moreira, desconsiderou toda essa análise e, no seu substitutivo, excluiu as alterações importantes na aposentadoria rural; aliás, a exclusão, dentre vários outros pontos, também alcançou o BPC/LOAS e a capitalização, mas, claro, incorporou alguma mudanças na regra de transição e na forma de composição dos cálculos dos benefícios, justamente para atender aos interesses das corporações (BRASIL, 2019a). Enfim, deve-se aguardar o trâmite final da PEC para, só assim, destacar se o Congresso Nacional trouxe alguma significativa evolução sobre a matéria.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante pontos ventilados acima, que giram em tornos de aspectos pontuais da PEC 06/2019, bem como da situação atual do sistema público de previdência, concluímos que: (a) o modelo de previdência pública é o maior mecanismo de concentração de renda no Brasil. Apesar de o RGPS também concentrar renda para os mais ricos da sociedade, é no RPPS que a concentração de renda é manifesta, seja com a manutenção de privilégios de algumas carreiras de servidores públicos, seja com a transferência direta de recursos da sociedade para pagamento de benefícios previdenciários;
não é o maior fator legitimador da reforma previdenciária em curso, mas, sim, os inevitáveis efeitos da dinâmica demográfica na composição dos custos do RGPS e do RPPS, até porque, além da questão da velhice de longo curso, há o dilema da dinâmica laboral, que possui sérios efeitos no processo de empregabilidade e, por conseguinte, de inclusão previdenciária; (c) a garantia constitucional dos direitos adquiridos, que cumpre indiscutível papel na promoção da segurança jurídica, compreende uma dimensão particularmente conflitiva, sobretudo, numa ambiência de profunda crise fiscal do Estado, que é a perspectiva imunizante da desigualdade através da proteção da distribuição injusta dos recursos da sociedade, 51
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(b) o déficit previdenciário, apesar de representar uma realidade de fácil constatação,
promovendo, inclusive, sérios conflitos intergeracionais, pois a superposição entre as gerações, com encargos diversos e crescentes, cedo ou tarde, apresenta insustentáveis disfuncionalidades nos sistemas previdenciários; (d) a reforma previdenciária representa o instrumento mais efetivo para promover o controle da atividade financeira do Estado, porquanto tem a capacidade de apresentar uma nova trajetória de equilíbrio financeiro e atuarial do RPPS e RGPS, que abocanham mais da metade do orçamento primário da União; e (e) o sistema de capitalização nocional, com fundo público que garante renda mínima aos segurados, possui dois claros benefícios: (1) reduz o custo do Estado na manutenção do sistema de previdência, possibilitando maior investimento público em bens sociais coletivos; e (b) não expõe o trabalhador à própria sorte e, portanto, sujeito à vulnerabilidade social, porquanto assegura o recebimento de renda mínima ao cidadão que tenha tido maiores dificuldades de inserção e manutenção no mercado de trabalho.
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NOVA (REFORMA DA) PREVIDÊNCIA: POR QUE A PEC 06/2019 DEVERIA “POUPAR” APENAS OS MORTOS?
ABSTRACT The article discusses the situation of the public pension system, denouncing the unfeasibility of the model, either by the growing deficit or by the capacity to promote concentration of income. The article analyzes the importance of controlling the fiscal activity of the State, highlighting the positive and negative aspects of the social security reform proposal, especially on the rationality of the notional capitalization model, especially its effects on fiscal stability and public and private investment capacity. It also reflects on the impact of demographic dynamics on social security. The article, finally, questions the immunizing theory of vested rights, since it ensures inequality in the distribution of income from social security, even though it is a constitutional guarantee. Keywords: Social security reform. Vested right. Social security
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Sustainability. Solidarity.
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A MULHER NO CÓDIGO CIVIL DE 1867: O LENTO RECONHECIMENTO DE DIREITOS DO SUJEITO JURÍDICO FEMININO Miriam Afonso Brigas1
RESUMO Propondo-nos analisar a situação jurídica da mulher no Código Civil de 1867, entendemos oportuno efectuar a abordagem dividindo-a em três momentos. Em primeiro lugar, estudar a importância da mulher como sujeito de direito, fornecendo o quadro necessário para a compreensão dos regimes positivados. Em segundo lugar, dedicarmo-nos ao tratamento especial efectuado a este sujeito nas Ordenações Filipinas e na variada legislação extravagante produzida nos séculos XVII e XVIII. A terceira parte incide na análise da mulher no Código Civil de 1867. Aqui procuraremos fornecer ao leitor um quadro coerente do papel da mulher na primeira codificação civil portuguesa. Palavras-chave: Mulher. Família. Direitos. Ordenações Filipinas.
1
Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e investigadora do Teoria e História do Direito - Centro de Investigação da ULisboa (THD-ULisboa).
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Código Civil de 1867.
1 INTRODUÇÃO
O homem é a cabeça da mulher, do mesmo modo que Cristo é a cabeça do homem [...]. A potência de geração na fêmea é imperfeita em relação à potência de geração que existe no macho. (São Tomás de Aquino)
O tratamento das matérias relativas à situação jurídica da mulher nos vários domínios do direito resulta do reconhecimento efectuado a partir dos finais dos anos 70 do século XX no sentido de integrar todos os sujeitos que actuam na realidade social. Efectuemos, por isso, uma breve incursão histórica, por considerarmos ser uma questão prévia relevante para compreender a positivação operada no século XIX, em Portugal. Analisando de forma breve a importância da mulher na História, constatamos que a sua existência foi, desde sempre, objeto de atenção dos escritores e filósofos. Neste sentido, encontramos Santo Agostinho2, que nas Confissões refere a natureza dependente da mulher:
Assim como na alma há uma parte que impera pela reflexão e outra que se submete para obedecer, assim também a mulher foi criada, quanto ao corpo, para o homem. Ela, possuindo uma alma de igual natureza e de igual inteligência está quanto ao sexo, dependente do sexo masculino (AGOSTINHO, 1955, p. 24).
Igualmente, Cornelius Agrippa defende a natureza feminina pela excelência da sua formação, assumindo, de forma singular, a defesa da mulher na sua obra Da Nobreza e da excelência do sexo feminino:
Primeiramente, portanto, e para entrar na matéria, mulher é um nome
decisiva: como foram eles nomeados por Deus, que foi ao mesmo tempo o pai e o padrinho dos dois primeiros indivíduos da espécie humana? Não é certo que ele chamou ao homem Adão e à mulher Eva? Ora, atentai nisso quem quer que sejais vós que tendes a honra de me ler: o nome Adão significa terra e Eva é um termo que quer dizer vida. Sobre esta revelação cientificamente etimológica construo eu este poderoso raciocínio: a vida tem um preço diferente do da terra; por isso a mulher
2
Ver também, Maria Luísa Ribeiro Ferreira (Organização), O que os Filósofos pensam sobre as mulheres, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, Lisboa, 1998.
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incomparavelmente mais excelente que o nome de homem; eis disso uma prova
brilha tão acima do homem; por isso ela lhe é tanto mais preferível quanto a vida é mais preciosa que a terra (AGRIPPA, 2007, p. 19).
Posteriormente, a Revolução Francesa havia de voltar a colocar a mulher no centro da discussão jurídica, focando-se no reconhecimento de direitos à mulher como cidadã, como bem defendeu Olympe de Gouges (2007, p. 85) na sua conhecida Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã de 1791. Um ano mais tarde, em Inglaterra, Mary Wollstonecraft (2004) argumenta pela liberdade da mulher, autonomizando-a face ao homem na sua Vindication of the rights of woman. Era o movimento feminista a ganhar forma, apelando a novas exigências com reflexo em matéria de exercício do direito de voto e posteriormente, com o alargamento no reconhecimento de mais direitos, nomeadamente de natureza laboral. John Stuart Mill é aliás, uma referência do século XIX como herdeiro da defesa da situação da mulher, argumentando pela igualdade de direitos face ao homem, o que lhe valeu críticas ferozes dos seus contemporâneos. Como refere Bernardo de Vasconcelos, a condição aplicável à mulher no século XIX não reflecte as suas reais potencialidades, sendo produto de uma condição artificial: "se as mulheres são, no presente, aquilo que são, isso deve-se apenas ao facto de cumprirem com imensa lealdade a única função para a qual são educadas e que lhes é permitido pôr em prática" (MILL, 2006, p. 15). No século XX o estudo das temáticas relativas às mulheres ganha novamente relevância. Recordo, a este respeito, os trabalhos pioneiros realizados na vertente da História das Mulheres, estudada em França por Michelle Perrot3, e em Portugal por várias autoras, destacando os trabalhos efectuados pelas Professoras Irene Vaquinhas e Zília Osório de Castro (2010, 2011 e 2013) na vertente histórica. Os temas relacionados com a maternidade trouxeram igualmente a análise do papel da mulher enquanto sujeito da História, como nos atestam
(1998) entre outros estudiosos do tema. No entanto, não é esta a perspectiva na qual entendemos que as matérias relacionadas com a mulher devem merecer especial atenção, já que a maternidade não é, em si mesma, função assumida por todas as mulheres e, neste sentido, é incapaz de definir o sujeito jurídico feminino. Devemos, em consequência, procurar analisar o papel atribuído à mulher na identificação e caracterização de algumas das principais instituições
3
Ver, neste sentido, os trabalhos desenvolvidos no âmbito da História das Mulheres por Michelle Perrot, nomeadamente Les femmes ou les silences de l'Histoire, Flammarion, 2001, cuja leitura recomendo vivamente.
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Yvonne Knibiehler (2000), Elisabeth Badinter (2000), François Lebrun (2000) e Philippe Ariès
jurídicas positivadas, nomeadamente no Código Civil de 1867, objecto da nossa especial atenção. Importa referir ainda, na área jurídica, a investigação desenvolvida pela Professora Teresa Pizarro Beleza (2010), a qual merece consideração pelo seu contributo para a autonomia do Direito das Mulheres e da Igualdade Social como disciplina de investigação jurídica. Igualmente a História das Mulheres de Georges Duby e Michelle Perrot obedece a este requisito, como os próprios descrevem no objeto da sua investigação:
Mas é preciso recusar a ideia de que as mulheres seriam em si mesmas um objeto de história. É o seu lugar, a sua "condição", os seus papéis e os seus poderes, as suas formas de ação, o seu silêncio e a sua palavra que pretendemos perscrutar, a diversidade das suas representações - Deusa, Madona, Feiticeira – que queremos captar nas suas permanências e nas suas mudanças. História decididamente relacional que interroga toda a sociedade e que é, na mesma medida, história dos homens (DUBY; PERROT, 1994, p. 7).
Todos estes contributos são indispensáveis para repensarmos a forma como o conhecimento de algumas das principais instituições jurídicas tem ignorado o lugar reconhecido à mulher como sujeito de direito. Na realidade, esta caracterização é muitas vezes efetuada por excepção face aos sujeitos tipo, na qual se inclui habitualmente o sujeito jurídico titular de representação social e política, o homem em concreto. Na actualidade, o tratamento das matérias relativas ao sujeito jurídico feminino tem merecido atenção, quer na elaboração doutrinária que tem sido desenvolvida, quer ao nível da formação pós-graduada, como se verifica com a existência na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, de um mestrado em Estudos sobre as Mulheres, As Mulheres na Sociedade e na Cultura, no qual se abordam temáticas relativas ao papel da mulher
Mulher, com expressão na publicação periódica Faces de Eva, abordando as temáticas relativas às várias facetas dos estudos da Mulher4. E porque a História se constrói por um processo de
4
Como se constata da leitura dos vários números disponíveis da revista, com periodicidade semestral, publicada desde 1999, cujos objectivos estão identificados nos propósitos definidos na revista: "Cada número evoca, através da capa, uma mulher portuguesa ou estrangeira que, de algum modo, se tenha destacado na época em que viveu. A Revista Faces de Eva - Estudos sobre a Mulher organiza-se em torno de dois núcleos centrais e complementares: um de natureza académico/científica que divulga ensaios ou resultados de pesquisas no âmbito dos estudos sobre as mulheres, feministas ou de género e outro de carácter mais geral que dá a conhecer mulheres em particular ou associações que com elas trabalham.”
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na sociedade. De salientar que na faculdade referida existe um Centro de Estudos sobre a
recuperação de memória importa recordar que as mulheres foram e são ainda um veículo importante transmissor de memória que não podemos silenciar5. A este propósito, Jacques Le Goff considera que o século XX introduziu uma revolução na relação possível entre memória e História, na medida em que permitiu que em vez desta se reportar aos factos gloriosos e excepcionais, passar a incidir sobre o quotidiano das pessoas comuns (AMT, 2010). Paul Ricoeur salienta a importância de identificar na História os factos que não caindo no esquecimento sinalizam o que importa efectivamente recordar.
Desde Platão e Aristóteles, falamos da memória não só em termos de presença/ausência, mas também em termos de lembrança, de rememoração, aquilo que chamavam anamnesis. E quando essa busca termina, falamos de reconhecimento. É a Bergson que devemos o ter recolocado o reconhecimento no centro de toda a problemática da memória. Em relação ao difícil conceito da sobrevivência das imagens do passado, seja qual for a conjunção feita entre as noções de reconhecimento e de sobrevivência do passado, o reconhecimento, tomado como um dado fenomenológico, permanece, como gosto de dizer, uma espécie de “pequeno milagre”. Nenhuma outra experiência dá a este ponto a certeza da presença real da ausência do passado. Ainda que não estando mais lá, o passado é reconhecido como tendo estado. É claro que podemos colocar em dúvida uma tal pretensão de verdade. Mas não temos nada melhor do que a memória para nos assegurar de que alguma coisa se passou realmente antes que declarássemos lembrar-nos dela6.
O tratamento científico das matérias do quotidiano permitiu desenvolver os estudos relativos à caracterização e efeitos dos comportamentos masculinos e femininos, nomeadamente ao nível da situação específica da mulher (LOPES, 1989, p. 10), quer seja integrada numa família constituída por si, quer na família de origem, no seio da estrutura patriarcal herdada do período medieval.
importante em assuntos de conteúdo familiar e penal. Naturalmente que outras matérias como as obrigações podem justificar a nossa análise, mas reconhecemos que serão nos dois domínios mencionados que as particularidades afectas a este sujeito jurídico ganham maior relevância.
5
Na perspectiva da História Comparada das Mulheres, ver o interessante artigo de Anne Cova, "As promessas da História Comparada das Mulheres", in Anne Cova (Direção), História Comparada das Mulheres, Novas Abordagens, Livros Horizonte, 2008, págs. 13-28. 6 Paul Ricoeur, "Memória História e Esquecimento", Conferência proferida a 8 de Março de 2003 em Budapeste, sob o título “Memory, history, oblivion”, no âmbito de uma conferência internacional intitulada “Haunting Memories? History in Europe after Authoritarianism”.
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A análise das matérias relativas à situação jurídica das mulheres é especialmente
Esta caracterização é especialmente evidente em matéria de direitos e deveres do sujeito jurídico feminino, nomeadamente na instituição casamento e no exercício do poder paternal. A separação dos cônjuges merece também atenção, pelas diferenças de regime aplicáveis ao marido e à mulher. Em matéria penal, o regime de incapacidades cometido à mulher permite a consideração de que o género funcionava como uma causa limitativa de actuação. Veja-se, a este respeito, as restrições em matéria de aplicação de penas quando nos reportamos à punição feminina, bem como as situações de ilicitude em que a tipificação penal individualiza o sujeito jurídico mulher. Acrescente-se que frequentemente o estado civil da mulher condicionava o tipo legal estabelecido7. Mais recentemente, algumas temáticas de conteúdo penal permitiram refocar a importância das matérias relativas aos direitos das mulheres. Refiro-me à violência doméstica, ilícito penal concebido tendo por sujeito a mulher, pese embora a aplicação do crime em causa poder ter como agente igualmente o homem, embora tal suceda menos frequentemente. Para o século XIX e para os conteúdos familiares, importa ainda considerar os trabalhos efectuados por Eliana Gersão (1969), Elina Guimarães (1969) e António Hespanha (1995, p. 53-64), este último centrado na identificação da mulher como sujeito jurídico no período da expansão. Igualmente Maria dos Prazeres Beleza (1969) e Maria da Glória Garcia (2005) efectuaram estudos neste domínio, contributos relevantes para traçar o quadro jurídico actualmente vigente. Mais recentemente, Helena Pereira de Melo (2017) dedicou-se à análise dos direitos das mulheres no período do Estado Novo, abordando, nas várias áreas de actuação, o comportamento feminino e os regimes jurídicos aplicáveis. Igualmente Virgínia Baptista (2016) se tem dedicado, na perspectiva de Direito do Trabalho, à análise da situação das mulheres trabalhadoras nos séculos XIX e XX. No domínio laboral, são ainda de destacar os trabalhos desenvolvidos por Maria do Rosário Palma Ramalho (1997, p. 159-181) na área da igualdade
O contributo da sociologia e da antropologia para o estudo destas matérias é igualmente relevante, como nos atestam os trabalhos desenvolvidos por Pierre Bourdieu (2002) ao longo do século XX, deixando inquietações que ainda na actualidade procuramos responder8. João Esteves (2003, p. 63-78) alerta-nos igualmente para os contributos que a historiografia nos
7
Como sucedia relativamente ao crime de adultério, aplicável às mulheres casadas. Ver Ana Vicente, Os poderes das mulheres Os poderes dos homens, Lisboa, Gótica, 2002; Yannick Rippa, Les femmes, actrices de l'Histoire France 1789-1945, Armand Colin, 2002; Barbara Caine y Glenda Sluga, Género e Historia (tradução de Blanca de la Puente Barrios), Madrid, Narcea, 2000. 8
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e não descriminação.
pode fornecer no tratamento deste tema, nomeadamente considerando a bibliografia periódica reportada à emergência dos feminismos na primeira metade do século XX, em Portugal. Os trabalhos pioneiros de Regina Tavares da Silva (1999), em A Mulher: bibliografia portuguesa anotada (1518-1998), não podem igualmente ser esquecidos, atendendo à pesquisa bibliográfica de fontes oriundas da dogmática e das publicações na imprensa sobre a temática. Sem esquecer os importantes contributos para as matérias em análise efectuados pela doutrina produzida fora da esfera nacional, iremos concentrar a nossa análise na dogmática portuguesa, por uma questão de acesso dos destinatários deste estudo às fontes documentais e tendo em vista a análise ser concentrada no Código Civil Português de 1867. De qualquer forma, sempre que entendermos conveniente abordaremos textos cujo interesse para a compreensão da ordem produzida na esfera interna seja relevante.
2. O TRATAMENTO JURÍDICO DADO À MULHER NAS ORDENAÇÕES FILIPINAS E NA LEGISLAÇÃO OITOCENTISTA
O tratamento da mulher como sujeito jurídico na dogmática e na literatura não jurídica dos séculos XVIII e XIX denuncia a ausência de reconhecimento deste sujeito. Na realidade, percorrendo os tratados jurídicos dos séculos XVIII e XIX9, bem como a variada literatura de conselho10 existente, verificamos que a mulher é abordada enquanto sujeito dependente face ao marido sendo casada e, não estando casada, em submissão perante o poder paternal. Igualmente a mulher viúva é objeto de tratamento do legislador, regulando, a este propósito, os interesses patrimoniais envolvidos após o falecimento do marido e a intenção de realização de segundo casamento. É portanto, sempre por relação com uma figura de autoridade que a mulher é analisada, quer nos reportemos ao legislador oitocentista, quer à literatura produzida em matéria
A herança presente nos antecedentes da codificação, nomeadamente nas Ordenações Filipinas, explica a natureza dependente da mulher, evidenciada pela celebração do casamento. Neste sentido, encontramos no Livro IV das Ordenações o tratamento das matérias com 9
São muito variadas as obras produzidas consoante o objectivo que presidiu à sua elaboração. De relevância inegável surgem os Promptuarium Jvridicvm de Benedictus Pereyra e as colectâneas de jurisprudência de António da Gama de 1683 e de António Cardoso do Amaral. Para os séculos XVIII e XIX, as obras de Melo Freire são também uma referência importante, nomeadamente as Instituições de Direito Civil Português. 10 Destaco, a título de exemplo, três obras, cuja importância é indiscutível para a formação do direito português: João de Barros, Espelho de Casados, de 1540, Diogo Paiva de Andrade, Casamento Perfeito, de 1630 e Francisco Manuel de Melo, Carta de Guia de Casados, de 1650.
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civil e penal.
conteúdo familiar11, embora o legislador não reconheça à família a dignidade de área especial do Direito12. No Título XLVII admite-se a celebração do contrato de dote e arras, através do qual o homem promete dar à sua mulher "a quantia ou quantidade certa, que quizer, ou certos bens, assi de raiz, ou certa cousa da sua fazenda, comtanto que não passe o tal promettimento, ou doação de arras da terça parte do que a mulher trouxer em seu dote"13. Estabelece-se assim, um princípio de protecção patrimonial da mulher, mais evidente havendo descendentes legítimos da união14. Em matéria de administração de bens do casal, o legislador filipino descreve alguns actos de alienação15, venda16, constituição de fiança17 ou de doação18, definindo regimes jurídicos diversos. O cônjuge marido assume o papel directivo na vida conjugal, colocando a mulher em situação de dependência, actuando esta apenas quando da intervenção masculina possam ser ameaçados bens nucleares do património conjugal. Borges Carneiro, importante civilista do século XIX, justifica os regimes descritos na incapacidade feminina para doar, prometer ou celebrar contratos, tendo por referência o costume do reino e praxe de julgar, a que se associa a natural fragilidade feminina19. Transcrevemos as suas palavras, pela clareza:
[...] porque muitas vezes as mulheres, por medo, ou reverencia dos maridos deixam caladamente passar algumas cousas, não ousando de as contradizer por receio de alguns scandalos e perigos, que lhes poderiam advir 20.
Refira-se, aliás, que em situação de incumprimento do estabelecido na lei, a mulher tem legitimidade para revogar a acção do marido, exigindo-se, no entanto, para estar em juízo, autorização deste, o que não deixa de causar perplexidade, uma vez que mesmo numa situação aparentemente protegida pelo legislador se requer a autorização marital. O legislador filipino
11
Ver, em especial no Livro IV, os Títulos XLIV, XLV, XLVI, XLVII e XLVIII. O que não diminui a importância que determinadas matérias assumiam na vida familiar, denunciando a especialidade de tratamento que posteriormente vieram a merecer. Para maiores desenvolvimentos, ver Míriam Afonso Brigas, As relações de poder na construção do direito da família português, 1750-1910, Associação Académica da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2016. 13 Ordenações Filipinas, Livro IV, pág. 836. 14 Idem. 15 Ordenações Filipinas, Livro IV, Título XLVIII, pág. 837. 16 Idem. 17 Idem, pág. 856. 18 Idem, págs. 865, 867, 868 a 871. 19 Cfr. Manuel Borges Carneiro, Direito Civil de Portugal contendo três livros: I das pessoas; II das cousas; III das obrigações e acções, Tomo II, Impressão Régia, Lisboa, pág. 86. 20 Idem, pág. 838. 12
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admitiu, no entanto, que as situações de falta de autorização podiam ser supridas por autorização
régia, "salvo sendo ella tão desasizada que se podesse mover a isso sem justa razão, nem soubesse governar a demanda"21. Foram ainda estabelecidas normas para as mulheres viúvas e para as que, tendo mais de cinquenta anos e filhos desejam celebrar novo casamento22. Neste sentido, apesar de o legislador proibir a infâmia destas mulheres, estabelece regras restritivas para a administração do património recebido do marido falecido, o que novamente nos esclarece acerca do entendimento existente acerca da administração feminina. Em matéria de prática de crimes, o Livro V das Ordenações aplica um diferente tratamento para o infractor, consoante o género do sujeito. Assim, podemos afirmar que as Ordenações encaram a mulher numa dupla perspectiva: ser dependente das ordens emanadas do chefe de família, o que é justificado pela natureza menos esclarecida da mulher, e como sujeito necessário para validar determinados actos de administração patrimonial do marido. Em consequência, a vida doméstica era encarada como uma continuação perfeita dos papéis assumidos por cada elemento do casal. Ao marido, a administração do património familiar, à mulher a actividade intra muros, manifestada na gestão da casa e na educação dos filhos. A legislação oitocentista preocupou-se com a regulamentação dos aspectos patrimoniais das principais instituições familiares, como o casamento e o poder paternal, assistindo-se à crescente formalização dos actos jurídicos. Relativamente à situação jurídica da mulher, verifica-se a manutenção da dependência patrimonial da mulher casada, impedida de administrar os seus bens próprios, conforme estipula o Decreto de 4 de Fevereiro de 1765, que estabelece o montante máximo de alfinetes a receber pela mulher nos contratos matrimoniais. Curiosamente a Lei de 3 de agosto de 1770, que procede à abolição dos Morgados em Portugal, invoca ser esta instituição contrária "á justiça e á igualdade" (FIGUEIREDO, 1970, p. 1), afastando os Morgados de Agnação e de Masculinidade contrários ao nosso direito por serem causa "das ruinas das Familias inteiras, vendo passar á vista das proprias Filhas dellas os
às promessas de casamento, bem como os princípios vigentes em matéria de querelas de estupro. Contrariamente ao estabelecido nas Ordenações, o legislador oitocentista presume que a mulher maior de 17 anos, que tenha celebrado esponsais não possa invocar a querela de estupro para invocar o direito à celebração do casamento24.
21
Idem. Ordenações Filipinas, ob. cit., Livro IV do Título CV, pág. 1011 e ss. 23 Idem, pág. 6, onde consta a Lei de 3 de agosto de 1770. 24 Para maiores desenvolvimentos ver Míriam Afonso Brigas, ob. cit., pág. 196 e ss. 22
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seus Patrimónios a estranhos"23. A Lei de 6 de outubro de 1784 estabelece o regime aplicável
A compreensão da forma como a codificação civil encarou a situação da mulher tem necessariamente de ter em consideração a posição subalterna detida por este sujeito, exigindose o consentimento feminino para a validade de certos actos, com a consequente recusa do consentimento tácito pelo temor reverencial que caracteriza a actuação feminina face ao marido.
3. O CÓDIGO CIVIL DE 1867 E A SITUAÇÃO DA MULHER EM ESPECIAL
A mulher aprende em silêncio, com toda a submissão. Visto que não permito que a mulher ensine ou tenha autoridade sobre o homem, mas quero que fique tranquila. (São Paulo)
O Código Civil de 1867 incorpora alguns dos princípios referidos nos pontos anteriores, positivando o conceito da mulher burguesa, inserida numa estrutura familiar monogâmica, patriarcal e heterossexual. Neste capítulo vamos analisar o estatuto jurídico atribuído à mulher na legislação civil, incidindo na primeira codificação civil portuguesa. O estudo abordará, por isso, as matérias relativas ao casamento, ao exercício do poder paternal e à separação dos cônjuges, esta última realidade bastante diferenciada do regime que virá posteriormente a ser admitido na legislação republicana de 191025. O artigo 9.º da Constituição de 1822, bem como o artigo 145.º da Carta Constitucional e o artigo 10.º da Constituição de 183 estabelecem a igualdade de tratamento entre homem e mulher, não limitando o exercício de funções públicas por qualquer um destes sujeitos (MIRANDA, 1992). Na realidade, apenas a capacidade/mérito podia condicionar o desempenho das funções mencionadas. De igual forma se estabelecia no artigo 7.º do Código nem de sexo, salvo nos casos que forem especialmente declarados"26. Pode, portanto, concluir-se que apesar da consagração constitucional da igualdade como princípio, a lei civil admitia excepções, justificadas pela fraca preparação intelectual da mulher e pela natural apetência do homem para as funções de direcção da vida familiar. Importa referir que o legislador civil não identifica as situações merecedoras de regime de excepção, o
25
Cfr. Decreto de 3 de Novembro de 1910, que aprova o regime jurídico do divórcio para os casamentos civis. Código Civil Português, aprovado por carta de lei de 1 de Julho de 1867, 1925, Livraria Avelar Machado, Lisboa, pág. 10. 26
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Civil de 1867 que enunciava que "a lei é igual para todos, não fazendo distinção de pessoas,
que leva autores como Elina Guimarães (1962, p. 36) a apelidarem o artigo 7.º de preceito simnão, uma vez admitir a igualdade para, de seguida, a afastar.
3.1 A mulher casada
Iremos analisar a situação jurídica da mulher casada, considerando que é pelo casamento que a mulher alcança um novo estatuto jurídico, em vários aspectos limitativo face ao vigente para as mulheres solteiras. De referir, aliás, que as mulheres que não são casadas não são normalmente objeto de atenção por parte do legislador. O elemento determinante para a definição do regime jurídico aplicável à mulher está condicionado pela posição que esta ocupa na vida familiar. Sendo casada, a mulher assume duas funções de particular relevância: de mulher e de mãe, o que se justifica considerando que o casamento era responsável pela alteração da situação jurídica da mulher, limitando-a no exercício de direitos. O artigo 1185.º do Código Civil enuncia os princípios vigentes em matéria de casamento, definindo as coordenadas da relação conjugal. O homem tinha como competência a protecção e a defesa da mulher e esta a devida obediência. Esta obediência era justificada na natural fragilidade feminina, na linha do já referido por Aristóteles, que afirmava que a mulher deixada à sua sorte seria facilmente manipulável. Como já mencionámos, várias construções filosóficas auxiliaram este entendimento. Em consequência, o artigo 1184.º do Código veio estabelecer os deveres observados entre os cônjuges, enunciando como obrigação, "guardar mutuamente fidelidade conjugal", "viver juntos" e "socorrer-se e ajudar-se mutuamente"27. Na letra da lei estava, portanto, assumida a igualdade, no entanto, a realidade desmentia a bondade destes princípios, que colocavam a mulher em posição de natural subalternidade. Acrescente-se que à mulher se exigia ainda um dever de maternidade, função naturalmente esperada de toda a mãe de família.
citadina, associada à classe burguesa, naturalmente instruída? Os comentadores do código são unânimes na classificação da mulher positivada na codificação. Estamos perante a mulher burguesa, instruída, e inserida numa estrutura patriarcal de poder. Neste sentido se compreendem as limitações aplicáveis à mulher casada quando pretende publicar as suas obras, o que não poderá fazer "sem o consentimento do marido", conforme preceitua o artigo 1187.º do Código Civil28. 27 28
Cfr. Código Civil Português, ob. cit., pág. 263. Idem.
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Que mulher é mencionada pelo legislador de 1867? A mulher rural ou a mulher
Admite-se, no entanto, o suprimento judicial da recusa marital, o que demonstra que o legislador reconhece que nem sempre a vontade do marido acautela os interesses da mulher. A mulher casada está ainda obrigada a acompanhar o marido, sendo apenas excepcionadas as situações em que este se desloca para país estrangeiro, à luz do artigo 1188.º. Está ainda impedida de abandonar o marido, salve se ocorrerem situações susceptíveis de serem classificadas como "sevícias e injúrias graves", nos termos do artigo 1204.º n.º 4 do código29. A concretização do que sejam as sevícias graves é matéria objecto de discussão doutrinária, tendo competido essencialmente aos tribunais a densificação do conceito, à semelhança do que sucedeu com outras expressões vagas e indeterminadas presentes no código30. Refira-se ainda, que em situações em que a convivência dos cônjuges se tornasse insuportável e a mulher fugisse de casa, o código reconheceu ao marido a faculdade de a mandar prender, à luz do disposto no artigo 665.º do Código de Processo Civil de 1876. A dependência económica da mulher era igualmente um dado inquestionável, na medida em que, uma vez casada, deixava de ser administradora dos seus bens, já que, à luz do artigo 1189.º o marido era o natural administrador dos bens do casal, prorrogativa da qual não podia ser privado nem por convenção antenupcial (artigo 1104.º). É portanto, uma faculdade de natureza masculina, em articulação com a definição do que eram as actividades da mulher, em contraposição com as do homem. Veja-se que a acção da mulher em matéria de administração apenas ocorre por falta ou impedimento do marido. O artigo 1190.º define os limites apertados desta actuação da mulher, sujeita à supervisão de um conselho de família e do Ministério Público caso queira alienar bens imobiliários. Posteriormente, no início do século XX, Virgínia Woolf (2008) teorizará no Estatuto Intelectual da Mulher e nas Profissões para Mulheres acerca da feminilidade inerente ao exercício de determinadas profissões, retomando a matéria em análise. A administração reconhecida ao marido, incluindo os bens próprios da mulher, acentua
este princípio vigente nas relações conjugais, como efectuou o Acórdão da Relação do Porto de 21 de Julho de 1857, em momento anterior à vigência do código, enunciando nos seguintes termos:
29
Idem, págs 266 e 267. Ver, a este propósito, o estabelecido no artigo 144.º do código cívil, quando se reportava ao conceito de filhos desobedientes e incorrigíveis. 30
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definitivamente a natureza dependente da mulher casada. Várias decisões judiciais enfatizaram
[...] sendo certo em direito que o homem casado é o único e legal administrador dos bens e direitos pro indiviso de casal commum, que o marido não pode ser privado do exercício da mesma administração, sem sentença ou de prodigalidade ou de demencia ou de separação de corpos com divisão de bens: que esta administração seja exclusiva a favor do marido, lhe compete a iniciativa e respeito de todos os actos prejudiciaes ao mesmo casal, e em que só carece do consentimento de sua mulher, sem que os actos da mesma administração, possam importar alienação ou cedencia de direitos sobre bens de raiz.31
O artigo 1104.º acautela alguma liberdade económica à mulher, ao permitir uma forma de sustento feminino, que consistia na possibilidade desta auferir uma parte dos rendimentos comuns "contanto que não exceda a terça parte dos ditos rendimentos líquidos"32. Eram os chamados alfinetes. Verifica-se, portanto, que a mulher age sempre por referência à actuação do marido ou na dependência de um acto autorizador da sua intervenção. Por contraposição, o marido age a título principal, sendo o sujeito com habilitação própria nos termos da lei. Dias Ferreira (1872, p. 73), importante comentador do código, critica o regime jurídico descrito, por o considerar anti-liberal, tendo preferido que tivesse sido permitido à mulher a administração dos bens de onde eram percepcionados os rendimentos. Este autor alerta ainda para a diferenciação de regimes jurídicos vigentes em matéria de dívidas por parte do marido e da mulher, já que esta está impedida de as contrair sem a autorização do marido, podendo este realizá-las independentemente do regime de bens aplicável. Veja-se a este respeito, o estabelecido no artigo 1114.º § 2.º, que enuncia que as dívidas contraídas pelo marido na constância do casamento sem outorga da mulher, aplicadas em proveito comum dos cônjuges obrigam os bens comuns. Em matéria de alienação de bens, os regimes de bens previstos definiam diferentes regras a observar pelos cônjuges. No casamento segundo o costume do reino o marido podia
mulher. Relativamente aos bens imóveis, o legislador estabelece regras mais rígidas, já que “não podem ser alheados ou obrigados por qualquer forma, sem consentimento e acôrdo comum” (artigo 1119.º). O facto de o marido ser reconhecido como o administrador do património conjugal enaltece a sua posição na vida familiar, colocando a mulher na sua dependência. Na realidade,
31
Collecção dos Accordãos que conteem matéria legislativa proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça, Tomo II, 1871, págs. 242 e 243. 32 Cfr. Código Civil Português, ob. cit., pág. 247.
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dispor livremente dos bens móveis do casal, mas não os podia alienar sem consentimento da
o princípio vigente centra-se na autorização marital, que permitiria o exercício de certos actos por parte da mulher. O legislador civil não define o que entende por autorização marital, limitando-se a enunciar os actos em que considera indispensável a sua intervenção. O acto de autorização marital pode ter natureza expressa ou tácita, nos termos preceituados no artigo 1195.º do código. A autorização deve, no entanto, ser especial para cada um dos actos praticados pela mulher (artigo 1194.º). No caso da mulher comerciante, o regime excepcional que lhe é aplicável permite a prática de actos do seu comércio "e até hipotecar os seus bens imobiliários e propor ações, contanto que seja por causa do seu trato"33. Sem dúvida, uma liberdade especial face ao quadro geral de restrições vigentes para a mulher. Naturalmente que após o casamento, a mulher que exercia actividade como comerciante fica condicionada, sendo necessário autorização marital para a continuidade desta actividade. A presença em juízo estava igualmente sujeita a autorização do marido34, inclusive nas causas em que a mulher litigava contra o próprio, o que nos demonstra a incapacidade da mulher sendo casada. Qual o fundamento da autorização marital? A existência de autorização marital demonstra o poder do marido na estrutura conjugal, tendo o autor do código, António Luís de Seabra, entendido que a gestão de um património comum exigia uma actuação diligente e eficaz da massa de bens. Neste sentido, e encarando a diferente natureza dos elementos do casal, atribuiu ao marido esta função. Refira-se, no entanto, que o legislador considerou que nem sempre o marido seria o melhor intérprete do interesse da família, o que justifica o artigo 1193.º § único, que reconhece a figura do suprimento judicial ocorrendo recusa indevida de autorização. Neste caso, admite-se a audição do marido, após o que o juiz concede ou nega o suprimento. Seja como for, a construção da figura da autorização implica o reconhecimento de um sujeito com competência superior, que decide acerca da autorização e o autorizado que é
considera que através desta instituição se salvaguarda "o interesse da associação conjugal, e a deferencia que a mulher deve ao marido collocando-a na obrigação de não praticar actos importantes sem a sua auctorisação"35. Veja-se que o artigo 1198.º refere que em matéria de efeitos do acto autorizado o marido é responsável pela actuação feminina. A jurisprudência
33
Código Civil Português, ob. cit., artigo 1194.º, pág. 265. Idem, artigo 1192.º, pág. 264. 35 Guilherme Alves Moreira, Instituições de Direito Civil Português, Tomo III, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1907, págs. 13 e 14. 34
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destinatário da decisão do primeiro. Alves Moreira (1907, p. 13-14), comentador do código,
auxiliou a concretização dos termos associados ao conceito de autorização marital, contribuindo para esclarecer as situações em que se admitiu o suprimento judicial da recusa marital36.
3.2 A mãe casada e a mãe viúva
O diferente tratamento da mulher casada estava igualmente presente em matéria de Poder Paternal. Nestes termos, os artigos 137.º. 138.º e 139.º do Código Civil estabelecem os princípios aplicáveis a esta instituição, identificando o papel cometido aos progenitores:
Artigo 137. Aos pais compete reger as pessoas dos filhos menores, protegê-los e administrar os bens dêles: o complexo destes direitos constitui o poder paternal. Artigo 138. As mães participam do poder paternal, e devem ser ouvidas em tudo o que diz respeito aos interesses dos filhos; mas é ao pai que especialmente compete durante o matrimónio, como chefe de família, dirigir, representar e defender, seus filhos menores, tanto em juizo como fora dele. Artigo 139. No caso de ausência ou de outro impedimento do pai, fará a mãe as suas vezes37.
Depreende-se, portanto, que o papel assumido pela mãe surge com natureza subsidiária ou complementar face ao papel do progenitor masculino, na medida em que intervém nos impedimentos e ausências do pai. Considerando o papel de chefe de família é a este que se atribui a competência para decidir sobre os principais assuntos da vida familiar, nomeadamente desempenhar os actos relacionados com a vida dos filhos. Em consequência, o papel de representação e defesa dos filhos é atribuído ao pai de família. Quando se reconhece a actuação da mãe o legislador parece querer alertar para o facto desta intervenção dever ocorrer tendo por referência o modelo da actuação paterna, já que
de audição materna, em nosso entender uma espécie de auscultação de sensibilidades, um "parecer de carácter não vinculativo, necessário para o processo de decisão"38. Sabemos aliás, que este processo de audição era frequentemente relegado para segundo plano para defesa de outros interesses paternos. Alguns autores consideram esta audição obrigatória, não podendo
36
Como se verifica no disposto no Acórdão da Relação de Lisboa de 25 de Abril de 1876, in Collecção dos Accordãos que contéem matéria legislativa proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça, Tomo I, 1871, págs. 274 e 275. 37 Código Civil Português, ob. cit., págs. 38 e 39. 38 Neste mesmo sentido, ver Míriam Afonso Brigas, ob. cit., pág. 941.
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expressamente se refere que a mãe "fará as suas vezes". Consagra-se, portanto, um mero direito
ser afastada com fundamento na autoridade paterna que a podia considerar desnecessária. É a posição defendida por Dias Ferreira, para quem a não audição da mãe implica a nulidade da decisão tomada pelo pai. Os civilistas do século XIX que se pronunciaram sobre esta matéria consideram que o legislador positivou o sentimento social sobre as funções dos progenitores. Neste sentido, Borges Carneiro refere que "os direitos e obrigações da mãi não tem relação com o poder paterno, mas sómente com a reverencia que os filhos lhe devem"39. Coelho da Rocha considera que ainda que se limite a actuação feminina em matéria de poder paternal, existem um conjunto de deveres, como o respeito e a obediência filial, que devem ser observados40. Refira-se, no entanto, que o estado civil da mãe condiciona a sua actuação como progenitora, nomeadamente sendo viúva ou celebrando segundo casamento. A preocupação comum nas situações enunciadas reportava-se à existência de filhos menores, sendo privilegiada a situação da mulher viúva, por se entender que ocorrendo nova união esta podia ser influenciada pelo segundo marido. O legislador pressupõe que a mulher viúva está em situação de fragilidade, estabelecendo, por isso, caso esteja grávida à data da morte do marido, a nomeação de um curador ao ventre com a função de gerir o património do nascituro41. Novamente se manifesta desconfiança perante a actuação feminina autónoma, condicionando a mulher à administração de um curador que supostamente interpretaria o melhor interesse do nascituro. O legislador reconhece ainda a possibilidade estabelecida no artigo 159.º de o pai nomear em testamento conselheiros que “dirijam e aconselhem a mãe viúva em certos casos ou em todos aqueles em que o bem dos filhos o exigir”42. Depreende-se, assim, que o pai pode definir os termos em que será exercido o poder paternal após a sua morte, bem como condicionar o âmbito do mesmo, tendo sempre por pressuposto as naturais limitações da mulher. Apesar de não considerar a mulher incapaz, o legislador rodeia-se de cautelas acerca
O artigo 161.º restringe activamente a actuação da mãe viúva, condicionando o âmbito da sua acção:
A mãe, que em prejuízo dos seus filhos, deixar de seguir o parecer do conselheiro nomeado pelo pai, ou por qualquer outro modo, abusar da sua autoridade materna,
39
Manuel Borges Carneiro, ob. cit., Tomo II, pág. 258. Manuel Coelho da Rocha, ob. cit., Tomo I, pág. 213. 41 Código Civil Portuguez, ob. cit., pág. 43, artigo 157.º. 42 Idem. 40
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do modo de exercício do seu poder, interferindo directamente na função parental.
poderá ser inibida, por deliberação do conselho de família, a requerimento do dito conselheiro, do curador, ou de qualquer parente dos filhos, de reger as pessoas e bens destes. § único – Neste caso nomeará o conselho de família pessoa que sirva de tutor aos filhos menores, nos termos dos artigos 185.º e ss43.
Estava, portanto, estabelecida uma situação de clara limitação de exercício da actividade materna, admitindo-se que caso a mulher se afastasse do parecer do conselheiro nomeado, “em prejuízo dos seus filhos”, haveria uma situação de abuso de poder, legitimandose o conselheiro nomeado de iniciar o processo de inibição. A actividade jurisprudencial demonstra-nos que era frequente a invocação da incapacidade feminina para justificar as acções de inibição da mulher, demonstrando que o exercício do poder paternal era concebido como uma actividade masculina. Neste sentido se compreende o Acórdão de 24 de agosto de 1877, que refere que a mãe é titular do poder paternal após o falecimento do pai, não podendo este ser suspenso fora das situações do artigo 168.º do código44. O tratamento da mulher bínuba merece igualmente atenção, pela desconfiança com que o legislador encara a sua actuação, embora exista igualmente reprovação relativamente ao homem viúvo que celebra novo casamento. Nesta situação, a mulher fica obrigada ao pagamento de caução no que se refere ao usufruto dos bens dos filhos caso seja mantida na administração dos bens dos filhos pelo conselho de família (artigos 162.º e 224.º 1.º). Caso a administração dos bens não seja atribuída à mãe, o legislador estabelece que deverá ser um terceiro, com funções equiparáveis a um tutor, nomeado por um conselho de família, a gerir os bens. Neste caso, a mulher apenas mantém o seu poder em matérias do foro pessoal, podendo solicitar ao conselho de família as mesadas convenientes. Veja-se que se a mãe voltar a enviuvar o legislador reconhece-lhe novamente capacidade para exercer as suas funções maternas, como estabelece o artigo 164.º, o que denuncia a desconfiança relativamente
A formação do próprio conselho de família denuncia a preferência paterna, já que se estabelecia que na sua constituição estariam presentes cinco parentes próximos do menor, dos quais três seriam da linha paterna e dois da materna (artigo 207.º). Eram aliás, excluídas como vogais do conselho de família, “as mulheres, excepto as ascendentes do menor”45, perpetuando as limitações inerentes ao género feminino. O regime criado, afastando a mulher da 43
Idem. Cfr. Colleção dos Acordãos que conteem matéria legislativa ..., ob. cit., Tomo 8, ob. cit., págs. 492 e 493. 45 Codigo Civil Portuguez, ob. cit., pág. 59. 44
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à influência operada na mulher pelo seu segundo marido.
administração dos bens dos filhos, colocando um terceiro para o exercício destas funções, demonstra como o legislador desconfia da bondade da actuação feminina. Tratamento particular merece a situação da mulher viúva que pretende contrair novo casamento, antes de decorrido o prazo internupcial enunciado no artigo 1233.º do código. Estabelece o legislador a obrigação desta verificar se está ou não grávida, comportamento que se não for observado implica a perda de “todos os lucros nupciais que por lei ou convenção tenha recebido ou haja de receber por parte do marido anterior, os quais passarão aos legítimos herdeiros deles”46. Tendo mais de cinquenta anos o legislador define igualmente regime particular. A mulher não poderá “alhear por titulo algum, desde o dia que haja contraído segundo matrimónio, a propriedade das duas terças partes dos bens mencionados no artigo 1235, emquanto tiver filhos e descendentes que os possam haver.”47 Não encontramos norma paralela para os homens viúvos com mais de cinquenta anos.
3.3 Separação dos cônjuges
Se surpreenderes a tua mulher em adultério matá-la-ás impunemente sem processo; se fores tu a trair, ela não te tocará nem com um só dedo. (Catão)
Falta-nos abordar a separação dos cônjuges como instituição perpetuadora da desigualdade de tratamento entre homem e mulher. Neste sentido, o código reconhecia a separação de pessoas e bens, distinguindo as causas legítimas possíveis de separação:
Artigo 1204. Podem ser causa legítima de separação de pessoas e bens:
2.º O adultério do marido com escândalo público ou completo desamparo da mulher, ou com concumbina teúda e manteúda no domicílio conjuga” 48.
Enquanto a prática do adultério feminino configura-se como elemento suficiente para a acção de separação, no caso do marido existem um conjunto de exigências relacionadas com a visibilidade social que fundamentam o regime jurídico criado. A violação do dever de 46
Idem, pág. 273. Idem, págs. 273 e 274. 48 Idem, págs. 266 e 267. 47
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1.º O adultério da mulher;
fidelidade é o elemento determinante da separação, diferentemente valorada consoante o agente. Parece aceitar-se o adultério masculino com maior facilidade face ao feminino, exigindo-se da mulher um comportamento compreensivo da infidelidade masculina, desde que esta se enquadrasse nos limites do decoro da época. A doutrina do século XIX foi especialmente prolixa no tratamento desta matéria, tendo Coelho da Rocha chegado a afirmar que apenas se devia admitir o adultério feminino como causa de separação, juntamente com a causa descrita no ponto 4 do artigo 1204, as sevícias e injúrias graves. A coisificação da mulher reflecte igualmente o diferente tratamento aplicável uma vez intentada a separação, já que se admitia a figura do depósito provisório da mulher como meio de justificar o afastamento do lar conjugal, atendendo a que a sua permanência podia ser ameaçadora para a sua segurança física (artigo 1206.º § 4.º). O Código de Processo Civil de 1876 veio desenvolver o regime jurídico previsto no Regulamento do Processo nas Causas de Separação, concretizando os termos em que se admitia o recurso à figura do depósito. Refirase ainda que o artigo 1210.º § único definia um regime específico em caso de adultério da mulher, estabelecendo que esta não tinha direito a separação de bens, mas apenas de alimentos. Por último, gostaríamos de referir ainda a diferença de regimes aplicáveis ao homem e à mulher em matéria de nacionalidade havendo a celebração de casamento. O artigo 22.º n.º 3 do código estabelece que a mulher portuguesa que case com um estrangeiro perde a nacionalidade, direito recuperável após a dissolução do casamento. Não encontramos idêntico regime aplicável na situação inversa, o que nos permite concluir que o legislador desconsidera o comportamento feminino nesta situação particular, estabelecendo regime jurídico penalizador. Teresa Beleza interpreta o tratamento legislativo desta matéria como uma manifestação do princípio da unidade de regime familiar, atendendo à relevância do papel do marido na vida familiar49.
1867 exige o conhecimento do pensamento filosófico e jurídico que antecede a positivação, tendo o primeiro código reflectido as concepções inerentes à construção da família monogâmica patriarcal herdada do Antigo Regime. Na realidade, o pensamento liberal positivado em oitocentos em matéria de estatuto da mulher não reflecte a ideologia da Revolução Francesa, tendo-se de aguardar pelo Código Civil de 1966 e consequente reforma de 1977 para ver consagrada a igualdade de regime entre os cônjuges. 49
Cfr. Maria Teresa Couceiro Pizarro Beleza, Mulheres, crime ou perplexidade de Cassandra, AAFDL, Lisboa, 1993, pág. 145.
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Conclui-se, portanto, que a análise da situação jurídica da mulher no Código Civil de
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Da análise efectuada conclui-se que a mulher, enquanto sujeito de direito, foi objecto de tratamento diferenciado consoante o período histórico e a situação que a mesma ocupava na estrutura social e familiar. Naturalmente que a influência do pensamento erudito presente na variada literatura de conselho e na herança do direito canónico contribuía igualmente para a formação de um determinado regime jurídico, fortemente restritivo quando a mulher casava ou ficava viúva. As limitações presentes assumem especial relevância em matéria patrimonial, condicionando significativamente a possibilidade de alienação de bens. Sendo mãe, o exercício do poder paternal era fortemente restringido pelo titular do poder de direcção na vida familiar, o marido e pai, tendo apenas um direito de mera participação nas funções de maternidade. Este regime é especialmente penalizador no Código Civil de 1867, no qual se estabelece regime limitativo para a situação jurídica da mulher. A doutrina civilista do século XIX acabou por interpretar as disposições do código à luz dos próprios enquadramentos constitucionais existentes, corroborando a estrutura patriarcal, heterossexual e monogâmica já presente na legislação.
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THE WOMAN IN THE CIVIL CODE OF 1867: THE SLOW RECOGNITION OF THE LEGAL SUBJECT OF WOMEN
ABSTRACT By proposing to analyze the legal situation of women in the Civil Code of 1867, we consider it appropriate to carry out the approach by dividing it into three moments. Firstly, to study the importance of women as subjects of law, providing the necessary framework for understanding 78
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Lisboa, Padrões Culturais, 2008. Tradução de: Manuela Felício.
the positive regimes. Secondly, let us devote ourselves to the special treatment of this subject in the Philippine Ordinations and the varied extravagant legislation produced in the seventeenth and eighteenth centuries. The third part focuses on the analysis of women in the Civil Code of 1867. Here we will try to provide the reader with a coherent picture of the role of women in the first Portuguese civil code. Keywords: Woman. Family. Rights. Philippine Ordinations. Civil
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Code of 1867.
79
O
QUE
SIGNIFICA
“SER
CIVILIZADO”?
INTERPRETANDO
O
TIPO
CONSTITUCIONAL MODERNO Mário Sérgio Falcão Maia1
RESUMO Trata-se de pesquisa epistemologicamente compreensiva/simbólica sobre o fenômeno jurídico. Objetivou-se descrever as características do “tipo constitucional” moderno a partir da análise de elementos da teoria contratualista/constitucional. Pretendeu-se contribuir para um debate não maniqueísta acerca da formação histórica e da situação simbólica atual dos projetos constitucionais modernos formalmente em vigor nos mais diversos países formadores da cultura “civilizada” ocidental. Constata-se certa desvalorização social, ou diminuição do capital simbólico, do referido tipo ideal no ambiente político atual. Palavras-chave: Civilização. Racionalismo. Liberdade. Tolerância.
Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedeça, contudo, a si mesmo e permaneça tão livre quanto antes’. Este é o problema fundamental cuja solução é fornecida pelo contrato social. 1
Doutor em Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2014). Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba (2008). Professor de Filosofia do Direito da Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA).
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Tipo constitucional.
(Jean-Jacques Rousseau)
Quando a mútua consideração e tolerância não servem a qualquer propósito, jamais poderão dirigir a conduta de qualquer pessoa razoável. (David Hume)
1 INTRODUÇÃO: O CONSTITUCIONALISMO MODERNO COMO UTOPIA SOCIAL FUNCIONAL
Sob o ponto de vista de uma filosofia existencial (MAIA, 2018), somos seres marcados pela angústia. Sob esse olhar, é possível afirmar que buscamos elementos que nos possibilite a sensação de tranquilidade para viver a vida na cotidianidade, sem os desgastes causados pelas reflexões profundas. Numa sociedade secularizada o direito é um desses elementos tranquilizantes, que, ao estabelecer e instrumentalizar uma determinada ordem, ocupa o lugar que já foi do discurso mitológico e religioso no âmbito mais amplo da cultura humana ocidental. O “efeito coletivo”, decorrente da crença socialmente compartilhada acerca de um modelo de utopia social a ser alcançado2, foi elemento simbólico importante no estabelecimento da ordem cultural liberal e burguesa. Essa ordem foi “juridicizada” com o movimento de positivação do direito constitucional, principalmente a partir das chamadas revoluções liberais no final do século XVIII. Nesse contexto, o direito e o saber dos juristas (dogmática) desempenham marcante função social de estabilização3. Na cultura secular moderna, o direito constitucional positivo e a sua ideologia assumem um papel de destaque na medida em que estabelecem um “modelo” de civilização moderno materializa um determinado “espírito”, o espírito ocidental da modernidade
Esse “efeito coletivo” foi percebido por Durkheim que falou da força social das “convicções partilhadas”: “Com efeito, é um fato constante o de que, quando uma convicção um pouco forte é partilhada por uma mesma comunidade de homens, ela adquire inevitavelmente uma característica religiosa, ela inspira nas consciências o mesmo respeito reverencial que as crenças propriamente religiosas.” (1999, p. 151). 3 Essa “imagem” do direito Constitucional como agente estabilizador, capaz de assentar uma ordem a partir da qual as pessoas podiam viver “seguras” o seu dia a dia, pode ser entrevista na fala de Sieyès, quando pretende traduzir uma ideia corrente no seu tempo (séc. XVIII) “As pessoas se dizem: ao abrigo da segurança comum, poderei me entregar a meus projetos pessoais, irei atrás da minha felicidade como quiser, certo de só encontrar limites legais aqueles que a sociedade me prescreve pelo interesse comum em que tomo parte com o qual o meu interesse particular fez uma aliança tão útil.” (2014, p, 61). 2
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apreciado, valorizado. Assim, pode-se dizer que vigência social do pensamento constitucional
racionalista de perfil liberal e burguês. Como age aquele que materializa esse espírito? O que significa “ser civilizado”? Quais as características desse “tipo ideal”? Apesar de criticado, o “ser civilizado” moderno quase sempre manteve um significativo prestígio social no ocidente, ou seja, esse foi um modelo dotado de significativa quantidade de capital simbólico e foi, inclusive, “produto” de exportação cultural do ocidente. Hoje, no entanto, a situação apresenta alguma mudança. É politicamente relevante – no sentido de ser um pensamento que ganhou espaço institucional – o discurso político vulgarizado que faz uma valoração negativa desse projeto civilizatório ou civilizacional. A ascensão dessas vozes ao parlamento põe os defensores do “projeto civilizatório” ocidental da geração atual numa situação “nova”, que não era vivida desde a segunda guerra, a situação de ter de voltar a defender esse modelo como um modelo funcional de utopia social. Refletindo sobre esse tema, nesta pesquisa epistemologicamente compreensiva, pretendi contribuir para uma análise não maniqueísta acerca da formação histórica e da situação simbólica atual dos projetos constitucionais modernos. Esses projetos civilizatórios estão formalmente em vigor nos mais diversos países do ocidente e abarcam, na linguagem acadêmica vigente, os países “desenvolvidos” e “em desenvolvimento”. Obviamente, esses projetos juridicizados apresentam diferenças entre si, mas compartilham certos aspectos fundantes que são decorrentes da influência do “mundo cultural” europeu na formação do modelo ideal de civilização ocidental socialmente disseminado.
2 O SER CIVILIZADO É RACIONAL E LIVRE
No plano filosófico especulativo é possível se relacionar a ideia do constitucionalismo liberal e democrático ao avanço do processo de secularização cultural mais amplo4. Por sua vez,
que não se deve buscar explicações mitológicas, místicas ou religiosas sobre o mundo e seus viventes5. Em última análise, o pensamento secular resultará naquilo que podemos identificar
4
Ver, especificamente sobre o tema, SALDANHA, 2003. Vista sob o ponto de vista sociológico, a cultura secular moderna pode ser descrita da seguinte maneira: “Ora, se há uma verdade que a história pôs fora de dúvida é a de que a religião engloba uma porção cada vez menor da vida social. Originalmente ela se estende a tudo, tudo que é social é religioso, as duas palavras são sinônimas. Depois, pouco a pouco as funções políticas, econômicas e científicas se emancipam da função religiosa, constituem-se à parte e adquirem um caráter temporal cada vez mais acentuado. (DURKHEIM, 1999, p. 151-152). 5
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viver sob a vigência do secularismo significa viver num “clima cultural” favorável a crença de
hoje como sendo o pensamento que valoriza a expertise técnica com valorização do pensamento científico. A vigência social do pensamento racional moderno é indicativo de um “momento”6 secular no plano da cultura ocidental moderna. O processo de constitucionalização e de formação do pensamento constitucional corresponde, em boa medida, a repercussão que obtiveram no campo jurídico as ideias racionalistas relacionadas a valorização da liberdade e da individualidade7. O racionalismo moderno se desenvolve num contexto cultural muito específico. Um contexto de vida europeu. Em outras palavras, a vida moderna ocidental é a vida burguesa valorizadora de certo estilo de vida que, hoje, conhecemos bem: a do cidadão que busca o sucesso na profissão (liberal), ganha o seu dinheiro e se entretêm8. Esse pensamento racionalista específico resultará na positivação de modelos jurídicos “civilizatórios” no mundo ocidental moderno a partir de três contextos culturais exemplares: o inglês, o francês e o norte americano9. No âmbito de influência da cultura iluminista burguesa a liberdade é o principal “valor” fundante. O ser racional é livre. Kant, por exemplo, quando busca responder à pergunta, “O que é o iluminismo?”10, diz:
No período antigo, da cultura clássica grega, também houve um movimento de secularização. A seguinte passagem de Burckhardt (2013, p. 280) nos dá uma ideia dessa transição da cultura mitológica para a secular, em descrição interessante dessa passagem da cultura mitológica/religiosa para a filosófica/científica na Grécia antiga: “Held and preserved by a stabilizing form which was the most glorious poesy, these myths constituted the romantic youth of the greeks [...] this body of myths, rival and deadly enemy of philosophy that it was, never the less endured. And yet it had to be overthrown if thought and knowledge were to thrive freely.” 7 Sobre esse “clima” cultural racionalista: “A cultura iluminista tinha uma base objetiva remota na cultura popular, correspondia a uma evolução das manifestações de bom senso das massas citadinas e mesmo camponesas e até mesmo nos elementos racionalistas da crença católica [...] a moral emergente da cultura iluminista não se tratava de um artifício de certos intelectuais descontentes: estava em causa a fundamentação filosófica de um processo social de enorme escopo, a emersão de uma figura histórica nova – o indivíduo moderno – que não era uma criação artificial, mas o ponto de chegada, de elementos que já despontavam desde muito cedo na cultura ocidental [...]” (MENESES, 2005, p. 81). Para uma análise profunda do individualismo na fundação do direito moderno, ver VILLEY, 2003, 513-545. 8 Para os dois primeiros aspectos na vida cultural moderna capitalista (trabalhar e ganhar dinheiro) ver o clássico de Weber “A ética protestante e o ‘espírito’ do capitalismo. Para o terceiro elemento (o entretenimento) como característica da ideologia moderna – o “divertimento” associado a ideia de usufruto da liberdade, ver Arendt (2016, nota 75 da p. 157). Ainda sobre o contexto cultural moderno “A ascensão dos padrões econômicos e sociais modernos, leigos, individualistas, ligados à cultura burguesa, correspondeu a consolidação do ideário liberal, que via em cada homem um competidor do outro e um portador de liberdades a exercer. A mobilidade social desencadeada desmontou o esquema de ocupações vindo da Idade Média e do ancien régime, e instaurou novas exigências, novas chances.” (SALDANHA, 2008, p. 203). 9 Para a exemplaridade das experiências inglesa, norte-americana e inglesa, ver SALDANHA, 2000. 10 O texto foi consultado em 20/02/2017 no site <https://www.marxists.org/portugues/kant/1784/mes/resposta.pdf> essa versão foi comparada com a contida em <http://www.columbia.edu/acis/ets/CCREAD/etscc/kant.html acessada no dia 26/02/2019>.
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6
lluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. Sapere aude! Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento! Eis a palavra de ordem do Iluminismo.
E sobre a liberdade:
Mas, para esta ilustração, nada mais se exige do que a liberdade; e, claro está, a mais inofensiva entre tudo o que se pode chamar liberdade, a saber, a de fazer um uso público da sua razão em todos os elementos. Agora, porém, de todos os lados ouço gritar: não raciocines!
Mesmo quando confrontado com a pobreza crescente ao longo do século XIX (a questão social), o ser racional apela às saídas contratuais, mais afeitas ao seu habitus racional. O contrato social não pode garantir amor ao próximo, mas enuncia uma determinada igualdade positivando direitos sociais, ou seja, a razão desempenha, no ser civilizado, uma “função” moral11. Assim, é possível afirmar que a vigência do constitucionalismo social ao longo do século XX não significou uma mudança no habitus burguês, ou seja, não se criou uma nova possibilidade de se viver no mundo que pudesse traduzir uma nova utopia social12.
3 O SER CIVILIZADO É TOLERANTE
A difusão do pensamento constitucional social representou uma reformulação do “plano civilizacional” moderno com a inclusão de certa igualdade material como valor
A análise moral feita por Hume (1995), que analisa racionalmente o “mérito pessoal”, é exemplo do pensamento racionalista tratado no texto. Culturalmente, essa legitimação pela razão corresponde ao aprofundamento do processo de secularização. Sobre o processo de secularização, materializado na passagem das bases teológicas paras as bases “comunitárias” de explicação de mundo: “Com o crescimento da experiência democrática teve-se o apagamento da velha imagem do mal e do bem, expressões de uma ética teologicamente alicerçada. Do bem quase não se fala, já, e em seu lugar se alude ao bem comum ou aos preceitos do Estado social e aos ‘direitos’. Ou seja, em vez das referências transcendentais, passa a valer critérios imanentes à comunidade, próprios dela, saídos dela e dirigidos a ela.” (SALDANHA, 2003, p. 108). 12 Para uma crítica nesse sentido, FROMM, 2016, (p. 209-2010). 13 Para uma visão dessa “reforma” no projeto civilizatório materializado pela preocupação com o social: “Pretendo dividir o conceito de cidadania em três partes. Chamarei essas três partes ou elementos, de civil, política e social. O elemento civil é composto dos direitos necessários a liberdade individual – liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e fé, o direito à propriedade e de concluir contratos válidos e o direito à justiça. [...] Por elemento político se deve entender o direito de participar no exercício do poder político [...] O elemento social 11
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compartilhado no âmbito da comunidade ideal de seres civilizados13. Depois disso, a
“arquitetura” constitucional definidora do tipo civilizado somente vai ser modificada significativamente após a ruptura drástica do projeto civilizacional decorrente da vigência do pensamento totalitário na primeira metade do século passado. A valorização do comportamento tolerante é uma das marcas do pensamento racionalista moderno de matriz liberal14. Com a ruptura totalitária, no entanto, podemos dizer que a tolerância é “revisitada”. Em resposta ao pensamento totalitário o ser civilizado passa a ser também um ser tolerante, ou seja, alguém que aceita a multiplicidade de jeitos de ser no mundo numa sociedade marcada pela complexidade e pela difusão da cultura secular. Esse novo ser civilizado, que é o centro do pensamento constitucional contemporâneo, materializa no seu discurso e comportamento uma força social diametralmente oposta ao ser totalitário. A igualdade totalitária tem pouco ou quase nada a ver com a ideia de igualdade “racional” do tipo constitucional moderno. Culturalmente, o totalitarismo age no sentido de “padronizar” comportamentos, ou seja, ele tem por base uma ideia desvirtuada da igualdade15. É devido a essa ideia, digamos, neurótica, acerca da igualdade que o tipo totalitário lida com dificuldades com as críticas. Ele age dogmaticamente e considera inimigo todo aquele que “não se enquadre” no seu próprio modelo ideológico, julgando moralmente inferior o comportamento “desviante”. Esse comportamento inflamado e com apelo “aos sentimentos” do tipo totalitário é claramente incompatível com o projeto civilizatório racionalista materializado pelo tipo constitucional moderno. Sob o prisma jurídico, se pode dizer que o totalitarismo é caracterizado pela existência de um Estado de Direito seletivo: há aqueles que tem direitos e aqueles que não. Sob esse paradigma, os grupos “desviantes” são postos fora do campo de abrangência da esfera da cidadania, ou seja, esses grupos não tem o “direito a ter direitos”. A reflexão sobre a brutal experiência totalitária servirá como fonte irradiadora do principal “valor” positivado nos documentos constitucionais da atualidade: a dignidade da pessoa humana. contemporânea, o nosso “projeto de civilização” atual, tem o objetivo de traduzir em termos
refere-se a tudo que vai desde o direito a um mínimo de bem estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade.” (MARSHALL, 1967, p. 64).” 14 Exemplar desse pensamento tolerante ligado a cultura liberal moderna pode ser visto em Voltaire, quando, para valorizar a tolerância e depor contra o fanatismo, faz o relato “dramático” do caso “Jean Calas” (2000, p. 3-11). 15 Para uma imagem dessa ideia desvirtuada sobre a igualdade: “A propaganda nazista concentrou toda essa nova e promissora visão num só conceito, que chamou de Volksgemeinschaft. Essa nova comunidade, tentativamente concretizada no movimento nazista na atmosfera pré-totalitária, baseava-se na absoluta igualdade de todos os alemães, igualdade não de direitos, mas de natureza, e na suprema diferença que os distinguia de todos os outros povos. (ARENDT, 1989, p. 409).
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O reconhecimento da dignidade como valor fundante da ordem constitucional
jurídicos uma preocupação ética. É a partir da consideração pelo outro – e a sua dignidade – que se pode compreender e “tolerar” a diferença, desde que haja um acordo social mínimo contratualmente estipulado sobre os termos mais básico da vida social – direitos fundamentais, estruturação e controle democrático do poder, etc. O ser racional, sendo livre, não se obriga contratualmente a amar o outro, nem a aderir a uma determinada ideologia, a tolerância, no entanto, deve ser respeitada como cláusula racional contida no contrato social16.
4 CONCLUSÃO: UM TIPO DESVALORIZADO?
O discurso de depreciação do projeto civilizatório ou civilizacional na sua forma histórica atual, depois de ganhar repercussão no “mundo virtual”, alcança também representação
no
campo
político
institucional.
Nesse
contexto,
o
“tipo
constitucional/civilizado” – um tipo racional, cosmopolita, livre e tolerante – perde algo da sua força persuasiva coletiva, ou seja, perde algo do seu capital simbólico. Há uma espécie de desvalorização da cultura “civilizada” que passa a ser hostilizada por grupos radicais formados, em geral, em contextos sociais de aumento na desigualdade social. No campo da pesquisa jurídica, essa situação transforma em questão do dia para os teóricos do constitucionalismo a verificação da força real de cada pacto social formalmente em vigor nos diferentes países. A questão central é a da verificação acerca da “força normativa” da Constituição e da ideologia constitucional moderna mesmo nos países “desenvolvidos” do capitalismo central, abrigo cultural original do “ser civilizado” e seu exemplo para o mundo. Esse “tipo civilizado” esteve, desde o seu surgimento, sob forte crítica, especialmente pelo seu endeusamento paradoxal (dada a sua fonte secular) do indivíduo e da propriedade. Apesar disso, o “tipo constitucional moderno” forneceu, no plano cultural ocidental da
se distancia do comportamento radical e fanático característico das visões maniqueístas de mundo. Continuará?
A “tolerância” do tipo constitucional racional moderno não significa uma “aceitação profunda” e completa do outro, sobre quem, o ser racional pode, inclusive, ter uma opinião depreciativa. Para o ser racional, trata-se apenas de se considerar que o outro se movimenta na sua própria esfera de liberdade e que os contratos jurídicos devem estipular um “mínimo ético” compartilhado para que cada um possa “viver a sua vida”. Um exemplo dessa tolerância “racional”: “It is not a man’s duty, as a matter of course, to devote himself to the eradications of any, even the most enormuous wrong; he may still properly have other concerns to engage him; but it is his duty, at least, to wash his hands of it [...]” (THOREAU, 2017, p. 277). 16
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modernidade, um exemplo de comportamento humano marcado pela racionalidade sóbria que
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WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Universitária, 1999.
WHAT DOES IT MEANS “TO BE CIVILIZED”? INTERPRETING THE MODERN CONSTITUTIONAL TYPE
ABSTRACT This is a comprehensive essay based on a existentialist philosophy. It materializes a specific cultural approach to law. Its main goal was to describe the characteristics of the constitutional ideal type from the interpretation of elements of the modern constitutional theory. It intended to contribute to a non manichaeistic debate about the historical formation and the actual symbolic situation of the modern constitutional contract formally in vigor in different countries that form the western “civilized” world. It indicates some social symbolic devaluation of the ideal type referred in the political field today.
Constitutional ideal type.
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Keywords: Constitutionalism. Rationalism. Liberty. Tolerance.
ARTIGOS CIENTÍFICOS
A CIDADANIA FISCAL COMO INSTRUMENTO PARA FORTALECIMENTO DA TRANSPARÊNCIA PÚBLICA Felipe de Macedo Teixeira1
RESUMO Pautando-se no espírito democrático, a ideia de transparência na Administração Pública ganhou força através da Era da Informação, que facilita o acesso do cidadão a dados antes considerados inexplorados e inquestionados pela sociedade civil. Logo, o presente artigo visa analisar o papel da transparência tributária na construção da justiça social em contexto nacional. Utilizando-se de fontes primárias e da doutrina jurídica, o artigo defende a adoção da transparência tributária mediante publicização de dados e implementação de medidas de educação tributária para a sociedade civil, visto que somente através de uma nova abordagem tal princípio será garantido. Palavras-chave:
Cidadania
fiscal.
Transparência.
Acesso
à
1
Pesquisador do Núcleo de Estudos sobre os BRICS (NEBRICS). Mestrando em Estudos Estratégicos Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande/UFRGS.
90
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informação.
1 INTRODUÇÃO
Desenhadas e inspiradas em instituições de séculos anteriores, as vigentes instituições públicas encontram obstáculos em canalizar a complexidade das sociedades para tomada de decisões eficientes. No desafio de lidar com as mudanças e a inserção de novas redes e necessidades, a reinvenção de instituições, sem perder o caráter dos valores públicos, e as medidas de democracia participativa serão pilares para o exercício da cidadania como forma de soberania popular. A ascensão de medidas de transparência pública, mediante a disponibilização de dados acerca dos gastos governamentais de forma acessível, questionável e analisável, traz ao cidadão o poder de diagnóstico sobre o serviço fornecido pelo Poder Público e sua qualidade, possibilitando que aquele atue no processo político-decisório. Tal atuação vem não somente como uma medida de controle social, mas como exercício da cidadania constitucionalizada como um dos pilares do atual Estado Democrático de Direito. O presente artigo busca elucidar a necessidade do empoderamento do cidadão como agente ativo da democracia, evidenciando a cidadania fiscal por meio da transparência fiscal. O binômio Estado, enquanto ferramenta, e Direito Tributário Constitucional, enquanto veículo, necessitam, a todo o momento, ser fiscalizados pelo contribuinte, conforme sua condição de credor da obrigação social estatal. A cidadania fiscal necessita da transparência fiscal para ser efetivada. É a partir dessa transparência que o contribuinte está apto a apontar desvios e déficits e realizar sugestões no intuito de afirmar a prioridade do interesse coletivo e bem estar social. Nesse ínterim, a Lei de Acesso à Informação constituiu-se em um marco histórico no Brasil e um avanço no Direito Tributário Constitucional. Dessa forma, sendo o passo inicial na transformação para uma sociedade mais justa e igualitária, em conjunto com a educação fiscal, que se revela um plano educativo a ser posto em prática por meio de políticas públicas, visto
fundamental para tornar o cidadão mais crítico e reivindicador de seus direitos.
2 A TRANSPARÊNCIA COMO PILAR DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Uma vez que a adoção do modelo representativo da democracia caracteriza-se pela restrição da Administração Pública aos três poderes, constata-se uma fragilidade da soberania popular, visto que a coisa pública é gerida por representantes eleitos usualmente sem o devido 91
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que noção básica acerca do Direito Tributário e a destinação dos recursos públicos é
controle social, prejudicando a concretização da cidadania ativa em tal contexto. Popularmente considerada como uma crise de representatividade, a situação do atual modelo de Estado atinge todo o mundo ocidental, caracterizando-se pela gradual e crescente perda da confiança do cidadão no governo e pela incapacidade deste de atender às inúmeras demandas socioeconômicas da complexa e plural sociedade moderna. Caracterizado pelo abarrotamento de instrumentos burocráticos e leis ineficazes, o Estado ocidental encontra-se diante do impasse da ineficiência, marcado pelo déficit democrático que atinge a gestão pública desde a maior das nações ocidentais até a menor delas. Ao encontrar-se em tal situação, a sociedade civil moderna carece de meios de exercício da cidadania plena. No contexto tributário, o modelo regressivo brasileiro, cujos impostos baseiam-se sobre o consumo e não sobre a renda e a propriedade, impede a distribuição de renda pelo imposto e perpetua a desigualdade social. A necessidade de reforma esbarra não somente no contexto tributário, mas no contexto público como um todo, estando diretamente relacionada com que serviços quer o Estado prestar à sociedade e à qualidade de tais. Busca-se melhor custo-benefício, ou seja, um serviço melhor por valores menores, garantindo a plena contrapartida dos impostos, contradição esta que atinge os princípios de um Estado Democrático de Direito. Conforme destaca Paulo Bonavides (2008, p. 283), a estrutura de uma democracia é pautada com destaque ao princípio da dignidade da pessoa humana e à soberania popular, sobre a qual emanam os poderes outorgados aos representantes, porém com destinatário principal no cidadão. Em tal contexto, a participação do cidadão acaba ficando restrita. Apesar de pouco explorada pela Constituição Federal, a democracia participativa visa o acompanhamento do indivíduo perante o ente público, atuando para cidadania ativa. Nesse sentido, ao utilizar-se de canais de colaboração e discussão para engajar-se no cenário político e exercer a cidadania, a tecnologia de informação e de comunicação traz duas
controle social e da participação popular, e a transparência governamental, em face de sua capacidade interativa, que abrange o armazenamento e a difusão de conteúdos de forma ilimitada e com amplo alcance (MEIRELLES, 2008, p. 800).
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contribuições para a noção de democracia: o acesso à informação, essencial para o exercício do
3 A LEI Nº 12.527/11 E A CONSOLIDAÇÃO DO DIREITO DE ACESSO À INFORMAÇÃO
A consolidação do direito ao acesso à informação, após uma gradual evolução, posterior à terceira geração de direitos humanos, consolidou-se como fundamental e universal no que concerne à participação do cidadão, como indivíduo e coletivo, no controle social acerca das atividades desempenhadas pelo Estado. Na obrigação de cumprir com o dever de transparência, quebra-se a antiga noção do monopólio estatal da informação, passando a ser direito do indivíduo receber e solicitar informações do ente público. Diante de um processo de informatização da Administração Pública, o ente público passa a voltar-se ao cidadão e, após a constitucionalização do Estado Democrático de Direito, trata de democratizar os atos legais e administrativos, no sentido de garantir maior acesso do cidadão às atividades. Entretanto, a formação da cultura de publicização da gestão pública enfrenta ainda uma série de desafios, com destaque à transparência tributária (HOCH, 2015, p. 3-5). O dever de transparência governamental, que visa universalizá-la, passou por uma construção normativa que data desde a primeira metade do século XX, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos2, cujo artigo XIX garante ao ser humano o direito da liberdade de expressão, podendo buscar a informação de forma irrestrita. Ainda no âmbito do direito internacional, a Convenção Interamericana de Direitos Humanos 3 trouxe previsão similar, ao destacar o direito à informação em nível mundial. Nesse sentido, primeiramente associada ao septuagenário direito à liberdade de expressão, o direito ao acesso à informação veio se consolidando no contexto internacional no decorrer das décadas, sendo finalmente reconhecido como direito fundamental do indivíduo pela Convenção das Nações Unidas sobre Combate à Corrupção4, que tornou obrigação do Estado a garantia de tal direito. O direito de acesso à informação consiste no dever de adoção
e atividades deste, facilitando o acesso às informações através de sua publicização.
2
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948. Disponível em: < inserir endereço eletrônico >. Acesso em: 15 nov. 2017 3 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana de Direitos Humanos, de 22 de novembro de 1969. Disponível em: <http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm.> Acesso em: 20 nov. 2017. 4 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção, de 31 de outubro de 2003. Disponível em: <http://www.unodc.org/documents/lpobrazil//Topics_corruption/Publicacoes/2007_UNCAC_Port.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2017.
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de medidas transparentes pelos entes públicos no que concerne à organização, funcionamento
Dentre o entendimento dado pelas convenções e normativas em âmbito internacional sobre a temática, destaca-se o princípio de que o sigilo das informações passa a ser exceção, em casos de ordem pública, conforme destacado pela própria legislação brasileira. Passa-se assim à noção de que o direito à informação é um meio de democratização do Estado, permitindo melhorias no desempenho governamental ao permitir o empoderamento do cidadão com informações e consequente participação social. Nesse sentido, a Lei n. 12.527/11, Lei de Acesso à Informação, estabeleceu os procedimentos para o acesso às informações públicas. Esta foi considerada uma conquista essencial à cidadania ativa, rompendo com a tradição de sigilo do Estado, que “torna o conhecimento privilégio de poucos, pautado em uma suposta imaturidade ou despreparo do cidadão para o exercício de seus direitos” (ROCHA, 2012, p. 85). Visando uma nova relação entre cidadão e Estado, que a própria Constituição Federal busca trazer através dos princípios da transparência e da publicidade da Administração Pública, a Lei de Acesso à Informação visa concretizar uma atuação estatal legítima. Como destaca ainda Rocha (2012, p. 89):
A Lei n. 12.527, nesse contexto, representa um avanço por se tratar de um ponto de partida para respostas, sempre provisórias, a essas questões. Mais do que parâmetros substantivos, a lei estabelece procedimentos para o diálogo, e enriquece o processo de interpretação acerca da aplicação do princípio da transparência do qual o acesso a informação é um dos pilares, ao ampliar os canais e procedimentos, institucionalizados e legítimos, para atuação dos diversos atores envolvidos.
Tendo em vista a efetividade do direito fundamental de acesso à informação, cabe que a aplicação desta legislação paute-se no princípio de publicidade que norteia a Administração Pública. Dessa forma, tem-se o sigilo da informação como medida de exceção, visando a transparente divulgação dos dados públicos à sociedade civil, além do uso de meios de
transparência e participação social no andamento das atividades públicas. Portanto, ao aproximar a sociedade civil dos entes públicos, garante-se uma modernização de toda máquina pública, utilizando de novas tecnologias difundidas no âmbito social para efetivar o potencial democrático do pluralismo informativo. A gestão transparente implica não somente no pronto atendimento às demandas dos cidadãos. O que se busca é uma Administração Pública que fomente a participação da sociedade, associada à obrigação dos governantes de prestar contas de suas ações e de por elas se responsabilizarem perante a sociedade. 94
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comunicação para trazer a sociedade mais próxima ao Estado, mediante uma cultura de
4 TRANSPARÊNCIA FISCAL NO CONTEXTO NACIONAL Em um estudo5 realizado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), a pedido do Ministério da Fazenda, acerca da transparência fiscal, constatou-se que o Brasil já adotou uma série de medidas na área. Tal estudo, que é comumente requerido pelos países, visa averiguar as práticas de transparência fiscal em comparação com o Código de Boas Práticas de Transparência Fiscal (FT-Code) daquele organismo. O Brasil ganhou destaque no documento pelas suas estatísticas fiscais, as quais reconhecem a maioria dos seus ativos e passivos; relatórios fiscais, publicados periodicamente e revisados pelo Tribunal de Contas da União (TCU); documentos do orçamento pela tempestividade, transparência e publicidade na internet; e a Lei de Responsabilidade Fiscal que divulga a gestão dos riscos fiscais. Em contraponto, ficou indicado que a produção de estatísticas fiscais do setor público poderia ser melhorada por meio da incorporação de empresas públicas financeiras e não financeiras de acordo com o Código de Boas Práticas de Transparência Fiscal, do fortalecimento da divulgação da gestão de riscos e do melhor relacionamento entre o Tesouro Nacional e o Banco Central, a fim de delimitar os principais desafios fiscais de médio e longo prazo. Ainda, o Tesouro Nacional tem divulgado informações, através de publicações, acerca do interesse do Governo Federal em atender os pontos indicados pelo FMI, entretanto, há quase dois anos do relatório, não se constatou tais mudanças. A relação entre Tesouro Nacional e Banco Central continua voltada para os fluxos de equalização de moeda estrangeira. Nesse procedimento, o Banco Central realiza a conversão das transferências monetárias das reservas internacionais para a moeda do Real. Conforme a valorização das moedas, a taxa de câmbio flutua gerando sobras ou perdas nas conversões, que são repassadas ao Tesouro Nacional. O objetivo é racionalizar os fluxos financeiros, diminuindo
Quanto à divulgação de riscos fiscais a médio e longo prazo, o governo defende que esta tem sido feito com sucesso, reflexo disto seria a aprovação do Projeto de Emenda Constitucional do Teto de Gastos e a Reforma da Previdência. Entretanto, a Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2018 não preconizou o fortalecimento da divulgação da gestão de riscos fiscais, como outrora havia afirmado que a faria.
5
TESOURO PUBLICA RELATÓRIO DO FMI SOBRE TRANSPARÊNCIA FISCAL DO BRASIL. Tesouro Nacional. Disponível em:< http://www.tesouro.fazenda.gov.br/-/tesouro-publica-relatorio-do-fmi-sobretransparencia-fiscal-do-brasil> Acesso em: 02 dez. 2017.
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a volatilidade dos recursos transferidos, assegurando um equilíbrio entre perdas e ganhos.
Nesse contexto, a entidade Associação Internacional de Orçamento (International Budget Partnership - IBP6) criou o Índice de Transparência de Orçamento Aberto, onde analisou 102 países. O Brasil foi classificado como possuidor do sexto melhor índice de transparência dentre os países analisados, ficando na frente de países como Alemanha, Reino Unido e França. A entidade analisou os seguintes quesitos: o estágio atual de transparência orçamentária, a evolução ao longo do tempo, a cidadania fiscal e o papel das instituições fiscalizadoras. Somente Brasil, Estados Unidos, Noruega e África do Sul obtiveram pontuações relevantes em todos os quesitos. Há de se destacar que, em comparação com outros países, o Brasil é pioneiro na publicidade online das informações públicas, que é garantida pela Lei de Acesso às Informações Públicas. Com os documentos e informações produzidos pela Administração Pública disponíveis na Internet, qualquer brasileiro pode consultá-los. Ademais, é necessária a publicação das informações de maneira mais detalhada, principalmente das ações do Fisco, a fim de permitir a efetivação da cidadania fiscal.
5 A CIDADANIA FISCAL E O PAPEL DO PRINCÍPIO DA TRANSPARÊNCIA
A educação fiscal é uma necessidade iminente na construção de uma sociedade mais justa e igualitária. A partir desta conscientização, o cidadão buscará a efetivação dos seus direitos, com base na garantia, legitimada na Constituição Federal, de viver dignamente e usufruir do bem-estar. Nesse contexto, a educação fiscal é um plano educativo que deve ser posto em prática, sendo fundada no pressuposto de conscientização da função socioeconômica dos tributos, de modo a proporcionar uma gestão democrática dos recursos públicos.
numa sociedade. Sem instrução e conhecimento não há coletividade que sobreviva, ou que viva com dignidade. O Estado, por sua vez, não gera riqueza por si só e necessita que o contribuinte preste o dever de pagar os impostos. Em contraponto, o cidadão adimple a obrigação tributária esperando a gestão adequada dos recursos públicos investidos em saúde, educação, segurança, etc. Nesse sentido, afirma Nabais (2005, p. 115), “o Estado na sua configuração de Estado
6
INTERNATIONAL BUDGET PARTNERSHIP. Open Budget Survey. Disponível em: <survey.internationalbudget.org/#home>. Acesso em: 02 dez. 2017.
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A educação de qualidade e para todos é o bem mais valioso que pode ser garantido
Social não pode deixar de garantir a cada um dos membros da sua comunidade um adequado nível de realização dos direitos à saúde, à educação, à habitação, à segurança social, etc”. Nesse diapasão, a obrigação tributária tem de ser entendida como a tradução do Estado Social, pelo qual a máquina pública e o cidadão contribuinte, mutuamente obrigados, firmam o pacto social constitucional. Para tanto, a solidariedade é pressuposto substancial para resolução das mazelas sociais. A pobreza, enquanto problema social e não individual, está intimamente ligada à cidadania ativa, quando os cidadãos se envolvem politicamente com intuito de melhorar as condições de seu país, e com a boa gestão do dinheiro público, quando o Estado governa para o povo. Essa compreensão de solidariedade recíproca entre o ente público e o cidadão é a noção que embasa o Direito Tributário Constitucional. O Estado que autua o contribuinte, que age ilicitamente, cumpre sua função Constitucional. O cidadão que não usufrui de condições adequadas para o bem estar social, ou as usufrui na condição de excepcionalidade na sua comunidade, e se envolve ativamente fiscalizando, reivindicando, exercendo sua cidadania, cumpre com sua função Constitucional. A transparência fiscal efetiva da gestão do erário reveste o cidadão da capacidade de fiscalizar e apontar déficits, constituindo-o como verdadeiro credor da obrigação social da qual o tributo é destinado. Há de se ter em mente que o exercício da cidadania está aquém do votar e ser votado, pois conforme pondera Silveira (2002, p. 39): “ser cidadão é ser capaz de cumprir obrigações perante a sociedade da qual se faz parte, bem como exigir seus direitos”. E para este empoderamento, a transparência fiscal é ferramenta imprescindível.
6 TRANSPARÊNCIA TRIBUTÁRIA E JUSTIÇA SOCIAL NO CONTEXTO
Contemplado pela Constituição Federal em seu artigo 150, § 5º, a transparência tributária é constitucionalizada como determinação para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos tributos que incidam sobre mercadorias e serviços. Entretanto, tal dispositivo carece de aplicabilidade cotidiana, uma vez que não há normativa regulamentadora deste no sentido de trazer maior transparência tributária ao cidadão, que segue excluído do acesso à informação essencial para cidadania ativa. O provável desinteresse em esclarecer os aspectos fiscais e tributários à sociedade civil, como acontece no artigo supramencionado, acaba por prejudicar a construção do Estado 97
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NACIONAL
Democrático de Direito. Este último tem como um de seus pilares básicos a transparência das atividades, em destaque a arrecadação e a distribuição de tributos, matéria de ordem pública e inerente aos entes públicos. Tal descaso das autoridades, não só contribui para falência do atual modelo de Estado, conforme apresentado anteriormente, mas também atua como obstáculo à cidadania fiscal, que tem como característica a participação do cidadão em tal matéria uma vez ciente da informação. Como explica Torres (2012, p. 92): [...] defende-se que o Estado, ao atuar como gestor das riquezas nacionais e como ente político responsável pela concretização dos direitos e garantias constitucionais, deve usar o poder de tributar como meio para alcançar uma maior justiça no meio social, impulsionado por seu objetivo institucional de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.
Além disso, a construção de uma cidadania fiscal está estritamente ligada à construção da justiça social. Esta se relaciona à garantia de satisfação das necessidades básicas da população, atribuindo a todos o necessário para o pleno desenvolvimento do indivíduo e do coletivo. Surgida em um contexto de recuperação europeia, pós duas guerras mundiais, a justiça social encontra no Estado um mecanismo de melhor distribuição de riqueza em prol do desenvolvimento social. Uma das principais ferramentas que o Estado dispõe para realizar a justiça social está no sistema tributário. Por meio de tais normativas que se encontra o poder de combate à fragilidade social, como a pobreza, a concentração de renda, a exclusão social, etc. Em consonância com o objetivo da Constituição Federal de criar uma sociedade livre, justa e solidária, a busca por uma tributação mais justa está de acordo com a transparência tributária, pois somente assim pode-se ter clareza social acerca das medidas e impactos que geram as políticas fiscais dos entes públicos. A necessidade de interferência da sociedade civil em tal temática, de forma direta ou não, somente será atendida mediante pleno e claro acesso à
anteriormente. O objetivo de tal transparência, defendido no presente trabalho, resulta no combate às injustiças sociais causadas por distorções na aplicação dos recursos públicos e na formulação de políticas públicas mal sucedidas, conforme explica Sousa (2012, não paginado):
A política tributária vem a ser o processo pelo qual o Estado, analisando suas funções gerais, decide a forma pela qual será realizada ou não a imposição tributária, e ocorrendo essa imposição como ela se dará. O Estado ao constatar que sem a cobrança
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informação, razão pela qual somente a transparência formal é insuficiente, conforme ressaltado
ou redução de tributos alcançará as finalidades a ele conferidas no ordenamento jurídico, deverá adotar políticas tributárias que beneficiem ao cidadão, especialmente porque o desenvolvimento social e individual efetivam a dignidade da pessoa humana.
Como observado, o princípio da transparência garante ao cidadão o acesso aos atos praticados pela Administração Pública, por vias de divulgação e publicitação de tais atos, garantindo à sociedade civil o poder de fiscalizar, avaliar e cobrar da Administração Pública que seus direitos e anseios sejam respeitados e efetivados. Tal controle social só acontece quando aquela tem meios amplos para tal participação e consequente cidadania ativa, estando capaz e capacitado para participação democrática, ciente dos deveres e funcionamento dos entes públicos. É nesse sentido que se mostra imperiosa a capacitação do cidadão em conjunto ao acesso à informação. Assim, o princípio da transparência possui gigantesca importância no Estado Democrático de Direito em seu objetivo de promover a Justiça Social, pois o exercício do poder incumbido ao povo depende do acesso à informação clara e verdadeira dos atos dos administradores públicos, de modo que serve, ainda, como meio de controle da gerência estatal.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
De acordo com a premissa de que pagar tributos é um dever de cidadania, visto que estes provêm ao Estado os meios financeiros de promoção do bem-estar através de políticas públicas, o controle social de tais tributos passa a ser o complemento necessário ao exercício da cidadania fiscal, um poder-dever do cidadão. Nesse panorama, a transparência das informações deve vir não somente por medidas de mera disponibilização de dados fiscais
questionamento de tais informações, ou seja, meios de empoderamento social, sendo o principal deles a educação sobre temas tributários e fiscais. Tendo em vista a premissa de que o Estado Democrático de Direito constrói-se sobre a soberania popular, como constitucionalizado no artigo 1º da Constituição Federal, o exercício da cidadania é instrumento elementar para construção de um Estado mais eficiente e que preste melhores serviços. O aumento das possibilidades de questionamento social acerca do uso do poder fiscal do Estado deve ser acompanhado, ainda, por um processo de educação fiscal – meio de transparência material – que alcance o cidadão desde o âmbito escolar. Voltando-se a conceitos
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(transparência formal), mas de instrumentos que propiciem ao cidadão a análise e
básicos e cotidianos da tributação e sua função social, ou seja, da necessidade dos tributos para manutenção do Estado e garantia do bem-estar social, as medidas ressaltadas, uma vez trazidas para grade curricular de estudantes, poderão originar uma mudança cultural na sociedade. Em uma sociedade alicerçada na corrupção, pequenas ações ilegais visando garantir sonegação fiscal passam despercebidas no cotidiano nacional. Nesse sentido, um processo educativo voltado à educação financeira teria a capacidade de alterar não somente o comportamento do indivíduo, no sentido do sujeito passivo das obrigações tributárias, como também a prática da cidadania ativa perante o Estado Democrático de Direito. Uma reforma está diretamente relacionada com que serviços quer o Estado prestar à sociedade, à qualidade desses. Busca-se melhor custo-benefício, ou seja, um serviço melhor por custos menores. Hoje, a ineficiência evidencia-se no fato de que a contribuição prestada ao Estado pelo cidadão não é equivalente ao retorno por ele obtido, consolidando, assim, a inexistência de contrapartida dos impostos, contradição esta que atinge os princípios de um Estado Democrático de Direito de promotor da Justiça Social.
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FISCAL CITIZENSHIP AS A STRENGTHEN TOOL OF PUBLIC TRANSPARENCY
ABSTRACT Based on the democratic spirit, the idea of transparency in Public Administration has gained momentum through the Information Age, which facilitates citizens' access to data previously considered unexplored and unquestioned by civil society. Therefore, the present article aims to analyze the tax transparency’s role in the construction of social justice in a national context. Using primary sources and legal
the publication of data and implementation of measures of tax education to the civil society, since only through a new that such a principle will be guaranteed. Keywords: Fiscal citizenship. Transparency. Access to information.
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doctrine, the article advocates the adoption of tax transparency through
A MÍDIA TELEVISIONADA COMO FATOR METAJURÍDICO DO PROCESSO DECISÓRIO JUDICIAL Gabriel Victor Rodrigues Pinto1 Thaís do Nascimento Cortez2
RESUMO O presente artigo faz análise da mídia televisionada enquanto aspecto metajurídico que influencia no processo decisório realizado pelo juiz. Seu objetivo é checar o alcance dessa influência no resultado do processo e a repercussão dessa midiatização nos casos de grande clamor social, seja nas instâncias ordinárias ou superiores. Será utilizado como parâmetro objetivo tanto um caso da jurisdição norte-americana, quanto casos da jurisdição brasileira, que até hoje servem como base de pesquisa e reflexão no estudo da Teoria da Decisão Judicial. Palavras-chave: Poder Judiciário. Mídia. Decisão judicial. Fatores
“Não há opinião pública, há opinião publicada.” (Winston Churchill)
1
Assessor do Ministério Público de Contas do Rio Grande do Norte. Graduação em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: <gabrielrodriguesp@gmail.com>. 2 Residente Judicial no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte pela Escola da Magistratura do Rio Grande do Norte. Graduação em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: <thaisnascortez@gmail.com>.
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metajurídicos.
1 INTRODUÇÃO
A presente pesquisa versa sobre o fenômeno da midiatização do processo judicial, como a mídia televisiva, na contemporaneidade, apresenta-se como um fator influenciador no processo decisório judicial, com ênfase no Brasil. A problemática que o presente artigo pretende analisar pode ser resumida na seguinte pergunta: a mídia influencia o Poder Judiciário no Brasil? E, ainda, de forma complementar: de que modo e quais são as consequências? Fato é que as relações entre mídia e Poder Judiciário ao longo da história não são lineares. O processo de inter-relação entre ambos confunde-se com o próprio processo das relações sociais brasileiras no contexto da cultura e de valores – suas mudanças, permanências ou transmutações no decorrer do tempo. Na instância do discurso jurídico, esse cotejo usualmente perpassa pelos significantes da verdade, da justiça e da transparência. Alia-se a mídia a estes em um contexto democrático, em que ela própria representa a manifestação, por si, da democracia. A partir daí, este artigo tem por escopo, portanto, a análise da dialética entre mídia e Poder Judiciário, enfatizando-se a relação e a influência da mídia televisiva no processo decisório judicial. Isto será realizado por meio de estudos sobre as percepções da história acerca do tema, contrapondo-as com o contexto atual, de modo a identificá-lo, bem como pela análise de casos concretos.
2 O PROCESSO DECISÓRIO NO PODER JUDICIÁRIO
Decidir faz parte da natureza humana. O homem é obrigado a realizar uma série de
prática para a realização de nossas vontades momentâneas. Algumas decisões, é claro, serão mais fáceis, outras mais complexas, a depender do contexto e das consequências ali implicadas. Imagine-se que para toda escolha exista um sujeito e que ele se localize num determinado epicentro. Ao seu redor, além das opções a serem tomadas, o sujeito poderá visualizar, lado-a-lado, os fatores externos que o influenciam, entre elas, as consequências de cada uma dessas decisões e os seus próprios gostos pessoais. As opções postas, portanto, não seriam independentes, pois carregam consigo implicações próprias, que podem mudar – para melhor ou para pior – o mundo do sujeito. 103
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operações cotidianas que exigem, ainda que de forma despercebida, uma decisão rápida e
Toda teorização simplifica-se quando analisada sob um caso concreto. Digamos que um sujeito A está em sua casa, após um longo dia de trabalho, e que por estímulos do seu próprio organismo, percebe a necessidade de beber algum líquido para saciar-se. Nesse contexto, a facilidade de beber um copo de água torna-se uma decisão quase que automática, porque a ela exige-se pouco esforço e quase nenhuma complexidade. Ao se alterar o cenário, porém, a decisão tomada pelo sujeito A pode ser potencialmente diferente. Pense, pois, que esse mesmo sujeito, também após um longo dia de trabalho, seja convidado para jantar na casa de um colega, que ocupa um cargo superior ao seu na empresa. Após estímulos do seu próprio corpo, sente-se desidratado e com necessidade de saciar sua sede. Quando questionado se poderia beber algo, o seu colega lhe oferece duas opções: um copo de água gelada ou uma cerveja artesanal que recentemente produziu. Nesta situação, vê-se que são postas ao sujeito duas decisões possíveis, cada uma com implicações diferentes. Ao decidir pela cerveja, poderá conhecer um pouco mais de um hobby pessoal de seu chefe, por exemplo, e mudar completamente o rumo da conversa, tornando-a mais intimista e descontraída. Por outro lado, o simples copo de água teria sido suficiente, por si, para saciar a sua sede. Aliás, em tal caso, o sujeito não possui qualquer gosto por cerveja, preferindo normalmente beber destilados. Some-se a isso o seu dever de acordar cedo no outro dia para o trabalho e a possibilidade de dirigir alcoolizado até a sua casa. Enfim, todos esses fatores podem influenciar diretamente na escolha do sujeito A, que em fração de segundos terá que tomar sua decisão e lidar com ela pelo resto da noite. Esse exemplo elucida o fato de que todas as decisões tomadas podem não ser independentes, isto é, livres de qualquer valor ou influência externa. Esses fatores vão persistir em qualquer das escolhas tomadas ao longo de uma vida, seja no cotidiano, em pequenos relacionamentos ou no campo profissional.
juiz, tais fatores externos são chamados de fatores metajurídicos. Estes fatores são de várias espécies, tomando-se neste artigo como pontos de discussão apenas a mídia, os valores e ideologias do juiz. Exatamente por essa razão, e, por conseguinte, por ser um humano, o juiz não está imune a tais subjetividades. Ele faz parte da sociedade e sofre também influências que lhes são postas diariamente. Isso nos distancia, cada vez mais, da ideia trazida por Maquiavel de que ao Poder Judiciário cumpriria apenas a função de pronunciar o direito – eternizada no dizer de que o magistrado seria “la bouche de la loi” (a boca da lei). 104
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No contexto do Poder Judiciário, especificamente, na seara do processo decisório do
Essa concepção acaba por simplificar o trabalho hermenêutico feito pelo juiz e reduzindo-o a mero reprodutor de silogismos – o que hoje se sabe não ser verdade. No ato de julgar, o magistrado carrega consigo uma série de preconcepções carregadas ao longo de sua vida. Essas concepções variam desde seu posicionamento político-ideológico até seus gostos pessoais, como a preferência por uma marca de roupas ou uma linha de fastfood. Trata-se de um conhecimento intuitivo adquirido não em um momento certo de sua vida, mas já desde sua infância, fazendo com que sua realidade passe a ser construída a partir de modelos e padrões (ALVARENGA, 2007). O que se pretende dizer é que a decisão tomada pelo juiz não é mera subsunção entre o fato e a norma. Em verdade, existe um elemento terceiro que influencia nessa relação dicotômica: o valor. Quando o juiz for analisar qual norma se aplica melhor à espécie, estará eivado de valores que possuía no seu íntimo – desde aqueles positivados e pensados para o Direito quanto valores morais por ele construídos e mantidos. É ideia que se amolda perfeitamente na Teoria Tridimensional do Direito, segundo a qual essa ciência jurídica “é uma integração normativa de fatos segundo valores” (REALE, 1994, p. 97). Soma-se aí uma premissa maior (norma) a uma premissa menor (fato), fórmula influenciada por um valor. Neste ponto, além de se considerar que existe uma carga valorativa nas decisões judiciais, também é possível reconhecer que antes de qualquer decisão o juiz formulará um juízo prévio (pensamento automático advindo de suas convicções internas), e que a decisão final deverá ser um meio termo entre aquilo que é racional e admitido pelo Direito e o que é emocionalmente lógico3. Não significar dizer, porém, que essas acepções desqualifiquem as decisões tomadas pelos juízes togados. A boa fundamentação da sentença, quando justificada no dispositivo da lei, aproxima a decisão da racionalidade e serve como marco de legitimidade da decisão. Além disso, a influência subjetiva sobre o ato de julgar não necessariamente fará dessa decisão menos
concreto. O que não seria razoável seria imaginar um julgador completamente distante da realidade cultural da sociedade e indiferente aos fatos e subjetividades externas. A outro giro, poderia ser o magistrado um robô, um algoritmo capaz de processar qualquer lide a ele apresentada, mas não sabemos até que ponto a sociedade estaria disposta a entregar todos seus dilemas e aflitos a uma entidade sobre-humana. Um código incapaz de
3
LIMA, Kristiane Ferreira da Silva. Teoria Tridimensional do Direito. Conteúdo Jurídico, 2010. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.29306&seo=1>. Acesso em: 02 mai. 2018.
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acertada. A depender do contexto, pode, inclusive, torná-la mais equânime e adequada ao caso
entender a cultura, história, sentimentos e emoções de uma sociedade plural e complexa como a nossa. De todo modo, o que o jurisdicionado também espera é a certeza de um julgamento imparcial. Não quer dizer um juiz neutro, apático e incapaz de expressar qualquer sentimento 4, mas equidistante em relação às partes, que não possua interesses escusos ou prioridade por um daqueles que litigam. É ideia imposta tanto pelos princípios basilares do devido processo legal (art. 5º, LIV, Constituição da República Federativa do Brasil/1988) quanto da ética do magistrado. Pode-se perguntar, portanto, de que modo o juiz encontraria tal equilíbrio, isto é, permanecer na sua imparcialidade e dosar a razão e a emoção que o acometem. Para Benjamim Nathan Cardozo (1921, p. 124-5), célebre juiz da Suprema Corte Americana, os parâmetros (ou standards) pinçados pelo juiz devem ser tanto a lei quanto os precedentes judiciais. A razão se encontraria na mediana entre eles, e não apenas num ou noutro. Isso significa dizer que o juiz deve buscar justamente nesses instrumentos a autonomia de suas subjetividades5. É quando ele conseguirá retornar ao que é racional e afastar consideravelmente as suas meras preconcepções. Se for o juiz um religioso fundamentalista, por exemplo, não deverá ele imprimir a sua opinião sobre o caso, mas usar da lei e do precedente como balizas para resolver a lide posta. Nessas circunstâncias, além de encontrar a racionalidade na norma escrita e realizar o exercício hermenêutico devido, o magistrado também poderá se confortar de sua interpretação diante de casos idênticos já julgados pelas cortes ou de outros colegas.
3 A MÍDIA TELEVISIONADA COMO FATOR DE INFLUÊNCIA AO PODER JUDICIÁRIO
contemporânea se vê conectada pelos diversos meios de comunicação, sejam estes a televisão ou a internet – esta com as suas infinitas possibilidades de acesso à informação e canais de integração variados, como, por exemplo as chamadas redes sociais. O acesso à informação, de maneira globalizada, está literalmente a um botão do indivíduo seja pela tela do computador ou 4
PAMPLONA FILHO, Rodolfo. O mito da neutralidade do juiz como elemento de seu papel social. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/2052>. Acesso em: 18 fev. 2012. 5 SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Conheça uma visão mais realista do direito. Tribuna do Norte, Natal, 20 dez. 2009. Disponível em: <http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/conheca-uma-visao-bem-mais-realista-dodireito/135440>. Acesso em: 02 maio 2018.
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O mundo, hoje, é globalizado e integrado. De modo rápido e fácil, a civilização
celular, seja pela televisão. E é, principalmente, a influência deste último canal midiático que o presente trabalho pretende referenciar e abordar. A televisão possui um universo próprio, que perpassa pelo gerenciamento e pela escolha daquilo que pode/deve/necessita ser dito, segundo sua lógica organizacional. De acordo com Porcello (2005, p. 38) não seria de todo justo e muito simplório afirmar apenas que tudo televisionado é “armado” e ilusório, cujo intuito somente é desviar a atenção da sociedade para aquilo que não tem importância. Dizer apenas isso, aduz o referido autor, não é suficiente. É necessário entender a lógica própria de funcionamento da TV, a qual se baseia, de modo primeiro, na captação da atenção do público de maneira a evitar a mudança do canal televisivo. Desse modo, vê-se que todo o seu funcionamento baseia-se na execução de verdadeiros espetáculos, que podem ter grande, média ou pequena proporção, podendo ser ainda pela forma de telejornalismo ou de ficção mesmo. Assim, a televisão, com seu fluxo contínuo de imagens, afirma-se como o apogeu da tradução da indústria cultural, produzindo um efeito de gozo imaginário nas pessoas, que quanto mais ocupa espaço na vida real e na vida psíquica, menos se convoca o pensamento (Kehl, 2000, p. 136). Nesse sentido, tem-se a televisão como um organismo e, como tal, para viver, fabrica e difunde ficção, cujo propósito final é tão somente o consumo (BUCCI, 2004, p. 222). E, no caso do Brasil, o surgimento dessa cultura televisiva voltada à logica de consumo, bem como o motivo desta ser exacerbada, possui uma peculiaridade histórica. No período da ditadura militar brasileira (1964-1985), houve interferências governamentais nas opções de lazer, pois manter o controle do uso do tempo foi um meio encontrado de manter a população brasileira longe das discussões dos ideais democráticos. A televisão influenciou toda a cultura do período. Com a censura bem implantada nos meios de comunicação, a televisão foi o canal que o governo encontrou para dar forma a sua
entretenimento (ALMEIDA; GUTIERREZ; MARQUES, 2013). Houve um grande investimento para a modulação dos modos de lazer do brasileiro. O Estado, na medida em que se aliava à indústria da cultura televisiva, fomentava em demasia temas apolíticos, como telenovelas, programas de humor e de esportes. Tal cenário culminou em um alcance assustador da televisão na vida dos brasileiros. Esta conseguiu produzir uma unidade imaginária, em um país que até então só havia contradições violentas (BUCCI, 2004, p. 222). Aliás, mesmo com o processo de
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ideologia de harmonia, de desenvolvimento econômico, de apoio ao exército e de
redemocratização e com o advento da Constituição Federal de 1988, as mídias continuaram a exercer o seu papel de destaque, porém com uma nova moldura. Diante de um país em redemocratização e de uma nova ordem constitucional, a qual proclamava direitos e garantias fundamentais aos indivíduos, dentre estas a liberdade de expressão e de pensamento, a mídia viu-se em uma posição mais que favorável para a expansão de seu poder e de sua influência. Com o ímpeto de viabilizar e representar tais ditames constitucionais, a mídia ganhou legitimidade por si e pela sua “proclamada” função social. Foi desse modo que a mídia, em especial, a televisão, conseguiu se firmar, no contexto brasileiro, em uma posição de tanto destaque e detentora de tanta influência sobre a opinião pública. E é indiscutível a influência da TV na formação de opinião por parte do público. Mais do que informar, esta consegue formar conceitos e opiniões. E todos, do mais culto ao que tem menos formação, querem ter uma opinião formada sobre os assuntos do cotidiano. Porcello (2005, p. 38) faz uma alusão significativa: a praça pública, em que os gregos na antiguidade se reuniam para discutir a sociedade, hoje, é representada pela Mídia, que tem na televisão o meio de maior alcance e visibilidade. E nesse diapasão John Thompson (2000, p. 11) complementa:
A Mídia transformou as condições da vida social e política. Uma das consequências foi a transformação da visibilidade. Há algum tempo, um acontecimento público era o que acontecia em locais abertos, acessíveis a todos, e para ser visto era necessária a presença física. Privado era o que permanecia restrito a poucos, atrás de portas fechadas. Com a Mídia, público e privado adquiriram um novo sentido. Público é o que pode ser alcançado pelo olho da grande Mídia, ao transmitir um evento a milhões de pessoas, distantes no espaço e afastadas no tempo. Público agora é o visível.
brasileira. O Brasil, mesmo que caminhando a passos estreitos, vive em uma democracia representativa. Nesse sistema, a publicidade e a veracidade ganharam força normativa – ideia que se intensifica na seara dos três Poderes. A própria Constituição Federal de 1988 estabelece o dever de informar e o direito de ser informado, de modo que, via de regra, o poder público deve agir de forma escorreita em relação aos seus cidadãos, permitindo o acesso a informações verídicas – necessidade de transparência do erário público e sua movimentação (FACHIN, 2014, p. 124).
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Algo que foi fomentado, difundido e alicerçado com a própria ordem constitucional
E todo esse contexto não deixa de atingir também o Poder Judiciário, como uma das três esferas de poder do Estado. Fins como justiça e verdade inter-relacionam-se com necessidade de transparência, os quais pressupõem, na democracia, duas dimensões da liberdade, quais sejam: a formação do pensamento e a veiculação irrestrita das ideias (FACHIN, 2014, p. 126). E a mídia realiza esse papel, por meio de uma atuação que visa, como um de seus consectários, relacionar estas significantes, ao ponto de sobrepô-las, controlando-as. A mídia desperta, pois, a ilusão da democracia direta, isto é, do desejo imaginário de um acesso à verdade, isento de qualquer mediação (GARAPON, 1952, p. 75). No entanto, a liberdade de informar, como qualquer direito fundamental, não é absoluta e pode/deve ser ponderada no caso concreto. Isto porque a mídia não se contenta em informar apenas, ao contrário, ao desempenhar sua função de informar, ela quer também intervir diretamente no curso dos acontecimentos (GARAPON, 1952, p. 78). A televisão, especialmente, se posiciona como o meio de comunicação mais acessível, mais fiel à realidade e mais sensível à diversidade de opiniões, ou seja, mais democrático que o cenário dos tribunais. Contudo, Garapon (1952) atribui essa concepção a uma ideia distorcida da transparência. Esta, em uma democracia, não deveria seguir os ditames dos homens, mas do processo apenas – sendo este seu verdadeiro ideal dentro da ótica do Poder Judiciário. E a isto Garapon (1952) denomina como o mito da transparência. Midiatizar o processo judicial desqualifica, de modo geral, as mediações institucionais de duas maneiras: por uma desconfiança sistemática ou por uma proximidade “perigosa” (GARAPON, 1952, p. 84). A televisão segue a lógica do espetáculo, como dito acima, do consumo, do funcionamento direcionamento à captação da atenção do público, caindo já aqui, a ideia pura do direito constitucional de informar, visto que este pressupõe apenas a informação dilatória, legítima e verdadeira – algo que se torna por demasia difícil de mensurar dentro de tal funcionamento organicista.
cheia de personagens e mitos reativados, em que há a preocupação primeira em divulgar a informação, seja esta verdadeira ou não. A mídia transforma-se, nas palavras de Garapon (1952), no “disjuntor simbólico do tempo”, impondo a todos uma reação imediata aos fatos, o que para a lógica processual e para o processo decisório é muito prejudicial. O ato simples de divulgar uma informação cedo demais ou de antecipar fatos e provas atrapalha o trabalho da justiça e influência no comportamento das pessoas envolvidas, inclusive dos juízes. Transpor as câmeras para as salas de audiência é um fato que requer um tanto de prudência em sua análise. Isto, porque, embora a midiatização repercuta nos ditames 109
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Assim, o jornalista transforma o processo judicial em uma grande construção narrativa,
democráticos da transparência, da veracidade e da publicidade, esta perpassa primeiro pela problemática, até aqui discutida, de sua lógica própria, de modo que existe o grande perigo de tais ditames serem falseados em sua existência, servindo como escudos de interesses ocultos ao processo. O risco de filmar as audiências é deixar que a lógica do espetáculo prevaleça, a qual é, e deve continuar sendo, estranha à justiça (GARAPON, 1952). Faz-se necessário ficar alerta a este gênero de processo-espetáculo que a introdução da mídia no funcionamento do Judiciário pode causar, tendo em vista que abrir o tribunal à mídia é tornar a justiça ainda mais sensível às influências externas. E a isso se corrobora os dizeres de Barroso (2013, p. 442), segundo o qual a legitimidade do Judiciário, atualmente, principalmente quanto ao julgamento de matérias constitucionais, está cada vez mais associada a sua capacidade de corresponder ao sentimento social. A mídia se constitui, segundo Garapon (1952, p. 92), em um verdadeiro poder, em uma “autoridade de fato” – um poder que tem como cerne o registro de autoridade de representar o real, a realidade, a verdade dos fatos. No entanto, Garapon (1952, p. 81) afirma: “A mídia só será verdadeiramente democrática no dia em que a montagem do programa a disposição do programa, a disposição do estúdio, puderem ser debatidas, ou até contestadas”. Vê-se, então, a televisão como um dos meios de maior visibilidade, no contexto brasileiro, configurando-se como canal de extrema relevância na formação da opinião pública, que se apresenta mais próxima do Poder Judiciário. Isto traz implicações sérias e reais ao processo decisório e à legitimidade do Judiciário como Poder a sociedade brasileira. Diante disto, verifica-se que colocar a mídia como mediadora da verdade do Poder Judiciário – aquele que, em tese, deveria estar estritamente vinculado a este ideal – é uma ideia complexa, exigindo-se prudência e análise profunda de sua necessidade. Não pode, por conseguinte, limitar-se ao discurso de proclamação dos valores e ditames democráticos, que
análises de casos concretos que demonstram esse embate simbólico com consequências mais que reais ao funcionamento da Justiça.
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são por demais abstratos e passíveis de manipulação de interesse pela mídia. Assim, passa-se a
4 ANÁLISE DE CASOS CONCRETOS: A INFLUÊNCIA DA MÍDIA EM JULGAMENTOS TELEVISIONADOS
O Direito está mais próximo das pessoas quando analisado pela óptica dos casos concretos. É na decisão judicial que as normas, antes gerais e abstratas, ganham forma e se individualizam à lide. Nessa toada, um interessante meio de se checar a validade das influências de fatores metajurídicos no processo decisório judicial é a análise de casos concretos. Para esse fim, a opção feita no presente estudo não se limita a discutir tal influência apenas na jurisdição brasileira, mas vai além, uma vez que se optou por estudar, também, uma realidade experimentada no país norte-americano. O propósito a ser cumprido é a confirmação (ou não) daquilo já apresentado, conforme se apresenta e analisa o caso escolhido.
4.1
TV Justiça: aspectos gerais e influência sobre o processo decisório judicial A TV Justiça6 foi criada, por meio da Lei nº 10.461/2002, a qual altera a Lei nº
8.977/1995, que dispõe sobre o Serviço de TV a Cabo, para incluir canal reservado ao Supremo Tribunal Federal (STF). Esta foi sancionada por um integrante do STF, o ministro Marco Aurélio, quando exerceu de forma interina a Presidência da República durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, em maio de 2002. Ademais, apresenta-se como emissora pública e é transmitida pelo canal a cabo, satélite (DHT), antenas parabólicas e internet. Possui sede em Brasília, no STF, e foi o primeiro canal televisivo a transmitir julgamentos ao vivo do plenário desta Suprema Corte. Iniciou-se suas atividades em 11 de agosto de 2002, tendo como cerne a divulgação do cotidiano do Poder Judiciário e de suas principais decisões, de modo a ampliar o acesso do cidadão ao
ações e decisões. A TV Justiça tem como foco preencher lacunas deixadas por emissoras comerciais em relação a notícias sobre questões judiciárias, a fim de possibilitar que o público acompanhe o dia a dia do Poder Judiciário e suas principais decisões, favorecendo o conhecimento do cidadão sobre seus direitos e deveres. No entanto, a TV Justiça notabilizou-se pela transmissão de julgamentos.
6
TV JUSTIÇA. Disponível em: <http://www.tvjustica.jus.br/index/conheca>. Acesso em: 20 abr. 2018.
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conhecimento de seus direitos e deveres, bem como a buscar uma maior transparência em suas
É válido ressaltar que antes da criação da TV Justiça já há registro de casos emblemáticos que foram televisionados por influência da própria mídia. Um dos casos célebres de julgamentos realizados pelo STF foi a análise da Ação Penal 307, em dezembro de 1994, quando o Supremo absolveu Fernando Collor de Mello da prática de corrupção passiva, por suposto envolvimento no chamado Esquema PC. E antes mesmo do julgamento, devido a grande pressão da mídia e de ameaças a segurança do tribunal, segundo o ex-ministro Sydney Sanches (CONJUR, 2017), o STF permitiu que a sessão da Câmara dos Deputados que votou pela abertura do processo de impeachment de Fernando Collor fosse televisionada. A referida notoriedade da TV Justiça ocorreu a partir do julgamento da Ação Penal 470, conhecida como “Mensalão” – caso de corrupção que ganhou grande notoriedade pelo alto grau de desenvolvimento do esquema criminoso em questão.
Recentemente,
porém,
houve também outro caso que recebeu grande repercussão pública como foi o julgamento do Habeas Corpus 152752, por meio do qual a defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva buscava impedir a execução provisória da pena diante da confirmação pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) de sua condenação pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Houve uma grande comoção nacional em torno da sessão. Em todos os lugares, bares, academias, clínicas, restaurantes, em casa ou pela internet, os brasileiros acompanhavam os votos dos ministros que se prolongaram até o fim da noite. Vê-se que atualmente, com o advento da proximidade do Poder Judiciário ao cidadão provocado pela mídia, em especial, a TV Justiça, é comum encontrar cidadãos que saibam os nomes de todos os ministros da Suprema Corte – algo que há dez anos, por exemplo, não era tão fácil assim. É de se concordar que a TV Justiça trouxe muitos benefícios ao longo de sua história. Houve, como dito, a proximidade do cidadão brasileiro ao Judiciário, a ampliação das discussões em torno de temas importantes para a construção de uma sociedade mais ética e
No entanto, o que pretende frisar este artigo, é na necessidade de uma maior análise das nuances da mídia na seara que perpassa pelo discurso jurídico, pois, como visto, o midiático não é de todo representativo, verídico e transparente. Como afirma Garapon (1952, p. 89) “há uma grande diferença entre o ‘olhar despido’ do espectador numa sala de audiência e do ‘olhar aparelhado’ do telespectador, que só escobre o processo através de um enquadramento”. Aliás, releva-se aqui que a TV Justiça, por si, afirma um ideal democrático de transparência do Poder Judiciário, rompendo o formalismo próprio do mundo jurídico ao entrar nas casas dos brasileiros. No entanto, os demais canais de televisão antes ou concomitantemente 112
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civilizatória, como, por exemplo, o combate a corrupção.
à TV Justiça também realizar seus comentários e expõe suas opiniões, que mais tarde serão as opiniões dos telespectadores da TV Justiça. É necessário os juízes blindem-se dessa influência demasiada da mídia como um todo, para que os persecutórios da justiça, da imparcialidade e do respeito à ordem legal e constitucional prevaleça. Não se trata do simples fato de ser o julgamento televisionado, por uma emissora pública como a TV Justiça – este fato também traz sua carga valorativa própria como já explanado –, mas do fato de ser ter, aliado a isso, todo um cenário de pressão ao julgador feito/fabricado pela indústria televisiva. O que se pretende evitar é que o juiz, por meio de toda a midiatização vivenciada, hoje, torne-se um detentor de um poder-celebridade que não deve lhe pertencer por direito. Deve o juiz, em seu processo decisório, despir-se de toda a influência externa e evitar ao máximo que os julgamentos televisionados tornem-se verdadeiros processos-espetáculos, em que o sentimento social prevaleça sobre os ditames de matriz constitucional.
4.2
Um caso norte-americano: O Povo versus O.J. Simpson
Atualmente reconhecido como um dos casos mais famosos do último século, o julgamento de O. J. Simpson, em 1994, pelo assassinato de sua ex-mulher, Nicole Brown, e um de seus colegas, Ronald Goldman, continua dividindo opiniões. O caso sofreu uma forte influência da mídia e teve suas audiências televisionadas em canal aberto, chegando a atingir uma marca de 100 milhões de telespectadores mundiais. O episódio já é tido, inclusive, como um marco cultural americano, servindo como base para obras literárias, filmes, séries e músicas. Quando posto em discussão, esse julgamento gera intenso debate quanto à influência midiática no Poder Judiciário e no devido processo legal. Isso porque os meios de comunicação teriam feito de O. J. Simpson um protagonista de um verdadeiro reality show, cujo cenário era
após autorização do juiz Lance Ito para a filmagem das sessões, fato que inflou o interesse popular no assunto e fez dele uma verdadeira novela televisiva. O exemplo de O. J. Simpson se amolda perfeitamente aos propósitos do presente trabalho, pois coloca no centro da temática as influências externas no processo decisório do judiciário. Daí fala-se não só das decisões tomadas pelo juiz togado, mas também por aquelas tomadas pelo conselho de sentença do júri popular, como ocorrido no caso americano. Faz-se uma análise, então, do processo decisório do Estado-juiz, em seu sentido lato, e não somente na figura do juiz monocrático, togado e de carreira. 113
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o sistema judiciário norte-americano. Essa espetacularização teria se agravado, especialmente,
A influência da mídia pode ser percebida a partir de diversos nuances durante o rito do supramencionado julgamento. Isso pôde ser observado desde a postura tomada pelo juiz pronunciante até as teses escolhidas pela defesa. Quanto ao juiz pronunciante, sabe-se que este foi severamente criticado por diversos juristas americanos, que viam nele um estranho interesse na midiatização do caso – daí o porquê do magistrado ter sido acusado, não raras vezes, de autopromoção. Ademais, suas decisões foram fortemente taxadas como permissivas, indicando um punho fraco para lidar com os pedidos feitos pela defesa e possibilitando o deslocamento das discussões para o debate racial. A defesa, por sua vez, se utilizou de uma estratégia bastante eficaz para conquistar os jurados – e, por consequência, a opinião pública, que assistia assiduamente aos debates –: a arbitrariedade da polícia e o debate racial. O tema ainda representa um dos principais calos na democracia americana, dado o grande número de abusos policiais à comunidade negra e às desigualdades ainda latentes entre os dois grupos sociais. Pensando nisso, a tese foi levantada como a principal linha argumentativa da defesa e tinha como objetivo deslegitimar as evidências coletadas pela polícia de Los Angeles, especialmente levando a crer que as provas eram ilícitas e que haviam sido implantadas por um dos agentes investigativos do corpo policial. A estratégia ali escolhida tinha como pressuposto aproximar os jurados – principalmente, afro-americanos – à realidade racial vivida por O. J. Simpson, despertando neles uma maior inclinação à absolvição. Não há que se negar que essa estratégia tem forte cunho subjetivo e tenta desmontar a lógica silogística pretendida pelo julgador, pois tenta maximizar o valor em detrimento da norma e do fato. Assim, a intenção primária seria levar os jurados a perceber uma afinidade social com o acusado, de modo que fossem desconstruídos neles os argumentos levantados pela acusação ou, em último caso, que fosse diminuída, ao menos, a reprovabilidade pelo crime cometido.
correspondência entre o julgador e o acusado, de modo a aproximá-lo de sua realidade. Talvez por isso, embora os jurados expostos a um maior conteúdo midiático tenham maior prédisposição à condenação, no caso de O. J. Simpson, por sentirem uma relativa aproximação com a celebridade, viram minorados os impactos midiáticos quanto à sua culpa (BROWN; DUANE; FRASER, 1997, p. 266). Sendo este o caso, resiste o debate quanto à viabilidade dos atos processuais televisionados, discussão que se relaciona, inclusive, com a legitimidade do próprio Poder Judiciário perante a população. Isso porque aquelas pessoas que estão mais propensas a confiar 114
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Esse sentimento de afinidade, ou relação parassocial, seria justamente aquele de
no sistema judiciário de seu país, também são aquelas que veem menor interferência da mídia nas decisões judiciais, e que, por isso, preferem que os casos sejam televisionados sem restrições (BROWN; DUANE; FRASER, 1997, p. 268). O oposto também chega a ser verdadeiro. De qualquer modo, ao se falar em julgamentos largamente conhecidos, a impressão geral é de que tal televisionamento possibilita às pessoas comuns conhecerem o sistema judicial de seu país e discutirem sobre seu funcionamento. As discussões daí advindas, embora não raramente leigas, abre espaço para um ambiente democrático, do qual não se deve abrir mão.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após revisitar esses temas, pode-se deduzir que o estudo do processo decisório é indispensável à compreensão da própria função jurisdicional do Estado. Trata-se de ente político cuja ideia é ficção teoricamente criada, isto é, que representa um conjunto de instituições e pessoas. Assim sendo, deve ser compreendido como tal, para que a sociedade não seja surpreendida por decisões arbitrárias e desproporcionais. É exatamente por essa razão que o presente estudo optou por perscrutar o tema em apresso, analisando a partir da doutrina publicada e dos casos concretos a efetiva existência de fatores metajurídicos que influenciam no processo de tomada de decisão do juiz, na qual se destaca a influência da mídia televisionada. Frente a essa realidade, o magistrado deve tentar se revestir de sua imparcialidade e racionalidade, sob a tentativa de blindar-se de tais influxos externos. Esse exercício deve ocorrer, não raramente, pela aproximação do próprio juiz aos parâmetros legais e jurisprudenciais aplicáveis ao caso, que servirão de escudo às subjetividades inerentes ao psicológico humano. decisório – e, por conseguinte, reafirmará um padrão de decisão –, mas o jurisdicionado também poderá ter maior confiança nos resultados de suas lides, o que acarretará num ganho de legitimidade a esse poder constitucional. É dessa perspectiva que se pôde alcançar os objetivos pretendidos no presente estudo. Ao se analisar os casos concretos propostos, percebeu-se rupturas na racionalização desse processo decisório, pois tanto no ambiente jurisdicional americano quanto no brasileiro os juízes sofrem de tal subjetividades externas, não importando se são eles juízes togados ou membros do conselho de sentença. 115
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A partir desses standards, não só o juiz se aproximará da racionalização do seu poder
Devido à própria característica do trabalho e de sua limitação, porém, o que se nota é que se fez dificultoso estudar o alcance dos demais meios de mídia como influências no processo decisório, o que serve de base para estudos futuros. Isso porque o presente artigo não inaugura nem encerra o tema aqui trabalhado, mas serve como mais um instrumento de pesquisa e confirmação da curiosa formação de convicção do juiz. Esse tema, que abre a curiosidade daqueles que estudam a ciência jurídica, deve ser encarado não como um método cartesiano, mas como um processo psicológico que sofre de diversas influências, e que não pode ser reduzido a mero silogismo. O pensamento humano é produto de um conjunto complexo de variáveis, que resulta num destino único dentro de seu universo de possibilidades.
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THE TELEVISED MEDIA AS A META-JURIDICAL FACTOR OF THE JUDICIAL DECISION-MAKING
ABSTRACT The paper analyzes the televised media as a meta-juridical factor on the judicial decision-making. The purpose of this study is to verify that external meddling in the outcome of the case and its repercussion in cases of great social impact, whether in the first or higher instances. As objective parameter, will be analyzed cases of the US and Brazilian jurisdiction, which inspire both research and reflection on the judicial decision-making theory.
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Keywords: Judiciary. media. Judicial decision. Metajuridic factors.
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A PRESUNÇÃO DE NÃO CULPABILIDADE NO ÂMBITO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR: REFLEXÕES ACERCA DO CONTEÚDO JURÍDICO E SUAS IMPLICAÇÕES Letícia Maciel Emerenciano1 Daniel César Neves e Silva2
RESUMO O presente artigo aborda o Processo Administrativo Sancionador, em face das garantias constitucionais e ao princípio da presunção de não culpabilidade. Discute-se as garantias constitucionais compartilhadas entre o Processo Penal e o Processo Administrativo Sancionador no contexto pós Constituição Federal de 1988, em atenção às similaridades existentes. Assim, através de uma interpretação extensiva, defende-se a incidência do princípio da presunção de não culpabilidade, juntamente da ampla defesa e do contraditório no âmbito processual administrativo. Finalmente, desdobra-se a análise das consequências de sua aplicação
interna e externa processuais. Palavras-chave: Direito administrativo. Processo administrativo sancionador. Garantias processuais. Princípio da não culpabilidade.
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Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
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no Processo Administrativo Sancionador e seus reflexos nas dimensões
1 INTRODUÇÃO O vocábulo “processo”, durante muito tempo, esteve associado exclusivamente ao Processo Jurisdicional, isso significa que não era usual compreender a existência do fenômeno processual em outros domínios, tais como no âmbito da Administração Pública e do Poder Legislativo, por exemplo. Os próprios estudiosos do Direito Administrativo não conferiam especial enfoque com relação ao Processo Administrativo para a resolução de conflitos inerentes às questões da Administração Pública. A partir do Século XX, contudo, pôde-se observar, a aceitação doutrinária, legislativa e jurisprudencial da modificação e ampliação do conceito de processo, ultrapassando os limites do Processo Jurisdicional, de modo a se reconhecer a necessidade de uma sistemática administrativa, separada e diferente do Processo Jurisdicional, voltada para a resolução de controvérsias no âmbito da Administração Pública. É evidente que o Processo Administrativo, compreendido como uma série de atos concatenados que se desenvolvem antes da produção de um resultado final administrativo, possui diversas peculiaridades e especificidades que o distinguem do Processo Jurisdicional. Há de se mencionar, neste ensejo, que a relação processual formada no Processo Administrativo não é triangular como no Processo Jurisdicional. Ao contrário do Processo Jurisdicional, inexiste no âmbito do Processo Administrativo uma autoridade julgadora, equidistante das partes interessadas e sem afetação pessoal com a demanda, para julgar de forma técnica, equilibrada e justa. Essa característica não é necessariamente um problema quando as decisões emanadas em Processo Administrativo são dotadas de tecnicidade e razoabilidade. Entretanto, adquire contornos problemáticos no caso dos processos que visam a aplicação de sanções pela Administração Pública. Isso porque, nesse tipo de Processo Administrativo, a Administração
Penal. Nesta perspetiva, é importante levar em consideração os princípios constitucionais que informam o Processo Jurisdicional Penal, os quais se prestam a conter o exercício do poder punitivo estatal, tais como o contraditório, a ampla defesa e a presunção de não culpabilidade, de modo a refletir a possibilidade de aplicação destas garantias no Processo Administrativo Sancionador, não olvidando as especificidades que lhe são tão características. A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, incisos LIV e LV consagra de forma explícita o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório no âmbito do Processo 120
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exerce uma pretensão punitiva que em muito se assemelha a existente no Processo Jurisdicional
Administrativo. Dessa forma, em que pese não haver determinação expressa de que o Processo Administrativo deve observar ao princípio da presunção de não culpabilidade, sabe-se da impossibilidade de haver efetivo devido processo legal, ampla defesa e contraditório efetivos em um Processo Administrativo que visa a aplicação de sanções, sem garantia do primeiro, isto é, do princípio da presunção de não culpabilidade.
2 O PROCESSO ADMINISTRATIVO
Antes da instauração do Estado Democrático de Direito, tinha-se tão somente normas esparsas relativas ao funcionamento da Administração Pública, à competência de seus órgãos, aos poderes do Fisco, à utilização dos bens públicos pelo povo e à servidão pública. À época, vivia-se o Estado de Polícia, característico de monarquias absolutistas, em que o Direito Público se reduzia à máxima do direito ilimitado para administrar, consolidada em dizeres como “the king can do no wrong” (O rei não pode errar). A inexistência de limites legais ao poder no absolutismo deixava a Administração Pública, na figura do rei, imune à jurisdição dos tribunais, pois suas decisões e atos estavam acima do aparato legal, acima, pois, do ordenamento jurídico. Nesta perspectiva, não existiam tribunais independentes, visto que o rei era quem decidia conflitos entre particulares em primeira instância, e as funções judicantes eram resolvidas por um conselho subordinado à autoridade monárquica. Entretanto, a formação do Direito Administrativo começou juntamente com o Direito Constitucional, a partir do Estado de Direito, submetendo seus governantes à lei e à separação dos três poderes, para a garantia de direitos individuais e a devida limitação da pretensão sancionadora do Estado (DI PIETRO, 2017, p. 2-3).
associado estritamente à atuação jurisdicional, sendo exercido pelo Poder Judiciário. Durante os séculos XIX e XX, predominava uma visão mais privatista do processo e da jurisdição, extremamente vinculados aos direitos subjetivos, impedindo uma visão mais ampla da processualidade, sem abarcar a Administração Pública em suas atribuições (HARGER, 2008, p. 56-7). Neste sentido, é tão somente a partir da década de 1950, que é atestada a amplitude do rito processual, passando a abranger também as demais funções estatais, uma vez que o
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Neste contexto de reestruturação do Estado, por muitos anos, o termo processo foi
processo é inerente à existência do Estado Democrático de Direito, em respeito ao princípio da legalidade. Assim, o processo passa a ser considerado como o aspecto dinâmico de um fenômeno que se concretiza no decorrer do tempo e que reflete a transformação do poder estatal por meio de atos e decisões. Desta forma, hodiernamente, não se restringe a existência do processo ao exercício da função jurisdicional, mas ele se afirma e se consolida mediante o exercício das funções legislativa e executiva (HARGER, 2008, p. 56-7). Consequentemente, pode-se falar em processo em um sentido notadamente amplo, de modo a abranger os instrumentos de que se utilizam os três Poderes do Estado. Ao desempenhar suas respectivas funções, cada um dos poderes se utiliza de processo próprio, advindo da Constituição, a qual estabelece as regras fundamentais de competência e forma, institui os órgãos, define suas atribuições, confere-lhes prerrogativas e obrigações. Estas limitações visam o estabelecimento de garantias da independência e do equilíbrio no exercício de suas funções institucionais, ressalvados os direitos individuais expressos na Constituição Federal de 1988 (DI PIETRO, 2017, p. 791). Nesse sentido amplo, em que o Processo Administrativo se apresenta como uma série de atos coordenados para a realização dos fins estatais, pode-se aferir uma primeira classificação, separando o processo legislativo – pelo o qual o Estado elabora a lei – dos processos judicial e administrativo, pelos quais o Estado aplica a lei (DINAMARCO citado por MEDAUAR, 2008, p. 19). É sabido a diferenciação entre processo e procedimento, em que pese o termo “processo” seja utilizado generalizadamente. Esses distinguem-se no tocante das suas finalidades e dos seus meios, quais sejam: o procedimento é a sequência de atos administartvios unilaterais, enquanto o processo exige que haja contraposição de interesses entre partes distintas, sendo, pois, não unilateral e mais orientado pelo princípio do contarditório.
só o interesse público, mas também os direitos dos administrados, como ocorre na licitação, nos concursos públicos e nos processos disciplinares (DI PIETRO, 2017, p. 793). Importante esclarecer, contudo, que essa necessária rigidez procedimental não pode ficar circunscrita ao Processo Administrativo Disciplinar, sendo imprescindível em todo e qualquer Processo Administrativo Sancionador. Desse modo, o que se compreende por Processo Administrativo Sancionador não se confunde com Processo Administrativo Disciplinar, porquanto aquele é gênero do qual este é espécie. O Processo Administrativo Sancionador pode ser compreendido como todo processo 122
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Ademais, o procedimento é imposto com maior rigidez quando esteja envolvido não
que se desenvolve no âmbito da Administração Pública e que tem por finalidade precípua apurar fatos para, se for o caso, aplicar sanções. É possível citar como exemplo o Processo Administrativo de Responsabilização previsto na Lei n. 12.846/13 (Lei Anticorrupção). O Processo Administrativo Disciplinar, por sua vez, é uma espécie de Processo Administrativo Sancionador, que pode ser concebido como o instrumento destinado a apurar e, eventualmente, punir o servidor público por infração praticada no exercício de suas atribuições, ou que tenha reação com elas. Há, portanto, outros processos que se desenvolvem no âmbito da Administração Pública, que tem por finalidade precípua apurar fatos para, se for o caso, aplicar sanções. Com efeito, é nesta realidade de Estado Democrático de Direito e na legitimidade da ação estatal que o Direito Administrativo Sancionador se fundamenta, enquanto instrumento de contenção do poder estatal. Através de princípios que limitam este agir administrativo voltado à aplicação de uma sanção, como o devido processo legal, a ampla defesa e do contraditório, bem como a proporcionalidade e razoabilidade, a segurança jurídica, legalidade e tipicidade (GARCIA; MOREIRA NETO, 2013, p. 9-28), que sem barreiras de proteção, acabariam por retomar as práticas do arbítrio que antecederam o Estado de Direito. Esses princípios e garantias ganharam tal amplitude ético-jurídica que passaram a reger e orientar toda e qualquer expressão de poder estatal sancionador, deles derivando-se legítimos mecanismos para o efetivo controle ao exercício indevido do direito de punir estatal, que sem barreiras de proteção, acabaria por retornar às práticas do arbítrio que antecederam o Estado de Direito. Resta óbvia, portanto, a existência de duas funções: a limitação e o controle ao poder do Estado, para coibir os excessos e desvios praticados no exercício do poder político em desfavor dos administrados (GARCIA; MOREIRA NETO, 2013, p. 9-28).
Nas Constituições anteriormente vigentes no território nacional, o Processo Administrativo era tratado somente em seu âmbito disciplinar, com algumas garantias características do Processo Jurisdicional. Inclusive, no âmbito da administração, eram extraídas, pela doutrina e jurisprudência, por analogia ou interpretação extensiva, as garantias fixadas para o Processo Penal (PEREIRA JÚNIOR citado por MEDAUAR, 2008, p. 77). Por sua vez, a Constituição de 1988 versa expressamente sobre o Processo Administrativo, em sentido amplo, por meio dos incisos LIV e LV do art. 5º, referentes ao 123
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3 O PROCESSO ADMINISTRATIVO À LUZ DA CONSTITUIÇÃO DE 1988
devido processo legal, assegurando o direito constitucional ao contraditório e à ampla defesa, fazendo referência a todo tipo de processo conduzido pelo Estado, inclusive o administrativo. Nessa perspectiva, o texto constitucional norteia as atividades da Administração Pública, ao impor limites ao poder discricionário do Estado. De modo que é o Processo Administrativo um dos meios de concretização dos princípios constitucionais. Ao preconizar a observância do contraditório nas situações que aponta, formula exigência expressa de que a edição de ato administrativo se efetue mediante desenvolvimento de relação jurídica processual, em que posições jurídicas referentes a direitos, faculdades e ônus se deem igualmente para a Administração, tal qual para seus administrados (MEDAUAR, 2008, p. 77-8). Para Odete Medauar (2008, p. 77-8), o art. 5º, LV, trata-se de garantia, e não de um direito propriamente dito. Isso porque se presta a tutelar direitos, que devam ser preservados e reconhecidos na esfera administrativa. É, neste caso, um instrumento a serviço de um direito. Em suma, a conjunção dos incisos LIV e LV do art. 5º positivam o instituto de um Processo Administrativo que ofereça, às partes, oportunidade de apresentar sua defesa, suas provas, a contraposição de seus argumentos a outros, resultando na capacidade de influir na formação do resultado final. O devido processo legal desdobra-se, sobretudo, nas garantias do contraditório e da ampla defesa aplicadas ao Processo Administrativo. Por último, mas não menos importante, há de se falar sobre o princípio da motivação na esfera administrativa. Por motivação, pode-se entender como a declaração das condições de fato e de direito que levam à prática do ato, devendo conter, ainda, a demonstração do nexo de causalidade entre os fatos ocorridos e o conteúdo do ato. Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello (2013, p. 283), a necessidade de constar o nexo de causalidade para motivar a decisão administrativa serve como princípio balizador para determinar os vícios pertinentes ao ato discricionário. Sucessivamente, é por meio da motivação que se demonstram as razões da
Jurisidicional. A justificativa para a implementação da motivação no princípio administrativo diz respeito ao art. 93, X, da Constituição Federal de 1988, o qual dispõe: “as decisões administrativas dos tribunais serão motivadas e em sessão pública, sendo as disciplinares tomadas por maioria absoluta de seus membros”. Este artigo impõe a motivação dos atos administrativos praticados pelo Judiciário e implica dizer que na paridade entre a motivação da decisão judicial em sede de demanda administrativa deve incidir também no Processo Administrativo, seja ele Comum ou Sancionador (HARGER, 2008, p. 107-8). 124
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decisão administrativa, o porquê da tomada de uma decisão e não de outra, tal qual no
Para Marcelo Harger, a obrigatoriedade da motivação também se dá pela sujeição da Administração Pública à legalidade, que somente pode ser comprovada mediante a motivação de seus atos administrativos. Além disso, a simples menção à cidadania e à soberania popular como fundamentos do Estado de Direito já poderiam ensejar como fundamento ao direito dos administrados em saber a motivação dos atos administrativos, em sede de processo ou não (HARGER, 2008, p. 107-8).
4 AFINIDADES ENTRE O PROCESSO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR E O PROCESSO JURISDICIONAL PENAL
Como já visto anteriormente, a noção de processo foi substancialmente ampliada, abarcando todo fenômeno processual que sirva de instrumento procedimental para atingir determinado fim, seja ele qual for. Nessa concepção, está presente não só no âmbito do Poder Judiciário – exercício da atividade jurisdicional –, mas também nos Poderes Executivo e Legislativo. Com objetivos distintos, os três poderes estatais desenvolvem seus processos próprios: o processo legislativo com vistas à elaboração das leis e o processo judicial e administrativo com a finalidade de aplicar as leis. Não obstante a dispare finalidade, há um núcleo comum entre eles: a sua vinculação com o exercício do poder estatal. Embora existam outros importantes pontos de aproximação entre os três tipos de processo, tais como a encadeação sucessiva de atos, a busca de um resultado unitário, a pluripessoalidade necessária e a interligação dos sujeitos, é essencial compreender o fundamento do processo enquanto instrumento do exercício do poder. O poder estatal é utilizado para impor uma sanção a um particular tanto no Processo aplicação de uma sanção (MELLO, 2013, p. 508), enquanto aquele “funciona como instrumento do qual se vale o Estado para a imposição de sanção penal ao possível autor do fato delituoso” (LIMA, 2016, p. 11). Em ambos, portanto, se verifica o exercício da pretensão punitiva estatal. Dessa inequívoca similitude, decorrem outros importantes pontos de aproximação que fundamentam a aplicabilidade de institutos jurídicos desenvolvidos no âmbito do Direito Processual Penal na condução dos processos administrativos sancionadores. Ora, é certo que, em um Estado Democrático, o exercício do ius puniendi (direito de punir) estatal está condicionado à observância de uma série de deveres e obrigações, o que 125
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Jurisdicional Penal, quanto no Processo Administrativo Sancionador. Este se preordena à
protege o cidadão de decisões arbitrárias e do abuso do poder estatal. A relação entre particular e Estado, em uma democracia, é regulada por normas, gerais, certas, constantes e preestabelecidas, de modo que essa proteção do particular frente ao poder estatal é justamente o que distingue um regime democrático de um totalitário (BOBBIO citado por LIMA, 2016, p. 11-2). Pela particular relevância dos bens jurídicos envolvidos no Processo Penal – a liberdade e, em alguns sistemas, a própria vida do acusado – a ciência processual penal se desenvolveu entorno de uma série de regras e princípios que limitam ou, pelo menos, condicionam o exercício da pretensão punitiva do Estado. O Processo Administrativo Sancionador, por sua vez, se fundamenta em princípios como a supremacia do interesse público e presunção da veracidade dos atos administrativos que devem ser refletidos e compreendidos de forma comedida, haja vista sua potencial colisão com normas e princípios que se prestam à limitação do poder punitivo do Estado. Isso porque, em um regime democrático, a Administração Pública não pode aplicar sanções de forma discricionária, o que significaria um retrocesso ao autoritarismo típico dos regimes totalitários. Por isso a importância de entender o Processo Administrativo Sancionador enquanto instrumento de garantia dos administrados ante as prerrogativas públicas. Uma preocupante questão que circunda o Processo Administrativo Sancionador é o fato de este constituir, diferentemente do Processo Jurisdicional, uma relação bilateral, na qual de um lado se encontra o administrado, que deduz uma pretensão própria, e da Administração, que “quando decide, não age como terceiro, estranho à controvérsia, mas como parte que atua no próprio interesse e nos limites que lhe são impostos por lei” (DI PIETRO, 2017, p. 792). Essa bilateralidade remete ao modelo inquisitivo do Processo Jurisdicional Penal. Neste, “as funções de acusar, defender e julgar encontram-se enfaixadas nas mãos de um juiz acusador, isto é, um inquisidor” (BADARÓ, 2015, p. 87-8). O processo inquisitivo reflete
No Processo Administrativo Sancionador, as funções acusatória e decisória competem à Administração Pública que atua e julga no próprio interesse, e não como terceiro desinteressado na questão, fato que constitui obstáculo intransponível à imparcialidade no âmbito das decisões administrativas. Por essa razão e em decorrência do sistema de jurisdição una adotado no Brasil, as decisões proferidas no âmbito administrativo não possuem força de coisa julgada, de modo que estão sujeitas ao controle jurisdicional. Mesmo havendo, contudo, possibilidade de controle jurisdicional, é de fundamental importância que o Processo Administrativo e, pela sua inegável aproximação com o processo 126
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autoritarismo, por isso, é incompatível com o Estado Democrático de Direito.
jurisdicional penal, especificamente o Processo Administrativo Sancionador, seja informado por princípios e regras que garantam os direitos do administrado frente às prerrogativas da Administração Pública e limitem seu exercício do poder sancionatório.
5 PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE NÃO CULPABILIDADE
O modelo inquisitivo de processo penal dominou o período que antecedeu a Revolução Francesa e foi marcado pelo autoritarismo estatal e pela aplicação arbitrária de sanções ao cidadão, que tinha pouco, ou nenhum direito de defesa diante do poder punitivo estatal. Com as revoluções liberais do século XVIII, contudo, essa lógica inquisidora foi transformada a partir do reconhecimento de garantias ao particular. A expressão defendida por Cesare Beccaria, ainda em 1764, de que “um homem não deve ser chamado réu antes da sentença do juiz e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública após ter decidido que ele violou os pactos por meio dos quais ela lhe foi outorgada” já refletia bem o conteúdo do princípio da presunção de não culpabilidade, este que só foi encartado na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789. Iniciou-se, contudo, no contexto pós Segunda Guerra Mundial um verdadeiro movimento pela busca de referenciais éticos voltados à proteção e promoção da dignidade humana. Nesse cenário, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, em 1948, proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, consagrando garantias ao acusado em processo penal, inclusive a presunção de não culpabilidade prescrita no art. 11, 1, nestes termos:
Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente, até
público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.
No ordenamento jurídico brasileiro, a Constituição Federal de 1988 foi a primeira a prever expressamente o princípio da não culpabilidade, no inciso LVII do art. 5º: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Antes de sua promulgação, o referido princípio existia somente de forma implícita, como decorrência da cláusula do devido processo legal.
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que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento
Sobre isso, as principais significações que podem ser extraídas do princípio da presunção de não culpabilidade, é no tocante de ser elemento fundante de um modelo de Processo Sancionador, seja ele criminal ou administrativo disciplinar. De modo que, além do dever de respeitar as garantias fundamentais do imputado, deve o Estado adotar as providências necessárias para ampliar tais garantias e assegurar a sua tutela com máxima efetividade (LIMA, 2016, p.16-8). O segundo conteúdo diz respeito à regra de tratamento ao suspeito, que se manifesta tanto na dimensão externa, quanto na dimensão interna do processo. Internamente, relacionase às garantias constitucionais da imagem, dignidade e privacidade, porquanto protege o acusado da estigmatização e determina seu tratamento de forma respeitosa, enquanto sujeito de direitos. Internamente ao processo, a regra de tratamento determina a excepcionalidade da privação cautelar da liberdade, impondo como regra que o acusado responda o processo em liberdade. O terceiro desdobramento do princípio da presunção de não culpabilidade corresponde à regra probatória, que impõe exclusivamente a parte acusadora o ônus de demonstrar a culpabilidade do acusado além de qualquer dúvida razoável, e não a este o dever de demonstrar sua inocência. Essa acepção da presunção de não culpabilidade coincide com o princípio in dubio pro reo (na dúvida, em favor do réu), segundo o qual a dúvida deve ser interpretada sempre em favor do acusado, vez que cabe ao órgão acusador provar que o réu praticou a conduta que lhe é imputada (LIMA, 2016, 16-8). O princípio da presunção de não culpabilidade foi concebido, inicialmente, para resguardar a liberdade individual do cidadão frente ao poder de punir no âmbito do Processo Jurisdicional Penal. Contudo, hoje é mais adequado compreendê-lo como aplicável a qualquer modelo de processo sancionatório, seja ele Jurisdicional Penal ou Administrativo Sancionador. Embora não haja previsão expressa da aplicação direta do aludido princípio no âmbito
art. 5º da Constituição Federal de 1988, que consagram explicitamente o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório no Processo Administrativo, leva à conclusão de que a presunção de não culpabilidade é tutelada de forma implícita e por isso, igualmente aplicável nestes processos (RIBAS, 2010, p. 179). Dessa maneira, é impossível conceber o princípio fundamental do devido processo legal, segundo o qual “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (dicção do art., 5º, LIV da Constituição Federal de 1988), em um processo que não observe também a presunção de não culpabilidade. Para um processo ser justo, adequado 128
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do Processo Administrativo, uma interpretação sistemática dos incisos LIV, LV, LXXVIII do
e garantidor de direitos, somente pode haver uma condenação se comprovada, inequivocamente, a culpabilidade do acusado. De forma semelhante, vincula-se o princípio em comento ao direito fundamental à ampla defesa e ao contraditório, definidos no art. 5º, LV, da Constituição Federal de 1988: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Desta feita, impõe-se ao Estado o fornecimento de condições materiais para que o acusado exerça seu direito de defesa, com todos os elementos necessários para tanto, além de assegurar a oportunidade de o acusado contestar todas as alegações contra ele dirigidas (BACELLAR FILHO, 2009, p. 33-5). Desse modo, a presunção de não culpabilidade está intrinsecamente conectada aos demais direitos fundamentais ligados ao processo sancionatório, porquanto “o fundamento último da presunção de inocência repousa na proteção da liberdade e da dignidade do cidadão” (BACELLAR FILHO, 2009, p. 33-5). É, portanto, aplicável no âmbito do Processo Administrativo e assume substancial importância no Processo Administrativo Sancionador.
6 CONSEQUÊNCIAS DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE NÃO CULPABILIDADE NO PROCESSO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR
A partir da análise do conteúdo do princípio da presunção de não culpabilidade e de suas convencionais implicações no Processo Jurisdicional Penal, sua aplicação e consequências decorrentes no âmbito do Processo Administrativo Sancionador, merecem aprofundamento, principalmente no que diz respeito às suas especificidades, em atenção aos princípios que regem a Administração Pública, suas prerrogativas e a bilateralidade da relação processual formada. Nesta perspectiva, bem como ocorre no Processo Jurisdicional Penal, a aplicação do princípio
considerações.
5.1 Dimensão extraprocessual
Na dimensão extraprocessual, o princípio da presunção de não culpabilidade se revela como regra de tratamento do acusado como inocente, impondo à Administração Pública o dever de tomar todas as cautelas possíveis a fim de resguardar a imagem do acusado.
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em comento enseja implicações endoprocessuais e extraprocessuais, que merecem maiores
Há que se levar em consideração, contudo, o princípio constitucional da publicidade administrativa, o qual “exige ampla divulgação dos atos praticados pela Administração Pública, ressalvadas as hipóteses de sigilo previstas em lei” (DI PIETRO, 2017, p. 103). Desse modo, em regra o agir administrativo é público, de modo a permitir o controle de sua validade e eficácia, mas a própria Constituição Federal de 1988 resguarda os casos em que existem outros interesses relevantes em jogo. Determina o art. 5°, XXXIII:
Todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.
Por sua vez, o art. 5°, LX, também reconhece a intimidade e o interesse social como limitadores da publicidade processual: “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem” (BACELLAR FILHO, 2009, p. 49-51). Desta feita, é imperioso compatibilizar o princípio da presunção de inocência no Processo Administrativo com o princípio da publicidade que rege à Administração Pública como forma de resguardar o direito fundamental à inviolabilidade da honra, da imagem, da intimidade e da vida privada (art. 5º, X), sob pena de violar a integridade moral do acusado, dando azo à “condenação social antecipada”. Por isso, enquanto não houver decisão, é legítimo manter sob sigilo o procedimento” (SUNDFELD citado por BACELLAR FILHO, 2009, p. 52).
5.2 Dimensão endoprocessual
princípio da presunção de não culpabilidade. Primeiramente a incidência da regra probatória que se traduz no princípio in dubio pro reo (na dúvida, em favor do réu) que impõe à Administração Pública o dever de provar a materialidade e a autoria de uma infração administrativa, bem como determina que a dúvida acerca desses elementos deve ensejar o encerramento do processo administrativo sem a imposição de sanções ao administrado (RIBAS, 2010, p. 179).
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São várias as implicações internas ao Processo Administrativo da aplicação do
Desta feita, a condenação do imputado em um Processo Administrativo Sancionador somente poderá resultar de um juízo de certeza, fundado em provas substanciais que confirmem a efetiva prática da conduta ilícita e sua autoria. Para o administrado, portanto, não há dever de comprovar sua ausência de culpa e sim um direito de refutar as provas e os argumentos suscitados pela acusação, como consectário da presunção de não culpabilidade e da ampla defesa. Analisando essa questão, Sérgio Ferraz e Adilson Dallari (citado por RIBAS, 2010, p. 187-8) consideram a aplicação dessa regra probatória no âmbito do Processo Administrativo “uma guinada de 180 graus na teoria administrativa, sempre marcada pela preponderância da Administração, bem como pela suposição pacífica da supremacia do interesse público”. Nesse ínterim, sustentam ser incabível ao Processo Administrativo, porquanto a Constituição Federal de 1988 conferiu-lhe natureza de garantia fundamental ao administrado, o que impõe que o Estado-parte desvista o manto da supremacia do Estado-administrador na condução do Processo Administrativo. E no que diz respeito às medidas acautelatórias no âmbito do Processo Administrativo Sancionador, dispõe o art. 45, da Lei Federal n. 9.784/1999 que “em caso de risco iminente, a Administração Pública poderá motivadamente adotar providências acauteladoras sem a prévia manifestação do interessado”. À luz do princípio da presunção de não culpabilidade e das demais garantias processuais, faz-se necessário, para a concessão desse tipo de medida, vigorosa motivação que efetivamente demonstre o risco iminente e a urgente necessidade de se impor a cautela. Além da robusta motivação, deve ser conferida ao administrado a oportunidade de discutir seu cabimento e conteúdo no curso do Processo Administrativo (RIBAS, 2010, p. 189). Ademais, há ainda a questão da aparente incongruência entre o princípio da presunção de não culpabilidade e a presunção da veracidade dos atos administrativos. Ora, é certo que presunção de veracidade, contudo, “à luz da presunção de inocência, não se deve admitir a imposição de sanção sem prova do ilícito, com fundamento exclusivo em uma presunção genérica de veracidade das afirmações apresentadas pela Administração Pública”, consoante entende Demian Guedes (2007, p. 127), Nesse sentido, as provas eventualmente produzidas pela Administração Pública não podem ser consideradas absolutas, pelo fato de gozarem de presunção de veracidade ou legitimidade, de modo que, se o ato for impugnado, deve o Poder Público provar cabalmente a
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determinados documentos ou provas produzidas pela Administração Pública gozam de
autoria e materialidade do ilícito, não podendo sustentar uma condenação apenas na presunção de veracidade. Pelo exposto, sem prejuízo de outros desdobramentos que a aplicação do princípio da presunção de não culpabilidade pode ensejar, vislumbra-se a necessária aplicação desta garantia no âmbito do Processo Administrativo Sancionador, de forma compatível com o regime jurídico administrativo. Essa compatibilização, contudo, não pode significar o esvaziamento do conteúdo desde princípio, o que resultaria na mesma situação da sua inobservância. Assim, da mesma forma que o princípio consiste, no Processo Jurisdicional Penal, em uma garantia processual ao acusado frente ao poder de punir do Estado, no Processo Administrativo Sancionador, representa garantia ao administrado a quem é imputada uma infração administrativa.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar de não constar de forma expressa na Constituição Federal de 1988, a partir de uma interpretação sistemática dos incisos LIV, LV e LXXVIII de seu art. 5º e quando analisado sob o viés de garantias processuais e à luz dos princípios fundantes do ordenamento jurídico brasileiro, pode-se constatar a necessária e devida aplicação do princípio da presunção de não culpabilidade no âmbito do Processo Administrativo. Este princípio visa a contenção da pretensão punitiva estatal, e aliado a outros abordados, como o da motivação, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, enseja a legitimação dos atos administrativos no bojo do processo. Desse modo, a aplicação da presunção de não culpabilidade no Processo Administrativo Sancionador implica, sobretudo, na sua adequação a um modelo de processo garantidor de direitos, em consonância com o
pessoa humana.
REFERÊNCIAS
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fundamento último do Estado Democrático de Direito: a proteção e promoção da dignidade da
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citado por BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. O direito fundamental à presunção de
THE
PRESUMPTION
OF
NON-CULPABILITY
ON
THE
PUNITIVE
ADMINISTRATIVE PROCEDURE SCOPE: REFLECTIONS ON THE JUDICIAL CONTENT AND ITS APPLICABILITY.
ABSTRACT The present article discusses the evolution of the Punitive Administrative Proceedings, facing the constitutional warranties and the presumption of non-culpability principle. It discusses the constitutional warranties shared between Criminal Procedures and Punitive Administrative Procedures in context with the 1988 Constitution, in attention to shared procedural similarities. Thus, through an extensive interpretation, it defends the principle of presumption of non-culpability, alongside with full defense and adversarial principles. Lastly, it analyzes the consequences of applying such principles upon Punitive Administrative Proceedings and its reflexes on the internal and external dimensions to the proceedings. Keywords: Administrative law. Punitive administrative procedure.
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Procedural warranties. Non-culpability principle.
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A PROTEÇÃO AO REFUGIADO E A SOBERANIA NO FECHAMENTO DE FRONTEIRAS: ANÁLISE DO FECHAMENTO TEMPORÁRIO DA FRONTEIRA BRASIL–VENEZUELA Rafaela Câmara Silva1 Flora Coralina Mendes Silva2
RESUMO O presente trabalho objetiva analisar os aspectos da soberania no fechamento de fronteiras, examinando o fechamento temporário da fronteira Brasil–Venezuela. Efetuando uma investigação documental do trâmite processual do fluxo migratório Venezuela–Brasil e do conflito federativo entre o estado de Roraima e a União, a pesquisa analisa a legislação brasileira e os tratados internacionais, cujos Brasil é signatário, referentes à temática do refúgio. Conclui-se que, ao proibir a entrada de refugiados venezuelanos, houve um descumprimento de regulamentações internacionais e nacionais, vislumbrando-se a
coordenar a aplicabilidade legislativa da política imigratória brasileira. Palavras-Chaves: Proteção aos refugiados. Política imigratória. Soberania nacional.
1
Professora de Direito na Universidade Potiguar. Mestre em Direito e Especialista em Direito Internacional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Integrante do Grupo de Pesquisa Direitos Fundamentais e Políticas Públicas (DIFUNDA). Advogada. 2 Graduanda em Direito pela Universidade Potiguar. Integrante do Grupo de Pesquisa Direitos Fundamentais e Políticas Públicas (DIFUNDA).
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necessidade de idealização e efetivação de políticas públicas para
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objeto a análise dos aspectos da soberania no fechamento de fronteiras e pretende, assim, investigar tal temática no tocante ao fechamento temporário da fronteira Brasil–Venezuela, em decorrência da Ação Civil Pública (processo nº 00287992.2018.4.01.4200), ajuizada pela Defensoria Pública da União e pelo Ministério Público Federal. Ademais, pretende-se analisar a aplicação dos mecanismos de proteção aos refugiados venezuelanos diante da referida situação, bem como identificar os impactos causados perante os regulamentos internacionais, os quais o Brasil é signatário, e as disposições do direito pátrio pertinente ao refúgio. Como matéria regulada pela Organização das Nações Unidas, a partir da Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados em 1951, a questão dos refugiados, apesar do seu destaque atual, é uma pauta que tem preocupado a comunidade internacional ao longo dos anos. O Brasil, em 2017, registrou o maior número de solicitações de refúgio em comparação aos anos anteriores, o que evidencia o compromisso assumido com os indivíduos em situação de refúgio – indivíduos forçados a abandonarem seus países de origem devido a perseguições por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social, opiniões políticas ou em decorrência da grave violação de direitos humanos – ao longo dos seus períodos governamentais. Como expressão deste compromisso tem-se a criação da Lei Federal n. 9.474, de 1997, que definiu os mecanismos para a implementação da Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951 e, recentemente, a criação da Lei nº 13.445, de 2017, que regula a migração no país. Contudo, apesar de possuir uma legislação avançada no tocante ao refúgio, por vezes a aplicabilidade dos mecanismos de proteção aos refugiados é questionada. Segundo as estatísticas dispostas na 3ª Edição do Refúgio em Números, produzido pela Secretaria Nacional da Justiça, em parceria com Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados ano de 2017, foi a Venezuela – isto porque a crise humanitária vivenciada no país provocou uma forte onda migratória em direção ao Estado brasileiro. Segundo dados do ACNUR, em 2017, havia 30.000 venezuelanos vivendo no Brasil, número que em abril de 2018 já ultrapassava mais de 52.000 indivíduos, dos quais 40.000 teriam atravessado a fronteira com o Brasil no estado de Roraima, chegando através da cidade de Pacaraima, que entrou em severa crise econômica e social devido aos cerca de 800 ingressos diários. Devido à crise populacional vivenciada em Pacaraima, e que se alastrou por todo o estado de Roraima, e à falta de repasses de recursos por parte da União, a governadora do estado 137
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(ACNUR), o país que mais solicitou reconhecimento da condição de refugiado ao Brasil, no
proferiu o Decreto estadual nº 25.681/2018, tornando mais dificultoso o acesso de migrantes e refugiados aos serviços públicos no estado de Roraima. Assim, a Defensoria Pública da União e o Ministério Público Federal propuseram Ação Civil Pública (processo nº 00287992.2018.4.01.4200) à União e ao Estado de Roraima, requerendo, em caráter cautelar, que os réus não condicionassem a prestação de serviços públicos básicos à apresentação de determinado documento em especial. Entretanto, na decisão liminar, o magistrado de piso, afastando-se dos limites do pedido, determinou o fechamento temporário da fronteira Brasil– Venezuela ou, ao menos, limitou o ingresso de refugiados venezuelanos em solo brasileiro, deixando a fronteira fechada por 15 horas. Assim, o grau de importância desse estudo encontra-se no absoluto descumprimento dos liames processuais na referida decisão e, sobretudo, no grave risco à ordem pública e ao interesse público advindo desta. Tal fato colocando em risco a posição do Estado brasileiro perante os diversos outros países signatários de decretos e convenções internacionais, bem como levantando o questionamento acerca da aplicação dos mecanismos de proteção aos venezuelanos durante o fechamento da fronteira. A partir do método descritivo, foi realizada uma revisão documental no que concerne ao trâmite processual do fluxo migratório Venezuela–Brasil, à situação de refúgio em sentido amplo, ao fechamento de fronteira e ao conflito federativo entre o estado de Roraima e a União. Bem como uma revisão literária da legislação brasileira e dos tratados internacionais referentes à temática do refúgio, cujos o Brasil é signatário. Além disso, foi realizada uma análise documental das políticas públicas brasileiras direcionadas aos refugiados antes do fechamento da fronteira e o impacto na aplicação nas mesmas após o fechamento.
Segundo Lilich (1984), conforme citado por Reis (2004, p.02), a autonomia do Estado no campo das migrações é uma das principais características do Direito internacional tradicional. Internacionalmente, são os Estados que se relacionam entre si, ou seja, não há uma relação entre indivíduos de uma determinada nacionalidade e Estados de outra. Quando, por ventura, ocorre um conflito nesses termos – por exemplo, se um determinado Estado ofende de alguma forma um cidadão de outro Estado –, a questão passa a ser tratada na esfera governamental, assume a forma de uma ofensa de um Estado ao outro, e só pode ser discutida e resolvida entre eles. 138
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2 ASPECTOS DA SOBERANIA NO FECHAMENTO DE FRONTEIRAS
Ademais, conforme citado por Cunha (2010, p.69), é importante destacar que Kelsen já advogava a relativização da soberania, já que, para ele, a mera existência do Direito Internacional implicaria uma limitação à autonomia estatal e, por conseguinte, à soberania dos Estados. Para Kelsen (MATIAS, 2005, p.52), inclusive, a soberania seria determinada pelo próprio Direito Internacional, o que levaria a crer, portanto, que “a soberania depende da ordem jurídica internacional”. Nesta perspectiva, “a soberania não significaria que o Estado fugiria ao alcance de toda regra de direito, mas sim que ele não se subordinaria a nenhuma outra autoridade” (MATIAS, 2005, p.52). Assim, em se tratando de determinações fronteiriças e, consequentemente, de crescentes fluxos migratórios direcionados aos países, tem-se que, por vezes, a soberania estatal se sobrepõe à acolhida dos imigrantes, possibilitando, assim o fechamento das fronteiras. Contudo, na maioria das vezes, não são avaliados os prejuízos que esse fechamento pode ocasionar para além do desrespeito aos diplomas cujo país é signatário.
3 FLUXO MIGRATÓRIO DA POPULAÇÃO VENEZUELANA PARA O BRASIL: ANÁLISE DA CONCESSÃO DE STATUS DE REFUGIADO
De acordo com a 3ª edição do relatório Refúgio em números, produzido pela Secretaria Nacional da Justiça, em 2017, nos últimos sete anos, o Estado brasileiro recebeu 126.102 solicitações de reconhecimento da condição de refugiado, encontrando-se dentre as nações com mais solicitações. Entre os países que solicitam refúgio estão: Síria (7%), Angola (7%), Cuba (6%), Bangladesh (6%), Nigéria (4%), Gana (3%), China (3%), Haiti (14%), com porcentagens estatisticamente equiparadas, e a Venezuela, ostentando a porcentagem de 33%. Sobre este último país, entre janeiro e setembro de 2017, cerca de 48.500 venezuelanos solicitaram refúgio
que havia cerca de 30.000 venezuelanos em situações migratórias diversas ou em situação irregular no Brasil (CONARE, 2018). Assim, visando a compreensão acerca das estatísticas venezuelanas, se faz necessário a compreensão das razões que ocasionam o crescente êxodo venezuelano e, consequentemente, o requerimento da concessão do status de refugiado ao Estado Brasileiro. O crescente fluxo migratório venezuelano em direção à fronteira brasileira é resultante de uma grave crise política, econômica e social que afeta o país há anos. Os estudos de Marquez e Leal (2017, p. 2) mostram que a Venezuela atravessa uma dramática crise humanitária, 139
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em países ao redor do mundo, quase o dobro do ano anterior. Até julho de 2017, estimava-se
embrionária, de instabilidades políticas, autoritarismo, corrupção, desemprego, alta da inflação, recessão econômica, escassez de recursos básicos e violência, configurando o estopim para que parte da população se desloque para além das fronteiras daquele país. O ex-presidente do país, Nicolás Maduro, eleito em 2013 após falecimento de Hugo Chávez, preservou grande parte das sinuosas políticas econômicas do seu antecessor refletindo no hodierno colapso socioeconômico. Neste sentido, é aparente que o fluxo de venezuelanos vigorou nos últimos anos após o governo de Chávez, entretanto, Obregon e Pinto (2018, p. 4) expõem que a crise na Venezuela começou a se mostrar ainda no governo de Hugo Chávez, no início de 2013, quando se tornou evidente o ganho de força da oposição, assim como o enfraquecimento do modelo econômico adotado. E, como supracitado, além da questão política, a deficiência social e econômica vivenciada ao longo dos anos também justifica o êxodo da sua população. Como explana Daniel Silveira (2018):
O aumento exponencial da imigração de venezuelanos para o Brasil tem relação direta com o agravamento da crise política, econômica e social do país, com inflação alta e desabastecimento. A cidade de Pacaraima, em Roraima, é a principal porta de entrada dos venezuelanos no Brasil3.
Conforme Schwinn e Portela (2018, p. 03), historicamente a migração venezuelana para o Brasil não produziu números significativos, fato que se alterou a partir de 2015, e se intensificou em 2017, ultrapassando a marca de vinte mil ingressos. Esse movimento mais forte de entrada de imigrantes no país fez com que imprensa e autoridades públicas classificassem esse fluxo como crise humanitária. Vale destacar, ainda, a existência de vários debates entre a academia e a sociedade civil acerca das justificativas que ensejam a concessão de refúgio aos venezuelanos que chegam ao Brasil ao invés de um mero visto por acolhida humanitária, tendo
Classificar o movimento migratório atual como “invasão” ou “êxodo” faz parte do jogo das autoridades que pretendem por meio dessa hipertrofia dos números obter mais recursos oriundos da União ou para justificar a inadequação da prestação de
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SILVEIRA, Daniel. Brasil tem cerca de 30,8 mil imigrantes venezuelanos; somente em 2018 chegaram 10 mil, diz IBGE. G1, Rio de Janeiro, 29 ago. 2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/2018/08/29/brasil-tem-cerca-de-308-mil-imigrantes-venezuelanossomente-em-2018-chegaram-10-mil-diz-ibge.ghtml>. Acesso em: 10 nov. 2018.
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em vista a crise política, econômica e social enfrentada por esta população. Para Silva (2017):
serviços pelos órgãos estatais e municipais, questões essas históricas e que possuem pouca relação com o atual fluxo para o estado (p. 9-10).
Nesse sentido, ao visualizar a definição de refugiado disposta no artigo 1º, alínea a, da Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados de 19514, tem-se que, em razão da crise humanitária vivenciada na Venezuela, os cidadãos venezuelanos se encontram na condição de refugiados, estando, assim, dentre as razões de migrarem para o Estado brasileiro, a necessidade da solicitação da concessão do status de refugiado. Assim, de acordo com a 3ª edição do relatório Refúgio em números, das solicitações de reconhecimento da condição de refugiado por país de origem em 2017, a Venezuela ocupa o topo da tabela, encontrando-se com 17.865 solicitações, isto é, 53% do total de solicitações. Ainda, em avaliação dessas solicitações por unidade federativa, o estado de Roraima contabiliza 15.955 dessas solicitações (47% dos 53% já mencionados), alcançando a primeira posição na tabela, por possuir fronteira direta com a Venezuela. Acontece que, em razão do crescente fluxo migratório venezuelano, principalmente na cidade de Pacaraima, e a incorporação dos imigrantes venezuelanos nas estimativas populacionais de Roraima, Pacaraima tornou-se o município brasileiro com o maior percentual de crescimento populacional, com elevação de 25,9%, isto é, aumentando sua população em 3.205 habitantes, em comparação com 2017. Ainda, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), antes da inclusão deste fluxo migratório internacional, tal município do norte de Roraima crescia, em média, 2,5% ao ano, o que significa um aumento populacional médio de 280 pessoas por ano. Ou seja, os imigrantes venezuelanos fizeram com que Pacaraima chegasse a um total de residentes que só era esperado para daqui a, aproximadamente, 10 anos (MARTINEZ, 2018, p. de internet).
que tange à disponibilidade de recursos, possuindo a seguinte cronologia: no segundo semestre de 2016, o estado sofreu com crises de abastecimento devido à intensificação da imigração; em dezembro do mesmo ano, as autoridades brasileiras detiveram cerca de 450 venezuelanos para deportação (ação bastante criticada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que No artigo 1°, alínea a, da Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados está disposto que: “[...] o termo “refugiado” se aplicará a qualquer pessoa: [...] que [...] temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, encontra-se fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade, encontra-se fora do país no qual tinha sua residência habitual em consequência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele”. 4
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Logo, em pouco tempo, o estado de Roraima começou a vivenciar uma grave crise no
pediu proteção aos imigrantes) e, no mesmo mês, o Governo Estadual decretou emergência na saúde pública de Pacaraima; um ano depois, em dezembro de 2017, foi decretado, em Roraima, estado de emergência social; ainda, no início de 2018, o Governo Federal apresentou o plano de interiorização dos refugiados – ou seja, conduzi-los para outros estados – e, na mesma época, foram anunciadas, pelos ministros que visitaram Boa Vista, capital de Roraima, medidas para reforçar a segurança e assistência na fronteira com a Venezuela. Contudo, o fluxo se intensificava e o estado de Roraima continuava a alegar que não havia a devida efetivação de políticas públicas para gestão e proteção populacional, bem como pouca participação da União em suprir as necessidades econômicas e sociais. Em razão disso, o Governo Estadual de Roraima passou a tomar atitudes questionáveis e contrárias à proteção dos refugiados, como a criação do Decreto Estadual nº 25.681/2018, bem como a interposição de ações e proferimento de decisão limitando o ingresso dos refugiados venezuelanos no país ao fechar temporariamente a fronteira Brasil–Venezuela.
4 AÇÃO ORDINÁRIA SOBRE O FECHAMENTO TEMPORÁRIO DA FRONTEIRA BRASIL-VENEZUELA
Em 13 de abril de 2018, o estado de Roraima ajuizou Ação Cível Ordinária n. 3.121, sob número 0069076-95.2018.1.00.0000, em face da União, na qual requeria a concessão de tutela antecipada para obrigar a União a promover medidas administrativas nas áreas de controle policial, saúde e vigilância sanitária na região da fronteira entre o Brasil e a Venezuela; determinar a imediata transferência de recursos adicionais da União para o suprimento de custos gerados com a prestação de serviços públicos aos imigrantes venezuelanos estabelecidos em território roraimense; e, principalmente, compelir a União a fechar temporariamente a Brasil5. Contudo, o poder executivo estadual, por intermédio da governadora Suely Campos, proferiu o Decreto Estadual nº 25.681- E, de 01 de agosto de 20186, que decreta atuação especial das forças de segurança pública e demais agentes públicos em decorrência do fluxo
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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Tutela provisória na ação cível ordinária 3.121 Roraima. Min. Rosa Weber. publ. 06/10/2018. 6 BRASIL. Decreto Estadual n°25.681/2018 – E. Diário Oficial do Estado de Roraima, – RR, 01 de agosto de 2018.
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fronteira entre o Brasil e a Venezuela, ou limitar o ingresso de imigrantes venezuelanos no
migratório de estrangeiros em território do Estado de Roraima e dá outras providências, tendo em vista amenizar os impactos causados pelo forte fluxo de refugiados venezuelanos. Tal decreto deu-se sob a alegação de que o mérito da ação cível não tinha sido analisado de forma célere e devido a não adoção, por parte da União, das medidas cabíveis para a diminuição das situações degradantes que o povo de Roraima vivenciava. Isso ocorreu de forma que as medidas descritas no decreto interferiam na obtenção de direitos e no acesso a serviços básicos para os imigrantes. Conforme visto no artigo 2° e no parágrafo único do artigo 3° do decreto, os quais determinam, para a entrada no país e o acesso aos serviços públicos, a apresentação de documentação especial:
Art. 2º Fica autorizado o uso do Posto Fiscal da Secretaria de Estado da Fazenda localizado no Município de Pacaraima para controle de pessoas, bagagens, veículos, bem como verificação de documentação necessária ao trânsito e permanência em território nacional. Art. 3º [...] Parágrafo único. Para acesso aos serviços públicos oferecidos pelo Governo do Estado de Roraima a estrangeiros, com exceção de urgências e emergências, é necessária a apresentação de passaporte válido, a não ser os indivíduos oriundos de Argentina, Paraguai e Uruguai, que gozam dos direitos e prerrogativas do Mercosul, e que podem apresentar documento de identidade válido.
Em razão disso, a Defensoria Pública da União e o Ministério Público Federal propuseram a Ação Civil Pública (processo nº 002879-92.2018.4.01.4200) em face da União e do estado de Roraima, requerendo, em caráter tutelar, que a prestação dos serviços públicos básicos não estivesse condicionada à apresentação de qualquer documento em especial e que estes entes se abstivessem de levar a efeito qualquer procedimento de fiscalização de fronteiras.
prolatar requerimentos contrários aos pedidos elencados na ação inicial, dentre eles o deferimento para a suspensão da admissão e do ingresso, no Brasil, de imigrantes venezuelanos, até que se alcance um equilíbrio numérico com o processo de interiorização e que se criem condições para um acolhimento humanitário no Estado de Roraima. A matéria em questão tratava de pontos específicos do decreto do estado, mas, como visto, a decisão em caráter liminar do Juiz Federal da 1ª Vara Federal adentrou em uma matéria diversa, ferindo
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Entretanto, em decisão do Juiz Federal da 1ª Vara Federal, o mesmo atuou de forma a
tratados e convenções internacionais, ao impor o fechamento da fronteira, impedindo somente os venezuelanos de adentrar no Brasil (COSTA, 2018)7. Após a decisão do Juiz Federal da 1ª Vara Federal de Roraima, que ordenou o fechamento da fronteira em Pacaraima, a Procuradoria Geral do estado de Roraima impetrou uma Tutela Provisória Incidental na Ação Ordinária n. 3.121, tendo a relatora, a Ministra Rosa Weber, exposto a seguinte opinião sobre a decisão do juiz da 1ª Vara Federal:
Tratar-se de inovação na lide, vedada neste momento do processo a teor do disposto no art. 329, I e II, do Código de Processo Civil, pois o pedido inicial consistia na “condenação da União a (i) promover repasses adicionais com o objetivo de ressarcir o Estado com despesas que ele alega ter sofrido em decorrência do fluxo migratório venezuelano; (ii) fechar temporariamente a fronteira ou, ao menos, limitar o ingresso de refugiados venezuelanos em solo brasileiro; e (iii) promover medidas administrativas na área de controle policial, sanitária e de vigilância sanitária 8
Como a Ministra Rosa Weber não poderia rever o aspecto do fechamento da fronteira de forma célere, a União recorreu ao Tribunal Regional Federal da Primeira Região com um pedido de suspenção da liminar, a qual foi concedida. Assim, após a decisão do Juiz de 1ª Vara Federal, que ensejou, no dia 6 de outubro, o início à determinação em caráter liminar para o fechamento da fronteira, a suspensão da liminar somente surtiu efeito no dia 7 de outubro de 2018, quando a fronteira foi reaberta. O desembargador, que julgou a suspensão da concessão de liminar do juiz de 1ª instância, reconhece grave violação às ordens pública e jurídica, bem como que a suspensão a entrada de imigrantes contraria o objetivo principal da ação ajuizada pelo Ministério Público Federal e pela Defensoria Pública da União. Explanou ainda, que o Juiz Federal de 1ª Vara
Para além de se apresentar fora do pedido, esse ponto da decisão [de fechar a fronteira] encerra verdadeira contradição lógica e, só por essa razão, autorizaria a sua cassação, afirmou o desembargador, ao suspender os efeitos da liminar quanto à “suspensão da
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COSTA, Emily. Juiz manda suspender entrada de venezuelanos no Brasil pela fronteira de RR. G1, Boa Vista, 06 ago. 2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2018/08/06/juiz-de-roraima-mandasuspender-entrada-de-venezuelanos-no-brasil.ghtml>. Acesso em: 15 nov. 2018. 8 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Tutela provisória na ação cível ordinária 3.121 Roraima. Min. Rosa Weber. publ. 06/10/2018.
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Federal de Roraima atuou:
admissão e do ingresso, no Brasil, de imigrantes venezuelanos”. (COSTA el al, 2018, pág, 1)9
Desta forma, a fronteira ficou fechada, em média, quinze horas, fazendo com que os venezuelanos que estavam em busca de refúgio no Brasil ficassem impedidos de adentrar no país, colocando em risco a posição do Estado brasileiro perante o cumprimento de diversos decretos e convenções internacionais o qual é signatário, como por exemplo, a Convenção relativa ao Estatuto dos refugiados de 1951 e a Declaração das Nações Unidas sobre o asilo territorial de 1967, este último, estabelecendo uma série de princípios fundamentais, como o da não devolução, o direito de sair, retornar e permanecer em qualquer país.
5 POLÍTICAS PÚBLICAS PARA OS REFUGIADOS NO BRASIL ANTES DO FECHAMENTO DA FRONTEIRA
Inicialmente, cumpre-se esclarecer que o Estado brasileiro vem assumindo o compromisso com os refugiados ao longo dos seus períodos governamentais, como é de possível percepção na Lei Federal n. 9.474, de 199710, que regula internamente o instituto jurídico do refúgio e adota a definição ampliada de refugiado contida na Declaração de Cartagena de 198411; na inserção dos marcos dos regimes internacional e regional para refugiados; na incorporação dos motivos de refúgio da Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados, de 1951; e, recentemente, na criação da Lei n. 13.445, de 201712, reguladora da migração, a qual – conforme o discurso do ex-presidente da República13, Michel Temer, na Organização das Nações Unidas (ONU), em 19 de setembro de 2017 – é considerada uma das
9
COSTA, Emily, OLIVEIRA, Valéria e BRANDÃO, Inae. Fronteira do Brasil é reaberta para venezuelanos após decisão do TRF-1. G1, Boa Vista, 07 ago. 2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2018/08/07/fronteira-entre-brasil-e-venezuela-e-reaberta-apos-decisaodo-trf1.ghtml> Acesso em: 18 nov. 2018. 10 BRASIL. Lei n°. 9.474 de 1997. Diário Oficial da União, Brasília – DF, 22 de julho de 1997. 11 COLÔMBIA. Declaração de Cartagena de 1984. Cartagena, Colômbia, entre 19 e 22 de novembro de 1984. 12 BRASIL. Lei nº 13.445 de 24 de maio de 2017. Diário Oficial da União, Brasília – DF, 24 de maio de 2017. 13 Discurso do Presidente da República, Michel Temer, na Abertura do Debate Geral da 72º Sessão da Assembleia Geral da ONU – Nova York, 19 de setembro de 2017. Disponível em: <http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/discursos-artigos-e-entrevistascategoria/presidente-da-republica-federativado-brasil-iscursos/17460-discurso-do-presidente-da-republica-michel-temer-na-abertura-do-debate-geral-da-72sessao-da-assembleia-geral-da-onu-nova-york-19-de-setembro-de-2017>. Acesso em 22 dez 2018.
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mais modernas do mundo.
Destarte, em virtude de possuir uma legislação contemplativa no tocante ao refúgio, o fluxo migratório no Brasil foi alavancado, a partir das estatísticas crescentes de cidadãos estrangeiros requerendo a concessão do status de refugiado ao país. Em consequência disso, se fez cada vez mais necessária a implementação de políticas públicas visando a assistência e a integração dos refugiados, a fim de assegurar a efetivação dos direitos econômicos, sociais e culturais, em especial, o direito à moradia, ao trabalho, à saúde e à educação. Acerca disso, tem-se que o Brasil tem reconhecido a necessidade de inclusão dos refugiados nas políticas públicas existentes e, em alguns casos, implementado políticas públicas específicas ao amparo da disposição constitucional presente no caput do art. 5º14, que garante tratamento igualitário aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país. Ainda, de acordo com a publicação do Instituto de Migrações e Direitos Humanos (IMDH) e a Rede Solidária para Imigrantes e Refugiados (2007, p. 2), no país existem Redes de Proteção que operam na implementação de políticas públicas para os refugiados, somando esforços e articulações através da incorporação de várias instituições, entes, organizações sociais e universidades, que se unem na luta pela defesa do refúgio nas migrações contemporâneas, a partir da promoção de políticas públicas e ações solidárias de proteção, assistência e integração dos migrantes e dos refugiados. Essas redes têm abrangência nos três níveis de governo, em diferentes regiões do país e em diferentes setores de atividade, cumprindo o papel de resgatar os solicitantes de refúgio, ou refugiados, de instruí-los, resguardar os direitos dos migrantes e informá-los sobre seus deveres, seja quando decidem emigrar – tratando de minimizar os riscos –, seja quando em pleno processo migratório ou já em seus novos locais ou países de residência. Considerando o sistema tripartido, no que concerne à divisão funcional das competências no tocante à proteção dos refugiados no Brasil, é importante destacar o papel desempenhado por cada ator na promoção de políticas públicas para os refugiados. O acesso à
para a população, de forma universal. A sociedade civil, representada pelas ONGs e instituições religiosas, atua através da prestação de serviços essenciais, como o auxílio à moradia e à educação, o oferecimento de cursos voltados ao aprendizado do idioma pátrio e à profissionalização do refugiado, de modo a facilitar a sua inserção no mercado de trabalho, entre outros. Por fim, a atuação do Alto
No caput do artigo 5° da Constituição Federal está disposto que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. 14
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educação, moradia e saúde é fornecido pelo Governo, através dos serviços básicos disponíveis
Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) no financiamento do auxílio necessário à efetivação das políticas públicas e na colaboração técnica para implementação dos diversos programas voltados à integração da pessoa refugiada. Especificadamente no estado de Roraima, a promoção das políticas públicas, segundo a tríplice separação de funções supracitada, funciona da seguinte forma: o acesso à educação, à moradia e à saúde é fornecido pelo governo local e os repasses dos recursos são realizados pela União, como determina a Lei n° 13.684/201815, que dispõe sobre medidas de assistência emergencial para acolhimento a pessoas em situação de vulnerabilidade decorrente de fluxo migratório provocado por crise humanitária, entre outras providências. A sociedade civil atua através das organizações não governamentais (ONGs) e outros grupos, como o apoio fornecido pela Força Tarefa Logística Humanitária, que presta apoio aos imigrantes, e pelo Alto Comissariado das Nações Unidas (ACNUR), que, em 2018, criou o 13º Abrigo Público para Refugiados Venezuelanos em Roraima. Além de instituições como o Centro de Migrações e Direitos Humanos (CMDH), localizado em Boa vista, do Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH) e do Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante (CDHIC), estes dois últimos que, apesar do caráter nacional das suas atuações, são fundamentais na promoção da inclusão de refugiados nas políticas públicas já existentes e no estímulo à criação de novas políticas públicas, que respondam às necessidades específicas dos refugiados, além de atuarem na proteção da população refugiada e na manutenção dos seus direitos, a exemplo da sua atuação como amigo da corte (da expressão em latim, amicus curiae16) na Ação Cível Ordinária n. 3121. Neste sentido, é preciso compreender que as políticas públicas existem para além do panorama legal, tendo em vista que são concretamente aplicadas diante das necessidades práticas, inclusive, para que se evitem ações judiciais extremas, como o fechamento da fronteira. Uma importante política pública aplicada diante do fluxo migratório venezuelano no
unidades da Federação. Em abril de 2018, a Casa Civil da Presidência da República e a Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados iniciaram o processo de interiorização dos venezuelanos, proporcionando o desafogamento populacional em Roraima e garantindo o estabelecimento
15
BRASIL. Lei n° 13.684 de 2018. Diário Oficial da União, Brasília-DF, 21 de junho de 2018. O amicus curiae, expressão latina que significa “amigo da corte” ou “amigo do tribunal”, é a pessoa ou entidade estranha à causa, que vem auxiliar o tribunal, provocada ou voluntariamente, oferecendo esclarecimentos sobre questões essenciais ao processo. 16
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Brasil, e principalmente o direcionado a Roraima, é o deslocamento dos imigrantes para outras
destes em outros estados. Segundo a Agência Brasil, até dezembro de 2018, 3.271 imigrantes foram levados, pela iniciativa federal, para 29 cidades, como São Paulo, Manaus, Brasília, Curitiba e Rio de Janeiro (BOEHM, 2018, p. da internet)17. Além disso, a iniciativa federal proporcionou a integração e a atuação dos demais estados na aplicação das políticas públicas para os imigrantes, criando, por exemplo, Grupos de Trabalhos para estruturar, de forma articulada, os cursos de capacitação e qualificação profissional, abordando especificidades do mercado de trabalho brasileiro. Ademais, tem-se a criação de programas de idiomas, como o realizado em São Paulo pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo (SMDHC), em parceria com a Secretaria Municipal de Educação, chamado Programa Portas Abertas, responsável por assegurar o acesso dos refugiados ao ensino da língua portuguesa na rede pública municipal e diminuir as dificuldades enfrentadas com o idioma por estes na busca por emprego. Proporcionando, assim, medidas de realojamento dessa população no país sem gerar descumprimento à regulamentação interna. Isto posto, é notório que, apesar da crise migratória vivenciada pelo estado e a ausência de políticas públicas de controle policial, saúde e vigilância sanitária na região da fronteira, bem como a ausência de recursos adicionais da União para suprir os custos que o estado de Roraima tem tido com a prestação de serviços públicos aos refugiados oriundos da Venezuela estabelecidos em território roraimense, as políticas públicas vigentes estabelecem princípios e diretrizes da política migratória brasileira. São estes, a universalidade, a indivisibilidade e a interdependência dos direitos humanos (art. 3º, I), a acolhida humanitária (art. 3º, VI), o fortalecimento da integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, mediante constituição de espaços de cidadania e de livre circulação de pessoas (art. 3º, XIV) e a cooperação internacional com Estados de origem, de trânsito e de destino de movimentos migratórios, a fim de garantir efetiva proteção aos direitos humanos do migrante
Portanto, apesar das limitações vivenciadas em razão do inchaço populacional, é inegável que as políticas públicas básicas, como aquelas voltadas para a acolhida humanitária, o processo de interiorização, a cooperação internacional com o Estado de origem e a moradia no estado brasileiro, eram implementadas em Roraima antes do fechamento temporário da fronteira. Deste modo, impedir a entrada de pessoas no país em razão da sua nacionalidade é
17
BOEHM, Camila. Processo interiorização de venezuelanos ajuda na garantia de direitos. Agência Brasil, São Paulo, 22 dez. 2018. Disponível em: < http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/201812/processo-interiorizacao-de-venezuelanos-ajuda-na-garantia-de> Acesso em: 08 jan. 2018.
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(art. 3º, XV), como determina a Lei nº 13.445/2017 – Lei de Migração.
desconsiderar todo o trabalho político-social de cooperação, mediante constituição de espaços de cidadania e de livre circulação de pessoas, bem como descumprir o regimento pátrio e as regulamentações internacionais, as quais o Brasil é signatário. Assim, apesar do fechamento da fronteira ter tido duração de apenas 15 horas, foram estas suficientes para as políticas públicas supracitadas serem estagnadas e para os mecanismos de proteção gerarem relevantes impactos frente os regimentos internacionais.
6
OS
IMPACTOS
DO
FECHAMENTO
DA
FRONTEIRA
FRENTE
AS
REGULAMENTAÇÕES INTERNACIONAIS
Diante da judicialização, perante a primeira instância, da Ação Civil Pública nº 00287992.2018.4.01.4200 pela Defensoria Pública da União e pelo Ministério Público Federal, tramitada perante a 1ª Vara Federal de Roraima, foi proferida a decisão que decretou a suspensão da admissão e do ingresso de imigrantes venezuelanos no Brasil. Tal decisão permitiu que a fronteira Brasil-Venezuela ficasse fechada por cerca de quinze horas, gerando a aglomeração de centenas de venezuelanos na fronteira, haja vista que estes ficaram impossibilitados de entrar no país para se refugiarem da grave crise humanitária que assola seu país de origem. Destarte, apesar de pouco tempo de suspensão do ingresso dos imigrantes no Brasil, é evidente os impactos causados pelo fechamento da fronteira frente às regulamentações internacionais, bem como diante das políticas públicas e legislações nacionais. Como relatou a ministra Rosa Weber (2018, p.05) – ao negar provimento ao pedido de fechamento temporário da fronteira, também requerido na Ação Cível Ordinária n. 3.121, destinada ao Supremo Tribunal Federal – “a proteção ao refugiado é regra solidamente internalizada no ordenamento quais o Brasil é signatário”. Inicialmente, a vulnerabilidade vivenciada pelos refugiados venezuelanos ao serem impedidos de solicitar moradia ao Brasil fere direitos humanos aplicáveis a toda e qualquer situação, como prevê os tratados e as declarações internacionais basilares, como a Declaração de San José sobre Refugiados e Pessoas Deslocadas, de 199418, a qual ratifica na sua décima emenda: ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana de Direitos Humanos (“Pacto de San José da Costa Rica”). San José, Costa Rica, 1969. 18
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jurídico brasileiro, bem como nos tratados sobre direitos humanos e proteção a refugiados os
Décima. Reafirmar que tanto os refugiados como as pessoas que migram por outras razões, incluindo razões econômicas, são titulares de direitos humanos que devem ser respeitados em qualquer momento, circunstância ou lugar. Esses direitos inalienáveis devem ser respeitados antes, durante e depois do seu êxodo ou do regresso aos seus lares, devendo ser-lhes proporcionado o necessário para garantir o seu bem-estar e dignidade humana.
Além disso, tem-se que a proteção aos refugiados está intimamente ligada à proteção dos direitos humanos. Como argumentado na decisão da relatora, Ministra Rosa Weber (2018, p. 32), ao trazer Flavia Piovesan (2010, p.183):
A proteção internacional dos refugiados se opera mediante uma estrutura de direitos individuais e responsabilidade estatal que deriva da mesma base filosófica que a proteção internacional dos Direitos Humanos é a fonte dos princípios de proteção dos refugiados e a o mesmo tempo complementa tal proteção. [...] Quando se relaciona refugiados e direitos humanos, imediatamente percebe-se uma conexão fundamental: os refugiados tornam-se refugiados porque um ou mais direitos fundamentais são ameaçados. Cada refugiado é consequência de um Estado que viola os direitos humanos. Todos os refugiados têm sua própria história – uma história de repressão e abusos, de temor e medo. Há que se ver em cada um dos homens, mulheres e crianças que buscam refúgio o fracasso da proteção dos direitos humanos em algum lugar.
Ainda, como mencionado acima, o Brasil é signatário de tratados internacionais que consagram os direitos dos refugiados, bem como sua participação ativa no contexto mundial do refúgio. Como apresentado na decisão da relatora Ministra Rosa Weber (2018, p. 32), evidenciada no magistério de Nádia de Araújo:
e da dos tratados. O Brasil foi partícipe ativo da Declaração Universal dos Direitos do Homem, e ainda assinou, ratificou e promulgou os principais documentos relativos aos refugiados: Estatuto dos Refugiados, de 1951, e o Protocolo sobre o Estatuto, de 1967. Assim, pode-se dizer que no plano interno a regulamentação de origem internacional e cunho universal foi adotada plenamente pelo Brasil, que além disso, recentemente, estabeleceu esses direitos e deveres através de uma lei interna, a Lei n. 9.474/97, que implementou os mecanismos preconizados no Estatuto dos Refugiados [...]. Com isso a legislação brasileira alinha-se à dos países de moderna legislação protetiva, na esteira dos parâmetros anteriormente fixados no plano internacional. ”
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A consagração dos direitos dos refugiados transita por duas etapas: a das declarações
(in O Direito Internacional dos Refugiados – Uma Perspectiva Brasileira, Ed. Renovar, 2001, p. 67-8)
Sobre isso, como declara o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), o Estatuto dos Refugiados de 195119 é considerado até hoje a pedra angular da proteção a refugiados, pois consolida prévios instrumentos legais internacionais relativos aos refugiados e fornece a mais compreensiva codificação dos direitos dos refugiados a nível internacional. Nesse diapasão, é possível observar também o Protocolo sobre o Estatuto, o qual foi preparado e submetido à Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1966, e assinado pelo Presidente da Assembleia Geral e pelo Secretário-geral, no dia 31 de janeiro de 1967, e transmitido aos governos devido a crescente necessidade de providências que colocassem os novos fluxos de refugiados sob a proteção das provisões da Convenção. Assim, com a ratificação do Protocolo, os países foram levados a aplicar as previsões da Convenção de 1951 para todos os refugiados enquadrados na definição desta determinação normativa. Entre tais previsões está a que assegura que qualquer pessoa, em caso de necessidade, possa exercer o direito de procurar e receber refúgio em outro país. Ainda, como apresentado pela Advocacia Geral da União (AGU), em seu parecer sobre a decisão que suspendeu o ingresso, no âmbito do MERCOSUL, também há o Acordo sobre Documentos de viagem dos Estados Partes do MERCOSUL e Estados Associados – ao qual Brasil e Venezuela aderiram –, aprovado pela Decisão do Conselho do Mercado Comum nº 18/08. Tal acordo elenca, em seu anexo, uma lista de documentos de viagem válidos com os quais nacionais dos países parte do MERCOSUL podem ingressar no território dos países integrantes deste. Assim, basta que o cidadão venezuelano porte passaporte, ou cédula de identidade, para que esteja apto a ingressar em qualquer outro país parte do referido acordo,
Portanto, proibir a entrada de refugiados venezuelanos, especificamente, e fechar a fronteira de ingresso destes no país representou um descumprimento, primordialmente, aos tratados supracitados. Isso se dá, pois, no plano internacional, há todo um sistema de atos normativos de proteção aos refugiados, os quais – uma vez internalizados pelo ordenamento jurídico brasileiro – vinculam o Poder Público tanto em âmbito interno, no qual possuem o 19
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção relativa ao estatuto dos refugiados. Conferência das Nações Unidas de Plenipotenciários sobre o Estatuto dos Refugiados e Apátridas, convocada pela Resolução n. 429 (V) da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 14 de dezembro de 1950. 20 AGU. ACP nº 002879-92.2018.4.01.4200 -RR. Pleno. Rel. Min. Rosa Weber. j. 07.08.2018.
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inclusive no Brasil (AGU, 2018, p.15)20.
status de normas constitucionais ou supralegais (a depender da adoção ou não do procedimento do art.5º, § 3º, da Constituição Federal de 1988), quanto externamente, âmbito no qual seu desrespeito pode ensejar a responsabilização internacional do Brasil, com todas as consequências daí decorrentes (2018, p.15).
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho teve como objetivo principal identificar os impactos que o fechamento temporário da fronteira Brasil-Venezuela causou frente às regulamentações internacionais e ao direito pátrio e analisar como os mecanismos de proteção aos refugiados foram aplicados diante da decisão da Ação Civil Pública nº 002879-92.2018.4.01.4200, a qual fechou temporariamente a fronteira e limitou o ingresso de refugiados venezuelanos em solo brasileiro por cerca de quinze horas. O trabalho foi dividido metodologicamente em tópicos que relatam o crescente fluxo migratório venezuelano para o Brasil, em especial pela a entrada pela fronteira BrasilVenezuela em Roraima, fazendo uma análise da concessão do status de refugiado e as principais ações que proporcionaram a abertura de todo o trâmite processual em questão e os seus correlacionados. Nesse sentido, buscou-se também entender o que levou o juiz da 1ª Vara Federal de Roraima a enunciar a decisão que fechou temporariamente a fronteira e limitou o ingresso de refugiados venezuelanos em solo brasileiro e, consequentemente, identificar os impactos que o fechamento temporário ocasionou nas regulamentações internacionais, às quais o Brasil é signatário, e legislações pátrias no tocante ao refúgio. Nesse diapasão, foi possível concluir que as medidas proferidas no Decreto Estadual nº 25.681/2018–E deram início ao descumprimento dos mecanismos de proteção e que, diante
os mecanismos de proteção aos refugiados não foram aplicados. Pois, apesar de ser compreensível a crise que o estado de Roraima vivencia em razão do inchaço populacional e a dificuldade de adotar as políticas públicas em contemplação de toda a população refugiada, em virtude da falta de repasse de recursos da União, o impedimento do ingresso dos refugiados venezuelanos no país significa descumprir as regulamentações basilares da proteção aos refugiados e possibilitar o surgimento de problemas maiores de seguridade social e de cooperação internacional frente a população desabrigada.
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da decisão e do impedimento temporário da entrada dos refugiados venezuelanos pela fronteira,
Devendo, em situações como essa, o país adotar políticas públicas de deslocamento da população refugiada para outros estados, nos quais possam ser melhor abrigados, bem como exigir, com base na legislação existente, maior auxílio da União no repasse de recursos, ao invés de produzir decretos que dificultem e/ou impeçam a entrada dos refugiados no país, visto que essa não é uma medida capaz de sanar os déficits já existentes. Portanto, conclui-se que houveram descumprimentos significativos a tratados e declarações internacionais gerados pela suspensão do ingresso de venezuelanos em solo brasileiro, bem como pela não aplicação dos mecanismos de proteção aos refugiados que foram barrados de adentrar ao país. Porém, assevera-se que o Brasil possui a obrigação de garantir que os direitos básicos dos venezuelanos sejam respeitados assim que eles cheguem em território brasileiro, o direito à moradia e o direito a não serem deportados arbitrariamente, assim como o respeito ao princípio de non-refoulement – isto é, o não retorno do refugiado à situação na qual sua vida ou sua liberdade pessoal estejam em risco –, bem como realizar ações conexas com as demais unidades federativas, a fim de diminuir o impacto da imigração venezuelana no estado de Roraima, principal estado fronteiriço. A elaboração de políticas públicas para responder ao impacto da imigração venezuelana no estado, como a realizada em outubro de 2017 pelo governo de Roraima, ao criar o Gabinete Integrado de Gestão Migratória e estabelecer um Centro de Referência ao Imigrante, que tentou providenciar apoio básico aos imigrantes venezuelanos e cumpriu com a ordem judicial que pedia às autoridades que fornecessem abrigo e serviços básicos às crianças venezuelanas vivendo nas ruas com suas famílias, devem ser ações realizadas pelo Estado brasileiro para minimizar o custo dessas aplicações realizadas pelos estados. Além disso, devese evitar decisões suspendendo a entrada dos mesmos ao país, pois o descumprimento a regulamentações internacionais pode gerar sanções políticas, desvantagens diante Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) e diante dos Estados-membros do
Internacional.
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PROTECTION OF REFUGEES AND SOVEREIGNTY IN THE CLOSURE OF BORDERS: ANALYSIS OF THE TEMPORARY CLOSURE OF THE BRAZILIANVENEZUELA BORDER
ABSTRACT The present work aims to analyze the aspects of sovereignty in the closing of borders, examining the Brazil-Venezuela’s temporary border closure. Through a documentary investigation of the Venezuela-Brazil migratory flow and the federal conflict between the state of Roraima and the Union, the research analyzes the Brazilian law and the international treaties, of which Brazil is signatory, referring to the refugee theme. It is concluded that, by prohibiting the entry of Venezuelan refugees, there was an infringement of international and national regulations, glimpsing the need of idealization and implementation of public policies to coordinate the legislative
Keywords: Refugees protection. Immigration Policy. National sovereignty.
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applicability of Brazilian immigration policy.
A TEORIA DO DIREITO EM HEGEL: O MÉTODO DIALÉTICO APLICADO AO DIREITO Vítor Fernandes da Silva Gonçalves1
RESUMO O presente artigo busca, através do estudo do filósofo Georg Friedrich Hegel, propiciar uma visão crítica do Direito. Para isso, é utilizada como principal instrumento deste estudo a obra Princípios da Filosofia do Direito. Ante o complexo sistema filosófico no qual está inserido, o Direito mostra-se não só um conjunto de normas instituídas pelo Estado, mas algo que é essencialmente humano, ou seja, nasce do particular e é protegido pelo todo, e não o contrário. A partir dessa teoria do Direito, buscar-se-á analisar a evolução do Direito frente a relevantes questões do Positivismo jurídico contemporâneo. Palavras-chave: Hegel. Filosofia do direito. Teoria do direito.
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Pós-graduando em Filosofia e Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG). Bacharel em Direito pela Universidade São Francisco (USF).
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Dialética.
1 INTRODUÇÃO
Desde o surgimento das grandes civilizações têm-se desenvolvido, principalmente pela Filosofia, pensamentos acerca da organização social, sobre sua origem, sua validade perante seus integrantes e como ela própria progride na história. Por essa razão, dos antigos aos contemporâneos, centenas de teorias do Direito foram idealizadas com intuito de desvendar sua essência e finalidade dentro de uma sociedade. É sabido, no entanto, que a Filosofia do Direito teve seu maior desenvolvimento a partir da idade moderna, período em que sai de cena a adoração a Deus, típica da época medieval, e entra em foco o Estado, movido pelo capital e pela ascendente burguesia. Trata-se de um momento de transição do feudalismo para o capitalismo, o que conduz a novos paradigmas e regras de organização social, sobretudo na área do Direito, rumo ao Positivismo. Nesse contexto insere-se Georg Wilhelm Friedrich Hegel, um filósofo alemão nascido na década de 1770, em Stuttgart. Considerado um dos maiores filósofos do século XIX, exerceu influência em grandes outros filósofos que o sucederam, como Karl Marx e Ludwig Feuerbach, chamados de hegelianos de esquerda, os quais acreditavam que os ensinamentos de Hegel ainda influenciariam grandes mudanças no mundo moderno. Por outro lado, outros autores como Johann Philipp Gabler, teólogo alemão considerado um dos hegelianos de direita, foram conservadores do Estado Prussiano cuja suposição foi de que a Filosofia exposta por Hegel era plena, ou seja, já havia se concretizado por inteira. Entusiasta da Revolução Francesa e admirador da filosofia de Kant, Hegel viveu em um tempo de profundas transformações. Tinha dezenove anos quando os ideais do iluminismo sustentaram a citada revolução. Pouco antes, os Estados Unidos venceram a Inglaterra na guerra de independência; pouco depois, a Revolução Industrial decretava o início de novos tempos no
Após lecionar em universidades alemãs de renome, como a de Berlim, faleceu aos 14 de novembro de 1831, deixando como principais contribuições à Filosofia as obras Princípios da Filosofia do Direito, na qual este estudo se baseia, Fenomenologia do Espírito, Enciclopédia das Ciências Filosóficas e Ciência da Lógica, dentre outras. Assim, traçado o contexto histórico em que surgiu, buscar-se-á analisar a Filosofia de Hegel, as principais características do Direito sob a sua ótica, bem como sua essência e finalidade dentro de um corpo social, frente às problemáticas do Positivismo jurídico
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mundo ocidental.
contemporâneo, notadamente a razão pura do Direito e a hierarquia das normas propostas por Hans Kelsen. Para isso, utilizar-se-á no presente artigo, essencialmente, uma interpretação crítica da citada obra Princípios da Filosofia do Direito, tendo em conta importantes considerações de jusfilósofos renomados, como Miguel Reale, Ricardo Castilho e Alysson Mascaro. Para melhor compreensão do tema exposto, este texto é estruturado da seguinte forma: será abordada primeiramente a relação do método dialético hegeliano e o Direito, oportunidade em que se pretende expor a importância do pensamento idealizado por Hegel e a evidente contraposição às Teorias do Direito essencialmente juspositivistas estritas, isto é, têm na norma sua origem e único fim. Após isso, será apresentada a formação do Direito segundo Hegel, iniciando-se pelo direito abstrato, sucedendo-se à moralidade subjetiva para enfim concluir a Teoria do Direito hegeliana com a moralidade objetiva, conceitos estes que sugerem ao leitor uma distinta abordagem da ciência jurídica. Apresentada a Teoria do Direito proposta por Hegel, buscar-se-á contrapô-la ao juspositivismo estrito apresentado por Hans Kelsen. Para tanto, além dos já citados autores, serão utilizados também os ensinamentos de Norberto Bobbio e do Professor Tércio Sampaio Ferraz Júnior. Observa-se, pois, que a finalidade deste estudo é propor que, a partir de uma verdadeira Teoria do Direito inserida no complexo sistema filosófico hegeliano, sejam possíveis questionamentos sobre o juspositivismo contemporâneo a fim de contribuir para a evolução do pensamento jurídico.
Para que se compreenda a Teoria do Direito apresentada por Hegel, é preciso entender o complexo organismo filosófico em que é apresentada. Extrai-se da extensa obra Princípios da Filosofia do Direito que Hegel tem sua filosofia marcada pelo método dialético aplicado a um amplo sistema de relações humanas, no qual tudo é afirmado e analisado isoladamente (tese), negado e contraposto à totalidade (antítese) e, dessa maneira, identificado (síntese). Ocorre que, a partir do momento em que um pensamento é concretizado pela dialética, toma o lugar de um novo fato (tese) e é sucessivamente trabalhado, criando uma dinâmica que Hegel imputa à História. Dessarte, para o filósofo, tudo se dá e se dará através de uma constante 158
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2 O MÉTODO DIALÉTICO E O DIREITO
história (MASCARO, 2016, p. 239). Em outras palavras, “seguindo a mesma linha de pensamento de Aristóteles (que na antiguidade dizia que o “homem é um ser perfectível”), Georg Hegel afirmava que o homem está fadado ao progresso” (CASTILHO, 2012, p. 138). Orientado pela fé de seu tempo, Hegel teve seu pensamento marcado por dois pressupostos basilares: a necessidade e a possibilidade; se existe a possibilidade, é o ser humano livre para agir; se existe a necessidade, é ele um “escravo de força da natureza” (CASTILHO, 2012, p. 138). O jurista Ricardo Castilho exemplifica o método dialético da seguinte forma:
Maquiavel defendia a tese de que o rei devia ter todos os poderes e reinar com absolutismo. Depois dele, os renascentistas lutaram pela limitação dos poderes do soberano. Era a antítese, de certo modo já pressuposta na afirmação original. Adiante, no tempo histórico, viria Hume, com uma síntese das duas ideias, até com certa moderação, propondo a resistência a eventual tirania e o contrato social. (2012, p. 140)
Desse modo, seguindo esse método, extrai-se da obra Princípios da Filosofia do Direito que Hegel tem seu sistema filosófico formado por três elementos: o Ser, a Natureza e o Espírito. O primeiro consiste nos elementos lógicos da realidade, seria a tese, momento em que surge a ideia; o segundo é, pois, o momento em que o conceito se exterioriza e ganha tangibilidade, expressando a antítese; por fim, o Espírito é a unidade entre Ser e Natureza, concretizando a realidade. Esses três elementos ou momentos do sistema hegeliano passam a se submeter cada qual à sua dialética. O Ser passará por três momentos distintos que se caracterizam ser por si ou em si (tese), ser fora de si ou para si (antítese) e ser em si e para si (síntese). Da mesma forma, a Natureza é composta pelo conjunto de leis físicas (natureza por si), forças físicoquímicas (natureza para si) e o organismo vivo (natureza em si e para si). Por último, o Espírito
momento em que nasce o Direito, para tornar-se absoluto (espírito em si e para si). O Direito é, então, em um primeiro momento, um estágio do espírito em busca de sua plenitude, de sua razão completa. Em outras palavras, a professora Marilena Chaui explica que o que o autor pretende propor é:
[...] que a mudança, a transformação da razão e de seus conteúdos é obra racional da própria razão. A razão não é uma vítima do tempo, que lhe roubaria a verdade, a
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é em primeiro momento subjetivo (espírito por si), depois passa a ser objetivo (espírito para si),
universalidade, a necessidade. A razão não está na história; ela é a história. A razão não está no tempo; ela é o tempo; ela dá sentido ao tempo. (2005, p. 79)
Nesse ínterim, para Hegel todos os fatos se relacionam de alguma maneira, inclusive o Direito, que encontra no idealismo um conceito particular. Na obra Princípios da Filosofia do Direito, aplicando o método dialético, Hegel conceitua o Direito em três diferentes fases: 1) Tese – todo ser humano possui um livre arbítrio, uma vontade que expõe aos seus iguais quando convivente em uma sociedade; essa é a primeira fase do Direito, denominada Direito Abstrato; 2) Antítese – momento em que o livre arbítrio é interiorizado, o que Hegel chama de moralidade subjetiva, ou simplesmente moralidade; logo, o mero ato de vontade é racionalizado, é trazido para o interior da sociedade como forma de adaptação frente aos seus membros; e 3) Síntese – momento em que ocorre a razão positiva, um consenso sobre determinado fato e que automaticamente passa a ser exigido por todos e para todos, fase esta chamada de Eticidade, ou moralidade objetiva. Para o professor Cláudio de Cicco (2006, p. 223-224),
[...] a Filosofia do Direito e do Estado de Hegel se contrapõe à de Kant e à da Revolução Francesa, aos economistas ortodoxos e aos juristas do Código Napoleão. Estes, sob a ascendência de Kant entendiam a liberdade como o poder de tudo fazer nos limites da lei: em manter-se dentro de tais limites consistia a justiça. Tarefa do Estado era delimitar o que se pode ou se não pode fazer. Tal conceito da liberdade, da justiça e do Estado pareceu a Hegel medíocre e negativo. A liberdade no sentido de Kant, dos economistas e dos juristas (liberais) não existe senão para os que possuem, enquanto que é formal e vã para os outros. Para Schelling como para Hegel, ou para Lassalle, a liberdade se atualiza só por meio do Estado. O problema do Direito, segundo Hegel, é o de traduzir nos fatos a liberdade, a qual outra coisa não é senão o espírito tendo consciência de si mesmo como da realidade última. A liberdade se
com o ser (ou seja, com a realidade), conformidade que pressupõe a sua identidade.
Posto isso, tem-se que o Direito é a própria liberdade, e não uma condição de proteção da liberdade do arbítrio individual que ao Direito preexiste. Dessa forma, ao contrário do que se possa concluir em um primeiro momento, Hegel não reduz a ciência jurídica a um campo de outra ciência, mas ele a eleva à própria liberdade; para ele, o Direito é elemento de um complexo sistema e, assim como as demais ciências, neste deve ser inserido para que seja validado, aplicando-se destarte o método dialético. O Direito não pode ser um sistema alheio, que se
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confunde no sistema hegeliano com a verdade qual é a conformidade do pensamento
constrói a partir de si mesmo, é, porém, o livre arbítrio aprimorado pela sua negação e, por fim, pela proteção do Estado. Assim, antes mesmo de se aprofundar a Teoria do Direito hegeliana, é possível dizer que, apropriando-se do método dialético, ao contrário do que sustentam os juspositivistas estritos como Hans Kelsen, Alf Ross, Herbert Hart e Norberto Bobbio (MASCARO, 2016, p. 338), o Direito não deve ser reduzido à aplicação da lei, não deve ser uma ciência isolada de todas as outras, porque delas faz parte, assim como elas fazem parte dele. Logo, impende consignar que o ordenamento jurídico deve estar em consonância com a sociedade em todos os seus aspectos, sejam eles morais, intelectuais, econômicos, científicos ou quaisquer outros, conceito este que, por alguma razão, tem sido ignorado por juristas contemporâneos, de sorte que muitos deles exercem sua atividade laborativa com o único fim de aplicar a norma, em verdadeira apologia à fábrica processual, no sentido de que uma petição, que deveria refletir uma liberdade individual, um desejo, torna-se no meio jurídico apenas um número traduzido em honorários, capital ou até mesmo em estatística judiciária. Em outras palavras, o Direito não pode ser limitado à observação da norma, mas o seu estudo e a sua aplicação devem ser guiados pela liberdade individual e a respectiva reflexão perante seus pares nos mais diversos contextos sociais, ou seja, deve reproduzir por inteira a sociedade à qual está subordinado.
3 A FORMAÇÃO DO DIREITO
Como já foi dito anteriormente, Hegel apresenta o direito como um microssistema dialético. A seguir serão apresentadas as fases do Direito e suas definições, por meio das quais pretende-se propor críticas à ciência jurídica contemporânea.
relevância ímpar, de modo que a ciência jurídica atinge através da Filosofia do Direito hegeliana o mais alto grau de destaque no corpo social e, ao mesmo tempo, abrange relações infinitamente mais complexas e, ao que parece, mais verdadeiras do que as apreciadas pelas teorias juspositivistas contemporâneas, ao passo que aproxima a norma não só do fato, mas das vontades que lhe deram origem.
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Observar-se-á, pois, que cada um dos elementos que compõem o Direito tem
3.1 Direito Abstrato: vontade subjetiva e as ramificações do direito
Para o sistema hegeliano, como era de se esperar, a primeira fase do Direito, chamada de vontade subjetiva ou direito abstrato é submetida a um ciclo tríplice. Pode-se dizer que o primeiro ato que dá origem ao direito é “a vontade livre da pessoa” (RAO, 2013, p. 545), que, ao ser exteriorizada, concebe a propriedade e a posse, as quais, em segundo um momento, poderão ser objeto de um acordo de vontades, um contrato, que por sua vez deve ser cumprido nos exatos termos acordados, motivo pelo qual, em terceiro e último aspecto, no campo direito abstrato surge a pena. Primeiramente, consigne-se que se entende por propriedade qualquer manifestação do indivíduo, podendo ser desde o domínio sobre determinado bem até a propriedade intelectual ou a força de trabalho a ser fornecida a outrem. Por isso, é passível de propriedade qualquer força, em seu mais amplo conceito, empregada com intuito de relacioná-la à liberdade das demais pessoas que compõem o Estado. Nesse sentido explica Hegel:
São objetos de contrato, assemelháveis a objetos de compra e venda, qualidades do espírito, ciência, arte, até poderes religiosos (prédicas, missas, orações) e descobertas. Pode-se perguntar se o artista, o sábio, etc., têm a posse jurídica da sua arte, da sua ciência, da sua faculdade de pregar, de celebrar missa, etc., isto é, se tais objetos são coisas, e hesitar-se-á em chamar-lhes propriedades, conhecimentos e faculdades das coisas. Se, por um lado, tal posse é objeto de negociação e de contrato, é ela, por outro lado, interior e espiritual, e o intelecto pode ver-se embaraçado para qualificá-la juridicamente, pois tem sempre diante dos olhos a alternativa de um objeto ser ou não uma coisa (tal como algo é ou não infinito). O espírito livre tem, decerto, como conhecimentos próprios, saber, talentos que lhe são interiores e não exteriores, mas pode dar-lhes uma existência exterior mediante a expressão e assim aliená-los (cf.
Não obstante Hegel tenha especificado os termos propriedade, posse e uso2, tem-se que, no momento em que o livre arbítrio passa à esfera da interiorização, isto é, é condicionado aos seus iguais, surge a possibilidade de um contrato, cuja concepção é pura e simplesmente o processo pelo qual uma pessoa renuncia a propriedade privada em detrimento de outrem por
Em resumo, a posse diferencia-se da propriedade ao passo que é o “ato corporal e imediato de apropriar-se”, no que tange aos bens sensíveis, ou a “assinatura”, quando se tratar de bens incorpóreos, à medida que torna como sua uma ideia ou até mesmo um bem do qual se está distante, hipótese em que não é possível se ter a posse corporal. 2
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mais adiante). Passam eles então à categoria de coisas. (1997, p. 45)
meio de uma vontade mútua (HEGEL, 1997, p. 70-71), em virtude da qual são criadas as cláusulas dos contratos jurídicos. Conclui-se, desse modo, que o contrato tem as seguintes características: 1) é produto do livre arbítrio; 2) a vontade afirmada por duas pessoas é comum, ou seja, não é universal (em si e para si); e 3) o objeto do contrato é coisa particular, posto que só ela pode ser alienada. Nesse ínterim, Hegel faz expressa crítica a Kant e os contratualistas:
Não se pode, portanto, considerar o casamento dentro do conceito de contrato. Foi isso, no entanto, o que Kant estabeleceu e, é preciso dizê-lo, em todo o seu horror {Princípios metafísicos da doutrina do direito, pp. 106 e ss.). Também a natureza do Estado não consiste em relações de contrato, quer de um contrato de todos com todos, quer de todos com o príncipe ou o governo. A inserção destas relações contratuais ou da propriedade privada nas relações políticas teve por resultado as mais graves confusões no direito público e na realidade. Tal como outrora os privilégios públicos e as funções do Estado foram considerados propriedade imediata de certos indivíduos em detrimento do direito do príncipe e do Estado, assim no período moderno se consideram os direitos do príncipe e do Estado como fundados em contratos de que eles constituiriam objeto, determinando-os como simples vontade comum resultante do livre-arbítrio de todos os que se reúnem no Estado. Por mais diferentes que sejam estes dois pontos de vista, entre eles há, no entanto, de comum o fato de transporem os caracteres da propriedade privada para um terreno que é de uma natureza diferente e mais elevada (cf. mais adiante: Moralidade Objetiva e Estado). (1997, p. 72)
Para ele, pelos motivos acima consignados, excluem-se da matéria dos contratos tanto o casamento como a natureza do Estado, o que teria gerado “as mais graves confusões no direito público e na realidade” (HEGEL, 1997, p. 72). A partir do momento em que o contrato foi estabelecido, está a fenomenalidade do
caracterizando-se a injustiça, ocasião em que nascerá ao lesado o direito de reparação, pois é a liberdade ser em si e imediata. No entanto, há três diferentes tipos de injustiça: o dano, a impostura, a violência e o crime (HEGEL, 1997, p. 81); o primeiro ocorre quando a injustiça é em si, ou seja, parte de um dos contratantes, gerando desse modo um prejuízo a ser restituído; a segunda se dá pela aparência fraudulenta criada pela vontade arbitrária de outrem, hipótese em que há um contrato, mas lhe falta o aspecto universal em si; por fim, a violência e o crime surgem quando a liberdade em si sofre uma coação, devendo, assim, erguer-se um direito heroico, o Direito Penal.
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direito sujeita ao descumprimento por um dos contratantes ou por qualquer outra pessoa,
Nota-se que, na primeira fase de formação do Direito, se evidenciam algumas de suas principais características. Em primeiro lugar, tem origem no livre arbítrio, que deve, portanto, ser resguardado acima de tudo; em segundo lugar, é possível afirmar que tanto a propriedade como a posse são disponíveis, ao passo que podem ser alienadas, cedidas ou trocadas por meio de um contrato, que, para que se tenha força de validade, é dotado de coação, impondo uma sanção à pessoa que descumpri-lo. Surgem, assim, os primeiros questionamentos acerca dos ordenamentos jurídicos contemporâneos. As pessoas são livres de vontade a ponto de expressá-las independentemente de julgamento pelo Estado? Até onde o Estado deve intervir no tocante ao acordo de vontades entre os indivíduos particulares? Temas atuais como a cesura e o liberalismo ganham relevância e podem ser amplamente discutidos com fundamento na Filosofia do Direito hegeliana. No entanto, há uma certeza; para que o Direito seja efetivo, deve ser dotado de coação, de modo a concretizar as vontades individuais em caso descumprimento do acordo firmado pelas partes.
3.2 Moralidade subjetiva
A moralidade subjetiva inicia-se com a interiorização do livre arbítrio, ou nos dizeres de Hegel, é o momento em que a vontade “deixa de ser infinita em si para o ser para si” (1997, p. 97). Neste momento o processo de formação do Direito é aperfeiçoado para que se possa consolidar frente a toda sociedade; busca-se a vontade universal, que, por ser imediatamente para si, é abstrata, limitada e formal, isto é, funda-se na subjetividade da vontade. Através da moralidade subjetiva, Hegel busca as relações das vontades, vale dizer, condicionar o livre arbítrio à vontade de outrem e, para isso, desenvolve conceitos de projeto e responsabilidade, intenção e bem-estar e bem e certeza moral, numa cadeia dialética por meio
Dessa forma, a primeira seção, projeto e responsabilidade, visa expor que no instante em que vontades se relacionam, uma delas implicará reações nas demais, criando circunstâncias, podendo a ela ser imputada eventual responsabilidade pelos acontecimentos. Nesse sentido Hegel explica que “Todo o elemento isolado que se apresenta como condição, origem ou causa de uma dessas circunstâncias e que contribui pois com algo que lhe é próprio pode ser considerado como responsável ou, pelo menos, como tendo a sua parte de responsabilidade” (1997, p. 104). Daí porque no âmbito da vontade, quando ser em si, livre e
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da qual o Direito Abstrato torna-se não mais uma unilateralidade, mas uma referência do agir.
imediata, quando projetada nas demais vontades com as quais se relaciona, nasce a figura jurídica da responsabilidade, seja ela cível ou criminal. No entanto, no segundo momento dialético, ao agir o indivíduo expressa sua vontade através da intenção, encerrando, por conseguinte a ideia abstrata, concretiza um fato particular e “depois se afirma como essência subjetiva da ação” (1997, p. 106). Surge, então, a ideia de discernimento cuja consequência é mitigar a Responsabilidade, excluindo-se os “casos de loucura, de imbecilidade ou de pouca idade” (1997, p. 107). Logo, alinhada à concepção do bem-estar, que nada mais é do que a perspectiva do direito formal e do bem particular do indivíduo, tem-se que a intenção é de grande relevância para o julgamento da ação, mas não pode ser elevada a único critério de justiça, posto que a Responsabilidade¸ ainda que branda, é intrínseca e subjetiva. Por fim, torna-se a moralidade subjetiva em si e para si, oportunidade em que as ideias anteriores são ultrapassadas criando-se uma unidade denominada Bem, um bem-estar universal munido de um arcabouço de vontades projetadas por indivíduos responsáveis que agem tendentes ao bem-estar geral da sociedade. Deste modo “a verdadeira certeza moral é a disposição de querer aquilo que é bom em si e para si” (1997, p. 121), mas só deixará o plano formal e abstrato quando, unindo-se à vontade subjetiva, ingressar à moralidade objetiva e produzir um sistema objetivo de princípios ou deveres fundados em um conhecimento concreto. Observa-se que a moralidade subjetiva está intrinsicamente ligada às relações pessoais, que são qualificadas pelos mais diversos aspectos do meio social. Logo, resta evidente que o Direito deve ser analisado na mais ampla interdisciplinaridade, no sentido de buscar nas outras ciências informações necessárias à compreensão da sociedade à que está subordinado. Com isso, surgem mais questionamentos. O Direito contemporâneo é realmente pautado na sociedade? As leis como são elaboradas hoje, atendem à real vontade social? Tais perguntas são de extrema importância pois estão relacionadas aos fins maiores do Direito, a
de grande valor ao pensamento jurídico contemporâneo.
3.3 Moralidade objetiva: eticidade
A moralidade objetiva é a terceira fase da Filosofia do Direito de Hegel e, como dito acima, concretiza-se com a unidade da vontade subjetiva com o Bem, da liberdade com a consciência. Dessa maneira, passa-se a analisar não só a liberdade individual e suas relações
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ordem social e a justiça, motivo pelo qual, uma vez mais, a ótica proposta por Hegel mostra-se
com os demais sujeitos de vontade, mas o conjunto delas com vistas a criar um sistema objetivo de princípios, bens e vontades bem definidos, e ideias racionais. Hegel (1997, p.149-216), em longa e distinta exploração, ensina que a Eticidade é desenvolvida em três campos distintos; o primeiro deles é a Família que, por sua vez, realizase: a) no casamento, b) na propriedade e c) na educação dos filhos e dissolução. Num segundo momento surge a Sociedade Civil, ordenada pelas carências, pela jurisdição e pela administração, que, ao se desenvolver, atinge o ápice do processo dialético do Direito, o Estado. Entende-se por família a “substancialidade imediata do espírito” (HEGEL, 1997, p. 149), ou seja, a forma mais natural de formação de sociedade, pela qual os indivíduos só adquirem direitos abstratos ao passo que a família se dissolve e passam a ser independentes entre si. O casamento marca o início desse primeiro momento da Eticidade, ocasião em que se duas pessoas se unem por livre consentimento e com um fim essencial, o da união de toda a existência. É essa união exteriorizada pela propriedade administrada pelo “chefe” da família, e a prole detém desde o nascimento a liberdade abstrata, devendo a educação introduzir-lhes a moralidade objetiva e, quando educados, destiná-los a constituir sua própria união e seus direitos, dissolvendo com o tempo a família criada. Logo, com o conjunto das famílias e particulares constrói-se uma Sociedade Civil, oportunidade em que as pessoas estão, por essência, relacionadas de forma análoga às demais e são obrigadas a aplicar o princípio da universalidade. Quando não o é feito, ou feito de maneira deturpada, ou seja, quando a particularidade se desenvolve de forma independente, Hegel explica que a sociedade mostrará sua maior miséria e decadência, a corrupção (1997, p. 168169). Portanto, a universalidade do princípio da particularidade revelará a verdade e a legitimação da realidade positiva. No entanto, como não poderia deixar de ser num sistema dialético, extrai-se a obra
momentos: 1) o sistema das carências, momento em que há mediação das carências particulares e sua satisfação pelo próprio trabalho e pelo trabalho dos demais; 2) a jurisdição, que nada mais é do que a proteção da liberdade individual frente ao princípio da universalidade, manifestandose no Direito em si (direito positivo), na publicidade das leis e no Tribunal; e 3) a administração e corporação, a primeira visa resguardar o que há de universal na particularidade intrínseca na sociedade civil, ou seja, instituições criadas por ela devem administrar a própria sociedade com fito de assegurar a liberdade particular fundada no interesse universal, já a segunda, considerada
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Princípios da Filosofia do Direito que a Sociedade Civil se desenvolve em três diferentes
a “segunda raiz moral do estado” (HEGEL, 1997, p. 214), une pessoas pela honra do trabalho e cria grupos de interesses limitados à sua finalidade. Por fim, através da evolução da sociedade civil como totalidade orgânica é que nasce o Estado e nele a liberdade torna-se suprema, é o ser em si e para si. Tem-se, pois, um direito soberano oriundo de cada indivíduo, que é a liberdade. O Estado é resultado do processo dialético, ou seja, é o pensamento em sua totalidade universal. O Estado tem três aspectos, segundo Hegel (1997, p. 216): 1) existência imediata – Direito Interno ou em si –; 2) existência mediata – Direito Externo ou para si –; e 3) ideia de soberania perante outros Estados e sua evolução na história universal, ou Direito em si e para si. O Direito Interno, em resumo, trata-se da constante dialética das duas primeiras fases do direito, a vontade e a moralidade subjetivas, em busca de sua organização interna com o fito de progredir em sua própria história e, para isso, divide-se em três poderes, o poder legislativo (estabelecer liberdade universal), o poder de governo (integrar o particular ao universal) e o poder do príncipe (decisão suprema). O Direito Externo nada mais é do que a relação com os demais Estados, expressando assim a vontade universal de uma sociedade. E, por último, temse a história universal, pela qual é resguardada a cada povo a sua própria evolução. Dessa forma, segundo a Teoria do Direito proposta por Hegel, o Estado representa a concretude do Direito ao passo que é o responsável por garantir não só o ordenamento jurídico criado pela sociedade, como a sua eterna evolução através da dialética. Contudo, a realidade parece estar longe disso. Não poucas vezes autoridades governamentais lotam suas agendas para discutir temas de grande importância para a sociedade, como a regularização de porte ou posse de armas, a maioridade penal, a descriminalização do uso de drogas, ou até mesmo um plano de previdência social, sem que qualquer cidadão seja consultado diretamente, aumentando cada vez mais o sentimento de injustiça e contraditória
4 ANÁLISE CRÍTICA AO POSITIVISMO DE HANS KELSEN SOB A ÓTICA DIALÉTICA
No Brasil, o sistema jurídico se baseia na teoria kantiana, negada ou aperfeiçoada por Hegel. Para Kant existem dois estados do ser – a coisa em si mesma e o dever ser (MASCARO, 2016, p. 219); destarte, o Direito seria o dever ser exigido pelo Estado, enquanto as pessoas agem de forma distinta, mas baseando suas condutas em normas que foram eleitas como sendo 167
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subordinação do indivíduo ao Estado.
as mais corretas e adequadas pelos governantes. A partir desse dualismo, surgem muitas outras teorias segundo as quais o Direito seria uma ciência alheia às demais, desenvolvendo-se por si só, em contraponto ao exposto até aqui. Em outras palavras, os juristas Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos explicam que o positivismo surgiu de uma “crença exacerbada no poder do conhecimento científico. Sua importação para o Direito resultou no positivismo jurídico, na pretensão de criarse uma ciência jurídica, com características análogas às ciências exatas e naturais”. (BARROSO; BARCELLOS, 2003, p. 31) Nesse ínterim, desenvolveram-se teorias do Direito Positivistas, dentre as quais despontua a de Hans Kelsen (1881-1973). Para ele, o Direito é um sistema Puro, vale dizer, estuda somente o que é importante para ele e nada mais. Isso não quer dizer que a ciência jurídica deve ser isolada de todas as outras, ao contrário, o autor reconhece existir essa conexão, mas esclarece que é necessário evitá-las para que não haja um “sincretismo metodológico que obscurece a essência da ciência jurídica e dilui os limites que lhe são impostos pela natureza do seu objeto” (KELSEN, 2009, p. 02). Além disso, a obra de Kelsen denominada exatamente Teoria Pura do Direito leva em seu primeiro capítulo, Direito e natureza, primeiro título, A pureza, a seguinte expressão: “Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto. Procura responder a esta questão: o que é e como é o Direito? Mas já não lhe importa a questão de saber como deve ser o Direito, ou como deve ele ser feito. É ciência jurídica e não política do Direito.” (KELSEN, 2009, p. 01) Bem por isso, em análise gramatical ao trecho acima, para Bittar e Almeida trata-se de um método de estudo do Direito e não uma teoria sobre sua origem. Nesse sentido, os citados autores explicam que a teoria jurídica de Kelsen advém de sua postura jurídico-metodológica, vale dizer, a ciência do Direito é autônoma e se desenvolve a partir de si própria ao passo que pode ser investigado e analisado. Assim, “a norma jurídica é o alfa e o ômega do sistema normativo, ou seja, o princípio e o fim de todo o sistema” (BITTAR, ALMEIDA, 2012, p. 411). Deste modo, tem-se que, ao contrário do que sustenta Hegel, a validade da norma em Kelsen, e nas demais teorias Positivistas, como ensina Tércio Sampaio Ferraz Júnior (2010, p. 192) em sua obra Introdução ao Estudo do Direito, não está na liberdade abstrata do espírito e seu consequente aperfeiçoamento através do método dialético, mas sim na própria norma, na chamada norma hipotética fundamental, um fundamento superior a todas as leis.
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isolada completamente de outras ciências que possam ser confundidas com seu conteúdo é que
Aliás, explica Norberto Bobbio que, para o positivismo jurídico, “a validade do direito se funda em critérios que concernem unicamente à sua estrutura formal (vale dizer em palavras simples, o seu aspecto exterior), prescindindo do seu conteúdo” (BOBBIO, 1995, p. 131). O desenvolvimento do sistema kelseniano é, porém, relativamente simples. Todas as normas em sentido amplo, incluindo leis, decretos etc., devem estar submetidas à norma fundamental ou, não sendo expressa, e não é, à norma imediatamente inferior a ela (no caso do Brasil, a Constituição Federal de 1988). A partir daí todas as demais normas a serem criadas deverão estar subordinadas àquela de forma escalonada, hierárquica, formando a tão conhecida Pirâmide de Kelsen e, para isso, devem obedecer aos ritos, princípios e regras gerais estabelecidas por ela, sendo, portanto, fundamentais. Outrossim, a validade das normas é condicionada apenas e tão somente ao “topo” da pirâmide, à norma fundamental. Nesse ínterim expõe Kelsen (2009, p. 260):
Uma norma somente pertence a uma ordem jurídica porque é estabelecida de conformidade com uma outra norma desta ordem jurídica. Por esta via, somos reconduzidos finalmente à norma fundamental, que já não é estabelecida de conformidade com a determinação de uma outra norma e que, portanto, tem de ser pressuposta.
Com melhor didática o jurista brasileiro Miguel Reale explica que o Direito, na doutrina de Hans Kelsen, é definido como um sistema escalonado e gradativo de normas, que, se apoiando umas nas outras, formam um todo coerente: “recebe umas das outras a sua vigência (validade), todas dependendo de uma norma fundamental, suporte lógico da integralidade do sistema” (REALE, 2002, p. 457). Logo, tal ordenamento hierárquico, além de estar fundamentado essencialmente na norma hipotética fundamental, e ser validado por ela, deve ser dotado de coercitividade para
de sua responsabilidade caso não o façam. Tem-se, então, a figura de um Estado que restringe parte da liberdade, dos direitos dos indivíduos, para que possa exercê-la frente aos que não o respeitarem, ou até mesmo para revertê-la em prol do interesse público. Ocorre que, ao tratar o Direito como uma ciência autônoma, rígida, exercida por um único ente – o Estado – que usa da sua força e controle para satisfazer o próprio Direito, sua aplicação afasta-se quase que completamente da sociedade e de tantos outros aspectos importantes, como a economia e a sociologia, e passa analisar apenas e tão somente a norma,
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que possa forçar os sujeitos de Direito a se submeterem a determinada regra e puni-los à medida
gerando um tecnicismo exacerbado a ponto de criar as comumente chamadas pelos juristas de leis sem eficácia, ou seja, normas que são rejeitadas pela própria sociedade para a qual foi criada. Ora, seguindo o método dialético de Hegel, como uma lei criada a partir da própria liberdade abstrata pode vir a ser negada pelo próprio indivíduo que lhe deu origem? Nesse sentido explica Hegel (1997, p. 31):
A definição kantiana geralmente admitida (Kant, Doutrina do direito), em que o elemento essencial é "a limitação da minha liberdade (ou do meu livre-arbítrio) para que ela possa estar de acordo com o livre-arbítrio de cada um segundo uma lei geral", apenas constitui uma determinação negativa (a de limitação).
Ademais, sob a ótica dialética hegeliana, o sistema positivista kelseniano, assim como o kantiano, seria apenas uma fase do Direito, a antítese. A criação uma lei geral e praticamente imutável, como proposto por Hans Kelsen e Kant, não seria possível uma vez que, do modo como é considerada, trata-se exclusivamente da moralidade subjetiva, que contrapõe o livre arbítrio em busca um senso comum. Dito isso, como assegurar, na teoria do Direito Positivista contemporânea, a mudança das vontades de cada pessoa e, analisando-as sob a perspectiva do livre arbítrio das demais, exigir da totalidade determinada conduta conforme o fato? Nessa perspectiva, o Estado não deve construir o Direito a partir de normas enclausuradas no tempo e na história, mas deve moldar-se aos seus integrantes de acordo com as vontades deles; o Estado serve, segundo Hegel, para proteger a liberdade e a moralidade, e não a restringir em face de sua existência. Destarte, o Direito é a égide da liberdade individual e não da vontade estatal, quer porque a segunda deve decorrer da primeira, quer porque a finalidade do Estado é, como já foi dito, apenas e tão somente a proteção do livre arbítrio. Hegel explica a mutabilidade a que o
O domínio do direito é o espírito em geral; aí, a sua base própria, o seu ponto de partida está na vontade livre, de tal modo que a liberdade constitui a sua substância e o seu destino e que o sistema do direito é o império da liberdade realizada, o mundo do espírito produzido como uma segunda natureza a partir de si mesmo. (1997, p. 12)
Assim, tem-se que o primeiro problema do Positivismo contemporâneo frente ao sistema hegeliano é o próprio sistema. O que é o Direito? Não é um compêndio de leis, decretos e tratados criados a partir de um princípio universal, intangível e imutável, é a própria liberdade 170
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Direito está subordinado da seguinte forma:
desenvolvida e contraposta por um complexo sistema social que detém inúmeros aspectos, inúmeras ciências. Para que serve o Direito? O Direito não serve somente para forçar todos a obedecer a uma norma criada apenas e tão somente a partir de outra, sem que valores fossem, no mínimo, atualizados, isto é, racionalizados e contrapostos às frequentes mudanças culturais, econômicas e sociais, mas serve para proteger o livre arbítrio de cada pessoa dentro de uma sociedade e, a partir dele, buscar um bem comum, o interesse público. Como se dá a evolução do Direito? Por tudo o que foi exposto, não é somente pela própria técnica jurídica-normativa, é pela constante mudança estabelecida pela razão. Como é aplicado o Direito? Não se deve aplicar exclusiva e irredutivelmente a regra geral ao particular, mas também o contrário. Segundo os ensinamentos de Hegel o que se busca é a satisfação de um interesse particular em face do interesse público, que, por sua vez, submeter-se-á ao movimento dialético, progredindo assim em sua história.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, tem-se que o método dialético exposto por Hegel é uma forma de comprovar o dinamismo e a mutabilidade das coisas e seres. E não é só isso: Hegel traz à tona algo que se nota facilmente no sistema Positivista Contemporâneo – a racionalidade –, ou melhor, a falta dela. O método dialético possibilita que pensamentos e ideias (teses) sejam trabalhadas (antíteses) a ponto de aperfeiçoá-la (síntese) e, a partir daí, construir novos conhecimentos sem que haja um retrocesso pois, ainda que se possa cogitá-lo, o que o regerá será a própria liberdade, motivo pelo qual sempre estará de acordo com os princípios da sociedade. Desse ponto desprendem-se inúmeros questionamentos: seria a Lei, como ela é hoje segurança jurídica – a certeza da aplicação da Lei ou a possibilidade de se ouvir as vontades particulares e contrapô-las à vontade pública? Seria a jurisprudência uma forma de aproximar o particular do Estado? Fato é que, longe de buscar a liberdade de cada indivíduo, os juristas, sejam eles advogados, juízes, promotores, árbitros, servidores públicos, peritos, dentre outros profissionais do Direito, são doutrinados pelo sistema Positivista a analisar o Direito como uma ciência isolada dos demais fatos sociais, causando uma sensação de injustiça à sociedade a que é aplicado.
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concebida, o melhor instrumento para assegurar direitos? Qual o verdadeiro conceito da
O maior desafio do Direito contemporâneo é, portanto, (re)aproximar a ciência jurídica da Ética e da Moral. Logo, é possível afirmar que o ordenamento jurídico ideal é aquele em que existe um equilíbrio entre regras, cuja função é justamente criar uma segurança jurídica, e princípios, os quais, devido à sua flexibilidade, possibilitam a aplicação da justiça ao caso concreto, cabendo ao intérprete do Direito avaliar a melhor medida a ser tomada. Quanto à hierarquia das normas, tem-se que os princípios representam ao Direito o que Hegel idealizou por Eticidade, ou seja, um consenso sobre determinado fato e que automaticamente passa a ser exigido por todos e para todos. O problema não está, então, em afirmar e aceitar o sistema hierárquico proposto de Kelsen, mas no isolamento da ciência jurídica e sua rigidez, que impede a aplicação do método dialético no âmbito do Direito. O tecnicismo exacerbado criado por esse sistema não pode ser considerado um erro, um defeito, mas não pode permitir que o bem-estar próprio esteja acima da liberdade individual e do bem-estar comum. E para que isso seja combatido, o método dialético apresentado por Hegel mostra-se um importante instrumento à aplicabilidade do Direito, uma vez que, independentemente do regime governamental a que a sociedade está subordinada, e dos instrumentos jurídico-políticos disponíveis, tem como escopo a interação das pessoas e suas respectivas vontades individuais, afim de se proporcionar um bem comum. Assim, desde a criação das normas até sua aplicação prática, a dialética hegeliana mostra-se uma filosofia extremamente relevante ao cenário jurídico atual, e pode propiciar a toda sociedade um sentimento maior de justiça ao passo que cada indivíduo terá sua vontade, sua liberdade abstrata, levada em consideração pelo Estado, seja como tese ou como antítese, frente aos seus iguais. Nota-se, contudo, que as normas devem ser criadas por pessoas e para pessoas, e não para satisfazer a própria norma, afastando-se então de seu objeto, situação esta
REFERÊNCIAS
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que, como consignado, pode vir a ser criada no âmbito de um sistema jurídico tecnicista.
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Barros Sandoval. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
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RÁO, Vicente. O Direito e a Vida dos Direitos. 7. ed. anotada e atual. por Ovídio Rocha
THE THEORY OF LAW IN HEGEL: THE DIALECTIC METHOD APPLIED TO THE LAW ABSTRACT The present article aims to, through the study of the philosopher Georg Friedrich Hegel, provide a critical view of the Law. For this, the Principles of the Philosophy of Law is used as the main instrument of this study. Faced with the complex philosophical system in which it is inserted, law shows itself not only as a set of norms instituted by the State, but something that is essentially human, that is, born out of the particular and it is protected by the whole, not the other way around. From this theory of Law, we will seek to analyze the evolution of law in the face of relevant issues of contemporary legal positivism.
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Keywords: Hegel. Philosophy of Law. Theory of Law. Dialectic.
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CONCESSÃO DA NACIONALIDADE BRASILEIRA ÀS IRMÃS MAHA E SOUAD MAMO: AVANÇO DA PROTEÇÃO AOS APÁTRIDAS NA NOVA LEI DE MIGRAÇÃO Jéssica Macêdo Filgueira de Freitas1 Winnie Alencar Farias2
RESUMO As irmãs Maha e Souad Mamo viveram durante 26 anos como apátridas, haja vista que nasceram no Líbano, cujo ordenamento jurídico adotou o critério jus sanguini para conceder a cidadania libanesa, mas ambos os pais são de origem síria. Em 2018, o Estado brasileiro, de forma pioneira, reconheceu o status de apátrida e concedeu a nacionalidade brasileira às irmãs Mamo. Nesse sentido, por meio do método indutivo, o presente artigo pretende demonstrar que a Lei de Migração apresentou uma mudança de paradigma em relação ao Estatuto do Estrangeiro, conferindo maior proteção aos apátridas e
Palavras-chave: Apátridas. Jus sanguini. Nacionalidade brasileira. Lei de Migração. Mudança de paradigma.
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Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
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facilitando o processo de naturalização.
“Eu sou uma sonhadora com um livro cheio de emoções, conquistas, falhas e sucessos. Mas o livro não tem autor, porque eu nunca existi”. (Maha Mamo)
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O artigo em questão trata-se de um breve estudo de caso que diz respeito ao enfrentamento da questão da apatridia, pelo Estado Brasileiro, com fundamentação na nova Lei de Migração, que entrou em vigor em novembro de 2017. Nesse sentido, para que seja possível fazer uma análise acerca da aplicação desta recente normativa ao caso das Irmãs Mamo, será feita uma breve contextualização da problemática da apatridia (nesta seção das considerações iniciais) e, em seguida, serão analisadas as circunstâncias fáticas do caso, de modo a identificar os principais pontos a serem abordados na análise da aplicação da legislação pátria. Não suficientemente, uma vez elucidado o caso de Maha e Souad Mamo, parte-se deste caso em específico para uma abordagem progressivamente mais geral, de modo que posteriormente serão pormenorizados o conceito de apátridas (e sua diferenciação dos demais grupos específicos de migrantes), bem como a proteção deste grupo a nível internacional por meio do exame das seguintes normativas: o Estatuto dos Apátridas (1954), promulgado por meio do Decreto nº 4.246 de maio de 2002, e a Convenção para Redução dos Casos de Apatridia (1961), promulgada por meio do Decreto nº 8.501 de agosto de 2015. Por fim, tendo como referencial o caso em espeque e as normativas universais, delineia-se a posição do Estado Brasileiro em relação à regulamentação dos indivíduos apátridas contida na chamada Lei de Migração3, que trouxe inúmeras modificações para o ordenamento jurídico interno. Refugiados4, estima-se que existam, em todo o mundo, 12 milhões de apátridas (ACNUR, 2012). Ou seja, essa é a quantidade de pessoas que, por diversos motivos, não possuem nenhum vínculo com o Estado no qual nasceram ou vivem, de modo que não são reconhecidos como nacionais e, consequentemente, não estão resguardados sob nenhuma tutela estatal.
3
Oficialmente conhecida como Lei 13.445, de 24 de maio de 2017. Trata-se de um órgão das Nações Unidas instituído no âmbito da Assembleia Geral em 1950 cujo escopo é apoiar e proteger refugiados. 4
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Nesse sentido, segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os
Sendo a inexistência de vínculo com qualquer Estado a característica principal para identificar um apátrida, é dessa mesma questão que se identifica o primeiro problema de ordem prática: a vulnerabilidade destas pessoas. Ora, diferentemente dos nacionais, sabe-se que este grupo não possui qualquer garantia de efetivação ou resguardo de seus direitos civis, políticos e sociais. Em virtude dessa situação, em que não há uma proteção propriamente dita deste grupo específico de migrantes, reitera-se que tais pessoas estão expostas a situações violadoras de direitos humanos e sujeitos à marginalização. Assim, conforme as lições de Reis (2016), não é incomum que essas pessoas tenham enormes entraves para acessar serviços básicos como saúde, educação, moradia e documentação, por exemplo. Ademais, justamente pela falta de documentos, o autor reconhece, ainda, que os apátridas estão mais sujeitos que os nacionais a ocupar postos de trabalho informais e insalubres. Além disso, percebe-se que pela falta de documentos, os filhos dos apátridas, muito provavelmente, a depender do critério jus solis5 ou jus sanguini6 ter sido incorporado ou não pelo ordenamento daquele Estado, também serão considerados apátridas. Tal situação é mais frequente do que se imagina, visto que uma criança apátrida nasce a cada dez minutos no mundo (NAÇÕES UNIDAS, 2017). Esse é, inclusive, o caso das irmãs Maha e Souad Mamo, que nasceram apátridas, como se verá no tópico a seguir.
2 A HISTÓRIA DE MAHA MAMO: DA APATRIDIA AO RECONHECIMENTO DA NACIONALIDADE BRASILEIRA
Desde a infância, Maha Mamo e seus irmãos, Souad e Edward, lutaram, diariamente, por todos os seus direitos enquanto apátridas. Esse status, conforme visto anteriormente,
vínculo político-jurídico entre o particular e o Estado. Preliminarmente, dentre as hipóteses que podem ensejar a apatridia, arrolam-se como possíveis causas: as divergências de legislações divididas pela consagração de critérios de nacionalidade como o jus solis (do latim “direito de solo”) e o jus sanguinis (do latim “direito
5
Refere-se a um princípio pelo qual a nacionalidade pode ser conferida ao indivíduo devido ao seu local de nascimento, isto é, sua ligação com o solo. 6 Refere-se a um princípio pelo qual a nacionalidade pode ser concedida ao indivíduo em virtude do laço sanguíneo com seus genitores, que, por sua vez, são nacionais.
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decorre da falta de atribuição da nacionalidade, ou seja, da incapacidade de se estabelecer um
de sangue”); a utilização de leis discriminatórias que recusam a nacionalidade em razão de raça, etnia ou religião; a perda superveniente da nacionalidade originária ou derivada; e, por fim, fatores políticos (SANTOS, 2016). No caso concreto, de acordo com as legislações internas tanto da Síria quanto do Líbano, os filhos integrantes da família Mamo não fariam jus, em nenhum dos países, à outorga da nacionalidade. Explica-se: os pais de Maha são sírios e moravam no país até então. Contudo, o seu pai, Jean Mamo, é cristão e sua mãe, Kifah Nachar, é muçulmana e, de acordo com as leis domésticas sírias, o casamento inter-religioso é ilegal (ACNUR, 2016). Obstinados a viver este amor, bem como visando ter sua união reconhecida, o casal fugiu para o Líbano, onde nasceram as três crianças Mamo. Contudo, pelo ordenamento jurídico libanês, não se acolheu o critério de jus solis para nacionalidade e não poderia haver a incidência do critério jus sanguinis para concessão da nacionalidade libanesa, haja vista que ambos os pais são de origem síria. Logo, a lei libanesa não concederá como nacionais os filhos de pais que não são libaneses. Para mais, quanto à possibilidade de se pleitear a nacionalidade síria, tem-se que “como o pai de Maha é sírio, de acordo com as leis de nacionalidade da Síria, Maha deveria ser reconhecida como uma cidadã síria” (ACNUR, 2016). Entretanto, em virtude da vedação ao casamento inter-religioso, não foi possível registrar o casamento nem tampouco o nascimento das crianças. Em face dessa situação, as três crianças tornaram-se apátridas. Sobre esse assunto, importante mencionar que a atribuição da nacionalidade e a fixação dos parâmetros para a conferência ou retirada desse vínculo é prerrogativa única e exclusiva de cada Estado. Assim, cada país tem a liberdade de adotar o jus solis ou o jus sanguinis com as reservas que entender como cabíveis ou convenientes, bem como pode determinar as hipóteses de aquisição ou perda da nacionalidade em decorrência da soberania inerente (LISOWSKI, 2012).
ser moderada pelas normativas de Direito Internacional, de forma a garantir direitos mínimos universalmente a todas as pessoas, simplesmente em decorrência de sua condição humana. Nesse escopo, evoca-se o art. 15 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH)7, que assegura a toda pessoa o direito a uma nacionalidade. Ademais, cumpre ressaltar que “a nacionalidade é uma das regras de conexão do Direito Internacional Privado para determinadas
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Trata-se de Declaração aprovada em 1948, num contexto de pós Segunda Guerra Mundial, no âmbito da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas. Tal documento traceja os direitos humanos básicos.
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Entretanto, não se pode olvidar que a soberania dos Estados não é absoluta, devendo
situações, sendo normas que indicam o direito aplicável às diferentes situações jurídicas conectadas a mais de um sistema legislativo” (VAL; LIMA, 2017). Tendo em vista a ausência de amparo por parte do governo do Líbano, território no qual residia com sua família, Maha Mamo cogitou a possibilidade de se mudar para outro país. Trilhando este objetivo, enviou dezenas de cartas para várias embaixadas ao redor do mundo (OBSERVATÓRIO TERCEIRO SETOR, 2018). Contudo, durante dez anos, apenas recebeu respostas negativas porque não possuía passaporte (ou qualquer outra documentação hábil, na realidade, visto que não era registrada). Até que em 2014, na época da onda migratória dos refugiados sírios, os filhos da família Mamo receberam os vistos e os passaportes na embaixada brasileira e foram acolhidos no Brasil. Infelizmente, seis meses após a chegada dos três, o irmão, Edward, foi assassinado em uma tentativa de assalto. Mesmo após a perda familiar, Maha e Souad continuaram lutando para que a nacionalidade brasileira fosse conferida a elas e, dessa maneira, tivessem seus direitos assegurados. Destarte, em maio de 2016, ambas foram reconhecidas como refugiadas e, posteriormente, após a entrada em vigor da Lei de Migração, as duas se tornaram as primeiras refugiadas a possuírem a condição de apatridia reconhecida pelo governo brasileiro. Sob esta perspectiva, informa-se que no ponto 4 do artigo será analisada a aplicação da nova Lei de Migração, que, em substituição ao Estatuto do Estrangeiro, possui um viés mais humanitário e voltado para a garantia de direitos, especialmente se comparada à legislação antiga, cuja elaboração se deu em meio ao regime militar. Conquanto, trilhando a obtenção da cidadania brasileira, fez-se necessário, ainda, que as meninas prestassem a prova Celpe-Bras. O exame, marcado no início de outubro, refere-se ao Certificado de Proficiência em Língua Portuguesa para Estrangeiros (ACNUR, 2018). Uma vez aprovadas, desde 4 de outubro de 2018, as irmãs se tornaram cidadãs brasileiras. Nesse facilitou a naturalização” (JORNAL DO COMÉRCIO, 2018).
3 APÁTRIDAS: CONCEITO E REGULAMENTAÇÃO
Em face do prévio reconhecimento das Irmãs Mamo enquanto refugiadas em 2016 e, em seguida, do entendimento de que as mesmas são apátridas, faz-se necessário elucidar acerca de dois conceitos correlatos, porém distintos, da apatridia: o asilo político e o refúgio. Em 179
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sentido, a própria Maha aduz, em relação à supracitada Lei nº 13.445/17, que “a nova lei
relação aquele, tem-se que consiste na proteção, por parte de um segundo Estado soberano, de uma pessoa que tenha sofrido perseguição ou discriminação de cunho político em seu país de origem. Esse último, por sua vez, possui duas diferenças principais em relação ao asilo. A primeira se dá na medida em que os refugiados sofrem perseguições pelas mais diversas razões, podendo estas versarem sobre motivos religiosos, políticos, raciais e étnicos. Ademais, em regra, o refúgio é associado com perseguições em massa e um fundado receio de que a perseguição ainda irá se concretizar. Sobre o assunto, importante perceber que sua previsão, contida no art. 14 da DUDH, é interpretada “não como um direito subjetivo exigível individualmente, mas como uma opção discricionária dos Estados” (LISOWSKI, 2012). Ao passo que quanto ao refúgio, o Estado possui a obrigação de concedê-lo sem qualquer margem para discricionariedade, desde que configurado, dentre outros casos, o fundado temor de perseguição. Portanto, reitera-se, ainda, a distinção entre refugiado e apátrida. Para tanto, admite-se que o elemento caracterizador do refúgio, nos termos da Convenção de 1951, que será abordada mais à frente, reside na “perseguição em virtude de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas que impossibilita (ou repele) o retorno da pessoa para seu lar”, enquanto que o apátrida é aquele que não possui vínculo com qualquer Estado, seja porque sua legislação interna não o reconhece como tal, seja porque não há um consenso sobre qual Estado deve reconhecer a cidadania (SECRETARIA DA JUSTIÇA, TRABALHO E DIREITOS HUMANOS – SEJU, [201-]). Uma vez superada a conceituação, bem como feitos os esclarecimentos (e respectivas diferenciações) frente aos demais grupos de migrantes vulneráveis, é imperioso, neste momento, o exame das normativas internacionais relativas à apatridia. O primeiro documento legal que regulamentou a condição de apatridia remonta ao período da Liga das Nações, contexto em que as minorias étnicas passaram a receber proteção
organização, o tratado em espeque não resultou numa efetiva proteção aos apátridas, ao que sobreveio a Segunda Guerra Mundial e as expatriações em massa. Após o conflito, a apatridia se projetou como um problema de dimensões ainda mais alarmantes. A Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH), de 1948, denota a preocupação em proteger os apátridas, alçando a nacionalidade ao patamar de direito humano. Todavia, a DUDH não possui caráter vinculativo, nem mesmo atribui a nenhum Estadomembro a obrigação de reconhecer a condição de apatridia de um indivíduo que ingresse em
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adicional no contexto internacional, por meio dos Tratados de Minorias. Assim como a própria
seu território, de modo que não apresenta eficácia para além do caráter simbólico do documento (LISOWSKI, 2012). Nesse panorama, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a Resolução nº 428 de 14 de dezembro de 1950, criando o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). Ocorre que na Conferência de Plenipotenciários de 1951 a questão dos refugiados foi considerada mais premente em comparação à temática dos apátridas, de modo que foi aprovada a Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados no mesmo ano, que não traz a definição de apatridia nem contempla os apátridas que cumulavam a condição de refugiados. Apenas em 1954 a questão da apatridia recebeu tratamento específico no âmbito internacional, com a aprovação da Convenção relativa ao Estatuto dos Apátridas, que trouxe a conceituação de apatridia e permitiu a diferenciação em relação às outras espécies de migrantes, como será demonstrado a seguir.
3.1 Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas (1954)
Inicialmente, cumpre ressaltar que a Convenção de 1954 é o único instrumento que cria uma condição específica de apatridia. Nessa toada, alguns autores aduzem que esse instrumento normativo não propõe mecanismos de erradicação da apatridia, mas apenas institui a garantia de igualdade e não-discriminação frente aos estrangeiros que possuem uma nacionalidade (REIS, 2016). Acerca do assunto, elogia-se tal normativa internacional na medida em que “a Convenção promove uma abordagem minuciosa, especificando que algumas garantias são aplicáveis a todos os apátridas, enquanto outras são reservadas aos apátridas que se encontram legais ou residam legalmente no território” (ACNUR, 201-). Não obstante, entende-se que para solucionar a questão da apatridia, não seria razoável
Nesse sentido, sublinha-se que esta normativa, acertadamente, solicita aos Estados que facilitem a naturalização dos apátridas, em seu art. 32. Portanto, se faz necessário destacar a relevância e o brilhantismo da Convenção ao assegurar direitos aos apátridas, incumbindo aos Estados a aderir à Convenção e concretizar, via políticas públicas, as garantias por ela enumeradas. Outrossim, outro ponto importante sobre esta Convenção se trata da definição de apátrida trazida pelo art. 1º, (1). Esta definição privilegia os apátridas de jure, isto é, “pelo direito”, mas não considera os apátridas de facto, ou seja, “na prática”. 181
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que a Convenção em tela tão somente exigisse que os Estados concedessem nacionalidade.
Sob esta perspectiva, têm-se que os apátridas de jure, são aqueles cuja a ausência de nacionalidade decorre de um conflito negativo com as leis dos países, tal qual como ocorre com os filhos da família Mamo e o Estado Libanês, por exemplo, enquanto que os apátridas de facto se referem às pessoas que formalmente estariam aptas a receber a nacionalidade, contudo, não recebem proteção de nenhum Estado. Comumente, a nacionalidade destes indivíduos é esvaziada frente a perseguições políticas ou discriminatórias que não são abarcadas pela legislação do país no qual a pessoa reside (REIS, 2016). A Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas fora aprovada em Nova Iorque, em 28 de setembro de 1954. Sua entrada em vigor, no entanto, ocorreu apenas em 06 de junho de 1960, quando atingiu o quórum de ratificação e adesão exigido pelo art. 398. Nos dias atuais, a Convenção conta com apenas 68 Estados-parte, número considerado baixo pela ACNUR, se examinado em cotejo com os 193 países que integram a Organização das Nações Unidas (VISKOVICH; TEMPROSA, 2011). No Brasil, inclusive, a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas só foi ratificada 48 anos após a assinatura do tratado, por meio do Decreto Legislativo nº 38, de 05 de abril de 1995, enquanto o ato de ratificação foi registrado junto à ONU em 13 de agosto de 1996 (UNTC, 2019). Porém, conforme elucida Bichara (2017), “foi preciso aguardar a promulgação do Decreto n° 4.246/2002 para obrigar o Brasil internamente a respeitar e prover os direitos fundamentais garantidos na forma do Estatuto dos Apátridas de 1954”. Após a incorporação ao ordenamento jurídico brasileiro, em 2002, o Brasil passou a ter a obrigação de resguardar os direitos fundamentais previstos no Estatuto às pessoas sem nacionalidade. Uma das primeiras obrigações impostas pela Convenção ao Estado-parte é a observância ao princípio da não discriminação, positivado no art. 3º. Com isso, há expressa vedação aos tratamentos discriminatórios dispensados aos apátridas, cujo critério é a cor da pele, a religião ou o país de origem.
viagem que permita ao refugiado sair e ingressar no país hospedeiro, em cumprimento aos direitos fundamentais e, especificamente, ao direito de ir e vir, preconizado no artigo 26 da Convenção. Desse modo, a partir da entrada em vigor da Convenção de 1954 no ordenamento jurídico pátrio, foram garantidos diversos direitos fundamentais aos apátridas. Impende
8
Nos termos do artigo 39, 1, da Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas: “1 - Esta Convenção entrará em vigor no nonagésimo dia seguinte à data do depósito do sexto instrumento de ratificação ou adesão”.
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Além disso, deve haver a expedição de documento de identidade e de documento de
destacar, em complementação ao princípio da não discriminação, que o Estado hospedeiro não deve dispensar tratamento diferenciado aos apátridas em relação aos refugiados ou até mesmo em relação aos nacionais em condição análoga. O Estatuto do Apátrida, contudo, era silente em relação ao procedimento administrativo que deve ser seguido para outorgar o status de apátrida, ficando à mercê dos Estados-parte adotarem os mecanismos adequados para concretizar as garantias previstas na Convenção. Bichara (2017) sustenta que, apesar dos notáveis avanços oriundos da Lei de Migração, ainda permanece a lacuna legislativa em relação ao órgão competente para receber os pedidos de outorga de status de apátrida. Nesse sentido, o autor aponta que o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), instituído para analisar os pedidos de refúgio, seria o órgão competente para solicitações dos apátridas, de modo que o mais adequado seria uma reforma da Lei 9.474/97, conhecida como Lei do Refúgio, para que a competência do CONARE passe a abarcar, também, os direitos dos apátridas.
3.2 Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia (1961)
A adoção da Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia adveio da necessidade de traçar medidas que, para além de conferir direitos fundamentais aos apátridas, como a Convenção de 1954, reduzissem, prevenissem e operacionalizassem a apatridia. Para Lisowski (2012), “por mais que esses grupos humanos não estejam totalmente desamparados do ponto de vista do direito internacional, ainda não há uma forma mais efetiva de proteção do que a atribuição juridicamente formal de uma nacionalidade”. Dessarte, com a entrada em vigor da Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia, em 18 de agosto de 2015, foi fortalecida a prevenção da perda e a outorga da
do Estado contratante de conceder nacionalidade aos indivíduos que, de outro modo, seriam considerados apátridas. O art. 1º, (2) prevê os requisitos que devem ser preenchidos para que a autoridade competente do Estado hospedeiro conceda a nacionalidade ao apátrida9. Em especial, tal 9
In verbis: “2. Todo Estado Contratante poderá subordinar a concessão de sua nacionalidade segundo a alínea (b) do parágrafo 1 deste Artigo a uma ou mais das seguintes condições: (a) que o requerimento seja apresentado dentro de um período fixado pelo Estado Contratante, que deverá começar não depois da idade de dezoito anos e terminar não antes da idade de vinte e um anos, de modo que o interessado disponha de um ano, no mínimo, durante o qual possa apresentar o requerimento sem ter de obter autorização judicial para fazê-lo”.
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nacionalidade ao apátrida. Estampado no artigo inaugural da Convenção, tem-se a obrigação
disposição visa guarnecer os apátridas menores de idade, o apátrida que sempre viveu sob essa condição e o interessado que tenha residido habitualmente no país, exceto aquele condenado por crime contra a segurança nacional ou aquele sentenciado à prisão por 05 anos ou mais em virtude de ilícito penal. De mais a mais, a Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia buscou dar diretrizes aos Estados contratantes sobre situações concretas e específicas. A título de exemplo, o menor abandonado será considerado nacional do Estado onde foi encontrado, e, caso se trate de navio ou aeronave, receberá a nacionalidade do território da bandeira do navio ou onde a aeronave estiver matriculada. Outro caso que também dispõe sobre o menor de idade é o da criança que nasceu em determinado Estado e se tornou apátrida por não ter preenchido os requisitos de residência ou por ter perdido o prazo para apresentação de requerimento, mas algum de seus pais possui a nacionalidade do Estado hospedeiro. Na hipótese em tela, a criança deverá receber a nacionalidade do Estado contratante. Nesse cenário, oportuno rememorar o emblemático caso do Movimento Brasileirinhos Apátridas, organizado por brasileiros emigrados que se viram impedidos de conferir a nacionalidade brasileira aos seus filhos nascidos no exterior. A celeuma adveio da EC nº 03/94, que alterou a redação do art. 12, I, alínea “c” da CF/88, impondo a residência no território nacional como pressuposto para a aquisição da nacionalidade brasileira por parte daqueles que nasceram no estrangeiro, o que era tido como alternativa na redação original.10 Ocorre que a falta de recursos financeiros impossibilitou muitos brasileiros de realizar a viagem exigida. Logo, surgiu um limbo jurídico para os filhos de pais brasileiros que nasceram em países que adotam o jus sanguini como critério para a aquisição de nacionalidade, como a França, a Suíça e o Japão, e não podiam viajar ao Brasil para adquirir a cidadania
Ora, se não são estas crianças, filhas de pais brasileiros, nacionais dos países nos quais nasceram, e tampouco têm condições de arcar com a viagem de volta ao Brasil para optar pela nacionalidade brasileira, então, com a maioridade, em 2012, tornar-se-iam heimatlos, ou apátridas (SANT’ANNA; ROSSO, 2011).
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Redação do art. 12 antes da EC nº 03/94: “c) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou de mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente, ou venham a residir na República Federativa do Brasil antes da maioridade e, alcançada esta, optem, em qualquer tempo, pela nacionalidade brasileira.” (Grifo nosso)
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brasileira.
O impasse apenas foi solucionado com o advento da EC nº 54/2007, que criou duas formas de aquisição da nacionalidade brasileira para os nascidos no exterior. A primeira delas é a possibilidade de registro na repartição brasileira competente, como as embaixadas e os consulados; a segunda forma, por sua vez, é o indivíduo vir residir na República Federativa do Brasil, optando, por qualquer tempo, pela nacionalidade brasileira. Em diálogo com o caso concreto, objeto de estudo neste artigo, temos que a Maha Mamo, assim como outros milhões de apátridas, vivenciou essa situação de limbo jurídico, pois na Síria o casamento inter-religioso é ilegal, e no Líbano apenas é adquirida a nacionalidade se os pais da criança forem libaneses. Dando continuidade ao exame dos aspectos gerais da Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia, o art. 6º traz interessante hipótese de que a perda de nacionalidade de um indivíduo não implica na perda de nacionalidade dos seus pais ou do seu cônjuge, caso isso possa resultar em apatridia. Para Bichara (2017), a Convenção em análise consiste em importante avanço legislativo, na perspectiva de que traz situações concretas e dispõe sobre as medidas que devem ser tomadas para reduzir os casos de Apatridia no mundo. Por outro lado, acompanhando a inovação legislativa, surgiram os desafios enfrentados pela administração pública na implementação dessas garantias.
4 LEI DE MIGRAÇÃO
A Lei nº 13.445/17, denominada Lei de Migração, dispõe sobre os direitos e os deveres do migrante e do visitante, regula a sua entrada e estada no País e estabelece princípios e diretrizes para as políticas públicas para o emigrante, nos termos do caput do art. 1º. Destaque-
regulam a matéria examinados no tópico anterior, mas, na verdade, incrementa a regulamentação dada aos migrantes e visitantes. Corroborando os direitos fundamentais previstos na Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas, o art. 3º estabelece que a política migratória brasileira se funda, por exemplo, no repúdio e prevenção à xenofobia, ao racismo e a quaisquer formas de discriminação, na igualdade de tratamento e de oportunidade aos migrantes e a seus familiares, na não criminalização da migração e na promoção de entrada regular e de regularização documental.
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se que a vigência da Lei de Migração não prejudica a aplicação dos tratados internacionais que
No caput do art. 4º, inclusive, os migrantes são equiparados aos nacionais em relação à garantia da inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, além de outros direitos fundamentais exemplificados no rol de incisos. Para Varella et al (2017), a Lei de Migração ofereceu uma mudança de paradigma em relação ao Estatuto do Estrangeiro na forma que o Estado brasileiro enxerga as migrações, trazendo uma ótica mais humanista, integradora e menos burocratizada. A situação documental do migrante e do visitante, disciplinada a partir do art. 5º, denota a simplificação do procedimento de obtenção de visto, a alteração na forma de controle dos residentes estrangeiros no Brasil, a simplificação na entrada de trabalhadores estrangeiros no país e a abertura humanitária.
4.1 Avanços no regramento dos apátridas
Em relação aos apátridas, especificamente, o regramento da Lei 13.445/17 trouxe a autorização de residência à pessoa beneficiária de proteção ao apátrida, bem como ao menor apátrida, desacompanhado ou abandonado, que se encontre nas fronteiras brasileiras ou em território nacional, nos termos do art. 30, II, “e” e “f”. Ademais, há a possibilidade de emissão de visto temporário com a finalidade de acolhida humanitária aos apátridas que se encontrem em situação de grave ou iminente instabilidade institucional, de conflito armado, de calamidade de grande proporção, de desastre ambiental ou de grave violação de direitos humanos ou de direito internacional humanitário, conforme giza o §3º do art. 14. Uma inovação que denota a preocupação humanitária que permeia o novo texto legal reside no art. 20, que prevê a identificação civil do solicitante de refúgio, de asilo, de reconhecimento de apatridia e de acolhimento humanitário com os documentos que o imigrante
ao Estado hospedeiro, não raro sem condições de portar pertencer e documentos de forma estável, é deveras desarrazoado exigir muita formalidade aos documentos apresentados. Em relação a Maha Mamo e Souad Mamo, o procedimento de reconhecimento do status de apátrida e a concessão da nacionalidade brasileira observou o rito descrito no art. 26 da Lei de Migração. Conforme exposto no tópico 2, após o envio da documentação em 2014, por meio do programa destinado a pessoas afetadas pelo conflito da Síria, foi verificado que as irmãs não eram consideradas nacionais pela legislação de nenhum Estado, o que implicou no reconhecimento enquanto refugiadas apátridas. Ato contínuo, as solicitantes foram consultadas 186
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portar. Levando em consideração a trajetória que esses indivíduos costumam traçar até chegar
sobre o desejo de adquirir a nacionalidade brasileira, resultando na naturalização em 04 de outubro de 2018 (ITAMARATY, 2018).
4.2 A concessão da nacionalidade brasileira a partir da Lei nº 13.445/17
A nacionalidade é o vínculo jurídico-político que conecta um indivíduo a um certo e determinado Estado. A Constituição Federal brasileira, ao tratar do tema, em seu art. 12, dispõe acerca de dois tipos de nacionalidade: a primária ou originária – que é o caso dos brasileiros natos – e a secundária ou derivada, referente aos brasileiros naturalizados. De acordo com Cunha e Jorge (2013), a nacionalidade primária é resultante do nascimento, enquanto que a nacionalidade secundária é típica daqueles que, após o nascimento, adquirem por vontade própria. Quanto à nacionalidade originária, a Constituição Federal elenca três hipóteses para que alguém seja considerado brasileiro nato, as quais sejam: I) se nascidos na República Federativa do Brasil, o que denota a adoção do critério jus solis por parte do Estado Brasileiro; II) os nascidos no estrangeiro cujo o pai ou a mãe sejam brasileiros e estejam a serviço da República Federativa do Brasil, assinalando a incorporação do critério jus sanguinis; e, por fim, III) os nascidos no estrangeiro de pai ou mãe brasileiros, desde que registrados em repartição brasileira competente ou venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, depois de atingida a maioridade, pela nacionalidade brasileira, cujo teor combina e relativiza tanto o jus solis como o jus sanguinis. Não obstante, no que se refere à nacionalidade derivada, o inciso II do art. 12 estabelece os pressupostos para uma naturalização de forma ordinária e outra extraordinária. Nesse sentido, a ordinária ocorre aos que, na forma da lei, adquiram a nacionalidade brasileira, sendo exigidas aos estrangeiros originários de países de língua portuguesa apenas a residência
qualquer nacionalidade, devem residir na República Federativa do Brasil há mais de quinze anos ininterruptos e não possuir condenação penal para requisitá-la. A partir das conceituações supracitadas, sabemos que Maha e Souad Mamo jamais poderiam ser consideradas brasileiras natas, podendo, contudo, requerer a naturalização em sua hipótese ordinária. Sob esta perspectiva, destacamos que a Constituição Federal atribui ao legislador infraconstitucional a responsabilidade de elencar discricionariamente os requisitos para a concessão da nacionalidade.
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por um ano ininterrupto e idoneidade moral. Na hipótese extraordinária, os estrangeiros de
Anteriormente, os critérios eram fixados pelo Estatuto de Estrangeiro, que fixava como condições: a capacidade civil; o registro do indivíduo como permanente no Brasil; a residência contínua no território nacional, pelo prazo mínimo de quatro anos, imediatamente anteriores ao pedido de naturalização; leitura e escrita da língua portuguesa, consideradas as condições do naturalizando; o exercício de profissão ou posse de bens suficientes à manutenção própria e da família; o bom procedimento; a inexistência de denúncia, pronúncia ou condenação no Brasil ou no exterior por crime doloso a que seja cominada pena mínima de prisão, abstratamente considerada, superior a um ano; e uma boa saúde, sendo este último critério dispensado caso o estrangeiro residisse há mais de dois anos no país. Com o advento da Lei 13.445/17, o processo de naturalização tornou-se mais simplificado se comparado ao sistema vigente com o Estatuto do Estrangeiro. Tal mudança de paradigma é perceptível a partir da análise das novas condições para naturalização, as quais sejam: a capacidade civil, segundo a lei brasileira; a residência em território nacional, pelo prazo mínimo de quatro anos; a capacidade de se comunicar em língua portuguesa, consideradas as condições do naturalizando; e a inexistência de condenação penal ou estar reabilitado, nos termos da lei. Nesse aspecto, aponta-se a flexibilização dos critérios para a obtenção da nacionalidade, o que beneficiou Maha Mamo e sua família, bem como se comemora a qualidade garantista da normativa no tocante aos apátridas.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da análise dos tratados internacionais que disciplinam a matéria e foram incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro, como a Convenção relativa ao Estatuto dos
do exame da nova Lei de Migração, tornou-se evidente o compromisso (ainda que tardio e insuficiente) assumido pelo Brasil em cumprir as obrigações pactuadas perante a comunidade internacional no tocante aos migrantes. Apenas com a mudança de paradigma oriunda da Lei de Migração, bem como das mudanças concretas, como a flexibilização nos documentos que o imigrante deve portar, houve a simplificação do processo de naturalização. Contudo, a existência de entraves administrativos e lacunas que ainda devem ser superadas, a exemplo da ampliação da competência do CONARE, deve-se reconhecer que a 188
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Apátridas de 1954 e a Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia de 1961, bem como
naturalização de duas refugiadas apátridas pelo Estado brasileiro, após a edição da Lei de Migração, denota que a nossa legislação deve servir de norte para outros países que ainda impõem demasiada burocracia no reconhecimento dos apátridas e os privam de um dos mais essenciais direitos humanos: a nacionalidade. Desde a infância, Maha Mamo e seus irmãos, Souad e Edward, lutaram, diariamente, por todos os seus direitos na qualidade de apátridas. Em maio de 2016, Maha e Souad foram reconhecidas como refugiadas e, após a entrada em vigor da Lei de Migração, as duas se tornaram as primeiras refugiadas a possuírem a condição de apatridia reconhecida pelo Brasil. Com a aprovação na prova Celpe-Bras, em 4 de outubro de 2018, as irmãs se tornaram cidadãs brasileiras. Nesse sentido, a própria Maha aduz, em relação à supracitada Lei nº 13.445/17, que “a nova lei facilitou a naturalização”. A concessão da nacionalidade brasileira às irmãs Maha e Souad Mamo é resultado da maior proteção conferida aos apátridas no ordenamento jurídico brasileiro, bem como da mudança de paradigma trazida pela Lei de Migração. A desburocratização do processo de reconhecimento da condição de apátrida e a facilitação da naturalização dos solicitantes é uma das mudanças advindas da Lei 13.445/17 que permitiram a concretização do direito fundamental das irmãs Mamo de serem reconhecidas como nacionais do Estado brasileiro.
REFERÊNCIAS
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THE GRANTING OF BRAZILIAN NATIONALITY TO MAHA AND SOUAD MAMO: ADVANCES IN THE PROTECTION OF STATELESS PERSONS ACCORDING TO THE NEW MIGRATION LAW
ABSTRACT The sisters Maha and Souad Mamo lived for 26 years as stateless persons, since they were born in Lebanon - whose legal system adopted the criterion jus sanguini to grant Lebanese citizenship - but both parents are of Syrian origin. In 2018, the Brazilian State, in a pioneering way, recognized the status of stateless person and granted Brazilian nationality to the Mamo sisters. Futhermore, through the inductive method, the present article intends to demonstrate that the Migration Law presented a paradigm shift in relation to the Foreign Statute, giving greater protection to stateless persons and facilitating the naturalization process. Keywords: Stateless. Jus sanguini. Brazilian nationality. Law of
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Migration. Paradigm change.
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CONTROLE DE MÉRITO DOS ATOS ADMINISTRATIVOS PELO PODER JUDICIÁRIO: ANÁLISE DOS LIMITES DA DISCRICIONARIEDADE DO AGENTE PÚBLICO EM RELAÇÃO AOS ATOS ADMINISTRATIVOS DISCRICIONÁRIOS André Marinho Medeiros Soares de Sousa1 Maria Eduarda Monte Nunes Araújo2
RESUMO O artigo busca esclarecer a noção de ato administrativo e discutir sobre as peculiaridades do ato discricionário e o seu mérito. Trata-se, a partir do estudo legislativo, constitucional, jurisprudencial e doutrinário, da possibilidade de contenção do mérito do ato administrativo pelo Poder Judiciário. Discute-se qual o limite da discricionariedade destinada ao agente público. Dessa forma, chega-se à conclusão que o controle jurisdicional é necessário sempre que os princípios que regem os atos forem desconsiderados por atos praticados com o limite da discricionariedade superado.
atos discricionários. Discricionariedade do agente público. Princípios do direito administrativo.
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Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Advogado. Graduada em Direito pelo Centro Universitário do Rio Grande do Norte. Advogada.
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Palavras-chave: Ato administrativo. Controle jurisdicional. Mérito dos
1 INTRODUÇÃO
A partir de uma análise dos temas que versam sobre o Direito Administrativo e que são causa, ainda, de muitos debates e contradições pela doutrina brasileira, notou-se que o controle jurisdicional de atos discricionários e uma análise dos limites da discricionariedade do agente público em relação ao mérito dos atos da Administração seriam temas adequados a uma nova discussão, por serem assuntos polêmicos e bastante atuais. Dessa forma, o presente artigo tem a finalidade de tratar sobre tema que rege tanto o Direito na constância atual do ordenamento jurídico, como também é influenciador da Administração Pública devido a esta ter a necessidade de agir sempre de acordo com os preceitos estabelecidos e seguindo os princípios constitucionais e infraconstitucionais que serão explicitados ao longo do texto. No decorrer do artigo, buscar-se-á analisar a discricionariedade e mérito do ato administrativo por meio do método dedutivo, visto que se parte da análise geral dos atos administrativos, em todas as suas classificações, até a especificação dos atos administrativos discricionários e as suas peculiaridades. Além disso, será utilizado o método bibliográfico no decorrer do presente artigo, uma vez que se tentará desenvolver e elucidar uma problemática com base em obras e livros que versem sobre as matérias tratadas. Iniciará então, no segundo capítulo, a tentativa de se formar uma base concreta para que fosse possível um correto entendimento do assunto no final do texto. Serão tratados os aspectos e pressupostos dos atos administrativos, sua função e a do agente administrativo, assim como a competência para a prática de tais atos, abordando-se, também, o conceito de ato administrativo. No capítulo seguinte, esmiuçar-se-á a matéria que trata especificamente sobre os atos administrativos discricionários e a discricionariedade de seu mérito, com o objetivo de que, ao
ato administrativo. Nesse ponto do trabalho é que começará a ser delimitado o seu objetivo final, pois restará demonstrado os limites que a discricionariedade administrativa possui. No capítulo quatro, o tema abordado versará sobre os princípios norteadores dos atos administrativos, constitucionais e infraconstitucionais, que de alguma forma influenciem no modo de existência e na forma que devem ser praticados os atos discricionários pela Administração.
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final da explanação, estejam caracterizadas todas as peculiaridades desse tipo tão importante de
No último capítulo do artigo, será tratado, de acordo com os entendimentos doutrinários e jurisprudenciais, o tema do controle jurisdicional dos atos administrativos discricionários, inclusive aquelas decisões que tratem como irregular o seu mérito. É válido ressaltar que se buscou tratar a matéria com consideração e profundidade, procurando fundamentações concisas e de doutrinas de destaque, para justificar o entendimento final do artigo. Por esse motivo é que foram utilizados ao longo do texto, como parâmetro de análise, a legislação vigente do país, juntamente aos já mencionados entendimentos doutrinários e as jurisprudências dos tribunais pátrios.
2 ATOS ADMINISTRATIVOS: PANORAMA GERAL
O direito administrativo brasileiro é ramo do direito público, sendo constituído de uma congregação de princípios e regras próprias, que sofreram diversas influências, principalmente do direito francês, alemão, italiano e do sistema de base romanística e da common law (DI PIETRO, 2014, p. 04-23). Logo, para que se possa entender de forma tangível a função administrativa da Administração Pública e o modo como o interesse público é concretizado, faz-se imprescindível, antes de tudo, compreender e se aprofundar na matéria dos atos administrativos, uma vez que estes são manifestações diretas da Administração. Destarte, passa o capítulo em curso a explanar sobre a matéria, definindo seus conceitos, elementos, pressupostos e classificações para então, mais adiante, iniciar o estudo sobre o controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário e entender as suas possibilidades de fiscalização e contenção. Assim, no meio dos mais variados conceitos desenvolvidos pela doutrina, tem-se o
de prerrogativas públicas, e é manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei e com a finalidade de obter o seu cumprimento, estando ainda sujeita a controle de legitimidade por órgão jurisdicional (BANDEIRA DE MELLO, 2014, p. 389). De forma complementar a sua definição, entende-se também que os atos podem ser conceituados como resultado da manifestação unilateral da vontade da Administração Pública, tendo a finalidade de adquirir, modificar, resguardar, transferir e extinguir direitos, ou até mesmo, de impor obrigações (MEIRELLES, 2014, p.165).
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entendimento de que o ato administrativo é uma declaração do Estado, que ocorre no exercício
Entretanto, para que o ato administrativo cumpra o seu essencial papel de controle sobre as atividades da Administração Pública, faz-se mister o cumprimento integral de alguns elementos, que proporcionam a sua completa formação, e tornam-no existente, válido e eficaz. Conforme disciplina a Lei nº 4.717/65, ao indicar os requisitos que configuram os atos nulos em seu art. 2º, existem cinco elementos formadores dos atos administrativos, sendo eles a competência, a forma, o objeto, o motivo e a finalidade. Assim, passa-se agora a analisar, como primeiro requisito, a competência administrativa, que pode ser explanada como sendo a legitimidade oferecida ao sujeito que praticará o ato administrativo. Em razão disso, o agente do Estado que executa o ato está amparado pelo elemento do direito privado da capacidade, pois a ele é atribuída de forma idônea a titularidade de relações jurídicas (CARVALHO FILHO, 2008, p. 100-101). Subsequentemente, ao se analisar a competência de um ato administrativo, faz-se necessário verificar de forma complementar a capacidade da pessoa jurídica que o praticou, assim como observar a existência de óbices à atuação do agente competente no caso concreto, pois não basta que o ato venha a ser praticado por um agente público; este deve ter sua competência prevista em lei e não pode estar impedido por nenhuma razão (BANDEIRA DE MELLO, 2014, p. 400-401). Outrossim, sobre o elemento da forma do ato administrativo, tem-se uma concepção ampla, que inclui não só a exteriorização do ato, mas também as formalidades que necessariamente devem ser observadas durante o seu processo de formação, e os requisitos concernentes a sua publicidade. No direito administrativo, entende-se que a forma é requisito de existência e validade do ato, tendo importância extrema por constituir garantia jurídica ao administrado e à Administração (DI PIETRO, 2014, p. 216-217). Outro requisito a ser tratado é o objeto. Preceitua a doutrina que este elemento exprime do ato administrativo a sua eficácia jurídica, sendo, portanto, o resultado que é visado pelo ato.
de uma relação jurídica (MOREIRA NETO, 2014). O motivo, por sua vez, é a exigência assinalada e prevista em lei de que a conduta administrativa esteja sempre sustentada moralmente nos pressupostos fáticos. Ou seja, o motivo é a situação de fato ou de direito que torna necessário e autoriza, em consequência, a prática do ato (BANDEIRA DE MELLO, 2012, p. 86). Faz-se necessário esclarecer que o motivo não deve ser confundido com a motivação, pois este segundo se evidencia pela exteriorização formal do primeiro. Ou seja, a motivação dá-
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Define-se que o objeto sempre será a constituição, declaração, confirmação ou desconstituição
se como uma justificativa do motivo, sendo, dessa forma, a demonstração das razões que causaram o desempenho do ato (JUSTEN FILHO, 2014, p. 405). Por fim, quando se trata do requisito da finalidade, a doutrina determina o seu estudo sob duas vertentes. Na primeira, ocorre a finalidade genérica, que é o atendimento ao interesse público e a sua supremacia sobre o particular e, na segunda, acontece a finalidade específica, que seria a definição em lei e o estabelecimento de qual deve ser a finalidade para cada ato específico. Assim, por se tratar de uma finalidade codificada legalmente, mesmo que o agente competente esteja buscando o interesse público, ocorre o desvio de finalidade na hipótese de ser violada a sua finalidade específica (CARVALHO, 2016, p. 297). Sobre os requisitos abordados acima, é de suma importância explanar, que de forma majoritária e pacífica, entende a doutrina que a competência, forma e finalidade são elementos vinculados à lei, não podendo, então, a administração pública se valer deles da forma que bem entender. Por outro lado, o objeto e o motivo seriam revestidos da discricionariedade, tendo em vista que a legislação permite uma margem de autonomia ao agente competente, destinando a ele a possibilidade de praticar o ato com base em critérios de conveniência. Por esse motivo é que, de acordo com os elementos discutidos previamente, pode-se determinar se a formação do ato administrativo irá enquadrá-lo na classificação de vinculado ou discricionário. Essa classificação baseia-se no critério do grau de liberdade que o agente desfruta para desenvolver o ato. Dessa forma, tendo em vista que existem restrições a liberdades do agente público, não existe, nesses casos, uma apreciação subjetiva por parte da Administração, pois os atos vinculados não possuem mérito, que é o juízo de oportunidade entrelaçado com a realização do ato, fazendo-se notória a possibilidade de correção judicial nos casos em que o Poder Público vai de confronto ao que foi regulamentado em lei. Isso porque o controle dos atos vinculados evidencia-se por autorizar a fiscalização e contenção da legalidade e legitimidade do ato à
que o rege. Em razão disso, o próprio texto legal estabelece a observância a este para execução da finalidade pública (MEIRELLES, 2014, p. 801). De maneira contrária ao ato vinculado, o ato discricionário, que será mais profundamente estudado nos próximos capítulos, é aquele que oferece para a Administração Pública uma liberdade de atuação dentro dos limites estabelecidos pela lei, oportunizando que, baseada nos critérios da conveniência e oportunidade, seja decidida a melhor forma de convir ao interesse da coletividade (BANDEIRA DE MELLO, 2013, p. 434).
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Administração Pública e ao Poder Judiciário, averiguando a conformidade deste com a norma
Cabe aqui observar que ato discricionário é a expressão que deve ser utilizada nas situações em que se poderia dizer “ato praticado no exercício de apreciação discricionária em relação a algum ou alguns dos aspectos que o condiciona ou que o compõe” (BANDEIRA DE MELLO, 2012, p. 18). Faz-se também necessário elucidar que haverá a conveniência no momento em que o ato importar da melhor forma ao interesse público pretendido. Já no que se refere à oportunidade, esta se dará quando for verificada a existência de uma conjunção apropriada para uma maior satisfação do interesse coletivo (GASPARINI, 2007, p. 98). Assim sendo, tem como objetivo o trabalho analisar por meio de jurisprudência, doutrina e legislação, se a possibilidade do controle, manutenção e contenção do ato administrativo discricionário pelo Poder Judiciário seria uma grave invasão deste poder em competência que não lhe convém, ou, ao contrário, se serviria como um eficaz instrumento para reprimir a manipulação dos critérios do mérito.
3
DISCRICIONARIEDADE
E
MÉRITO
DO
ATO
ADMINISTRATIVO
DISCRICIONÁRIO
O ato discricionário e seu mérito são temas fundamentais para o artigo, mostrando-se de extrema importância um aprofundamento nas referidas matérias, uma vez que conhecer e entender todos os aspectos do mencionado ato servirá de prévio conhecimento em momento posterior de análise de seu controle pelo Poder Judiciário e suas possibilidades de contenção. Apesar de toda a divergência doutrinária ainda existente, o controle judicial dos atos que continham a discricionariedade administrativa teve a sua primeira evolução como resposta ao surgimento das teorias do desvio de poder e dos motivos dominantes, visto que, nas situações
imprescindível a interferência judicial para sanar as irregularidades (BINENBOJM, 2008, p. 3). Assim, para que se torne de mais fácil compreensão o objetivo final deste trabalho, o corrente capítulo tem o propósito de analisar a discricionariedade e o mérito do ato administrativo discricionário, ao buscar uma assimilação de seus aspectos e ao procurar delimitar os seus limites. A Administração Pública tem o dever de cumprir a lei, só podendo se valer da discricionariedade quando couber interferência de um juízo subjetivo do agente competente, ou
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em que restava caracterizado o desvio do interesse público pela Administração, tornava-se
seja, nas situações em que o pressuposto para a prática do ato está indicado mediante vagos conceitos (BANDEIRA DE MELLO, 2012, p. 17-18). Isso quer dizer que a fonte da discricionariedade é a lei, vindo somente a existir quando são oferecidas brechas pela legalidade ou, ainda, quando a lei expressamente confere à Administração. Assim, a discricionariedade de um ato nunca será total, pois ele está sempre vinculado de alguma forma. Além disso, com o objetivo de que o Estado conquiste o fim a que se destina o ato, nos casos em que se faz necessário praticar um ato discricionário, a própria Administração também assim deve determinar, levando em consideração que este poder dado aos agentes administrativos é um meio de se conquistar o êxito da finalidade almejada pelo Estado, e busca antes de tudo o benefício do interesse público. A discricionariedade, então, é o poder de escolha que muitas vezes é conferido pelo próprio texto legal e confere ao agente público competente a liberdade para exercer o juízo de conveniência e oportunidade, desde que dentro dos limites postos em lei e na busca pelo interesse público (CARVALHO, 2016, p. 114). Ou seja, pode-se dizer que o poder discricionário se evidencia como uma prerrogativa, que dá ao agente administrativo a autonomia necessária para decidir, utilizando-se de certa margem de liberdade, diante do caso concreto, qual a melhor maneira para se atingir o objetivo final da Administração. A existência da discricionariedade, para uma boa parte da doutrina, pode ser justificada por meio de dois vieses, sendo um critério jurídico e um prático. Para tratar sob o ponto de vista jurídico, utiliza-se a teoria da formação do Direito por Degraus de Kelsen, que considera os vários graus pelos quais se expressa o Direito, entendendo que a cada ato praticado acrescentase um elemento não previsto no anterior, vindo a discricionariedade a tornar possível essa acrescência.
aspecto fundamental para evitar o automatismo que ocorreria caso os agentes públicos não tivessem função diversa a de aplicar rigorosamente as normas preestabelecidas. Isso sem falar na impossibilidade que se encontra o legislador em prever todas as situações possíveis que o agente público terá que enfrentar, pois a dinâmica do interesse público exige flexibilidade de atuação, a qual se revela incompatível com o procedimento moroso de elaboração das leis (DI PIETRO, 2014, p. 221-222). Nos casos em que ocorre a formação de um ato vinculado, percebe-se que a lei não deixa, em seu texto vigente, margem para entendimentos subjetivos por parte dos agentes 199
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Já no que diz respeito ao ponto de vista prático, a discricionariedade é justificada como
públicos, não cabendo, portanto, análise sobre o modo de execução do ato, nem de quaisquer dos pressupostos que o compõe. Entretanto, conforme explanado pela doutrina na justificativa prática para a existência da discricionariedade, a lei não conseguirá pensar em todas as situações fáticas possíveis de existir, não podendo, então, determinar a resolução de cada situação provável. Justamente por esse motivo é que o texto legal irá permitir que o administrador, valendo-se dos limites impostos pela discricionariedade, utilize-se de certa liberdade para decidir, de acordo com os fatos concretos do caso, qual o melhor meio de satisfazer o interesse público (BANDEIRA DE MELLO, 2013, p. 435). Nas situações em que for necessária a utilização da discricionariedade do ato, faz-se imprescindível, em decorrência das imposições do princípio da legalidade administrativa, a previsão legal ou constitucional do dever-poder discricionário, visto que, se este não estabelecer, não tem como se falar no referido poder-dever (FRANÇA, 2000, p. 92). Amplamente interligado com a discricionariedade do ato administrativo, o mérito do ato consubstancia-se na valoração dos motivos e na escolha do objeto do ato, realizadas pela Administração Pública quando autorizado para tal (MEIRELLES, 2014). Pode-se dizer, então, que os critérios da oportunidade e conveniência, avaliados pelo agente administrativo, são os parâmetros que irão constituir o mérito administrativo do ato. A doutrina ainda entende que mérito é o campo de liberdade admitido no diploma legal, que venha efetivamente a remanescer no caso concreto, para que o agente público se decida entre as soluções admissíveis perante ele, segundo os critérios de conveniência e oportunidade e visando o exato cumprimento da finalidade legal, devido à impossibilidade de ser objetivamente reconhecida pela lei qual das opções seria a única adequada para a solução da situação (BANDEIRA DE MELLO, 2005, p. 38). Dito isto, sabe-se que não há maneira de a Administração Pública dispor com
ato caracterizado pela atividade discricionária, pois estes elementos serão sempre vinculados, restando, então, somente o motivo e o objeto para a apreciação do agente administrativo competente nos atos discricionários. Faz-se necessário relembrar, em breve análise, os atos administrativos vinculados, pois eles são passíveis de apreciação pelo Poder Judiciário e não existe controvérsia em torno do tema. O seu controle evidencia-se por autorizar a fiscalização da legalidade à própria Administração Pública e ao Judiciário.
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apreciações subjetivas sobre a competência, finalidade e a forma de um ato, ainda que de um
Em contrapartida, muito se discute sobre a apreciação do mérito dos atos discricionários, tendo na doutrina e nos tribunais ainda muita divergência sobre o assunto. Notase que majoritariamente se entende que a análise do mérito do mencionado ato não seria possível, por não se permitir ao Poder Judiciário um aprofundamento em assuntos de competência administrativa. Entretanto, vale ressaltar que, com a criação da Constituição Federal de 1988, a ideia de não intervenção do judiciário no mérito revestido de discricionariedade vem sendo cada dia mais minorada, uma vez que os princípios constitucionais e o entendimento de boa parte da doutrina vêm determinando que algo que antes parecia ser impróprio, talvez seja, de fato, um mecanismo bastante eficaz para diminuir a maquiagem dos critérios do mérito.
4 OS PRINCÍPIOS NORTEADORES DOS ATOS ADMINISTRATIVOS: UMA ANÁLISE ACERCA DE SUA DISCRICIONARIEDADE E MÉRITO
Os atos administrativos, independentemente de revestidos pela discricionariedade, possuem grande complexidade. Assim, faz-se fundamental o estudo dos princípios constitucionais e infraconstitucionais que norteiam o ato e fazem com que exista autonomia no Direito Administrativo, uma vez que a utilização de princípios próprios dessa matéria traz uma relação de coerência, construindo e regulando um sistema jurídico próprio, dentro do ordenamento jurídico brasileiro (FRANÇA, 2000, p. 48). Os princípios, quando se trata de sua estrutura normativa, apontam normalmente para os estados ideais a serem buscados, sem que, no entanto, o relato da norma descreva de maneira objetiva a conduta a ser seguida. Tal subjetividade faz com que os princípios funcionem como uma instância reflexiva, o que permite que os diversos argumentos e pontos de vista existentes
(BARROSO, 2013, p. 263). O presente capítulo, então, passa a tratar dos princípios que orientam os atos administrativos, tendo em vista que eles possuem a importante função de dar unidade ao direito administrativo, pelo controle das mais diversas atividades administrativas dos entes que integram a Administração Pública, e ajudando a impedir grandes diferenças entre a real finalidade que deve ser almejada e aquela praticada pelo agente administrativo.
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na sociedade ingressem na ordem jurídica e sejam processados segundo a lógica do Direito
O princípio da Supremacia do Interesse Público talvez seja um dos mais importantes para a Administração Pública, uma vez que essa, em decorrência de sua representação do interesse público, tem legislativamente expresso diversos privilégios. Este princípio é geral do Direito e inerente a todas as sociedades, visto que é a sua própria condição de existência (BANDEIRA DE MELLO, 2014, p. 99). Isso porque a primazia do interesse público sobre o interesse privado é algo inerente à atuação estatal, uma vez que a existência do Estado se justifica pela busca incessante de conquistar o interesse coletivo (MEIRELLES, 2014, p. 110). Além disso, a primazia do interesse público, indiscutivelmente, está presente também no processo de composição da norma e no tempo de execução feito pela Administração, os quais inspiram o legislador à edição das leis de direito público, e também vinculam a Administração Pública ao aplicá-las (DI PIETRO, 2014, p. 65-67). O princípio acima mencionado é primordial para o correto funcionamento da Administração Pública, uma vez que, para que se concretize a realização do interesse da coletividade e a finalidade do ato administrativo, faz-se fundamental a imperatividade estatal, pois esta transparece a certeza de que o interesse público está incessantemente sendo pretendido e colocado acima de qualquer outro interesse particular. Necessário se faz ressaltar que a própria Constituição Federal de 1988 preceitua que é do povo que emana todo o poder, devendo, portanto, o interesse geral ser constantemente almejado. Consagrado pela doutrina como um dos dois principais princípios do direito administrativo e de onde decorrem todos os demais, encontra-se o princípio da indisponibilidade que, juntamente com a supremacia do interesse público, ocupa lugar de honra para nortear os atos administrativos. A indisponibilidade nasce do fato de que o interesse público é indisponível, e que o administrador não pode de nenhuma maneira abrir mão desse interesse, servindo também para a limitação da atuação dos agentes públicos e evitando o exercício de atividades que tivessem a intenção de buscar vantagens individuais (CARVALHO,
Por esse motivo, entende-se que um ato, vinculado ou discricionário, só pode vir a ser válido e legítimo, no caso de ter, de fato, a sua finalidade alcançada igual àquela que lhe serviu de justificação (BANDEIRA DE MELLO, 2012, p. 55). Isso porque, o agente público não pode, independentemente da discricionariedade que lhe é conferida, dispor de interesses públicos. Em suma, pode-se dizer que o princípio da indisponibilidade do interesse público é aquele que dispõe sobre a impossibilidade da Administração Pública dispor do interesse coletivo, sendo indevida também a renúncia de poderes que a lei lhe conferiu para tal tutela,
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2016, p. 59-60).
uma vez que somente o Estado, como representante da coletividade, poderá autorizar, mediante lei, a sua disponibilidade ou renúncia (MEIRELLES, 2014, p. 110-111). A legalidade, juntamente com os princípios da impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, encontra-se prevista no dispositivo constitucional que trata dos princípios administrativos, o art. 37 – que não esgota a totalidade daqueles que norteiam a atividade administrativa, frise-se – pois, preceitua o texto de 1988 que toda a Administração Pública direta e indireta tem a obrigação de obedecer às referidas normas constitucionais. Entretanto, apesar de toda a importância que os demais princípios citados possuem, faz-se necessário para o presente trabalho se aprofundar na legalidade como princípio, posto que esta se caracteriza pela necessidade de toda atividade estatal estar vinculada a um ordenamento jurídico sistematizado em normas jurídicas efetivamente concretizáveis (FRANÇA, 2000, p. 52). Complementar ao princípio acima explanado, a moralidade exige a honestidade, lealdade, e boa-fé de conduta dos agentes públicos no exercício de sua função administrativa, exigindo de todos os gestores uma atuação não corrupta na hora de tratar com a coisa de titularidade do Estado. Esta norma tem um conceito jurídico indeterminado e, justamente por isso, a jurisprudência vem entendendo que a sua violação se caracteriza vício de legalidade da atuação administrativa. Entretanto, faz-se necessário uma análise da moralidade como princípio autônomo, uma vez que se torna possível a retirada de um ato administrativo imoral, mesmo que não ocorra uma violação direta à legalidade (CARVALHO, 2016, p. 68-69). Conforme todo o conteúdo demonstrado nos parágrafos antecedentes, chega-se à conclusão de que é dever do Estado agir com honestidade e integridade em suas relações, pois o ato administrativo é destinado ao interesse público e os seus maiores interessados são aqueles que compõem o povo, sendo eles também os maiores atingidos pelos seus efeitos. O interesse coletivo é o que deve ser satisfeito na realização de um ato administrativo,
sempre deverá ser o maior objetivo da Administração Pública, o que faz com que o não êxito desse fim enseje o desvio de finalidade e torne, como consequência, o ato administrativo, mesmo que discricionário nulo (CUNHA JÚNIOR, 2012, p. 47). O administrador público também terá o dever de agir em todo momento de forma razoável e proporcional visto que, de forma implícita na Constituição Federal de 1988, está a proibição de excessos por parte do executor do ato. Essa razoabilidade revela-se como instrumento essencial de limitação e controle do ato discricionário, especialmente pelo Poder Judiciário (MEIRELLES, 2014, p. 96-97). 203
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pois ele é o que configura a sua finalidade pública. Dito isto, torna-se claro que o fim público
O princípio da razoabilidade é também aplicado ao Direito Administrativo como mais uma das numerosas tentativas de se impor limitações à Discricionariedade Administrativa, o que faz com se amplie o âmbito de apreciação do ato Administrativo pelo Poder Judiciário. E, embora a Lei nº 9.784/99 faça referência aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade de forma separada, na realidade, o segundo constitui um dos aspectos do primeiro, pois, para que aquela ocorra, é necessária, antes de tudo, a proporcionalidade entre os meios de que se utiliza a Administração e os fins que ela tem que alcançar (DI PIETRO, 2014, p. 80-81). A motivação é o princípio que se caracteriza pela justificação dos pressupostos fáticos e jurídicos para a execução de um ato, ou seja, existe a obrigação e o dever de se expor os motivos que ensejam a realização de tal ato administrativo, para que se possa executar um ato expedido por comando legal no mundo real (MOREIRA NETO, 2014, p. 163), Posto isto, também se faz necessário esclarecer que a motivação é da essência do ato, sendo, portanto, um dos requisitos indispensáveis de sua validade. Isso quer dizer que, nas situações em que a motivação a posteriori não puder garantir de forma totalmente induvidosa que motivos ulteriormente aduzidos preexistiam e eram suficientes para sua válida produção, ocorrerá a invalidade do ato administrativo (BANDEIRA DE MELLO, 2012, p. 104-105). Após a análise dos princípios constitucionais e infraconstitucionais que norteiam o ato administrativo, chega-se a um ponto crítico do presente trabalho. Agora, faz-se imprescindível a análise e os aprofundamentos em dois artigos constitucionais. A Constituição Federal de 1988 preleciona em seu artigo 2º sobre a independência e harmonia dos três poderes da União, que, a saber, são eles o Judiciário, Legislativo e Executivo, tornando, inclusive, essa cláusula como pétrea, uma vez que os três poderes independentes são fundamentais para evitar abusos por qualquer um deles (NOVELINO, 2014, p. 358). Já o artigo 5º, XXXV, menciona diretamente que não deve haver exclusão da apreciação do Poder Judiciário quando houver lesão ou ameaça ao direito, visto que os magistrados são guardiões
O objetivo da separação em três poderes seria tornar possível a acomodação social dos interesses conflitantes que são a base das formas políticas. Sendo assim, pode-se constatar que o trabalho individual de cada um deles só poderia evoluir ao acontecer uma subordinação ao princípio da harmonia por parte de todos. Isso porque o entendimento de diversos doutrinadores é de que a separação não é a divisão do poder uno em si, mas sim das funções que são derivadas deste, fazendo com que a referida tripartição tenha como escopo o controle interno entre as três instâncias, evidenciando-se como formas recíprocas de limitação, fiscalização e contenção (CANOTILHO, 2014, p. 145). 204
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do correto e ilibado funcionamento da justiça, ocorrendo, então, a inafastabilidade da jurisdição.
O artigo 5º da Constituição Federal de 1988 leciona em seu inciso XXXV que o juízo não poderá se esquivar da resolução de um litígio que verse sobre direito lesado ou ameaçado; isso quer dizer, então, que ocorre a impossibilidade de se vedar o controle judicial, uma vez que, independentemente da competência do ato ser discricionária, a função judicial se sobrepõe a ela, por buscar uma satisfação do direito coletivo. Conclui-se, então, que é necessária a harmonia entre todos os poderes, que devem caminhar em conjunto, sempre um regulando o outro, para que se tente impedir que a independência deles crie um poder sem limites e não proporcional, vedando as práticas abusivas de todos eles, inclusive do Judiciário, que não pode intervir de forma ilegítima ou em desencontro com os limites aceitáveis pela ciência jurídica.
5 O PODER JUDICIÁRIO COMO FORMA DE CONTROLE DOS ATOS ADMINISTRATIVOS DISCRICIONÁRIOS
O controle dos atos administrativos discricionários realizado pelo judiciário brasileiro, que é livre de debates ou questionamentos, é aquele que se limita a discutir os aspectos vinculados do ato, ou seja, que verse sobre a legalidade, finalidade ou forma que, como já explicado em capítulos anteriores, são requisitos determinados pela legislação e que não deixam margem para a conveniência do agente público. O mérito do ato administrativo, por outro lado, é apreciado pelo agente competente para colocá-lo em prática, não cabendo ao Poder Judiciário interferir sem justa fundamentação. O que se tenta debater, e que ainda causa estranheza para alguns, é o quanto é necessária a sua intervenção quando houver falhado o poder público em cumprir o princípio da supremacia do interesse público no mérito de seus atos. Isso porque o juízo de oportunidade não pode e nem
ato administrativo, mesmo que discricionário, passa a ameaçar a segurança jurídica e os direitos subjetivos, ele deixa de ser intocável (FRANÇA, 2000, p. 175). Necessário se faz ressaltar que o controle do Poder Judiciário sobre os atos administrativos discricionários ocorre por meio de uma intervenção no processo de realização do direito, visto que os fenômenos executórios saem da alçada do Poder Executivo e devolvemse ao órgão jurisdicional (FAGUNDES, 1984, p. 91).
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deve ser substituído pelo juízo do julgador, visto que a partir do momento que a execução do
Esse controle é essencial para retirar das esferas jurídica e fática um ato que não deveria ter sido praticado, pois da Administração Pública apenas pode-se esperar lisura e comportamento exemplar. O juiz, então, ao observar uma conduta reprovável do executor do ato administrativo, mesmo sendo ele um ato discricionário, é a autoridade competente para evitar arbitrariedades e impedir que estas causem prejuízos à coletividade social. A teoria do desvio do poder caracteriza-se no momento em que a autoridade administrativa, revestida da competência que lhe é facultada, cumpre um ato com o fim diverso daquele que deveria ser realmente aplicado, fazendo com que a consequência seja um desvio na finalidade legal do ato (LAUBADÉRE, 1970, p. 502). Em outras palavras, o desvio de poder consiste no manuseamento de um conjunto de poderes procedido de forma a atingir um resultado diferente daquele do qual está outorgada a sua competência, ocorrendo uma violação jurídica do poder legítimo, por utilização da discricionariedade em casos injustificados, visando o atendimento de objetivos diversos dos supostos na investidura do ato (BANDEIRA DE MELLO, 2012, p. 57). Além disso, a doutrina que defende a intervenção do Poder Judiciário nos atos administrativos discricionários entende que a finalidade essencial e característica do controle jurisdicional dos atos administrativos é a proteção do indivíduo face à Administração Pública que, como órgão ativo do Estado, tem várias oportunidades de violar os direitos da coletividade, por erro na aplicação da lei, ou até mesmo pelo abuso e desvio de poder (FAGUNDES, 1984, p. 92). Então, o agente competente para a prática do ato deve ter em mente que, mesmo nos casos em que lhe for conferida a chamada discricionariedade administrativa, ele deverá agir com o propósito de conquistar unicamente o interesse público, visto que somente dessa forma se terá a certeza de que a finalidade do ato foi respeitada corretamente. Faz-se imperioso destacar que a doutrina também trata da chamada teoria dos motivos
tiverem motivada a sua prática, ficam vinculados aos motivos expostos, para todos os efeitos jurídicos, sendo válido ressaltar que até mesmo os atos discricionários ficam vinculados a esses motivos como causa determinante de seu cometimento (MEIRELLES, 2014, p. 215). Por este motivo também é que se entende que quando o agente público motivar o ato, este não pode estar em discordância com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, uma vez que, ao ferir a finalidade legal do ato, a justiça não terá outra opção a não ser intervir em favor da manutenção da supremacia do interesse público, e que não fere de nenhuma forma
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dominantes, que se funda na ponderação de que os atos administrativos, no momento em que
a clausula pétrea constitucional que trata sobre a separação dos poderes na República Federativa do Brasil. Além disso, cumpre esclarecer que, apesar de ser um entendimento bastante polêmico na visão de alguns doutrinadores, é totalmente possível a discricionariedade quanto ao fim do ato, chegando-se à conclusão que o ato não irá perder o seu interesse público; apenas de certo modo a apreciação desse interesse se faz muitas vezes subjetiva (BANDEIRA DE MELLO, 2014, p. 435). Isso quer dizer que, em determinadas situações, pode parecer que o agente administrativo praticou o ato seguindo as exigências do ordenamento jurídico. Porém, a partir de um estudo mais detalhado e esmiuçado, nota-se que houve o desvio da finalidade legal com a lei. Vale ressaltar que, independentemente de, no caso concreto, o agente ter atuado sem a intenção direta de ir a desencontro com a lei, seu comportamento é reprovável, não porque teve o intuito de desatender a lei, mas sim porque a desatendeu, uma vez que, no Direito Público, independentemente da boa-fé do Administrador Público, sempre que ocorrer uma ilegalidade o ato não pode prosperar (BANDEIRA DE MELLO, 2012, p. 73). Dessa forma, existirá a possibilidade de se enxergar o vício a partir da conferência da compatibilidade entre a finalidade que o ato almeja e o fim a que ele se vincula, devendo o Poder Judiciário atuar nesse meio, revestido sob o manto investigativo que lhe é conferido, e com o objetivo maior de salvar e guardar o direito. Alguns autores brasileiros, como Maria Sylvia Zanella di Pietro, acreditam que começa a surgir no direito uma forte tendência que busca limitar cada vez mais a discricionariedade administrativa, para então ampliar o controle judicial dos atos. Verifica-se essa propensão com relação às noções imprecisas que o legislador usa em certas ocasiões para designar o motivo e finalidade do ato (DI PIETRO, 2014, p. 230).
incongruente pela lei, o que gera uma situação em que o administrador vai avaliar, de forma subjetiva, o processo e o efeito do ato no mundo dos fatos, fazendo com que o judiciário passe a se preocupar se os procedimentos utilizados foram todos baseados nos princípios gerais do direito (LOPES, 2009, p. de internet). Por outro lado, o mérito do ato administrativo não pode ser maior que o círculo de liberdade indispensável para avaliar o que é conveniente e oportuno à luz da lei, uma vez que, ao extrapolar essa liberdade, ocorre a mácula do ato administrativo. Sendo assim, nos casos em
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Isso porque existem finalidades expostas de forma bastante vaga, imprecisa ou até
que ficar comprovada essa extrapolação, o ato será ilegítimo e o Poder Judiciário deverá fulminá-lo (BANDEIRA DE MELLO, 2014, p. 82-83). Não se pretende militar pela tese que embasa indevidas substituições do juízo do Poder Judiciário pelo juízo do administrador. Pelo contrário, a partir de tais excertos doutrinários, fazse possível inferir que ao Judiciário só é dado intervir na esfera de discricionariedade do ato prolatado pela Administração em situações em que o uso da competência discricionária finde em condutas administrativas contrárias ao ordenamento jurídico. Nesse cenário, importa analisar o processo de aceitação do controle da competência discricionária de atos administrativos pelos tribunais pátrios, os quais, em algumas oportunidades, decidiram ser possível a apreciação do mérito pelo Judiciário, visto que, apesar de ser tema controverso na visão doutrinária, os fundamentos para sua aceitação são diversos e imprescindíveis para a concretização da supremacia do interesse público em algumas situações. O Supremo Tribunal Federal se posicionou a favor do controle judicial, visto que entendeu que o princípio da inafastabilidade da jurisdição, consoante artigo 5º, XXXV, da atual Constituição Federal de 1988, era de máxima importância para que ocorresse a garantia do interesse coletivo nos casos de extrapolação dos limites da discricionariedade, isso porque, entendeu que o exame da discricionariedade dos atos administrativos é indispensável para a verificação de sua regularidade em relação aos requisitos do motivo e finalidade. 3 O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, julgou no sentido de admitir o controle do mérito administrativo pelo judiciário, e a consequente intervenção do Poder Judiciário no mérito dos atos administrativos discricionários, justificando seu entendimento pela ilegalidade que ocorre no momento da extrapolação dos limites do ato, uma vez que a Administração Pública não pode agir contrariamente ao princípio da razoabilidade, mesmo no uso da discricionariedade admitida legalmente.4 É dizer, portanto, que no mesmo sentido da ideia aqui construída se põe o
inserção da atividade jurisdicional na correção de comportamentos antijurídicos decorrentes do exercício da competência discricionária pela Administração Pública. Este artigo não fecha os olhos para as intervenções indevidas, pelo Poder Judiciário, no âmbito de atuação da
3
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n° 505439. 2° Turma. Rel. Ministro Eros Grau. Julgado em: 28 ago. 2008. 4 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial n° 778648. 2° Turma. Rel. Ministro Mauro Campbell Marques. Julgado em: 01 dez. 2008.
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entendimento desses dois tribunais de abrangência nacional, que é justamente o de permitir a
Administração Pública, porém aponta pela impossibilidade de se manter na ordem jurídica ato administrativo discricionário que viole outras normas existentes no ordenamento. Posto isto, chega-se à conclusão que compete ao Poder Judiciário intervir quando a atividade jurisdicional for indispensável para sanar contradições e irregularidades nas ações do Poder Público, devendo essa intervenção ser justificada e condicionada ao que determina e permite o ordenamento jurídico em vigor (FRANÇA, 2000, p. 118). Dessa forma, passa-se a entender que o controle do ato administrativo discricionário se torna possível quando este atuar fora dos limites legais, ultrapassando os limites da discricionariedade.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer do artigo buscou-se demonstrar as conceituações, explicações e entendimentos necessários para que, ao final, tivesse sido construída uma base sólida e com significativas referências, que servisse de embasamento para o que se pretendeu defender. Foram explanados ao longo dos capítulos os pressupostos dos atos administrativos, o mérito dos atos discricionários, os princípios que regem o direito administrativo no ordenamento jurídico pátrio e, por fim, a forma que ocorre o controle dos atos administrativos discricionários pelo Poder Judiciário. Ao final do segundo capítulo, restou demonstrada a importância do ato administrativo, assim como todos os pressupostos e requisitos necessários para a sua formação. Ademais, iniciou-se a traçar o entendimento de que o controle, contenção e manutenção do ato administrativo discricionário pelo Poder Judiciário poderia ser um importante instrumento para reprimir a manipulação dos critérios do mérito.
discricionariedade e mérito do ato administrativo discricionário, debruçando-se sobre a questão da conveniência e oportunidade que é ofertada ao agente público competente para a prática do ato e entendendo, consequentemente, que não se pode ultrapassar os seus limites e nem desviar a finalidade do ato, implicando na quebra da supremacia do interesse público. Com isso, o trabalho não poderia seguir rumo diverso ao de que é necessária a intervenção do Poder Judiciário, não somente quando ocorrer a ilegalidade do ato, mas também
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No terceiro capítulo, tentou-se demonstrar todas as peculiaridades referentes a
no que versar à injusta composição de seu mérito, devendo o magistrado servir de guardião dos interesses coletivos e a sua sobreposição a qualquer interesse particular. Seguindo esse entendimento já formado, no capítulo seguinte esmiuçou-se os principais princípios constitucionais e infraconstitucionais que regem o direito administrativo e, consequentemente, também os seus atos. Em decorrência disso, ficou demonstrada, mais uma vez, a impossibilidade de a Administração Pública alterar a finalidade do ato alegando a oportunidade e conveniência do agente público, e corroborando com a tese de que, não só é possível, como também é necessário o controle judicial do mérito dos atos discricionários. Iniciou-se então, no capítulo cinco, a explanação dos principais entendimentos doutrinários, jurisprudenciais e constitucionais que versassem sobre a admissibilidade do controle judicial do mérito administrativo. Assim, após a análise de julgados do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, restou demonstrado que a partir do momento em que a Administração Pública agir de forma contrária aos princípios norteadores dos atos administrativos, da administração pública e do direito administrativo, necessária se faz a intervenção judicial. Dessa forma, o presente trabalho entendeu ser possível a atuação do magistrado nos casos em que o desvio de poder se faz visível, uma vez que o judiciário brasileiro deve ser guardião dos direitos e garantias coletivos e imprescindíveis para todos os cidadãos. Além disso, restou demonstrado, ao longo do texto, que o controle dos atos administrativos discricionários se torna possível em todos os casos em que a Administração Pública atuar fora dos limites legais, ultrapassando os limites da discricionariedade e de sua oportunidade e conveniência. Necessário se faz esclarecer que é indispensável encontrar um equilíbrio para que essa apreciação judicial ocorra de forma correta, comedida e razoável, visto que, na realidade, ainda encontramos duas situações contrárias, mas ineficientes da mesma forma. De um lado, alguns
discricionário por terem a visão de que somente pode ocorrer interferência judicial quando ocorrer ilegalidade no ato administrativo. Em contrapartida, também é fácil encontrar juízes que apreciem as decisões da Administração Pública com a finalidade de mudar aquilo que os desagrada, mesmo que o mérito administrativo esteja de acordo com os critérios de oportunidade e conveniência oferecidos ao agente público competente no momento de sua prática.
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magistrados permanecem inertes diante de extrapolações que ocorrem no mérito do ato
Assim, torna-se de suma importância ressaltar que não se defende um controle de mérito total e injustificado pelo Poder Judiciário, tendo em vista que, quando esse controle ilegítimo ocorre, estamos diante de um poder que tenta sua sobreposição ao outro. O que se defende e que se tentou demonstrar é a necessidade de uma intervenção judicial em casos que não versem somente sobre a ilegalidade do ato administrativo, mas também quando ocorrer a superação dos limites da discricionariedade do ato.
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Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios
NOVELINO, Marcelo. Manual de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Método, 2014.
JUDICIAL MERIT REVIEW OF ADMINISTRATIVE ACTS: AN ANALYSIS OF THE LIMITS
OF
THE
PUBLIC
OFFICIAL
DISCRETIONARY
POWER
ON
ADMINISTRATIVE ACTS
ABSTRACT The article seeks to clarify the notion of administrative act and to discuss the peculiarities of the discretionary act and its merit. It is, based on the legislative, constitutional, jurisprudential and doctrinal study on the possibility of the review about the merit of the administrative act by the Judiciary. It is discussed the limit of discretionary power for the public official. It concludes that judicial review is necessary whenever the principles governing the acts are disregarded by acts practiced beyond the boundary of discretionary power. Keywords: Administrative act. Jurisdictional control. Discretionary acts merit. Discretionary of the public agent. Principles of
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administrative law.
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CONTROLE SOCIAL: UM ESTUDO ACERCA DO CONSELHO MUNICIPAL DE SAÚDE DE APODI Maciana de Freitas e Souza1 Francisco Vieira de Souza Junior2
RESUMO O presente artigo analisa o controle social na política de saúde no município de Apodi (RN). A crise do capital e o projeto neoliberal introduzido no Brasil a partir da década de 1990 tem repercutido na materialização das políticas sociais, bem como na efetivação dos mecanismos de controle e participação social. Para tanto, além de proceder à revisão da literatura, estamos ancorados nos dados produzidos mediante realização de entrevistas semiestruturadas. O objetivo é debater acerca das implicações dessa conjuntura na efetivação do controle social na saúde.
Bacharel em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – (UERN). Pós-graduada em Saúde Pública com Ênfase em Saúde da Família pela instituição Faculdade Vale do Jaguaribe. 2 Francisco Vieira de Souza Junior - Licenciado em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Bacharel em Administração pela Universidade Potiguar. Graduando em Direito pelo Centro Universitário Facex. 1
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Palavras-chave: Controle social. Projeto neoliberal. Política de saúde.
1 INTRODUÇÃO
No final da década de 1970 a reivindicação da saúde como responsabilidade do Estado orientou a luta de inúmeros segmentos da sociedade, configurando o Movimento de Reforma Sanitária. Este tinha como pressuposto fundamental a democratização da saúde, visando profundas reformulações no sistema em direção à universalização do acesso. Depois de muita pressão da população e dos movimentos organizados, a saúde na Constituição Federal de 1988 passa a ser entendida como direito do cidadão e dever do Estado. Em 1990 é homologada a Lei nº 8.080 que implanta o Sistema Único de Saúde (SUS), além de estabelecer os princípios que conduzem essa política pública. Apesar das vantagens trazidas à população por esses princípios que norteiam o SUS, é preciso analisá-los criticamente, tentando estabelecer a materialidade destes na realidade dos serviços de saúde no país, pois ainda persiste uma grande lacuna entre o SUS constitucional e o que se esboça na sua concretização. A crise do capital que tem se estendido ao longo das últimas décadas tem provocado diversas alterações na lógica econômica e política dos diversos países, afetando a organização do trabalho e a materialização das políticas sociais. Nesse contexto podemos notar um projeto de saúde articulado com o mercado. Vale ressaltar que diante da ofensiva neoliberal é homologada a Lei nº 8.142/90, que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do SUS. Nesse contexto, os conselhos indicam caminhos para a efetivação dos direitos conquistados, tendo o controle social como um dos instrumentos de fiscalização e transparência dos processos decisórios, visando ao cumprimento das ações e acompanhamento da execução de políticas públicas formuladas pelo Estado. Nesse sentido, este trabalho teve como objetivo geral analisar como se dá a atuação do
perspectivas para o exercício do controle social sob a ótica dos conselheiros. Caracterizando-se como uma pesquisa qualitativa, pautamo-nos na realização de estudo bibliográfico e pesquisa de campo. Para a discussão das categorias utilizamos autores como como Bravo, Correia, Gonh, Raichelis e entre outros. Nos apropriamos também da Lei Orgânica da Saúde (LOS) nº 8.080, e juntamente com esta a Lei nº 8.142 que fornece subsídios para a regulamentação dos conselhos e do controle social na saúde. Em relação à pesquisa de campo na coleta dos dados fizemos uma entrevista semiestruturada com quatro conselheiros de saúde representantes de cada segmento e com 215
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Conselho Municipal de Saúde (CMS) de Apodi (RN) e quais os limites, as possibilidades e
maior participação no conselho e utilizamos nomes populares para representá-los. A pesquisa foi feita sob a perspectiva do materialismo histórico dialético, tendo em vista que este trabalho se realizou em um espaço de contradições e de interesses antagônicos, na qual é possível visualizar as correlações de forças existentes. Desse modo, buscaremos apreender a realidade social em movimento, a partir desse método que se pauta numa análise crítica com base na totalidade social.
2 A CONTRIBUIÇÃO DOS CONSELHOS DE SAÚDE PARA O CONTROLE SOCIAL
Gohn (2007, p. 75) destaca como ponto de partida o surgimento dos conselhos comunitários formados por representantes da sociedade civil nas décadas de 1970 e 1980, com o intuito de mediar as relações entre os movimentos sociais e o governo. Diante do contexto de crise do capital de a resistência ao período militar, foram criados os conselhos populares, tendo por objetivo garantir a participação da população nas políticas sociais e na luta pela ampliação dos direitos. Os conselhos populares formados pelos movimentos e organizações da sociedade civil construíram-se com a intenção de organizar a classe trabalhadora para que o governo reconhecesse e pudesse atender os anseios da população.
[...] como organismos do movimento popular, atuando com parcelas de poder junto ao executivo (tendo a possibilidade de decidir sobre determinadas questões do governo); organismos superiores de luta e de organismos de administração municipal criados pelo governo para incorporar o movimento popular do governo, no sentido de assumirem tarefa de aconselhamento, deliberações e/ou execução. (GONH, 2007, p. 75).
pressões populares e dos movimentos políticos que passaram a exigir mudanças na realidade brasileira, marcada por uma crise econômica no país, com grande endividamento externo, crescente inflação, desemprego e níveis expressivos de miséria, sendo esta década conhecida como “década perdida’’ do ponto de vista econômico. Nesse período, foram dados os primeiros passos em busca de uma política mais democrática, de superação ao autoritarismo do regime militar. Os movimentos populares reclamavam a necessidade da participação da sociedade sobre as decisões das políticas públicas e se posicionaram em favor dos interesses da classe 216
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O processo de redemocratização ocorre em meados dos anos 1980, a partir das
trabalhadora. Desse modo, nesse cenário de lutas sociais e desigualdade sociais se dá a construção dos conselhos gestores, frutos do processo de mobilização e organização política da sociedade brasileira na década de 1980 que exigiam a participação popular em vários espaços. Nessa perspectiva reivindicavam por melhores condições de vida, em oposição ao Estado ditatorial, reconhecendo a importância da participação da população, com a criação de espaços de controle social. Nessa conjuntura, os conselhos emergem como espaços de controle social inscritos nos diversos campos das políticas sociais voltados para formulação, implementação e controle de políticas públicas. Raichelis menciona:
Diante da crise do Estado, do agravamento da questão social e da luta pela democratização do país, a busca por novos espaços de participação da sociedade civil consubstanciou-se, entre outros aspectos, pela definição no texto constitucional de instrumentos ativadores da publicização na formulação e na gestão das políticas públicas. Estimulou-se a definição de mecanismos de transferência de parcelas de poder do Estado para a sociedade civil e foram induzidas mudanças substantivas na dinâmica dessas relações. (1998, p. 34)
Nesse período marcado pela ascensão dos movimentos sociais no país, na qual a sociedade questionava o sistema autocrático, inicia-se, a abertura política, com a conquista de vários direitos democráticos que resultaram da força da organização política da classe trabalhadora. É importante salientar que, a criação dos conselhos gestores são fruto de uma intensa mobilização da sociedade que criticava o poder autoritário estatal. Como assegura Gonh:
[...] os conselhos gestores são diferentes dos conselhos comunitários, populares, ou dos fóruns civis não governamentais, porque estes últimos são compostos exclusivamente de representantes da sociedade civil, cujo poder reside na força de
(2007, p.85)
A mobilização e as lutas da sociedade civil no início dos anos 1980 foram fundamentais para a ampliação dos espaços de participação popular. A saúde foi pioneira nesse processo tendo em vista a grande atuação política do movimento de Reforma sanitária e as mudanças conduzidas neste processo. A participação da sociedade civil defendida pelo Movimento de Reforma Sanitária se encontra assegurada por meio de duas instâncias
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mobilização e da pressão, não possuindo assento institucional junto ao poder público.
colegiadas: as Conferências de Saúde e os Conselhos de Saúde, presentes nas três esferas de governo, como mecanismos legais de controle social. A partir da Constituição Federal de 1998, podemos notar mudanças no reconhecimento dos direitos sociais e tal participação popular consolidou-se mais precisamente, com a regulamentação pela lei 8.142/90. Nesse sentido, os conselhos se constituíram como importante instrumento de participação da sociedade civil, tendo com tarefa primordial o controle social das políticas públicas. A Lei 8.142/1990 explicita a composição dos conselhos de saúde. Garante a representação dos seguintes setores: governo, prestadores de serviços, profissionais de saúde e usuários. Na política de saúde o conselho é regulamentado como sendo de caráter paritário (50% de representação governamental e 50% de representação não- governamental), e de poder deliberativo e permanente. Os conselhos de saúde no que estabelece a lei favorecem a ampliação da esfera pública e o controle social das ações públicas. Estes espaços ampliam a capacidade da população interferir nos rumos da política de saúde na defesa da transparência e do controle social visando a garantia de direitos. Os conselhos são espaços de controle social onde a população tem a possibilidade de participar na elaboração das políticas públicas e na fiscalização e controle das ações do Estado, visando o atendimento das demandas e ampliação dos direitos das classes subalternas. Para Bravo:
Os conselhos foram concebidos como um dos mecanismos de democratização do poder na perspectiva de estabelecer novas bases de relação Estado-sociedade por meio da introdução de novos sujeitos políticos. Nesse contexto, podem ser visualizados como inovações na gestão das políticas sociais, procurando assegurar que o Estado atue em função da sociedade, no fortalecimento da esfera pública (2006, p. 84).
de participação da população, devendo expressar os interesses da coletividade. Assim, para que o controle social se legitime como cultura política dentro do SUS, é preciso aperfeiçoar o caráter participativo de sujeitos políticos, entendendo a participação como um processo de conquista da sociedade civil e não como benefício estendido pelo Estado às classes subalternas. Bravo (2006, p. 93) menciona que os conselhos não podem ser supervalorizados nem subvalorizados e alerta: “essenciais para a socialização da informação e a formulação de
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Devemos considerar que os conselhos de saúde se configuram como um espaço político
políticas sociais [...] têm que ser visualizados como uma das múltiplas arenas em que se trava a disputa hegemônica do país”. Na mesma perspectiva, Correia (2002) considera que os conselhos de saúde, são espaços formados por representações de diferentes segmentos por isso, apresenta conflitos e interesses contraditórios, estes podem atender as demandas da população ou compactuar com metas e objetivos definidos pelas classes dominantes. Com a implantação do neoliberalismo podemos notar o afastamento do Estado na área social, pois nesse contexto a responsabilidade do estado investir na saúde pública é transferida para a ótica privada e para a sociedade civil na busca de aumentar os lucros do capital. As principais estratégias de ampliação do acesso à saúde estão apoiadas no pressuposto de que tal ação não cabe exclusivamente ao Estado, sendo divididas com determinados setores da sociedade civil e com o próprio empresariado. Nesse caminhar, ganha visibilidade a privatização dos serviços de saúde, o que significa retrocessos do ponto de vista social dificultando o aprofundamento do controle social e a concretização de serviços públicos de qualidade que possa atender as reais necessidades da população. Correia (2002) assegura:
Como espaços democráticos de gestão do que é público, os Conselhos apesar de suas contradições e fragilidades, tem sua importância, num país como o Brasil, em que a cultura de submissão ainda está arraigada na maioria da população e em que o público é tratado como posse de pequenos grupos de privilegiados. O controle social, ou seja, o controle dos segmentos que representam as classes subalternas sobre as ações do Estado e sobre o destino dos recursos públicos, torna-se um desafio importante na realidade brasileira para que se criem resistência à redução de políticas sociais, à sua privatização e à sua mercantilização (2002, p. 41)
limitações se constitui como um espaço democrático. A busca para enfrentar esses desafios atuais no campo da saúde são tarefas que só poderão ser cumpridas a partir da participação da população e da sua organização, para que eles não se configurem como espaços de legitimação do poder dominante.
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Tem-se, portanto, que os conselhos de saúde mesmo com todas as fragilidades e
3 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE APODI (RN) E O CONSELHO MUNICIPAL DE SAÚDE
O município de Apodi localiza-se na mesorregião do Oeste Potiguar na Chapada do Apodi, a uma distância de 328 km da capital do estado do Rio Grande do Norte, Natal. O município ocupa uma extensão territorial de 1.602,480 km² equivalente a 3% da superfície estadual e possui uma densidade demográfica de 21,9 hab./km². É importante ressaltar que Apodi limita-se com os municípios de Governador Dix-Sept Rosado ao norte, Felipe Guerra e Caraúbas ao leste, Umarizal, Riacho da Cruz, Itaú e Severiano Melo ao sul e com o Estado do Ceará ao oeste (IBGE, 2010). Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de acordo com o Censo 2010, Apodi é uma cidade de pequeno porte e a sua população é de 34.763 habitantes. A maioria dessa população é composta por moradores de áreas rurais, o que contribui para que as principais atividades econômicas desenvolvidas no município sejam a agropecuária e a fruticultura irrigada, já que as condições climáticas do município possibilitam a atividade agrícola. A base da economia apodiense caracteriza-se pela produção agrícola para a subsistência com a utilização de mão de obra familiar. No caso da produção para a subsistência, o excedente é comercializado para fora do município. A produção agrícola tem grande importância para o desenvolvimento econômico do município pois nessas propriedades são cultivados alimentos essenciais para a produção de riqueza nessa região e fonte de renda para os camponeses. Dentre suas atividades econômicas, predominam também a pecuária, a extração de calcário, os serviços de pesca, a produção de mel e o setor de serviços. É importante ressaltar que o clima dominante da região é o semiárido, caracterizado por uma estação chuvosa nos meses de março a maio, com temperatura média anual de 28,5°C.
de Soledade (IBGE, 2010). O Lajedo de Soledade em Apodi é uma formação calcária conhecida em todo o Estado e reconhecida nacionalmente por sua riqueza arqueológica que retrata os costumes, crenças e o cotidiano de povos que ali viveram milhares de anos atrás, o que atrai visitantes e estudiosos durante todo o ano para a região. O Lajedo de Soledade, tem um forte potencial turístico, e constitui uma alternativa de geração de emprego e renda para os moradores do município. O surgimento do município está vinculado a formação de fazendas de gado, que formam instaladas nas proximidades do rio Apodi-Mossoró, onde foram construídas as 220
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Apodi fica situado no começo do Planalto Nordestino, e possui um sitio arqueológico, o Lajedo
primeiras habitações. Com base nos dados do senso do IBGE (2010) podemos salientar que a colonização na "Ribeira do Apodi" teve início, com a concessão de sesmarias, em 19 de abril de 1680, com os irmãos Manoel Nogueira e sua mulher D. Maria de Oliveira Correia e seu irmão Baltazar Nogueira, que se estabeleceram no território com fazendas agropecuárias. Com o retorno dos irmãos Nogueira, as terras do Apodi foram exploradas e o local experimentou o desenvolvimento, devido à catequese realizada pelos padres jesuítas aos índios Paiacus, na "Aldeia do Apodi", que foi núcleo originário da atual cidade. Em 1761, foi extinta a Missão do Apodi, transferidos os índios, criada a Freguesia das Várzeas do Apodi, com sede na antiga missão. O Município se emancipou em 1833, desmembrado de Portalegre. De acordo com dados do IBGE (2010), a criação do Município data de 11 de abril de 1833, confirmada pela Lei provincial n.º 18, de 23 de março de 1835 e é elevado à condição de cidade e sede municipal com a denominação de Apodi, pela lei provincial nº 9883, de em cinco de março de 1887. O município de Apodi, possui Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)4 de 0,639. O Índice de Desenvolvimento Humano Municipal de Apodi segundo a classificação do PNUD5está entre as regiões consideradas de médio desenvolvimento humano (IDH entre 0,5 e 0,8). Cumpre ressaltar que o crescimento do IDH está relacionado à melhoria das condições de acesso a saúde e educação, o que tem contribuído para um avanço nos indicadores sociais. No que concerne à saúde, o município possui 1 estabelecimento de saúde estadual, 6 unidades de saúde municipais e 5 estabelecimentos privados (IBGE 2010). Com relação a Educação, segundo o IBGE (2010) o município dispõe de 30 unidades de educação pré-escolar, 49 escolas de ensino fundamental e 07 de ensino médio. Em relação ao ensino superior e técnico, o município de dispõe de um núcleo avançado da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) e uma unidade do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRN) que oferece cursos técnicos e de graduação voltados para a realidade da
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APODI. Lei Provincial nº998. Dispõe sobre a criação do Município de Apodi. Promulgada em 05 de março de 1987. Apodi (RN). 4 O Índice de Desenvolvimento Humano é uma medida do progresso de um local a partir de três dimensões: renda, educação e saúde. O índice varia entre 0 e 1. Quanto mais próximo de 1, melhor o IDH do lugar 5 O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) é a rede de desenvolvimento global da Organização das Nações Unidas. O PNUD faz parcerias com pessoas em todas as instâncias da sociedade para ajudar na construção de nações que possam resistir a crises, sustentando e conduzindo um crescimento capaz de melhorar a qualidade de vida para todos. Fonte: http://www.pnud.org.br/SobrePNUD.aspx
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região.
Em relação ao Conselho Municipal de Saúde (CMS), este foi criado em 05 de maio de 1993 pela lei n° 198/936 como um órgão deliberativo, de caráter permanente e âmbito municipal. A sua composição, por sua vez, abrange representante de governos, representantes de entidades de serviços de saúde, representantes de trabalhadores de saúde e representantes de usuários do Sistema Único de Saúde. O conselho constitui-se, pois, num órgão fiscalizador da gestão da saúde, na qual foi criado no intuito de acompanhar o desenvolvimento das políticas de saúde executadas no município. Como principais características desse conselho, destaca-se que é um órgão de gestão participativa e tem como finalidade assegurar a participação da sociedade civil no acompanhamento da execução da política de saúde. O Conselho Municipal de Saúde é constituído de vinte e quatro membros entre titulares e suplentes. Os conselheiros são eleitos para mandatos de dois anos. Um dos requisitos para o desligamento é a ausência a três reuniões consecutivas. A composição é paritária, 50% de entidades de usuários, 25% de entidades dos trabalhadores de Saúde e 25% de representação de governo, de prestadores de serviços privados conveniados, ou sem fins lucrativos. Menciona-se, ainda, que a organização dos Conselho e suas normas de funcionamento são definidas em regimento próprio e aprovadas pelo respectivo conselho. Pretendemos com base neste trabalho refletir alguns aspectos pertinentes ao controle social e a política de saúde que vem sendo conduzida num contexto neoliberal no qual se reduz gastos com as políticas sociais a favor do capital financeiro e dos interesses das classes dominantes. Como assinala Sousa:
Além disso, a estrutura das políticas sociais públicas sempre foram configuradas por relações clientelistas, patrimonialistas, regadas pelo favoritismo político, gerado numa determinada forma de poder característico das cidades do interior brasileiro, particularmente, o nordestino, que tem por tradição histórica a seca, a miséria gerada
submissão aos que detém o poder econômico (2013, p. 184).
Cabe ressaltar que é de fundamental importância as transformações vivenciadas no âmbito da sociedade civil através das lutas sociais. Porém, é possível notar que arenas deliberativas — como é o casos dos conselhos — encontram dificuldades para o exercício do controle social em virtude da falta de mobilização societária, da retração das políticas sociais 6
APODI. Lei Municipal nº198/93. Dispõe sobre o Conselho Municipal de Saúde e dá outras providências. Promulgada em 05 de maio de 1993. Apodi (RN), 1993.
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pela falta de produção agrícola nos períodos de estiagem, que têm como saída a
através do Estado mínimo como também da estrutura da política local que mantém a presença de relações clientelísticas, patrimonialistas e fisiologistas, herança histórica da nossa formação social.
4 LIMITES, POSSIBILIDADES E PERSPECTIVAS DO CONTROLE SOCIAL
Com o neoliberalismo que direciona as ações governamentais, as políticas sociais, em especial a saúde, passam por amplo processo de retirada de recursos e privatização da saúde. Essa retirada e redução dos direitos sociais é acompanhada do fortalecimento do grande capital, apoiado pelo Estado, que prioriza a área econômica em detrimento das garantias sociais, que, mesmo asseguradas constitucionalmente, não recebem a atenção devida por parte dos gestores. Desse modo, perguntamos aos conselheiros quais os principais limites no âmbito do Conselho Municipal de Saúde e obtivemos as seguintes afirmativas:
No conselho a gente vê que alguns participam, alguns dão opinião, outros simplesmente vão e concordam com tudo, não acrescentam muito. Mas, enfim a gente faz o convite, deixa aberta a população. Eu vou ver até uma forma de divulgar melhor através de um blog, pra que a população possa saber o dia das reuniões e poder participar (Elias). Os maiores limites que eu vejo seria a falta de divulgação e informação. Grande parte da população não sabe que existe o Conselho. E também a falta de capacitação pra nós conselheiros. O conselho tem que avançar nesse sentido (José). As vezes as reuniões demoram a acontecer porque a gente tem que entender que é um trabalho não remunerado, é um trabalho que depende da vontade de querer contribuir com a gestão. Eu acho que para o controle ser mais efetivo a população participasse
Nos discursos dos conselheiros vem-se ressaltando o desconhecimento dos conselheiros principalmente representantes da sociedade civil para o efetivo processo de tomada de decisão em decorrência da ausência de políticas de capacitação ou de educação permanente. Nas entrevistas podemos notar também que a falta de tempo para a execução das atividades no âmbito do conselho e de compreensão acerca da política de saúde e das demandas se colocam como impasses para a efetivação de um controle social democrático. Correia assinala que:
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mais (Fátima).
A efetivação do controle social no campo dos Conselhos é limitada, do lado dos gestores e do lado dos usuários. Do lado dos primeiros, pela não-transparência das informações e da própria gestão, pela manipulação dos dados epidemiológicos, pelo uso de artifícios contábeis no manuseio dos recursos do Fundo de Saúde, pela ingerência política na escolha dos conselheiros, pela manipulação dos conselheiros na aprovação de propostas. E, do lado dos usuários, pela fragilidade política das entidades representativas, pela não-organicidade entre representantes e representados, pela não-articulação deste segmento na defesa de propostas em termos de um projeto comum, pelo corporativismo de cada conselheiro, defendendo os interesses somente de sua entidade, pelo não acesso às informações, pelo desconhecimento sobre seu papel e sobre a realidade da saúde na qual está inserido (2006, p. 129-130).
Podemos perceber que uma das maiores dificuldades do conselho em relação ao controle social diz respeito a desmobilização da sociedade civil. Os conselheiros entrevistados evidenciam, entre outros aspectos, falta de divulgação das atividades do conselho e que do ponto de vista político, o lugar da sociedade civil está lá, mas essa função é exercida de maneira limitada. Nesse sentido, há um longo caminho a ser percorrido para que o conselho possa contribuir para o controle social da forma como está previsto nos textos legais. Mesmo sendo um espaço de interesses contraditórios, é imprescindível que a sociedade ocupe os espaços de participação política no intuito de defender a saúde como um direito social, visto que os seus princípios que estão cotidianamente sendo derruídos pelo Estado e pelo avanço do mercado, que torna a saúde uma mercadoria em que poucos têm acesso. Nessa perspectiva é importante uma maior participação dos sujeitos, e um amplo trabalho de capacitação para que ocorra uma intervenção qualificada e propositiva, com vistas a um controle social efetivo. Dando continuidade as entrevistas, perguntamos aos conselheiros quais as possibilidades do controle social na saúde em Apodi (RN) e obtivemos as seguintes respostas:
seja cumprido e que as pessoas participem mais, é necessário para que a política de saúde siga firme (João). Pra que o Controle Social aconteça é bom que tenha capacitação pra nós, conselheiros. É importante também informar a população sobre as atividades do conselho. (José) Quando se tem o conhecimento você consegue bater de frente com o sistema porque através das reuniões, dos debates, as coisas acabam acontecendo. A gente antes tinha ideia de que as coisas vinham de cima pra baixo e hoje a gente vê que pode mudar isso. Então eu vejo isso como uma possibilidade. (Fátima)
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Aumentar a comunicação e divulgar as ações do conselho para que o controle social
As falas ressaltadas reforçam a necessidade de articulação do conselho com diversas instancias da sociedade civil que representam os interesses populares, para que o desenvolvimento das ações possa atender aos interesses das classes subalternas. Uma outra evidencia que as respostas dos conselheiros nos permitem notar é a pouca visibilidade por parte do poder executivo no que concerne as ações de capacitação, o que dificulta o exercício do controle social no âmbito do conselho de saúde. Podemos perceber nas falas que por se tratar de um campo de atuação que exige dos indivíduos que dele participam conhecimento sobre a realidade, se faz necessário uma intervenção mais qualificada dos conselheiros para que assim, as metas consigam ser atendidas. Como ressalta Gohn, “É preciso entender o espaço da política para que se possa fiscalizar e também propor políticas; é preciso capacitação ampla que possibilite a todos os membros do conselho uma visão geral da política e da administração” (2007, p.92). Desse modo, para que possam exercer um controle social real e efetivo faz-se necessário garantir a transparência das políticas desenvolvidas, de modo que o cidadão possa ter acesso às informações além de saber interpretá-las devidamente. Nesse sentido, acreditamos que o conhecimento auxilia a transformar conselheiros muitas vezes inertes, em sujeitos críticos, capazes de contextualizar e refletir sobre a política de saúde e assim promover um controle social efetivo no âmbito do conselho que favoreça a coletividade. Para finalizarmos as entrevistas, pedimos aos conselheiros que nos falassem quais eram suas perspectivas com relação ao controle social desenvolvido pelo CMS, observando as seguintes afirmativas:
É importante que o pessoal venha para o conselho, participe, conheça a realidade de perto, lutando pra que os serviços de saúde possam atender a todos. Eu penso que nós devemos se organizar e unirmos pra que isso aconteça. A gente vê que as coisas podem mudar partir disso (Fátima).
interessante divulgar mais o trabalho do conselho pra que o povo participe (Elias). É importante as páginas das redes sociais, falar nos programas de rádios para informar o povo dos nossos direitos e do nosso conselho e a partir daí que iremos conseguir o controle social (José).
Podemos notar na fala da conselheira Fátima, que os arranjos clientelísticos continuam presentes na realidade local e que ainda hoje dificulta a materialização da saúde como direito. Tem-se, portanto, que a participação da sociedade organizada torna os Conselhos de Saúde uma
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[...] Eu acho que seria bom a gente se organizar mais pra trabalhar. Então seria
instância privilegiada no processo de deliberação, acompanhamento, e fiscalização das políticas públicas na área da saúde. Nesse contexto, o controle social se constitui como um mecanismo importante para imprimir conquistas democráticas e sociais para a classe trabalhadora. Enquanto perspectiva para o futuro acreditamos que, para uma compreensão mais adequada da realidade se faz necessário constante aprimoramento intelectual e frente à tendência de negação dos direitos, especialmente a saúde, que passa por restrições financeiras e avanço do mercado. Cabe à população reivindicar dos governos a materialização dos princípios do SUS, insistindo na responsabilidade do Estado, no intuito de qualificar os serviços. Portanto, reafirmamos que as dificuldades existentes só podem ser efetivamente enfrentadas no processo de organização, mobilização e luta das classes populares, na perspectiva da garantia e/ou ampliação dos direitos sociais, tendo no horizonte uma nova ordem societária capaz de colocar a riqueza produzida a serviço de finalidades plenamente humanas e não a serviço da acumulação privada de capital.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Podemos notar na política de saúde nos dias atuais, elementos que vão de encontro ao que as normas jurídicas determinam. A partir dessa realidade e com vistas a garantir aos usuários o direito à saúde com qualidade e respeito à dignidade humana, surge o controle social. O cenário apresentado pelos conselheiros mostra dificuldades para a materialização da política de saúde na cidade de Apodi (RN), em consonância com a proposta constitucional, tendo em vista que a política ainda é mantida em ações pontuais e focalizadas, que por sua vez não conseguem atender todos aqueles que dela necessitam. Interessante observar que mesmo a
social, ainda permanecem na realidade local arranjos clientelísticos de forma a utilizar a saúde como campo de troca de favores políticos e de tutela, o que dificulta a sua concretização enquanto direito social. De acordo com nossas entrevistas, notamos a existência de uma sociedade civil pouco mobilizada e participativa nas reuniões do Conselho. A falta de participação da população como também a ausencia de qualificação e divulgação das ações conselhistas são alguns desafios para o exercício do controle social. Dessa forma, para que o controle social se efetive é de fundamental importância a participação da sociedade na defesa da saúde como um direito. 226
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política de saúde se tornando, por meio de um marco político-legal, integrante da seguridade
Esse estudo também nos possibilitou um maior realismo, no sentido de que o conselho tem um papel importante no acompanhamento da gestão, no monitoramento das ações e na fiscalização da política de uma forma geral. No entanto, ainda é tímido e pontual a participação popular. Nesse sentido, é fundamental a atuação dos sujeitos políticos, na luta pela garantia da qualidade no acesso a saúde, bem como a participação nas deliberações desta, tornando possível um SUS integral, universal, de qualidade para todos.
REFERÊNCIAS
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CORREIA, Maria Valéria Costa. Que controle social na política de Assistência Social? Serviço Social e Sociedade, São Paulo, Cortez, n. 72, ano XXII, p. 119-144, nov. 2002.
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GOHN, Maria da Glória. Conselhos Gestores e Participação Sociopolítica. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2007.
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RAICHELIS, Raquel. Legitimidade popular e poder público, São Paulo: Cortez, 1998.
SOUSA, Aione Maria da Costa. O Público e o Privado no Sistema de Saúde em Mossoró-RN: as contradições para a efetivação da universalidade. Recife/PE: UFPE, 2013.
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RAICHELIS, Raquel. Esfera pública e conselhos de assistência social: caminhos da construção
SOCIAL CONTROL: A STUDY ABOUT THE APODI MUNICIPAL HEALTH COUNCIL
ABSTRACT This article analyzes the social control in the health policy in the municipality of Apodi (RN). The capital crisis and the neoliberal project introduced in Brazil since the 1990s have had repercussions on the materialization of social policies as well as on the realization of the mechanisms of control and social participation. Therefore, in addition to reviewing the literature, we are anchored in the data produced through semi-structured interviews. The objective is to discuss the implications of this conjuncture in the realization of social control in health.
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Keywords: Social control. Neoliberal project. Health policy.
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DISTRIBUIÇÃO DAS DESPESAS E CARGA TRIBUTÁRIA: CONTRAPRESTAÇÃO SATISFATÓRIA E SOLIDARIEDADE SOCIAL - UM PARALELO COM A TEORIA DOS JOGOS Isabela Araújo Barroso1
RESUMO O presente trabalho acadêmico tem como objetivo contribuir para a resposta ao seguinte questionamento central: a alta carga tributária, por si só, é responsável pelo inadimplemento de tributos? Para tanto, serão analisados, a luz da teoria dos jogos, dados colhidos empiricamente acerca da distribuição das despesas de um Estado e sua carga tributária. Diante dessa abordagem, verifica-se que países que detém alta carga tributária e, ao mesmo tempo, distribuem suas despesas de forma a promover serviços públicos de qualidade, tendem a possuir um baixo índice de evasão fiscal. Palavras-chave: Carga tributária. Despesa pública. Evasão fiscal.
“Acabem com os impostos e apoiem o livre comércio e os nossos trabalhadores em todas as áreas da economia passarão a servos e pobres como na Europa” (Abraham Lincoln)
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Pós-Graduanda em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Advogada.
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Teoria dos jogos.
1 INTRODUÇÃO
É senso comum o sentimento de que a deserção no pagamento de tributos decorre da alta carga tributária, concluindo-se antecipadamente que os índices de evasão e elisão fiscal seriam diretamente proporcionais à carga tributária de determinado Estado. Todavia, fato é que a ciência não sobrevive de achismos e o Direito, como ciência que é, deve se aproximar do empirismo e abandonar os discursos meramente retóricos que muito lhes são comuns. Nessa perspectiva, o presente trabalho propõe realizar uma análise empírica acerca dos motivos que levam a deserção no pagamento de tributos. Para tanto, utilizando-se da teoria dos jogos, examinar-se-á a relação entre a distribuição das despesas públicas e a carga tributária, de forma a se traçar um paralelo entre a contraprestação satisfatória por parte do Estado e o sentimento de solidariedade social. O primeiro tópico será destinado a apresentar, de forma breve e sem maiores aprofundamentos, a teoria dos jogos; em seguida, serão postos dados acerca da distribuição das despesas de um Estado e da sua carga tributária; para, posteriormente, passar-se à análise das constatações empíricas à luz da teoria supracitada. Por fim, serão apresentadas as considerações finais, as quais objetivam contribuir para a resposta do seguinte questionamento: será que o sentimento intuitivo de que a carga tributária, por si só, é responsável pelo inadimplemento de tributos, sobrevive às constatações empíricas?
2 UMA BRAVE EXPLANAÇÃO ACERCA DA TEORIA DOS JOGOS
A racionalidade é intrínseca à condição humana. A busca pela maximização do bemestar pessoal; a consciência das escolhas realizadas mediante informações disponíveis, com o
atributos dessa racionalidade, principal pressuposto da teoria dos jogos (CARVALHO, 2014, p. 7-8). De acordo com Gintis (2009, p. 45), a teoria dos jogos se consubstancia na decisão de diversos jogadores, em que a escolha de cada um influencia as recompensas dos demais, e, por esse motivo, cada jogador leva isso em consideração ao decidir a a próxima jogada2. De modo
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A citação referenciada foi retirada do trabalho de Herbert Gintis, publicado originalmente em inglês e traduzido no presente trabalho pelo próprio autor. É o trecho no trabalho original: “Game theory is multiplayer decision
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objetivo de alcançar a máxima eficiência dos objetivos que almeja, e a reação à incentivos, são
ilustrativo, Carvalho (2014, p. 9) exemplifica que durante uma partida de xadrez ou em uma luta de boxer, os desportistas buscam antecipar as ações dos seus opoentes, de forma semelhante em que nas interações sociais, negociais ou jurídicas, os indivíduos, ao decidirem como agir, tendem levar em conta a possível escolha dos demais membros da sociedade. Uma das interações mais famosas da teoria dos jogos é o dilema do prisioneiro. Segundo este, são presos dois acusados como cumplices de determinado crime e mantidos isolados; sem a possibilidade de se comunicarem, lhes são oferecidas as seguintes alternativas: 1) serão submetidos a cinco anos de prisão, se ambos confessarem o crime; 2) a um ano de prisão, se ambos negarem o crime, e; 3) se apenas um confessar e o outro negar, aquele que confessou ficará livre e o que negou se submeterá a dez anos de prisão (CARVALHO, 2014, p. 11). Diante destas alternativas, depreende-se que, para ambos os jogadores, prisioneiros, confessar é sempre a opção mais racional, tendo em vista que o risco de negar o crime é bastante elevado, por desconhecerem a opção do jogador opoente, que poderá ser a confissão e, se isso ocorrer, o que negou pegará dez anos de cárcere. Ou seja, na linguagem da teoria dos jogos, diz-se que a confissão é a estratégia dominante, sendo, sob o ponto de vista de cada jogador, uma escolha maximizadora, o que acaba ensejando um resultado inferior ao que poderia ser obtido caso houvesse cooperação, isto é, a negativa de autoria por ambos (CARVALHO, 2014, p. 12). Observa-se, portanto, que a teoria dos jogos se presta a estudar a tomada de decisões e o desenvolvimento de estratégias para a resolução de situações de conflito. Nesse sentido, sabendo-se que a vida em sociedade pode ser compreendida como uma série simultânea de jogos estratégicos, a teoria em estudo objetiva explicar as diversas situações sociais, concebendo-as como jogos, sem se ater a uma área restrita e específica do conhecimento (CARVALHO, 2014, p. 4).
realização de uma abordagem diferenciada, sob um novo ponto de vista, das problemáticas econômicas, seu atual desenvolvimento permite sua aplicação em diversas áreas do conhecimento, para além da Economia, como a Psicologia, a Sociologia, a Biologia e o Direito (MELO JÚNIOR, 2010, p. 49-50). Nessa perspectiva, no âmbito do Direito, por exemplo, sente-se que a teoria dos jogos pode ser aplicada tanto pelo Poder Legislativo quanto pelo Poder Judiciário. Ao legislar, devetheory where the choices of each player affect the payoffs to other players, and the players take this into account in their choice behavior” (2009, p. 45).
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Embora admita-se que um dos declarados objetivos da teoria dos jogos tenha sido a
se levar em conta comandos legais que incentivem as pessoas à prática das atividades que se mostrem mais vantajosas para a coletividade; de modo semelhante, o magistrado, ao proferir atos decisórios, deve considerar quais os reflexos sociais que serão advindos dos comandos dos dispositivos das suas decisões (BARROSO, 2018, p. 35). Especificamente no Direito Tributário, a teoria dos jogos incide quando o Estado, prevendo a jogada dos contribuintes em desertar do pagamento de tributos, estrutura o sistema tributário de forma a minimizar a deserção e incentivar o cumprimento das obrigações tributárias e, consequentemente, majorar a arrecadação (CARVALHO, 2014, p. 13). Contudo, para prever a jogada dos contribuintes e, consequentemente, desenvolver um sistema tributário que incentive o adimplemento das obrigações tributárias, intui-se que o Estado deve se valer de estudos empíricos que tenham como objetivo identificar os motivos pelos quais as pessoas incorrem na deserção dos tributos. Nesse sentido, pode-se citar a curva de Laffer como exemplo de estudo que estabelece a relação entre o aumento de impostos e a arrecadação tributária (GOBETTI et. al. 2016, p. 9). Em conformidade com este estudo, a arrecadação de determinado imposto aumenta à medida que sua alíquota é elevada, atingindo um ponto máximo de arrecadação, denominado tributo ótimo, a partir do qual nova elevação de alíquota geraria o decréscimo da receita tributária (SILVA et al., 2006, p. 16). Entretanto, para além das pesquisas acadêmicas há que se reconhecer que análises provenientes do senso comum constantemente relacionam a alta carga tributária de determinada localidade com a deserção no pagamento dos tributos, de modo que as altas alíquotas, por si só, seriam capazes de gerar grandes taxas de inadimplemento tributário (BARROSO, 2018, p. 36). Todavia, será mesmo que a alta carga tributária, por si só, gera a diminuição na arrecadação tributária, especialmente quando relacionada à deserção no pagamento dos tributos? A esse questionamento, procurar-se-á responder, empiricamente, nos próximos
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tópicos.
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3 A DISTRIBUIÇÃO DAS DESPESAS E A CARGA TRIBUTÁRIA: UMA ANÁLISE EMPÍRICA O Estudo sobre a Carga Tributária/PIB3 X IDH4, desenvolvido pelo Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT), verificou o grau de retorno, para sociedade, dos valores arrecadados pelo Estado na forma de tributos, mediante o oferecimento de serviços públicos de qualidade. Para tanto, analisou-se os 30 (trinta) países detentores das maiores cargas tributárias, dentre os quais figura o Brasil (AMARAL et al., 2015). A partir dos dados colhidos, observou-se que o Brasil possui o pior Índice de Retorno da Arrecadação Tributária à Sociedade (IRBES). Já a Austrália, a Coreia do Sul, os Estados Unidos, a Suíça e a Irlanda, são os países que melhor empregam os tributos arrecadados na melhoria da qualidade de vida dos contribuintes (AMARAL et al., 2015). Aliado a esta pesquisa, também merece destaque o estudo “The Cost of Tax Abuse – A briefing paper on the cost of tax evasion worldwide” (O custo do abuso fiscal: um documento informativo sobre o custo da evasão fiscal em todo o mundo), desenvolvido pelo grupo internacional Tax Justice Netwok (Rede de Justiça Tributária), que analisou a evasão fiscal no mundo e elaborou um ranking dos 10 (dez) países com maior taxa de evasão fiscal (TAX JUSTICE NETWORK, 2011). Do ranking acima referido, constata-se que dentre os países que mais promoveram a qualidade de bem-estar de sua população, mediante o emprego dos tributos arrecadados, somente os Estados Unidos estão dentre os Estados em que a sonegação fiscal é mais expressiva. Lado outro, o Brasil, país de pior retorno da arrecadação dos seus tributos para a população, como já acima posto, ocupa a 2ª (segunda) posição dentre os Estados com maior evasão fiscal (TAX JUSTICE NETWORK, 2011). Estabelecendo uma análise conjunta entre essas duas pesquisas, pode-se observar que, prestação de serviços públicos de qualidade, maior tende a ser o seu índice de evasão fiscal5.
3
PIB é sigla referente a Produto Interno Bruto. IDH é sigla referente a Índice de Desenvolvimento Humano. 5 Observe-se que o Estudo sobre a Carga Tributária/PIB x IDH, foi realizado em 2015, ao passo que o documento The Cost of Tax Abuse: A briefing paper on the cost of tax evasion worldwide (O custo do abuso fiscal: um documento informativo sobre o custo da evasão fiscal em todo o mundo) fora publicado em 2011. Esse lapso temporal poderia inviabilizar a comparação entre os dados obtidos nas duas pesquisas, todavia, não é o que ocorre, uma vez que, para o desenvolvimento do primeiro trabalho citado, foram utilizados dados relativos ao ano de 2011, apesar de sua publicação somente ter se dado em 2015 (BARROSO, 2018, p.37). 4
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em regra, quanto menos um país retribui à sociedade os tributos arrecadados, através da
Portanto, depreende-se que a motivação para a deserção no pagamento de tributos não deve ser atribuída, ao menos exclusivamente, à alta carga tributária de determinado país. Percebeu-se, das pesquisas acima expostas, que a fuga do pagamento de tributos está diretamente relacionada com o retorno, à sociedade, dos valores pagos a esse título, na forma de serviços públicos de qualidade, de modo que quanto maior for esse retorno, menor tende a ser a taxa de deserção. Nessa perspectiva, pensando-se para além dessa constatação, é indagação pertinente o questionamento acerca do porquê da influência direta do oferecimento de serviços públicos de qualidade no índice de deserção no pagamento de tributos. É justamente sobre essa questão que o próximo tópico se debruçará.
4
CONTRAPRESTAÇÃO
SATIFATÓRIA
E
SOLIDARIEDADE
SOCIAL:
APLICAÇÃO DA TEORIA DOS JOGOS NO DIREITO TRIBUTÁRIO
Como já exposto no presente trabalho, a teoria dos jogos pode ser aplicada ao Direito Tributário. O Direito Tributário Brasileiro, em especial, por oferecer retornos de pouco valor ao contribuinte, apresentando um baixo índice de retorno ao bem-estar da sociedade, possui clara semelhança com o dilema do prisioneiro (CARVALHO, 2015, p. 11). Nesse sentido, traçando um paralelo entre as duas pesquisas expostas no tópico anterior, conclui-se que subsiste no ordenamento tributário brasileiro, portanto, um ciclo vicioso e paradoxal: o Estado não oferece serviços públicos de qualidade e, por essa razão, os contribuintes praticam ilícitos tributários, deixando de arcar devidamente com as suas obrigações, fato este que ensejará uma menor arrecadação estatal e uma consequente diminuição da possibilidade da prestação de melhores serviços públicos. Desenha-se, aqui, uma
Esta deserção da obrigação tributária, isto é, a maximização individual em detrimento do altruísmo social, transveste-se em oportunismo, uma vez que os contribuintes que evadem ou elidem a tributação, são um dos autores da injusta distribuição da carga tributária às camadas menos favorecidas da sociedade e àqueles contribuintes que honram com suas obrigações (CARVALHO, 2015, p. 16). É justamente nesse ponto que se entra na discussão da solidariedade social, contrapondo-se ao sentimento individualista atual. Muito desse cenário, a exaltar o individualismo e o egoísmo, pode ser atribuído ao sentimento de injustiça que permeia a sociedade. Ora, se o sistema é injusto e não vislumbro 234
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face da teoria dos jogos.
qualquer contraprestação que me favoreça, por que permanecer a arcar com o seu ônus pelos demais? Cenário oposto a este foi observado durante as décadas de 50 e 60, nos Estados Unidos, período que ficou conhecido como a Era Dourada, caracterizado pelo destaque de medidas de Estado de bem-estar social. Nesse período, em que a educação era bastante valorizada, figurouse o maior crescimento americano da história, um crescimento igualitário, de forma que as condições de vida da quinta parte inferior da população melhoravam tanto quanto as da quinta parte superior (O FIM DO SONHO AMERICANO, 2015). A implantação de um Estado de bem-estar social ou a concretização da maximização individual é uma escolha política que reverbera na forma de agir dos contribuintes e influencia diretamente na democracia do país. Enquanto a primeira promove uma distribuição de renda e consequente descentralização do poder político, a segunda acentua a concentração de riqueza e, consequentemente, de poder político. Isso porque a concentração de riqueza acaba por gerar a concentração de poder político, particularmente ao custo de disparidades eleitorais, as quais colocam os partidos políticos no bolso das maiores empresas. Ou seja, quanto mais concentração de riqueza, menos democracia e mais plutocracia6, fato este que se dá porque os detentores do capital, quando não são os próprios membros das casas legislativas, acabam por financiá-los, de forma a ditar a aprovação de leis que estejam em conformidade com os seus interesses, conforme abordado pela professora Luciana Grassano de Gouvêa Melo (2018), em palestra proferida no XXIII Seminário de Pesquisa do Centro de Ciências Sociais Aplicadas (CCSA) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Essa conjuntura gera um ciclo vicioso – que pode ser exemplificado pela teoria dos jogos -, uma vez que os membros do legislativo acabam legislando de forma a perpetuar a hegemonia dos mais abastados, em detrimento das classes menos favorecidas.
desigualdade, uma vez que esta, quando promovida por um Estado Democrático de Direito, deve ter, como pano de fundo, a convivência social em uma sociedade justa, livre e solidária, na qual o poder emana do povo e em proveito desse é exercido. Ademais, o reconhecimento formal de certos direitos individuais, políticos e sociais, não é o bastante, devendo se garantir o desenvolvimento de um processo de liberação da pessoa humana dos meios de opressão,
6
A plutocracia é um sistema de governo dominado por uma pequena minoria que concentra a maior parte da riqueza (AMBROSE, 2015).
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É exatamente por esse motivo que a democracia é inversamente proporcional à
através, em especial, da vigência de condições econômicas favoráveis ao exercício da liberdade (SILVA, 1998, p. 15-24). Diametralmente opostos aos governos democráticos, os governos plutocráticos, temendo que a população menos favorecida se rebele e reivindique a propriedade dos detentores do capital, optam pela diminuição da democracia como forma de contenção desses movimentos sociais de base. De modo diferente, para a mesma problemática, Aristóteles sugere a implementação do Estado de Bem-Estar social, com a consequente diminuição das desigualdades. Foi justamente essa última a opção política dos Estados Unidos durante a era dourada, período de maior crescimento americano, ressalte-se mais uma vez (O FIM DO SONHO AMERICANO, 2015). Entretanto, mesmo diante desse descrédito na implementação da despesa pública de forma positiva para a sociedade, o pagamento de tributos é um dever fundamental que viabiliza a existência do Estado. O Estado moderno, como forma de comunidade organizada de sucesso, ancora-se, necessariamente, em deveres fundamentais que suportam o seu funcionamento, dentre os quais encontra-se a solidariedade do indivíduo em contribuir para os custos financeiros públicos, contribuição essa concretizada no dever de pagar impostos (NABAIS, 2002, p. 9-30). O Estado moderno, portanto, difere tanto da concepção liberal dominante no século XIX, para a qual os direitos se sobrepunham à responsabilidade comunitária dos indivíduos, quanto do comunitarismo, presente nos regimes totalitários europeus que ruíram no século XX, onde somente os deveres imperavam e os direitos eram completamente esquecidos (NABAIS, 2002, p. 9-30). Hoje, o suporte financeiro dos Estados modernos advém do denominado Estado fiscal, onde o dever fundamental de pagar impostos está diretamente relacionado com a garantia da dignidade da pessoa humana, sendo a receita pública o instrumento histórico que mais se
indivíduo moderno não pode deixar de ser visto como um sujeito de direitos e deveres, um ser simultaneamente livre e responsável pela sociedade na qual está inserido (NABAIS, 2002, p. 9-30). Por esse motivo, excetuado o caso de uma sociedade onde o Estado seja detentor dos meios de produção, é impossível o desenvolvimento social organizado sem a existência de recursos que financiem seu ônus (BUFFON, 2009, p. 91), fato este que se alia ao entendimento de que o interesse do Estado em receber seus créditos tributários é de âmbito coletivo e não uma mera vantagem individual (RUSSO, 2005, p. 404). 236
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mostrou adequado para a materialização de uma vida digna. Isso se dá tendo em vista que o
Incontroverso, porém, que em uma sociedade organizada na forma de um Estado de bem-estar social, esse dever fundamental é mais pronunciado devido à necessidade de financiamento de políticas públicas aptas à promoção da qualidade de vida da população. Nesse modelo, o Estado é garante dos direitos fundamentais mais necessários aos indivíduos da base da pirâmide social, os quais contribuirão menos com tributos, em nome do respeito à capacidade contributiva (BUFFON, 2009, p. 91). É um jogo: o Estado garante qualidade de vida à população menos favorecida e, em troca, essa parcela populacional não se voltará contra o sistema governamental e a propriedade privada.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A teoria dos jogos, aplicável a diversas áreas do conhecimento, inclusive ao Direito, é ferramenta apta ao Estado na formulação de um sistema tributário eficiente, ou seja, que possui a maior receita tributária possível e a menor taxa de deserção. Contudo, para sua aplicação, são necessários estudos empíricos aptos a detectar os motivos pelos quais as pessoas deixam de cumprir com as suas obrigações tributárias, bem como as razões que as levam a adimplir essas mesmas obrigações, em uma outra realidade. Entendendo a importância da constatação da realidade social e dos motivos pelos quais ela se constrói, a partir de dados colhidos empiricamente, observou-se que países detentores de altas cargas tributárias, mas que distribuem suas despesas de forma a utilizar a arrecadação de impostos como meio de promoção da prestação de serviços públicos de qualidade tendem a possuir índices de evasão fiscal baixos, configurando-se o que se denomina solidariedade social. Ora, um sistema justo no qual os indivíduos, apesar de arcarem com seu ônus, usufruem as benesses ofertadas pelo Estado, acaba por incentivar o adimplemento tributário. À
contraprestações satisfatórias, que lhes favoreça, característica essa que se contrapõe a ideia de solidariedade social e demonstra a maximização da individualidade, a ensejar um cenário de desigualdade social pronunciada, característica das sociedades capitalistas. Aplicando-se o constatado à realidade brasileira, pôde-se perceber que o país possui um alto índice de evasão fiscal, decorrente, em muito, dos baixos retornos ao contribuinte, dos impostos pagos, uma vez que o país figura na pior posição do Índice de Retorno ao Bem Estar Social (IRBES), dentre os 30 (trinta) países que possuem as maiores cargas tributárias.
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contrário sensu, o indivíduo racional sente-se injustiçado ao pagar tributos e não vislumbrar
Portanto, diante dos dados apresentados, bem como das análises doutrinárias tecidas, tendo a consciência das diferentes respostas da sociedade face a cada tipo de sistema político tributário, cabe ao Estado Brasileiro, ao legislar sobre matéria tributária, bem como ao formular políticas públicas referentes ao investimento da receita arrecadada, reconhecer o baixo sentimento de solidariedade social que permeia os indivíduos da nossa sociedade, implantar normas tributária que incentivem o adimplemento dos tributos e gastar o montante arrecadado de forma que a sociedade sinta-se satisfeita em arcar com o ônus tributário por vislumbrar retornos por parte do Estado.
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DISTRIBUTION
OF
EXPENSES
AND
TAX
CHARGE:
SATISFACTORY
CONTRAPRESTATION AND SOCIAL SOLIDARITY – A PARALLEL WITH THE THEORY OF GAMES
ABSTRACT The objective of this academic paper is to contribute to a response to the following central question: Is the tax burden, by itself, responsible
data collected empirically on the expenses of a State and its tax burden, by the Brazilian Institute of Planning and Taxation, as well as Tax Justice Netwok. In this way, it can be seen that countries that have a high tax burden and, at the same time, distribute their expenditures in a way that keeps quality conditions to a relative amount of tax evasion. Keywords: Tax burden. Public expenditure. Tax evasion. Game theory.
240
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for defaults on taxes? For information on the effectiveness of the games,
ESTADO
DE
EXCEÇÃO
E
SUJEITOS
VULNERÁVEIS
NA
REALIDADE
BRASILEIRA Lorrane Andreza Salomão Carneiro1
RESUMO O pensamento de Agamben provou-se extremamente atual e pungente, uma vez que o estado de exceção e o homo sacer, ser matável, coexistem nas chamadas democracias liberais. Apesar da natureza legal dos direitos humanos nos Tratados Internacionais e nas Constituições dos Estados nacionais, tais garantias parecem ser insuficientes, para a proteção dos mais vulneráveis, os homo sacer do século XXI. A partir da análise dos textos deste filósofo e dados organizados pelo Fórum Brasileiro de Segurança pretende-se demonstrar a existência de espaços de exceção e do homo sacer na realidade brasileira. Palavras
chave:
Estado
de
exceção.
Segurança
pública.
1
Graduada em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Advogada.
241
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Vulnerabilidade social.
1 INTRODUÇÃO
Giorgio Agamben desenvolve em suas obras os conceitos de estado de exceção e homo sacer (ser vulnerável), esses são úteis para a análise do cenário atual do Brasil, pois dizem respeito ao afastamento ou inefetividade dos dispositivos legais. Observa-se o estado de exceção quando o Direito deixa de ser aplicado em algumas situações, e o homo sacer, nos momentos em que pessoas não são tratadas como se fossem sujeitos de direito. A respeito do estado de exceção, será realizado o resgate histórico do surgimento do instituto, o debate entre os juristas Carl Schmitt e Hans Kelsen, bem como a referência às ideias de Giorgio Agamben. Além disso, propõe-se demonstrar a anomia jurídica da teoria desenvolvida por Schmitt e seus reflexos nos dias atuais em que a exceção tem sido aplicada de modo mais recorrente. No que diz respeito aos seres vulneráveis, o homo sacer, busca-se relaciona-los aos sujeitos que mais morrem no Brasil atual: os jovens negros. A partir da análise de dados levantados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pela Human Rights Watch (Observatório de Direitos Humanos), busca-se comprovar que esses jovens figuram como maiores vítimas de homicídios que, em sua maioria, não são investigados. Ademais, será apresentada uma crítica sobre a atuação das autoridades estatais que fazem uso de meios letais, passando a ter poder de decidir sobre quem vive ou morre, havendo, na prática, o abandono temporário da legalidade em favor da exceção e da biopolítica. Assim, propõe-se a reflexão de que apesar da positivação dos direitos humanos em Tratados Internacionais e nas Constituições dos Estados nacionais, tais garantias provam-se insuficientes. Os seres mais vulneráveis permanecem abandonados, não protegidos pelas
2 O ESTADO DE EXCEÇÃO NA CONCEPÇÃO DE AGAMBEN
Agamben desenvolve na sua obra Estado de Exceção o resgate histórico do que teria inaugurado esse instituto e seu desenvolvimento ao longo do tempo. Nessa esteira, o estado de exceção teve sua origem no Direito romano, e era por meio desse instrumento que o Senado proclamava um interventor, bem como a suspensão da ordem jurídica. Dentre as hipóteses que autorizavam a exceção estavam: a ausência de autoridade para governar a cidade, a ameaça de
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normas.
subversão da ordem política, por meio de insurreições ou guerras civis, e o prenúncio de guerra provocada por agente externo. As teorias criadas por Agamben apresentam como ponto nodal a crítica à teoria de Carl Schmitt, partindo da diferenciação entre o que era aventado pelos romanos e a inovação feita pelo jurista alemão. Enquanto na ordem romana as hipóteses eram previamente definidas, bem como a escolha do ocupante do cargo, no regime proposto por Schmitt caberia à autoridade política, depois de empossada, decidir quando seria declarada a exceção, ou seja, haveria uma inversão das fases. Além disso, a decisão passaria a ser transferida para um único sujeito: o soberano. Nesse sentido, antes de aprofundar a respeito do pensamento de Agamben, é interessante promover o resgate histórico da teoria schmitiana e de um dos grandes debates do direito ocidental, travado por Kelsen e Schmitt. O primeiro defendia que uma Corte Constitucional deveria realizar a guarda da Constituição. Já o segundo, atribuiu tal papel ao chefe de Estado legitimado eleitoralmente, que, em seu contexto histórico, era o Presidente do Reich alemão. O embate decorre do fato de Schmitt ser adepto a uma teoria na qual a legitimação do soberano deriva do poder de decisão, enquanto Kelsen defendia a teoria pura do direito. Nessa, a legitimidade provém da própria estrutura legal positivada, isto é, a soberania é derivada da jurisdição da lei. Para Schmitt, o Presidente do Reich (império) teria legitimidade política para exercer o poder constituinte. O regime nazista apoderou-se dessa teoria e, por conseguinte, delegou a competência de sua Corte Constitucional para o Poder Executivo. Com isso foi plenamente instaurado o estado de exceção que concentrava amplos poderes na figura do Füher (líder). Entretanto, cumpre salientar que não houve nenhum tipo de modificação legal nesse aspecto, a Constituição de Weimar que contava com um amplo rol de direitos fundamentais continuou vigente durante o regime nazista, sendo que o Füher (líder) tinha poderes ainda maiores para
existentes. Destaque-se ainda que nenhuma das normas antinômicas era excluída ou alterada, mas privilegiada a aplicação dos Decretos, a depender da situação fática. A partir disso, vê-se tratar-se de medida jurídica que não pode ser compreendida a partir do Direito. O estado de exceção é implantado com a justificativa de proteger as estruturas políticas e jurídicas vigentes. A partir dessa premissa, seria possível criar um não lugar dentro do ordenamento jurídico. De modo que parte do território nacional estaria alheio às garantias previstas legalmente, como também poderia ocorrer a suspenção das leis na integralidade por parte do Estado, porém, de modo temporário. 243
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editar Decretos com força de lei, aplicáveis ainda que houvesse conflito entre as normas
A consequência disso é a maior acumulação de atribuições, principalmente legislativas, nas mãos do Poder Executivo e a redução de liberdades da população, exemplo dessa a suspensão do direito de trânsito ou sigilo de correspondência. Nessa esteira, nas palavras de Agamben (2007, p. 39):
O estado de exceção não é nem exterior nem interior ao ordenamento jurídico e o problema de sua definição diz respeito a um patamar, ou a uma zona de indiferença, em que dentro e fora não se excluem mas se indeterminam. A suspensão da norma não significa sua abolição e a zona de anomia por ela instaurada não é (ou, pelo menos, não pretende ser) destituída de relação com a ordem jurídica.
Uma das principais polêmicas para a implantação do estado de exceção é a justificação da necessidade da medida, de modo a lhe conferir legitimidade. Sobre isso, para Tomás de Aquino, o príncipe poderia dispensar a aplicação da lei, ou seja, implantar a exceção, quando houvesse perigo iminente e o seu combate devesse ser imediato (AGAMBEN, 2007, p. 41), dessa forma, o caso concreto conferiria legitimidade à medida. De modo diverso, os modernos, Jellinek e Duguit, por exemplo, deixam de conceituar situações mais específicas, deslocando o fundamento da medida na mera necessidade daquela (AGAMBEN, 2007, p. 43), há uma tautologia, o fundamento da medida é declarado pelo Decreto e a legitimação para a emissão do Decreto é a necessidade declarada nele mesmo. E ainda, o jurista Santi Romano, enquanto vivia uma guerra civil em 1944, problematizou a questão da necessidade durante a revolução, ele expunha que o procedimento não poderia ser regulamentado pelo Estado, pois atuaria com intuito de subvertê-lo (AGAMBEN, 2007, p. 43/44). Entretanto, a revolução também não poderia ser antijurídica, pois é um estado de fato ordenado e regulamentado por seu próprio direito. Nesse sentido, é interessante notar que a Constituição alemã legalizava o direito de têm o direito de resistência, se outros remédios não forem possíveis” (AGAMBEN, 2007, p. 23/24). De modo complementar, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793, que inspirou as Constituições dos Estados modernos, já previa dispositivos relacionados ao direito de resistência frente ao aparelho estatal. O artigo XXXIII informa “a resistência à opressão é a consequência dos outros direitos do homem” e de forma complementar o artigo XXXV dispõe “quando o governo viola os direitos do povo, a revolta é para o povo e para cada agrupamento do povo, o mais sagrado dos direitos e o mais indispensável dos deveres”.
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resistência “contra quem tentar abolir esta ordem [a constituição democrática], todos os alemães
Ao analisar as teorias da necessidade, Agamben conclui que no estado de exceção e na revolução o fato se transforma em direito e o direito é suspenso do fato, sendo a teoria, portanto, contraditória. Para ele, seria ingenuidade o embasamento da medida em circunstâncias subjetivas, “aquilo sobre o que ela decide é, na verdade, algo indecidível de fato e de direito” (AGAMBEN, 2007, p. 47). A partir disso, é possível notar a fragilidade lógico-argumentativa naquilo que sustenta a declaração do estado de necessidade, pois, ao mesmo tempo em que haveria a justificativa do soberano, por outro lado os cidadãos teriam o direito de resistência quanto ao Estado. De tal modo, o referido autor defende o argumento no sentido de que o estado de exceção não se justifica apenas pela autoridade, sendo necessário adotar a perspectiva da biopolítica para o correto entendimento do fenômeno. Nessa perspectiva, o homo sacer (ser vulnerável) toma o espaço antes ocupado pelo paradigma da necessidade, uma vez que deixa de ser necessário invocar alguma situação excepcional para instaurar a exceção, pois a eliminação desses sujeitos não importa para a ordem jurídica, é normalizada, aceita. Essa justificativa amplia a abrangência da exceção e permite a subsunção dessa no Estado Democrático de Direito moderno como algo permanente.
3 A VIOLÊNCIA NO BRASIL E A VULNERABILIDADE SOCIAL
Na obra Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua, Agamben consolida o conceito do que é o Homo Sacer: um ser excluído da vida política e social, ele pode ser morto, mas não sacrificado (AGAMBEN, 2002, p.81). Sua existência é desprezível, reduzida à vida nua, aquela que não recebe proteção jurídica. A vida nua e, por conseguinte, o homo sacer são complementares ao estado de
soberano à decisão sobre fazer morrer e deixar viver. A correlação entre vida e morte no pensamento agamberiano relaciona-se à perspectiva da biopolítica, também trabalhada nas obras de Foucault, traduzida como a “crescente implicação da vida natural do homem nos mecanismos e nos cálculos de poder” (AGAMBEN, 2002, p. 123). Dessa forma, o filósofo italiano se distancia das concepções schmittianas que relacionam a legitimidade da medida de exceção ao poder de decisão do Füher (líder). O campo, conceito forjado a partir da perspectiva dos campos de concentração da Alemanha nazista, surge como a essência do espaço biopolítico e paradigma do espaço político 245
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exceção, uma vez que aquela justifica a soberania na medida em que reduz a autoridade do
da modernidade (AGAMBEN, 2002, p. 129). Tal espaço é uma zona de confluência entre direito e fato de modo que os conceitos de direito subjetivo e proteção jurídica perdem o sentido. Nesse local, qualquer cidadão é reduzido à condição de homo sacer (sujeito vulnerável), assim esse pode ser considerado o primeiro lugar permissivo para tornar o estado de exceção a regra. Segundo Agamben (2002, p. 181/182), o Estado moderno se afasta da estrutura do EstadoNação, formada por território, Estado e nação, e se aproximando da biopolítica transmuta o estado de exceção de suspensão temporária da lei para ser substituído por uma nova e constante disposição espacial, o campo, na qual é ocupada pela vida nua. Ora, haverá um campo virtual sempre que o espaço permitir a indistinção entre vida nua e a norma, exemplo disso são os aeroportos franceses que retém estrangeiros no status de refugiados; bem como os locais em que a polícia italiana retinha imigrantes clandestinos albaneses, enquanto esses não eram deportados para seu país de origem, e, em especial, podem ser citadas as periferias urbanas (AGAMBEN, 2002, p. 181). No caso brasileiro, notadamente, é comum ver nos noticiários operações das polícias, principalmente a polícia carioca, que adentra as favelas com armamentos pesados e helicópteros, sob pretexto de combater o tráfico de drogas. Nestas operações os agentes do Estado, ao entrar em confronto com criminosos, fazem uso de práticas letais, de modo que durante o embate, inevitavelmente, moradores da comunidade são feridos ou mortos por balas perdidas. Além disso, também ocorrerem excessos e execuções, a barbárie se reflete nos gritos de guerra cantados pelo BOPE (Batalhão de Operações Especiais) do Rio de Janeiro, conforme se denota do seguinte trecho:
É o Bope preparando a incursão / E na incursão / Não tem negociação / O tiro é na cabeça / E o agressor no chão. / E volta pro quartel / pra comemoração
Conforme apontado em matéria de 2013 da Globo News (notícias do globo), e também
do Estado, ao invés de atuarem conforme a legalidade e proteger a população e as instituições jurídicas, promovem a violência, o confronto. Assim, é perceptível que nesses locais o ordenamento jurídico é suspenso, as ações tomadas já não se sustentam pelo direito, mas passam a depender do poder de decisão da polícia que atua provisoriamente como um soberano. Traçados os conceitos chave, imperiosa é a análise do atual cenário brasileiro e a presença do estado de exceção e do homo sacer (ser vulnerável), principalmente, nas periferias urbanas. Nesta esteira, o Atlas da Violência de 2018 (que organiza os dados de 2006 até 2016), produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) com auxílio do Instituto de 246
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no uso da caveira como símbolo do batalhão, realizando uma clara alusão à morte. Tais agentes
Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), constatou que as mortes decorrentes de intervenções policiais são subnotificadas. Isso se deve aos fatos das circunstâncias relacionadas não serem apuradas de modo adequado, a fim de distinguir quais homicídios foram cometidos por polícias e quais casos devem ser classificados como morte por agressão, ou seja, perpetrada por qualquer tipo de indivíduo (FBSP, 2018, p.77). O documento citado também evidencia que há um sujeito específico que está mais vulnerável à violência: o jovem do sexo masculino. Homens de 15 a 29 anos estão mais sujeitos a morrer violentamente, quadro esse que tem se agravado durante o período sob análise do estudo (FBSP, 2018, p.33). Atentar-se ao recorte racial também é importante, se por um lado no período de 10 anos a taxa de homicídios entre negros cresceu 23,1%, por outro, a de não negros teve a redução de 6,8% (FBSP, 2018, p. 40). Além disso os negros são os principais alvos das operações letais da polícia, representando cerca de 76% das vítimas, conforme dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2017 (FBSP, 2017, p. 07), relativo aos dados de 2015 a 2016. A partir disso, é possível dizer que a população negra periférica foi reduzida à condição de homo sacer (ser vulnerável). O descaso do governo brasileiro é patente e já foi denunciado pela organização Human Rights Watch (Observatório de Direitos Humanos), em seu relatório de 2018. Segundo a organização, o sistema de justiça criminal brasileiro apresenta problemas crônicos, entre eles está a realização de execuções por parte de policiais que não são devidamente investigadas ou denunciadas. Em sintonia com essa atuação desmedida do poder de policia, verifica-se que grande parte da população é alinhada a posicionamentos autoritários, apesar de, ao mesmo tempo, ser favorável à agenda de promoção de direitos civis, conforme relatado no estudo Medo da violência e o apoio ao autoritarismo no Brasil: índice de propensão ao apoio a posições autoritárias do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. No mesmo sentido, segundo pesquisa bom é bandido morto”. Assim, é interessante notar que é conferido à autoridade policial o poder de decidir sobre a inocência ou culpa dos sujeitos. Nessa lógica, passa a ser privilegiada a ideia de justiçamento em relação à justiça, a ilegalidade sobre a legalidade. Garantias como o devido processo legal, a presunção de inocência e a ampla defesa são preteridas em relação ao linchamento, à suposta justiça imediata e à vingança. De tal modo, um único sujeito acumula as funções de investigar, julgar, impor a pena e executa-la.
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do instituto Datafolha, pouco mais da metade da população concorda com a frase “Bandido
Agamben (2007, p. 13) sustenta que o totalitarismo moderno permite a eliminação de grupos que não se enquadrem no sistema político, isso se deve a criação de um estado de urgência permanente, tal prática subsiste comum mesmo nos Estados democráticos. Tais sujeitos são excluídos do que poderia ser considerado como povo ou a nação. De várias formas percebe-se a exclusão de alguns sujeitos do âmbito de proteção jurídica. Nisso, é pertinente o resgate que Agamben faz ao pensamento de Hannah Arendt, segundo o qual, no Estado moderno, o totalitarismo pode existir sem necessariamente resultar em uma ditadura ou tirania, mas sua atuação seria de modo diferente, a fim de dominar a vida e reduzi-la a mero fator biológico. Infelizmente a prerrogativa do estado de exceção não é exclusiva dos brasileiros, merecendo destacar que após o 11 de setembro de 2001 e a edição do Patriot Act (Ato Patriota), as liberdades individuais nunca mais foram as mesmas. O mencionado Decreto assinado por Georg Bush permitiu a interceptação de e-mails e ligações sem a necessidade de autorização judicial. Inclusive, em 2016 foi revelado por Edward Snowden que o governo estadunidense fiscalizava diversos Estados Nacionais, estando o Brasil entre eles. Também é notório que os aparatos de vigilância disponíveis atualmente permitem a existência do panoptismo estudado por Foucault (1999). O filósofo francês sustentava que para o exercício do controle e manutenção de um sistema baseado na hierarquia e na vigilância seria necessária a observação constante dos sujeitos, de modo que esses não pudessem saber ao certo se estariam sendo vigiados e, por conseguinte, os detentores do poder teriam ampla liberdade em sua atividade de vigia. A partir desse cenário passa a ser instaurada certa sociedade ameaçada, sob constante quarentena, com o objetivo de produzir sujeitos submissos, ou na terminologia do autor, corpos dóceis. Assim, para a manutenção de uma suposta ordem, Direitos Fundamentais, como a intimidade e a vida privada, são relativizados em prol da segurança gerada por essas medidas.
restringem a vigiar e punir, preconizadas pelos neoliberais, Agamben as descreveu (2002, p. 127/128):
O fato é que uma mesma reivindicação da vida nua conduz, nas democracias burguesas, a uma primazia do privado sobre o público e das liberdades individuais sobre os deveres coletivos, e torna-se, ao contrário, nos Estados totalitários, o critério político decisivo e o local por excelência das decisões soberanas. E apenas porque a vida biológica, com as suas necessidades, tonara-se por toda parte o fato politicamente decisivo, é possível compreender a rapidez, de outra forma inexplicável, com a qual
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Ademais, sobre as democracias burguesas, nas quais as funções do Estado se
no nosso século (século XX) as democracias parlamentares puderam virar Estados totalitários, e os Estados totalitários converter-se quase sem solução de continuidade em democracias parlamentares. Em ambos os casos, estas reviravoltas produziram-se no contexto em que. a política já havia se transformado, fazia tempo, em biopolítica, e no qual a aposta em jogo consistia então apenas em determinar qual forma de organização se revelaria mais eficaz para assegurar o cuidado, o controle e o usufruto da vida nua
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das bases teóricas estudadas é possível perceber a falibilidade das democracias liberais, uma vez que, apesar das crescentes conquistas de direitos devido às lutas das minorias, os dispositivos legais protetivos não se refletem materialmente na realidade. As crises constantes e, consequentemente, o estado de exceção permanente, propõem o combate a um inimigo, sejam eles externos, os terroristas, ou internos, o traficante, o ladrão, ou simplesmente os que ostentam normalmente a condição de suspeito: o jovem negro periférico. No estado de exceção, ações violentas são permitidas a fim de garantir a ordem, e com base nisso são ampliadas as medidas de controle e extermínio dos homo sacer (ser vulnerável). O Estado se restringe às atividades policialescas, restritas às tarefas de controle (monitoramento, encarceramento e punição) e o usufruto da vida nua. Graças a essa visão, são solapadas políticas públicas inclusivas em relação aos grupos marginalizados: negros, pobres, imigrantes, lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros, entre outros. Há, ainda, o descrédito em relação aos Direitos Humanos, garantias fundamentais e até mesmo à moral filosófica ocidental que sempre colocou o direito à vida e à autodeterminação como pressupostos centrais à vida humana. Os relatórios do Fórum de Segurança Pública são
o agravamento das estatísticas. A mera disposição legal não tem contemplado a modificação da realidade material e, infelizmente, a ideologia dominante na esfera pública não considera que isso seja um problema. O atual Estado de direito liberal não satisfaz o mínimo existencial, transformando parcela dos seres em homo sacer (seres vulneráveis) e permitindo o estado de exceção permanente.
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sumariamente ignorados e preteridos a medidas em sentido contrário, favorecendo as mortes e
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ABSTRACT Agamben's thought proved extremely current and poignant, since the state of exception and the homo sacer, being who can be killed, coexist in the called liberal democracies. Despite the legal provision nature of Human Rights in International Treaties and the Constitutions of national states, such guarantees appear to be insufficient, for the protection of the most vulnerable, the homo sacer of the twenty-first century. From the analysis of the texts of this philosopher and data 251
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STATE OF EXCEPTION AND VULNERABLE SUBJECTS IN BRAZILIAN REALITY
organized by the Brazilian Forum of Security is intended to demonstrate the existence of spaces of exception and homo sacer in Brazilian reality.
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Keywords: State of exception. Public security. Social vulnerability.
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ESTUDO DAS ATECNIAS JURÍDICAS NO JULGAMENTO DA ADI Nº 4277 À LUZ DA TEORIA LIBERAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Ingrid Gabriela Saraiva de Melo1 Layse Rhayana Marcelino Dias2
RESUMO Através do julgamento conjunto da ADI n.º 4277 e da ADPF n.º 132, o Supremo Tribunal Federal aplicou a Teoria Liberal dos Direitos Fundamentais decidindo pela constitucionalidade da união estável homoafetiva. Diante disso, o objetivo geral deste trabalho é analisar a decisão mencionada sob a ótica das Teorias dos Direitos Fundamentais, com ênfase na Teoria Liberal. Sobre os objetivos específicos, tem-se o exame do voto do Ministro Relator, e perquirir as alegações destoantes do ordenamento jurídico pátrio. Quanto à tipologia da pesquisa, servese do método indutivo, sendo, sobre a natureza, um estudo de caso, lastreado numa análise jurisprudencial documental-bibliográfica.
Fundamentais. Igualdade formal. ADI-4277. ADPF-132. “A liberdade perturba os padrões” (Robert Nozick)
1
Graduanda no curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Pesquisadora do grupo de pesquisa Constituição Federal e a sua concretização pela Justiça Constitucional (PPGD - UFRN). 2 Graduanda no curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Pesquisadora do grupo de pesquisa Constituição Federal e a sua concretização pela Justiça Constitucional (PPGD - UFRN).
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Palavras-chave: Entidades familiares. Teoria Liberal dos Direitos
1 INTRODUÇÃO
Tão clichê quanto dissertar sobre a incessável mutabilidade dos arranjos sociais, é manifestar a necessidade do Poder Legislativo atender os anseios dessa nova dinâmica. Apesar disso, faz-se essencial relembrar essa questão para combater o conservadorismo contrário à regulamentação ou consentimento de certas situações que, mesmo já consolidadas de fato, sentem a ausência do aval legislativo. Nesse viés intelectivo, a rigidez conceitual de “entidade familiar”, correlacionada restritamente ao matrimônio, é rompida e substituída por miríades formas distintas de família. Isto é, com respaldo na Constituição Federal brasileira, o casamento não é mais a única modalidade de família chancelada pelo Estado. Muito pelo contrário, a partir da simples leitura do art. 226, caput, da Constituição Federal, é possível concluir que esse vocábulo é reconstruído cotidianamente conforme as mudanças sociais. Isto é, o poder constituinte não exauriu em palavras o que é e/ou o que será a família, com efeito, é encargo de cada indivíduo optar pela estrutura familiar que lhe convém. Visto isso, a família como união estável é protagonista na hodierna conjectura formada por indivíduos interessados na conservação da afetividade em detrimento da institucionalização das relações sociais. Após a batalha histórica para romper a discriminação associada ao status de concubinato e a positivação constitucional da proteção especial à união estável, tornou-se infundada qualquer desvalorização dessa entidade familiar. Apesar do dito, muitos ainda sustentam os resquícios patriarcais do Direito das Famílias, quer dizer, ainda é notório a condenação moral (e/ ou legal) das famílias destoantes dos padrões comuns – como a união estável decorrente de casais homoafetivos. Com fito, para esmaecer as interpretações pautadas na discriminação do art. 226, Constituição Federal, o Supremo Tribunal Federal subscreveu o caráter ilustrativo dos termos “homem” e “mulher”.
ajuizada no Supremo Tribunal Federal (STF) sob o nº 4277, bem como, da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) de nº 132, propostas, respectivamente, pela Procuradoria Geral da República e pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro à época, Sérgio Cabral. Ademais, coube ao ministro Ayres Britto a relatoria das ações aludidas, devendo ao Supremo Tribunal Federal decidir acerca do reconhecimento da união estável entre casais homoafetivos.
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Sobre este último ponto, trata-se de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI),
Indo ao cerne da ADI nº 4277/DF, essa pleiteou que o art. 1.723 do Código Civil (CC) fosse interpretado conforme à Constituição Federal, objetivando a compreensão dos mesmos efeitos da união estável formada por casais heterossexuais para os homossexuais. Visto o exposto, perante a importância do rigor técnico e coerente das decisões judiciais na atual dinâmica processual pátria, o grande escopo desta pesquisa é analisar a aplicação das Teorias dos Direitos Fundamentais, em especial, a Teoria Liberal, nos votos da decisão supramencionada. Em minúcias, pretende-se destrinchar as alegações do relator, assim como as dos ministros que divergiram da sua fundamentação, buscando exaltar os inúmeros argumentos regados pelo senso comum e isentos de preceitos técnicos. No mais, este estudo não visa desvalorizar o resultado da decisão, mas esclarecer quais seriam os meios adequados e sérios para alcançá-la. Ademais, concernente a tipologia de pesquisa aplicada, trata-se, quanto ao procedimento, de um estudo de caso pautado no método indutivo. Ademais, fora utilizado a análise jurisprudencial, bem como documental-bibliográfica.
2
DO
CASO:
O
PRECONCEITO
CIRCUNSCREVENDO
A
PROTEÇÃO
CONSTITUCIONAL AOS DIVERSOS MODELOS DE FAMÍLIA
Como já explicado superficialmente, a atribuição do status de família à união estável é um conquista histórica. Quer dizer, atinente à Constituição Federal de 1969, art. 175, §1º, a indissolúvel figura do casamento é única gênese legítima para constituir família. Em decorrência, várias relações afetivas não eram protegidas pelos desígnios constitucionais, mais que isso, pregou-se pela marginalização das famílias informais não chanceladas pelo Estado. Com efeito, o vocábulo “concubinato” fora destinado para discriminar qualquer união não
Por óbvio, essa restrição normativa se viu incapaz de reter a pluralidade das entidades familiares, nesse sentido, mesmo tardia, a Constituição Federal de 1988 reformou o entendimento do Direito das Famílias ao englobar o concubinato na definição de união estável e o incluí-lo no rol exemplificativo das entidades familiares . Em razão do desígnio constitucional, a doutrina postula sobre as incontáveis (e hierarquicamente iguais) entidades familiares. Contrariando a posição exposta, em calorosa discussão na Câmara, o Pastor da Assembleia de Deus, Silas Malafaia, introduziu a hipótese dos casais homoafetivos não 255
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marcada pelo casamento.
englobarem o previsto no art. 226, §3º, Constituição Federal, pois o dispositivo traz expressamente os termos “homem” e “mulher” – e não “homem” e “homem” e/ou “mulher” e “mulher”. Do contexto citado, transcende a ideia de combater o notório preconceito e desvio interpretativo por via judicial, objetivando, assim, cessar qualquer insurgência contra as uniões estáveis homoafetiva. Frente ao exposto, é fácil compreender a importância e impacto social gerado pelo julgamento analisado, porém, insta tecer breve comentário acerca da necessidade de aplicar o controle direto de constitucionalidade nessa situação. Utilizar o Poder Judiciário quando era possível usar o Legislativo é, no mínimo, desarrazoado. Melhor explicando, as ações do legislador são identificadas pelo povo como se suas fossem – visto a representatividade atribuída através do voto. Assim, além de respeitar o princípio da economicidade processual, a simples edição do Código Civil para salvaguardar as entidades familiares homoafetivas legitimaria popularmente o fato social. Explicado isso, cumpre fazer um pequeno relatório com o afã de esclarecer o que está em análise. Primeiro, o Governo do Estado do Rio de Janeiro ajuizou a ADPF de nº 132/RJ, a qual requeria, a priori, que se conferisse uma interpretação conforme à Constituição Federal a certas normas estaduais, sendo que essas, inclusive, eram anteriores ao texto constitucional. Contudo, o Supremo Tribunal Federal observou a existência de dispositivos na legislação fluminense que vieram posteriormente (portanto, derrogando os anteriores, segundo a máxima “lei posterior derroga a anterior” e que já cuidaram de dar outro semblante ao tema, “conforme a Constituição” por assim dizer . Logo, o pedido principal quedou-se prejudicado, dada a perda do seu objeto; entretanto, o remanescente almejava imprimir a interpretação conforme à Constituição Federal ao art. 1.723 do Código Civil, de modo que esse fora reconhecido na roupagem de ADI. De mais a mais, tal pedido viera reprisado na ADI nº 4.277/DF, razão pela qual há de se falar em prevenção pela coincidência de objetos.
interpretado conforme à Constituição Federal o art. 1.723 do Código Civil, de modo que se estendessem aos casais homossexuais os efeitos da união estável, tanto os direitos como os deveres. Melhor dizendo, pretendia o reconhecimento da sua incidência sobre a união entre pessoas do mesmo sexo, de natureza pública, contínua e duradoura, formada com o objetivo de constituição de família. O dispositivo do acórdão relata a votação unânime no reconhecimento da ADPF nº132- RJ como Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) e, portanto, a admissão do julgamento conjunto daquela com a ADI nº 4277- DF. 256
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Indo ao cerne da ADI nº 4277/DF, essa aludia, esquematicamente, que fosse
Também de forma homogênea, deu-se procedência às ações protocoladas. Destarte, visto que se trata de controle de constitucionalidade abstrato, o Supremo Tribunal Federal garante o efeito erga omnes (para todos) e vinculante (antes mesmo da publicação do acórdão). Assim, em outras palavras, tornou inescusável o descumprimento da decisão - inclusive pelo Poder Judiciário e pela Administração Pública. Por fim, a análise substancial compreendeu os casais homossexuais como entidade familiar e asseverou a mesma proteção jurídica da união estável heteroafetiva.
3 DA DECISÃO
Feitos tais esclarecimentos, torna-se possível a análise da fundamentação dessa decisão do Supremo Tribunal Federal acerca da união estável entre pessoas do mesmo sexo. De sorte que, a priori, cabe menção ao fundamento do relator, vez que esse fora seguido pelos demais ministros – no mais, isso não implica dizer que não houve divergências laterais, as quais, por seu turno, serão explicadas ao fim dessa síntese. Inicialmente, a respeito do ponto de partida da análise meritória, o Min. Ayres Britto ocupou-se em realizar uma “elucidativa menção à terminologia em debate” , à vista de tornar clara a compreensão do que se trataria o termo “homoafetividade”. Acerca dessa questão, importa relatar que, em seu voto, o jurista utilizou o referido termo para alcunhar “o vínculo de afeto e solidariedade entre os pares ou parceiros do mesmo sexo” . Passando o enfoque para o mérito propriamente dito, o relator anota que a primeira oportunidade na qual a Constituição Federal serve-se do vocábulo “sexo” é no seu art. 3º, IV, o qual traria, em sua leitura, ao analisar sistematicamente o emprego do termo em outros dispositivos constitucionais, o nítido significado de “conformação anátomo-fisiológica
Assim, tratar-se-ia de um laborar normativo no sentido de diferenciar os dois gêneros da espécie humana. Britto sustenta, com efeito, que esse primeiro tratamento que é dado à matéria afirma a explícita vedação de atitudes discriminatórias ou desiguais por razão de gênero, sob pena de estar-se a colidir frontalmente como o “objetivo fundamental” de “promover o bem de todos” - salvo, é claro, caso houvesse dispositivo constitucional em contrário sensu. Dizendo de outra maneira, o ministro demonstra que a Constituição Federal traz, de modo patente, o repúdio ao preconceito em virtude do sexo, o que seria uma natural diferença entre homem e mulher. 257
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descoincidente entre o homem e a mulher”.
Nessa linha, por cúmulo, percebe-se que tão repreensível quanto discriminar as pessoas por seu sexo biológico, seria sua discriminação em virtude da sua preferência sexual. Aduz-se isso vez que a proibição do preconceito em razão de “ser homem ou mulher”, não trata unicamente do fato de não sofrer segregação pela conformação anátomo-fisiológica contraposta, como também incide em tudo aquilo que tangencia o uso da sexualidade que esses são indispensavelmente portadores, isso é, de fazer ou não uso dessa sexualidade e, caso o faça, poder fazê-lo com pessoas do mesmo sexo ou de sexo diferente. Conclui-se, até então, que há uma vedação constitucional no sentido de que ninguém poderia ser diminuído ou discriminado em função de sua preferência sexual, existindo, assim como existe o direito da mulher a tratamento igualitário com os homens, o direito líquido e certo dos homoafetivos a tratamento isonômico com os heterossexuais. Com efeito, sustenta o relator que o direito afigura-se como uma das mais engenhosas técnicas de controle social e, como tanto, busca submeter as relações entre os seres humanos “às normas que lhe servem de repertório e essência” , seja por meio de uma norma geral positiva ou negativa. Nesse sentido, argumenta que teria a nossa Constituição Federal se valido dessa última técnica mencionada. Dito de outra forma, haveria, em sua visão, um intencional mutismo da Constituição Federal quando se trata do uso da sexualidade humana, em razão do que decorre o direito à liberdade no uso dessa. Isso porque a inexistência de previsão normativa corresponderia exatamente à norma geral negativa no sentido kantiano estampado no art.5º, II da Constituição Federal, isso é, “tudo aquilo que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido”. Nesse ínterim, resta claro o seu entendimento de que a Constituição Federal é silente por compreender que, no que respeita ao uso da sexualidade e do aparelho sexual, cabe, a cada qual, o livre arbítrio. Outrossim, a preferência sexual, do mesmo modo que o seu emprego, é vista como “direta emanação do princípio da dignidade da pessoa humana” (art. 1º, III da Constiuição intrinsecamente, o torna poderoso fator de afirmação da autoestima: “a aplainar o mais abrangente caminho da felicidade”. Desse modo, Britto aduz que isso se relacionaria ao próprio direito à busca da felicidade, vez que, da mesma maneira que os heterossexuais realizam-se e são felizes em relações com essa construção, os homoafetivos só podem se realizar homoafetivamente. Ainda, o relator atenta que o exercício da sexualidade é condizente com outras liberdades fundamentais como intimidade e privacidade. Primeiro, porque tendo a Constituição Federal vedado expressamente o preconceito em razão do sexo e, de modo intencional, não 258
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Federal). Isso, pois, nada é de maior intimidade ou privacidade que o seu emprego, o que,
versado sobre o uso da sexualidade humana, nota-se que essa não o fez por reconhecer que esse uso compõe a autonomia da vontade. Logo, fazendo parte da autonomia da vontade e constituindo-se como direito subjetivo, alinha-se às clássicas liberdades individuais, sendo que essa liberdade se concretiza tanto sob a forma do direito à intimidade, como do direito à privacidade, os quais, não podemos esquecer, são direitos fundamentais (previsto no inc. X, art. 5º, Constituição Federal). Consequentemente, a liberdade para dispor do uso do aparelho sexual insere-se no rol dos direitos jusfundamentais. E, assim, portando tal feição, o relator menciona o §1º do mesmo art. 5º da Constituição Federal, de modo a ressaltar que a esse direito à liberdade sexual deve gozar da regra da aplicabilidade imediata. Adicionalmente, argumenta que tal direito somente sairia do âmbito de circunscrição dos dispositivos mencionados caso a Constituição Federal
lavrasse em sentindo diverso, embora, na sua ótica, isso não seja
observado. Como resultado do exposto, Britto conclui, novamente, que todos são iguais sem embargo do sexo biológico com o qual nasceram ou a preferência sexual que optarem. Desta feita, são também “iguais para titularizar direitos, bônus e interesses também juridicamente positivados”. Assim sendo, questiona se a Constituição Federal nega aos casais homoafetivos em união voluntária e estável o mesmo tratamento que dispensa aos casais heteroafetivos. Para responder ao seu questionamento, o relator elenca os dispositivos constitucionais que tratam sobre o que mencionam “família”, chegando à conclusão que a parte substancial é o caput do art. 226 por ser a única inteligência alusiva à família, sendo que essa é que fora contemplada com especial proteção estatal (e não outras condições, por óbvio). Nesse sentido, elucida que o conceito coloquial de família desconsidera se essa é constituída por casais heterossexuais ou homoafetivos. Observando, além disso, que a própria Constituição Federal, ao utilizar-se do vocábulo “família”, não limita sua formação a casais compostos por pessoas do sexo oposto, nem a formalidades, como a cartorária ou da celebração de uma cerimônia religiosa.
percebe como um espaço consagrador para os direitos fundamentais, asilo inviolável para os seres humanos, e, mais que isso, compreende que essa é uma figura continente, da qual todo o resto é conteúdo. Em face do exposto, entende que deve-se utilizar essa noção de família como comandante para interpretação das demais vezes que o vocábulo em questão for citado no texto constitucional (e não reduzi-la com bases nessas outras), vez que a Constituição Federal, em sua totalidade, não lhe emprestou sentido ortodoxo que restrinja a sua constituição, bem como não a limitou, como dito, àquelas que são formalmente constituídas. Logo, não haveria distinção entre a família que se forma por sujeitos heteroafetivos e a que se constitui por pessoas de 259
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De mais a mais, o ministro persevera analisando o conceito de família, de modo que a
vertente homoafetiva. À vista disso, preconiza pela adoção de uma interpretação não reducionista do conceito do vocábulo família, compreendendo que o conceito em sentido contrário esbarraria num discurso preconceituoso ou homofóbico. Doravante, considerando o conceito de família como “base da sociedade e credora da especial tutela do Estado”, analisa-se cada um dos institutos que resultam do art. 226 da Constituição Federal. Começando pelo casamento civil, esse é compreendido, em síntese, como uma das modalidades de constituição de família, que em nada prejudica a sua constituição por outra via, mesmo porque “o continente que não se exaure em nenhum dos seus conteúdos, inclusive esse do casamento civil”. Indo ao plano de fundo da questão, isso é, quanto ao §3º do art. 226 da Constituição Federal, Britto afirma que a referência feita à dualidade de “homem” e “mulher” se deve a especial proteção que a Constituição Federal visa conferir a essa última, isso é, com o focado propósito de estabelecer relações jurídicas sem hierarquia entre as duas espécies humanas no âmbito das sociedades domésticas ou, dito de outra forma, de consagrar a igualdade entre homem e mulher novamente. Destarte, tal opção linguística constituiu um esforço de fazer frente ao patriarcalismo nos costumes brasileiros e, portanto, nada diz respeito à dicotomia entre heteroafetivos e homoafetivos. Inclusive, caso compreenda-se de acordo com essa última dicotomia, estar-se-ia a fazer “rolar a cabeça” do art. 226 em virtude de um parágrafo extremamente restritivo desse tipo. Outrossim, o ministro labora suas afirmações no sentido de defender a identidade constitucional entre os conceitos de “entidade familiar” e “família”. Nesse quadrante, quando o legislador utiliza a terminologia “entidade familiar” não pretendera diferenciá-la de “família”, tanto quanto não pretende designar a existência de uma diferença jurídica ou hierarquia entre essas, não existindo, pois, uma “subfamília”. Isso posto, assimila o emprego do fraseado “entidade familiar” como sinônimo perfeito de “família”.
Federal não proscreve a formação de família por pares do mesmo sexo. Mesmo porque, nos termos utilizados pelo relator, tem-se: “não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um legítimo interesse de outrem” , o que, notadamente, não ocorre na situação analisada. Diz-se isso, pois, como visto, trata-se da equiparação das pessoas independente de preferência sexual e, é certo, não há de se falar num direito dos heteroafetivos a sua não equiparação com os homoafetivos, haja vista que o simples fato de ser heterossexual não coloca ninguém num patamar superior.
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No mais, seja no que tangencia à união estável ou ao casamento civil, a Constituição
Acresce-se, ainda, em se tratando do direito à adoção, que se esse pode ser exercido tanto por uma só pessoa adulta sem que se faça distinção ou menção ao estado civil dessa, do mesmo modo, não deve ser feita diferenciação se o adotante é hétero ou homoafetivo. Nesses termos, em sede de conclusão, a decisão, compreendendo que casais homossexuais também poderiam configurar uma “entidade familiar”, estendeu todos os efeitos da união estável àqueles casais. Cumpre asseverar, novamente, que dentre esses efeitos, incluise o direito previsto no art. 227, §5º, da Constituição Federal, que é o direito da adoção. Por fim, cabe destacar que os ministros Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso, da mesma maneira as ministras Cármen Lúcia e Ellen Gracie concordaram e seguiram o entendimento do ministro Britto, no sentido de reconhecer a procedência das ações para conferir, como dito, a interpretação conforme à Constituição Federal com a afã de excluir qualquer compreensão que configure um empecilho para o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar do art. 1.723 do Código Civil, inclusive, atribuindo-lhes efeito vinculante. Contudo, convém o registro de que, em que pese todos os votos tenham seguido a decisão do relator, não houve consenso absoluto entre as fundamentações. Diz-se isso pois, os Ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso apresentaram algumas divergências em suas alegações quanto à fundamentação do relator, confluindo-se na cognição de que não seria possível enquadrar a união homoafetiva nas figuras constitucionais de família. Nada obstante, reconheceram que essa união seria possível na qualidade de uma nova formação de entidade familiar. Ainda, de acordo com o ministro Mendes, a restrição feita entrou em conformidade com o seu receio de desempenhar competências legislativas dentro do judiciário.
4 ANÁLISE DA FUNDAMENTAÇÃO À LUZ DAS TEORIAS DOS DIREITOS
À vista do aludido, é fácil perceber a predominância da Teoria Liberal dos Direitos Fundamentais (também denominada civilista – bürgerlich) nas alegações dos votos. No mais, antes de revelar o ponto de convergência entre a Teoria Liberal e a fundamentação da ADI nº 4277, vale, para fins didáticos, uma breve explanação da corrente doutrinária supramencionada. Trocando em miúdos, essa teoria abarca o conceito de liberdade negativa, melhor dizendo, a pessoa humana dispõe de livre-arbítrio, pois, é ser independente, autônomo e responsável pelo seu destino . Sendo assim, a tese em pauta implica numa construção jurídico261
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FUNDAMENTAIS
dogmática que repudia, em regra, a intervenção do Estado nas decisões do particular. Embora, a interferência estatal pode ser considerada cabível e coerente se for atrelada à justificativa proporcional e, via de consequência, impor os desígnios do princípio distributivo e ônus argumentativo. No caso concreto, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a “orientação” sexual é um atributo da autonomia da vontade. Também, respaldou-se nos direitos fundamentais à intimidade e vida privada para consolidar a decisão . Logo, uma hipotética intervenção estatal é incoerente e arbitral porque adentra no direito constitutivo familiar dos particulares, em razão da sexualidade. Por isso, com intuito de negar a desigualdade jurídica, a Constituição Federal não veda a união estável homoafetiva. Em consonância, o constituinte optou por escolher a omissão proposital como técnica legislativa de regulamentação da matéria. Dessa forma, o artigo 3º, IV, Constituição Federal, além de prever a repulsa ao preconceito por questão de gênero, também engloba a discriminação em razão do exercício da sexualidade . É dizer, o legislador não faz referência ao modo de utilizar o aparelho sexual (opção pelo não-uso, onanismo ou emparceirado). Com efeito, o respeito à Constituição Federal se torna efetiva quando cada indivíduo desfruta do livre-arbítrio para estabelecer relações amorosas com outros do mesmo sexo ou não, sem ter seus direitos ceifados. A afirmação feita se torna evidente em várias passagens do documento alvo de elucidação. Nesse diapasão, a liberdade, por si só, é pregada com equiparidade a um bem personalíssimo. Ademais, é considerado inadmissível penetrar na esfera da autonomia de vontade com escopo de mitigar o livre-arbítrio do ser humano . No entanto, quando se afirma que a teoria mais utilizada fora essa, o que se enaltece, claramente, é a compreensão da liberdade de uso do aparato sexual como livre-arbítrio, não sendo conveniente ou sequer cabível uma intervenção estatal nessa seara. Contudo, há que se
exemplo, as suas ferramentas metodológicas, bem como outros dos seus institutos. Assim sendo, merece menção que o Supremo Tribunal Federal não utilizou a Teoria Liberal dos Direitos Fundamentais de forma adequada, de modo que nessa ocasião cabem duas críticas acerca da sua aplicação. Acerca da primeira observação, a tese dos direitos jusfundamentais em questão é consistente na dogmática jurídica e preza pela separação rígida entre norma-parâmetro e objeto de análise. Visto por esse viés, os votos falharam na utilização deste recurso metodológico. Isso porque, muito embora seja um entendimento que contrarie a Constituição Federal vigente, 262
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observar que a teoria liberal não cinge a esse ponto, vez que não se pode deixar de lado, por
sendo essa considerada em sua globalidade, há de se anotar que o texto da norma objeto (art. 1723 do Código Civil) encontra compatibilidade com a norma parâmetro, o 226, §3º, Constituição Federal , posto que ambas fazem referência clara a "homem" e "mulher". Assim sendo, caso fossem observadas as ferramentas metodológicas que a teoria em comento traz impreterivelmente em seu bojo, notadamente não haveria de se falar em inconstitucionalidade - ao menos não se fossem utilizadas as normas citadas como parâmetro e objeto. Quanto à segunda crítica, uma das balizas da corrente liberal é o princípio da separação entre legiferação (Rechtssetzung) ou divisão do exercício do poder . Em contrapartida, verificou-se que a decisão, de forma diametral, fugiu desse ideal e pregou o ativismo judicial. Inclusive, no que tangencia esse aspecto, convém relembrar o posicionamento do ministro Gilmar Mendes ao negar seguir a tese argumentativa do relator e demais votantes, elucidando que o papel dos operadores do direito não é equiparado ao do legislador positivo. Em suma, a decisão englobou a seara da Teoria Liberal dos Direitos Fundamentais e desencadeou uma análise jurídica mais racional e coerente – respeitando as questões de gênero e exercício da sexualidade. Constata-se tal afirmativa uma vez que, o Supremo Tribunal Federal entendeu não caber ao Estado a interferência na esfera da vida privada dos casais homossexuais. Desta feita, consagrando o livre-arbítrio dos indivíduos no tocante à escolha sexual e sua merecida igualdade em relação as entidades familiares heteroafetivas. No mais, a autonomia em discussão consiste no direito potestativo (situação jurídica/ direito subjetivo) que se concretiza apenas por meio de institutos (Constituição Federal e Código Civil), assim a Teoria Institucionalista também está, de forma implícita, ligada ao caso.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
tampouco posiciona determinada entidade familiar em hierarquicamente superior a outra. Dito isso, as uniões estáveis homoafetivas, alvo da ADI nº 4277, a partir da vigência do art. 266, Constituição Federal, tiveram nítida proteção constitucional. Assim, como Poder Legislativo poderia ter regulamentado a situação, com legitimidade popular atribuída pelo voto, a aplicação do controle direto de constitucionalidade neste caso se mostra desnecessária e onerosa – desgaste de tempo e dinheiro para ajuizar uma ação perante o Supremo Tribunal Federal. Adentrando no estudo dos votos, os argumentos suscitam frequentemente os preceitos de liberdade negativa, assim como também, o caráter independente e autônomo do ser humano 263
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A Constituição Federal não elenca exaustivamente os modelos de família nem
protegido pelo ideal de livre-arbítrio. Com efeito, o resultado da decisão coincidiu com o pregado pela Teoria Liberal dos Direitos Fundamentais. Apesar disso, a leitura da fundamentação dos votos evidencia a aplicação inadequada da Teoria Liberal dos Direitos Fundamentais. Isso se deu em razão dois motivos: (a) desrespeito a separação rígida entre norma-parâmetro e objeto; e, (b) transgressão ao princípio da separação entre legiferação (rechtssetzung). Tanto o elemento (a) quanto o (b) são diretrizes importantes para a Teoria Liberal dos Direitos Fundamentais, com efeito, não foram observados na utilização desse recurso metodológico. Se os elementos citados fossem destacados na fundamentação, não haveria de se falar em inconstitucionalidade da norma-objeto (art. 1723, Código Civil), muito pelo contrário, a norma-objeto é compatível com a norma-parâmetro (art. 226, §3º, Constituição Federal). Ademais, essa informação não confronta a constitucionalidade das uniões estáveis homoafetivas. Em decorrência disso, o voto do relator pregou, equivocadamente, o ativismo judicial. Por fim, consta ressaltar o aspecto da unanimidade do julgamento em comento. Mesmo evidenciando concordância de votos, a aludida ADI teve divergências internas substanciais. Isso porque a fundamentação dos votos dos ministros, apesar de chegarem a uma mesma conclusão, destoaram entre si. Embora, como o ordenamento jurídico brasileiro volta seu olhar apenas para o resultado, o voto do relator foi seguido pelos demais ministros com pseudo unanimidade.
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AN ANALYSIS OF THE JUDGMENT OF THE ADI Nº 4.277 ACCORDING TO THE LIBERAL THEORY OF FUNDAMENTAL RIGHTS
In judgment of ADI nº. 4277 and ADPF nº. 132, the Federal Supreme Court applied the Liberal Theory of Fundamental Rights deciding on the constitutionality of the stable homoafetive union. Therefore, the general objective of this work is to analyze the decision mentioned from the point of view of Fundamental Rights Theories, with emphasis on Liberal Theory. With regard to the specific objectives, it is necessary to examine the vote of the Minister Relator and to investigate the offenses of the national legal order. As for the typology of the research, it is used the 265
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ABSTRACT
inductive method, being, on the nature, a case study, backed by a documentary-bibliographical jurisprudential analysis. Keywords: Family. Liberal Theory of Fundamental Rights. Equality.
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ADI-4277. ADPF-132.
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GÊNERO E VIOLÊNCIA: UMA ANÁLISE DA (IN)EFICÁCIA DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA DA LEI MARIA DA PENHA Brenda Borba dos Santos Neris 1
RESUMO O presente ensaio retratará uma discussão jurídica recorrente desde a criação da Lei 11.340/2006, também conhecida como Lei Maria da Penha, no que tange a eficácia das suas medidas protetivas de urgência. Contudo, objetivando uma análise completa do tema proposto, serão abordados conceitos iniciais como “gênero” e “violência”, para que, após essas considerações iniciais, possam ser averiguadas as questões concernentes à temática da Lei Maria da Penha e as medidas que visam proteger a vítima de violência de gênero. Palavras-chave: Lei maria da penha. Violência. Gênero. Medidas
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Graduanda de Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
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protetivas de urgência.
1 INTRODUÇÃO
Muito se tem discutido sobre a atuação legislativa e judiciária na proteção das vítimas de violência de gênero, entretanto, ainda há um longo caminho a percorrer e um futuro tenebroso pela frente. Logo, a discussão sobre a temática, apesar de estar nos holofotes, ainda não se completou. Para discutir um tema como violência de gênero, é necessário se ter em mente conceitos importantes, como o de gênero e violência isoladamente, para que, após uma análise desses dois assuntos, o tema seja conjugado até seu ponto principal. Somente assim será possível ter uma visão ampla e composta da necessidade de proteção e combate a esse tipo de violência e, desse modo, possa ser analisada cuidadosamente a influência da Lei Maria da Penha nessa questão. Portanto, o artigo objetiva a análise da eficácia da Lei Maria da Penha sobre o ponto de vista dos conceitos preliminares de violência e gênero, partindo para um tema mais específico da violência de gênero, para, finalmente, analisar as medidas protetivas da Lei. Tais medidas protetivas têm como finalidade proteger as vítimas de violência doméstica, como dispõe a legislação específica, entretanto, sua eficácia no combate a este tipo de violência deve ser compreendida não apenas como a eficácia da norma, como será discutido adiante, mas na obtenção de resultados. Dessa forma, o artigo traz também bases teóricas e analíticas de dados para embasar sua discussão e poder chegar ao tema proposto, ou seja, deduzir a eficácia das medidas protetivas de urgência da Lei Maria da Penha.
2.1 Gênero “Ninguém nasce mulher” conforme disse Simone de Beauvoir, ser mulher é construção. O processo de formação de caráter feminino, durante séculos, foi torturante para as mulheres, fato que incentivou a perpetuação da violência contra o gênero feminino. Em seu livro, Beauvoir discute sobre a natureza das diferenças entre homem e mulher. Para tal, ela responsabiliza alguns acontecimentos durante a infância, assim como, a interpretação dada pela sociedade a essas situações. Em um primeiro momento, ela determina 268
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2 CONCEITOS: GÊNERO E VIOLÊNCIA
que até o fim do desmame, a orientação masculina e feminina não existiria, pois, os dois sexos seriam tratados igualmente, ou seja, com as mesmas condições e atenção. A partir do rompimento da amamentação, as crianças seriam orientadas pela sociedade a agir de determinadas maneiras. Por exemplo, o menino seria direcionado a não chorar e encaminhado ao desapego, enquanto as meninas continuavam a ser acalentadas pela mãe. Dessa forma, o pai – vendo a necessidade de tornar o filho um homem – ensina-o as diferenças entre meninas e meninos, fornecendo, por vezes, noções equivocadas, como a de superioridade ao “urinar de pé”. Baseado na ideia de ciclo, as meninas são reavivadas da ideia de feminilidade pelas mães. Enquanto os meninos descobrem em seu sexo seu alter ego, as meninas descobrem nas bonecas o que se é esperado delas. Ainda assim, para Beauvoir, a real hierarquia dos sexos é encontrada na experiência familiar e nas imagens perpassadas tradicionalmente. Já na concepção de Butler (2003, p. 26), diferentemente de Beauvoir, exprime que as acepções culturais consistem no próprio sexo, não no gênero. Portanto, para a autora, os que não seguissem o sexo imposto, seriam subversores da ordem compulsória, onde gênero e sexo tendem a se confundir. “Não há identidade de gênero por trás das expressões de gênero; aquela identidade é, pela performance, constituída pelas próprias ‘expressões’ consideradas seus resultados” (BUTLER, 2003, p. 48). Em seu pensamento, portanto, a autora retrata o sexo como uma construção social, exatamente como a ideia de gênero, de forma que tais conceitos não precisariam ser estudados em separado. No mundo contemporâneo, a conceituação separada de gênero e sexo é vital para que as diferentes orientações sexuais possam ser definidas e contempladas em seus vários aspectos. Para tanto, um conceito de gênero e sexualidade como iguais, não compreenderia, por exemplo, um homem transgênero – de que é exemplo uma pessoa transsexual que foi designada mulher ao nascer, mas que se identifica como homem – que se orienta pela sua sexualidade “original”,
destaque, é uma ideia, contudo, de difícil aplicabilidade pela ciência não considerar sexo como algo imutável. Portanto, definir o gênero e o sexo sem distinção, acarreta em uma restrição em relação à que não se identifica com seu sexo e/ou gênero, de modo que retrocederia à ideia de binarismo sexual, que a própria a autora tenta subverter, onde um sexo só se atrairia por outro a ele oposto. No âmbito jurídico, para Maria Helena Diniz, “a transexualidade constitui a condição sexual da pessoa que rejeita a sua identidade genética e a sua própria anatomia, identificando [a si próprio] psicologicamente com o gênero oposto” (DINIZ, 2002, citado por TARTUCE, 269
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ou seja, que possui afetividade voltada para homens. Apesar de ser um pensamento que merece
2009). Dessa forma, confundir os conceitos de sexo e gênero acarreta em separação social, pois nos casos de transexualidade, a pessoa não se identifica com o gênero que lhe é imposto (homem ou mulher), mas pode aceitar sua orientação sexual de acordo com sexo (masculino ou feminino).
2.2 Violência
É necessário, portanto, caracterizar a violência em seus diversos pontos de vista. Para um ponto de vista sociofilosófico, Hannah Arendt afirma que alguns conceitos, apesar de similares, não podem ser tratados como iguais. São conceitos semelhantes: poder, força, vigor, violência e autoridade. A violência, cerne da questão no momento, tem caráter instrumental, podendo ser entendida como um “recurso” do poder. Em vista disso, esses dois conceitos distintos se confundem em diversas vezes, como destaca Arendt, “o poder e a violência, embora sejam fenômenos distintos, geralmente apresentam-se juntos. Onde quer que se combinem, o poder é, conforme verificamos, o fator fundamental e predominante.” (p. 33). Tal conceito é indispensável quando estudada a perspectiva da violência de gênero, pois as relações de poder e dominação servem como fator determinante na submissão de um gênero perante outro. Já numa perspectiva contemporânea, a OMS (Organização Mundial da Saúde) distingue a violência em três tipos: a interpessoal, a contra si próprio, e a coletiva (social ou urbana). A violência de gênero no âmbito doméstico, como costuma delimitar a Lei Maria da Penha, está inclusa no primeiro tipo de violência, a interpessoal, e pode ser tanto física quanto psicológica e praticada por diversas classes sociais.
Quanto à discussão sobre violência de gênero, alguns autores, como por exemplo Saffioti, acreditam que esse tipo de violência não deve ser apenas vinculado a ideia de gênero, mas deve abranger outras relações de poder, acrescentando a isso violência de classe e racial. Apesar de achar interessante a abertura da conceitualização, pois a violência de gênero tem, por certo, em seu escopo, “uma forma de olhar o outro como diferente e o diferente passa a ser negativo”, prefere-se, por questões de tornar sucinto o debate, aplicar a violência de gênero em sentido estrito, ou seja, a violência decorrente da superioridade masculina sobre a feminina.
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3 DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO
Além disso, o uso da expressão “violência doméstica” também é muito utilizando quando referente à Lei Maria da Penha. Entretanto, escolheu-se pelo não uso exclusivo dessa nomenclatura, haja vista estar ligada muito mais a violência homem-mulher, contudo, como já trabalhado anteriormente, gênero não pode ser confundido com sexo, de forma que esta denominação não será empregada recorrentemente no presente trabalho. No mais, já se foi observado na jurisprudência e nas discussões doutrinárias – apenas ainda não muito consolidada – que a Lei Maria da Penha não embarca apenas as mulheres, mas que podem ser analogamente aplicáveis a indivíduos transexuais, pela sua vulnerabilidade, decorrente do gênero2. Assim sendo, analisar-se-á o conceito a partir da distorção do homem como proprietário da mulher, que se perpetuou incansavelmente ao longo dos anos. Para tal, é importante ter em mente as palavras da doutrinadora Maria Berenice Dias: “A sociedade protege a agressividade masculina, constrói a imagem de superioridade do sexo que é respeitado por sua virilidade. Afetividade e sensibilidade não são expressões de masculinidade” (2007, p 16 citado por BUZZO, 2011, p 19). Esse conceito de violência de gênero foi difundido nos anos 70 e começou a ser estudado pelas correntes feministas, chegando a três teorias básicas: dominação masculina, dominação patriarcal e dominação relacional. As três correntes são bem convergentes, contudo, deve-se destacar qual a base teórica utilizada por cada uma das ideias. A corrente que traduz a violência de gênero como dominação masculina, “entende a violência contra as mulheres como consequência de valores acerca da dominação masculina que é efetuada reiteradamente por homens e mulheres” (MARILENA CHAUÍ, 1985, p. 36 citado por JARA, 2014, p. 19). Assim sendo, a teoria decorre da ideia de superioridade, contudo, como destacado na citação, não precisa ser praticada apenas pelos homens, de forma que as próprias mulheres podem ter papel ativo. A teoria da dominação patriarcal se funda na ideia marxista de patriarcado. A socióloga
a essa situação não por consentimento, mas pelo fato de serem forçadas a ceder, vez que não tem poder suficiente de consentir”. (JARA, 2014, p. 19) Já para Gregori, a violência de gênero deve ser tratada do ponto de vista conjugal, ou seja, que preceda de uma relação amorosa. Em seu livro Cenas e Queixas, a autora tenta retratar a violência de gênero se baseando na relação matrimonial. (1989)
2 BRASIL, TJDFT. RES 2017.16.1.007612-7, da 1ª Turma Criminal. Brasília, DF, DJe 20 de maio de 2018.
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Saffioti, ao inseri-la no Brasil, entendeu que “as mulheres vítimas de violência, são submetidas
Para tanto, é fácil perceber que a proteção dada pela Lei Maria da Penha não se define apenas pelo ‘gênero’. Utilizando-se da última teoria, se baseou na relação conjugal – aqui interpretado como quaisquer relacionamentos amorosos – para proteger a vítima de violência de gênero. Isso porque o ordenamento jurídico não poderia “favorecer” as mulheres, criando espécies criminais próprias, devido ao princípio da isonomia.3 Portanto, a violência de gênero que se “protege” na Lei Maria da Penha, tem com base teórica a terceira corrente, a da dominação relacional. Dessa forma, só é protegida pela Lei Maria da Penha, a mulher que é agredida por seu parceiro num contexto de violência na unidade familiar. Entretanto, a delimitação de unidade familiar é vital para que a Lei Maria da Penha possa ser aplicada de forma “correta”, como se verá em seguida.
4 DA LEI 11.340/2006: LEI MARIA DA PENHA
O processo de redemocratização a partir de 1985 trouxe algumas mudanças no âmbito do combate à violência doméstica4. Isso se deu, principalmente, pela ratificação de tratados internacionais com o intuito de coibir as práticas de violência doméstica contra as mulheres, como por exemplo a Convenção Interamericana para “Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher”, também conhecida como Convenção de Belém do Pará de 1994. Contudo, a Constituição Federal de 1988 já trazia em seu texto a proteção no ambiente familiar, dispondo no §8º do art. 266: “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”. Portanto, certo é que já era garantia constitucional, a proteção da entidade familiar. Nesse ínterim, é importante ressaltar que no mesmo artigo, nos §3º, 4º e 5º, a Constituição Federal de 1988 rompe com as ideias tradicionais de casamento, considerando
formada por qualquer dos pais e seus descendentes também são abarcadas. Dessa forma, a Constituição Federal de 1988, ao fazer menção ao “ambiente familiar”, não se limita apenas a uma família de pai, mãe e filhos, mas se abre a novas ideias de famílias, como as de mãe/pai
3 A discussão poderia ser levada mais a fundo, haja vista que este argumento perde sua força a partir do crime de feminicídio. 4 Devido a época não tratar de questões como gênero da forma que é entendido e disseminado hoje, aqui será posto violência doméstica como era assim compreendido.
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para efeito de entidade familiar a merecer proteção estatal, a união estável e a comunidade
solteiros, por exemplo. Esse fato reforça a ideia defendida no presente trabalho, da Lei Maria da Penha em seu aspecto de violência de gênero. Não obstante, ressalva-se a necessidade de avanço no critério de definição de família que mereça atenção no âmbito jurídico e legislativo, haja vista que não há, na Constituição Federal de 1988, disposição sobre famílias homoafetivas ou as novas formas familiares que vem surgindo com o passar do tempo. Nesse ponto, apesar de entender que a Constituição Federal de 1988 não seja um documento que deva ser recriado com frequência, esta deve ser abrangente o suficiente para que não se torne defasado. Desse modo, a opção legislativa de definir seio familiar como “homem e mulher” não se mostra inteligente, ainda que naquela época fosse o mais comum. Traçadas as críticas pessoais, a questão é controversa e não se acha solução fácil. Contudo, deve-se admitir que muito foi feito em pouco tempo. Com diversos tratados internacionais celebrados, o Brasil deu longos passos até a chegada da Lei Maria da Penha, tendo essa, inclusive, feito menção à Convenção de Belém do Pará e às Convenções sobre a Eliminação de Todas as Formas de Descriminação contra as Mulheres. Isso porque tais convenções impunham sanções ao Brasil em caso de descumprimento. O relato comum da Dona Maria da Penha se tornou famoso pela farmacêutica não aceitar a impunidade do marido que, no dia 29 de maio de 1983, a alvejou com o tiro na coluna disparado por uma espingarda e, após o retorno do hospital, a eletrocutou por uma descarga elétrica durante o banho, fruto de mais uma agressão física. A demora processual, como era de praxe, aumentou a fama do caso que ganhou repercussão mundial, ao ponto do Centro pela Justiça e o Direito Internacional e o Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos das mulheres formalizarem uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Unidos (DIAS, 2008 citado por JARA, 2014 p. 34), fato que acarretou uma condenação internacional no ano de 2001.
responsabilização por negligência e omissão frente à violência doméstica, sendo-lhe recomendada a adoção de diversas medidas necessárias ao combate da violência doméstica”, foi a sanção aplicada ao Brasil pelo descumprimento dos termos estabelecidos. Dessa forma, foi criada a Lei Maria da Penha, a partir da ineficiência do Brasil no combate a este tipo de violência. (KNIPPEL, 2010, p. 136 citado por JARA, 2014, p. 35) São objetivos da Lei Maria da Penha, “(...) a repressão da violência doméstica e familiar, mediante a adoção de uma política criminal que agrava a consequência jurídico-penal
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O “pagamento de 20 mil dólares a título de indenização à Maria da Penha, e a
em desfavor do agressor, a prevenção, a assistência à mulher vítima de violência”. Já o modo de efetivação de tal objetivo se dá pelo uso de:
(...) entes federativos, bem como ações governamentais, seja pela capacitação de polícias especializadas e capacitação de seus agentes, seja por campanhas educativas, além de visar à proteção da mulher, que se dá por ação policial voltada à sua proteção e dos filhos sob sua dependência, bem como à aplicação das medidas protetivas de urgência previstas na referida Lei. (GUIMARÃES; MOREIRA, 2011, citado por JARA, 2014, p. 39-40 grifo nosso)
Desse modo, foram estabelecidas maneiras de proteção, sendo as duas mais famosas: a capacitação de políticas especializadas, também conhecidas como “Delegacia da Mulher”; e a utilização de medidas protetivas de urgência. Apesar da eficácia da Delegacia da Mulher também ser bem criticada, irar-se-á discutir no próximo tópico a respeito da eficácia das medidas protetivas de urgência.
5 DAS MEDIDAS PROTETIVAS E SUA EFICÁCIA
Para a discussão do tema é preciso dividir o assunto em três partes. Primeiramente, definir o que são medidas protetivas de urgência e como são aplicadas na Lei Maria da Penha, após isso, procurar no âmbito jurídico o conceito de eficácia da norma, para, só assim, ser possível discutir a eficácia ou ineficácia das medidas protetivas. 5.1 Medidas protetivas de urgência
Penha, e têm como objetivo assegurar a manutenção da integridade física, moral, psicológica e patrimonial da vítima. Neste sentido, de forma conceitual, “(...) são aquelas que visam garantir que a mulher possa agir livremente ao optar por buscar a proteção estatal, em especial, a jurisdicional, contra seu suposto agressor.” (BALZ, 2015 p. 19 citado por SOUZA, 2009) Destarte, a nova Lei Maria da Penha se distancia das práticas anteriores nas quais ao haver denúncia (chamada de Termo Circunstanciado de Ocorrência, ou TCO), o agressor pagava uma cesta básica, prestava serviço comunitário e era “liberado”. Já hoje, o boletim de ocorrência tem capacidade de abrir uma investigação criminal, e a praticar os procedimentos 274
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As medidas protetivas de urgência estão dispostas no Capítulo II da Lei Maria da
comuns no âmbito criminal, como reunião de provas e depoimentos levados ao Ministério Público que representará a vítima na ação. Ressalta-se também a criação dos Juizados de Violência Doméstica os quais têm caráter específico para cuidar desses casos particulares. Os dispositivos que tratam das medidas vão do art. 18 até o art. 23. Os primeiros, dos arts. 18 ao 21, tratam das disposições gerais, ou seja, a forma correta de uso das medidas. Já os arts. 22 ao 24 dispõem sobre os tipos de medidas de urgência. Pela necessidade de detalhamento, serão analisados um a um. Primeiramente, o art. 18 dispõe sobre a necessidade de provocação do juiz para que este possa agir e aplicar a medida protetiva. A questão doutrinária não é pacífica, de modo que, para Dias, o juiz precisa ser provocado, pois a “adoção de providência de natureza cautelar ou satisfativa está condicionada à vontade da vítima” (citado por BALZ, 2015, p. 21). Dessa forma, se a vítima requerer a medida protetiva – que não precisa, por exemplo, ser peticionada – o juiz poderá então agir “de ofício”. No art. 19 está disposto que as medidas poderão ser concedidas pelo juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida. Tais medidas podem ser dadas de imediato, ou seja, independente de audiência ou manifestação do Ministério Público, devendo, apenas, esse ser comunicado. Além disso, com o requerimento do Ministério Público ou da vítima, o juiz poderá reavaliar a concessão da medida protetiva se entender necessário à proteção da ofendida, seu patrimônio e seus familiares, conceder outras mais apropriadas. Cabe ressaltar aqui que, diante do risco à integridade física da vítima, o Ministério Público pode pleitear medidas protetivas mesmo sem a expressa manifestação da vítima. (CARVALHO, 2010, citado por BALZ, 2015, p. 22) A prisão preventiva é disciplinada no artigo 20, de forma que, a qualquer tempo ou fase do inquérito policial ou da instrução criminal, poderá ser decretada pelo juiz de ofício, ou a requerimento do Ministério Público, ou ainda mediante representação da autoridade policial.
para que se subsista, assim como poderá ser decretada novamente se sobrevier razões que a justifiquem. Após essas disposições gerais, a Lei Maria da Penha trata de separar os tipos de medidas cautelares de urgência em duas categorias: das medidas de urgência que obrigam o agressor, ou seja, que vão ser voltadas a impedir algum comportamento dele, e das medidas de urgência dirigidas à ofendida, que serão direitos concedidos à ofendida, que poderão ser oferecidos sem prejuízo de outros tipos de medidas protetivas, isto é, concomitantemente.
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Entretanto, poderá ser revogada no curso do processo, caso o juiz verifique falta de motivação
Entre as medidas de urgência que obrigam o agressor estão: a não aproximação da vítima ou de seus familiares, o afastamento do lar, a proibição de contato com a vítima, suspensão ou restrição do porte de arma e frequentação de determinados lugares. Portanto, as medidas acima indicadas valem exclusivamente para o agressor, não podendo ser limitados os direitos da vítima de nenhuma forma, haja vista que tal lei tem como objetivo proteger a dignidade e fornecer uma vida normal à ofendida. Por exemplo, caso o agressor possua uma ordem de restrição e frequente a mesma Igreja que a vítima há anos, esta não pode ter seu direito de continuar sua convivência social cerceado em decorrência do agressor ser pastor da mesma Igreja, dessa forma, o agressor deverá obedecer a ordem de restrição, não estando no mesmo lugar que ofendida. Desse modo, devese ter em mente que o direito da vítima deve ser sempre resguardado, enquanto o defensor deverá se ajustar às medidas de proteção impostas judicialmente. As medidas de urgência dirigidas à ofendida, ao contrário de limitar seus direitos, visam reforçar sua proteção, por exemplo, encaminhando a ofendida e seus dependentes à programas oficiais ou comunitários de proteção ou de atendimento; determinando a recondução da ofendida e de seus dependente ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor, determinando o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos; e determinando a separação de corpos.
5.1 Eficácia da norma
A questão da eficácia tem uma conotação diferente no âmbito jurídico. Assunto muito trabalhado em livros iniciais de direito, separa a norma jurídica em um tripé, onde a validade é vista por três dimensões. Para Reale, por exemplo, os três aspectos são: validade formal (vigência), validade social (eficácia ou efetividade), e a validade ética (fundamento).
ou seja, a lei deve ter sido estabelecida por um órgão que possua competência para tal, e deve também seguir os ritos necessários para que seja considerada válida. Desse modo, uma lei elaborada por um órgão judiciário não possui validade, pois compete ao Poder Legislativo a elaboração de leis. Assim também, há leis que são de competência exclusiva de determinados entes, por exemplo a União, que possui própria sua área de atuação (Direito Civil, Direito Comercial, Direito Processual e Financeiro), não cabendo à Assembleia Legislativa Estatual elaborar leis a respeito da matéria constitucional.
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Sucintamente, a vigência da lei refere-se a sua forma de inserção no mundo jurídico,
O campo do fundamento se refere a justificativa da norma, normalmente é posto como o terceiro aspecto da norma, após sua vigência e eficácia, ou seja, a correspondência da norma com os sentimentos de justiça da comunidade que rege. (DINIZ, 2008, p. 406) Por fim, o plano da eficácia, centro da discussão, “(...) diz respeito à questão de se saber se os seus destinatários ajustam ou não seu comportamento, em maior ou menor grau, às prescrições normativas, isto é, se cumprem ou não os comandos jurídicos.” (DINIZ, 2008, p. 404). Ou seja, a eficácia da norma, nada mais é que a sua prática no cotidiano dos indivíduos, de forma que uma norma pode ser vigente, pode ter fundamento, contudo pode não ser eficaz, devido a não ter sido “aderida” socialmente. Dessa forma, Tércio Sampaio Ferraz traz que “a norma será eficaz se tiver condições fáticas de atuar, por ser adequada à realidade e condições técnicas de atuação, por estarem presentes os elementos normativos para adequá-la à produção de efeitos concretos” (citado por DINIZ, 2008, p 404). 5.3 Eficácia das medidas protetivas
No conceito de validade da norma jurídica, a Lei Maria da Penha atinge todos os aspectos necessários de validade, o que abrange também o campo da eficácia, pois teria real condição de produzir efeitos concretos na sociedade. Entretanto, apenas a base teórica não é suficiente para trazer à tona a real eficácia da utilização das Medidas Protetivas de Urgência. O próprio Senado, inclusive, reconhece que “a criação de um marco legislativo, por si só, não se mostra efetiva na alteração de uma dada realidade social” (BRASIL, 2016) Para que se possa analisar como as medidas protetivas estão sendo aplicadas, faz-se necessário expor os dados estatísticos fornecidos por entidades que trazem relatórios sobre tais fatores. Por exemplo, segundo o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), em um relatório sobre a
concedidas às vítimas da violência enquadrada na Lei Maria da Penha. Nessa perspectiva, em um raciocínio simples, é fácil perceber que o aumento de medidas provisórias demonstra uma ineficácia da Lei Maria da Penha em si, entretanto o CNJ noticia a “eficácia” do sistema judiciário em combater a violência, usando o argumento que os casos “baixados”, ou seja, resolvidos judicialmente, estão em quantidades superiores aos casos novos. Contudo, esse tipo de raciocínio é olhar para um processo e ver apenas um número que precisa ser atingido, sem que haja nenhuma análise psicológica das condições da vítima e do
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Aplicação da Lei Maria da Penha, relatou que subiu 21% a quantidade de medidas provisórias
agressor pós-processo realizadas pelo CNJ, ou requeridas de qualquer entidade de que tenha capacidade para tanto. Uma crítica à medida protetiva que obriga o agressor e restringe ou suspende seu porte de arma também se faz necessária, haja vista que, além de ser pouco usada, é praticamente inútil no Brasil. Segundo um relatório apresentado no XXII Seminário de Iniciação Científica da PUC-RIO, a cada 22 pedidos de restrição do porte de arma, apenas 1 é deferido judicialmente. Entretanto, ainda que o juiz tenha a intenção de conceder a medida protetiva, as armas que são usadas pelos agressores no Brasil não têm legalidade, o que torna a medida um peso morto. Isto porque na concessão da medida, o órgão de controle de armas deve ser comunicado para que seja efetuada a restrição ou suspensão do porte, sendo que quase 50% das armas usadas no Brasil são ilegais5. Em contrapartida, Saffioti retrata a eficácia de medidas que podem ser tomadas que são realmente eficazes. Ela dá como exemplo as cidades do Rio de Janeiro (RJ) e São Gonçalo (RJ), que anteriormente à Lei Maria da Penha, já vinham deixando de empregar as penas alternativas (como doação de cesta básica), para aplicar penas pedagógicas, nas quais os agressores eram encaminhados para grupos assistenciais de mulheres vítimas de violência e atuavam como voluntários. Segundo a autora, a taxa de reincidência era irrelevante, de tão baixa. Em pelo menos duas cidades do Brasil – Rio de Janeiro (RJ) e São Gonçalo (RJ) – fizeram-se acordos com juízes, tendo estes alterado suas sentenças em direção ao ensinamento dos homens violentos, obrigando-os seja a frequentar grupos de reflexão supervisionados por equipes multidisciplinares de profissionais feministas homens (RJ), seja a prestar serviços em associações destinadas ao encaminhamento de mulheres vítimas para órgãos do Estado ou ONGs, capazes de auxiliá-las. Penas alternativas como estas, de caráter pedagógico, podem oferecer uma expectativa de
desenvolve trabalho bastante interessante com agressores, discutindo suas condutas violentas em relação a suas companheiras. Seu sucesso tem sido enorme, uma vez que o “índice de recaída” (homens que voltam a perpetrar violências) é irrelevante. (SAFFIOTI, 2001, p.122-123)
Dessa forma, medida protetivas de urgência são medidas paliativas, que de fato não são realmente eficazes no combate à violência doméstica ou de gênero. Paliativo é, pois, algo
5 G1, Globo. Quase metade das armas em circulação no Brasil é ilegal, diz ONG na Câmara. Brasília, 2011
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mudança das relações de gênero. O Noos, ONG situada na cidade do Rio de Janeiro,
que alivia ou melhora momentaneamente, mas que não é capaz de solucionar o problema, inclusive, em sua origem latina, a tradução de paliativo é “disfarçar, encobrir”. Essas medidas, por mais que tenham como objetivo prevenir a mulher de ser mais ofendida pelo agressor, não tem resposta social efetiva. A clareza de sua ineficácia se deu com a edição da lei que torna crime o agressor que não respeitar a medida protetiva imposta contra ele. A necessidade de criar leis no Brasil é a principal forma legislativa de “tapar buraco”, ao invés de encarar o problema em sua pior face, ou seja, a face em que se precisa aniquilar a ideia de superioridade de gênero apregoada na sociedade. Esta eliminação seria feita com a obrigatoriedade de agressores frequentarem ONGs voltadas a cuidar de vítimas de violência doméstica e de gênero como forma mais urgente de sanar o problema. Ainda assim não é a forma mais eficiente. A eficiência só será vista na educação dos homens quanto a igualdade de gênero. Essa é a medida mais segura de que o indivíduo crescerá consciente de seu papel na sociedade como um ser igual a qualquer outro. Por meio de ensino desde o básico será possível relatar como a sociedade é mais eficiente quando a educação se torna a solução do problema, e não a punição.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Portanto, o entendimento aqui apresentado foi amplo e não se limitou apenas a discutir as medidas protetivas, mas tudo que a envolve, considerando então, a violência de gênero como fator principal na perpetuação da “violência doméstica”, e seu combate pela Lei Maria da Penha. Dessa forma, ao trazer em seu propósito a verificação de conceitos importantes, o artigo delimitou a aplicação das definições tanto da violência de gênero, quanto no âmbito da Lei Maria da Penha.
demonstrar como o papel do gênero tem sido utilizado para perpetuar a violência, ou seja, como a ideia de superioridade tem sido usada de modo a subjugar aqueles que, devido ao gênero, são vítimas de todas as formas de agressão. No sentido da Lei Maria da Penha, a questão do gênero é usada para limitar sua aplicação, como demonstrado nos primeiros artigos da legislação, saindo da ideia de apenas homem-mulher, para embarcar ideias mais inclusivas, se baseando no conceito de vulnerabilidade.
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No sentido de violência de gênero, tem no seu conceito, sua razão de ser para
Analisados todas as problemáticas iniciais, o artigo se voltou para a Lei Maria da Penha, e sua história, concluindo que os avanços obtidos pelo Brasil desde a redemocratização foram significativos, o que inclui a Lei Maria da Penha. Assim, também, como foram analisadas as medidas protetivas e suas categorias, para por fim, examinar se a sua aplicabilidade é, ou não, eficaz. A dedução a partir de alguns dados fornecidos por entidades judiciais foram estudadas sob um ponto de vista crítico, de modo que não se baseou apenas na coleta dos mesmos, mas em sua interpretação no sentido da sua eficácia A partir da verificação do que é eficácia da norma, concluiu-se que a norma possui todos os aspectos de validade possíveis, portanto, em sentido jurídico ela se perfaz como norma eficaz. Entretanto, em sentido de resultados, as medidas protetivas não solucionaram o problema, e como dito anteriormente, se mostraram paliativa, escondendo a realidade obscura de uma sociedade que não discute gênero e violência. De forma que, chegou-se à conclusão de que a maneira mais eficaz de combater a violência se dá por meio da educação, desde sua base, para que em seu crescimento o indivíduo tenha consciência social e respeito pelo próximo. Por meio de aulas e atividades lúdicas infantis que condicionem as crianças a se tornarem adultos desconstituídos de preconceitos. Só assim será possível o combate efetivo à violência de gênero.
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GENDER AND VIOLENCE: AN ANALISE ABOUT THE (IN)EFFICIENCY OF THE
ABSTRACT The current essay will portray a legal discussion recurrent since the 11.340/06 Law was criated, also know as Maria da Penha Law. However, objectifying a complet analise of the proposed theme, will be approach some initials concepts as “gender” and “violence”, in order to, afterthis initials considerations, can be ascertained the issues concerning the proposed theme, this is, the Emergency protective
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EMERGENCY PROTECTIVE MEASURES IN THE MARIA DA PENHA LAW
Measures efficiency of Maria da Penha Law, bringing into your scope, a brief study of the â&#x20AC;&#x153;efficiencyâ&#x20AC;? meaning in the legal area. Keywords: Maria da penha law. Violence. Gender. Emergency
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protective measures.
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HABEAS CORPUS COLETIVO Nº 143.641 E A TUTELA DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS
NO
CASO
DAS
GESTANTES
E
MÃES
PRESAS
PREVENTIVAMENTE Andréa Karla da Silva Alves1
RESUMO O presente trabalho objetiva analisar a defesa dos direitos humanos das gestantes e mães preventivamente presas nas penitenciárias brasileiras, por meio de um Habeas Corpus na modalidade Coletiva de nº 143.641 proposto no Supremo Tribunal Federal. O caso tomou contornos nacionais por se tratar do pedido de soltura das gestantes e mães presas preventivamente em todo país, porque poder-se-ia considerar a prisão cruel e desumana. Dessa forma, mostra-se que o judiciário atua engajado na defesa dos direitos fundamentais descritos na Constituição Federal. Por fim, denota-se as críticas voltadas a decisão do Supremo Tribunal Federal quanto a tutela do direito pretendido. Direito
constitucional.
Direitos
humanos
fundamentais. Habeas corpus coletivo nº 143.641. Supremo tribunal federal. Prisão preventiva.
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Mestranda em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Especialista em Direito Constitucional pela UNIRN. Advogada.
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Palavras-chave:
1 INTRODUÇÃO
Em um cenário de falhas e bloqueios institucionais que se propagam ao longo dos anos, principalmente em nações que se regem por preceitos garantistas sociais, os quais na maioria das vezes não são postos em prática, ocorre à violação demasiada dos direitos humanos em razão da inviabilidade da concretude dos direitos fundamentais. De modo que, não obstante sejam, direitos considerados invioláveis, indisponíveis, imprescritíveis, imutáveis, irrenunciáveis e previstos como cláusulas pétreas, bem como serem tidos como a base do sistema constitucional, fundamentando todo o arcabouço jurídico brasileiro, eles são recorrentemente despercebidos e ignorados de forma institucional. Nessa perspectiva, inaugurou-se uma discussão originária, curiosa e inédita no Supremo Tribunal Federal (STF), viabilizada pela impetração do Habeas Corpus Coletivo nº 143.641, interposto pelos advogados Membros Coletivos de Advogados em Direitos Humanos (CADHu), que atraiu toda atenção do cenário jurídico brasileiro, porque em favor das presas gestantes, puérperas e daquelas mães com crianças de até 12 anos de idade sob sua responsabilidade, bem como as mães de deficientes. Além de que, é claro, atuou em tutela das próprias crianças de todo o país. Para os autores do Habeas Corpus Coletivo, a situação das presas gestantes em estabelecimentos prisionais precários, em caráter de prisão preventiva, retirava vários direitos fundamentais a elas previstos, como o acesso a programas gestacionais, assistência regular na gestação e no pós-parto, assim como violava direitos das crianças de se desenvolverem adequadamente, por exemplo. Portanto, o objetivo da pesquisa é demonstrar que a privação de tais direitos constituiria em tratamento cruel, degradante e desumano, ferindo a moral e integridade física das mesmas, como também, transgrediria postulados fundamentais e constitucionais que são
amplitude das pacientes avocadas pelo remédio constitucional, e sabendo que nem todas os casos tratados na matéria são similares, é latente a manifestação de críticas pelos juristas brasileiros. É inegável que a concessão, pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, do Habeas Corpus Coletivo reacendeu o debate sobre o tema, gerando, inclusive, a possibilidade de novas discussões acerca da previsão legal de tal instituto – agora na modalidade coletiva, que até então não era conhecido e utilizado nos tribunais nacionais.
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legalmente vedados, como a aplicação de penas cruéis. Por outro lado, tendo em vista a
Desse modo, questionamentos ainda beiram as peculiaridades, no que tange à extensão, generalidade, nuanças que comportariam tal concessão, como também sua real efetividade na busca da tutela dos direitos humanos das presas descritas no Habeas Corpus Coletivo. Por tudo isso, mais uma vez o Supremo Tribunal Federal do nosso país é instado a proferir mandamentos valorativos de suma importância na perquirição de guarda constitucional.
2 TUTELA DOS DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS
Para efetivar e proteger os direitos inerentes a todos, capazes de assegurar uma vida digna resguardada de abusos de poder praticados pelos Estados, é certo que precisou-se decorrer um longo percurso de lutas e reivindicações. Nesse mesmo sentido, preceitos democráticos e ditames normativos constitucionais de legitimidade, racionalidade e justiça começaram a ser observados e a ser solidificados nas nações. Tal evolução histórica instituiu limites em suas finalidades, contudo, a atuação estatal necessitava ser reconduzida a novas direções que permitissem o cumprimento de direitos consagrados como cláusulas pétreas, invioláveis, irrenunciáveis e indispensáveis a liberdade de todos. Percebe-se o reconhecimento, como também a importância desses direitos, principalmente no que tange a sua indisponibilidade protetiva com o fim de permitir seu real exercício, que ora deve ser considerado como fundamental ao desenvolvimento humano. Nesse sentido denota Moraes (2006):
O conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento
Na história do constitucionalismo brasileiro, segundo Vaz (2007), a “Constituição Federal de 1988 é uma das mais avançadas do mundo em relação à proteção dos direitos humanos” e a primeira brasileira a elencar o princípio da prevalência dos direitos humanos como fundamental às relações internacionais do Estado. Uma das mais expressivas conquistas nos últimos tempos foi a garantia de direitos fundamentais aos cidadãos, frente ao próprio Estado. Como bem menciona Sarlet (2009), os
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da personalidade humana.
direitos fundamentais são vistos e reconhecidos pela ordem jurídica nacional como instrumentos indispensáveis à concretude de um ordenamento coerente e harmônico. Isto é, pode-se considerar que os direitos fundamentais são a base do arcabouço jurídico em um Estado democrático de direito, de onde advém um conjunto de direitos e prerrogativas em uma perspectiva de igualdade, e estes encontram-se consubstanciados nos princípios constitucionais. A doutrina brasileira diverge quanto ao conceito de direito fundamental, mas é unânime a concordância do sentido que exprimem e os valores que protegem. Considerados imutáveis, frutos de uma evolução histórica, absolutos, imprescritíveis e intransferíveis. A efetividade advinda desses direitos pode ser compreendida pela materialização no mundo dos fatos, sendo preciso muitas vezes decorrer de uma conduta positiva, que exige uma posição mais ativa do Estado nas diversas esferas. Todavia, nos dias atuais o que se percebe são sintomas de incongruência entre a realidade social e os textos fundamentais, que infelizmente, embora tenham reconhecidos a sua importância, não atingem os limites razoáveis de efetividade, carecendo de força prática. É sabido que o rol dos direitos fundamentais elencados na Carta Magna de 1988 é extenso, assim como algumas dificuldades para a efetivação dos mesmos. Tais dificuldades por vezes não são enxergadas pelo Estado que, ao seu turno, deve possuir a capacidade de identificar as diferenças e particularidades dos cidadãos e dos casos práticos postos à sua apreciação. Nesse impasse, embora seja expresso no art. 5º da Constituição Federal a imediaticidade da aplicação dos direitos e garantias fundamentais, a sua efetivação, que nada mais objetiva além da verdadeira realização da justiça social e à correção das disparidades e condições dignas de vida, deve ser concretizada por meio de prestações do Poder Público. Nessa linha de pensamento, prevê a Constituição Federal ser de responsabilidade da União o direito penitenciário, concorrentemente com os Estados e o Distrito Federal, estes devendo efetivar a
Todavia o que se observa na realidade é o oposto e enquanto perdurar a inaplicabilidade desses direitos haverá um déficit de efetividade, o que pode causar inúmeras ofensas aos ditames constitucionais, sendo na maioria dos casos justificados pela impossibilidade de atuação do Estado no retorno requerido. No cenário atual são percebidos vários déficits, não de caráter isolado ou restrito, ao contrário, a maioria deles abrange e afeta toda a sociedade quando não concretizados na prática, à exemplo o desrespeito aos direitos sociais básicos. Outrossim o setor prisional brasileiro, marcado por um estado de inconstitucionalidade generalizado, uma vez que não acompanhado 287
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pena ao mesmo tempo em que não devem negligenciar a dignidade e integridade dos apenados.
por políticas públicas eficientes, nem investimentos capazes de proporcionar uma ressocialização adequada. Nesse sentido, o sistema penitenciário brasileiro atual é considerado desumano e não oferece uma estrutura minimamente digna, que proporcione os fins da ressocialização para uma pessoa média, em sua condição de normalidade. Então, ainda mais degradante é a situação de uma apenada em estado de gravidez, ou de uma mãe que tenha que pagar sua pena e obrigar seu filho pequeno a conviver em um ambiente desestruturante. É indiscutível que o Estado deve adentrar pela via obrigacional e aplicar a efetividade de tais direitos, dado que sem essa atuação não é possível viver dignamente. Caso constatada a omissão ou a realização da prestação de modo inadequada, podem ser exigidas judicialmente, devendo o poder judiciário analisar o caso e impor a realização de maneira adequada. Outrossim, imperioso destacar que a responsabilidade do Estado alcança também os atos decorrentes da sua omissão na preservação das garantias e direitos fundamentais, que foram criados para a proteção do homem, devendo ser preservados dentro e fora do sistema carcerário, a fim de evitar reincidências, superlotações, inúmeras rebeliões e até mortes, isso no ambiente interno dos presídios. Desse modo, uma tutela efetiva com o intuito de garantir direitos relacionados às presas gestantes mostra-se precisa por diversos motivos. O mais citado pelos apoiadores da decisão do Supremo Tribunal Federal é o fato de que, além de estarem presas preventivamente (não foram sequer condenadas, mas aguardam por julgamento), estão grávidas e muitas delas têm responsabilidades com os filhos, por serem mães solteiras, ou por não possuírem um aparato familiar, assistencial ou estatal que lhe auxiliem nessa responsabilidade. Outrossim, ressalta-se o grande impacto na vida dessas crianças, que, além de possuírem o direito de conviver e serem cuidadas por suas mães, acabam também pagando a pena a elas impostas, não obstante haja previsão de que nenhuma pena ultrapassará a pessoa do
Por fim, é preciso pontuar que, além da legislação nacional que protege o direito da criança e do adolescente, o Brasil é signatário de Tratados Internacionais relacionados às regras mínimas para tratamento de mulheres em privação de liberdade, como a Convenção dos Direitos da Criança, da Organização das Nações Unidas (ONU), a Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e as Regras de Bangkok (também do âmbito da ONU), o que só confirma ser, esse tema, paradigmático em relação à Tutela dos Direitos Humanos Fundamentas no país.
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condenado.
3 HABEAS CORPUS COLETIVO
De origem constitucional, o remédio denominado de Habeas Corpus (HC) é designado a tutelar um dos mais basilares e fundamentais direitos reconhecidos pelo fenômeno constitucionalista: a liberdade de locomoção do indivíduo. Socorre, pois, o direito de ir e vir, de modo que o indivíduo tenha a liberdade de ir e vir para onde quiser e tiver vontade. Conforme bem anotado pelo Ministro Celso de Mello:
A ação penal de habeas corpus, enquanto instrumento de ativação da jurisdição constitucional das liberdades, configura um poderoso meio de cessação do injusto constrangimento ao estado de liberdade de locomoção física das pessoas. Se essa liberdade não se expõe a qualquer tipo de cerceamento, e se o direito de ir, vir ou permanecer sequer se revela ameaçado, nada justifica – por não estar em causa a liberdade de locomoção física – o emprego do remédio heroico do habeas corpus (HC nº 86.878/SP).
O Habeas Corpus não é uma ação como outra qualquer, tendo, pois, diversas peculiaridades. Primeiro, a celeridade: por ser ação constitucional marcada pela preferência em relação ao que deve ser julgado de forma mais rápida pelo Poder Judiciário, afinal, no remédio, estar-se-á tutelando a liberdade, direito fundamental. Outra característica é a informalidade exigida com vistas ao acesso à justiça, visto que o Habeas Corpus serve para coibir um abuso ou ilegalidade à liberdade de locomoção, daí porque a propositura da ação deve ser facilitada. Há, também, a marca da gratuidade, em prol justamente de facilitar o acesso à justiça. Além disso, para que seja concedido o Habeas Corpus, é necessário que requisitos legalmente previstos sejam atendidos, previstos na própria Constituição Federal, como também
Constituição Federal, art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: LXVIII - conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder;
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no Código de Processo Penal. Veja-se:
Código de Processo Penal, art. 647 - Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar.
Ressalte-se não ser, o Habeas Corpus, um recurso, apesar de muitas vezes ser utilizado como um sucedâneo recursal. Não obstante esteja no título dos recursos no Código de Processo Penal, é uma ação autônoma de impugnação, que pode ser utilizado antes ou depois de uma relação jurídica processual. Desse modo, pode ser impetrado sem que haja qualquer processo. Nesse ínterim, poderá sê-lo tanto repressivo, caso em que será expedido um alvará de soltura, como também preventivo, nos casos de ameaça à liberdade, expedindo-se o salvo conduto. Sendo cabível nas hipóteses do art. 648, Código de Processo Penal:
Art. 648. A coação considerar-se-á ilegal: I - quando não houver justa causa; II - quando alguém estiver preso por mais tempo do que determina a lei; III - quando quem ordenar a coação não tiver competência para fazê-lo; IV - quando houver cessado o motivo que autorizou a coação; V - quando não for alguém admitido a prestar fiança, nos casos em que a lei a autoriza; VI - quando o processo for manifestamente nulo; VII - quando extinta a punibilidade.
Sobre a legitimidade, o Código de Processo Penal prevê a figura do paciente e do impetrante. Sendo o impetrante quem ajuíza o remédio constitucional a favor de si mesmo ou de outrem, podendo ser uma pessoa física ou jurídica (no entanto essa última não pode ser paciente). O paciente, por outro lado, será a pessoa física beneficiada da medida, quem se encontra sob ameaça ou lesão de sua liberdade. Nessa perspectiva, consoante o art. 654, o Habeas Corpus poderá ser impetrado por qualquer pessoa, em seu favor ou de outrem, bem
Até então, a única e conhecida modalidade de impetração era o Habeas Corpus individual, garantindo o direito do indivíduo em sua forma particular, específica e pessoal. Isto significa que sua previsão no dispositivo legal era destacada ao paciente de maneira individual, não se adentrando hipótese de modalidade coletiva. No entanto, abriu-se espaço para a modalidade coletiva, isto é, por e em prol de uma coletividade, por ocasião da discussão do Habeas Corpus Coletivo 143.641 na Segunda Turma
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como pelo Ministério Público.
do Supremo Tribunal Federal (STF), que fez com que diversos debates fossem levantados pelos estudiosos do direito. Dentre as indagações percebe-se haver direção maior para a possibilidade do seu cabimento, de modo que a coletividade atue como autora e/ou paciente. Sobre o exposto, os autores Antônio Gidi e Mafra Leal, Lordelo (2018) discorrem que: é “ação coletiva aquela proposta por um legitimado extraordinário (ou substituto processual), em defesa de um direito naturalmente ou acidentalmente coletivo, apta à produção de uma decisão final cujos efeitos são extensíveis a uma comunidade ou coletividade”. Em termos de previsões legais cabe destacar que, além da Ação Civil pública, Lei nº 7.347/1985, o Código de Defesa do Consumidor (CDC), como microssistema processual coletivo, dispõe no seu art. 83 que: "para a defesa dos direitos e interesses protegidos por este código são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela." Ora, analisando a fiel descrição legal constitucional, no que toque o Habeas Corpus, parece possível a adequação às ações possessórias e monitorias coletivas, por exemplo. Isso porque não se vislumbra qualquer disposição em contrário, vedando tal faculdade. Ademais, trata-se de instrumento democrático, não devendo sofrer limitações ou amarras, conforme pensamento do criminalista Délio Lins e Silva Júnior. Porém, a sua aplicabilidade no âmbito dos tribunais não é unânime, em que pese não haver proibição, também não há previsão legal de concessão. Deixando, pois, a cargo do julgador a decisão de ser cabível ou não. O que, inegavelmente, aumenta a imprevisibilidade e das decisões e a insegurança jurídica. Nesse sentido, como exemplo de contradição entre as turmas, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), em sede de decisão monocrática, indeferiu liminarmente o ministro Alexandre de Moraes indeferiu a concessão do Habeas Corpus na modalidade coletiva
especificamente a ilegalidade sofrida. Nessa perspectiva, isto levanta a discussão de outro ponto importante sobre a modalidade em foco. Ora, em caso de concessão, haveria uma necessidade de que o grupo assistido fosse especificado, que o objeto, então, abarcasse a todos os pacientes, através de decisão unitária e homogênea, sem deixar, contudo, de fazer referência a todos os fatos similares que atingem a coletividade assistida e seus direitos. Foi com base nessa justificativa, de não haver especificação das situações similares, que o Habeas Corpus foi denegado.
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aos pacientes do Habeas Corpus 148.459, sob justificativa de não terem individualizado
Com base no exposto, percebe-se haver variedade de opiniões acerca do instituto que, por ser algo novo, demonstrando que comportará maiores análises e flexibilizações quanto à sua utilização, em âmbito dos tribunais e em estudos na doutrina. Apesar disso, resta oportuno frisar que independente da modalidade, é clara a intenção do instrumento imprescindível e necessário ao alcance coletivo de direitos como o da vida e liberdade. Ademais, a impetração em comento merece destaque, mesmo abrangendo apenas casos de prisão provisória ou cautelar, porquanto a situação sócio-jurídica coletiva viola princípios penais importantes como o da intranscendência da pena, pessoalidade e dignidade da pessoa humana.
4 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O HC 143.641
Instada a julgar o Habeas Corpus Coletivo 143.641, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, por maioria dos votos, decidiu deferir a tutela na sua forma coletiva para determinar que fosse substituída a prisão preventiva pela domiciliar de presas gestantes e mães de crianças de até doze anos de idade ou de pessoas com deficiência, em todo o território nacional, sem prejuízo da aplicação de medidas de alternativas previstas no art. 319 do Código de Processo Penal. A decisão foi ementada da seguinte forma:
HABEAS
CORPUS
COLETIVO.
ADMISSIBILIDADE.
DOUTRINA
BRASILEIRA DO HABEAS CORPUS. MÁXIMA EFETIVIDADE DO WRIT. MÃES E GESTANTES PRESAS. RELAÇÕES SOCIAIS MASSIFICADAS E BUROCRATIZADAS. JUSTIÇA.
GRUPOS
FACILITAÇÃO.
SOCIAIS
EMPREGO
VULNERÁVEIS.
DE
ACESSO
À
REMÉDIOS PROCESSUAIS
13.300/2016. MULHERES GRÁVIDAS OU COM CRIANÇAS SOB SUA GUARDA.
PRISÕES
DEGRADANTES.
PREVENTIVAS
CUMPRIDAS
INADMISSIBILIDADE.
PRIVAÇÃO
EM DE
CONDIÇÕES CUIDADOS
MÉDICOS PRÉ-NATAL E PÓS- PARTO. FALTA DE BERÇARIOS E CRECHES. ADPF 347 MC/DF. SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO. ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL. CULTURA DO ENCARCERAMENTO. NECESSIDADE DE SUPERAÇÃO. DETENÇÕES CAUTELARES DECRETADAS DE FORMA ABUSIVA E IRRAZOÁVEL. INCAPACIDADE DO ESTADO DE ASSEGURAR DIREITOS
FUNDAMENTAIS
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ÀS
ENCARCERADAS.
OBJETIVOS
DE
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ADEQUADOS. LEGITIMIDADE ATIVA. APLICAÇÃO ANALÓGICA DA LEI
DESENVOLVIMENTO
DO
MILÊNIO
E
DE
DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. REGRAS DE BANGKOK. ESTATUTO DA PRIMEIRA INFÂNCIA. APLICAÇÃO À ESPÉCIE. ORDEM CONCEDIDA. EXTENSÃO DE OFÍCIO (...). HC 143.641/SP.
Atuaram como amicus curiae (amigos da corte), as Defensorias Públicas de diversos Estados, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), como também a Defensoria Pública da União. Esta, na oportunidade, citou precedentes do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, com o objetivo de defender a concessão do Habeas Corpus Coletivo, destacando, ainda, que não seria preciso muita imaginação para perceber as consequências do cárcere nas próprias mães presas e nos recém-nascidos. Para o relator do caso, o ministro Ricardo Lewandowski, o Habeas Corpus apresentado era cabível, na medida em que “era a única solução viável para garantir acesso à Justiça de grupos sociais mais vulneráveis”. Nisso, alertou: “deve ser aceito, principalmente, porque tem por objetivo salvaguardar um dos mais preciosos bens do ser humano, que é a liberdade. Ele lembrou ainda que, na sociedade contemporânea, muitos abusos assumem caráter coletivo”. Ato contínuo, mencionando um caso parecido com o discutido na oportunidade, apresentou um julgado da Suprema Corte Argentina, onde foi possível a impetração de um Habeas Corpus Coletivo naquele país, em situação similar ao caso julgado. Ademais, mencionou a famosa Ação Direta de Preceito Fundamental – ADPF nº 347, que recentemente abriu o debate sobre o sistema carcerário brasileiro, reconhecendo seu estado de coisas inconstitucionais. A maioria dos ministros embasou suas decisões no fato de que, para poder solucionar problemas sociais, prevenir lesões a direitos, principalmente no tocante a grupos vulneráveis, os remédios constitucionais são instrumentos indispensáveis, tendo o Habeas Corpus, pois, que receber uma visão mais ampla do tribunal, sendo preciso aplicá-lo em harmonia com o artigo
Ao conceder o remédio, o Supremo Tribunal Federal utilizou-se dos princípios constitucionais para fundamentar a concessão, dentre os quais o da dignidade da pessoa humana e levantou a questão da humanidade das penas, conforme se extrai do trecho da decisão:
Confinar mulheres grávidas em estabelecimentos prisionais precários, subtraindo lhes o acesso a programas de saúde pré-natais, assistência regular no parto e pós-
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580 do Código de Processo Penal, na extensão dos seus efeitos.
parto, e ainda privando as crianças de condições adequadas a seu desenvolvimento, constitui tratamento desumano, cruel e degradante.
Do mesmo modo, invocando a legislação doméstica e a internacional como justificação, determinou-se: A substituição da prisão preventiva pela domiciliar – sem prejuízo da aplicação concomitante das medidas alternativas previstas no art. 319 do CPP – de todas as mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças e deficientes, nos termos do art. 2º do ECA e da Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiências (Decreto Legislativo 186/2008 e Lei 13.146/2015), relacionadas neste processo pelo DEPEN e outras autoridades estaduais, enquanto perdurar tal condição, excetuados os casos de crimes praticados por elas mediante violência ou grave ameaça, contra seus descendentes ou, ainda, em situações excepcionalíssimas, as quais deverão ser devidamente fundamentadas pelo juízes que denegarem o benefício.
Estendendo assim, pois, a ordem de ofício às demais presas que estivessem gestantes, puérperas ou que fossem mãe de crianças, como também estendeu às adolescentes sujeitas a medidas socioeducativas em situações similares no país. Ressalvou, no entanto, que deveriam ser observados com cautela os casos de reincidência Sobre a matéria, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) hoje no Brasil existe 14.750 mulheres presas em situações abarcadas pelo Habeas Corpus Coletivo, ou seja, em condições de cumprirem a pena domiciliar. Expostas as conclusões, faz-se necessário ponderar alguns pontos curiosos quanto à decisão do Supremo Tribunal Federal, tendo em vista que ela possui similaridades com o conteúdo já previsto na lei processual penal, no seu artigo 318, IV e V, em vigor. Vejamos:
for: IV - gestante; V - mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos;
Com a adição do 318-A, I e II, pela Lei nº 13.769 em 2018, veja-se:
Art. 318-A. A prisão preventiva imposta à mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência será substituída por prisão domiciliar, desde que:
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Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente
I - não tenha cometido crime com violência ou grave ameaça a pessoa; II - não tenha cometido o crime contra seu filho ou dependente.
Fazendo uma análise da previsão legal do Código de Processo Penal e da decisão emanada pelo Supremo Tribunal Federal, percebe-se que a aplicação do art. 318-A impôs algumas condições à substituição, no sentido de que não será concedida a prisão domiciliar àquelas que incorrerem nos incisos I e II do referido artigo. Embora a prisão preventiva tenha requisitos a serem observados, denota-se ter sido o Supremo Tribunal Federal bem mais criterioso, de modo a não permitir que o objetivo do remédio constitucional fosse concretizado em sua totalidade como esperado pelos pacientes. Apesar disso, alguns estudiosos do tema denotam que a condição legal somente, não pode ser motivo de descaracterização de uma prisão preventiva, no caso de identificada a real necessidade de tal tutela. De outro plano, percebe-se também um agravamento do quadro, mostrando serem reconhecidas novas possibilidades de os juízes indeferirem o benefício da prisão domiciliar. Ademais, diante do cenário de descumprimento da decisão do Supremo Tribunal Federal, restou decidido pelos ministros que, para evitar inúmeras reclamações à Corte, a ferramenta a ser utilizada para rediscutir a matéria seria o recurso. Isto posto, para alguns críticos a decisão mostra-se reduzida quanto ao seu grau de efetividade, uma vez que o Superior Tribunal Federal optou por limitar o instrumento coletivo, tendo o seu controle exíguo, não chegando assim ao objetivo total da pleiteada lide. Nisso, denota-se a atuação do Superior Tribunal Federal que a cada dia mais recebe novas contingências sociais abarcadas de grandes emblemas e responsabilidades, no entanto, há uma percepção de decisões eivadas de generalidades e ineficácia, não se moldando definitivamente aos fatos sociais que as interessam.
zelar pelos direitos previstos e fazer valer sua eficácia, permitindo assim que as decisões saiam de um quadro simbólico e ganhem efeito real nas perspectivas do caso concreto. Por fim, pode-se considerar que o emprego do remédio constitucional veio acentuar um debate necessário, que gira em torno, inclusive, do estado inconstitucional em que vive as penitenciárias brasileiras, estado de verdadeiro abandono, o que colabora para o descaso e agravamento da situação das gestantes presas. Avalia-se como positivo o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, porém, espera-se sua aplicabilidade prática, como também que o cenário atual das gestantes presas seja 295
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Dessa forma, como garantidor e protetor da Constituição Federal, deve acima de tudo
transmudado e que os resultados esperados sejam resguardados conforme os direitos fundamentais inerentes a todas elas, em privilégio a dignidade dessas mães e mulheres.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo do trabalho pretendeu-se demonstrar que a busca pela tutela jurisdicional, principalmente no que tange aos direitos e garantias individuais, permite uma consolidação de inúmeros instrumentos capazes de coibir violações. É constitucionalmente garantido que os direitos fundamentais resguardam um valor universal, não se limitam a resguardar apenas um ser humano na sua individualidade, mas há, na verdade, uma socialização dos direitos que merece amparo legal e constitucional, por parte de todos os organismos detentores de tal obrigação. Apesar de ser evidente que nem tudo pode ser previsto e codificado, os fatos reais da sociedade acabam exigindo um desenvolvimento assertivo de aspectos legais do direito, o que permite um desenvolvimento de técnicas e controles pelo Poder Judiciário, que deve estar posicionado a esse amparo. No presente caso, observa-se que houve um atendimento do Supremo Tribunal Federal ao pleito pela busca de direitos constitucionalmente previstos, através de um instrumento não utilizado na prática jurisdicional do país, Habeas Corpus Coletivo, mas que pela grande importância da matéria debatida, mereceu um reconhecimento legal de sua utilização. Entretanto, disso originou-se uma decisão de cunho genérico e ineficaz, uma vez que as peculiaridades do caso concreto haveriam de ser, ainda, analisadas pelo juiz da execução penal, sendo a este, portanto, a quem caberia a decisão se as presas grávidas, puérperas ou mães de crianças e deficientes iriam ser ou não livradas do cárcere.
casos que são levados ao Supremo Tribunal Federal para a sua observância, permanecendo a situação das presas sem uma alteração significativa, o que é desumano, uma vez que serem os direitos fundamentais soberanos e que devem ser exercitados continuamente, assim como os demais fundamentos da Constituição Federal que devem ser reafirmados a todo o momento. Por fim, insta salientar que os críticos preferem analisar a matéria de forma cautelosa, visto que a generalidade da decisão pode provocar transtornos impeditivos ao cumprimento da medida preventiva. Para isso, impõe-se um exame de cada caso, levadas em conta suas
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Portanto, vislumbrou-se um efeito simbólico da decisão, como acontece em outros
peculiaridades, e observando-se, por óbvio, os direitos humanos que todos possuem independentemente da situação percebida.
REFERÊNCIAS
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VAZ, Anderson Rosa. A cláusula da reserva do financeiramente possível como instrumento
COLECTIVE HC 143.641 AND THE PROTECTION OF FUNDAMENTAL HUMAN RIGHTS IN THE CASE OF PRE-EMPTIVELY ARRESTED PREGNANT WOMEN AND MOTHERS
ABSTRACT The present work aims to analyze the protection of human rights of pregnant women and mothers arrested pre-emptively, via a Habeas Corpus in a collective manner, number 143.641, proposed at the Supreme Federal Court. The case took national proportions, because the petition was to release pregnant women and mothers arrested preemptively around all Brazil, since such situation could be deemed cruel and unhuman. Thus, the analysis shows that the Judiciary is engaged in the defense of the fundamental rights described in the Federal Constitution. Finally, the decision of the Supreme Court is criticized regarding the protection of the petitioned rights. Keywords: Constitutional law. Fundamental human rights. Colective
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habeas corpus 143.641. Supreme federal court. Preventive detention.
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MEIOS CONSENSUAIS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS - POSSÍVEIS CAMINHOS PARA DIMINUIR A CONFLITUALIDADE E ENSEJAR A CULTURA DA PAZ Cristiane de Lima Geist1 RESUMO O artigo versa sobre os conflitos que são produzidos nas relações sociais e as possibilidades que se apresentam para diminuir a conflitualidade. Por meio do método de abordagem hipotético-dedutivo e do método de procedimento histórico, monográfico e dissertativo, o estudo partiu do surgimento das controvérsias e das suas características, verificando em seguida as possibilidades para tratar o conflito e ensejar a diminuição da
conflitualidade,
destacando
os
meios
autocompositivos.
Proporcionar uma reduzida intervenção do Estado que potencialize a máxima cooperação das partes mediante mecanismos adequados de resolução de conflitos são formas essenciais para diminuir os conflitos Palavras-chave: Conflitos. Meios consensuais de resolução de conflitos. Cultura da paz.
Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação stricto sensu – Mestrado e Doutorado em Direito da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI) - Campus de Santo Ângelo (RS). Especialista em Docência na Educação Profissional Técnica e Tecnológica pelo Instituto Federal Farroupilha Campus Alegrete (RS). Auditora do Instituto Federal Farroupilha. Membro do Grupo de Pesquisa registrado no CNPq: Direitos de Minorias, Movimentos Sociais e Políticas Públicas. E-mail: <cristianegeist@gmail.com>. 1
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e possibilitar a pacificação social.
1 INTRODUÇÃO Nos primórdios da civilização, o Estado não era atuante na solução de disputas entre as pessoas, não havia normas impostas pelo Estado. Assim, os conflitos entre as pessoas eram resolvidos mediante o uso da força, na imposição da decisão de uma das partes à outra, sem interferência do Estado. Ao surgir o Estado, ele chama pra si esse poder de decisão, e constitui mecanismos próprios para fazer frente às demandas a que fosse chamado a resolver. Os conflitos, portanto, sempre se fizeram presente no convívio entre as pessoas, fazendo parte da história da civilização. Ocorre que a multiculturalidade brasileira, dentre outros fatores, tem resultado na complexidade das controvérsias, e muitas vezes os conflitos são levados ao Poder Judiciário se tornando litígios. O excesso de ações judiciais, inclusive advindos da Administração Pública tem ocasionado sérios problemas ao Estado. Diante dessa preocupante realidade a investigação tem como objetivo analisar os conflitos e a utilização de meios que possam diminuir a conflitualidade, fomentando a cultura da paz e o exercício da cidadania. A pesquisa foi efetuada por meio do método de abordagem hipotético-dedutivo e do método de procedimento histórico, monográfico e dissertativo. O estudo partiu da análise do conflito desde seu surgimento até suas implicações, tanto positivas quanto negativas, apresentando em seguida às possibilidades de diminuir as contendas, mediante os mecanismos de resolução de conflitos, a intervenção mínima do Estado e a máxima cooperação entre as partes. Nesse sentido, no âmbito dos meios adequados de resolução de conflitos, como mediação, conciliação, negociação e arbitragem, a análise do conflito é realizada trazendo todos os aspectos que permeiam as divergências. Não se restringe, portanto, aos aspectos trazidos na petição inicial. Nessa perspectiva não haverá um terceiro que dirá o direito a partir da verificação mais restringida, mas sim, as partes poderão discutir o que verdadeiramente relações, retirando ou amenizando a possibilidade do ajuizamento de ações decorrentes dos conflitos. Portanto, são caminhos que permitem ao Estado e a sociedade reverem suas posições enquanto atores do processo, apontando-se, no horizonte, uma era de pacificação nas relações entre as pessoas e entre elas e o Estado.
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ocasionou aquela divergência, possibilitando o tratamento do conflito e o restabelecimento das
2 CONFLITOS: ORIGEM E ESPECIFICIDADES Os conflitos surgem em decorrência de muitos fatores, em especial quando há o compartilhamento de espaços, de atividades, inclusive de poder, manifestando-se muitas vezes de forma violenta: O conflito, portanto, tem origem nas diferenças de interesses, necessidades ou valores entre os indivíduos ou grupos, resultando em uma disputa competitiva e destrutiva, na busca pelo aniquilamento da outra parte, visto que o ser humano está atrelado à noção de conflito e destruição do outro como manifesto de uma cultura beligerante que desencadeia processos de violência e exclusão social (GIMENEZ, 2015, p. 183).
Conforme a autora, o conflito tem dois sentidos, por um lado é importante para o desenvolvimento das relações sociais, mas por outro se revela destrutivo, colocando-as como inimigas ou adversárias. A intervenção deve ocorrer quando o conflito ultrapassa os limites da convivência. O conflito visto sob a ótica construtiva corresponde ao verificar que os resultados foram satisfatórios para as partes. A pacificação, portanto, significa a gestão, o domínio e o tratamento dos conflitos, e não ausência dos conflitos (GIMENEZ, 2015, p. 183-185). Quando o conflito ultrapassa os limites da ordem social, ou assume caráter negativo ou violento, ele requer tratamento: Os conflitos, de modo geral, são associados a frustrações de interesses, necessidades e desejos, que podem, ou não, levar o sujeito a algum tipo de reação, evidenciando que os conflitos encerram em si uma dimensão cognitiva e outra afetiva, tanto nos de ordem intrapessoal, quanto naqueles interpessoais. Nesse sentido, é possível apreender que a face externa de um conflito reflete apenas uma parte de sua realidade, ou seja, os conflitos manifestos são parte de um processo interno complexo e dinâmico
Mas quando se tratam de conflitos judicializados, estão ocorrendo litígios. No momento em que o conflito é reduzido apenas ao âmbito jurídico, ele passa a ser litígio. Conforme Warat (2004, p. 61), “no litígio, os juízes decidem as formas do enunciado, pelas partes, atendendo às formas do pretendido e não às intenções dos anunciantes”. Assim, quando o juiz profere uma sentença, ele estará limitado pelo objeto da demanda, ou seja, o juiz decide a lide nos limites em que foi proposta, não podendo decidir natureza diversa do pedido do autor, nem condenar o réu em objeto diverso ao que foi demandado. Portanto, o direito resolverá o litígio, mas não o conflito, pois não se verificam os verdadeiros interesses das partes, e em razão 301
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(RODRIGUES JÚNIOR, 2006, p. 40).
disso muitas vezes tais decisões não alcançam a pacificação social. Conforme o entendimento de Warat (2004, p. 61), o conceito jurídico de conflito como litígio representa uma visão negativa sobre o conflito. Porém, falta no direito uma teoria do conflito que demonstre a todos que ele pode ser entendido como uma forma de produzir, com o outro, a diferença, no sentido de conflito como alteridade, como uma forma de inclusão do outro, que possibilite inscrever a diferença na construção do novo: Culturalmente, a solução dos conflitos está associada, sobretudo, às noções de que conflitos são negativos e devem ter o caráter adversarial no qual seja sobreposta a figura de um vencedor à de um perdedor. Porém, como foi explicitado anteriormente, os conflitos divergem bastante e, conforme o contexto, a dinâmica e a sua trajetória, eles podem contribuir, sobremaneira, para a promoção do crescimento pessoal e do comprometimento social das partes em questão (RODRIGUES JÚNIOR, 2006, p. 45).
Os conflitos, vistos sob a ótica do crescimento e amadurecimento, fazem emergir a necessidade de entendê-los e tratá-los de acordo com o mecanismo mais compatível com o caso concreto. É necessário, portanto, que sejam vislumbradas formas diversas de resolver conflitos com características diferentes, não sendo possível mais seguir uma única forma de verificação de controvérsias. O que se verifica é que o conflito tem uma visão positiva, mediante seu potencial de levar para a discussão os diversos pontos de vista como oportunidades de crescimento de ambas as partes. A partir disso, são buscadas estratégias e mecanismos para o bom gerenciamento do conflito. Além disso, a complexidade tem se revelado nos conflitos de interesses que se apresentam com ênfases totalmente diferentes, notadamente pela multiculturalidade do país. Em sintonia com a Constituição Federal de 1988, que visa uma sociedade comprometida com a pacificação social, urge pensar mecanismos diversos de solução de controvérsias, inspirados Os problemas que afetam o Estado, principalmente o fenômeno da judicialização das relações sociais, desvelam sua ineficiência estrutural. Nessa linha, Morais e Silveira referem que (1999, p. 68), “[…] não há, em muitas ocasiões, uma interação entre o sistema jurídico e a situação social do país”. A globalização, os avanços na área da tecnologia, a industrialização, a diversidade cultural e a própria economia marcam um período com relações conflitivas ainda mais complexas. A contemporaneidade é marcada por essas características e revela um momento de enfraquecimento das formas clássicas de solução de controvérsias, pois a realidade jurídica encontra-se distante da realidade social. 302
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na igualdade, mas que não sufoquem a diversidade.
Na sociedade atual, convivem interesses individuais e coletivos, disputas de poder, interesses econômicos, além da diversidade de culturas e de concepções que levam o indivíduo a incertezas sobre as relações humanas. Todos esses aspectos contribuem para a complexidade da sociedade e das relações entre as pessoas, e entre elas e o Estado. Diante dessas circunstâncias, o cidadão se depara com múltiplos conflitos que precisam de formas de resolução condizentes com essa realidade. O que se percebe é que as demandas por justiça aumentaram e o Estado tem dificuldade na consecução dos seus propósitos enquanto Estado Democrático de Direito. Essa situação causa o enfraquecimento do poder estatal, desgastando o Poder Judiciário: Diante disso, verificamos que no contexto atual, o Sistema Jurídico vigente não tem atingido seu pressuposto de pacificação social por apresentar procedimentos na sua maioria defasados, ineficientes, morosos e dispendiosos, o que dá força a tendência generalizada de busca a novas formas capazes de manter uma convivência ordenada e resolver os conflitos de interesses (MORAIS; SILVEIRA, 1999, p. 82).
De acordo com Bobbio (2003, p. 119), “o resultado a que o direito tende é a resolução dos conflitos (entende-se que a resolução dos conflitos permite o estabelecimento ou a conservação da paz). Há dois modos para resolver os conflitos: a persuasão ou a força”. A força resolutiva de que o autor descreve é a guerra. A persuasão é a prática da fala e da escuta, do diálogo, sendo que Pode-se cogitar da emergência de uma ideia de metajustiça, um ir além da justiça tradicional e um (re)pensar da própria essência do ato de julgar, uma profunda reflexão sobre a maneira como se produz e como se expressa a justiça estatal. Nessa nova epistemologia da justiça, o paradigma da força (coerção), do poder e da autoridade, enquanto fundamento legitimador (weberiano), tende a ceder espaço aos métodos do confronto ostensivo. É cada vez mais realçada, em uma espécie de neocontratualismo, para usar a expressão de Chevallier, a necessidade de se contar com o consentimento da outra parte como abordagem construtiva e de resultados duradouros à resolução de conflitos (VAZ, 2016, p. 145-146).
Nessa perspectiva, verifica-se a importância do consenso, o qual ressurge com os meios consensuais de resolução de conflitos já que o Estado tem falhado na efetivação desses propósitos, pois a resolução de litígios no âmbito do Poder Judiciário é caracterizada atualmente
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negociais de solução de conflitos, à ascensão das técnicas cooperativas e de superação
como morosa. Dessa forma, lembra Vaz (2016, p. 299), “o tempo jurisdicional, naturalmente alongado, tende a ser, invariavelmente, instrumento violador de direitos, postergando o seu exercício, aniquilando o seu núcleo essencial ou agravando as lesões que porventura estejam esses direitos sofrendo ou ameaçados de sofrer”. A demora na solução do conflito compromete a eficácia da tutela jurisdicional, além de demandar dos litigantes muitas despesas com o processo: A resolução formal de litígios, particularmente nos tribunais, é muito dispendiosa na maior parte das sociedades modernas. Se é certo que o Estado paga os salários dos juízes e do pessoal auxiliar e proporciona os prédios e outros recursos necessários aos julgamentos, os litigantes precisam suportar a grande proporção dos demais custos necessários à solução de uma lide, incluindo os honorários advocatícios e algumas custas judiciais (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 15-16).
Nesse contexto, tem-se que o custo de um processo é alto, tendo em vista que o autor terá que pagar as custas de distribuição, as provas que deseja produzir e o preparo dos eventuais recursos, o que se transforma em enorme dificuldade para aquelas pessoas desfavorecidas economicamente. Esta situação se agrava nos países que adotam o princípio da sucumbência, pois o litigante, se vencido, além de arcar com os honorários do seu advogado, terá que pagar os honorários da parte contrária. Ademais, a solução judicial demanda tempo, pelo próprio excesso de ações, mas também pelos procedimentos processuais típicos de um processo judicial. Essa lentidão vai de encontro com as necessidades da sociedade atual, além de gerar descrença na justiça. Mais complicado ainda quando se vê que, após longos anos de tramitação do processo, a decisão proferida já não mais satisfaz a parte, pela demora na resolução, pelos custos, pelo desgaste emocional da espera. Essa circunstância revela o não cumprimento dos objetivos do Estado Assim, conforme Cappelletti e Garth (1988, p. 20-21), se a justiça não cumpre sua função em prazo condizente, é uma justiça inacessível para parcela considerável da população. A morosidade acaba elevando os custos do processo, pois pressiona os mais fracos economicamente a aceitarem acordos com valores inferiores a que teria direito, ou até abandonarem a causa: Tal lentidão favorece a discussão de falsos conflitos, ou seja, muitas pessoas procuram os órgãos jurisdicionais sabendo que não têm razão, deles se servindo para ganhar
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Democrático de Direito.
tempo. O Judiciário está sendo usado para retardar a solução do conflito. Assim, o devedor deixa que o credor vá ao Judiciário, no qual terá de arrolar testemunhas, contratar advogado e, possivelmente, será pressionado a aceitar um acordo em valor mais baixo do que o devido. A lentidão e as diversas etapas até a execução da dívida tornam-se vantagens para o mau pagador. O mais absurdo é que o próprio Estado vem se somando às instituições privadas nessa estratégia, congestionando ainda mais o Judiciário (RODRIGUES JÚNIOR, 2006, p. 12-13).
Outro fator que limita o acesso à justiça é a questão das possibilidades das partes. A situação da pessoa muda conforme o contexto social em que vive, abrangendo questões econômicas, sociais, culturais e educacionais. No momento em que as pessoas têm possibilidades econômicas, elas possuem vantagens em relação a outras pessoas, pois poderão suportar os custos de um processo, inclusive aqueles advindos pela morosidade da justiça. Além disso, muitos cidadãos não conhecem seus direitos e não tem condições de conhecê-los, pois quanto menor o poder aquisitivo das pessoas, menos capacidade terá de reconhecer que um direito seu foi violado e que é passível de reparação (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 2124). Outra dificuldade apontada por Cappelletti e Garth se refere aos direitos individuais em demandas contra grandes Instituições: Um exame dessas barreiras ao acesso, como se vê, revelou um padrão: os obstáculos criados por nossos sistemas jurídicos são mais pronunciados para as pequenas causas e para os autores individuais, especialmente os pobres; ao mesmo tempo, as vantagens pertencem de modo especial aos litigantes organizacionais, adeptos do uso do sistema judicial para obterem seus próprios interesses (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 28).
em verdadeira rotina, gerando ainda mais conflitos entre o cidadão e o Estado.
3 CAMINHOS PARA DIMINUIR A CONFLITUALIDADE Diante das dificuldades do Estado, da judicialização das relações sociais e da complexidade dos conflitos, insurgem no âmbito jurídico mecanismos de resolução de conflitos, mediação, negociação, conciliação e arbitragem, com o objetivo de abarcar a 305
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Logo, percebe-se que o Estado se tem valido de ações judiciais, as quais se constituem
diversidade de conflitos atualmente existentes na sociedade brasileira, até porque o acesso à justiça engloba outros meios do cidadão obter resposta aos seus interesses. 3.1 Meios autocompositivos Ensina Vaz (2016, p. 192) que “o sistema deve estar dotado de mecanismos de solução de conflitos adequados à natureza do conflito e apropriadamente organizado para garantir o acesso simplificado, tramitação célere e o resultado útil do processo”. A razão para a implementação dos meios autocompositivos não deve ser apenas a redução do número de processos, mas a abertura para a cidadania. É importante considerar que as práticas sociais da mediação se configuram em um instrumento de realização da autonomia, da democracia e da cidadania, na medida em que educam, facilitam e ajudam a produzir diferenças e a realizar tomadas de decisões sem a intervenção de terceiros que decidem pelos afetados por um conflito (WARAT, 1999, p. 6).
Nessa perspectiva, Gaglietti e Costa (2013, p. 217) advertem: “até porque a constante evolução da sociedade e os novos conflitos que essas mudanças ocasionam impõem a reestruturação das teorias jurídicas visando implantar instrumentos jurídicos adequados para garantir uma tutela jurisdicional eficiente”. Percebe-se a necessidade de modificação do nosso sistema, no sentido de oferecer meios de resolução de conflitos como instrumentos de prestação jurisdicional eficaz. 3.1.1 Mediação e conciliação
criou a Resolução 125, de 29 de novembro de 2010, que regulamenta a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado de conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário, destacando a mediação e a conciliação como instrumentos de pacificação social, inclusive na prevenção de conflitos, cooperando para uma nova cultura. Apesar de a Resolução instituir a mediação e a conciliação como meios de tratamento adequado de conflitos, ela não traz as diferenças dentre mediação e conciliação, as quais são significativas. Conforme destaca o artigo 4º da Resolução 125, “compete ao Conselho Nacional de
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O legislador tem tomado algumas medidas. O Conselho Nacional de Justiça – CNJ
Justiça organizar programa com o objetivo de promover ações de incentivo à autocomposição de litígios e à pacificação social por meio da conciliação e da mediação” (CNJ, 2010). Esse dispositivo surge com o desafio de mudar a cultura e consolidar uma política mais participativa dos cidadãos na tomada de decisões, propagando a cultura da paz, em detrimento do excesso de litigiosidade no país. A Resolução trata das partes encontrarem uma solução para seus conflitos, ou seja, o acordo, mas seus propósitos precisam ir além: “pela estrutura da mediação se melhora a qualidade de vida dos envolvidos no conflito. Na mediação se usa o conflito para melhorar a qualidade de vida, por aí se organiza o segredo de sua pedagogia” (WARAT, 1999, p. 39). O fim máximo da mediação é estimular a emancipação social, permitindo a inclusão, a promoção da democracia e da cidadania. Além disso, foi promulgada a Lei nº 13.105, a qual dispõe sobre o Novo Código de Processo Civil. O Código regulamenta vários artigos e seções sobre as formas de resolução de conflitos, e descreve que os sujeitos do processo judicial devem estimular a conciliação, a mediação e outras formas de solução consensual de conflitos. Essa diretriz aparece no artigo 165 do Novo Código de Processo Civil, segundo o qual “os tribunais criarão centros judiciários de solução consensual de conflitos, responsáveis pela realização de sessões e audiências de conciliação e mediação e pelo desenvolvimento de programas destinados a auxiliar, orientar e estimular a autocomposição” (BRASIL, 2015). No mesmo sentido da Resolução, surgiu a Lei nº 13.140/2015, estabelecendo o marco regulatório da mediação entre particulares e a autocomposição de conflitos na Administração Pública. A lei representa, “diante do insucesso da aposta no Estado como única e soberana instância, nova oportunidade para o resgate da autonomia dos sujeitos de direito na solução dos seus conflitos e um remédio para a crise de funcionamento do aparato judicial” (VAZ, 2016, p. 333). resolver conflitos entre cidadãos. Existem outras formas alternativas de praticar a Justiça, no âmbito da resolução de disputas, que podem ser até mais eficientes”. Se o objetivo é, de fato a pacificação, devem ser verificados outros meios com olhar de inovação, os quais servem, inclusive, para antever conflitos, precavendo-se de seus efeitos, fazendo com que o sistema possa operar antecipando-se aos conflitos futuros e os solucionando. Ao resolver conflitos por meios consensuais e diminuindo o fluxo de ações judiciais, os juízes terão menos processos para analisar, ocasionando mais tempo para se dedicar aos outros litígios, os quais, por que razão, terão mais celeridade. Outra consequência pode ser o 307
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Conforme resume Rodrigues Júnior (2006, p. 9), “o Estado não é o único capaz de
resgate da credibilidade da Justiça no atendimento das demandas da sociedade: De rigor, o direito, que só existe no plano das relações humanas, deve ser pensado não como instrumento que opõe um homem ao outro, mas como instrumento que harmoniza a convivência de ambos. Assim, as formas autocompositivas de solução de conflitos se submetem apenas aos textos legais cuja compreensão se revele adequada à solução do conflito concreto. É dizer: legitimam-se enquanto alternativa ao direito estatal positivado, sempre que a resposta legal não seja a mais adequada para a pacificação social. Casos há, portanto, em que o direito positivado atua como ultima ratio, remanescendo-lhe um caráter subsidiário na solução de dado conflito (VAZ, 2016, p. 382-383).
Portanto, não se tem o entendimento de que os meios consensuais sejam os únicos mecanismos adequados para a resolução de conflitos; o que se propõe é a inclusão de outras formas, mais simples, mais dinâmicas para a pacificação social, que visem à participação de cada cidadão na resolução de seus conflitos. O Poder Judiciário deixaria de ser o protagonista para ser subsidiário, pois seria acionado após a tentativa outros métodos, e também para aqueles conflitos que a ele pertencesse como melhor forma de resolução: Não há entre adjudicação e autocomposição uma relação de superioridade, senão de complementariedade recíproca. A autocomposição pressupõe a justiça e esta também se amplia para acomodar a forma consensual de solução dos conflitos de interesses aos casos em que é possível e recomendável (VAZ, 2016, p. 395-396).
Em uma sociedade multicultural como a brasileira, deve-se abrir espaço para novos meios de resolução de conflitos, sem deixar de lado a esfera processual, aplicando o método conforme o tipo de conflito, observando-se sempre as exigências e restrições da Administração
As políticas de tratamento autocompositivo dos conflitos não representam modos de privatizar a Justiça, mas o seu fortalecimento, a condição para prestar um serviço completo e adequado às circunstâncias complexas da vida social contemporânea. Assim, permite que os tribunais organizem, ao lado do sistema adjudicatório, estruturas sistêmicas informais que ampliem a gama de possibilidades de solução dos conflitos judicializados, assegurando maior satisfação aos usuários dos serviços judiciais (VAZ, 2016, p. 396).
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Pública:
O fato é que muitos conflitos ainda requerem a intervenção judicial, conforme ensina Cappelletti e Garth (1988, p. 76): “embora a atenção dos modernos reformadores se concentre mais em alternativas ao sistema judiciário regular, que nos próprios sistemas judiciários, é importante lembrar que muitos conflitos básicos envolvendo os direitos de indivíduos ou grupos, necessariamente continuarão a ser submetidos aos tribunais regulares”. Mas um número significativo de divergências pode ser objeto de análise e entendimento entre as próprias partes, ou com o auxílio de um terceiro, como destacam Cappelletti e Garth (1988, p. 71), “existem muitas características que podem distinguir um litígio de outro. Conforme o caso, diferentes barreiras ao acesso podem ser evidentes, e diferentes soluções, eficientes”. Dessa forma, os meios consensuais de resolução de conflitos não são excludentes, pelo contrário, têm caráter de inclusão. As formas tradicionais continuarão essenciais: Por mais importante que possa ser a inovação, não podemos esquecer o fato de que, apesar de tudo, procedimentos altamente técnicos foram moldados através de muitos séculos de esforços para prevenir arbitrariedades e injustiças. E, embora o procedimento formal não seja, infelizmente, o mais adequado para assegurar os “novos” direitos, especialmente (mas não apenas) ao nível individual, ele atende a algumas importantes funções que não podem ser ignoradas (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 164).
Nessa senda, fazem-se necessárias formas de solução de conflitos que estejam ao lado das formas tradicionais, mais apropriadas à realidade da sociedade brasileira. Vaz (2016, p. 383384) ensina que “a riqueza multicultural da pós-modernidade oferece espaço para ambos os modelos de solução de conflitos. A polarização entre adjudicação e meios consensuais, sem considerar o contexto fático em que se desenvolvem, é falaciosa”. A utilização de cada um dos
Levando em conta que o conflito é um processo complexo e assim também o são os métodos de solução que aportam disponíveis, somente a partir da distinção dos alcances de cada método e de sua respectiva utilidade estratégica será possível definir qual o mais adequado. A escolha entre a adjudicação e a autocomposição depende das particularidades de cada caso e da vontade esclarecida dos interessados (VAZ, 2016, p. 386).
Assim, a utilização dos meios consensuais pelo Poder Público torna-se de extrema 309
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mecanismos dependerá do conflito existente,
relevância. A propósito, destaca Vaz (2016, p. 286) que “a Administração Pública passa por uma transição do modelo de repressão para a gestão da correção acordada. Um novo paradigma que aposta no aperfeiçoamento das técnicas consensuais como a mediação e a conciliação e no fim do burocratismo paralisante”. Por isso, é necessária uma mudança de mentalidade de maneira que a sociedade compreenda os benefícios advindos dos meios consensuais, e que o Estado perceba a urgente necessidade de contribuir para a mudança de paradigma, que seus passos sejam na direção da cultura da paz, “o papel do Poder Público passa a ser fundamental, na medida em que é constitutivo do problema e óbice à própria solução. Precisa ser repensado” (VAZ, 2016, p. 186). Nessa perspectiva, é necessário que o Estado incentive meios adequados de resolução de conflitos, assim como os utilize nos conflitos em que é parte, contribuindo, juntamente com a população, para a diminuição da conflitualidade e da judicialização das relações sociais. 3.1.2 Negociação A negociação é um procedimento habitual nas relações humanas. Também é um mecanismo autocompositivo, mas difere da mediação, pelo fato de que ainda há a comunicação entre as partes, não necessitando de auxílio externo. Neste procedimento, as partes encontram diretamente a solução para seus conflitos, ou seja, “na negociação, as partes chegam à resolução de conflitos satisfatoriamente por meio do método da autocomposição. Na negociação, não há nenhuma participação de terceiro, apenas as partes em conflito buscam, por elas mesmas, a solução da dissidência” (SALES, 2004, p. 36). Conforme a autora se trata de um procedimento comum na vida de todos, pois as pessoas estão sempre negociando. As partes não são obrigadas a cumprir com a decisão ajustada, exceto quando atribuída a validade jurídica, como no caso de um contrato (2004, p. 37). juiz/árbitro (a “terceira parte”, em linguagem antropológica jurídica), quando existe, é mera correia de transmissão de uma sequência de propostas e contrapropostas das partes com vista à convergência possível”. Diferencia-se, assim, da mediação, pois o juiz/mediador auxiliará as partes. Em relação aos conflitos que envolvem interesses transindividuais, é possível celebrar em juízo, ou antes da propositura da ação mediante termo de ajustamento de conduta. Trata-se de um método não adversarial de composição de conflitos, que se enquadra no método de negociação, uma vez que as próprias partes encontram uma solução sem necessidade de um 310
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De acordo com Vaz (2016, p. 254), “a negociação é uma estrutura decisória, em que o
terceiro, o que gera economia de recursos, maior flexibilidade na verificação do caso, e composição mais célere do conflito, viabilizando a prevenção do ilícito (SOUZA, 2012, p. 216217). 3.2 Arbitragem Nos primórdios da civilização, o Estado não estava presente, e as disputas eram decididas mediante violência, a denominada autotutela, nesse caso quem vencia era aquele com mais força física. Além dessa forma de solução entre as partes, sem a interferência do Estado, havia outras possibilidades: Considerando-se, ainda, os primórdios das civilizações, outra solução possível seria a “autocomposição”: solução pacífica da controvérsia, em que as partes, por si mesmas, põem fim às suas pendências, por meio de três formas distintas: a) desistência – o autor de uma pretensão abdica de seu intento em favor de seu adversário; b) submissão – ato inverso, ou seja, trata-se de admissão da pretensão pela parte contrária; e c) transação – as partes, por meio de concessões recíprocas, põem fim à disputa (RODRIGUES JÚNIOR, 2006, p. 21).
A solução da disputa dependia exclusivamente da vontade das partes, por isso este mecanismo era limitado. Quando as pessoas verificaram que este sistema parcial tinha falhas, procuraram instaurar outra forma, que fosse imparcial e pacífica. Nesse momento surgem os árbitros. Na época, essa função era destinada aos sacerdotes ou anciãos, uma vez escolhidos pelas partes. Não havia leis do Estado e os árbitros decidiam a controvérsia conforme os padrões culturais que regiam as coletividades. Mais tarde a solução de disputas foi absorvida pelo Estado. caso de um conflito. Os conflitantes deviam comparecer perante o pretor e se comprometer a aceitar a decisão que fosse tomada pelo árbitro escolhido. Com o fortalecimento do Estado, ele passa a nomear o árbitro, e a arbitragem facultativa dá lugar à arbitragem obrigatória. Assim, no momento que o Estado impõe uma decisão sobre as disputas entre os particulares, sem o compromisso das partes de aceitar a decisão, a justiça privada é substituída pela Justiça Pública, criando a Jurisdição (RODRIGUES JÚNIOR, 2006, p. 21-23). Portanto, há muito tempo a arbitragem vem sendo utilizada pelas partes, mediante convenção. No Brasil, o instituto passou a ser mais valorizado com as modificações 311
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A Lei das XII Tábuas, no Direito Romano, descrevia a regra que devia preponderar no
introduzidas pela Lei nº 9.307/1996, a qual regulamenta a arbitragem, alterada pela Lei n° 13.129/2015. A arbitragem difere significativamente da mediação e da conciliação. É entendida como método heterocompositivo, pois o poder de decisão sobre o conflito de interesses das partes é de um terceiro, ou seja, do árbitro escolhido pelas partes. A arbitragem pode ser definida como uma técnica que visa a solucionar questões de interesse de duas ou mais pessoas, físicas ou jurídicas, sobre as quais as mesmas possam dispor livremente em termos de transação e renúncia, por decisão de uma ou mais pessoas – árbitro ou os árbitros – os quais têm poderes para assim decidir pelas partes por delegação expressa destas resultante de convenção privada, sem estar investidos dessas funções pelo Estado (GARCEZ, 2004, p. 71).
Assim, o árbitro decide o conflito e impõe a decisão às partes. Conforme Warat (2004, p. 59), “na arbitragem, o risco da decisão corre por conta dos árbitros, da mesma forma que esse risco é assumido pelos magistrados no momento em que se decidem, judicialmente, os litígios”. As partes apresentarão suas demandas juntamente com os argumentos e justificativas ao árbitro, e este proferirá uma decisão, que se constitui em título executivo judicial, conforme o novo Código de Processo Civil. Conforme a Lei nº 13.129/2015, artigo 1º, §1º, a arbitragem pode ser utilizada pela Administração Pública: “a administração pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis”. Apesar de representar a decisão de um terceiro, é um instituto importante para disseminação da cultura da paz, uma vez que as partes têm autonomia na escolha do árbitro. De acordo com Cappelletti e Garth (1988, p. 81), “os reformadores estão utilizando, cada vez mais, o juízo arbitral, a conciliação e os incentivos econômicos para a solução dos litígios fora dos tribunais. Essas técnicas, é preciso que se diga, podem ser obrigatórias para algumas ou todas as demandas, ou Nesse sentido, é imprescindível verificar as possibilidades para a realização dos direitos do cidadão. Em diversos países são promulgadas e publicadas leis que dispõem sobre mecanismos alternativos de solução de conflitos, em particular a arbitragem que, sendo um mecanismo compromissório de solução de conflitos relativos a direitos disponíveis, está toda ela centrada na pretensão da busca do consenso, que está presente não apenas na convenção que optou pelo método, pelas regras aplicáveis, na indicação do(s) árbitro(s), no procedimento, nos objetivos do próprio procedimento, assim como o
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podem tornar-se disponíveis como opção para as partes”.
juiz quando chamado a intervir para a instauração do procedimento arbitral diante da resistência de uma das partes, terá por função buscar a conciliação acerca do litígio no momento da audiência que for designada para a lavratura do compromisso arbitral (MORAIS; SILVEIRA, 1999, p. 97).
Por conseguinte, espera-se que os meios adequados de resolução de conflitos sejam o início de uma mudança, a ponte para fazer a travessia de uma cultura judicialista, judicializada, para uma cultura dialógica, aproximando o cidadão do Estado, e harmonizando as relações humanas. 3.3 Modernos postulados da intervenção mínima do Estado e a máxima cooperação entre as partes Além dessas possibilidades, é importante verificar quanto aos modernos postulados de intervenção mínima do Estado e a máxima cooperação entre as partes. Tal análise surge em decorrência das caraterísticas da própria modernidade, pois como explica Bercovici (2004, p. 97), “o modelo de desenvolvimento implantado no Brasil a partir da Revolução de 1930, centrado na intervenção do Estado e no mercado interno como centro dinâmico da economia, vem sendo desmontado nos últimos tempos com base no discurso neoliberal, de “desregulamentação”, “desconstitucionalização”, “Estado mínimo” e “livre mercado””. A intervenção mínima ou não do Estado, segundo Morais, tem correlação com a soberania: A passagem do modelo de estado mínimo ao feitio liberal clássico para o tipo de Estado de Bem-Estar Social impõe a reconsideração do fenômeno da soberania. Enquanto o modelo liberal incorporava uma ideia de soberania como poder incontrastável, próprio a uma sociedade de “indivíduos livres e iguais” para os quais importava apenas o papel de garantidor da paz social atribuído ao Estado, o modelo cabe a tarefa de produzir a incorporação dos grupos sociais aos benefícios da sociedade contemporânea. Nesta função de patrocínio da igualdade transfere-se ao Estado um novo atributo que contrasta com este poder ordenador, qual seja a solidariedade. O caráter solidário do poder estatal, para muitos, substitui a sua característica soberana para incorporá-la na batalha cotidiana de superação das desigualdades e de promoção do bem-estar social, percebido como um benefício compartilhado pela humanidade toda (MORAIS, 2002, p. 30-31) [grifo do autor].
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de welfare state adjudica a ideia de uma comunidade solidária onde ao poder público
De acordo com Streck, o fato de o Estado estar numa situação de crise e haver a necessidade de criar políticas públicas não retiram do Estado a sua capacidade de combater as desigualdades, pois Há que se ter claro, assim, que em países como o Brasil, em que o Estado Social não existiu, o agente principal de toda política social (ainda) deve ser o Estado, isto porque não há maior dificuldade em compreender a equação exsurgente do fato de que as políticas neoliberais, que visam a minimizar o Estado, não apontarão para a realização de tarefas antiéticas a sua própria natureza.[…] É este, pois, o dilema: quanto mais, necessitamos de políticas públicas, em face de miséria que se avoluma, mais o Estado, único agente que poderia erradicar as desigualdades sociais, se encolhe! (STRECK, 2002, p. 79) [grifo do autor].
Nessa senda, as dificuldades econômicas e políticas fazem emergir a reflexão dos objetivos do Estado e de sua atuação para a efetividade desses objetivos. Entende Morais (2002, p. 94) que “o papel da Constituição não está terminado, mesmo que esteja passando por uma reformulação profunda, produto de uma realidade nova que impõe seja ordenada levando-se em consideração o seu cunho aberto e universalizado”. Para o autor, o Estado passa por mudanças às quais são decorrentes das novas demandas da atualidade. Entre essas mudanças, inserem-se os meios consensuais de resolução de conflitos, os quais apontam para uma menor intervenção do Estado, oportunizando ao cidadão a participação nas decisões de seus próprios conflitos. [...] o Estado, detentor da força legítima, deveria ser a última instância, a ultima ratio a recorrer para lidar com os conflitos. Porém, o Judiciário é o primeiro a ser recordado e o primeiro a ser utilizado, numa completa inversão de valores que começa pelo mais distante, burocrático, custoso e lento meio de lidar com os conflitos para depois, então, quer dizer com isso é que a mediação deveria ser a regra e a Jurisdição a exceção. Deveria ser, mas ainda não é! (SPENGLER, 2016, p. 123-124) [grifo da autora].
Nessa perspectiva, a cooperação entre as partes torna-se primordial importância. Deve haver, pois, o tratamento dos conflitos, ou seja, a possibilidade de as próprias pessoas conversarem e chegarem a um entendimento, pois os conflitos sempre existirão, não há um término quando se trata de relações humanas e sociais, imprescindível saber conviver com eles e cooperar entre si.
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de maneira “alternativa”, buscar a mediação como meio mais “adequado”. O que se
Aliás, apenas a normatização não é suficiente para amenizar ou resolver os conflitos, e por consequência promover uma igualdade de direito e solidariedade entre os cidadãos, como lembra Sarlet (1999, p. 166): “[…] nem a previsão de direitos sociais fundamentais na Constituição, nem mesmo a sua positivação na esfera infraconstitucional poderão, por si só, produzir o padrão desejável de justiça social, já que fórmulas exclusivamente jurídicas não fornecem o instrumental suficiente para a sua concretização”. Portanto, a solução não advém apenas do âmbito do sistema jurídico, mas da legislação adequada e do envolvimento de cada cidadão. Consoante sinalizado, muitos conflitos existentes na sociedade brasileira decorrem de sua característica multicultural, cujo não acolhimento por muitas políticas públicas estatais leva o cidadão a ajuizar ações na tentativa de ver reconhecida sua diferença identitária e cultural. No entanto, é necessária a interação entre as culturas, no sentido de que pode haver uma contribuição mútua entre elas, como lembra Taylor (1998, p. 93): “existem outras culturas e a necessidade de vivermos juntos, tanto em harmonia numa sociedade, como à escala mundial, é cada vez maior”. A cooperação e a interação se fazem cada vez mais necessárias, pois as pessoas constituem suas identidades justamente no convívio com o outro, e para isso é primordial o respeito entre todos. A necessidade de organização da sociedade fez com que houvesse a criação de obrigações e sanções descritas em lei, no entanto, a ordem pública não depende apenas da legislação, pois as pessoas devem participar nos processos de melhoria das relações sociais. Diante disso, o Estado deve oportunizar ao cidadão espaços e mecanismos apropriados para desenvolver sua autonomia na condução dos seus conflitos, seja entre particulares, seja com os próprios órgãos públicos, sem que isso signifique a diminuição ou extinção dos poderes estatais, pois é inegável a sua primordial importância para a sociedade. Os caminhos para diminuir a conflitualidade estão abrangidos pela legislação, faz-se realizadas nesse sentido, modificando inclusive a cultura do litígio, tão presente na sociedade brasileira, para ensejar, então, a cultura da paz.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao possibilitar a autonomia do cidadão na resolução de seus conflitos, incentiva-se a cidadania participativa, com o Estado mudando seu perfil, auxiliando na autonomia do cidadão 315
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necessário, a partir desse momento, a conscientização de todos para que as ações sejam
e incentivando a utilização de meios céleres e eficazes para a resolução e tratamentos dos conflitos, e para a diminuição da conflitualidade nas relações sociais. Esses procedimentos indicam, ainda, uma forma de gestão democrática, oferecendo vantagens em relação à solução adjudicada, devendo ser prezada a convivência harmoniosa de ambas. Os conflitos possuem diversas origens e por isso é importante que sejam verificadas suas características e realizada a opção pela melhor forma para sua resolução. Muitos conflitos precisam ser revolvidos pelo Poder Judiciário pela complexidade que possuem, mas muitos podem ser revolvidos pelas próprias partes sem intervenção de um juiz. Nesse sentido, a perspectiva analisada não é a desnecessidade do Poder Judiciário, mas sim voltada à complementação de mecanismos. Diante da judicialização verificara-se que os direitos sociais fazem parte dos direitos essenciais do ser humano, no entanto, a busca pela garantia desses direitos não precisa refletir em um litígio, cabendo à Administração Pública não protelar essa garantia com ações e recursos judiciais, aumentando o desgaste entre Poder Público e sociedade. Ao realizar o estudo sobre os conflitos e as possíveis formas de diminuí-los para que não se tornem verdadeiros litígios soa unânime a defesa das mudanças na estrutura de solução de conflitos, bem como o entendimento de que é necessário oportunizar uma maior participação do cidadão, e que os meios, inclusive sua utilização nos conflitos que envolvem o Poder Público, proporcionam subsídios para a pacificação social. Os caminhos que levam a uma maior harmonia entre as pessoas, e menos conflitos são fomentos para que a cultura do litígio se transforme em cultura da paz, de modo que a pacificação social esteja presente nos ideais de cada cidadão. Defende-se, portanto, a possibilidade da prática dos meios consensuais de resolução de conflitos. Esses mecanismos, assim, revelam-se potenciais para diminuir a conflitualidade. Ademais, isso amplia a participação do cidadão na construção da solução de seu conflito, aos direitos, e proporciona relações mais harmoniosas entre as pessoas, e entre estas e o Estado.
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WARAT, Luis Alberto. Ecologia, psicanálise e mediação. Traduzido por Julieta Rodrigues.
CONSENSUAL MEANS OF CONFLIT RESOLUTION: POSSIBLE WAYS TO REDUCE CONFLICT AND ENABLE THE CULTURE OF PEACE
ABSTRACT The article deals with the conflicts originated from social relations and the possibilities that can be used to reduce conflict. Through the hypothetical-deductive approach and the historical, monographic and dissertation procedures, the study it started from of controversies appearance and their characteristics; then, it checked the possibilities to treat and reduce them, highlighting the autocompositive means. Providing by a reduced state intervention that maximizes the cooperation of the parties through adequate mechanisms of conflict resolution is an essential way to reduce conflicts and enable social pacification. Keywords: Conflicts. Consensual means of conflict resolution. Culture
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of peace.
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O ABUSO DOS PRINCÍPIOS À LUZ DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 4650 Diego Ferreira Pimentel1 Victor Frank Corso Semple2
RESUMO O artigo debate a aplicabilidade dos princípios e regras sob o enfoque do abuso dos princípios na tomada de decisão pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4650, que declarou a inconstitucionalidade da doação de empresas para campanhas eleitorais. Essa alegada abusividade principiológica é verificada a partir da construção argumentativa da decisão. Ao final, este trabalho conclui que a ação pautada baseou suas premissas no abuso das normas axiológicas mediante a ausência de pressupostos empíricos que justificassem seus enquadramentos normativos. Palavras-chave:
Abuso
de
princípios.
Neoconstitucionalismo.
1
Graduando em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Bolsista do Programa de Estágio Voluntário de Iniciação Científica (PEVIC/UEFS). 2 Graduando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Membro do Centro de Pesquisa em Direito Constitucional Comparado (CPDCC/UnB). Estagiário no Supremo Tribunal Federal.
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Supremo tribunal federal. ADI nº 4650.
1 INTRODUÇÃO
Criticar as decisões, ou o modo de decidir, do Supremo Tribunal Federal parece ser um lugar comum na esfera jurídica. Esse fato tem um lado positivo e um negativo. O positivo é que o debate realizado dificilmente será menos apurado que a constatação originária. O lado negativo é que a crítica, sem que se estabeleçam os marcos teóricos pelos quais esta se realiza, ou mesmo sem que se tente entender a razão daquela instituição agir como age, pode desaguar reflexamente num modelo pior do que aquele que se pretendia criticar. Para não desaguar nesse erro, será traçada, neste artigo, uma espécie de genealogia de algumas categorias sobre o debate da aplicabilidade dos princípios e regras. A exposição destas se subdividirá em quatro momentos, o que possibilitará ao leitor uma compreensão dinâmica do debate. De maneira pormenorizada, será estudada a decisão do Supremo Tribunal Federal no caso da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4650, que vedou a doação de empresas privadas para campanhas eleitorais, estabelecendo-se, no primeiro momento, o que se convencionou denominar por neoconstitucionalismo e sua responsabilidade pela redução do sistema jurídico à confusão entre Direito e Política. Em seguida, será exposta a distinção de duas categorias fundamentais para compreensão do debate tratado: as regras e os princípios. Tendo em vista propor ao leitor uma compreensão sobre a distinção dessas espécies normativas a partir dos pensamentos de Ronald Dworkin, Robert Alexy e Klaus Günther, especificando as principais características trazidas em suas teorias. Com base nas categorias normativas traçadas por esses autores, dá-se início ao debate sobre o abuso de princípios na prática jurídica, de forma a abordar o que seria essa prática jurisdicional abusiva e quais seriam os fatores jurídicos que a ensejam, ao que se realizará
O quarto momento diz respeito ao objeto central, isto é, o abuso de princípios na tomada de decisões por parte de membros do Poder Judiciário. Neste sentido, delimitou-se o problema a um caso concreto para indicar essa prática jurídica, que suplanta a aplicação de regras vigentes e válidas, a troco de uma invocação retórica de princípios constitucionais. Dessa forma, estabeleceu-se os contornos dessa invocação retórica dos princípios, no que concerne à sua aplicação sem a constatação empírica de fatos que ensejassem a invalidade das regras que, a princípio, vinculariam aquela situação, bem como no tocante à inobservância de outros
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críticas às teorias apresentadas.
pressupostos normativos. Não se trata, portanto, de uma análise do mérito da ADI 4650, mas de uma observação do método de sustentação dos argumentos abordados na ação. Conclui-se, que tanto a fundamentação da petição inicial da Ordem dos Advogados do Brasil – proponente da ADI –, como o voto do ministro-relator, Luiz Fux, foram incapazes de demonstrar como a doação empresarial poderia conflitar com os princípios invocados. Essa visão derivou do fato de que se inobservou a presença de quaisquer dados concretos que corroborassem as inferências sustentadas na petição e voto citados, de modo que esta viesse a incidir na posterior declaração de inconstitucionalidade.
2 O NEOCONSTITUCIONALISMO COMO FATOR DE EXPANSÃO DA ATUAÇÃO JUDICIAL
A refundação do Estado brasileiro, após o fim da ditadura civil-militar que perdurou no Brasil entre a década de 60 e 80, fez emergir um novo sistema jurídico na história constitucional do país. Anteriormente alcunhadas como Cartas Políticas, consideradas mera ordenação de programas de ação, isto é, sem efetividade formal de suas normas, as Constituições predecessoras à Constituição Federal de 1988 foram marcas, essencialmente, da inconsistência democrática que viveu o país nas décadas antecedentes (BARROSO; BARCELLOS, 2003, p. 142). Esse cenário, contudo, rompeu-se com a Constituição Federal de 1988. Sob um viés amplamente analítico, a nova Constituição brasileira, seguindo os passos da Constituição alemã de 1949 e da Constituição italiana de 1947, normatizou uma série de programas de desenvolvimento, moldou políticas públicas prestacionais e ampliou o rol dos direitos fundamentais. Expandiu-se, portanto, a abrangência, e a aplicabilidade, das normas
Estado não-interventor, que regularia apenas o lícito e o ilícito (BARROSO, 2005, p. 3-4), e se estabeleceu uma ordem constitucional que concebia transversalmente o direito e a política3. Contudo, essa perspectiva ampliadora das normas constitucionais esbarrou diante da complexidade da sociedade moderna brasileira. Perante diversos entendimentos sobre como o
3
Na teoria elaborada por Luhmann (1996, p. 1-8), a Constituição é compreendida como um fato diferenciador do direito e da política, atuando, concomitantemente, com a função acoplar os dois institutos, ao que incorre numa relação transversal entre ambos, isto é, contribuindo para que a relação construtiva entre ambos, na medida em que o crescimento de um deles comprometeria o funcionamento do outro.
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constitucionais. Sob as vestes do denominado neoconstitucionalismo, findou-se a ideia de um
Estado deveria atuar, em face de valores conflitantes e, especialmente, em razão de o país comportar proporções continentais, abrigando variadas expressões culturais, cresceu-se a necessidade da edição de normas de conteúdo abstrato que não estabeleceria, em tese, sua consequência jurídica final (CAPPELLETTI, 1993, p. 40-56). Por consequência dessa abertura textual, naturalizou-se a divergência sobre o sentido da aplicabilidade normativa, o qual variaria a partir do referencial do sujeito que a interpreta por meio dos seus valores. No plano judicial, essa conjuntura teve como consequência um problema de contingenciamento, na medida em que, diante da diversidade de expectativas normativas de uma sociedade complexa, a falta de objetividade das normas possibilitou ao magistrado interpretá-las de diversas maneiras, sem que, necessariamente, sua interpretação confronta-se as normas vigentes (NEVES, 2013, p. 56-63). Para exemplificar, um juiz com histórico de atuação em movimentos sociais em defesa de minorias, em vista do princípio da igualdade, poderia consubstanciar a promoção de políticas afirmativas pelo Estado como amparada pelo texto constitucional, ao passo que outro, sem relação com tais movimentos, poderia ter uma visão inversamente proporcional, e nenhuma dessas visões poderiam ser tidas, a princípio, como afrontosas à vontade do legislador constituinte, criando-se uma incerteza sobre a resposta jurisdicional. Por outro lado, rompeu-se com o viés de que a Constituição seria um documento político que apontaria os caminhos a serem traçados pelo legislador ordinário sem, entretanto, vinculá-lo. A Constituição Federal de 1988 consagrou em seu sistema a força normativa de seu texto, amparado pela expansão da jurisdição constitucional e da nova interpretação constitucional (BARROSO, 2005, p. 5-12). Não é objetivo deste estudo, contudo, esgotar os critérios conceituais acerca do neoconstitucionalismo que passa a se desenvolver no Brasil a partir da Constituição Federal de 1988. Em face disso, importa centralizar o debate a algumas críticas que apontam como esse novo regime jurídico carrega consigo parte da responsabilidade
da política. Consoante apontado no início deste ponto, a complexidade das relações sociais conduziu o sistema jurídico à impossibilidade de prever, através de dispositivos normativos, as inúmeras situações pelas quais o cidadão ensejaria que a lei (em sentindo amplo) abarcasse. Esse cenário compeliu o legislador (constituinte e ordinário) à edição de normas abstratas que não preveriam uma situação jurídica concreta na qual atuaria, sendo aplicada a partir de critérios reflexivos mediante um caso concreto.
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pelo deslocamento do judiciário ao centro do debate político no país através da judicialização
Concomitantemente a essa abertura textual, o ordenamento jurídico elevou a norma constitucional ao ápice do sistema normativo, impondo sua aplicabilidade e interpretação em face das normas ordinárias. Esse fator criou a problemática de como aplicar uma norma aberta num caso concreto, uma vez que não disporia de um conteúdo que permitisse sua subsunção a este. Nessa circunstância, houve o crescimento da atuação do judiciário, uma vez que o intérprete (em sentido estrito) passou a ser convocado, continuamente, a aplicar, e interpretar, normas principiológicas diante de demandas levadas ao judiciário, incorrendo, em diversas oportunidades, no abuso dos princípios. Como efeito dessa conjuntura, percebe-se que o neoconstitucionalismo conduziu o judiciário ao centro do ordenamento jurídico em função da interpretação das normas principiológicas, especialmente a interpretação realizada pelo Supremo Tribunal Federal, ao que se elevou a figura do magistrado a uma espécie de atribuidor da última palavra, ainda que o próprio ordenamento jurídico assim não o conceba (VICTOR, 2015, p. 221-234). Esse enfoque na figura do magistrado conduziu a uma limitação no papel de criação do direito pelos órgãos representativos, de forma obscurecer a atuação do legislador (SARMENTO, 2009, p. 12-15). Na medida em que a atuação do judiciário, com ênfase na aplicação de normas abertas, ignora que a legislação (com conteúdo objetivo) resulta das múltiplas visões existentes na sociedade, visões essas que são expressas pelo parlamento, sendo que essa legitimidade popular não é observada nos órgãos judiciais (WALDRON, 2003, p. 37). Importa, antes de adentrar ao debate sobre o abuso na aplicação das normas, tecer alguns comentários acerca da distinção entre as normas de cunho axiológico e aquelas de dotadas de enunciados objetivos. Nesse passo, o próximo item centrará o debate sobre como se observa a distinção doutrinária entre os princípios e as regras, bem como o seu modo de
3 A DISTINÇÃO ENTRE PRINCÍPIOS E REGRAS NO DIREITO E A EXPANSÃO DA DOUTRINA DOS PRINCÍPIOS NO BRASIL
O problema enfrentado nesta seção do artigo é a ascensão acrítica do uso prático dos princípios na jurisdição constitucional brasileira. Sobre a questão, é importante tratar: da condição principiológica da modernidade; das teorias da distinção entre regras e princípios jurídicos; e da crítica a tal distinção, com foco na possibilidade de abuso dos princípios pelo intérprete constitucional. 324
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aplicação.
A modernidade nasce anunciando princípios. A experiência da Revolução Francesa remete à importância da ruptura total com o absolutismo para construção de uma nova sociedade. J. J. Canotilho (1998, p. 43-95) ensina que, naquele momento, era necessário “criar tudo a partir do nada” – essa foi a ideia do poder constituinte francês. O rompimento se fortificou em duas noções contemporâneas da época: a de direitos humanos e a do Império da razão. A articulação entre iluminismo e os direitos humanos levou em conta as evidências racionais da transformação dos direitos naturais para um novo direito de base ético-moral. Os princípios universais indisponíveis criaram uma justiça moral transcendente (CARVALHO NETTO; SCOTTI, 2011, p. 21-22). Ocorre que esse fundo de justiça moral foi totalmente ignorado pelo movimento de codificação que se sucedeu. A racionalização exacerbada queria contemplar numa legislação moderna todo conteúdo jurídico possível – o que estava fora não era direito. Nesse sentido, leitura da norma e interpretação eram atividades separadas, interpretadas eram somente aquelas normas que tivessem problemas comunicativos. Exaustivamente provado que era impossível dotar um código de todo conteúdo jurídico, começam os juízes a criar as chamadas lacunas e a chamarem para si a função de preenchê-las hermeneuticamente, como forma de resolução de problemas de aplicação (COSTA, 2013, p. 9-46). Nesse ínterim, cabe tratar, suscintamente, da construção hermenêutica do direito sob o paradigma do Estado de bem-estar social. O século XX afirmará que não há nada sem interpretação, qualquer leitura é interpretação. As Constituições sociais, como a Constituição alemã de 1919, começaram a prever direitos sociais e normas programáticas e isso era refletido na atividade legislativa. Os Parlamentos começam a atribuir força ao Judiciário para que materializasse os direitos sociais presentes nas Constituições e, ainda, conferiram autoridade aos tribunais para estes interpretarem regras a partir, diretamente, da Constituição e a tomarem
Na experiência nazifascista, os juristas arguiam a necessidade de que as regras jurídicas deveriam orientar-se por princípios de ordem valorativa e por finalidades. Marcelo Neves argumentará que um modelo de regras seria fatal para o totalitarismo, o que levou, justamente, os regimes a orientarem-se por princípios que seriam condizentes com a ideia de realização do espírito comum do povo (NEVES, 2013, p. 173-174). Na contramão dessas ideias, Hans Kelsen (1998, p. 349) preferiu tratar do problema da interpretação como uma questão de autoridade. O sistema de regras por ele desenhado buscava resolver todos os problemas de aplicação, transformando a arbitrariedade do legislador 325
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decisões válidas para todos (COSTA, 2013, p. 9-46).
na discricionariedade do intérprete. No entanto, no projeto de dominar a linguagem, Kelsen acabou traído por sua própria teoria pura. Em 1960, o jurista austríaco adiciona um parágrafo na edição revisada, em que reconhece que nada pode o sistema fazer se o aplicador transborda a moldura normativa. É o giro decisionista, notório também em Herbert Hart, ao tratar dos chamados casos difíceis. A conclusão inafastável é o desmoronamento do sistema de regras e a possibilidade de arbítrio pela autoridade aplicadora num sistema amplamente principiológico. Ainda, tem-se que as ideias de Immanuel Kant são o ponto de partida desta discussão. Seu projeto de construção de uma normatividade universal remete à própria ética do indivíduo. O filósofo trabalha por máximas, imperativos categóricos, que pretendem regular todo o comportamento humano. Apesar de Kant tratá-los como ponto de partida da conduta, também pretende que estes possam regular toda e qualquer situação fática diante da qual se coloca o agente. Isto é, o aprisionamento das condições de aplicação de toda conduta previamente definida como universal. No entanto, importa notar que as máximas kantianas, na verdade, deveriam ser tratadas apenas como ponto de partida de uma teoria do conhecimento, ou seja, tratá-las como princípios, e não como regras. Esta é a premissa do que seguirá. Nesse sentido, dois autores são imprescindíveis na tentativa de explicar a preponderância de uma doutrina de princípios nos sistemas jurídicos, Ronald Dworkin e Robert Alexy. Para Ronald Dworkin, a lógica normativa é deontológica, ou seja, orienta-se segundo as escolhas moralmente estabelecidas que são, a seu tempo, vinculantes. As normas protegem valores, sem hierarquizá-los. Valores são escolhas intersubjetivas de lógica plúrima e axiológica. Nesse sentido, as normas são binárias: algo é moral ou imoral, legal ou ilegal, inconstitucional ou constitucional. A partir dessa primeira noção, há, segundo Dworkin (2002, p. 36), uma diferença lógica entre princípios (em sentido geral) e regras, que classifica como dois padrões de comportamento. As regras são normas jurídicas que pretendem regular todas as suas situações
observado, como exigência de correção e que não pretendem regular as circunstâncias de sua aplicação. Para o autor, o ordenamento é principiológico e decorrente da moral objetiva daquela comunidade. As regras, seriam densificações dos princípios. A regra opera sob o tudo ou nada. Ou ela é válida e deve ser aplicada, ou ela não é válida e deve ser afastada em razão da incidência de outra regra, ou, ainda, de uma exceção previamente estabelecida (DWORKIN, 2002, p. 40). Esse choque no plano da validade é característico entre regras. Os princípios, por outro lado, não têm a pretensão de regular as condições que façam com que sua regência seja necessária no caso concreto. O princípio 326
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de aplicação. Enquanto os princípios são normas jurídicas que oferecem um padrão moral a ser
enuncia uma direção, mas a aplicação do princípio permanece condicionada à situação particular. Se dois princípios colidem, o fazem, pois há uma tensão produtiva entre eles e não porque há um válido e outro inválido. Os princípios possuem um caractere que não é observado nas regras: a dimensão do peso ou da importância. Sendo assim, os princípios se intercruzam em tensão produtiva, não no plano da validade, mas na consideração do peso relativo de cada um para reger um caso concreto (DWORKIN, 2002, p. 42-43). Se os princípios são base do sistema e carregam o peso da correção normativa, exigese mais deles do que somente o funcionamento como regra. É por isso que Dworkin tratará dos chamados trunfos que os intérpretes têm para barrar políticas. Para além da constitucionalidade das políticas editadas (principalmente pelos Parlamentos e pelo Executivo), os princípios são barreiras de fogo para que, em casos concretos, eles possam barrar qualquer contradição com a liberdade e a igualdade e com as condições de igual respeito e consideração (CARVALHO NETTO; SCOTTI, 2011). Robert Alexy (2003), por sua vez, sofistica a diferença na teoria de Dworkin em termos argumentativos. Para ele, os direitos fundamentais podem apresentar duas faces: uma estreita e estrita (regras) e outra ampla e extensa (princípios). Sua teoria baseia-se fundamentalmente na experiência prática do Tribunal Constitucional Alemão. A teoria de Alexy trata de racionalizar o balanceamento (difundido no Brasil como ponderação) a partir de uma técnica rigorosa que considere os princípios como comandos de otimização, ou seja, devem ser aplicados “na maior medida do possível” (MARTINS; OLIVEIRA, 2006, p. 249). Diferente da tese de Dworkin, para o alemão há uma lógica axiológica. Os princípios constitucionais, além de proteger valores, poderiam ser eles mesmos valores do intérprete. Para explicar a distinção entre regras e princípios para Alexy, que pretende ser mais rígida do que a de Dworkin, faz-se importante tratar do conflito entre estes. Para ele, o conflito declaração de que uma das duas é inválida – sendo uma discussão no plano da validade. Já em um conflito entre princípios, não haveria discussão sobre validade, mas sim sobre o valor de cada um na situação concreta (MARTINS; OLIVEIRA, 2006, p. 250). A teoria de Alexy recebeu duras críticas de Jürgen Habermas. Para este, a Corte Constitucional Alemã teria mesmo forte influência axiológica, mas que isso não contribuía positivamente para a proteção que o Direito tem de dar aos valores sociais. O risco, ressaltado por Habermas, encontra-se, justamente, no abuso argumentativo dos princípios, que esvaziaria o caráter normativo da Constituição em favor de seu valor. Inverte-se, então, a lógica de 327
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de regras poderia levar a duas soluções: a introdução de uma exceção (via argumentação) ou a
Dworkin, que afirma que a situação concreta ofereceria ao intérprete o princípio regente do caso. A crítica de Habermas afirma que, através da ponderação de princípios, poderia o juiz escolher o princípio de acordo com seu valor, afastando a normatividade. Isso possibilitaria conclusões do tipo mais ou menos inconstitucional4. Para superar a diferença estrutural entre regras e princípios, Klaus Günther retoma as ideias de aplicação das normas de Dworkin e de Alexy. Para ele, há dois discursos distintos e orientados por questões diversas: o discurso de justificação e o discurso de aplicação. Seu ponto de partida é: apenas a fundação das normas jurídicas é guiada pela ideia de Habermas (1997, p. 215-216) de universalização. A inviabilidade dessa universalização na aplicação das normas dialoga com a ideia de argumentos de política de Dworkin – é impossível universalizar o caso concreto. Günther (2004, p. 67) contesta a universalidade normativa kantiana no plano da validade. Apesar de, para Kant, a norma universal ser tida como válida, que, embora sabidamente limitada, não abandona sua pretensão, para Klaus Günther, uma norma somente é válida na sua aplicação, e não em sua justificação, se “as consequências e os efeitos colaterais de sua observância puderem ser aceitos por todos, sob as mesmas circunstâncias, conforme os interesses individuais de cada um” (2004, p. 65). É por isso que as regras não contêm todos os efeitos colaterais de sua aplicação. A justificação conclui que as diversas possibilidades normativas aparentemente aplicáveis a um caso são igualmente legítimas e válidas – quer se considere elas como princípios, quer como regras. Importa notar que, somente no momento da aplicação é que, considerando todas as circunstâncias, se decide pela mais adequada. Trata-se, portanto, da ideia de adequabilidade (MARTINS; OLIVEIRA, 2006, p. 246). Em síntese, o caráter definitivo das normas não pode ser verificado senão na consideração das reais condições concretas. Para Günther, obrigações jurídicas somente surgem
de aplicação normativa.
4
Apesar de não ser o intuito do artigo, tem-se que o instituto da interpretação conforme a Constituição, largamente utilizado pelo Supremo Tribunal Federal, transforma normas válidas em mais ou menos inconstitucionais ao não declarar sua inconstitucionalidade, mas a inconstitucionalidade de alguma (ou de algumas) de suas possíveis interpretações. Isto, de certa forma, contribui para o esvaziamento normativo das decisões do STF e de sua crise de legitimidade.
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após a consideração de todas as circunstâncias relevantes, ou seja, como resultado de discursos
4 O ABUSO DE PRINCÍPIOS NA PRÁTICA JURÍDICA
A partir dos conceitos tratados importa adentrar ao debate acerca do abuso dos princípios na prática constitucional. Em síntese, serão combinadas as principais críticas doutrinárias a esse sistema, no que concerne à sua aplicabilidade. Ademais será introduzida, no ponto seguinte, uma demonstração empírica dessa conduta na decisão do STF da ADI 4650, acerca da proibição de doações empresariais a campanhas eleitorais. Como abordado anteriormente, na teoria formulada por Dworkin (2002, p. 34-46), as regras se configuram como uma norma absoluta que será aplicada pelo critério do tudo ou nada, isto é, diante de um fato concreto, aquela norma será válida ou inválida perante o caso, neste último caso sendo afastada enquanto solução jurídica. Os princípios, distintamente, seriam padrões de justiça, ou de isonomia social, que devem ser seguidos e aplicados a partir de uma dimensão de peso ou importância, definindo-se qual é sua relevância, de modo a confrontar a norma perante a situação em julgamento. Tratando da possibilidade de reinterpretação de uma regra a partir dos princípios, sustenta-se que essa mudança de interpretação deve favorecer um outro princípio vigente, de modo que esta norma justificará sua alteração. De maneira sucinta, não será qualquer norma principiológica que legitimará essa alteração, esta deverá, dentro de sua dimensão de importância, suplantar as demais normas colidentes, de modo a sobressair-se em relação àquelas que legitimam a aplicabilidade da regra, assentando-se o novo entendimento (DWORKIN, 2002, p. 34-46). Esse processo de superação da regra depende de uma ampla conexão entre as disposições constitucionais principiológicas vigentes que demonstram a legitimidade constitucional na inaplicabilidade daquela norma tida como inválida, sendo, portanto, inconcebível a atribuição de uma dimensão de importância ao princípio de modo que este supere
primazia na aplicabilidade das normas de conteúdo objetivo na concretização da resposta jurisdicional aos casos conduzidos à esfera judicial, especialmente se estiverem num mesmo grau hierárquico. Observa Marcelo Neves (2013, p. 191-192), no entanto, que esta não tem sido a conduta praticada na realidade jurídica brasileira, ao contrário, nota-se uma adoção do que denominou por principialismo pelos órgãos jurisdicionais. Em sua visão, o fascínio pelos princípios na prática brasileira sugere a superioridade intrínseca destes em relação às regras, tendo como consequência a compreensão errônea de que é possível afastar uma regra através 329
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uma regra ao mero arbítrio do intérprete-aplicador (NEVES, 2013). Verifica-se, portanto, uma
da invocação retórica das normas-princípio. O que conduz à negação da consistência do sistema jurídico, pelo qual se substitui a força normativa da Constituição pelos interesses de grupos particulares que buscam na via judicial a concretização de seus anseios. Entende-se que esse abuso da aplicação dos princípios é potencializado por diversos fatores, alguns descritos na seção em que se discutiu o desenvolvimento do neoconstitucionalismo. O principal, todavia, está intimamente associado à estrutura dos princípios, isto é, a adoção de normas de valor axiológico que não preveem, a princípio, a norma de decisão a ser extraída. Essa estrutura normativa aberta possibilita ao intérprete um amplo espaço de liberdade de atribuição de sentido à norma jurídica no seu processo de aplicação. Dessa forma, ainda que o próprio Dworkin (2002, p. 34-46) negue a existência de um espaço de discricionariedade ao intérprete na aplicabilidade dos princípios, uma vez que sua teoria assenta que diante de uma norma principiológica o magistrado se vincula a uma dimensão de peso para definir seu modo de atuação no caso concreto, restringindo-se essa discricionariedade a um sentido fraco, a prática jurídica brasileira tem demonstrado que essa submissão às dimensões de peso é ilusória. O uso retórico dos princípios na busca de respostas jurisdicionais plúrimas se demonstra recorrente (NEVES, 2013, p. 196-220), ao que ocasiona a existência de “não mais uma interpretação da Constituição, mas uma constituição do intérprete” (AZZARITI, 2005, p. 164). Essa prática abusiva do uso retórico dos princípios não se ocasiona por uma conduta exclusiva do Judiciário. Apesar de as regras se configurarem como um elemento de conformação mais rígido a atividade judicial, a codificação excessiva de normas axiológicas se verificou como uma opção do próprio legislador que, diante da complexidade da sociedade, demonstrou-se incapaz de exaurir todas as expectativas normativas em enunciados objetivos e com normas de decisão expressas (CAPPELLETTI, 1993, p. 40-56). De acordo com Elival Ramos esse realce dado aos princípios na ordem constitucional
extremo a liberdade dos aplicadores oficiais do direito, uma vez investidos na jurisdição constitucional, o que é proporcionado, exatamente, pela porosidade das normas-princípio” (RAMOS, 2015, p. 95). A concepção dos princípios adotada por Dworkin, enquanto normas fundadas e legitimadas por uma ordem moral universal, parece assentar esse fraco espaço de conformação do magistrado. A coexistência de um ordenamento jurídico aberto, que funda sua norma em conceitos morais imprecisos, concomitantemente à aplicabilidade deste numa sociedade complexa, que possui valores morais relativos, possibilita aos intérpretes aplicarem um mesmo 330
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objetivou ampliar ao máximo a criatividade na aplicação do direito, de modo a “levar ao
princípio de maneiras variadas, sendo que, em primeiro plano, nenhuma delas se reputaria como incorreta (NEVES, 2013, p. 56-63), como nas situações hipotéticas apontadas quando abordouse o desenvolvimento neoconstitucional. Expostos esses fatores, retoma-se o entendimento de Marcelo Neves, que afirma haver, no Brasil, um fascínio principiológico na prática jurídica dos intérpretes. A concepção de que é possível afastar a aplicabilidade das regras por meio da invocação genérica dos princípios constitucionais deriva de um debilitado espaço de conformação proveniente da norma jurídica em face do aplicador. Fatores como a abertura textual resultam na possibilidade da extração das normas de decisão por meio de critérios axiológicos individuais, atingindo a rigidez dos dispositivos constitucionais, que é substituída pelo entendimento pessoal do intérprete. Nesse contexto, os princípios são invocados, em detrimento as regras, sem qualquer demonstração empírica que apontaria ofensas a essas normas e desconformidade com outras normas vigentes. Com isso, será analisado a seguir como a decisão do STF, que vedou a doação de empresas para campanhas políticas, se amparou por esse uso abusivo dos princípios constitucionais, suplantando as regras correlatas atinentes à matéria em debate.
5 O CASO DA ADI 4650: UMA DEMONSTRAÇÃO EMPÍRICA DO ABUSO DE PRINCÍPIOS NA PRÁTICA JURISDICIONAL BRASILEIRA
Foi visto, no ponto anterior, que a sustentação retórica dos princípios constitucionais, em detrimento às regras, configura o abuso da aplicabilidade dessas normas axiológicas. Em que pese ser possível haver uma superação da aplicabilidade de regras por afronta aos valores constitucionais estabelecidos, é imprescindível que esse processo seja acompanhado de uma consistente argumentação que ampare a inaplicabilidade da regra.
mandamento formulado pela teoria das regras e princípios, ao que se atenua a densidade do sistema jurídico em proveito das visões individuais do intérprete sobre a aplicabilidade das normas. Com base nessas premissas formuladas, o objetivo deste artigo, neste momento, é demonstrar esse abuso de princípios empiricamente na esfera judicial, ao que se tomará como base a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4650, proposta pela Ordem dos Advogados do Brasileiro, em que se requereu a declaração de inconstitucionalidade da doação de pessoas jurídicas a campanhas eleitorais.
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Marcelo Neves sustenta que, continuamente, a realidade brasileira inobserva esse
A concepção formulada de uso retórico dos princípios proposta neste trabalho se concentra na conduta de se apontar a ofensa a normas principiológicas sem dados empíricos que sustentem essa visão, bem como na inobservância de outras normas válidas aplicáveis à matéria. Como se percebe não contempla parte do objetivo analisar o mérito da visão final formulada na propositura da ação, mas como se chegou a essa formulação. Para isso, opta-se por analisar especificamente duas peças que compõem a ADI 4650: a petição inicial proposta pela OAB e o voto proferido pelo ministro-relator, Luiz Fux. Essa alternativa possibilitará uma visão ampla do debate traçado na ação, sem incorrer em repetições de termos e conclusões prescindíveis ao nosso objeto.
5.1 A Petição da OAB: a ausência de pressupostos empíricos na sustentação dos princípios
A petição inicial formulada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil pode ser assinalada como a principal demonstração do uso retórico dos princípios constitucionais em sede da ADI 4650. Como fundadora da ADI, a petição se sustenta num vácuo argumentativo que é incapaz de demonstrar como os dispositivos normativos impugnados da Lei 9.096/95 e Lei 9.504/97, os quais possibilitam a doação de pessoas jurídicas para campanhas eleitorais, agrediriam a ordem constitucional. Não há ao longo da peça qualquer demonstração empírica das premissas sustentadas. Em sua epígrafe, referencia-se um trecho de O Federalista em que se cita: “nenhum ato legislativo contrário à Constituição pode ser válido [...]. É muito mais racional supor que os tribunais é que têm a missão de figurar como corpo intermediário entre o povo e o Legislativo, dentre outras razões, para assegurar que este último se contenha dentre dos poderes que lhe foram deferidos” (BRASIL, 2015)5. Observa-se, então, a argumentação de que os dispositivos de ambas as leis vão de encontro a três princípios constitucionais: o princípio da igualdade (art.
que se incorreria a necessidade de atuação do controle de constitucionalidade. As enunciações dessas normas, no entanto, não estão acompanhadas de quaisquer dados que pressuponham sua transgressão. A retórica utilizada se resume a descrever os conceitos desses princípios mediante sua conjugação em expressões de forte apelo emocional. Dessa maneira, a pretensa demonstração de invalidação de uma situação fática perante o texto normativo falha por ser incapaz de apontar exemplos concretos imprescindíveis ao debate. 5
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5º, caput), o princípio democrático (art. 1º, caput) e o princípio republicano (art. 1º, caput), ao
No primeiro caso, sustenta-se que a transgressão ao princípio da igualdade decorre da possibilidade de que as empresas, ao doarem para campanhas eleitorais, exacerbem as desigualdades políticas e sociais existentes, possibilitando, assim, um maior controle dessas pessoas jurídicas ao pleito eleitoral em detrimento do povo. Com isso, as normas de financiamento de campanhas impugnadas abririam “o sistema político brasileiro à captura pelo poder econômico” (BRASIL, 2015)6, ao que aponta, como consequência, a perpetuação de elites socioeconômicas no poder. Essas inferências, todavia, possibilitam uma série de questionamentos que não são respondidos pelos autores da ADI. Inicialmente, cabe perguntar: quais desigualdades políticas são essas? A afirmação de que ricos (para utilizar a expressão do texto da ação) obteriam um maior controle sobre o processo eleitoral é vaga, especialmente quando se supõe a consequência do controle do sistema político por essa classe econômica, ao que gera uma incompatibilidade processual na ação. Afirmações dessa magnitude necessitariam de uma ampla demonstração factual dessa pretensa realidade que se apresenta. É inconcebível que se suponha, no âmbito de um processo judicial que defronta a constitucionalidade, ou inconstitucionalidade, de uma regra perante uma norma axiológica, a invalidade daquela sem a apresentação de dados que ratifiquem a afronta à norma-princípio. A aceitação dessa conduta geraria a inconsistência do sistema jurídico, no qual regras seriam afastadas pela mera referência retórica aos princípios, sem que sequer se comprovasse que a situação fática apontada seria real. Dessa forma, inferências como a de que as doações empresariais deturpariam o sistema político decorrente do controle de elites econômicas exigiriam, minimamente, a apresentação de dados eleitorais que apontassem uma maior possibilidade de sucesso eleitoral de um candidato que recebesse tais doações. Não se verifica, todavia, um dado sequer de que o número de candidatos eleitos num pleito eleitoral, recente à época de propositura da ADI, teria
Para Ran Hirschl (2012, p. 60) o mundo jurídico tem sido ineficiente em mesclar o conhecimento e contribuição de outras áreas ao campo do direito, de modo que são raros os debates realizados que abordam estudos de outras áreas como a ciência política, a filosofia, sociologia, etc. Neste caso concreto, há diversos estudos que abordam os perfis dos políticos brasileiros, os caminhos que conduzem sua eleição, entre outros fatores. A argumentação, entretanto, ignora a questão e apresenta sustentações que se resumem a fatores normativos. 6
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correlação com o valor das doações recebidas.
Não se busca, com isso, denegar uma realidade que possivelmente seria tida como óbvia ao intérprete. O que se mostra incompatível com o sistema jurídico é que a sustentação da afirmação de que a ordem eleitoral estaria abalada pela competição desigual entre candidatos, devido às doações eleitorais desproporcionais, não seja acompanhada de um dado empírico correlato, e, de toda forma, seja suficiente para se inferir a desobediência ao princípio da igualdade. Essa mesma conduta se demonstra na alegação de desrespeito ao princípio democrático. Segundo a tese defendida, a norma-princípio não se compatibiliza com a disciplina legal da atividade política que tenha o efeito de atribuir um poder muito maior a alguns cidadãos em detrimento de outros. Neste caso, a transgressão ao dever de argumentação da parte parece ainda mais explícita. A princípio, é indiscutível que a atribuição de espaços de poderes distintos aos cidadãos no âmbito de um processo eleitoral seria afrontosa ao ideal democrático. Como assertivamente aponta a petição da OAB “a ideia de democracia pressupõe a igualdade política dos cidadãos. É essa igualdade que está por trás da atribuição do mesmo valor a todos os votos” (BRASIL, 2015, grifo nosso)7. Nesse contexto, a eleição garantiria a igualdade de participação dos eleitores no processo democrático, na medida em que não há distinção do valor do voto. Para se sustentar haver algum mecanismo estranho à lógica eleitoral que mitigasse a igualdade de condições aos eleitores seria necessário argumentos empíricos, o que não é notado no caso em questão. Como na abordagem do princípio anterior, não se consegue verificar qualquer indicativo que aponte o favorecimento, em maior ou em menor grau, de um candidato que fosse beneficiado por doações de pessoas jurídicas e outro que obtivesse apenas doações de pessoas físicas, por exemplo. Na abordagem do princípio republicano, segue-se ainda uma outra linha
correlação entre as doações empresariais a práticas corruptas no cenário político brasileiro:
O sistema de financiamento de campanhas hoje existente fomenta estas práticas antirrepublicanas ao invés de combatê-las. No Brasil contemporâneo, raros são os escândalos políticos que não têm alguma correlação com o financiamento das
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argumentativa, que incorre em idênticas inconsistências. Nesse caso, a peça aponta uma
campanhas eleitorais. Tragicamente, é comum que o dinheiro investido nas campanhas seja, depois, subtraído aos cofres públicos (BRASIL, 2015).
A alegada relação promíscua entre o poder econômico e o meio político, da mesma maneira, não é observada. A sustentação realizada se limita a traçar um panorama amplo do princípio na esfera eleitoral, ao que se estaciona em pontos comuns e incontroversos, como o indicativo de que “o princípio republicano envolveria múltiplas exigências, revestidas de profundo significado ético, como a responsabilidade jurídico-política dos agentes públicos” (BRASIL, 2015)8. No entanto, verificação empírica de que a doação empresarial é afrontosa a esses valores é ignorada e não é indicada em casos reais. De maneira que a peça formulada pela OAB abusa da aplicabilidade dos princípios por ser incapaz de apontar como há pressupostos inconstitucionais no tocante à possibilidade da doação empresarial a campanhas políticas. Esse indicativo, conforme exposto, dependeria de uma consistente linha argumentativa fundada em dados verídicos que não foi verificada no caso, ao que se incidiria a inépcia da petição inicial.
5.2 O Voto do Ministro-Relator e a sua inconsistência argumentativa
A construção do raciocínio argumentativo que levou o ministro Luiz Fux a concluir pela inconstitucionalidade do financiamento privado de campanhas políticas iniciou com a audiência pública convocada pelo STF. As contribuições do professor titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Daniel Sarmento, foram, inequivocamente, as que mais reverberaram no voto vencedor do relator. A praxe do Tribunal tem sido a de convocar audiências públicas, comuns aos Parlamentos ao redor do mundo, para resolver questões técnicas sobre temas contravertidos que
organizada com especialistas, classe política e sociedade civil buscar interpretações doutrinárias do texto constitucional sobre o assunto, mas um debate fático sobre as vantagens e desvantagens do sistema ora vigente. No entanto, da leitura das transcrições da audiência pública e do voto do ministro, resta clara a vasta referência que faz à obra de Sarmento. Seguindo a mesma linha argumentativa, o ministro inaugura seu voto sugerindo ao Legislativo, sugerindo que pecara em reação à 8
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chegam à Corte. Sustentou o relator, quando da convocação, que não era objetivo da reunião
“reforma estrutural mais importante (ainda) a ser formulada no país: a Política” (BRASIL, 2015). De fato, antes de adentrar no mérito da argumentação, tratou-se nas palavras do relator, não de uma mera declaração de inconstitucionalidade em abstrato da Lei Eleitoral, mas de uma sentença aditiva de princípio, isto é, o entendimento de que a omissão dos princípios republicano, democrático e da igualdade pela edição legislativa das normas questionadas teria violado a Constituição. Nesse tipo de decisão, além da declaração de inconstitucionalidade, de legislar negativamente, a Corte Constitucional, de maneira ativa, traça uma moldura constitucional ao Parlamento, sinalizando aos Deputados e Senadores a forma com que deve escrever a lei (CAMPOS, 2013, p. 120-121). A construção do mérito do financiamento privado no voto do ministro foi parecida com o da petição inicial da OAB. Os princípios invocados são atacados ao longo do voto, em um senso de complementaridade entre princípio da igualdade, republicano e democrático. Para tratar do primeiro, o ministro lança mão justamente de Robert Alexy. Segundo ele, haveria um descompasso entre a teoria do alemão e a razão legislativa das leis eleitorais. Se a orientação do Legislativo deveria ser guiada por uma norma que coibisse o surgimento de relações promíscuas entre os poderes político e econômico, deveria esta ter proibido a doação por empresas privadas. Com base no argumento de Alexy, o ministro conclui que somente se admite desigualdade ao princípio da igualdade à medida que se tenha um confronto principiológico no caso concreto, desaguando, assim, no mesmo problema do balanceamento. Sobre o princípio republicano, Fux contesta o interesse constitucional em se permitir a doação privada por pessoas jurídicas, argumentando que isso resulta em uma proteção ineficiente da República. Em nenhum momento, no entanto, o ministro trata do princípio, destacado pelo Artigo 1º da Constituição Federal de 1988, separado do princípio democrático. O argumento de que o sistema eleitoral, como fora até então, trazia consequências, e resultados,
doadoras das campanhas guardavam intrínseca relação com o Poder Público e que isso produzia estado de inconstitucionalidade permanente. Já na peça inicial, a premissa é a de que há desigualdade política entre os que recebiam e os que não recebiam financiamentos e a de que o Parlamento deveria criar iguais chances de oportunidades entre os partidos políticos para terem uma arena justa no embate eleitoral. O argumento de Fux é o de que qualquer reforma política produzida fora da arena legislativa seria antidemocrática. Contradizendo-se, mesmo assim, Fux supera o caráter substantivo do procedimento legislativo e diz que é “dever da Corte Constitucional otimizar e aperfeiçoar o 336
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antirrepublicanos. A impugnação foi feita justamente sobre esses resultados, já que as principais
processo democrático, de sorte a corrigir patologias que desvirtuem o sistema representativo [...]” (BRASIL, 2015)9. O ministro levanta, reiteradas vezes, o questionamento se a Lei Eleitoral promovia o princípio democrático, ou se seria uma barreira ao seu adequado funcionamento. No entanto, exime-se de desenvolver esse ponto para demonstrar o que seria um funcionamento adequado da normatização do princípio democrático.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo apresentado possibilita a conclusão de que a decisão do Supremo Tribunal Federal de declarar inconstitucional a legislação eleitoral vigente aponta para um uso abusivo dos princípios. Isso porque restou claro o uso retórico dos princípios constitucionais democrático, republicano e da igualdade em favor de um anseio representativo de pautar a atuação do Supremo Tribunal Federal pela opinião média popular na elucidação da matéria. As argumentações da ação e do voto vencedor não trataram de densificar as noções dos princípios da igualdade, república e democracia. Com isso, foram incapazes de demonstrar a inconstitucionalidade das regras eleitorais da Lei 9.096/95 e da Lei 9.504/97 com base no seu confronto com os princípios constitucionais. Verificou-se, da interpretação do Acórdão, ampla ausência de elementos que indicassem a violação às normas. Como bem concluiu o voto vencido do então ministro Teori Zavascki (BRASIL, 2015), a decisão pela inconstitucionalidade representou um monólogo unidirecional, em que o Supremo definiu, ou melhor, atuou, com base em parâmetros de atuação legislativa do Congresso Nacional. Na pretensa de buscar diálogo institucional com o outro Poder, esculpido no ideal de que o controle constitucional das normas deveria afastar aquelas inválidas perante a Constituição Federal, optou-se por ser a voz da última palavra sem se amparar nos
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pressupostos necessários.
REFERÊNCIAS
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AZZARITI, Gaetano. Interpretação e teoria dos valores: retorno à Constituição. Revista Brasileira de Direito Constitucional. São Paulo. 2005.
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THE ABUSE OF PRINCIPLES IN THE FEDERAL SUPREME COURT’S DECISION OF IDA 4650
ABSTRACT The article discusses the applicability of principles and rules under the approach of abuse of principles in decision making by the Federal Supreme Court in Direct Action of Unconstitutionality 4650, which ruled companies’ donation to electoral campaigns unconstitutional. This argued abusive principle is verified from the decision’s argumentative construction. In the end, this paper concludes that the Action based its premises on the abuse of axiological norms by the absence of empirical assumptions that justify its normative frameworks. Keywords: Principles abuse. Neo-constitutionalism. Supreme federal
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court. IDA 4650.
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O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NO ÂMBITO DO TCU: UM EXAME DA SÚMULA Nº 347 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SOB A PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL E JURISPRUDENCIAL BRASILEIRA Gardel Igor Guimarães Chaves1 Brenda Novaes Saraiva2
RESUMO Este trabalho pretende analisar o controle de constitucionalidade feito pelo Tribunal de Contas da União (TCU), segundo a súmula 347 do Supremo Tribunal Federal (STF), e, dessa forma, entender se há competência constitucional atribuída a esse órgão. Busca-se compreender o controle de constitucionalidade conforme a súmula 347, em correlação à atual visão do Supremo Tribunal Federal, norteada pela Constituição de 1988, bem como às elucidações advindas com as transformações do Direito processual civil. Almeja-se apontar as possíveis medidas para sanar a polêmica súmula e, concomitantemente,
apreciação constitucional do TCU. Palavras-chave: Controle de constitucionalidade; Súmula 347; Tribunal de contas da união; Edição de súmula; distinguishing.
1
Graduando em Direito pela Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA), membro do DiGiCULT Estudos e Pesquisas em Direito Digital e Direitos Culturais, Diretor Administrativo Financeira da ÁGORA Consultoria Jurídica Júnior. 2 Graduanda em Direito pela Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA).
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construir um novo entendimento sobre a questão da ilegitimidade para
1 INTRODUÇÃO
Com o advento da Constituição de 1988 consolidou-se a nítida divisão e especialização das funções do Estado, refletidas nas instituições jurídicas. Entre as instituições de auxílio e garantia como corolário de um Estado democrático de direito, está o Tribunal de Contas da União, que surgiu ainda na Constituição de 1891 com o objetivo de liquidar as contas públicas para ulterior apreciação do Congresso. Na Constituição de 1988, no entanto, o papel do TCU é, sobretudo, fiscalizatório, de apreciação e também provedor de certas decisões judicantes. Na Constituição de 1934 o papel do Tribunal era de controle prévio, pois os contratos da Administração necessitavam do crivo desse órgão para surtir efeito, de modo que sem isso não seria possível executar o ajuste (SUNDFELD; CÂMARA, 2011, p. 114). Mais tarde, a realidade brasileira e sua célere urbanização contribuíram sensivelmente para o aumento do número de contratos, não sendo mais viável uma vista prévia. Esse cenário favoreceu que, a partir da Constituição de 1967, o TCU passasse a controlar os gastos e a combater os possíveis abusos de forma posterior (SUNDFELD; CÂMARA, 2011, p. 115). É relevante salientar que o controle de constitucionalidade tem importante papel na supremacia da Constituição, inclusive para amparar as instituições jurídicas. Dessa forma, o estudo em questão tratará sobre a possibilidade de o Tribunal de Contas da União apreciar a constitucionalidade de qualquer lei ou ato do Poder Público. Neste trabalho será brevemente explanada a conjuntura política e constitucional da época em que foi criada súmula 347 do STF, que garantia poderes ao TCU, a fim de que se entenda a defasagem desse entendimento jurisprudencial, diante da atual perspectiva constitucional-jurisprudencial brasileira. Contudo, hodiernamente, a vigência dessa súmula traz ao Judiciário uma visão já ultrapassada e ainda não sanada pelos meios devidos. Assim, serão identificados quais mecanismos são viáveis para remediar a situação de desconformidade
2 SOBRE O TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO
O Tribunal de Contas da União (TCU) é de essencial importância no sentido de auxiliar e orientar o Poder Legislativo sem, no entanto, manter relação de subordinação ou incorporação com o mesmo. Dessa forma, a sua função principal é a fiscalização e, para isso, goza de independência (MORAES, 2013, p. 391). 342
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normativa em que se encontra esse dispositivo sumular.
Assim, do mesmo modo que os Tribunais de Contas dos Estados e Municípios, o TCU é essencial no contexto do controle, pois julga as contas de administradores públicos, da Administração Direta ou Indireta, bem como de todos os responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos. Além disso, pode avaliar as contas de qualquer pessoa que pratique atos que importem em prejuízo ao erário (MARINELA, 2013, p. 1.054). Incumbe, desta forma, ao TCU, primordialmente, a fiscalização das contas das entidades públicas, não sendo titular de competência para produzir normas jurídicas autônomas, ou seja, não possuindo poderes legiferantes (JUSTEN FILHO, 2014, p. 1.222). Além disso, lecionam Carlos Ari Sundfeld e Jacintho Arruda Câmara (2018, p. 74) que ao TCU não foi atribuído em momento algum a averiguação do mérito administrativo de qualquer órgão ou ente submetido à sua fiscalização, a ilegalidade só será objeto de sua apreciação se restrita ao contábil, financeiro, orçamental ou patrimonial Pormenorizando, o TCU atua no controle externo da Administração pública como auxiliar do Congresso Nacional, contudo, ainda se agregam a essa função auxiliar competências próprias e autônomas desse órgão de contas, elencadas expressamente na Constituição de 1988, art. 71, VIII3. Como exemplo, tem-se a atribuição de sancionar os responsáveis por irregularidades. Como disposto no texto constitucional, arts. 704 e 71, caput, o controle externo auxilia na proteção de preceitos jurídicos, como a legalidade, a legitimidade e a economicidade da ação administrativa. Entretanto, apesar do dever de proteção a valores jurídicos, a atuação do TCU encontra limitações, já que sua alçada não deverá superar a delimitação feita pela Constituição de 1988 (JORDÃO, 2014, p. 212). Quanto à atuação do Tribunal de Contas da União como órgão de controle externo, esta ocorre de forma posterior, ou seja, há a fiscalização na análise de despesas já efetuadas. Desse modo, a realização de despesas não se condiciona à prévia aprovação do Tribunal de
ponderação externa desse órgão, buscando o mínimo dispêndio das verbas públicas.
3
Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete: […] VIII - aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário. 4 Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder.
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Contas da União. Tal forma de controle é benéfica para a ação administrativa, haja vista a
Portanto, busca-se equilibrar por um lado, a existência de fiscalização, que estimule externamente a legalidade e a eficiência e, por outro lado, a autonomia da administração, indispensável à democracia, ao cumprimento de suas missões constitucionais e legais e, também, à eficiência. Em suma, é uma fórmula para instituir controles que não coloquem os controladores no lugar dos gestores (SUNDFELD; CÂMARA, 2011, p. 118).
2.1 Competências do Tribunal de Contas da União
Pela simples leitura dos incisos do art. 71 da Constituição de 1988, as competências do TCU vão desde a apreciação anual das contas prestadas pelo Presidente da República, do julgamento de contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos, à aplicação de sanções previstas em lei aos responsáveis por ilegalidades de despesa ou irregularidade de contas. Constitucionalmente, o Tribunal de Contas da União não tem poderes constitutivos, de igual forma não possui poderes desconstitutivos. Sendo assim, não cabe a ele a anulação de contratos nem decisões que venham a modificar atos administrativos (SUNDFELD; CÂMARA, 2011, p.117). Para início de discussão das competências, de acordo com Carlos Ari Sundfeld e Jacintho Arruda Câmara (2011, p. 119), é preciso ter em mente a diferenças entre atos e contratos. De forma clara, ao passo que os atos são decisões unilaterais tomadas pelo administrador, os contratos são vínculos bilaterais, formados pela conjunção de vontades de contratante e contratado. Em suma, o que cabe ao TCU é o poder de sustar o ato administrativo que não vier a ser apreciado tempestivamente pelo Legislativo, conforme o inc. X5 do art. 71 da Constituição de 1988, devendo comunicar às Casas do Congresso, ou seja, sua autonomia quanto aos atos
contratos, conforme o mesmo artigo da Constituição de 1988, mais precisamente em seu §1º, caberá diretamente ao Congresso o ato sustatório, bem como a solicitação imediata ao Executivo das medidas cabíveis (SUNDFELD; CÂMARA, 2011, p. 141). Em se tratando de fiscalização que extrapole a sua alçada, ou seja, de regulação financeira em sentido amplo, o que cabe ao TCU é fazer representação às autoridades
5
Art. 71. [...] X - sustar, se não atendido, a execução do ato impugnado, comunicando a decisão à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal.
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também não é plena, considerando a necessária primeira vista do Legislativo. Quanto aos
competentes, como previsto no art. 71, XI6, da Constituição de 1988, não devendo o próprio órgão determinar a correção do ato ou a punição dos responsáveis pela ilegalidade (SUNDFELD; CÂMARA, 2018, p. 77). De acordo com o art. 45, §3º, da Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União (Lei 8.443/1992), quando o Congresso ou o Executivo não efetuarem a sustação do contrato pode o TCU decidir a respeito. Por isso, há uma grande controvérsia jurídica no que se refere ao termo “decidir a respeito”, todavia, filia-se à tese de que tal termo só pode corresponder à adoção de medidas que estejam na esfera de competências do Tribunal de Contas da União, tais como as de aplicar sanções e as de julgar a legitimidade dos gastos7. A Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União (Lei 8.443/1992) prevê mais competências, as quais, claramente, reiteram as predisposições constitucionais, dentre elas julgar as contas de qualquer pessoa jurídica, tanto pública quanto privada, que venha a envolver o erário público; realizar auditorias de natureza contábil e fiscal, com ou sem a solicitação do Congresso Nacional, em qualquer dos Poderes Legislativo, Executivo ou Judiciário; e apreciar as contas do Presidente da República. Nesse sentido, a legislação infraconstitucional não pode contrariar o que cerceia a Constituição de 1988, nem pode ser expansiva quanto à delimitação constitucional. Por isso, o rol apresentado no art. 71 da Constituição de 1988 com as competências desse órgão deve ser o parâmetro maior. Vale destacar que o Tribunal de Contas da União também não possui competência para rever qualquer sentença transitada em julgado, de acordo com o Supremo Tribunal Federal RTJ 193/556-5628, em situação do MS 22.891-RS em que prevaleceu a coisa julgada (BULOS, 2014, p. 719). Dessa forma, não cabe ao TCU apreciação de direito adquirido, tampouco
6
Art. 71. [...] XI - representar ao Poder competente sobre irregularidades ou abusos apurados. “A decisão que cabe ser tomada pelo TCU, passado prazo de 90 dias sem manifestação do Congresso, envolve, por óbvio, as competências do próprio TCU” (SUNDFELD; CÂMARA, 2011, p. 118). 8 MS 22.891-RS, Rel. Min. Carlos Velloso. Defendia o TCU que a gratificação adicional por tempo de serviço conquistada por decisão em 02.06.81, portanto anterior à Constituição de 1988, iria de encontro ao art. 17 do ADCT. O MS foi deferido em defesa à coisa julgada em 03.08.1998. 7
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declaração de inconstitucionalidade.
3 O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NO ÂMBITO DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO
Preliminarmente, é preciso tecer uma breve consideração sobre o controle de constitucionalidade brasileiro. Enquanto o histórico de constituições do Brasil apresentava moldes de controle de constitucionalidade difuso (a exemplo das Constituições de 1891, 1934 e 1937), a Emenda Constitucional nº 16 de 1965 introduziu na Constituição de 1946 o controle concentrado ou abstrato. A partir dessa novidade, o instrumento de Ação Direta de Inconstitucionalidade incorporou-se ao ordenamento jurídico brasileiro, momento em que se passou a adotar um sistema híbrido de controle de constitucionalidade, o qual permitia a coexistência dos modelos difuso e concentrado. Essa Emenda9 incumbiu ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar a inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa encaminhado pelo Procurador-Geral da República. A Constituição de 1988, por sua vez, consolidou o papel do STF como guardião da Constituição, de forma que trouxe dispositivos referentes à legitimação para apresentação de ações constitucionais. No entanto, não previu a Constituição de 1988 qualquer disposição que permitisse ao Tribunal de Contas da União a possibilidade de apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público. A despeito disso, existe no ordenamento súmula ainda muito utilizada pelo TCU, a qual contraria as determinações constitucionais. Trata-se da súmula nº 347 do STF, a qual autoriza o Tribunal de Contas da União a apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público. Contudo, é certo que o rol de competências do Tribunal de Contas da União, apresentado no artigo 71 da Constituição de 1988, deve ser a principal referência, não possuindo o objetivo de acrescentar poderes de legitimador de declaração de constitucionalidade ao TCU. Em recente decisão de 2018, no MS 35.490 MC/DF10, o Ministro Alexandre de Moraes
apreciar a constitucionalidade de leis e dos atos do Poder Público. O ministro foi contundente em afirmar que a competência do Tribunal de Contas está delimitada pelo artigo 71 da Constituição de 1988, e que, portanto, não deve esse órgão aplicar controle de 9
A Emenda nº 16 de 1965 alterou o art. 101, inc. I, alínea k, da Constituição de 1946, passando a ter a seguinte redação: a representação contra inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, federal ou estadual, encaminhada pelo Procurador-Geral da República. 10 Mandado de segurança, com pedido de liminar, impetrado pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil – Unafisco Nacional, em 18.1.2018, contra acórdão do Tribunal de Contas da União (TC n. 021.009/2017-1) que revogou a possibilidade da Sefip fiscalizar pagamento de bônus nas atividades tributárias, aduaneira e de auditoria fiscal trabalhista.
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reforçou o entendimento já existente de que o Tribunal de Contas não possui competência para
constitucionalidade difuso, haja vista que tal competência se encontra comprometida pelo advento da Constituição de 198811.
3.1 Análise da súmula nº 347 do Supremo Tribunal Federal
Primeiramente, faz-se necessário esclarecer o conceito de súmula, devendo-se entender que ela é a reiteração de um precedente judicial. O precedente seria, portanto, a decisão que serve como orientação para posteriores julgamentos de casos análogos (DIDIER JR; BRAGA; OLIVEIRA, 2017, p. 505). A reiteração dessa decisão enquanto precedente cria, destarte, uma dominância de entendimento que tende a ser consolidada em forma de súmula. Para fim de análise, esse artigo traz o enunciado da súmula nº 347 do Supremo Tribunal Federal. Essa súmula foi formulada ainda na vigência da então Constituição de 1946, em 13 de dezembro de 1963, dispondo: “O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público”. É importante atentar-se às teses vigentes à época da criação da referida súmula. O entendimento anterior vai de encontro às teses atuais, como explica Cláudio Marcelo Spalla Fajardo (2008, p. 27), elencando alguns pontos que o Ministro Relator Pedro Chaves adotou no MS nº 8.372-CE12, que deu advento à referida súmula: [...] a) ‘toda lei ou ato normativo inconstitucional é nulo, inexistente, e não pode produzir efeitos’; b) ‘por ser inexistente, o Tribunal de Contas, assim como todos os poderes da administração pública têm o poder-dever de afastar a aplicação da norma jurídica marcada pela inconstitucionalidade’; c) ‘não obstante, só o Poder Judiciário tem a competência para declarar a inconstitucionalidade de leis ou atos normativos’.
Consoante esclarece Cláudio Marcelo Spalla Fajardo (2008, p. 24-28), as teses
entendia que existia diferença entre afastar a aplicação de leis e declarar a inconstitucionalidade. Todavia, atualmente, já é pacificado que não existe diferença ontológica entre a declaração da
“Sendo inconcebível, portanto, que o Tribunal de Contas da União, órgão sem qualquer função jurisdicional, exerça controle difuso de constitucionalidade nos processos sob sua análise, ao pretenso argumento que lhe seja atribuída tal competência em virtude do conteúdo da Súmula 347/STF, editada em 1963, cuja subsistência ficou comprometida pela promulgação da Constituição Federal de 1988”. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Medida Cautelar em Mandado de Segurança: MS 35.490 DF. Relator: Ministro Alexandre de Moraes. 12 O entendimento defendido era o de que seria possível ao Tribunal de Contas da União deixar de aplicar determinada lei sem necessariamente declarar sua inconstitucionalidade. 11
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jurídicas que orientaram a súmula nº 347 do STF tornaram-se ultrapassadas. Isso porque se
inconstitucionalidade e a sentença que não aplica lei formalmente válida por entendê-la inconstitucional. Além disso, tais teses também contrariam a presunção de constitucionalidade, ao afirmarem que todos têm competência de deixar de aplicar norma inconstitucional. Igualmente, declaram que leis ou atos inconstitucionais são inexistentes e não surtem efeitos, o que é o oposto do determinado na Lei nº 9.868/99, que dispõe sobre o processo e julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade e da Ação Declaratória de Constitucionalidade. Isso pois, em seu art. 27, a Lei nº 9.868/99 prevê que, mediante aprovação de maioria de dois terços dos membros do STF, por razões de segurança jurídica ou interesse social, podese restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou decidir que tenha eficácia somente a partir de seu trânsito em julgado (FAJARDO, 2008, p. 28/29). Assim, é evidente a superação dos contextos jurídicos, políticos, econômicos e sociais do Brasil da década de 1960, época em que a súmula foi editada, mais ainda, da década de 1940, época da Constituição de 1946, a qual a súmula se refere. Entretanto, apesar da incompatibilidade com o ordenamento jurídico atual, a súmula 347 do STF ainda é muito utilizada pelo Tribunal de Contas da União, sobretudo quando declarou inconstitucional o Decreto nº 2.745/98 (Regulamento do Procedimento Licitatório Simplificado da Petrobras). Esse decreto baseia-se na Lei n° 9.478/97, conhecida como a Lei do Petróleo, que, em seu art. 67, determinava: “os contratos celebrados pela PETROBRÁS, para aquisição de bens e serviços, serão precedidos de procedimento licitatório simplificado, a ser definido em decreto do Presidente da República”. É importante ressaltar que a Lei das Estatais (Lei nº 13.303/16) revogou expressamente o art. 67 da Lei n° 9.478/97, sem, todavia, haver revogado o Decreto nº 2.745/98. Segundo o Tribunal de Contas, revelava-se inconstitucional o Decreto nº 2.745/98, pois a Petrobras deveria obedecer ao estabelecido nos arts. 22 e 23 da Lei nº 8.666/93 (Lei de
respectivos limites, considerando-se o valor estimado de contratação. Diante disso, a Petrobras impetrou diversos mandados de segurança, os quais chegaram ao Supremo Tribunal Federal com o intuito de impugnar decisões do TCU que consideravam a inconstitucionalidade. A Petrobras alegou em seus mandados de segurança que súmula n° 347 do STF, utilizada para fundamentar as decisões do TCU, entra em confronto com as próprias normas constitucionais, uma vez que não está entre as competências previstas na Constituição de 1988 para o TCU a declaração de inconstitucionalidade de leis e de atos do Poder Público. Tal tese foi acolhida pelos ministros nas decisões da Suprema Corte. 348
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Licitações e Contratos Administrativos) no tocante às modalidades de licitação e seus
O Ministro Gilmar Mendes, no MS 25888 MC/DF, esclareceu que a própria evolução do sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, verificada desde o advento da Emenda Constitucional nº 16 de 1965, está a demonstrar a necessidade de se reexaminar a permanência da súmula nº 347 no ordenamento jurídico pós Constituição de 198813. É importante também enfatizar que, em entendimento anteriormente mencionado (STF – MC MS: 35812 DF), o Min. Alexandre de Moraes entende pela superação da súmula 347 do STF, e explica que sua aplicação, além de violar a segurança jurídica, visa “reconhecer a inconstitucionalidade no caso concreto quando a Suprema Corte já tenha se manifestado sobre o tema”. O Ministro é contundente em afirmar que a competência do Tribunal de Contas está delimitada pelo art. 71 da Constituição de 1988, e que, portanto, não deve esse órgão aplicar controle de constitucionalidade difuso, haja vista a sua eficácia comprometida pelo advento da promulgação da Constituição de 1988.
3.2 Superação da súmula nº 347 do Supremo Tribunal Federal: exame jurisprudencial, aplicação do método do distinguishing (distinção) e a edição de súmula nos moldes do regimento interno do Supremo Tribunal Federal
Em situações ideais de inconstitucionalidade de lei, ou mesmo se tratando de preceito fundamental em descumprimento, são previstos meios necessários para remediar a situação, conforme disposição constitucional. No entanto, a súmula em discussão apresenta uma situação que levanta controvérsias sobre como tratá-la, tendo em vista sua inconstitucionalidade material, pois seu advento se deu em um contexto, como já explanado, diverso do atual ordenamento jurídico. Deve-se, a princípio, salientar que, sob a ótica das ações próprias em controle de constitucionalidade, como Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) e Arguição de
desta súmula, considerando que o requisito primordial das referidas ações constitucionais consiste na análise de lei ou ato normativo do poder público. No entanto, como é sabido, a súmula 347 do STF não se enquadra na definição de lei ou ato normativo do poder público, já
“[...] A referida regra sumular foi aprovada na Sessão Plenária de 13.12.1963, num contexto constitucional totalmente diferente do atual. [...]. Assim, a própria evolução do sistema de controle de constitucionalidade no Brasil, verificada desde então, está a demonstrar a necessidade de se reavaliar a subsistência da Súmula 347 em face da ordem constitucional instaurada com a Constituição de 1988”. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Medida Cautelar em Mandado de Segurança: MS 25888 MC/DF. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Julgamento em 22.03.2006, DJ de 29.03.2006. 13
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Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), não se pode conceber a proposta de revisão
que, com base em síntese de entendimentos consolidados no Supremo Tribunal Federal, é firme o entendimento de que o enunciado de súmula não é ato normativo. O Ministro Luiz Fux, na ADPF 8014, reiterou entendimento de que súmula do Supremo Tribunal Federal se trata somente de expressões sintetizadas de entendimentos consolidados na Corte, não consubstanciando ato do poder público, carecendo a ADPF de interesse jurídico. Deste modo, não é possível superar a súmula por ações constitucionais, posto que os legitimados do art. 103 da Constituição de 1988 não estão autorizados a pleitear tal edição.
3.2.1 O método do distinguishing (distinção)
Uma técnica que vem consolidando o sistema de precedentes judiciais na tradição jurídica brasileira trata-se do distinguishing (distinção), que significa hipótese de não aplicação do precedente no caso concreto sem, entretanto, sua revogação (NEVES, 2017, p. 1.390). Consiste na comparação, ou seja, na verificação, em julgados cujo magistrado está vinculado a precedentes judiciais, da aproximação ou não do caso em julgamento ao precedente. O magistério de Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco (2014, p. 979980) nos explica que caberá o uso do distinguishing (distinção) para os casos de súmula vinculante. Dessa forma, é lógico entender que esse conhecimento dos elementos que formaram a consolidação do dispositivo vinculante em seu contexto originário será estendido ao entendimento sumular “simples”, como é o caso da súmula 347 do STF. O distinguishing (distinção) será a expressão da exegese nas situações em que, concretamente, o paradigma de uma decisão não deva ser aplicado por incompatibilidade entres os fundamentos discutidos na situação pregressa e na atual. Pode-se entender que as especificidades do caso em concreto, de forma bem peculiar, afastam a tese jurídica do
A aplicação distinguishing (distinção) deve atender à forte semelhança e identidade do caso que deu ensejo ao precedente com o caso concreto em julgamento. A inobservância de equivalência e eventuais particularidades fático-jurídicas presentes no caso e não na súmula abririam, assim, margem para a distinção (DUXBURY citado por MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2017, p. 659).
14
Embargos de declaração no agravo regimental na ADPF 80 de Relatoria do Ministro Luiz Fux. Rejeitados em 26.03.2015.
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precedente (DIDIER JR.; BRAGA; OLIVEIRA, 2017, p. 559).
A doutrina de Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira (2017, p. 559560) entende que o juiz, ao fazer o paralelo, deve desempenhar a comparação e o grau de aproximação que há entre o caso concreto e o caso que ensejou a súmula. É a atenção do magistrado nesse momento que decidirá se há distinção entre situações com a possível não aplicação do precedente, ou, no máximo, a sua aplicação ampliativa. O método do distinguishing (distinção) ainda é entendimento recente em nosso ordenamento jurídico. Apesar de escassa jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, podemos encontrá-lo, por exemplo, no seguinte recurso ordinário do TRT 2ª Região15:
SÚMULA
REGIONAL
Nº
27.
REAPRECIAÇÃO
DA
MATÉRIA.
DISTINGUISHING. A reclamante, contratada pelo Município de Itapecerica da Serra, após aprovação em concurso público de provas e títulos, no cargo de agente administrativo III (oficial administrativo), não faz jus à Gratificação de Atividade Técnica criada pela Lei Municipal nº 2.112/2010, pois seu cargo não está elencado no Anexo V mencionado no inciso I do art. 41 da referida lei. Demonstrado o distinguishing em relação à hipótese tratada pela Súmula Regional nº 27, mantémse o decidido no V. Acórdão anterior. (TRT-2 - RO: 00013405420125020332 SP, Data de Julgamento: 01/10/2015, 14ª TURMA, Data de Publicação: 14/10/2015). (Grifo nosso).
Assim, na hipótese da súmula 347 do STF, fazendo-se o distinguishing (distinção), seria o caso de o tribunal analisar o Direito em uma ótica diversa da já pacificada em momento anterior. Ressalte-se que o Enunciado foi aprovado antes do atual ordenamento constitucional e, portanto, não se compatibiliza com os fatos fundamentais discutidos. Ademais, vale lembrar o caráter cogente das decisões do Supremo Tribunal Federal, ainda que proferidas na via incidental. Assim sendo, mesmo quando há inconstitucionalidade chapada16, reconhecida com uniformidade pela jurisprudência do STF, os órgãos
Federal. Atualmente, o entendimento é pela impossibilidade desse órgão em realizar controle de constitucionalidade (MENDES, 2014, p. 995).
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TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA SEGUNDA REGIÃO. Recurso Ordinário nº 00013405420125020332/SP. 14ª Turma. Min. Manoel Antonio Ariano. Data de Julgamento: 01/10/2015, Data de Publicação: 14/10/2015. 16 Expressão primeiramente usada pelo Ministro Sepúlveda Pertence, utilizada em situação de inconstitucionalidade ululante, ou seja, óbvia e evidente. Mais recentemente foi utilizada pelo Ministro Eros Grau em seu voto na ADI 1923 MC/DF.
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administrativos como o TCU, devem se vincular à posição jurisprudencial do Supremo Tribunal
No entanto, mais coerente seria, com as devidas vênias, atentar para as transformações sofridas pelo ordenamento jurídico brasileiro desde a edição da súmula 347 do STF, de modo a se determinar uma solução definitiva para a questão. Desta forma, é imprescindível mencionar que também no campo infraconstitucional, desde o surgimento da Súmula 347 do STF, muito ocorreu. Dois Códigos de Processo Civil entraram em vigor, um desses em 1973 e outro, ainda mais recente, em 2015, além de diversas outras leis. Mais do que leis, no entanto, mudou-se a forma de se sistematizar, entender, estudar e pesquisar o Direito. É fato que o ordenamento jurídico brasileiro cada vez mais se aproxima do common law (direito comum), buscando imprimir maior segurança jurídica aos jurisdicionados e maior celeridade ao trâmite processual, com o objetivo de privilegiar a busca pela uniformização, estabilização da jurisprudência e garantir a efetividade do processo, notadamente das garantias constitucionais, consoante lição de Elpídio Donizetti (2016, p. 20). O Código de Processo Civil de 2015 é um importante exemplo dessa aproximação. O dispositivo dedicou uma considerável relevância aos precedentes e às súmulas, destinando alguns de seus artigos ao direito jurisprudencial (BUENO, 2003, p. de internet). Nessa legislação processual também se encontra dispositivo versando sobre os elementos essenciais da sentença, o art. 489. Mais precisamente em seu §1º, pode-se perceber o elemento do distinguishing (distinção) a ser aplicado pelo magistrado: Art. 489, § 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: [...] V. se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos.
fundamentada uma decisão, caso a mesma não determine em suas linhas a devida justificativa do Direito acertadamente aplicado. Qualquer pronunciamento do magistrado, segundo o Código de Processo Civil, não terá o embasamento apropriado se não dispor de idônea fundamentação, ou seja, não poderá simplesmente invocar um entendimento sumulado sem fazer o encaixe necessário ao caso concreto. O inc. VI do mesmo artigo dispõe: “deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”. De forma semelhante ao inciso anterior, 352
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O inc. V supramencionado se destaca pela afirmação de que não há como se declarar
o inc. VI versa que, apesar da parte alegar entendimento, jurisprudência ou enunciado, o magistrado deverá apreciar a prova tendo como base a distinção. O papel da distinção se faz presente como um parâmetro entre o entendimento anteriormente firmado e o caso em concreto atual. Essa conduta pelo juiz servirá para deferir, bem como para indeferir o levantamento da parte. É válida também para fins de embasamento do uso da distinção, uma análise do art. 926 do novo Código de Processo Civil:
Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. § 1º Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante. § 2º Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação.
O caput do artigo acima é incisivo ao aduzir que a jurisprudência do tribunal deve manter a sua devida uniformização, estabilidade, integralidade e coerência. Para o entendimento da atual situação da súmula 347 do STF invoca-se a não uniformização, bem como a sua incoerência com a atual conjuntura jurídica. É possível também entender, do art. 926 do Código de Processo Civil, que o tribunal responsável pelo pronunciamento deverá verificar as circunstâncias fáticas que deram ensejo à criação da jurisprudência em questão. Da junção dos entendimentos dos §1º e 2º do aludido artigo, verifica-se que não há fundamentos para a súmula 347 do STF, haja vista sua desconformidade com o atual ordenamento jurídico. Como já citado anteriormente, uma construção legal em um período constitucional diverso e superado não tem arcabouço jurídico suficiente para sustentar a sentença de
possibilidade para a súmula 347 do STF, não podendo esta súmula ser aplicada nas decisões dos tribunais, tendo vista a sua grande e, atualmente unânime, contrariedade com o que expressam as decisões envolvendo as competências do TCU.
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qualquer tribunal. Seguindo o entendimento de Gilmar Mendes, a distinção seria uma
3.2.2 Edição da súmula 347 do STF nos moldes do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal
Outra possibilidade para a superação da súmula nº 347 do Supremo Tribunal Federal seria sua edição ou cancelamento pelo próprio tribunal que a elaborou. Aborda o novo Código de Processo Civil que a edição de súmula deverá observar os regimentos internos dos tribunais a que se referem. Além disso, prevê a participação de pessoas, órgãos ou entidades, de modo que possam contribuir para a rediscussão da tese da súmula a ser alterada.
Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. § 1o Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante. [...] Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão: [...] § 2o A alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese. § 3o Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.
Cumpre ressaltar que, observado o disposto no art. 926, caput, do Código de Processo Civil e considerando-se a súmula 347 do STF, a não modificação do enunciado acaba por violar
estável, íntegra e coerente com as decisões posteriores do STF, a exemplo do MS 25888 MC/DF. À vista disso, verificando-se o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, aferese que compete ao Plenário do Supremo Tribunal Federal, segundo o inciso VII do art. 7º: “deliberar sobre a inclusão, alteração e cancelamento de enunciados da Súmula da Jurisprudência Predominante do Supremo Tribunal Federal”. Em jurisprudência do Supremo
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o artigo citado. Ou seja, sem a devida alteração, a jurisprudência uniformizada não se mantém
Tribunal Federal encontra-se, por exemplo, a revogação da súmula 506 do próprio Tribunal. Essa súmula referia-se ao art. 4º da Lei 4.348, de 26/6/196417. Concluiu o pleno18:
Suspensão de Segurança. Agravo Regimental. 2. Completa reformulação da legislação, quanto à suspensão das liminares nos diversos processos, até mesmo na ação civil pública e na ação popular. 3. Disciplina assimétrica na legislação do mandado de segurança. Recorribilidade, tão-somente, da decisão que nega o pedido de suspensão em mandado de segurança. Súmula 506. 4. Configuração de lacuna de regulação superveniente. Necessidade de sua colmatação. Extensão da disciplina prevista na Lei nº 8.437, de 1992, à hipótese de indeferimento do pedido de suspensão em mandado de segurança. 5. Admissibilidade do agravo nas decisões que deferem ou indeferem a suspensão de segurança. Questão de ordem resolvida no sentido do conhecimento do agravo. Revogação da Súmula 506. 6. No mérito, em face da grave lesão causada à economia pública, o agravo foi provido, para deferir a suspensão de segurança. (SS 1945 AgR-AgR-AgR-QO, Relator para o acórdão Ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgamento em 19.12.2002, DJ de 1.8.2003).
Assim, a fim de evitar maiores divergências de julgados, mais simples seria uma solução definitiva, concretizada no cancelamento da súmula 347 do STF, haja vista sua inegável inconstitucionalidade. Essa derrogação pode partir da proposição de qualquer Ministro, se assentada em matéria constitucional, conforme dispõe o art. 103 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. Já o art. 102 versa:
Art. 102. A jurisprudência assentada pelo Tribunal será compendiada na Súmula do Supremo Tribunal Federal. § 1ºA inclusão de enunciados na Súmula, bem como a sua alteração ou cancelamento, serão deliberados em Plenário, por maioria absoluta.
ocorrer a deliberação em Plenário, por maioria absoluta. No entanto, percebe-se que, apesar de existirem disposições expressas no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, o Supremo Tribunal Federal permanece inerte quanto à edição ou cancelamento da súmula 347 do STF.
17
Estabelecia normas relativas ao Mandado de Segurança. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Agravo Regimental no Agravo Regimental no Agravo Regimental na Suspensão de Segurança 1.945-7 Alagoas. Pleno. Min. Gilmar Mendes j. em 19.12.2002, DJ de 1.8.2003. 18
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Destarte, como determinado acima, posteriormente à proposição pelo Ministro, deverá
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desta feita, não se admite lógico que o Direito pátrio continue a utilizar o entendimento de tão ultrapassada súmula. A Constituição de 1988 não trouxe, dentre as competências do Tribunal de Contas da União, o poder de apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público. De fato, sendo a Constituição a Lei Maior, como se pode admitir que uma súmula anterior e contrária à Constituição de 1988 seja vigente hodiernamente no ordenamento jurídico? Diante de toda perspectiva constitucional, processual e jurisprudencial brasileira atual, e das diversas nuances do Direito, é natural que sobrevenham novos contextos processualistas e de controle constitucional, como efetivamente ocorreu. Com efeito, o Código de Processo Civil atual dá relevância aos precedentes, em um contexto distinto ao da década de 60, época em que a súmula 347 do STF foi formulada. Nesse sentido, é irracional continuar aplicando um entendimento que agora é arcaico. Inclusive, o próprio Supremo Tribunal Federal, que outrora formulou tal súmula, já se posicionou diversas vezes no sentido de que o TCU não possui competência de apreciação de constitucionalidade. Ou seja, as leis e os atos do Poder Público não devem ser analisados constitucionalmente pelo TCU, sendo imprescindível o reexame da permanência dessa súmula em face da ordem constitucional, instaurada com a Constituição de 1988. Por vezes, o que transparece não é o problema de a súmula ser inconstitucional ou não, mas a falta de empenho para que seja retirada do ordenamento, no intuito de proporcionar uma maior segurança jurídica. Muitos são os casos que declararam a súmula 347 como superada, no entanto pouco se verifica a busca por meios efetivos para sua revisão. Continuando por esse caminho de soluções paliativas e de decisões que só resolvem o caso concreto, o problema perdurará.
STF, tendo em vista que não houve sua extinção formal, a despeito de sua indiscutível caducidade material, percebe-se que todos os esforços devem ser empreendidos com o intuito de sanar a problemática. O método da distinção se revela, portanto, como importante recurso para afastar a aplicação da súmula. No entanto, mais eficaz seria a edição ou cancelamento desta no próprio tribunal que a formulou. Portanto, é necessária uma medida definitiva, que encerre a discussão e garanta a manutenção da supremacia da Constituição de 1988.
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Destarte, considerando toda a controvérsia em torno da aplicação da súmula 347 do
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THE CONTROL OF CONSTITUTIONALITY IN THE FIELD OF THE TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO (TCU): AN EXAMINATION OF THE SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF) SUMMARY Nº 347 UNDER THE CONSTITUTIONAL AND JURISPRUDENTIAL BRAZILIAN PERSPECTIVE.
ABSTRACT This scientific article has as purpose to analyze the judicial review done by the Tribunal de Contas da União (TCU), according to the precept of the summary 347 of Supremo Tribunal Federal (STF), and, in that way, to understand if there is competent jurisdiction attributed to the TCU. It seeks to understand the control of constitutionality according to the summary 347, in correlation with the current Supremo Tribunal Federal’s view, guided by the 1988 Constitution, as well as the
It is hoped to point out the possible measures to heal the controversial summary and, concomitantly, build a new understanding on the question of illegitimacy for constitutional appreciation of TCU. Keywords: Constitutionality control; Summary 347; Court union accounts; Editing of summary; distinguishing.
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elucidations arising from the transformations of Civil procedural law.
O DEBATE HART-DWORKIN (RE)VISTO SOB UMA ÓTICA IDIOSSINCRÁTICA Vinícius Naguti1
RESUMO Este artigo busca retomar o debate Hart-Dworkin apontando, de forma não exaustiva, alguns pontos de embate entre a teoria de Herbert Hart e Ronald Dworkin. Em seguida, por meio da filosofia kantiana e das ideias de Carlos Santiago Nino, busca-se uma interpretação idiossincrática da regra de reconhecimento. Este trabalho tem como metodologia o rearranjo de interpretações que desafiam o entendimento do debate, cruzando seus centros e margens. Em suma, a tentativa de empreender uma leitura cuidadosa. Buscando, portanto, desenvolver a força da compreensão kantiana da regra de reconhecimento nos textos dworkianos. Palavras-chave: Filosofia do direito. Regra de reconhecimento.
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Graduando em Direito pela Universidade Federal de Goiás (UFG).
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Debate. Hebert Hart. Ronald Dworkin.
1 INTRODUÇÃO2
De acordo com Scott Shapiro, desde a publicação de O Modelo de Regras I, de Ronald Dworkin, como resposta ao livro de Herbert Hart, O Conceito de Direito, iniciou-se um enorme debate sobre a teoria legal do positivismo e houve uma imensa produtividade acadêmica de artigos e livros acerca do debate Hart-Dworkin. A quantidade de pontos de divergência entre Ronald Dworkin e Herbert Hart é bastante extensa. Por isso, será necessário focar em algumas questões centrais, como a diferenciação entre teorias descritivas e normativas, a problemática em torno da regra de reconhecimento e, também, a discussão sobre divergências teóricas e práticas no universo jurídico. Em O Conceito de Direito, Hart escreve que se existe algo como uma essência do sistema jurídico, essa essência seria a regra de reconhecimento. Em seu primeiro engajamento de destaque para com a obra de seu professor, Ronald Dworkin, famosamente parodiou esse enquadramento da experiência jurídica como um teste de pedigree – ao reduzir, concomitantemente, o Direito a um jogo de baseball. Se se pergunta à obra de Dworkin qual seria, em contrapartida, a essência do sistema jurídico, provavelmente se poderia formular a seguinte resposta: o Direito, enquanto instituição política, tem sua essência, ou fundamento, na moralidade comunitária. De fato, em diversas instâncias de sua obra se encontram as mais diversas tentativas de elaborar o processo que vai do fundamento à sua atualização, e da atualização, que informa a compreensão efetiva desse fundamento – do movimento entre essência e existência – à interpretação avançada pelo autor. Admitidamente, esses esforços, que podem ser lidos do começo ao fim da obra de Dworkin, não carregam consigo a clareza da proposta de Hart acerca da essência do sistema jurídico. Poder-se-ia sugerir que Dworkin rejeita, concomitantemente, tanto o positivismo
conceitual. Essa rejeição carrega consigo alguns obstáculos para a compreensão, seja das entradas individuais, seja da compreensão da sua obra como um todo. Outrossim, também dificulta a localização crítica de Dworkin em relação aos textos e tradições filosóficas que exercem efeito sobre e contribuem para a configuração de seus textos. Dessa forma, o presente trabalho busca contribuir para o contorno e a resolução dos dois problemas expostos. Metodologicamente, este artigo prossegue na esteira daquilo que 2
Devo a Ricardo Spindola uma referência expressa e uma nota de agradecimento. Grande parte dos argumentos aqui apresentados são resultado de frutíferas discussões e inúmeras sugestões de leituras da parte dele.
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jurídico, quanto seus princípios protocolares preocupados com a análise e a depuração
Giorgio Agamben indica por “elaboração”, o elemento genuíno em qualquer obra, artística, científica ou filosófica. Isto é, a capacidade de desenvolver o texto, rearranjando-o diante de interpretações que o desafiam, cruzando seus centros e margens, lendo-o nas suas entrelinhas – em suma, a tentativa de empreender uma leitura cuidadosa. Nesse diapasão, a primeira etapa do texto, contextualiza a obra de Ronald Dworkin frente a um dos debates intelectuais no qual ela se envolveu e que determinaram de maneira significativa a sua compreensão, com destaque para o papel desempenhado nesse debate pelo conceito de regra de reconhecimento: o debate Hart-Dworkin. Já a segunda etapa, destaca e desenvolve a sugestão interpretativa de Carlos Santiago Nino, quem propõe a leitura da proposta de Dworkin, a respeito da essência do direito, como uma compreensão kantiana da regra de reconhecimento, buscando desenvolver a força dessa projeção nos textos dworkianos, isto é, uma relação entre Dworkin e Kant.
2 O DEBATE HART-DWORKIN
Hart, em seu pós-escrito, presente na segunda edição de O Conceito de Direito, de 1994, rebate alguns posicionamentos de Dworkin. Neste texto, Hart esclareceu quais eram os objetivos da sua obra, entre eles o principal: formular uma teoria geral e descritiva, simultaneamente, do Direito. Essa teoria seria então: “geral, no sentido de que não está ligada a nenhum sistema, ou cultura, jurídicos concretos, mas procura dar um relato explicativo e clarificador do Direito como instituição social e política complexa.” (HART, 2001, p. 300) e descritiva, “na medida em que é moralmente neutro (o relato de Hart) e não tem propósitos de justificação” (2001, p. 301)3. Por outro lado, Dworkin parece realizar uma teoria concreta do Direito na visão de anglo-americano” (2001, p. 302). Em A Justiça de Toga, Dworkin rebate essas afirmações dizendo que a teoria hartiana sobre o Direito não pode ser considerada uma descrição neutra, uma vez que a sua interpretação acerca do mundo jurídico não somente o descreve como também o justifica. Ademais, Dworkin considera a Teoria do Direito uma atividade exercitada
3
Na visão de Stephen Perry (2000, p. 177), a teoria jurídica desenvolvida por Hart depende de uma argumentação moral, uma vez que ele afirma a inexistência de sistema jurídicos sem uma regra de reconhecimento, a qual permite a construção de sistemas jurídicos utilizando-se dos valores da certeza, flexibilidade e eficiência. Ou seja, é imprescindível a especificação de valores morais/finalidades na determinação da função de um modelo normativo.
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Hart, “que é usualmente a própria cultura do teorizador e, no caso de Dworkin, a do direito
por meio da moralidade política substantiva, isto é, a parte mais relevante e inafastável de uma argumentação jurídica é o seu elemento moral4. Dworkin chama essa concepção, meramente descritiva, de “filosofia arquimediana”. Segundo ele, partir dela seria encontrado um olhar de superioridade, de fora e de cima. “A concepção de Hart é um caso especial da concepção arquimediana clássica segundo a qual existe uma divisão lógica entre o uso ordinário dos conceitos políticos e a sua elucidação filosófica” (DWORKIN, 2010, p. 233). Outro ponto fundamental são as divergências sobre a regra de reconhecimento. Na obra O Conceito de Direito, Hart diz que existem dois tipos de regras: as primárias – que impõem deveres – e as secundárias – que atribuem poderes, sejam eles públicos ou privados – as quais podem ser divididas em regras de alteração, de julgamento e de reconhecimento. Esta poderia ser comparada a uma regra de pontuação em um jogo qualquer, isto é, no mundo jurídico ela é responsável por atribuir validade às demais normas jurídicas. Consiste em um ponto interessante notar que a própria regra de reconhecimento não pode ser considerada válida ou inválida, mas apenas aceita como apropriada para determinada comunidade jurídica. Neste ponto Dworkin (2002, p. 34) concorda com Hart:
Sem dúvida, uma regra de reconhecimento não pode ser ela mesma válida, de vez que, por hipótese, ela é a última instância e não pode, portanto, satisfazer os testes estipulados por uma regra ainda mais fundamental. A regra de reconhecimento é a única regra em um sistema jurídico cuja obrigatoriedade depende de sua aceitação.
Para o teórico americano, uma regra de reconhecimento é algo insuficiente para se entender o funcionamento de um sistema jurídico. Esta regra não consegue abarcar os princípios necessários para a resolução de um caso difícil, uma vez que “os princípios jurídicos não se encontram na decisão particular de um poder legislativo ou tribunal, mas na compreensão do
(DWORKIN, 2002, p. 64). Contradizendo as palavras de Dworkin, Hart diz que a sua teoria, denominada positivismo moderado, não pode ser entendida como um positivismo meramente factual, o qual leve em conta apenas aspectos históricos e com isso valorize sobremaneira os costumes. Ou
Sobre Dworkin, Stephen Guest (2010, p. 2) diz: “Sua teoria – como posso dizer – é plenamente moral, do começo ao fim.” Diante de um viés moral, repleto de valores “não podemos alegar, de maneira sensata, que a análise filosófica de um valor é conceitual, neutra e desengajada. Mas podemos alegar sensatamente que ela é normativa, engajada e conceitual” (DWORKIN, 2010, p. 220). 4
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que é apropriado, desenvolvido pelos membros da profissão e pelo público ao longo do tempo”
seja, a regra de reconhecimento não pode ser considerada um simples teste de pedigree, isto é, que possua limitações em reconhecer princípios. Nas palavras de Hart, “(Dworkin) ignora o meu reconhecimento explícito de que a regra de reconhecimento pode incorporar, como critérios de validade jurídica, a conformidade com princípios morais ou com valores substantivos [...]” (HART, 2001, p. 312). Outro ponto de embate no debate Hart-Dworkin diz respeito à dicotomia na perspectiva interna e externa do Direito. Hart defende uma teoria descritiva, a qual permita um observador externo, não participante da comunidade jurídica estudada, descrever os modos como os participantes desse sistema jurídico encaram o Direito de um ponto de vista interno5. Esta postura antropológica do teorizador do Direito deve fazer com que o observador externo se sinta apto a ter um papel dentro do sistema, no entanto, sem que isto não afete a integridade de sua postura descritiva. Neil MacCormick ressalta que Hart possui uma abordagem hermenêutica na análise do que é uma regra, essa seria composta por dois elementos: primeiramente, existiria um hábito e, depois, ressaltaria-se a atitude dos indivíduos6. Logo, se pode dizer que este método hermenêutico caracteriza-se por uma duplicidade de pontos de vista. Ao mesmo tempo em que a regularidade da atividade funda um aspecto externo, a atitude crítica e reflexiva do individuo representa o aspecto interno. Do lado diametralmente oposto da dicotomia, Dworkin defende uma perspectiva interna do Direito que permita um ponto de vista interno, de um participante do sistema jurídico, o que refuta naturalmente a possibilidade de uma postura descritiva e aproxima-se de uma postura normativa. Em busca de uma teoria geral com elementos históricos e sociais corre-se o risco de ignorar a estrutura do argumento jurídico, a qual reivindica uma posição interna de análise na visão dworkiniana. O teórico americano inicia sua obra O Império do Direito da seguinte forma: “este livro adota o ponto de vista interno, aquele do participante; tenta debruçar-se sobre as questões de acerto e verdade com as quais os participantes deparam” (DWORKIN, 2014, p. 19).
5
O observador externo pode adotar duas posturas: a engajada e a desengajada (posição extrema). No primeiro caso o observador pode afirmar que um grupo aceita determinadas normas sem a sua própria aceitação (concepção hartiana). A posição extrema caracteriza-se pela simples observação de regularidades do comportamento físico (PERRY, In: MARMOR, 2000, p. 154-155). 6 “(...) uma regularidade externamente observável ou um padrão repetido de conduta é um elemento necessário para explicar uma regra, mas não suficiente. O outro elemento necessário é relativo a uma atitude dos membros do grupo cuja conduta se ajusta a dito padrão” (MACCORMICK, 2010, p. 106, tradução livre).
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apreender a natureza argumentativa de nossa prática jurídica ao associar-se a essa prática e
A abordagem de Dworkin carece de algumas explicações e da exposição de suas incongruências. A existência de uma perspectiva externa do Direito não se torna sinônimo de desenvolvimento de uma teoria totalmente asséptica (neutra). Na verdade, o aspecto externo implica dizer, principalmente, que não há uma discussão acerca da validade sobre as regras em discussão. Dworkin dizer que é impossível existir uma perspectiva externa, uma vez que todas as discussões resultam, inevitavelmente, em debates em morais, é um argumento de difícil sustentação. Alexandre Araújo Costa traz um interessante exemplo, o qual mostra que o fato de uma afirmação ter consequências no âmbito moral não resulta em um debate necessariamente moral:
Quando um cosmólogo afirma que não existe qualquer influência da posição dos astros na definição da personalidade de uma pessoa, essa é uma afirmação que não integra o discurso da astrologia (...) Mas quando um cientista se limita a afirmar que a influência das interações físicas existentes entre os humanos e a constelação de Peixes não pode ter repercussões relevantes sobre a constituição física de uma pessoa, ele opera uma negação física, e não astrológica, da relação entre certos fatos. (COSTA, 2014, p. 213)
Costa (2014, p. 214) conclui: “Ele (Dworkin) considera que são morais todos os enunciados que têm alguma repercussão sobre o seu próprio julgamento moral e, portanto, ele não concebe um lugar externo à própria moralidade.” A partir das ideias de Dworkin poderíamos chegar à conclusão que o físico, o qual critica a astrologia, se transformaria em um astrólogo, claramente um resultado falacioso. Mais esclarecedor ainda é o exemplo do judeu ortodoxo mal informado, que pede um conselho para o seu amigo católico grande conhecedor do judaísmo. A pergunta O que devo
mesmo o amigo sendo católico (RAZ, 1979, p. 156). Por fim, a última ocorrência conflituosa abordada neste artigo será sobre a existência de divergências teóricas e práticas no universo jurídico. Dworkin (2014, p. 7-8) distingue dois modos pelos quais os juízes e advogados podem divergir a respeito da verdade de uma proposição jurídica: acerca dos fundamentos do direito (divergência teórica) e quando diz respeito às questões de fato (divergência empírica). Logo no começo da obra O Império do Direito, Dworkin (2014, p. 15) deixa clara a sua posição nessa discussão: “Este livro é sobre divergência teórica no direito”. 366
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fazer? claramente resultará em uma resposta baseada no ponto de vista do judaísmo ortodoxo,
Em oposição, encontram-se as teorias positivistas que sustentam o ponto de vista do Direito como simples questão de fato, as quais acreditam em uma divergência empírica sobre a história das instituições jurídicas (DWORKIN, 2014, p. 41). Para Hart (2001, p. 320, 335-339) não seria possível a existência de desacordos teóricos acerca do Direito, uma vez que cada sistema jurídico possui um critério de validade aceito por meio de uma convenção: a regra de reconhecimento. Isto é, apenas seriam possíveis divergências empíricas, as quais dizem respeito à prática dos agentes jurídicos, justamente devido a textura aberta da linguagem (HART, 2001, p. 140 e 141). Nesses casos de difícil aplicação, os juízes criam o Direito, diante da não abrangência da regra de reconhecimento, o que Dworkin critica nomeando essa ação dos juízes de discricionariedade em sentido forte. Dworkin alega que não é possível harmonizar uma teoria positivista, como a de Hart, com a existência de divergências teóricas. A partir do momento que é constituída uma regra de reconhecimento, supõe-se a adoção de um critério de validade consensual. A existência de uma divergência teórica seria justamente um ataque à consensualidade do critério de validade e, consequentemente, uma contradição à regra de reconhecimento constituída. Com essa argumentação, Dworkin tenta alegar a desfuncionalidade das teorias positivistas diante da inevitabilidade de divergências teóricas no universo jurídico7. A apresentação dos casos Elmer, Snail Darter, McLoughlin e Brown, no primeiro capítulo do livro O Império do Direito, servem para justificar a existência de divergências teóricas no Direito, em que os juízes, em casos concretos da jurisprudência, discordaram acerca dos fundamentos do Direito (grounds of law). Neil MacCormick discorda de Dworkin em suas alegações: “De fato há divergências reais no direito, mas as mais básicas são, a meu ver, divergências práticas sobre o que é melhor fazer, levando-se em consideração todos os aspectos. Não se trata de divergências especulativas, cuja existência nos força a reconhecer que existe uma única resposta correta para
estar correto, uma vez que, se a maior parte das questões jurídicas suscitasse conflitos de ponto de vista entre os operadores jurídicos, a previsibilidade e segurança jurídica estariam seriamente comprometidas.
7
Talvez a melhor saída para os positivistas seria a própria aceitação que existem divergências teóricas no direito. Brian Leiter (2009, p. 1220, tradução livre) diz: “Logo, mesmo que nós concordássemos com Dworkin que o positivismo fornece uma abordagem insatisfatória para o desacordo teórico no Direito, isso não teria significância, salvo se fosse considerado, de algum modo, fundamental para o entendimento da natureza da lei e dos sistemas legais”. Ou seja, os positivistas podem aceitar que existem divergências teóricas no direito, elas apenas são secundárias para o entendimento do complexo jurídico.
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um determinado problema” (MACCORMICK, 2009, p. 323). Neste ponto, MacCormick parece
Outra citação de MacCormick que vale a pena comentar é esta: “Se for uma interpretação justa de Dworkin considerar que ele afirma serem todas as divergências jurídicas, no fundo, divergências especulativas (...), sua posição terá de ser rejeitada como uma forma insustentável de ultrarracionalismo.” (MACCORMICK, 2009, p. 345). Em outras palavras, a ideia de um juiz Hércules, que sempre busca a única resposta correta, pode entrar em uma regressão infinita na busca da melhor argumentação e esquecer que as decisões jurídicas, em sua versão mais ordinária, são decisões de como os indivíduos da sociedade desejam viver8. Como já dito, a regra de reconhecimento é, fundamentalmente, um mecanismo para diferenciar regras válidas de não válidas em um determinado contexto jurídico. Para Carlos Santiago Nino, se pode analisar a invocação da regra de reconhecimento, tanto por um ponto de vista interno, quanto externo. Este seria observado quando se refere à regra de reconhecimento como uma prática social, aquele seria percebido quando a já citada regra se referisse a juízos normativos (isto é, morais). Portanto, se pode dizer que Dworkin, na verdade, possuiria uma interpretação idiossincrática9 da regra de reconhecimento hartiana, e não simplesmente a negasse. Essa interpretação da regra de reconhecimento por um ponto de vista interno satisfaria a reivindicação moral da argumentação jurídica, uma vez que “(...) todo juízo jurídico justificatório é, em última instância, derivado de juízos morais que dão legitimidade a certas fontes dotadas de autoridade” (NINO, 2013, p. 54, tradução livre). Dando prosseguimento à argumentação de Nino, deve-se perceber que a validação de normas com base na autoridade possui uma limitação. O processo de regresso infinito 10 deve ter um fim, o qual seria caracterizado por uma norma aceita por seus próprios méritos e não porque origina-se de uma força cogente. Nino (2013, p. 55, tradução livre) diz que:
Isso nada mais é que uma consequência do pressuposto mencionado de que em nosso
que aceitamos por seus próprios méritos intrínsecos e não por originarem de alguma autoridade legislativa, divina ou convencional. “Chegamos àquele ponto da pura divergência prática no qual precisamos nos esforçar além daquilo que já está estabelecido entre nós e decidir como queremos viver, como nossa sociedade há de se organizar” (MACCORMICK, 2009, p. 331). 9 O termo idiossincrático foi utilizado no sentido de algo não usual. Tenta-se elaborar uma interpretação da regra de reconhecimento, a qual foge da normalidade. 10 Robert Alexy, em sua Teoria da Argumentação Jurídica, trata disso: “Um regresso ao infinito apenas poderá ser evitado caso a fundamentação se interromper em algum momento e se substituir por uma decisão que já não se tem de fundamentar”. Isso geraria decisões explicáveis exclusivamente por meio do psicológico do indivíduo (subjetividade) e para evitar isso Alexy sugere “uma série de exigências na atividade da fundamentação” (ALEXY, 2017, pp. 174-175), tais como a formulação de regras do discurso racional, vide o princípio da inércia do Perelman. 8
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discurso prático as razões últimas são autônomas, no sentido de Kant, ou seja, razões
Essas normas, aceitas pelos seus próprios méritos, devem ser entendidas por meio da utilização de conceitos kantianos. A princípio, na divisão entre imperativos categóricos e hipotéticos, se pode dizer que o Direito encontra-se repleto de imperativos hipotéticos, uma vez que eles “representam a necessidade prática de uma ação possível como meio de alcançar qualquer outra coisa que se quer” (KANT, 2007, p.50), ou seja, as regras jurídicas não são cumpridas porque são deveres intrínsecos a cada um, mas sim, porque pertencem a uma legislação vigente com sanções aplicáveis. Pode-se dizer que “direito e competência de empregar coerção, portanto, significam uma e única coisa” (KANT, 2003, p. 78). No entanto, a Metafísica dos Costumes (isto é, a ética) abrange a doutrina do direito e a doutrina da virtude (ou seja, a moral)11. Enquanto os deveres, de acordo com a primeira, podem ser somente externos, devido ao fato de que essa legislação não reivindica a ideia de um dever como fundamento determinante da escolha do agente, a segunda reside, em deveres, os atos internos e não exclui os externos, ao contrário, reivindica tudo que é dever em geral. Logo, a partir do momento que se considera a legislação jurídica uma derivação da ética, também se pode inferir que o Direito se submete aos imperativos categóricos. Joaquim Carlos Salgado (2012, p. 75) diz: “Em ambos (direito e moral) aparece o imperativo categórico como critério de validade das máximas: por exemplo, nem no direito, nem na moral é concebível que alguém descumpra o seu contrato.” Ao mesmo tempo, resta destacar as diferenças entre o direito e a ética em sentido estrito (moral). Salgado (2012, p. 75) diz que a moral caracteriza-se pela interioridade em que o motivo da ação é a própria lei moral (isto é, o agir por dever), enquanto que a legalidade do Direito é representada pela exterioridade, que se funda no agir conforme a norma (coerção externa). Portanto, se pode dizer que os imperativos hipotéticos são operadores do Direito, visto
categóricos seriam a fundamentação da empreitada jurídica, sempre residente na liberdade, ou seja, o dever ser do Direito é a concretização da liberdade12. A importância do imperativo hipotético não está em ser o fundamento último do Direito, mas em materializar-se em normas Joaquim Carlos Salgado (SALGADO, 2012, p. 74) explica: “Kant usa o termo ethisch (ou Ethik) com dois significados: em sentido amplo, é a ciência das leis da liberdade, que tem para ele o sinônimo de leis éticas, as quais se dividem em morais e jurídicas; em sentido estrito, ética é a teoria das virtudes e, como tal, diferencia-se do direito.” Resumindo, a moral seria a ética em sentido estrito. 12 “Como imperativo hipotético, aparece o direito apenas numa zona periférica. O fundamento e o destino do direito são a liberdade e o seu imperativo, enquanto considerado nos seus princípios a priori ou como ideia, é o imperativo categórico” (SALGADO, 2012, p. 116). 11
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que possuem como função a estruturação da prática jurídica, enquanto os imperativos
jurídicas do direito positivo, a fim de aplicar os princípios, a princípio, do Direito ao mundo pragmático. Reforçando este ponto, Joaquim Carlos Salgado (2012, p. 115) destaca que a norma jurídica é um imperativo hipotético, o qual coloca um objeto a ser alcançado na realidade, mas que possui seu limite no imperativo categórico. Com essa interação de imperativos hipotéticos e categóricos “Kant não tira o direito do mundo ético, mas nele insere a coação. Porque o direito é ético e porque a coação passa a pertencer ao direito, torna-se ética. Tanto a coação como o direito procedem de uma mesma fonte, a razão” (SALGADO, 2012, p. 197). Nota-se que o dever moral e o dever jurídico não são diferenciados em razão de sua substância, uma vez que ambos são fundamentados em imperativos categóricos, ou seja, na liberdade. No entanto, o modo como se dá a ação, e sua relação com o dever, é diferente. Salgado (2012, p. 176) crava que, na ação moral, o homem age por dever e não simplesmente conforme o dever, sendo a ação por dever aquela cujo motivo é somente o dever. O fato de esta ação poder ser realizada por diversos motivos (como uma legislação prevendo uma sanção negativa) qualifica-a como heterônoma. Assim, parece que a diferenciação entre o direito e a moral reside na análise da liberdade em seu aspecto interno e aspecto externo. Nesse ínterim, Kant diz:
A liberdade à qual as primeiras leis (leis jurídicas) se referem só pode ser liberdade no uso externo da escolha, mas a liberdade à qual se referem as últimas (leis éticas) se referem é liberdade tanto no uso externo como no interno da escolha, porquanto é determinada por leis da razão (KANT, 2003, p. 63-64).
Faz-se importante transcrever o princípio universal do Direito para o fim proposto: “Qualquer ação é justa se for capaz de coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal, ou se na sua máxima a liberdade de escolha de cada um puder coexistir com a máxima, Daniel Tourinho Peres (1998, p. 57) diz: “(A) faculdade de coagir e o conceito de direito só podem ser desenvolvidos a partir da liberdade13, cujo conhecimento só é possível através do imperativo moral”. Em outras palavras, o imperativo categórico é o único elemento fundamental a toda faculdade, inclusive a faculdade de coagir.
“A liberdade é a condição de toda vida moral e, portanto, também do direito. Nenhum direito e nenhum dever tem sua origem noutra coisa senão na liberdade” (SALGADO, 2012, p. 167). 13
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liberdade de todos de acordo com uma lei universal” (KANT, 2003, p. 77). Diante dessa
Logo, pode-se dizer que o direito é a coerção para a existência humana, assim como a regra de reconhecimento, em seu aspecto interno, controla o que é Direito, ou melhor, assim como a ética controla o que é Direito.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Antes dessas discussões, o interesse pela filosofia do direito nas universidades era bastante reduzido. A introdução das obras O Conceito de Direito e O Império do Direito nas bibliografias dos cursos de direito reacendeu uma grande inquietação dos juristas: a relação entre o direito e a moral. Em outras palavras, o debate permitiu com que o Direito saísse de uma posição hermética e empobrecedora. Com isso, se reconheceu a importância dos conhecimentos filosóficos para a construção dos institutos jurídicos e do entendimento de inúmeros pontos da Teoria do Direito. Logo, este artigo buscou revisitar as importantes discussões construídas ao longo do século XX, e começo do presente século, a fim de contribuir com o fomento dos embates entre o positivismo jurídico e outras correntes teóricas, como o Direito como Integridade, de Dworkin. Ademais, durante a elaboração desta reconstrução teórica e a compilação de diversos argumentos filosóficos e jurídicos acerca do debate Hart-Dworkin, sentiu-se a necessidade de adicionar uma interpretação idiossincrática do debate. Essa nova interpretação utilizou-se do pensamento de Carlos Santiago Nino e do conhecimento filosófico kantiano, a fim de revisitar, problematizar e criar um novo ponto de vista em relação à problemática. Por meio de uma leitura atenta do texto, as seguintes conclusões podem ser retiradas:
objetivo a criação de uma teoria concreta do direito; Hart adota a posição do observador externo apto a ter um papel dentro do sistema, já Dworkin defende a perspectiva interna do participante do sistema jurídico; Hart confirma a existência de desacordos práticos no direito, enquanto Dworkin defende a ideia de que também existem divergências teóricas no direito; Dworkin possui, na verdade, uma interpretação idiossincrática da regra de reconhecimento hartiana, e não simplesmente a nega; possibilidade de desenvolver a sugestão interpretativa de Carlos Santiago Nino, quem propõe a leitura da proposta de Dworkin, a respeito da essência do direito, como uma compreensão kantiana da regra de reconhecimento, buscando desenvolver a força 371
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Hart busca elaborar uma teoria do direito geral e descritiva, enquanto Dworkin tem como
dessa projeção nos textos dworkianos; o direito é a coerção para a existência humana, assim como a regra de reconhecimento, em seu aspecto interno, controla o que é Direito, ou melhor, assim como a ética controla o que é Direito.
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igualdade. 3 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2012.
THE HART-DWORKINâ&#x20AC;&#x2122;S DEBATE (RE)VIEWED IN AN IDIOSYNCRATIC FORM
ABSTRACT This article seeks to retake the Hart-Dworkin debate by pointing out, in a non-exhaustive way, some points of integration between the theory of Herbert Hart and Ronald Dworkin. Then, through the philosophy and ideas of Carlos Santiago Nino, it seeks an idiosyncratic interpretation of the rule of recognition. Its methodology is the rearrangement of interpretations that challenges the understanding of the debate, crossing its centers and margins, in other words, an attempt to undertake a careful reading. It seeks to elaborate a Kantian understading of the rule of recognition in the Dworkian texts. Keywords: Philosophy of law. Rule of recognition. Debate. Hebert
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Hart. Ronald Dworkin.
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O TRABALHO ESCRAVO NA ATIVIDADE AGRÁRIA DO ESTADO DO PARÁ Fernando Henrique Silva de Assis1
RESUMO Esse estudo objetiva promover uma análise acerca do trabalho escravo moderno e das formas encontradas pelo Estado para, vencendo os desafios geográficos e sociais, erradicá-lo. O método de abordagem utilizado foi o dedutivo e o método procedimental foi o bibliográfico exploratório e documental. Tendo-se, por conclusão, que ainda há uma grande incidência de trabalho escravo no Brasil, especialmente na zona rural do Pará, em decorrência da desigualdade social, dos conflitos agrários e do descaso judicial. Ainda, as políticas públicas adotadas são ineficientes, sendo, então, necessárias medidas para inclusão social a fim de prevenir o aliciamento dos trabalhadores.
1
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Palavras-chave: Trabalho escravo. Atividade agrária. Zona rural. Pará.
Bacharel em Direito pela Faculdade Faci/wyden.
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1 INTRODUÇÃO
Esse trabalho tem o propósito de estudar o tema do trabalho escravo na atividade agrária do estado do Pará através de duas perspectivas: a análise das causas que levam a atividade agrária à situação de escravidão e a investigação dos meios que o Estado utiliza para a erradicação do trabalho rural forçado no Pará. Com isso, o trabalho que aqui se inicia tem como objetivo apresentar a realidade do trabalho agrícola na zona rural do estado do Pará. Além disso, tem como objetivos específicos: analisar como o Estado e seus entes agem no combate e na erradicação do trabalho escravo no estado; investigar quais são as condutas praticadas com ações voltadas para os campos social, educacional e judicial; manifestar críticas aos meios utilizados pelo Estado na erradicação do trabalho escravo. Esta pesquisa mostra-se relevante para demonstrar que os meios empregados no combate ao crime de condição análoga à de escravo ainda não são suficientes para erradicá-lo, ainda que contribuam social e juridicamente na busca por soluções que garantam os direitos constitucionais dos trabalhadores. O método utilizado para a abordagem nessa pesquisa, de acordo com seus objetivos, foi o dedutivo e o método de procedimento usado foi a pesquisa bibliográfica exploratória e documental, o que possibilitou a análise qualitativa dos dados retirados do Observatório Digital do Trabalho Escravo, de iniciativa do Ministério Público do Trabalho e da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de publicações periódicas de jornais e livros acerca do tema, bem como de documentos coletados em páginas da Internet e periódicos.
O que seria trabalho digno? Para Barzotto (2007), trabalho digno é o que promove a dignidade da pessoa humana trabalhadora, o que implica em dizer que o trabalho está vinculado à dignidade humana de forma inalienável, visto que é através dele que o homem faz uso das riquezas da terra e aperfeiçoa a sua personalidade. Ao tratar de trabalho digno, faz-se primordial tratar de direitos fundamentais, que são comumente utilizados como sinônimo de direitos humanos. Quanto a essa questão não existe consenso doutrinário e sobre isso Sarlet (2010, p. 29) fala:
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2 O TRABALHO DIGNO COMO DIREITO FUNDAMENTAL
[...] o termo “direitos fundamentais” se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão “direitos humanos” guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam inequívoco caráter supranacional (internacional).
Segundo Sarlet (2012), o surgimento dos direitos fundamentais não possui uma origem determinada, mas o seu reconhecimento foi diretamente influenciado pela Revolução Francesa com seu lema de liberdade, igualdade e fraternidade, bem como pelas Revoluções Inglesa e Americana. Os primeiros direitos englobavam os direitos de liberdade, os direitos civis e políticos, e foram denominados de direitos de primeira geração, preconizados pelo pensamento liberalburguês. Esses eram, ainda, considerados direitos de defesa, com caráter negativo em oposição ao Estado, que era tido como opressor (SARLET, 2012). Em seguida, foram reconhecidos os direitos econômicos, sociais e culturais, sendo considerados direitos de segunda geração. Estes são direitos positivos que exigem uma ação do Estado, concedendo ao indivíduo o direito a prestações estatais sociais. São, então, tidos como direitos prestacionais e neles está incluso o direito ao trabalho (SARLET, 2012). A Declaração Universal dos Direitos Humanos2, aprovada em 1948, na França, pela Assembleia das Nações Unidas, foi o mais importante instrumento internacional a respeito dos direitos humanos (BRITO FILHO, 2016). Nessa declaração, encontram-se disposições que compõem o mínimo de direitos aos trabalhadores, como a liberdade na escolha do emprego, a proteção contra o desemprego, a igualdade na remuneração e a remuneração justa, bem como,
Segundo Comparato (2008), em relação aos direitos trabalhistas, cabe destaque, ainda, à Constituição Mexicana de 1917, que trouxe no seu bojo prescrições relativas à criação de empregos, questões sobre a jornada de trabalho e a limitação de idade para trabalhar, esses dispositivos foram considerados como inauguradores do Direito Constitucional do Trabalho.
2
ASSEMBLEIA GERAL DA ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Paris.1948. Disponível em: <http://www.onu.org.br>. Acesso em: 11 maio. 2018.
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o direito de organização dos sindicatos para proteção dos seus interesses.
Também é importante destacar a Constituição alemã de Weimar de 1919, que, assim como a Constituição Mexicana de 1917, previu em seu texto todas as convenções aprovadas pela recém-criada Organização Internacional do Trabalho. No Brasil, a criação de normas trabalhistas foi incentivada pelas transformações que aconteciam na Europa após a Primeira Guerra Mundial e os consequentes movimentos operários por parte dos imigrantes, que reivindicavam melhores condições de trabalho. Em 1930, Getúlio Vargas assumiu o comando da nação e lançou uma ideia política de valorização do trabalho. Nessa época, a criação da carteira profissional, através do Decreto nº 21.175/32, foi o grande e importante passo para o início da dignificação do trabalho. O Governo Varguista tinha a preocupação de modificar as relações de trabalho adotando medidas que assegurassem os direitos do trabalhador. No período de 1930 a 1937, foi implantado um programa que contemplava seguros contra invalidez, doença, morte, acidentes de trabalho, bem como o seguro maternidade. A Constituição Federal de 1934 também foi um marco histórico nesse processo de valorização do trabalho, sendo a primeira Constituição brasileira a tratar do Direito do Trabalho, assegurando a autonomia dos sindicatos de trabalhadores e regularizando a legislação trabalhista, promovia, ainda, a isonomia salarial, o salário-mínimo, a jornada de oito horas de trabalho, a proteção do trabalho das mulheres e menores de idade, o repouso semanal e as férias anuais remuneradas. Já na Constituição Federal de 1937, o trabalho passa a ser considerado não somente um direito, mas um dever social protegido pelo Estado. Isso representou um estímulo ao avanço da legislação, ensejando a promulgação da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) em 1943, que trouxe a reunião de decretos legislativos e convenções da Organização Internacional do Trabalho com o objetivo de conferir maior proteção aos trabalhadores. Com o advento da Constituição Federal de 1988, os direitos e garantias fundamentais
seu art. 1º, inc. IV, a Constituição Federal de 1988 estabelece como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito: “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”. Já o direito ao trabalho está previsto no art. 6º da Constituição Federal de 1988: “são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho [...]”. Os direitos fundamentais, como visto anteriormente, surgiram ao longo da história com o objetivo de garantir os interesses do cidadão perante o Estado, em decorrência da divergência de poder entre eles. Nesse primeiro momento, vigorava apenas a eficácia vertical dos direitos fundamentais, que é a regulação das normas nas relações entre um poder superior, representado 378
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passaram a ser previstos de forma mais analítica, detalhada e organizada (NEVES, 2012). No
pelo Estado, e um poder inferior. Prevalecia, também, a abstenção do Estado nas relações particulares, o que logo se mostrou insuficiente, pois nem sempre o Estado significa a maior ameaça aos particulares. A abstenção do Estado diante da atuação dos particulares ensejava o acometimento de excessos decorrentes do poder econômico e/ou social, principalmente nas relações trabalhistas, pois existia assimetria de poder entre as partes. Tendo isso em vista, surgiu então a teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Segundo Sarmento (2008), a Constituição Federal de 1988 prevê a eficácia horizontal dos direitos fundamentais e assim também tem afirmado a jurisprudência, como se pode observar no voto vencedor proferido pelo ministro Gilmar Mendes ao julgar o Recurso Extraordinário n. 201.819/RJ, onde ficou consignado que:
[...] violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim; os direitos fundamentais assegurados pela constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também a proteção dos particulares em face dos poderes privados.
Quanto a sua aplicabilidade, para Sarlet (2012, p. 261) a Constituição Federal de 1988 prevê a eficácia imediata dos direitos fundamentais, conforme dispõe o art. 5°, § 1º: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Tais normas, versadas no art. 5º da Constituição Federal de 1988, impõem aos órgãos estatais a tarefa de maximizar a eficácia dos direitos fundamentais. Sobre isso, Sarlet (2012, p. 266) diz:
[...] a norma contida no art. 5º da CF estabelece a vinculação de todos os órgãos públicos e particulares aos direitos fundamentais. [...] os primeiros estão obrigados
investido do poder-dever de aplicar imediatamente as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais, assegurando-lhes a sua plena eficácia.
3 O TRABALHO ESCRAVO SEGUNDO O CÓDIGO PENAL BRASILEIRO
Quando se fala em trabalho escravo, se imagina aquele trabalho realizado pelos escravos na Antiguidade, uma prática social cujo um ser humano, por meio da força, assumia
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a aplicá-los e os particulares a cumpri-los. [...] O poder judiciário encontra-se
os direitos de propriedade sobre outro, colocando este último na posição de escravo. Diferente disso, a escravidão moderna é uma expressão genérica que se refere às relações de trabalho na Era Moderna, ou Contemporânea, na qual pessoas são forçadas a exercer um trabalho ou são submetidas, ainda que espontaneamente, a formas de trabalho degradantes. Embora exista uma grande controvérsia na doutrina quanto à conceituação e à terminologia que deve ser utilizada em relação ao trabalho escravo nos dias atuais, é a preceituada por Brito Filho (2017) a mais coerente: trabalho análogo à escravidão, pois é isso que acontece na prática, não a escravidão propriamente dita. No Código Penal Brasileiro (CPB) a terminologia utilizada é condição análoga à de escravo, tanto na sua redação anterior, quanto na atual. Alterado pelo Decreto-Lei nº 2.848, de 1940, o Código Penal Brasileiro passou a dispor sobre tal matéria da seguinte maneira:
Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena- reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. (GRECO, 2015, p. 465)
Em 1994, o Brasil foi denunciado perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos pela primeira vez e o caso conhecido como Caso José Pereira ganhou notoriedade nacional e internacional. O caso refere-se ao episódio ocorrido em 1989, quando José Pereira, ainda adolescente, saiu de sua cidade natal, São Miguel do Araguaia, para trabalhar em Xinguara (PA). No entanto, um intermediário comprou a sua suposta dívida, contraída com alimentação e hospedagem e José, devido a tal transação, foi levado para uma fazenda para trabalhar forçadamente na preparação do pasto para criação de gado. Lá ele decidiu fugir, mas
trabalhador denunciou o proprietário da fazenda na Polícia Federal, porém não teve seu caso resolvido. Somente quatro anos após os fatos, o Estado brasileiro foi denunciado, pois a petição formulada por organizações não governamentais apontava o desinteresse e ineficácia nas investigações. A denúncia foi feita em virtude da prática de trabalho escravo e pela violação dos direitos à vida e à justiça na parte Sul do estado do Pará e resultou no Relatório n° 95/2003 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, onde foi acordado uma solução amistosa. Nesse acordo, o Brasil reconheceu a responsabilidade perante a comunidade internacional e 380
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foi capturado e alvejado com um tiro no olho, que o deixou cego. Após o ocorrido, o
ficou estabelecido o compromisso da implantação de medidas referentes ao julgamento e sanção dos responsáveis, medidas de reparação, prevenção, fiscalização e sanção contra o trabalho escravo, bem como modificações legislativas (NEVES, 2012). Em decorrência disso, o art. 149 do Código Penal Brasileiro foi alterado para forma atual, sendo ampliado e detalhado, passando a descrever explicitamente as hipóteses em que há o crime de redução do trabalhador à condição análoga à de escravo:
A norma penal brasileira deixa claro, porém, a nosso ver, que o trabalho análogo ao de escravo é gênero do qual podemos extrair sete espécies: trabalho forçado, jornada exaustiva, condições degradantes, restrição de locomoção em função de dívida – servidão por dívida, cerceamento do uso de transporte, vigilância ostensiva e apodera mento de documentos e objetos pessoais. (NEVES, 2012, p. 43)
Essas espécies estão descritas no caput do art. 149 do Código Penal Brasileiro, em suas formas de execução típicas e por equiparação. É importante verificar, contudo, que essas hipóteses são alternativas e não cumulativas, ou seja, basta a existência de uma das hipóteses para a consumação do crime. Sendo essas: O trabalho forçado ocorre quando se ignora a vontade do trabalhador, lhe impondo de forma forçada e obrigatória uma atividade mediante sua privação de liberdade ou de locomoção. Acerca desse tipo de execução, Neves (2012, p. 49) disciplina que: “É quando o trabalhador se vê impedido de deixar o local de trabalho e de encerrar o contrato de trabalho, tudo com o objetivo de manter o trabalhador naquele local, trabalhando de forma forçada, ou seja, obrigatória, sem ter meios de sair”. Na jornada exaustiva é preciso analisar e entender que o modo em que o trabalho é prestado e a jornada que a vítima está desempenhando estão completamente fora dos padrões legais e são humanamente incompatíveis com estes. Entende-se que o excesso de horas de
ou até da morte. Para diferenciar a jornada exaustiva da jornada extraordinária, que é uma irregularidade trabalhista, Brito Filho (2012 citado por NEVES 2012, p. 50) cita:
É preciso ser claro então, no caso da jornada exaustiva, para que ela, de forma isolada, possa caracterizar o trabalho escravo. É preciso diferenciar, então, o excesso de jornada, sujeito ao pagamento das verbas decorrentes de trabalho em horário suplementar, da jornada que exaure o ser humano, impossibilitando-o de usufruir dos demais aspectos da vida em sociedade.
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trabalho causa esgotamento mental e físico na vítima, possibilitando a ocorrência de acidentes
Trabalhar em condições degradantes significa ser privado das garantias mínimas de segurança, saúde e dignidade:
[...] trabalho em condições degradantes é aquele em que há falta de garantias mínimas de saúde e segurança, além da falta de condições mínimas de trabalho, de moradia, higiene, respeito e alimentação, tudo devendo ser garantido [...] em conjunto; ou seja, e em contrário, a falta de um desses elementos impõe o reconhecimento do trabalho em condições degradantes (BRITO FILHO, 2017, p. 99).
A servidão por dívida remonta uma das mais antigas formas de escravização, cerceando a liberdade do indivíduo em virtude de uma prestação à qual está obrigado a adimplir. A história mostra, ainda, novos contornos da servidão por dívida, como ocorreu na Amazônia no período da borracha, entre os anos de 1879 e 1912, no que se chamava de “aviamento”, como relembra Brito filho (2017, p. 101): “[...] o seringueiro, então, no sistema de aviamento, pela dívida que não era capaz de pagar, e pelo fato de que, por esse motivo, não podia deixar o seringal, era claramente pessoa reduzida à condição análoga à de escravo”. Essas caracterizadoras, para Neves (2012) e Brito Filho (2016) são enquadradas como trabalho escravo típico e citam que: cerceamento do uso de transporte; vigilância ostensiva e apoderamento de documentos e de objetos podem ser considerados trabalho escravo por equiparação. O cerceamento do uso de transporte é o primeiro modo de equiparação descrito no art.149 do Código Penal Brasileiro e trata-se de meio pelo qual os trabalhadores são impedidos não apenas de sair da fazenda, ou local onde são explorados, bem como de se locomover dentro deles. A distância entre as fazendas e os meios urbanos facilita a ocorrência dessa prática, pois sem o meio correto para se deslocar, as fugas se tornam arriscadas e a fiscalização por parte dos
tentaram fugir e passaram muito tempo caminhando até serem capturados novamente. A vigilância ostensiva, que também é uma forma de trabalho escravo por equiparação, acontece pela presença dos guardas armados que, por mando dos proprietários, exercem ostensiva e violenta vigilância com a finalidade de manter o trabalhador retido no local em que exerce o trabalho forçado. Além de fiscalizar as atividades e impor ritmo a estas, os vigilantes são responsáveis por impedir a fuga das vítimas do trabalho forçado, que, por muitas vezes, pagam com suas vidas.
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órgãos competentes se torna dificultosa. São muito comuns os relatos de trabalhadores que
Outro modo de equiparação é o apoderamento de documentos e objetos e acontece quando o empregador retém os documentos, como carteira de identidade e certidão de nascimento, bem como objetos pessoais do trabalhador, com o intuito de impedir que o trabalhador deixe o local de trabalho, obrigando-o a lá permanecer até que os mesmos possam quitar suas dívidas.
4 TRABALHO ESCRAVO NA ATIVIDADE AGRÁRIA DO ESTADO DO PARÁ
Foi nas décadas de 60 e 70, com a expansão econômica e o desenvolvimento da Amazônia, que surgiram as primeiras denúncias de trabalho escravo contemporâneo no Brasil. A Amazônia, nessa época, recebeu grandes recursos governamentais e grandes empresas, como a Volkswagen, e grupos bancários, como o Bradesco, investiram em projetos industriais na região. Foi nesse período que foram construídos projetos como a Rodovia Transamazônica (BR-230) e a Usina Hidrelétrica de Tucuruí, incentivando a migração de milhares de famílias do sul e do nordeste do País em busca de terras, consolidando o latifúndio, especialmente nas regiões sul e sudeste do estado, pois nem todos os migrantes conseguiram a terra desejada, os projetos de assentamento não foram totalmente implementados e ocorreu a grilagem de grandes extensões de terra. Para a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o trabalho escravo na região do Pará está profundamente relacionado às questões agrárias, marcadas pelas concentrações de terra e pelos conflitos latifundiários. O território extenso da Amazônia tornou a fiscalização difícil e facilitou o surgimento de homens conhecidos como gatos, que intermediam a mão de obra para o desmatamento, formação de pastos e produção de carvão e outras mercadorias como pecuária, cana-de-açúcar, madeira, algodão, soja, carvão vegetal e aço.
escravizados, tinham origem em outros estados, como o Maranhão. No entanto, a Comissão Pastoral da Terra acredita que atualmente esse cenário mudou e hoje as famílias vulneráveis ao trabalho análogo à escravidão na região são de pessoas que vivem no próprio estado, filhos e filhas de migrantes de décadas passadas. Os trabalhadores são aliciados com promessas de garantia de assistência médica, bons salários, transporte e lazer, mas as condições de trabalho, na realidade, são bem diferentes das prometidas e tudo que é minimamente fornecido, como alimentos e transportes, geram dívidas
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Historicamente, os trabalhadores, que eram levados para atividades nas fazendas e
que nunca serão quitadas. Muitas vezes os trabalhadores são submetidos a torturas e perdem até mesmo a vida. Uma das situações que mais impacta os fiscais, que encontram trabalhadores em condições degradantes, é a situação da água que estes são obrigados a beber e usar para a produção de alimentos:
Nesta situação [do acampamento madeireiro na floresta], todos trabalham na situação de escravo, porque pela legislação não fica. Até porque, onde eles trabalham a água é levada de qualquer outro lugar. Às vezes é no chapadão, não tem água, é seco. Eles levam de algum igarapé, de algum poço, enchem um tamborzão, um tambor de 200 litros, e leva na caminhonete ou em riba de um caminhão e põe lá. Então aquela água é utilizada ali no dia a dia. Mosquito, sujeira [...] (Comissão Pastoral da Terra, 2017, p. 24)
Para o Repórter Brasil3, todos esses grandes projetos citados acima, ao longo dos anos, impuseram um modelo de desenvolvimento predatório, devastando 1/5 (um quinto) do território original da floresta amazônica. O desmatamento aparece em 6º lugar no escalonamento das atividades que mais tiveram resgates de trabalho análogo à escravidão, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra, do Ministério Público do Trabalho (MPT) e do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). De acordo com o Repórter Brasil4, o munícipio de São Félix do Xingu, no sudeste do Pará, ilustra bem a relação entre o desmatamento e o trabalho escravo. Até 2014, o município ocupava a primeira posição da escala de área desmatada e também de municípios com maior número de trabalho escravo na Amazônia. De 2014 a 2017, esses números sofreram pouca alteração. A vasta floresta na região deu lugar a pastagens com cerca de 2,2 milhões de cabeça de gado, o que evidencia também a relação do desmatamento com a pecuária e coloca São Félix
segundo lugar do estado em atividade agropecuária. Outra atividade que tem ganhado destaque por submeter trabalhadores a condições de escravidão é a atividade de madeireiras. As condições de segurança e o meio ambiente de trabalho são ainda piores na extração de madeira do que na derrubada, como cita a Comissão 3
AMAZÔNIA: trabalho escravo + dinâmicas correlatas, Repórter Brasil, 2015. Disponível em: <http://www.reporterbrasil.org.br>. Acesso em: 11 maio 2018. 4
AMAZÔNIA: trabalho escravo + dinâmicas correlatas, Repórter Brasil, 2015. Disponível em: <http://www.reporterbrasil.org.br>. Acesso em: 11 maio 2018.
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do Xingu em mais um destaque, ocupando o primeiro lugar em rebanho efetivo do Brasil e o
Pastoral da Terra (2017, p. 29): “Se tá puxando a madeira com o trator, o ajudante do trator amarra o cabo de aço e solta o cabo. Acontece muito de qualquer mexidinha que der na tora, no trator, decepa dedo, decepa mão do ajudante. É fácil de acontecer [...]”. Para fugir das responsabilidades ambientais, as madeireiras criam um esquema de terceirização, como explica a Comissão Pastoral da Terra (2017, p. 32): A terceirização se dá pela figura do “toreiro”, o responsável por extrair a madeira e transportar as toras até as serrarias. Ele, por sua vez, forma turmas de trabalhadores que irão operar as motosserras e outras máquinas na frente de exploração, fazendo papel de “gato”. Em alguns casos, há uma figura intermediária entre o toreiro e a madeireira, que compra as toras, contrata o serviço de uma serraria e depois vende as tábuas para a madeireira.
A Comissão Pastoral da Terra (2017) cita que, por ser ilegal, a extração das árvores é montada por debaixo da floresta, para que não seja rastreável por satélite, o que dificulta a obtenção de informações e a realização de denúncias. Apesar disso, houve um grande avanço com a parceria entre o Ministério Público do Trabalho (MT) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para realização de ações conjuntas em 2015. Visto que, nesse mesmo ano, uma operação denominada madeira limpa levou à prisão de 30 (trinta) pessoas envolvidas no esquema, entre eles servidores públicos do Ibama e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Recentemente, em 2017, a Repórter Brasil 5 divulgou uma investigação em que uma rede de fornecedores de grandes grupos varejistas e da construção civil estava contaminada pela prática criminosa. Grandes marcas como Tramontina, Wal-Mart, Carrefour e Casas Bahia eram abastecidas por serrarias que foram flagradas utilizando trabalho escravo. Ao longo dos anos, mais especificamente a partir de 1995, muitas medidas foram
do Trabalho e Emprego, que é responsável por toda investigação do trabalho, tem sido de extrema importância no combate do trabalho escravo atual. O órgão executa a inspeção do trabalho através de normas regulamentadoras e de órgãos específicos, que verificam se as normas trabalhistas estão sendo respeitadas, possui competência legal para fiscalizar o cumprimento das normas de proteção ao trabalho, podendo realizar visitas de fiscalização,
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TRAMONTINA COMPROU MADEIRA DE SERRARIA FLAGRADA COM TRABALHO ESCRAVO, Repórter Brasil, 2017. Disponível em: <http://www.reporterbrasil.org.br>. Acesso em: 11 maio 2018.
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criadas e implementadas na tentativa de combater e erradicar o trabalho escravo. O Ministério
firmar termos de compromisso para a regularização das condições de trabalho, lavrar autos de infração e aplicar multas (NEVES, 2012). O Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), criado pelo Ministério do Trabalho e Emprego, hoje constitui um dos principais instrumentos do Governo para reprimir o trabalho escravo. Este tem como objetivo o combate ao trabalho escravo e ao trabalho infantil e sua atuação é desenvolvida junto com o Ministério Público Federal, o Ministério Público do Trabalho e a Polícia Federal, obedecendo à instrução normativa nº 76/09, que dispõe sobre as ações fiscais de combate ao trabalho escravo, sua fiscalização incide no meio rural, verificando as posturas dos empregadores e notificando os mesmos em caso de descumprimento das normas trabalhistas, onde o empregador terá suas atividades paralisadas até que regularize os contratos de trabalho. Se, por acaso, os auditores fiscais, que compõem o Grupo Especial de Fiscalização Móvel, concluírem que existem indícios de crime, estes deverão encaminhar as provas e os autos de infração para o Ministério Público Federal, o Ministério Público do Trabalho, a Polícia Federal e para a Secretaria do Estado em que fora realizada a fiscalização e, por fim, para o Incra. Além disso, também deverá incluir o empregador na lista suja, assegurar o devido recebimento das verbas rescisórias e garantir o retorno dos trabalhadores às suas respectivas cidades natais. Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego, em 2017, foram realizadas 184 ações de fiscalização e combate ao trabalho análogo à escravidão no país, resultando no resgate de 407 trabalhadores submetidos a situações degradantes, o que continua sendo uma situação preocupante. O Pará apareceu em primeiro lugar no escalonamento de inspeções e de resgates por vários anos, caindo para segundo lugar em 2014 e permanecendo assim até 2016, quando teve 39 estabelecimentos inspecionados e 81 trabalhadores resgatados. O número de resgates vem caindo ano a ano, isso se deve também a queda no número escravo e assevera: “A crise no setor siderúrgico, a mecanização na pecuária e também a atração maior dos grandes projetos para a construção civil, podem explicar que ele tenha diminuído [...]”. Atuando em defesa dos interesses da coletividade e presente diretamente nas fiscalizações juntamente com o Grupo Especial de Fiscalização Móvel e a Polícia Federal, está o Ministério Público do Trabalho, que atua nas fiscalizações como testemunha das violações legais, de modo a coletar a maior quantidade de provas possíveis, podendo, então, abrir um inquérito civil, que pode ou não ensejar ação civil pública. O Ministério Público do Trabalho, 386
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de denúncias. Para Plassat, a queda nesses números não significa que não exista mais o trabalho
ainda por meio da Coordenadoria de Erradicação do Trabalho Escravo (CONAETE), busca integrar as procuradorias regionais do trabalho no âmbito nacional, fomentando a troca de experiências e participando no monitoramento dos planos de erradicação do trabalho escravo com vistas a atuar de maneira célere e eficaz no seu combate. Outra medida adotada para erradicação do trabalho escravo foi a criação, pelo Governo Federal, do I Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, em 2003. O plano atendia as determinações do Plano Nacional de Direitos Humanos e expressava uma política pública permanente que deveria ser fiscalizada por um órgão nacional dedicado a repressão do trabalho escravo e apresentava medidas que deveriam ser cumpridas pelos diversos órgãos dos poderes executivo, legislativo e judiciário, como o Ministério Público e demais entidades da sociedade civil brasileira (RODRIGUES, 2007). Ainda em 2003, foi criada a Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE), um órgão colegiado integrado por ministros de diversas pastas, incluindo o ministro do Ministério do Trabalho e Emprego, com objetivo principal de monitorar a execução do plano nacional. Em 2004, foi editada a Portaria nº 540/2004 do Ministério Público do Trabalho, que previa a inscrição e a divulgação dos nomes das empresas exploradoras de trabalho escravo em um cadastro público de empregadores conhecido como Lista Suja. Dada sua importância, o Brasil foi citado como referência mundial no combate à escravidão contemporânea no Relatório Uma Aliança Global contra o Trabalho Forçado, publicado pela Organização Internacional do Trabalho, em 2005. Após a lavratura do auto de infração e a decisão administrativa final, o nome do infrator é incluído na Lista Suja. O Ministério Público do Trabalho usa essa lista, de atualização semestral, para observar os infratores por um período de dois anos e, caso não haja reincidência, o nome é retirado do cadastro.
terem acesso às informações, rejeitem mercadorias ou serviços dessas pessoas ou empresas, inibindo a prática escravista em decorrência do prejuízo comercial. No entanto, apesar de sua extrema importância, o cadastro ficou sem atualização no período de 2014 a 2017, após um dos empregadores ter questionado a legalidade da lista no Supremo Tribunal Federal (STF). Para manter sua publicação, a União publicou uma nova portaria interministerial– a portaria MTPS/MMIRDH n° 4, de 11 de maio de 2016 –, com a reformulação dos critérios para inclusão e saída dos empregadores no cadastro. A lista voltou a ser atualizada em 2017 com a inclusão de 34 novos nomes. O estado do Pará figura na lista suja majoritariamente pelo cadastro de 387
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Para Pinto (2008), essa medida é eficaz porque possibilita que os consumidores, ao
pessoas e empresas. Na zona rural são 14 fazendas, uma carvoaria e uma madeireira, de acordo com os dados obtidos no portal do Ministério Público do Trabalho. Em 2008, foi criado o II Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo com atualizações e avanços, principalmente relacionados à impunidade de quem escraviza. Já em 2016, o Ministério Público do Trabalho foi a única entidade brasileira a participar do Workshop Estratégico Aliança 8.7, na Inglaterra, organizado pela Organização Internacional do Trabalho, pela Organização Internacional para Migrações (OIM), pela Universidade das Nações Unidas (UNU) e pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. O procurador e assessor internacional do Ministério Público do Trabalho, Thiago Gusmão, que esteve presente na oficina, relata que na ocasião foi possível apresentar sugestões de como apoiar o fortalecimento das instituições públicas e a cooperação técnica entre essas. Segundo o procurador, também foi possível apresentar informações sobre a lista suja e sua a utilização por instituições financeiras, além de apresentar informações sobre projetos de estudos de cadeia produtiva em parcerias do Ministério Público do Trabalho. Em 2017, o Ministério Público do Trabalho, junto com a Organização Internacional do Trabalho, lançou o Observatório Digital do Trabalho Escravo no Brasil. Esta foi mais uma medida criada em avanço na busca pela erradicação do trabalho escravo. O observatório consiste em um centro de estatísticas que permite a análise e a publicidade de dados e a transparência nos atos, de forma a potencializar o monitoramento e a prevenção do trabalho em condições análogas à escravidão. Com base nos dados do observatório, calcula-se que foram resgatadas, no Brasil, mais de 50.000 pessoas em condição de trabalho análogo ao de escravo desde 1995. De 2003 a 2017, foram 43.696 resgastes, o Pará se encontra em primeiro lugar em números de resgate, somando 9.918 resgates ao final de 979 operações realizadas. Ainda de acordo com o Observatório Digital do Trabalho Escravo no Brasil, e com
onde a prevalência de resgates é maior, os Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) estão entre os mais baixos do país. Com base nos dados do observatório digital, podemos observar, ainda, que os trabalhadores resgatados em sua maioria são homens, que se enquadram como pardos, mulatos, caboclos, cafuzos, mamelucos ou mestiços, com o ensino fundamental incompleto e com idade entre 18 e 24 anos. Apesar das grandes dificuldades e dos problemas que o Brasil enfrenta em relação à escravidão, o país tem sido apontado como pioneiro e mostra um enorme avanço com a divulgação da lista suja, é o que diz Andrew Forrest – presidente e fundador da Walk Free 388
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dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), observa-se que nos municípios
Foudation, organização mundial comprometida com a erradicação da escravidão moderna no mundo, contando com o apoio de ONGs, governos, empresas e líderes religiosos. De acordo com o Índice Global de Escravidão (The Global Slavery Index), apesar dos avanços, o governo brasileiro ainda possui práticas que podem facilitar a prática do trabalho em condições análogas à escravidão, foi o que evidenciou a Organização dos Estados Americanos (OEA) quando, em 2016, condenou o Brasil por não prevenir o trabalho escravo moderno, em decorrência do Caso da Fazenda Brasil Verde6 no Pará, onde 128 pessoas foram resgatadas entre os anos de 1997 a 2000. O Brasil foi o primeiro país a ser condenado nessa matéria. Para a corte, o poder judiciário é cúmplice da discriminação dos trabalhadores escravizados, e, nesse caso, ninguém foi responsabilizado criminalmente, nem os trabalhadores indenizados por dano moral coletivo, ou individual, por terem sido submetidos a jornadas exaustivas e condições degradantes de trabalho, ameaças, servidão por dívidas e cárcere privado.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através da análise deste artigo pode-se concluir que a grande incidência de trabalho escravo no Brasil, especialmente na zona rural do estado do Pará, se dá em decorrência de diversos fatores: em primeiro lugar, a desigualdade social e econômica dos trabalhadores, problema antigo e persistente que faz com que as pessoas busquem qualquer meio para sobreviver, tornando-se suscetíveis a trabalhos degradantes. Aliado a isso, tem-se a pouca, ou nenhuma, educação dessas pessoas, que desconhecem seus direitos e, em vista disso, em muitos casos, são reincidentes. Além da extrema pobreza e da falta de instrução, que facilita o aliciamento das vítimas do trabalho escravo, a impunidade também figura como um dos fatores determinantes para a alta incidência desse tipo de regime trabalhista. Constatou-se, ainda, que
Essa impunidade em muito se dá pelas dificuldades do próprio Governo, mais especificamente na zona rural, as fazendas que exploram o trabalho escravo se encontram em localidades de difícil acesso, o que impossibilita o resgate dos trabalhadores e também a obtenção de provas. Com base em todas essas informações, conclui-se que a erradicação do trabalho análogo à escravidão ainda está distante e que, mais do que erradicar, é necessário prevenir esse
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FAZENDA BRASIL VERDE: histórias de um País que não superou o trabalho escravo, Repórter Brasil, 2017. Disponível em: <http://www.reporterbrasil.org.br>. Acesso em: 11 maio 2018.
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os infratores não têm sido efetivamente punidos, existindo poucos casos de condenação penal.
crime. É necessário que se proporcione condições de vida digna e que se realize de forma ampla e eficaz a reforma agrária. As medidas protetivas precisam ser analisadas a fundo para que se possa coibir a captação dos trabalhadores e a reincidência dessa prática. No âmbito da atuação repressiva, é indispensável a intervenção do Direito Penal para que esses criminosos paguem, de maneira justa, pelos seus crimes. Além disso, se faz necessária uma integração maior entre as autoridades agrárias, fundiárias e ambientais no combate a essa realidade, que pode ser feita de forma presencial nas fiscalizações ou por meio de convênios com troca de informações. O que concluímos com ainda mais convicção e clareza é que, de maneira alguma, podemos aceitar que em pleno século XXI, marcado por tantos avanços, ainda vivamos no retrocesso, com desigualdades tão evidentes e com essa realidade que submete seres humanos a condições de emprego e de vida tão desumanos.
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Editora revista do advogado, 2012.
THE SLAVE WORK IN THE AGRARIAN ACTIVITY OF THE STATE OF PARร
ABSTRACT This study aims to analyze modern slave labor and how the state seeks forces to overcome the geographical and social challenges to eradicate slave labor. The method of approach was the deductive and as method of procedure the bibliographic exploratory and documentary research. It is concluded that there is still a high incidence of slave labor in Brazil, especially in the countryside of Parรก, due to social inequality, lack of education, agrarian issues and impunity. The public policies adopted are inefficient, so measures for social inclusion are necessary to prevent the grooming of workers.
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Keywords: Slave labor. Agricultural activity. Countryside. Parรก.
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OS PRINCÍPIOS CONTRATUAIS DA BOA-FÉ OBJETIVA E DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO PERANTE O CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO Cícero Filho Tavares1
RESUMO Apresenta uma pesquisa sobre os princípios contratuais da boa-fé objetiva e da função social do contrato perante o Código Civil brasileiro, evidenciando a importância desses. Teve como metodologia, uma pesquisa bibliográfica e de literatura. Observa-se que os princípios consagrados no Código Civil brasileiro são uma das maiores representações da teoria dos contratos modernos, transcendendo a barreira do individualismo, do minimalismo estatal e contemplando a superioridade do interesse público. É significativo não só o avanço entre os códigos civilistas brasileiros, mas também entre as teorias do Direito dos Contratos, esses princípios são cooperadores para tais avanços. Palavras-chave: Direito contratual. Princípios contratuais. Boa-fé
1
Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Mestre em Ciências da Educação pela Universidade Americana - PY. Bibliotecário do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN). Membro do Conselho Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência de Natal (COMUDE).
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objetiva. Função social do contrato.
1 INTRODUÇÃO
O objetivo deste artigo científico é apresentar ao leitor dois princípios fundamentais e modernos do Direito Contratual, constantes no Código Civil brasileiro de 2002, são eles: o princípio da boa-fé objetiva e o princípio da função social do contrato. Como advento de novas teorias e compreensões acerca dos contratos, surgiram novos princípios para compor a teoria moderna do Direito Contratual. E considerando que o Código Civil brasileiro de 2002 vem acompanhando as novas concepções do Contratualismo moderno, serão dois desses princípios da nova teoria os objetos de estudo a serem abordados neste trabalho Em função da amplitude desse ramo do Direito Civil, e considerando também a relevância dos princípios atualmente, escolheu-se trabalhar de maneira mais específica o princípio da boa-fé objetiva e o princípio da função social do contrato. Para isso, faz-se imperioso discernir o que seria um contrato. Sobre isso, o Código Civil brasileiro não trouxe nenhuma definição legal do conceito de contrato, mas, outros ordenamentos jurídicos estrangeiros se deram a tal trabalho e, com base neles é possível um delineamento. Contratos é a convergência de vontades entre duas ou mais partes, e são regidos por alguns princípios fundamentais. Entre esses, o princípio da boa-fé objetiva e da função social do contrato - princípios que receberam grande ênfase à luz do Código Civil de 2002, devido a modificação de conceitos a respeito da importância do interesse público e da exigência da razoabilidade do comportamento das partes nas relações. Neste sentido, o contrato é um negócio jurídico bilateral que tem como pressuposto a obediência à ordem jurídica, de modo que não a havendo, não é possível a criação de direitos entre os agentes. E, sendo essencialmente bilateral, imperioso haver o consentimento. Ademais, sendo ato negocial que é, tem por escopo também a criação dos direitos visados pelos agentes. A partir do entendimento do significado de contrato, passaremos à análise do princípio
esse princípio está na Constituição Federal de 1988, especificamente em seu art. 3º, I. Além disso, é a maior diretriz da eticidade, estabelecida pela comissão formuladora do Código Civil brasileiro de 2002, como veremos mais adiante. Por sua vez, o princípio da função social do contrato, esse que busca a superação do individualismo, marcante na codificação anterior. Por isto, a função social atende ao art. 5º, XXIII, da Constituição Federal. Além disso, é mais uma expressão da diretriz da socialidade, estabelecida pelo Código Civil brasileiro de 2002.
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da boa-fé objetiva e da busca da construção de uma sociedade solidária. A fundamentação para
2 BREVE INTRODUÇÃO AO DIREITO CONTRATUAL
Após a Revolução francesa, a burguesia, classe ascendente, focada na ideologia liberal, necessitava de um instrumento legal para resguardar seus interesses econômicos, especialmente no sentido da livre acumulação de riquezas. Assim, no século XIX, mais precisamente em 1804 o chamado Código Civil napoleônico resguardou a propriedade como principal instituto jurídico no âmbito privado. Esse papel central conferido ao direito de propriedade, aliado à perspectiva marcadamente individual e liberal, eram as características mais acentuadas do diploma francês, do qual se extrai o apego ao patrimonialismo, individualismo e liberalismo. Os particulares podiam manifestar livremente sua vontade a fim de alcançar a situação de proprietários, restando ao Estado uma mínima intervenção. Logo, os contratos, como instrumento de aquisição da propriedade, eram frutos da chamada autonomia da vontade. De modo que o contrato servia como instrumento de poder dado aos particulares para livremente criarem sua norma individual, restringindo, por conseguinte, a intervenção estatal. Ocorre que esse ambiente oitocentista de extrema liberdade acabou por gerar uma situação de opressão, pois aqueles que eram política ou economicamente mais fortes subjugavam os mais fracos. A pretensa igualdade oriunda da livre manifestação de vontade era apenas formal. Do ponto de vista material, havia uma grande desigualdade. Diante de tal problema, para garantir uma verdadeira isonomia (igualdade material ou substancial), os mais fracos passaram a exigir do Estado uma intervenção no ambiente privado, como forma de impor limites à atuação do contratante mais forte. O Estado, então, passou a realizar intervenções no âmbito contratual para que fosse alcançada a pretensa isonomia. O Estado seria ponto limiar e regulador dessa balança, a esta intervenção deu-se o nome de dirigismo contratual.
privilegiava a igualdade formal, fora construída com base em três princípios:(i) Princípio da liberdade contratual, no sentido de as partes poderem escolher se contratavam ou não, qual seria o conteúdo dessa contratação e quem seria seu parceiro; (ii) Princípio da força obrigatória, de modo que os contratos constituem uma lei entre as partes, nascendo para serem cumpridos, não havendo, assim, possibilidade de alteração unilateral do contrato, nem por determinação do Juiz, o que significa que a revisão contratual só ocorreria por novo acordo entre as partes contratantes; e (iii) Principio da relatividade dos efeitos contratuais, que significa que os contratos não podem atingir terceiros, tendo seus efeitos restritos aos contratantes. 395
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Tendo a autonomia da vontade como grande centro, àquela teoria contratual, que
Essa principiologia contratual nascida na Europa veio para o Brasil com a promulgação do Código Civil brasileiro de 1916 (um Código inspirado nos diplomas do velho mundo, tendo, portanto, as mesmas características do patrimonialismo, liberalismo e individualismo). Entretanto, da mesma forma como ocorreu em solo europeu, ao longo do século XX sentiu-se a necessidade de maior intervencionismo do Estado nos contratos. A sociedade urbanizada e de massa não enxergava mais o Código Civil brasileiro com o protagonismo de outrora. Iniciou-se, então, um progressivo processo de esvaziamento normativo daquele diploma, fenômeno que se fez conhecido como “descodificação”. Vários microssistemas paralelos foram surgindo, regulamentando-se temas que não continham previsão no Código Civil brasileiro de 1916. Nessa esteira, a criação de novas normas se deu graças à complexidade da sociedade que se descortinava àquela altura, levando em consideração que a principiologia clássica era insuficiente para o novo momento sociojurídico. 2.1 Novos princípios contratuais
Na perspectiva de um direito civil constitucionalizado, os institutos privados devem ser analisados com base nos princípios do solidarismo e da socialidade. Diante disso, entendese que o contrato possui tríplice função, e cada uma dessas funções associou-se à formulação de um novo princípio: (i) a função ética, caracterizada pela busca da construção de uma sociedade solidária, que é também a maior expressão da diretriz da eticidade, estabelecida pela comissão formuladora do Código Civil brasileiro de 2002, é justamente a função formuladora do princípio da boa-fé objetiva; (ii) a função social, referente a busca da superação do individualismo, marcante na codificação anterior, e atendendo à Constituição Federal de 1988, fora formulado o princípio da função social dos contratos; e, por fim, (iii) a função econômica, marcada pela busca da construção de uma sociedade justa, enaltecendo a função primordial do
equilíbrio econômico. O Novo Código Civil brasileiro preocupa-se com a superação daquele exacerbado liberalismo, individualismo e patrimonialismo de seu predecessor – Código Civil brasileiro de 1916. Dessa forma, os novos princípios contratuais, carregados com esse viés intervencionista, foram enquadrados como de ordem pública. Por isso que podem ser aplicados pelo juiz independentemente de provocação de qualquer parte. Porém, destaque-se que, ao aplicá-los, o magistrado não poderá desconfigurar a vontade das partes, pois se assim atuar haverá um esvaziamento do contrato como norma jurídica. 396
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contrato, como instrumento que permite a circulação de riquezas, que gerou o princípio do
Nesse sentido, caberá ao intérprete não apenas guiar-se pela vontade das partes, adaptando-lhe o teor do contrato, mas também, na medida em que a boa-fé estabelece um modelo de comportamento, ordenando-lhes que procedam de forma leal e honesta, dirigindo a sua compreensão, também, pela ideia de conduta escorreita dos contratantes”. (YOSHIZATO, 2002, p.52)
Há que se recordar ainda que os novos princípios contratuais foram inseridos no Código Civil brasileiro de 2002 por meio da técnica legislativa das cláusulas gerais. Através delas, o legislador, de forma proposital, estabelece uma norma com conteúdo aberto, com a finalidade de possibilitar ao magistrado, diante do caso concreto, aplicar os valores vigentes na sociedade no momento de exarar a sentença. Importante asseverar que, ao concretizar uma cláusula geral, o juiz buscará esses valores sociais na Constituição Federal de 1988, seja diretamente ou a partir de interpretação desta. Nessa linha de pensamento, o sistema com a presença de cláusulas gerais é um sistema aberto, poroso aos novos valores vigentes na sociedade. Para evitar uma possível insegurança jurídica ao se concretizar uma cláusula geral, o juiz deverá se utilizar de uma extensa e eficiente fundamentação. Esse ativismo judicial foi permitido pelo próprio legislador, e apesar de polêmico, é incentivado por muitos, justamente com a finalidade de intervir no caso concreto, equilibrando situações que careçam de atuação mais enérgica.
Ativismo judicial é uma expressão cunhada nos Estados Unidos e que foi empregada, sobretudo, como rótulo para qualificara atuação da Suprema Corte durante os anos em que foi presidida por Earl Warren, entre 1954 e 1969. Ao longo desse período, ocorreu uma revolução profunda e silenciosa em relação a inúmeras práticas políticas nos Estados Unidos, conduzida por uma jurisprudência progressista em matéria de direitos fundamentais (...)Todavia, depurada dessa crítica ideológica – até porque pode ser progressista ou conservadora – a ideia de ativismo judicial está associada a uma
constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. (BARROSO, 2010, p. 09)
Inclusive, pode-se afirmar que os novos princípios contratuais são verdadeiras cláusulas gerais, que irão demandar a atuação do magistrado para que possam apresentar seu verdadeiro conteúdo.
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participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins
3 PRINCÍPIO DA BOA FÉ OBJETIVA
Antes de avançarmos no estudo do princípio da boa-fé objetiva, é importante se mostrar a distinção em relação à boa-fé subjetiva, também denominada boa-fé regra, ou boa-fé psicológica. A boa-fé, até a entrada em vigência do Código Civil brasileiro de 2002, tinha caráter subjetivo e era previsto pelo direito das coisas, no que se refere à posse, às benfeitorias, à usucapião, e no direito de família, com relação, por exemplo, ao casamento putativo. (GABURRI, 2011 p. 59) Segundo Martins-Costa (2000) a expressão boa-fé subjetiva denota estado de consciência, ou convencimento individual de obrar em conformidade ao direito aplicável ao campo dos direitos reais. Diz-se subjetiva porque, para a sua aplicação, deve o intérprete considerar a intenção do sujeito da relação jurídica, o seu estado psicológico ou íntima convicção. Antitética à boa-fé subjetiva está a má-fé, também vista subjetivamente como a intenção de lesar a outrem. Ora, agir de boa-fé sempre foi considerado pela lei uma atitude digna de tratamento diferenciado. Ou seja, o indivíduo que age de boa-fé não deve ser reprimido pela lei e sim amparado por ela. Segundo Martins-Costa (2000) a boa-fé objetiva se quer significar modelo de conduta social, arquétipo ou standart jurídico, segundo o qual “cada pessoa deve ajustar a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, probidade”. Por este modelo objetivo de conduta levam-se em consideração os fatores concretos do caso, tais como o status pessoal e cultural dos envolvidos, não se admitindo uma aplicação mecânica do padrão jurídico. Por sua vez, a atuação conforme a boa-fé avulta a concepção objetiva da expressão boa-fé. Seria ela um princípio, um padrão de comportamento. A partir disso, as partes adotam
lealdade, a honestidade, a confiança que uma deposita no comportamento alheio. Quem não atua conforme a boa-fé não significa que atue com má-fé; mas, simplesmente age contrariamente ao preceituado pela boa-fé objetiva. A fim de melhor compreender a dimensão desse princípio, Stolze (2006) e doutrinadores como Flávio Tartuce, Carlos Roberto Gonçalves ressaltam quais seriam as funções desempenhadas pela boa-fé objetiva, à exemplo a função interpretativa ou hermenêutica e a função integrativa, supletiva ou criadora.
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um padrão de conduta dentro do qual serão respeitadas as expectativas da outra, tutelando-se a
Para Rosenvald (2005), as funções desempenhadas pela boa-fé, em suas acepções interpretativa e integrativa, têm lugar em momento subsequente à aferição da intenção comum consubstanciada na declaração de vontade das partes, como trás o art. 112 do Código Civil. De modo que, nas declarações de vontade, se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal propriamente. Dessa forma, após o intérprete chegar à conclusão de que lhe faltam elementos para definir, com clareza e isenção de dúvidas, qual ação deve adotar, deve ele recorrer à boa-fé como forma de preenchimento dessas lacunas de sentido ou de norma. Diante disso, é necessário analisar de forma pormenorizada a funções relacionadas ao princípio da boa-fé objetiva. A primeira dessas é a função interpretativa ou hermenêutica, consubstanciada no art. 113 do Código Civil brasileiro em vigor. Este que prevê que os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. Em sede de interpretação dos negócios jurídicos, o Código Civil brasileiro de 1916 adotava a teoria da vontade, no art. 85. Por meio desta teoria, o juiz deveria buscar na mente das partes quais eram suas reais intenções, afastando-se de uma interpretação puramente gramatical. Já no Código Civil brasileiro de 2002, numa tentativa de conceder maior segurança jurídica à interpretação do negócio jurídico, adotou-se a teoria da declaração no art. 112 do Código Civil brasileiro, onde se dispõe que nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem. Por meio a qual, o juiz verificará a intenção das partes a partir do que por elas foi declarado. Assim, a busca da real intenção será alcançada por intermédio da análise das declarações feitas (manifestação da diretriz da operabilidade ou concretude). Nessa linha, o juiz não necessitará ir à mente das partes, devendo, portanto, buscar a vontade contratual por meio das declarações realizadas.
O princípio da operabilidade, que tem dois significados. De início, há o sentido de
interpretação e a aplicação dos institutos nele previstos. Como exemplo, pode ser citada a distinção que agora consta em relação aos institutos da prescrição e da decadência, matéria que antes trazia grandes dúvidas pela lei anterior, que era demasiadamente confusa. Por outra via, há o sentido de efetividade, ou concretude do Direito Civil, o que foi seguido pela adoção do sistema de cláusulas gerais. (TARTUCE, 2017, p. 52)
Em sua função interpretativa, portanto, o princípio da boa-fé atuará como norma auxiliar à teoria da declaração, ou seja, quando o juiz entender que a interpretação de um 399
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simplicidade, uma vez que o Código Civil de 2002 segue tendência de facilitar a
negócio jurídico não será bem conduzida apenas a partir da análise das declarações emitidas, poderá verificar também quais eram as expectativas que uma parte depositava no comportamento da outra, para que assim possa alcançar uma interpretação que retrate a real intenção, preservando-se os interesses em jogo. Outra função relacionada ao princípio da boa-fé objetiva que se faz importante a análise é a função integrativa, supletiva ou criadora, prevista no art. 422 do Código Civil brasileiro. Consoante este, os contratantes são obrigados a guardar, na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. Antigamente, as obrigações eram denominadas simples, em virtude da necessidade de adimplemento apenas das prestações principais ajustadas a partir do acordo de vontades, que se resumiam à um dar, fazer e não fazer). Entretanto, no Código Civil brasileiro de 2002, as partes deverão cumprir, por força de lei, os chamados deveres anexos ou laterais (acessórios, instrumentais, paralelos ou deveres de conduta). Tais deveres são oriundos do princípio da boafé objetiva. Os deveres anexos podem ser subdivididos, segundo a doutrina em: (i) Dever de cooperação (colaboração ou lealdade) em que as partes devem colaborar para a consecução dos fins do contrato, buscando-se o atendimento do interesse demonstrado pela outra; (ii) Dever de proteção (segurança ou cuidado) em que as partes devem proteger o patrimônio e os direitos da personalidade de seu parceiro contratual; e (iii) Dever de informação (esclarecimento ou transparência ou aviso) em que tudo aquilo que puder influir na vontade da parte de contratar, especialmente em relação ao objeto da contratação, deve ser informado só parceiro contratual. Vale ressaltar que, levando em consideração o dever de cooperação, o contrato deverá ser uma relação de intensa parceria a fim de que seja obtido o sucesso, ou seja, a satisfação dos interesses (o êxito do negócio jurídico). Cooperar nesse sentido é fazer com que o contrato chegue ao seu final da maneira mais proveitosa ao credor e menos onerosa ao devedor. Exemplo
haver uma cláusula contratual impondo o dever de sigilo, este poderá ser exigido com base na boa-fé objetiva. Mesmo porque, se houvesse cláusula contratual nesse sentido, seria uma cláusula principal e não dever anexo. Outro exemplo é o dever de não correspondência após o término do contrato; e, ainda, a figura do recall de veículos, comum no mercado automotivo. No que confere ao dever de proteção, é essencial que haja proteção do patrimônio e dos direitos de personalidade da contraparte, isto é, acautelamento físico e patrimonial. Podemos citar como exemplo o furto de veículo em estabelecimento comercial; e também a necessidade de instruções para uso seguro de determinado produto ou serviço. 400
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disso, o dever de sigilo/cláusulas de confidencialidade, de modo que independentemente de
Por fim, no tocante ao dever de informação, que é justamente o esclarecimento, a transparência, o aviso. É dever singular, porque tudo aquilo que pode influir na vontade da arte contratar, especialmente em relação ao objeto da contratação, deve ser informado ao parceiro contratual. Nesse sentido, impõe-se ampliar o conhecimento acerca do objeto da avença. Sendo vedada a omissão de informações importantes quando da compra e venda de apartamento ou veículo, por exemplo. Ainda quanto aos deveres anexos, vale registrar que, em determinado caso concreto, o comportamento do contratante poderá violar um ou mais deveres ao mesmo tempo. Idealmente, os contratantes desde o início das negociações, devem se pautar com lealdade, proteção, e informação, a fim de o contrato corresponder exatamente ao pretendido pelas partes e não frustre suas reais expectativas. E ainda, o contrato deve fornecer a segurança esperada pelas partes mesmo após o seu término. Além disso, no inadimplemento, ao se descumprir um dever lateral haverá o desencadeamento de uma terceira via de responsabilidade contratual. Além do inadimplemento absoluto e da mora (previstos nos art. 389 do Código Civil brasileiro de 2002), tem-se agora a violação positiva do contrato (ou adimplemento ruim) como mais uma forma moderna de inadimplemento. Diante dessa nova figura de não cumprimento, a parte prejudicada poderá pedir a resolução do contrato cumulada com tutela ressarcitória, se for o caso, baseando-se esse pedido no art. 475 do Código Civil brasileiro de 2002. Sobre isso, veja-se o julgado:
Recurso especial. Civil. Indenização. Aplicação do princípio da boa-fé contratual. Deveres anexos ao contrato. – O princípio da boa-fé se aplica às relações contratuais regidas pelo CDC, impondo, por conseguinte, a obediência aos deveres anexos ao contrato, que são decorrência lógica deste princípio. – O dever anexo de cooperação pressupõe ações recíprocas de lealdade dentro da relação contratual. – A violação a qualquer dos deveres anexos implica em inadimplemento contratual de quem lhe
extrapatrimoniais somente é possível, em sede de Recurso Especial, nos casos em que o quantum determinado revelasse irrisório ou exagerado. Recursos não providos. (STJ, REsp 595.631/SC, 3.ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 08.06.2004, DJ 02.08.2004, p. 391).
Vale salientar que a extinção do contrato como gênero poderá ocorrer por meio de uma das seguintes espécies: (i) resolução (presente alguma modalidade de inadimplemento – art. 475), (ii) rescisão (presente algum vício sobre o objeto – art. 455) e (iii) resilição (quando a
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tenha dado causa. – A alteração dos valores arbitrados a título de reparação de danos
vontade for o fator de término do contrato). No caso da resilição, há que se distinguir se a vontade extintiva foi declarada de forma unilateral (recebendo o nome de denúncia – art. 473) ou bilateral (quando será denominada de distrato – art. 472, O distrato faz-se pela mesma forma exigida para o contrato). Todos os artigos dispostos no Código Civil brasileiro de 2002. Por último, trataremos da função controle/limitada (art. 187), que é a previsão de que também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Como visto, a boa-fé objetiva é um dos elementos de controle do exercício de direitos subjetivos. Assim, um sujeito, ao exercer um direito do qual é titular, deverá atuar dentro dos limites impostos por esse princípio, sob pena de praticar abuso de direito. Para facilitar a compreensão da boa-fé e sua missão de controle, a doutrina criou categorias de exercícios abusivos de direito por violação à boa-fé, como: (i) Adimplemento substancial ou inadimplemento mínimo ou substancial performance; (ii) Nemo potest venire contra factum proprium (a ninguém é dado vir contra os seus próprios atos); (iii) Supressio (restrição de conteúdo do contrato); (iv) Surrectio (surgimento de direitos); e (v) Tu quoque (vedação de direito adquiro ilicitamente). O adimplemento substancial ou inadimplemento mínimo ou substancial performance ocorre quando um contrato já tiver sido cumprido em sua maior parte, restando parcela mínima a ser adimplida (arts. 475 e 476, Código Civil brasileiro de 2002). Nessa esteira, a utilização de medidas como a resolução ou a exceção do contrato não cumprido devem ser inibidas como forma de preservação da boa-fé objetiva, evitando que a adoção dessas providências se configure como abusivas do direito do credor. Em situações como essa, o credor deverá adotar medidas menos drásticas para resguardar seu direito subjetivo, até mesmo como forma de preservação do contrato. Por sua vez, o nemo potest venire contra factum proprium (a ninguém é dado vir contra
próprios, que tem por finalidade reprimir a adoção de comportamentos contraditórios quando estes violarem a confiança depositada pela outra parte. Ressalte-se que a expectativa digna de tutela surge exatamente a partir do primeiro comportamento. Essa teoria ultrapassou o Direito Civil e pode hoje ser observada no Direito Processual Civil, no Direito Administrativo, no Direito Tributário, dentre outros ramos. O supressio (restrição de conteúdo do contrato) consiste na restrição do conteúdo do contrato, implicando a supressão de direito inicialmente existente, frente à inércia de uma das partes no tocante ao exercício dos direitos resultantes da avença. (GABURRI, 2011, p. 63). Para 402
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os seus próprios atos) se configura como uma teoria, também denominada teoria dos atos
aplicação da supressio, faz-se necessária a titularidade de um direito subjetivo qualquer, conjugada à omissão do titular prolongada no tempo. Ao se resolver por exercer esse direito, o titular acabará por quebrar a confiança da contraparte que acreditava na manutenção da situação de inércia. Através da alegação da supressio em defesa, a parte que viu suas expectativas se quebrarem pelo comportamento ativo daquele que estava inerte poderá conseguir o esvaziamento do direito subjetivo. O titular continua no gozo de sua situação jurídica, porém sem a possibilidade de exercer seu direito. A inércia continuada suprimiria a possibilidade de atuação, gerando como consequência a manutenção da confiança da outra parte. Em contrapartida, a surrectio prevê o surgimento de novo direito, ou seja, ocorre a ampliação de direitos de uma das partes, pois a inércia de um dos contratantes cria no outro a expectativa de titularização de direitos são pactuados previamente. (GABURRI, 2011, p. 63). É a outra face da moeda da supressio. Quando uma das partes adota um comportamento positivo reiterado, induzindo assim expectativas na outra, a interrupção abrupta daquela sequência poderia gerar a quebra da confiança alheia. Logo, a contraparte teria o direito, baseado na preservação das expectativas, de exigir a continuidade daquela relação, nos moldes perpetuados. Disso, a surrectio, ao contrário da supressio, não deveria ser aplicada como simples instrumento de defesa, mas verdadeiramente como pretensão à continuidade. Nasceria para a parte um direito subjetivo à continuação da situação vivenciada por longo período. Por fim, o tu quoque (vedação de direito adquiro ilicitamente) é a vedação através do direito de utilização de uma faculdade que foi obtida ilicitamente. Ou seja, aquele que infringiu uma norma jurídica não pode invocá-la em proveito próprio (GABURRI, 2011, p. 64). “Não faça aos outros aquilo que você não quer que os outros façam a você” e “você só poderá exigir seus direitos a partir do momento em que cumprir seus deveres. ” Essas seriam significações juridicamente adaptadas para tu quoque. Em síntese, se o titular deseja exercer um direito, deve igualmente respeitar as expectativas da outra parte. A maior manifestação desse dispositivo em
não cumprido.
4 FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS
Inicialmente, é mister, considerando a importância assumida pelo princípio da função social no sistema principiológico do Direito Contratual, tecer alguns apontamentos, inclusive
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nosso ordenamento estaria no art. 476, Código Civil brasileiro de 2002: exceção do contrato
no que diz respeito a sua previsão no art. 421 do Código Civil brasileiro, de modo que a liberdade de contratar seja exercida em razão e nos limites da função social do contrato. Não é por acaso que esse artigo, o primeiro previsto no título V, capítulo I, que tratam, respectivamente, dos contratos em geral e as disposições gerais destes. Isso porque fala-se aqui de um princípio do Direito dos Contratos, e considerando seremos princípios os fundamentos a partir dos quais tem-se a devida orientação de todo um complexo normativo que deve possuir uma estruturação sólida, coerente e sistemática (GABURRI, 2011). Por esta razão, dizer que o Direito é todo feito de princípios não se trata de um privilégio do ramo do Direito Civil, de modo que elencar a função social expressamente no primeiro artigo do título concernente aos contratos em geral, reflete não só o objetivo de se ter a função social como alicerce norteador desse ramo jurídico, como também a essencialidade dela para o ordenamento jurídico brasileiro, em específico ao Direito dos Contratos. A própria importância e relevância, para a sociedade e para o indivíduo, de um contrato revela, ou melhor, justifica a imprescindibilidade da função social dos contratos. Comprova-se isso de acordo com o que diz Caio Mário da Silva Pereira (2013, p.11):
Aquele que contrata projeta na avença algo de sua personalidade. O contratante tem a consciência do seu direito e do direito como concepção abstrata. Por isso, realiza dentro das suas relações privadas um pouco de ordem jurídica total. Como fonte criadora de direitos, o contrato assemelha-se à lei, embora no âmbito mais restrito. Os que contratam assumem por momento, toda a força jurígena social. Percebendo o poder obrigante do contrato, o contratante sente em si o impulso gerador da norma de comportamento social, e efetiva esse impulso.
Neste sentido, como revela o citado autor, contrato convencionado entre as partes tem o condão pertinente de criação de direitos, ou como alguns diriam, na criação de obrigações,
é um instituto poderoso do Direito Civil, por conseguinte, faz-se inevitável princípios como o da função social do contrato para que se tenha um contrato, respeitando os interesses sociais, superando, assim, os interesses individuais, sempre que possível. É válido destacar que esse princípio possui como intuito a imposição de certos limites, conflitando com outro princípio do Direito Contratual que é o princípio da autonomia privada. Para explicar melhor o que se quer dizer com essa imposição de limites, cabe trazer o que diz Fernando Gaburri (2011, p. 56):
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assemelhando-se, portanto, à lei. Mesmo que seja em âmbito menor, é inegável que o contrato
Pela função social do contrato enfraquece-se o individualismo, de modo a implicar limites ao princípio da autonomia privada, o qual, sob o rótulo de autonomia da vontade, contava com uma maior dimensão e importância no CC/16.
É por essa razão que boa parte dos doutrinadores consideram que esse princípio possui uma eficácia externa, e de fato, apesar de algumas discordâncias, é o que se verifica. Segundo o que expõe Guilherme Calmon Nogueira da Gama (2008), por força da função social dos contratos, os interesses individuais de cada contratante devem estar em conformidade com os interesses da coletividade, isto é, sociais, sempre que estes forem verificados. Não poderá, então, os interesses individuais, mesmo que fundamentados na autonomia privada, ultrapassar a barreira da coletividade e ferir o interesse da sociedade. A função social do contrato mostrase como a consagração, o reflexo, do princípio da sociabilidade, que é norteador do próprio texto do atual Código Civil brasileiro. A ideia segundo a qual a função social do contrato se apresenta como limitadora, controladora, do princípio da autonomia da vontade, é também abordada por Maria Helena Diniz (2004, p. 33), segundo a autora:
Ante o disposto no art. 421, repelido está o individualismo, nítida é, como diz Francisco Amaral, a função institucional do contrato, visto que limitada está a autonomia da vontade pela intervenção estatal, ante a função econômico-social daquele ato negocial, que o condiciona ao atendimento do bem comum e dos fins sociais. Amputa-se, assim, os excessos do individualismo e da autonomia da vontade.
Nesse sentido, a professora citada apresenta aspectos cruciais delineadores da função social dos contratos, são eles: o contrato sempre deve conter alguma utilidade social, de modo que os interesses dos contratantes se amoldem, ou não colidam, com os interesses da
os interesses da ordem pública; e a função social do contrato inevitavelmente implicará em limites à autonomia privada, fazendo com que a liberdade contratual observe valores resguardados na Constituição Federal de 1988, como o da solidariedade, justiça social, livreiniciativa e dignidade da pessoa humana. Em conclusão, Diniz (2004) explica relação intrínseca entre esses dois princípios basilares do Direito Civil brasileiro:
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coletividade; o convencionado entre as partes não poderá subsistir diante de contrariedade com
Logo, a função social do contrato, dirigida à satisfação de interesses sociais, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o seu alcance, quando estiverem presentes interesses meta-individuais ou interesse individual coletivo relativo à dignidade da pessoa humana […]. A autonomia privada como autoregulamentação de interesses só se justificaria se o contrato corresponder a uma função considerada socialmente útil pelo ordenamento.
É imperioso ressaltar que, como diz Maria Helena Diniz, o princípio aqui estudado não vem para eliminar, ou invalidar, a autonomia contratual, tanto que, Caio Mário da Silva Pereira (2013, p.12) corrobora também com o que fora exposto ao fazer a interpretação do art. 421 do Código Civil brasileiro. Segundo ele, o referido artigo deve ser entendido de forma a manter a liberdade de contratar praticada em razão da própria autonomia da vontade das pessoas, outorgada pela lei, de modo que as pessoas ainda contratem e interajam com a finalidade de satisfazerem seus interesses. A função social, portanto, vem servir “para limitar a autonomia da vontade quando tal autonomia esteja em confronto com o interesse social e este deva prevalecer, ainda que essa limitação possa atingir a própria liberdade de não contratar, como ocorre nas hipóteses de contrato obrigatório” (GONÇALVES, 2006, p. 5). Desse entendimento pode-se aferir que o princípio da função social, nos termos de seu objetivo, pode incrivelmente conduzir uma pessoa a contratar mesmo que seja contra a sua vontade, ou seja, que ela estabeleça contratos que lhes sejam obrigatórios, como, a exemplo, o seguro de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres (DPVAT) e o Imposto sobre Propriedade de Veículo Automotores (IPVA). Mas não apenas isso, é possível também o efeito contrário, isto é, por força do mesmo princípio pode-se impelir uma pessoa a não contratar, quando justamente os fins do contrato visem prejudicar a terceiros. Talvez uma das relações mais relevantes do princípio da função social do contrato com
Caio Mário da Silva Pereira (2013), como o contrato obriga os contratantes, não é lícito a estes que se arrependam do convencionado, ou o revoguem (a não ser que haja consentimento de todas as partes), também não é permitido ao juiz alterar o contrato mesmo que pela justificativa de benefício para os contratantes (ressalvadas algumas excepcionalidades); sendo assim, há a possibilidade de contratar e a liberdade de convencionar os termos e cláusulas dos contratos, conforme os interesses. No entanto, após concretizado o contrato, são estas as consequências – impossibilidade de alteração.
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os princípios clássicos do contrato seja com o princípio da obrigatoriedade. Segundo explica
Nesse sentido, pelo princípio da obrigatoriedade, a palavra individual proferida encerra uma criação tão forte, tão profunda, tão imperiosa, que não deve haver retratação e nem mesmo o Estado (a não ser excepcionalmente) pode intervir visando alteração dos efeitos do contrato. E como o princípio da obrigatoriedade se relaciona, ou melhor, decorre do princípio da função social do contrato? Segundo a ideia utilitarista de Jeremy Bentham, a fundamentação da obrigatoriedade está na conveniência de cada um, pois pelo respeito ao interesse de terceiros tem-se a proteção dos próprios direitos dos contratantes (PEREIRA, 2013). Dessa maneira, se a liberdade de contratar, no momento da criação de um contrato, é exercida em razão e nos limites da função social do contrato, sendo então um contrato válido. Após ter sido firmado e consolidado, em momento algum poderá haver retratação do que fora convencionado, de modo que o interesse social permanece resguardado e o interesse dos particulares sejam devidamente atendidos, da maneira que pactuados, sem apetites egoístas em conflito e/ou prejuízo ao bem-estar social. Se assim se proceder, isto se deve aos princípios da função social e da obrigatoriedade. Finalmente, é possível concluir clara e objetivamente o princípio da função social do contrato, de modo que, este princípio, na acepção moderna, trazida pelo Código Civil brasileiro de 2002, desafia a concepção clássica segundo a qual os contratantes podem fazer de tudo, já que se encontram no exercício pleno e absoluto da autonomia da vontade. Pois, o contrato se insere na vida social, sendo instrumento de influência na vida das pessoas, e se busca o controle e limitação da liberdade de contratar, limitação essa que encontra solução na função social do contrato. Em nome desse princípio moderno, pertencente ao Direito Contratual brasileiro, podese evitar cláusulas injustas que prejudiquem terceiros, ou impedir a contratação de um bem em função do interesse maior da coletividade. De maneira mais específica, é em respeito a este princípio que o Código Civil brasileiro consagra a rescisão do contrato lesivo; anula o que fora
onerosidade excessiva; disciplina a redução de cláusula penal excessiva e também admite a ampliação dos efeitos do contrato a terceiros que dele não tomaram parte (PEREIRA, 2013). Muito além de desafiar, esse princípio não busca ser um empecilho, uma vez que não extingue o princípio da autonomia da vontade, muito pelo contrário, ele vem para somar, inclusive com outros princípios clássicos do Direito dos Contratos (como o da obrigatoriedade). Como comprovação e conclusão deste tópico, veja-se o que diz Caio Mário da Silva Pereira (2013, p. 13):
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celebrado em estado de perigo; combate o enriquecimento sem causa; permite a resolução por
A função social do contrato é um princípio moderno que vem a se agregar aos princípios clássicos do contrato, que são os da autonomia da vontade, da força obrigatória, da intangibilidade do seu conteúdo e da relatividade dos seus efeitos. Como princípio novo ele não se limita a se justapor aos demais, antes pelo contrário vem desafiá-los e em certas situações impedir que prevaleçam, diante do interesse social maior.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A princípio fora apresentada uma rápida retomada na história que trouxe ao leitor o contexto histórico no qual o Direito Contratual esteve inserido. Por meio dessa volta à Europa do século XIX, pôde-se perceber que os contratos, como instrumento de aquisição da propriedade, eram frutos da chamada autonomia da vontade, que refletia diretamente na liberdade de contratar, que era então absoluta, e o Estado era mínimo, pouco intervia. Até o momento em que, pela intensa desigualdade social denunciada pelas classes menos favorecidas, o Estado, então, passou a realizar intervenções no âmbito contratual para que fosse alcançada a sonhada isonomia. A esta intervenção do Estado deu-se o nome de dirigismo contratual, fazendo surgir assim os primeiros princípios contratuais: o princípio da liberdade contratual, o princípio da força obrigatória dos contratos/obrigatoriedade dos contratos e o princípio da relatividade dos efeitos contratuais. No âmbito brasileiro, os princípios clássicos nascidos na Europa vieram para o Brasil com a promulgação do Código Civil brasileiro de 1916, com atraso, no século XX, possuindo as mesmas características contratuais clássicas do âmbito europeu. Inevitavelmente, da mesma forma como ocorreu em solo europeu, ao longo do século XX, no Brasil, sentiu-se a necessidade
esvaziamento normativo daquele diploma, fenômeno que se fez conhecido por descodificação. Visto que, a principiologia clássica era insuficiente para o novo momento sociojurídico. Infelizmente, o legislador brasileiro não teve a sagacidade de perceber que aqueles ordenamentos europeus que a criação do Código Civil brasileiro de 1916 tomou por base, já estavam sendo questionados no continente europeu, e que o Estado com maior intervenção, regulando as relações contratuais, era a tendência crescente em busca de equilíbrio nas relações particulares. Porém, ao invés disso, optou-se pela criação de um Código que não demorou para se ver ultrapassado. 408
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de maior intervencionismo do Estado nos contratos. Iniciou-se, então, um processo de
No entanto, pode-se dizer que o legislador aparentemente se reparou, adotou as novas concepções contratuais, inseriu no ordenamento jurídico brasileiro as ideias modernas do Direito Contratual, juntamente com seus princípios, e isso é revelado pelo Código Civil brasileiro de 2002. Uma vez que o legislador trouxe os mais novos princípios contratuais, originários do entendimento moderno que se tem dos contratos e suas três funções – ética, social e econômica –, reflexo disso, respectivamente: o princípio da boa-fé objetiva e o princípio da função social dos contratos. Ora, agir de boa-fé sempre foi considerado pela lei uma atitude digna de tratamento diferenciado, e pelo princípio da boa-fé as partes adotam um padrão de conduta dentro do qual serão respeitadas as expectativas da outra, tutelando-se a lealdade, a honestidade, a confiança que uma deposita no comportamento alheio. Este princípio, portanto, estimula um dos sujeitos a ver o outro indivíduo com o qual está realizando um contrato não apenas como meio de satisfação de seus interesses, mas através da percepção de que o outro contratante também possui interesses e suas expectativas de satisfação também devem ser respeitas, para o pleno sucesso do contrato. Tanto é que esse princípio está difundido, como visto, na própria hermenêutica jurídica, desta feita, os negócios jurídicos são interpretados pela boa-fé objetiva.Além disso, os contratantes são obrigados a observar, tanto na conclusão do contrato, quanto em sua execução, o princípio da boa-fé, posto que não se trata de um momento pontual, para logo então seja esquecido. É certo que a boa-fé deve ser mantida e obedecida também na execução do contrato, o que implica nos deveres de cooperação, proteção e informação. Ademais, a boa-fé abrange a função de princípio limitador ou controlador, no sentido de que, quem ultrapassa os limites da boa-fé comete abuso de direito. Para finalizar, em relação ao princípio da função social do contrato, este princípio talvez seja o mais confrontador das teorias contratualistas clássicas, posto que desafia a autonomia da vontade, e impõe limites, chocando com a ideia de absoluta liberdade de
sociedade, seu contrato possui relevância social digna de observância por parte do Estado. Nesse sentido, haja vista ser patente o interesse social, e também de sua superioridade frente ao interesse dos particulares, de modo que diante de choque entre os interesses particulares e coletivos, estes devem prevalecer diante daqueles. Isto significa, se a boa-fé objetiva faz com que o sujeito respeite as expectativas da outra parte, a função social do contrato faz com que os contratantes respeitem o interesse social. Mas é importante relembrar que o princípio da boa-fé não veio para extinguir o princípio clássico da autonomia da vontade, ao contrário, em sua função limitadora, ele agrega 409
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contratar. Nessa perspectiva, lembrando às partes de que enquanto contratantes, e inseridos na
a este, ambos somam, portanto, esforços, tendo em vista a importância do exercício da liberdade do sujeito, sem que esta atividade fira a liberdade de um terceiro. É válido lembrar também que este princípio é tão expressivo que, pelo bem-estar social, um sujeito pode ser obrigado a contratar, como também a não contratar. Talvez esses princípios consagrados no Código Civil brasileiro sejam uma das maiores representações da teoria dos contratos moderna, transcendendo a barreira do individualismo, do minimalismo estatal e contemplando a superioridade do interesse público. É muito significativo não só o avanço entre os códigos civilistas brasileiros, como entre as teorias clássica e moderna do Direito dos Contratos, e acreditamos que os princípios da boa-fé objetiva e o da função social do contrato são dois gigantes cooperadores para tais avanços.
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THE CONTRACTING PRINCIPLES OF THE OBJECTIVE GOODWILL AND THE SOCIAL FUNCTION OF THE CONTRACT BEFORE THE BRAZILIAN CIVIL CODE
ABSTRACT It presents a research on the contractual principles of objective good faith and the social function of the contract before the Brazilian Civil Code, evidencing the importance of these. It had methodology, bibliographical research and literature. It is observed that the principles enshrined in the Brazilian Civil Code are one of the greatest
of individualism, state minimalism and contemplating the superiority of the public interest. It is significant not only the advance between the Brazilian civilian codes, but also between the theories of Contract Law, these principles are cooperative for such advances. Keywords: Contract law. Contractual principles. Objective good faith. Social function of the contract.
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representations of modern contractual theory, transcending the barrier
OS REMÉDIOS CONSTITUCIONAIS E SUA IMPORTÂNCIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Rossini Gustavo Medeiros Felipe de Lima1
RESUMO O estudo aborda os remédios constitucionais e suas formas de garantias fundamentais asseguradas pelo legislador constituinte originário. Objetiva mostrar a importância desses remédios no ordenamento jurídico brasileiro. Para isso, foi realizada pesquisa bibliográfica de método positivismo jurídico e teórico tendo parâmetro doutrinário, jurisprudencial, legislação constitucional e infraconstitucional. Por fim, verifica-se na Constituição Federal de 1988 e em legislação ordinária, a possibilidade de impetração correta, com propósito de êxito e eficácia, em juízo ou vias administrativas. Possibilitando aos indivíduos e cidadãos o exercício de seu direito assegurado. Palavras-chave:
Remédios
constitucionais.
Natureza
jurídica.
1
Pós-graduando em Direito Administrativo pela UFRN, Pós-graduando em Direito e Processo do Trabalho pela Faculdade IBMEC São Paulo e Instituto Damásio de Direito, Advogado OAB/RN 16984.
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Legislações.
1 INTRODUÇÃO
As espécies de remédios constitucionais de forma ampla, aponta diretamente sua fundamentação legal na Constituição Federal de 1988, o intuito de considerar que tais espécies são garantias fundamentais asseguradas pelo legislador constituinte originário. A natureza jurídica dos remédios constitucionais existentes no ordenamento jurídico pátrio está, de forma específica apontando a essência de cada um desses remédios trazendo suas origens históricas em Constituições anteriores. Algumas das espécies de remédios constitucionais além de possuir fundamentação legal na Constituição Federal de 1988, possui embasamento próprio na legislação infraconstitucional existindo inclusive dentre essas legislações, uma anterior a essa vigente, mas recepcionada por ela, estando assim de acordo com a atual, isto é, em vigor. No enfoque de movimentar o poder judiciário e ter eficácia no que se pleiteia referente às diversas espécies de remédios constitucionais, é necessário saber a via adequada para impetrar cada tipo de espécie, nesse ponto deve-se apresentar o caminho que se deve utilizar, podendo ser em alguns casos por meio administrativo ou judicial, ainda que para algumas dessas espécies ser necessário obter primeiramente a negativa administrativa para que em seguida se possa obter êxito na via judicial. Considerando a temática, a pesquisa apresentada tem o propósito de verificar os remédios constitucionais e sua importância no ordenamento jurídico brasileiro. Para consecução da pesquisa foi utilizada uma metodologia com abordagem qualitativa, através de estudo bibliográfico e método positivismo jurídico e teórico trazendo como análise a doutrina, a jurisprudência e a legislação constitucional e infraconstitucional
2 AS ESPÉCIES DE REMÉDIOS CONSTITUCIONAIS
Os remédios constitucionais asseguram uma importância legal no ordenamento jurídico brasileiro, pois garantem em alguns casos após sua impetração, o exercício de mover o poder judiciário, a fim de se fazer cessar a imparcialidade do Estado no intuito de obter o direito ou até mesmo assegurá-lo. Os remédios constitucionais são garantias fundamentais asseguradas aos indivíduos e ao cidadão pelo legislador constituinte originário no texto da Constituição Federal de 1988, 413
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correlata.
com a finalidade de asseverar condições mínimas para conviver em sociedade, impondo as pessoas e ao Estado limites que está primordialmente estabelecido nesta Constituição vigente. Na Constituição Federal de 1988 do Brasil estão expressas as seguintes espécies de remédios constitucionais: a) Direito de petição e obtenção de certidão previsto no art. 5º, inc. XXXIV; b) Habeas corpus previsto no art. 5º, inc. LXVIII; c) Mandado de segurança previsto no art. 5º, inc. LXIX; d) Mandado de segurança coletivo previsto no art. 5º, inc. LXX; e) Mandado de injunção previsto no art. 5º, inc. LXXI; f) Habeas data previsto no art. 5º, inc. LXXII; g) Ação popular previsto no art. 5º, inc. LXXIII. Sendo assim, é importante se expor as espécies de remédios constitucionais presente no texto Constitucional, uma vez que essas concentram-se previstas no art. 5º, que versa sobre os direitos e as garantias constitucionais, asseguradas pelo legislador constituinte originário como uma das cláusulas pétreas expressas na Constituição Federal de 1988, estabelecendo assim, a inadmissibilidade da redução de direitos, permitindo a sua amplitude sob pena de configurar na vedação ao retrocesso.
3 A NATUREZA JURÍDICA DOS REMÉDIOS CONSTITUCIONAIS EXISTENTE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Os remédios constitucionais possuem relevância no ordenamento jurídico pátrio. Como são várias suas espécies, é fundamental apresentar a natureza jurídica especifica de cada
Assegura Jose Afonso da Silva que o Direito de petição tem sua origem remota. Nasceu na Inglaterra durante a idade média que resultou das revoluções inglesas de 1628, especialmente, mas já se havia insinuado na própria magna carta de 1215. Consolidou-se com a revolução de 1689 com a declaração dos direitos (bill of rights). Consistindo no simples direito de o Grande Conselho, e depois de o Parlamento, pedir ao rei que sancionasse leis (SILVA, 2014, p.445).
O direito de petição tem natureza meramente informativa, assegurando ao indivíduo uma participação de maneira indireta na fiscalização da coisa pública, pois o direito em apreço 414
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uma.
consiste na defesa de direitos em situações que se apresenta ilegalidade ou abusividade por parte do poder público. É o único dos remédios constitucionais, o direito de petição, previsto desde a Constituição do Império de 1824 até a Constituição Federal de 1988 no ordenamento jurídico brasileiro (BRASIL, 1824). O habeas corpus vem assegurado desde a Constituição de 1891, ou seja, só não foi reconhecido na Constituição do Império de 1824 (BRASIL, 1891).
A origem do habeas corpus está na Magna Charta Libertatum, outorgada na Inglaterra, nos campos de Runnymed, em 1215, pelo Rei João, filho de Henrique II, sucessor de Ricardo Coração de Leão, que se tornaria, mais tarde, o legendário João Sem Terra. Foi no Capítulo XXIX dessa Magna Charta Libertatum que se calcaram, através das idades, as demais conquistas do povo inglês para a garantia prática, imediata e utilitária da liberdade física (BULOS, 2014, citado por Pontes de Miranda, 1962, p. 9).
O habeas corpus tem como significado marcante o propósito de tomar o corpo e submeter o paciente ao juiz para que examine a coação e o liberte se for o caso, nesse mesmo entendimento a Constituição Federal de 1988 estabelece que seja concedido o habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. O habeas corpus se divide em duas espécies podendo ser preventivo, visando evitar uma violação à liberdade do paciente, devendo nesse caso o magistrado expedir um salvo conduto, impedindo a prisão pelo motivo alegado. A outra espécie é o repressivo, que tem o propósito de fazer cessar o direito tolhido pelo estado de ir e vir do paciente, devendo para essa espécie o juiz expedir alvará de soltura, caso o paciente esteja preso ou um contramandado se
O mandado de segurança é de criação brasileira presente desde da Constituição Federal de 1934, com exceção da Constituição Federal de 1937, é um meio jurídico a ser utilizado de forma subsidiária, devendo ser impetrado quando não couber habeas corpus ou habeas data (BRASIL, 1934; BRASIL, 1937). É, também, um remédio constitucional que visa proteger um direito líquido e certo, admitindo assim uma prova pré-constituída, ou seja, não há de se produzir provas para assegurar o direito, o mandado de segurança deve ser impetrado com a prova já concreta, de forma a garantir uma certa segurança jurídica, estabelecendo com isso o direito líquido e certo. 415
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por ventura estiver expedido algum mandado de prisão contra o paciente.
Pela própria definição constitucional, o mandado de segurança tem utilização ampla, abrangente de todo e qualquer direito subjetivo público sem proteção especifica, desde que se logre caracterizar a liquidez e certeza do direito, materializada na inquestionabilidade de sua existência, na precisa definição de sua extensão e aptidão para o exercício no momento da impetração (MENDES; BRANCO, 2015, p 441).
A Constituição Federal de 1988 assegura duas hipóteses para se impetrar o mandado de segurança, podendo ser individual ou coletivo, sendo o coletivo expresso apenas no texto dessa lei, garantindo o direito de impetrar o tipo coletivo por partido político com representação no congresso nacional ou organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados. O legislador constituinte originário ao prevê no texto da Constituição Federal de 1988 o habeas data, obteve como fonte de inspiração a Carta Portuguesa de 1976.
O habeas data possui natureza jurídica mista ou ambivalente. Ao mesmo tempo que apresenta a face de uma autêntica ação mandamental (concede ao impetrante o direito líquido e certo de obter informações), logra a índole constitutiva (possibilita a retificação de dados). Em decorrência da sua natureza jurídica, o habeas data qualifica-se como ação constitucional, de conteúdo cível destinada a defender: (i) o direito de obter informações relativas ao impetrante, inseridas em repartições públicas ou privadas; (ii) o direito de reconhecer os responsáveis pelos registros armazenados; (iii) o direito de contestar dados inverídicos e eliminá-los, tomando as providências judiciais cabíveis; e (iv) o direito de atualizar os dados ultrapassados (BULOS, 2014, p. 794).
Trata-se de ação de caráter civil colocada à disposição de pessoas físicas ou jurídicas,
constantes de registros ou bancos de dados governamentais ou de caráter público, sendo assim então uma ação de caráter personalíssimo. No tocante ao mandado de injunção, possui seus antecedentes da Inglaterra no século XIV, assegurando o juízo de equidade em casos de inexistência de norma legal para regulamentar o direito. Assim como o habeas data, o mandado de injunção também foi uma criação da Constituição Federal de 1988, assegurando que esse último possui natureza jurídica de uma ação civil, de caráter fundamentalmente mandamental tendo como fulcro, procedimento
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para que tenham acesso, retifiquem ou façam anotações nas informações relativas à sua pessoa
específico destinado a combater omissões do legislador constituinte derivado de reforma em face do texto constitucional frente aos direitos assegurados. Sendo assim, o mandado de injunção tem por escopo assegurar o exercício de um direito em face de uma não regulamentação de um direito previsto na Constituição Federal ou na Constituição Estadual, não regulamentado pelo poder legislativo competente, “Além dos processos e sistemas destinados à defesa de posições individuais, a proteção judiciária pode realizar-se também pela utilização de instrumentos de defesa de interesse geral, com a ação popular e a ação civil pública” (MENDES, 2015, p. 451). A ação popular advém de uma ligação histórica do direito romano protegendo o direito do próprio povo. Essa esteve prevista na Constituição do Império de 1824 como instrumento de ação penal popular, pois não constituía um instituto de participação política, não sendo recepcionada pela Constituição de 1891, aparecendo mais uma vez então na Constituição de 1934, na Constituição de 1937, na Constituição de 1967 e na Constituição Federal de 1988. Diferente de algumas espécies de remédios constitucionais, a ação popular assegura somente ao cidadão a faculdade de utilizá-la frente ao poder judiciário, como um meio de anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural. Nesse propósito, a ação popular é um instrumento de participação política que reflete na soberania popular, que certifica o cidadão como parte legitima a litigar conforme prevê os parâmetros que a Constituição Federal de 1988 estabelece.
4 A LEGISLAÇÃO CONSTITUCIONAL E INFRACONSTITUCIONAL QUE VERSA SOBRE AS ESPÉCIES DE REMÉDIOS CONSTITUCIONAIS
Ulysses Guimarães como Presidente da Assembleia Nacional Constituinte realizando o seu discurso no Congresso Nacional, afirmou que a constituição certamente não é perfeita. Esse autor afirmou que não se pode afrontar e também não se pode descumprir a constituição, pois fazendo isso, considera-se o indivíduo como traidor da pátria, sendo permitido a reforma com relação aos aspectos de divergências e discordâncias. Observe que o legislador constituinte derivado de reforma é o principal e único competente para alterar o texto constitucional, além disso é atribuído ainda a competência para
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Ao promulgar a Constituição Federal de 1988, na tarde de 05 de outubro de 1988,
discutir e aprovar a legislação infraconstitucional, tendo sempre como parâmetro o texto Constitucional. Nessa conjuntura, a Constituição Federal de 1988 assegura que os direitos e garantias individuais são estabelecidos como cláusulas pétreas, não admitindo assim a supressão de direitos em hipótese alguma.
A Constituição inclui entre as garantias individuais o direito de petição, o habeas corpus, o mandado de segurança, o mandado de injunção, o habeas data, a ação popular, aos quais se vem dando, na doutrina e na jurisprudência, o nome de remédios de Direito Constitucional, ou remédios constitucionais, no sentido de meios postos à disposição dos indivíduos e cidadãos para provocar a intervenção das autoridades competentes, visando sanar, corrigir, ilegalidade e abuso de poder em prejuízo de direitos e interesses individuais. Alguns desses remédios revelam-se meios de provocar a atividade jurisdicional, e, então, têm natureza de ação: são ações constitucionais (SILVA, 2014, p. 445).
As espécies de remédios constitucionais, estão expressamente previstas no art. 5º da Constituição Federal de 1988, que assegura que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: a) Direito de petição e obtenção de certidão previsto no art. 5º, inc. XXXIV;
XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder; b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e
É um direito posto à disposição de todos, com a finalidade específica de obter dos poderes públicos o cumprimento dos princípios da legalidade, moralidade e da eficiência, devendo ter como parâmetro a lei para seus atos vinculados e a conveniência e oportunidade para seus atos discricionários, precisando com isso pautar no cumprimento dos preceitos éticos da administração pública, prestando um serviço de qualidade a sociedade, garantindo assim a eficiência da atividade pública quando informado ou não sobre a ilegalidade ou abuso do poder, pois “O direito de petição qualifica-se como prerrogativa de extração constitucional, Direito 418
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esclarecimento de situações de interesse pessoal.
Público subjetivo de índole essencialmente democrática, assegurado à generalidade das pessoas pela Carta Política” (BULOS, 2014, p. 733). b) Habeas corpus previsto no art. 5º, inc. LXVIII;
LXVIII - conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.
A Constituição Federal de 1988, considerada como cidadã, tem como um dos objetivos primordiais estabelecer a liberdade de ir e vir, instituindo parâmetros legais que vise tolher esse direito, estipulando hipóteses que deve restringir a locomoção do indivíduo para assegurar a segurança da sociedade e determinar o cumprimento da legalidade, “O habeas corpus é o remédio a ser utilizado contra ilegalidade ou abuso de poder no tocante ao direito de locomoção, que alberga o direito de ir, vir e permanecer do indivíduo” (PAULO; ALEXANDRINO, 2017. p. 201). c) Mandado de segurança previsto no art. 5º, inc. LXIX;
LXIX - conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público. O Direito líquido e certo é aquele que se prova, documentalmente, logo na petição inicial. Uma pesquisa na jurisprudência do STF mostra que a terminologia está ligada à prova pré-constituída, a fatos documentalmente provados na exordial. Não importa se a questão jurídica é difícil, complexa ou intrincada (BULOS, 2014, p. 757).
O mandado de segurança previsto no art.5º, inc. LXIX da Constituição Federal de
judiciário, ou seja, independe de legitimidade ativa para impetra a ação na via judicial. d) Mandado de segurança coletivo previsto no art. 5º, inc. LXX;
LXX - o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por: a) partido político com representação no Congresso Nacional; b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados.
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1988, poderá ser impetrado por qualquer cidadão com a finalidade de manifestar o poder
Saindo um pouco da premissa da pessoalidade das ações ou das ações personalíssimas, onde se próspera a vontade da pessoa e do autor para dirimir o litígio no âmbito do judiciário, o mandado de segurança coletivo, protesta sobre a legitimidade de litigar, através de seus representantes políticos transversalmente por seus partidos ou pelos responsáveis por sua representação frente aos interesses e no exercício da coletividade de uma categoria, “no mandado de segurança coletivo, o interesse invocado pertence a uma categoria, agindo o impetrante – partido político, organização sindical, entidade de classe ou associação – como substituto processual na relação jurídica” (PAULO; ALEXANDRINO, 2017, p. 215). e) Mandado de injunção previsto no art. 5º, inc. LXXI;
LXXI - conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.
O mandado de injunção é um dos institutos que garante o direito constitucionalmente assegurado pela falta de regulamentação do legislador competente em regulamentar e instituir a lei ordinária ou complementar se assim o texto constitucional definir, “Cuida-se de instrumento do processo constitucional voltado para a defesa de direitos subjetivos em face de omissão do legislador ou de outro órgão incumbido de poder regulatório” (MENDES; BRANCO, 2015 p. 449). f) Habeas data previsto no art. 5º, inc. LXXII;
LXXII - conceder-se-á habeas data: a) para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público;
judicial ou administrativo.
O habeas data garante que o poder judiciário, na sua função típica de dirimir lides, determine o direito quando convincentes e legais de acesso à informação obstada pelo Estado ou suas entidades legalmente constituídas, o “Habeas data é o instrumento constitucional colocado ao dispor das pessoas físicas ou jurídicas, brasileiras e estrangeiras, para que solicitem ao Poder Judiciário a exibição ou a retificação de dados constantes em registros públicos ou privados” (BULOS, 2014, p. 793).
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b) para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso,
g) Ação popular previsto no art. 5º, inc. LXXIII.
LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência.
Trata-se de um remédio constitucional pelo qual qualquer cidadão fica investido de legitimidade para o exercício de um poder de natureza essencialmente política, e constitui manifestação direta da soberania popular consubstanciada no art. 1º, parágrafo único, da Constituição: todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente. Sob esse aspecto é uma garantia constitucional política (SILVA, 2014, p. 466).
Nesse contexto, a ação popular é um dos meios que o cidadão pode utilizar para cuidar da coisa pública, agindo como um fiscal do patrimônio público, cabe-se também a depender do caso concreto mover o poder judiciário para agir e tomar as providências necessárias dentro dos ditames da lei. Além de estarem presentes na Constituição Federal de 1988, algumas espécies de remédios constitucionais possuem regulamentações próprias ou asseguradas em leis diversas. Como é o caso do Habeas Corpus, que possui previsão legal no Código de Processo Penal, que foi criado através de um decreto lei e recepcionado por essa Constituição, como lei ordinária, pelo fato de sua espécie normativa originaria não está assegurada no art. 59 do texto constitucional. O habeas corpus está disposto no capítulo X, art. 674 e seguintes desse código, assegurando o remédio em análise e o seu processo legal. O mandado de segurança possui previsão na legislação constitucional como já foi
disciplina a possibilidade de impetrar o mandado de segurança individual e o coletivo. O mandado de injunção é meio constitucional adequado quando se considerar prejudicado por omissão do legislador em elaborar uma norma regulamentadora, que torne inviável o exercício de direito e liberdades constitucionais. Nada obstante, o mandado de injunção assegurado pela Constituição Federal de 1988 é apenas o individual. Contudo, ao elaborar a Lei 13.300 de 23 de junho de 2016, o legislador assegurou a possibilidade de se impetrar o mandado de injunção coletivo e disciplinou também na supracitada lei o processo e o julgamento dos mandados de injunção individual e coletivo. 421
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analisado e na legislação infraconstitucional, na Lei 2.016 de 07 de agosto de 2009. A lei
Sendo assim, pode verificar que a Constituição Federal de 1988 assegura o mandado de injunção em seu texto e a lei especifica do supracitado remédio disciplina as possibilidades de sua impetração, podendo ser de maneira individual ou coletiva, desde que para o coletivo se tenha no polo ativo os legitimados determinados pela lei. O habeas data, por sua vez, possui previsão constitucional, nada obstante também existe em vigor hoje uma lei específica que regula o direito de acesso a informações e disciplina o rito processual do habeas data. A Lei 9.507 de novembro de 1997 conceitua o caráter público com todo registro ou banco de dados contendo informações que sejam ou que possam ser transmitidas a terceiros ou que não sejam de uso privativo do órgão ou entidade produtora ou depositária das informações. Além disso, a própria lei prevê a competência originária e em grau de recurso caso seja necessário. Por último, tem-se a ação popular que visa anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural. A ação popular tem previsão constitucional e possui lei especifica. A Lei 4717 de 1965 regula a ação popular, trazendo em seu texto informações relevantes que devem ser analisadas ao impetrar a ação. Note que a lei que regula a ação popular é de 1965, estando em pleno vigor, foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988. Com isso, vislumbra-se que não são todos os remédios constitucionais que possuem lei específica, assegurando assim para os que possuem lei própria sua aplicação nos casos necessários onde ocorra confronto de normas infraconstitucionais a aplicabilidade do princípio da especialidade.
5 A VIA ADEQUADA PARA IMPETRAR AS ESPÉCIES DE REMÉDIOS
Assim como qualquer outro tipo de ação que tenha por escopo movimentar o poder judiciário para assegurar direitos e afirmar realmente o direito, é necessário para os remédios constitucionais presentes no ordenamento jurídico brasileiro saber o momento certo e a via adequada para impetrar essas garantias. Com isso, obtém-se a eficácia na análise do direito, assegurando assim o estudo da matéria e o julgamento do estado juiz sobre o que está sendo pedido nas ações, pois com fulcro no princípio da imparcialidade é necessário que o Estado seja
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CONSTITUCIONAIS
manifestado em determinadas ações para que se tomem a devida providência no processo, garantido assim o devido processo legal e a celeridade processual. Existe entre os remédios constitucionais abordados, uma espécie que possui caráter não jurisdicional, que é o direito de petição, por sua vez, nesse existe o condão de garantir a todos, pessoas físicas ou jurídicas, independentemente do pagamento de taxas, o direito de peticionar aos poderes da República no intuito de defender seus direitos, solicitando assim as devidas providências necessárias contra atos ilegais ou abuso de poder. Diante do exposto, o direito de petição deve ser exercido apenas na via administrativa, pois sua finalidade específica é de manter informado o poder público sobre o que está ocorrendo. Sendo assim, é dispensável a presença de advogado para atuar como defensor na informação do cidadão ao poder público. Por outro lado, o mandado de segurança individual e coletivo, o mandado de injunção individual e coletivo e o habeas corpus são ações em que deve ser interposta no judiciário por meio de petição inicial, no intuito de obter ao impetrante o direito que se pleiteia. No tocante ao mandado de segurança coletivo e o mandado de injunção coletivo é primordial obedecer aos parâmetros legais quanto aos legitimados, para não se ter uma possível extinção do processo, por inexistência de capacidade postulatória do legitimado ativo no litígio. Quando se trata do mandado de segurança e do mandado de injunção, sejam individuais ou coletivos, verifica-se a necessidade de advogado para atuar no feito, pois diferente do direito de petição, os supramencionados remédios devem ser impetrados por via judicial, assegurando assim a presença de advogado para atuar no processo. O habeas data também tem como via adequada o poder judiciário, mas é importante lembrar que se trata de uma ação de natureza pessoalíssima, diferentemente das outras ações ora já mencionada. Por se tratar de ação personalíssima, deve ser a pessoa que deseja obter a informação o legitimado ativo da ação não se admitindo outra pessoa como titular da ação para
Todavia, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem admitido que pessoas como cônjuge, ascendente, descendente ou irmão tenha também legitimidade para figurar ativamente com habeas data.
EMENTA: HABEAS DATA Nº 147 - DF (2006/0224991-0) CONSTITUCIONAL. HABEAS DATA. VIÚVA DE MILITAR DA AERONÁUTICA. ACESSO A DOCUMENTOS FUNCIONAIS. ILEGITIMIDADE PASSIVA E ATIVA. NÃO-
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obter dado de um terceiro.
OCORRÊNCIA. OMISSÃO DA ADMINISTRAÇÃO CARATERIZADA. ORDEM CONCEDIDA (STJ, 2006).
Mesmo sendo admitida a impetração pelo cônjuge, ascendente, descendente e irmão, é necessário à presença de advogado, uma vez que está acionando o poder judicial para obter essas informações, dependendo assim de elaboração de petição inicial, relatando pontos fáticos e de direitos para obter do judiciário a determinação que a parte contrária abstenha de reter as informações determinadas pelo Estado. Por fim, a ação popular que visa anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultura. A ação popular também é impetrada na via judicial, porém diferentemente dos outros remédios constitucionais, para se figurar no polo ativo dessa ação é necessário ser cidadão. Com isso, veja que a Constituição Federal de 1988 atribui a qualquer cidadão a legitimidade para a propositura da ação, devendo então o autor demostrar sua cidadania através de seus atos, como exemplo o direito de votar e ser votado. Assim, como alguns outros tipos de remédios constitucionais, a ação popular necessita de advogado para atuar na causa, pois deve ser impetrada junto ao juízo de primeiro grau, onde está ocorrendo ou ocorreu o ato lesivo. Um ponto primordial que deve ser esclarecido é que a ação popular fere diretamente algumas das regras de competência para julgamento de determinadas autoridades coatoras asseguradas pela Constituição Federal de 1988, pois a própria lei determina a competência para julgamento da ação no juízo de primeiro grau. Observam-se que todos os remédios constitucionais, com exceção do direito de petição e do habeas corpus, dependem de advogado ou de órgãos que representem a sociedade em juízo autorizado pelas instituições competentes a exercer a capacidade postulatória, representando os
Estado, sendo necessária a confecção de instrumento determinado em lei para manifestar o poder judiciário, iniciando o processo com uma petição inicial, podendo a depender do caso e da decisão da autoridade judiciária, ser interposto alguma espécie de recurso em segunda instância ou até mesmo iniciar o litígio diretamente nos tribunais superiores a depender da autoridade coatora.
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legítimos interesses das pessoas físicas ou jurídicas em juízo ou fora dele, entre si ou entre
6 HIPÓTESES QUE ASSEGURA A IMPETRAÇÃO DE CADA ESPÉCIE DE REMÉDIO CONSTITUCIONAL
Os remédios constitucionais assim como qualquer outro tipo de ação dependem que ocorra algum evento ou sua ameaça em acontecer para que se ampare ou assegure a sua impetração ou notificação ao poder público competente.
Os remédios constitucionais, são meios postos a disposição dos indivíduos e dos cidadãos para provocar a intervenção das autoridades competentes, visando corrigir ilegalidade ou abuso de poder em prejuízo de direitos e interesses individuais. São também chamados de garantias constitucionais ou ações constitucionais (OLIVEIRA, 2017, p. 211).
No entanto, existe algumas hipótese e possibilidades previstas na própria lei e na Constituição Federal de 1988 que asseguram a utilização do remédio adequado. No direito de petição é necessário que se ocorra ilegalidade ou abuso de poder, devendo a parte interessada procurar o poder público competente e informar sobre tal fato, para que assim a autoridade competente tome as medidas cabíveis necessárias. O habeas corpus é um meio que visa assegurar ameaça de sofrer violência ou coação em sua liberdade por ilegalidade ou abuso de poder.
O habeas corpus pode ser impetrado como preventivo ou repressivo. O preventivo visa a evitar a ocorrência de uma violação à liberdade. O juiz expede salvo-conduto, para impedir a prisão ou a detenção pelo motivo alegado. O liberatório ou repressivo, objetiva a cessação da efetiva coação ao direito de ir e vir. O juiz expede o alvará de soltura se o paciente se encontrar preso ou o contramandado se contra o paciente
Para assegurar um direito líquido e certo, desde que não esteja amparado em habeas corpus ou habeas data, que o ordenamento jurídico tenha previsto a possibilidade de impetrar o mandado de segurança. Essa espécie de remédio constitucional não admite dilação de provas, uma vez que a prova deve ser pré-constituída, pois o ápice dessa espécie é assegurar o direito certo e líquido. O ordenamento jurídico não admite o mandado de segurança para lei em tese, é esse o entendimento do Supremo Tribunal Federal, sendo assim é assegurado que “a jurisprudência
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houver a expedição de mandado de prisão (OLIVEIRA, 2017, p. 225).
pacífica do Supremo Tribunal Federal entende não ser cabível mandado de segurança contra lei em tese” (MENDES; BRANCO, 2015, p. 446). Visando assegurar direitos e liberdades constitucionais, já prevendo uma omissão por parte do legislador, o mandado de injunção pode ser individual previsto na Constituição Federal de 1988 e coletivo previsto na lei que o regulamenta, é o meio necessário de garantir o direito, mesmo não estando estabelecida uma lei regulamentar.
Constitui um remédio ou ação constitucional posto à disposição de quem se considere titular de qualquer daqueles direitos, liberdades ou prerrogativas inviáveis por falta de norma regulamentadora exigida ou suposta pela Constituição. Sua principal finalidade consiste assim em conferir imediata aplicabilidade à norma constitucional portadora daqueles direitos e prerrogativas, inerte em virtude de ausência de regulamentação (SILVA, 2014, p.451).
Nota-se que todos os indivíduos e cidadãos de um determinado estado possuem informações em poder de alguma entidade pública ou de caráter público, isso é fato, com isso, pode-se mencionar muitas hipóteses em que o poder público de alguma maneira detém informações das pessoas. Todavia, para coibir o acesso a essas informações ou até mesmo retificá-las, quando necessário, é preciso impetrar habeas data, para que o poder judiciário determine o acesso à informação ou que se ratifique. Um ponto fundamental para que se busque o poder judiciário, é obter primeiramente a negativa pela via administrativa, para que após isso se busque a via judicial. Não basta apenas mover o poder judiciário, para impetrar o habeas data, deve-se valer primeiramente da via administrativa, garantindo assim ao Estado o dever de manifestar administrativamente, “é necessário demonstrar a recusa ao acesso as informações, sua ratificação ou decurso do prazo legal sem decisão, sob pena de carência de ação por falta de
A ação popular é uma das espécies de garantias fundamentais assegurada no texto constitucional com a finalidade de coibir o ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.
A ação popular é o meio constitucional posto à disposição de qualquer cidadão para obter a invalidação de atos ou contratos administrativos ou figuras jurídicas a estes equiparadas ilegais e lesivos ao patrimônio federal, estadual e municipal, ou das
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interesse de agir” (OLIVEIRA, 2017, p. 232).
respectivas autarquias, entidades paraestatais e pessoas jurídicas subvencionadas com dinheiros públicos. A ação poderá ser utilizada de modo preventivo ou repressivo. Será preventiva quando visar a impedir a consumação de um ato lesivo ao patrimônio público, quando for ajuizada antes da prática do ato ilegal ou imoral. Será repressiva quando já há um dano causado ao patrimônio público, ou seja, quando a ação é proposta após a ocorrência da lesão (ALEXANDRINO; PAULO, 2017, p. 229).
A jurisprudência em alguns casos limita para a impetração do mandado de injunção e do habeas data, a inadmissibilidade do instituto predominante no direito brasileiro conhecido como medida liminar, sendo necessário comprovar nesse instituto a probabilidade do bom direito e o perigo na demora.
EMENTA: MANDADO DE INJUNÇÃO. EXPEDIÇÃO DE CERTIDÃO DE TEMPO DE CONTRIBUIÇÃO. RECONHECIMENTO DE LABOR ESPECIAL. OMISSÃO LEGISLATIVA INEXISTENTE. PEDIDO MANIFESTAMENTE INCABÍVEL. WRIT INDEFERIDO LIMINARMENTE (STJ, 2017).
EMENTA: PROCESSUAL CIVIL. HABEAS DATA. ART. 105, I, b DA CF. INCOMPETÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. PRETENSÃO MANIFESTAMENTE INCABÍVEL. INDEFERIMENTO LIMINAR DO PEDIDO. (STJ, 2017)
Portanto, para se impetrar o remédio constitucional adequado ao caso concreto, é necessário realizar uma análise do fato ocorrido, não se esquecendo de ressaltar que a jurisprudência conforme os casos supracitados em relação ao habeas data e o mandado de injunção não tem admitido a medida liminar, mesmo o impetrante comprovando seus requisitos
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os remédios constitucionais possuem notória relevância no ordenamento jurídico brasileiro, pois estão fundamentados na Constituição Federal de 1988 e por sua vez, são apontados como direitos e garantias fundamentais assegurados pelo legislador constituinte originário. Diante disso, foi assinalada a natureza jurídica com enfoque explicativo de cada tipo de remédio constitucional desde sua origem.
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específicos.
A análise das legislações constitucionais e infraconstitucionais demonstram que o direito de petição, mandado de segurança, mandado de injunção, habeas corpus, habeas data e a ação popular, não possuem previsão legal apenas na Constituição Federal de 1988, mas em normas infraconstitucionais, inclusive anteriores ao texto constitucional vigente sendo por ela recepcionados. Verifica-se que as vias adequadas para se impetrar os remédios constitucionais têm a finalidade de trazer o meio eficaz de se buscar o poder público ou judiciário, apontando de maneira precisa aqueles em que se deve iniciar na via administrativa para que depois se possa buscar a via judicial, mostrando as hipóteses em que asseguram a impetração de cada tipo. Portanto os remédios constitucionais são garantias fundamentais asseguradas pelo legislador constituinte originário, que tem relevante papel no ordenamento jurídico brasileiro, dependendo apenas de uma análise fática das circunstâncias ocorridas, para que se possa impetrar a espécie adequada para garantir o direito assegurado.
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THE CONSTITUTIONAL REMEDIES AND ITS IMPORTANCE IN THE BRAZILIAN LEGAL SYSTEM
ABSTRACT
fundamental guarantees provided by the constitutional legislator originating. Aims to show the importance of these remedies in the Brazilian legal system. For this reason, it was performed bibliographical research of the method of legal positivism and theoretical
of
the
parameter
indoctrinating,
jurisprudence,
constitutional legislation and infra. Finally, it appears in the Federal Constitution of 1988 and in ordinary legislation, the possibility of the your correct application, with the purpose of success and effectiveness, 429
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The study discusses the constitutional remedies and their forms of
in judgment or administrative means. Allowing individuals and citizens exercising their right guaranteed.
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Keywords: Constitutional remedies. Legal nature. Legislation.
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