Jornalismo e cidadania
Expediente
Editor Geral | Heitor Rocha professor PPGCOM/UFPE
Editoração Gráfica | Ivo Henrique Dantas doutorando PPGCOM/UFPE
Articulistas |
PROSA REAL
Alexandre Zarate Maciel doutorando PPGCOM/UFPE
MÍDIA ALTERNATIVA
Xenya Bucchioni doutoranda PPGCOM/UFPE
NO BALANÇO DA REDE
Ivo Henrique Dantas doutorando PPGCOM/UFPE
JORNALISMO E POLÍTICA
Laís Ferreira mestranda PPGCOM/UFPE
JORNALISMO AMBIENTAL
Robério Daniel da Silva Coutinho mestre em Comunicação UFPE
PODER PLURAL
Rakel de Castro doutoranda PPGCOM/UFPE e UBI
CIDADANIA EM REDE
Nataly Queiroz doutoranda PPGCOM/UFPE
COMUNICAÇÃO PÚBLICA
Ana Paula Lucena doutoranda PPGCOM/UFPE
JORNALISMO INDEPENDENTE
Karolina Calado doutoranda PPGCOM/UFPE
MÍDIA FORA DO ARMÁRIO
Rui Caeiro
mestre em Comunicação UFPE
MUDE O CANAL
Ticianne Perdigão doutoranda PPGCOM/UFPE
RÁDIO E
Colaboradores | Marcos Costa Lima Pós-Graduação em Ciência Política/UFPE
Túlio Velho Barreto Fundação Joaquim Nabuco
Gustavo Ferreira da Costa Lima Pós-Graduação em Sociologia/UFPB
Luiz Lorenzo Núcleo de Rádios e TV Universitárias/UFPE
Editorial
A barbárie da caça às bruxas e a manipulação semântica dos golpes
Por Heitor Rocha
Aluta ideológica pela significação das palavras e dos signos, na modernidade, como já chamava atenção Bakhtin, se constitui no espaço por excelência onde se dá a luta política de conquista e manutenção do poder. Entretanto, é importante notar como as forças políticas oligárquicas, especialmente nos momentos de instabilidade política, pretendem se perpetuar pelo exercício da força bruta, desdenhando da capacidade de discernimento da sociedade e da consciência coletiva da opinião pública, talvez, sobretudo, por manter com mão de ferro o monopólio da grande mídia no País.
Outro não pode ser o entendimento diante da cobertura da mídia noticiosa do fato de, pouco depois do afastamento da Presidente Dilma Rousseff, a chamada “pedalada” fiscal, motivo alegado para o impedimento, ter deixado de ser considerada crime de responsabilidade. Ou seja, o pretexto do processo contra a Presidente, pelo entendimento majoritário do Congresso Nacional, passou a ser aceito novamente como legal, como era entendido nos governos anteriores.
Casuísmo semelhante pode ser identificado na forma seletiva como o Supremo Tribunal Federal classifica como “obstrução da justiça” casos que interessam aos golpistas - como a nomeação de Lula para a Chefia da Casa Civil, pela suposta intenção de garantir foro privilegiado ao ex-presidente, para evitar que pudesse ser denunciado pelo Ministério Público do Paraná - ao mesmo tempo que mantém silêncio solene sobre a declaração de ex-chefe da Advocacia Geral da União de que fora demitido pelo Ministro-Chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha, por estar dando continuidade às atribuições da AGU quanto à operação “Lavajato”. Este caso comprova plenamente a declaração do senador Romero Jucá de que seria preciso a deposição da Presidente Dilma Rousseff para estancar “a sangria da Lavajato”.
Além de escandalosa a omissão do STF neste caso, é escancaradamente irresponsável e criminosa a posição dos grandes veículos de comunicação brasileiros que não cumpriram o mais elementar e básico compromisso do jornalismo com a apuração, contextualização e interpretação dos acontecimentos. A estratégia de toda a grande mídia foi procurar se eximir desta responsabilidade considerando, através de uma espetacularização com repertório de faroeste, que o ex-chefe da AGU saiu “disparando” contra Eliseu Padilha a intenção de obstruir a justiça como simples retaliação pela demissão e não a sua causa. O Ministro Chefe da Casa Civil tinha que ter sido ques-
tionado pela imprensa se a sua decisão de demitir o chefe da AGU tinha sido, realmente, motivada pelo intuito, já confessado por Romero Jucá, de abafar (obstruir) as consequências legais do caso da “Lavajato”.
Esta postura de descaso com a interpretação que a opinião pública venha a ter de suas ações revela que não faz parte da estratégia política dos oligarcas de plantão nenhum compromisso/cuidado com o sentido lógico das decisões governamentais. Parece que permanece , como em 1964, o entendimento de que basta ter a força do aparelho de estado e o respaldo do Judiciário, da Mídia e das grandes corporações do mercado nacional e internacional, que qualquer atitude pode ser justificada perante uma opinião pública desarticulada e com uma consciência sistematicamente fragmentada por um noticiário faccioso e cínico.
Assim, em 1964, os golpistas instalaram uma ditadura sob o pretexto da defesa da democracia. Naquela época, Gilberto Freyre, que se consagrou como o grande intelectual do regime ditatorial, por não gostar das suas fotografias nos jornais recifenses, chegou a denunciar de “comunistas” os repórteres-fotográficos, incorrendo na típica “caça às bruxas” dos movimentos anti-comunistas. Hoje, destituem um governo legítimo em nome do combate à corrupção para tentar abafar a operação Lava-Jato. E novos intelectuais orgânicos do novo governo golpista voltam a assumir postura semelhante de “caça às bruxas” ao criticar o diretor Kleber Mendonça, do filme Aquarius, devido ao protesto contra o golpe feito no Festival de Cannes, atribuindo, de forma incorreta como mostra o artigo de Túlio Velho Barreto, esta atitude à sua nomeação pelo PT para um cargo na Fundação Joaquim Nabuco.
Constam ainda na REVISTA JORNALISMO E CIDADANIA Nº 3 artigos sobre a repercussão nas redes sociais do boicote da Rede Globo na cobertura da arguição da presidente Dilma Rouseff no Senado Federal, com aula ensinando a fazer ovo cozido, e o desmantelamento da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) pelo governo Temer, entre outras assuntos relevantes atuais.
Heitor Costa Lima da Rocha, Editor Geral da Revista Jornalismo e Cidadania, é professor do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.
Prosa Real
Livro-reportagem, jornalismo e contexto
Por Alexandre Zarate Maciel
Transcendendo o factual: coleção
“História Imediata”
Uma das principais características do livro-reportagem é a perenidade. A temática abordada em um livro tem força para perdurar por anos, como documento histórico de uma época. É o caso da coleção “História Imediata”, série lançada em cinco volumes, em banca, durante o ano de 1978, pela editora Alfa-Omega. Com a proposta de trazer à tona temas antes proibidos pelo governo militar, já no número 1, chamado “Guerrilha do Araguaia”, os editores prometiam: “Agora você pode saber, com todos os detalhes, como é que aconteceram todos aqueles fatos que a censura escondeu dos brasileiros durante tanto tempo”. No número 2, “A greve na voz dos trabalhadores: de Scania a Itu”, os autores foram mais ousados. Deixaram que a história das greves nas montadoras, que ajudaram a abalar o poder das multinacionais, fosse contada pelos próprios líderes grevistas, em uma justaposição hábil de depoimentos ao longo do livro. No número 3, “Araceli: corrupção em sociedade”, o repórter Carlos Luppi denuncia o envolvimento de membros da alta sociedade de Vitória, no Espírito Santo, com os estupros e o assassinato da menina Araceli, em 1973. O número 4 traz um perfil biográfico do líder religioso que lutou contra os flagelos da tortura de presos políticos, “D. Paulo Evaristo Arns: o cardeal do povo”. E o último número se propõe a tirar do silenciamento imposto pela ditadura militar a história da União Nacional dos Estudantes, no livro “A volta da UNE: de Ibiúna a Salvador”. A série acabou cancelada pelos altos custos de impressão para uma editora de pequeno porte. Reler esses livros clássicos, que podem ser encontrados em sebos virtuais, permite ao leitor entender como era difícil desafiar a ordem do discurso então vigente. Papel que os jornalistas-autores da Alfa-Omega cumpriram com afinco e coragem e deixaram como legado para outras gerações.
Autor do mês:
Zuenir Ventura
Oapelido mestre Zu não poderia ser mais apropriado. Octagenário, o jornalista Zuenir Ventura é o único autor de livros-reportagem brasileiro eleito para a Academia Brasileira de Letras. Tomou posse em março de 2015, na cadeira de número 32, sucedendo Ariano Suassuna. Quando estreou no campo do livro-reportagem, em 1989, com “1968: o ano que não terminou”, já era um profissional veterano. Nascido em Além Paraíba, Minas Gerais, mudou-se para Nova Friburgo (RJ) com a família e desde cedo começou a trabalhar. Foi pintor de paredes, contínuo de banco, faxineiro e balconista até ser convidado a se aventurar pelos jornais cariocas após cursar Letras e tornar-se professor. Na imprensa, ostenta um currículo invejável de cargos que foi ex-ocupante: editor internacional do Correio da Manhã, diretor da revista Fatos e Fotos, chefe de reportagem de O Cruzeiro e das sucursais cariocas de Visão, Veja e IstoÉ. Mas foi no campo do livro-reportagem que o seu nome se afirmou como um repórter-cronista que lança um olhar arguto sobre as problemáticas do Brasil. Seu maior suces-
so editorial, com mais de 300 mil cópias vendidas em 39 edições, é justamente o livro em que ele se propôs a radiografar, em minúcias, o ano de 1968 (do AI-5, festivais, passeata dos 100 mil, revolução sexual) e entender as suas marcas históricas. Em 2008, Zuenir retornou ao tema no livro “1968: o que fizemos de nós”. Conversou novamente com os artistas, ex-ativistas políticos e outras personalidades da primeira obra para entender com mais profundidade o legado daquela turma que queria mudar o mundo. Não satisfeito, mergulhou em uma rave (festa eletrônica) e conversou com jovens do século XXI para entender as particularidades da novíssima geração. Talvez uma das principais marcas do trabalho de Zuenir é mesmo a de não negar desafios. No livro “Chico Mendes: crime e castigo”, de 2003, reuniu sua série original de reportagens premiada com o Prêmio Esso, a respeito do assassinato do líder seringueiro acreano que chamou a atenção do mundo para a questão ambiental. Mas, como 15 anos já haviam passado, somou ao livro o relato do seu retorno ao Acre, reencontrando personagens cruciais, como as ex-esposas de Chico Mendes. Também lançou um olhar contextualizador a respeito da violência no Rio de Janeiro em “Cidade Partida” (1994), convivendo tanto com líderes comunitários de Vigário Geral, ainda traumatizada com uma chacina recente de 21 mortos, quanto com um traficante, Flávio Negão, que não se furtou a destilar o seu ódio social. Outra boa forma de conhecer a trajetória profissional do autor é o livro “Minhas histórias dos outros”, de 2005, no qual Zuenir Ventura dedica cada capítulo ao relato de um momento marcante de sua carreira. Sua mais recente incursão no mercado editorial, porém, é no campo da ficção, “Sagrada Família”. Mesmo assim, ele admite que a história de uma cidade do interior do país e seus personagens típicos que desfilam na obra são resultado, também, de fragmentos de suas próprias memórias. Aos 85 anos, mestre Zu ainda preserva sua capacidade de surpreender.
Iluminando conceitos: os desafios do biógrafo na tese de Sérgio Vilas Boas
Em tese defendida na USP em 2006, intitulada “Metabiografia e seis tópicos para aperfeiçoamento do jornalismo biográfico”, o pesquisador Sérgio Vilas Boas aponta, como o nome sugere, formas de tornar mais plural a narrativa das biografias brasileiras. A tese transformou-se no livro “Biografismo: reflexões sobre as escritas da vida”. Vilas Boas chega a exortar os biógrafos a assumirem um compromisso com o público. Diante de um mercado que tem potencial de expansão, esses autores deveriam, na sua opinião, incluir nos textos “suas escolhas, seus conflitos, seus impasses, suas vivências ao longo da jornada biográfica” (VILAS BOAS, 2006, p.146). O pesquisador também sugere que os biógrafos poderiam
experimentar trabalhar com episódios, que não seriam necessariamente cronológicos. Com isso, evitariam a ilusória impressão de apresentar aos leitores uma história “100% factual, redondinha, com princípio-meio-fim” (VILAS BOAS, 2006, p. 191). Outra proposta: de forma comedida, deixar claro, no corpo do próprio texto das obras, “sua consciência sobre interpretações e compreensões; os limites e possibilidades da escrita biográfica; suas auto-reflexões; seus significados e os do outro cuja vida será sempre mais importante que a do biógrafo”. (VILAS BOAS, 2006, pp. 34-35). Para Sérgio Vilas Boas, o biógrafo precisa entender-se, portanto, como parte do mundo da vida que ajuda a narrar.
Referências:
BITTENCOURT, Getúlio; MARCUN, Paulo Sérgio. D. Paulo Evaristo Arns: o cardeal do povo. Coleção História Imediata, volume 4. São Paulo: Alfa-Omega, 1978.
DÓRIA, Palmério; BUARQUE, Sérgio; CARELLI,Vincent; SAUTCHUK, Jaime. A guerrilha do Araguaia. Coleção História Imediata, volume 1. São Paulo: Alfa-Omega, 1978.
LUPPI, Carlos Alberto. Araceli: corrupção em sociedade – tóxico, tráfico de influência, violência. Coleção História Imediata, volume 3. São Paulo: Alfa-Omega, 1979
OBORÉ. A Greve na voz dos trabalhadores: da Scania a Itu. Coleção História Imediata, volume 2. São Paulo: AlfaOmega, 1979.
ROMAGNOLI, Luiz Henrique e GONÇALVES, Tânia. A volta da Une: De Ibiúna a Salvador”. Coleção História Imediata, volume 5. São Paulo: Alfa-Omega, 1979.
VENTURA, Zuenir. Chico Mendes: crime e castigo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
___________, Zuenir. 1968: o que fizemos de nós. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.
___________, Zuenir. 1968: o ano que não terminou. Rio de Janeiro: editora Objetiva, 2013.
___________, Zuenir. Cidade Partida. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
VILAS BOAS, Sergio Luis. Metabiografia e Seis Tópicos Para Aperfeiçoamento do Jornalismo Biográfico. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) - USP, 2006.
Elaborada pelo professor do curso de Jornalismo da UFMA, campus de Imperatriz, Alexandre Zarate Maciel, que está cursando o doutorado em Comunicação na UFPE, a coluna Prosa Real vai trazer, todos os meses, uma perspectiva dos estudos acadêmicos sobre a área do livro-reportagem e também um olhar sobre o mercado editorial para esse tipo de produto, seus principais autores, títulos e a visão do leitor
Fonte: Divulgação
Mídia Alternativa
Jornalismo de oposição e resistência
Por Xenya BucchioniLançamento: Marcos
Faerman, reportagens literárias
No último mês, uma novidade de peso sacudiu o universo dos amantes da grande reportagem. Foi lançado um portal para contar a história de vida do jornalista gaúcho Marcos Faerman (19431999) e disponibilizar suas mais de 800 reportagens. Repórter do Jornal da Tarde por 24 anos, o jornalista teve uma atuação importante na mídia alternativa durante o período da ditadura militar no Brasil, sendo responsável direto pela criação das revistas Singular e Plural, Crisis Brasil e do jornal Versus, que tinha como colaboradores Eduardo Galeano e outros nomes de peso.
Sob a coordenação de Laura Faerman, filha do jornalista e idealizadora desse resgate histórico da obra do pai,
foram executadas compilações em diversos acervos públicos e privados. Questões indígenas, atuação da polícia, disputas por terra e produção científica foram alguns dos temas abordados no material levantado, que contempla, entre outros textos, duas matérias ganhadoras do Prêmio Esso: “Nasceu o primeiro brasileiro pelo método Leboyer”, em 1974, e “Os habitantes da arquibancada”, em 1975.
O resultado é um vasto arquivo que apresenta também boa parte das edições dos jornais alternativos culturais nos quais o jornalista atuou. Visto em conjunto, o acervo reúne textos essenciais para aqueles que desejam pesquisar e aprender sobre as aproximações do texto jornalísticos com a narrativa literária – estilo pelo qual o jornalista ficou conhecido nas diversas redações por onde passou. Por isso, o endereço digital (www.marcosfaerman.com.br) passa a ser ponto de parada obrigatório para todos que desejam se lançar às aventuras do jornalismo literário.
A imprensa alternativa no cinema
Ahistória do Brasil passa pela história da imprensa alternativa. Da primeira edi -
ção do Correio Braziliense, em 1808, publicada em Londres, até as publicações feitas de forma clandestina dentro e fora do Brasil durante a ditadura civil-militar, passando pelas inúmeros jornais e revistas feitos por jornalistas, militantes políticos e de movimentos sociais, o cenário desenhado é de luta e procura por caminhos mais democráticos.
Resgatar esse painel no cinema tem sido um trabalho constante na produção de documentários que, aos poucos, também ganham as telas da TV. Em sua maioria, as iniciativas concentram-se na história específica de uma publicação. Nesta linha, estão “O Sol – Caminhando contra o vento”, 2006, de Tetê Moraes e Martha Alencar, sobre o jornal carioca criado no conturbado ano de 1968, poucos meses antes do regime decretar o Ato Institucional nº 5, e o recém-lançado “Lampião da Esquina”, 2015, de Lívia Perez, que conta a trajetória do jornal homossexual responsável por sacudir a moral e os bons costumes em pleno período dos anos de chumbo, época marcada por intensa repressão aos opositores do regime. Exibido durante a programação do Festival É Tudo Verdade 2016, no Rio de Janeiro e em São Paulo, o documentário será integrado à grade do Canal Brasil, que além de coprodutor também licenciou o filme.
Na esteira dessas produções, Resistir é Preciso, lançado como série pela TV Brasil em 2014, nos marcos do aniversário de 50 anos do golpe, segue preenchendo uma lacuna: a de retratar o tema a partir de uma perspectiva ampliada. A produção é a primeira a concentrar força e energia em resgatar a imprensa alternativa no âmbito coletivo. Narrada e apresentada pelo ator Othon Bastos, a série traz depoimentos e material historiográfico de jornalistas que atuaram em três frentes de combate à ditadura militar: a imprensa alternativa, a clandestina e a que atuava no exílio.
Tanto os depoimentos como a coleção de publicações levantada pelos produtores, ao longo dos três anos de pesquisa, podem ser acessados no site do projeto (www.resisteepreciso.com.br). Além dos clássicos famosos de sempre, como “Pasquim”, “Opinião”, “O Sol” e “Movimento”, estão lá quase uma centena de veículos operários, estudantis, regionais e comunitários pouco conhecidos. #FicaADica.
Ovelha Negra e o humor como forma de resistência
Já diria o poeta Paulo Leminski, “en la lucha de clases / todas las armas son buenas / piedras / noches / poemas”. O espírito do poema tem tudo a ver com a turma do Ovelha Negra, título alternativo lançado em São Paulo em meados da década de 70, que usava o humor como combustível para a resistência à ditadura civil-militar. A experiência encontra ecos na proposta da patota carioca d’O Pasquim, mas diferentemente desta apostou no desenho de humor – algo inovador no período.
Ao privilegiar o trabalho de cartunistas e ilustradores, Ovelha Negra apresenta um recorte ousado que viria estampado, já em seu primeiro número, com nada menos do que 100 trabalhos de cartunistas de diversas regiões do país. Ao longo de sua trajetória, a revista publicaria um time de peso que, até hoje, tem circulação em meio à crítica política, econômica e social com humor como os irmãos Chico e Paulo Caruso, Reinaldo (ex-Casseta & Planeta), Laerte, Nani.
Alvo da censura, a publicação teve seus editores caçados e deixou de circular após oito edições. Boa parte de sua história, pouco conhecida, mas que, ainda, reverbera no presente, é contada pelo pesquisador Osvaldo da Costa, da Universidade Santa Cecília (Unisanta), em “O Berro da Ovelha Negra”. Fruto de uma intensa pesquisa acadêmica de cinco anos, a obra foi lançada em 2015 pelo Ateliê de Palavras. Vale a pena conferir!
Escrita pela jornalista Xenya Bucchioni, doutoranda em Comunicação na UFPE e fundadora do Mezclador, estúdio de cultura contemporânea desenhado para realizar projetos de impacto social, a coluna Mídia Alternativa aborda a produção jornalística feita à margem dos veículos tradicionais. Mensalmente, o espaço apresentará um raio-x das publicações alternativas marcantes na história do jornalismo e do país, além de entrevistas e debates.
Opinião
Qual o lugar da Periferia na Nova Ordem Mundial?
Por Marcos Costa LimaOcontexto macroeconômico mundial nos últimos trinta anos foi marcado por dez traços distintivos: i) taxas muito baixas de crescimento do PIB, inclusive no Japão, que tradicionalmente serviu como “locomotiva” para o restante da economia mundial; ii) uma taxa de crescimento muito forte dos indicadores relativos ao valor nominal dos ativos financeiros (de acordo com a natureza dos ativos, sobre elas incide um componente fictício, mais ou menos importante); iii) a limitação e redução das políticas de bem-estar social, associada à perda de regulação pela maioria dos Estados nacionais; iv) altos índices de desemprego estrutural nos países da OCDE, associados a formas de emprego temporárias e com baixo nível de remuneração, provocando um aumento da pobreza nesses países; v) ampliação das desigualdades entre países ricos e pobres. vi) uma conjuntura
mundial instável, entrecortada de sobressaltos monetários e financeiros, com alto nível de contágio internacional (México, 1994, Malásia,1997 e a sequência, que vai da Rússia à Argentina em 2001 e posteriormente a sub-prime em 2008); vii) uma deflação aberta e crescente entre os países industrializados, principalmente entre os países produtores de bens primários; viii) a marginalização de regiões inteiras do globo com relação ao sistema de comércio internacional; ix) o surgimento da China como um possível novo centro sistêmico; x) o crescimento econômico mundial sendo puxado pelos países emergentes, mas já em esgotamento. David A.Stockman, que foi diretor do Office of Management and Budget de Ronald Reagan, afirmou no New York Times que, ao longo dos últimos 13 anos, o mercado de ações caiu duas vezes provocando graves recessões. As famílias americanas perderam um trilhão de dólares na crise dot.com em 2000 e mais do que sete trilhões quando da crise subprime de 2007. Neste período o número de auxílios-refeição e os benefícios por invalidez mais que dobraram, para 59 milhões de pessoas, ou um em cada cinco americanos. Estes números assustadores crescem em relevância quando sabemos que a dívida pública dos EUA alcançou 56 trilhões de dólares no início de 2015. A questão da saúde nos EUA é um aspecto relevante da crise que vive o país. São 50 milhões de pessoas que hoje não dispõem de seguro saúde, ou seja, 1 em cada 6 pessoas, segundo Louis Gill.
No tempo em que Alan Greenspan esteve à
frente do Federal Reserve (o banco central do EUA) – agosto de 1987 a janeiro de 2006 - se deu o maior equity boom do país, com o mercado de ações crescendo cinco vezes entre a crise de 1987 e aquela da dot.com em 2000. A farra rentista terminou com a bancarrota do grupo Lehman Brothers em setembro de 2008 e Stockman (2013) nos diz que “Washington, com a arma de Wall Street virada para sua cabeça, foi ao socorro dos protagonistas desta bagunça financeira, imprimindo dinheiro para o resgate de grandes empresas em pânico, o que segundo ele, consistiu no singular e mais vergonhoso capítulo da história financeira americana”.
O fantástico crescimento da construção civil e dos investimentos em infraestrutura na China ao longo dos últimos 15 anos vem arrefecendo. O Brasil, a Rússia, a Índia, a Turquia e a África do Sul e todas as outras nações de renda média em crescimento não podem compensar a queda da demanda chinesa.
Paul Krugman, em seu livro A consciência de um liberal, publicado no Brasil em 2010, apontava que não houvera um grande aumento da desigualdade nos Estados Unidos até a década de 1980. Para o economista, a reviravolta se deu a partir daí, quando os vencedores foram uma pequena elite de 1% no topo da distribuição de renda.
Joseph Stiglitz, em seu último livro sobre o crescimento da desigualdade de renda e da riqueza nos Estados Unidos nos últimos trinta anos, é ainda mais incisivo do que Krugman. Diz Stiglitz, logo no prefácio, que “existem momentos na História quando as pessoas em todo o mundo parecem levantar-se para dizer que algo está errado”. Seus dados são contundentes sobre os efeitos de políticas econômicas que geraram desigualdade de renda e riqueza nos Estados Unidos após os anos 1980 e que há trinta anos atrás os 1% das maiores rendas entre os americanos recebiam apenas 12% da renda nacional, quando já em 2007, passaram a perceber 65% do total do ganho nacional dos rendimentos. A renda de um trabalhador masculino típico de tempo integral estagnou por mais de um terço de século.
Para François Chesnais, a situação de conjunto da economia mundial é marcada pela incapacidade do “capital” (os governos, os bancos centrais, o Fundo Monetário Internacional e os centros privados de centralização e de poder do capital tomado coletivamente) de encontrar, ao menos por agora, os meios de criar uma dinâmica diferente. A crise da Zona do Euro e seus impactos sobre um sistema financeiro opaco e vulnerável é uma das expressões. Esta incapaci -
dade não é para o economista francês sinônimo de passividade política. Ela significa simplesmente que a burguesia está se movendo cada vez mais completamente pela vontade única de preservar a dominação de classe em toda sua nudez. Portanto, esse projeto tem implicações políticas ainda mais graves para os trabalhadores, pois ele é acompanhado pelo endurecimento do caráter pró-cíclico das políticas de “austeridade” e de privatização, e contribui para a ocorrência de uma nova recessão, que está em marcha.
Todo o impacto desta crise refletiu diferentemente em regiões periféricas e, em especial, em algumas economias emergentes, em particular na China, Índia, Brasil e Rússia. No caso brasileiro, os aspectos mais positivos estavam por conta da consolidação do processo democrático e de políticas sociais de distribuição, que com o recente Golpe de estado estão sendo desmontadas uma a uma.
O centro do sistema econômico-político-midiático mundial fracassou redondamente desde 1980, pois a verdadeira medida da economia está no bem-estar geral das sociedades e não no crescimento da riqueza dos que já são muito ricos. Outro mundo é possível, mas há que ser uma construção diferente desta que vivemos, que privilegia muito poucos, gera desigualdades de toda a sorte, é antidemocrática e destruidora do meio ambiente.
Referências:
Chesnais, François (2014), The power of Financial capital and its links with productive capital. in: International Institute for research and educaction,Working Paper n.32
Gill, Louis (2006), Rembourser la dette publique: la pire des hypotheses. Montreal: Chaires études socioéconomiques de l`ÚQAM
Krugman, Paul (2009), A Consciência de um Liberal. São Paulo: Record
Stiglitz, Joseph E. (2013), The price of Inequality. How today’s divide society. How today’s divide society endangers our future. New York: WWW.Norton & Schuster.
Stokman, David A. (2013), The great deformation: the corruption of Capitalism in America. New York: Public Affairs.
Marcos Costa Lima é professor do Departamento de Ciência Política da UFPE, doutor pela Unicamp e pósdoutorado pela Université Paris XIII. Graduado em Filosofia Política pela Université Paul Valéry- França.
Jornalismo Ambiental
Sociedade, natureza e mudanças climáticas
Por Robério Daniel da Silva CoutinhoAno ruim para o meio ambiente ou para nós?
No mesmo dia em que mediávamos um debate sobre Jornalismo e Educação Ambiental pelo Programa Jornalismo e Cidadania, na Radio Universitária FM, no Recife, em agosto, um quadro sombrio da Terra acabara de ser divulgado nos EUA com indicadores sobre secas, inundações e outros mais, mostrando que 2015 foi o ano mais quente desde a Era Pré-industrial. O 26º Relatório Anual do Estado do Clima, da Sociedade Meteorológica Americana, elaborado por 450 cientistas do mundo, apontava que “A maioria dos indicadores de mudanças do clima continuaram a mostrar uma tendência de aquecimento global” com recordes de calor pelo 2º ano seguido (BLUNDEN e ARNDT, 2016).
A notícia se espalhou pela mídia mundial e brasileira, apesar de privilegiar no seu conteúdo questões técnicas das ciências meteorológicas e afins, com pouca ou nenhum visibilidade à contextualização social deste problema para a vida das pessoas. Todavia, a notícia repercutiu nos portais de notícia e nos jornais brasileiros, como na Folha de São Paulo. O periódico Folha de Pernambuco transcreveu uma matéria da Agência Francesa (AFP) sobre esta pauta, intitulada “Ano ruim ao meio ambiente” (FOLHAPE, 2016). A matéria nos oferece um bom subsídio para analisarmos criticamente a constituição de sentido social sobre a gravidade desta questão a partir do campo do Jornalismo e de modo interdisciplinar com base no campo da Educação, especificamente em relação a Educação Ambiental, por meio da contribuição de Silva e Lima (2016), que participaram do referido debate que mediamos.
Em uma hora de debate, os nossos convidados, o professor doutor em Sociologia e Educação Ambiental da UFPB, Gustavo Costa Lima, e o biológico Laudiélcio Silva, doutorando em Educação, descreveram diferentes tipos de educação com finalidades também distintas, inclusive aquelas que reduzem a percepção e a problematização social sobre a questão, limitando a conscientização do sujeito em busca de sua emancipação e da tomada de atitudes proporcionais às necessidades postas.
De forma genérica, observarmos que há duas educações: uma que separa o homem da natureza (fauna,
flora e etc.) e outra em que tudo pertence à Terra, inclusive o homem histórico e social, vertente esta na qual ambos os convidados se afiliam. E eles nos mostraram que esta interação homem e natureza gera efeitos objetivos e materiais que se retroalimentam pela ação do homem sobre o planeta e vice-versa. Exemplo emblemático são as alterações antrópicas do clima, causada pela maior emissão humana de gases de efeito estufa na atmosfera que tem gerado recordes de calor e assim promove, por exemplo, cada vez mais episódios de extremos meteorológicos mais frequentes e intensos, como secas e tempestades (IPCC, 2007).
É razoável, portanto, considerar que os problemas relacionados ao meio ambiente, ou melhor, aos causados à natureza, derivam da ação do homem em sociedade. ‘Naturalizar’ tal problema como se fosse da natureza e não do homem social, limita a percepção da questão e assim reduz o interesse do sujeito na busca de ações públicas/políticas frente o risco socioambiental posto às populações e ao planeta. Mas, controversamente, ao direcionar as consequências da anomalia do clima só ao meio ambiente, segregando a humanidade, deixando invisível tais riscos para os homens, apesar de existirem, a vertente da Educação Ambiental que reduz a questão só à natureza, continua hegemônica e está posta inclusive no título da matéria da agência francesa sobre o novo Relatório do Estado do Clima, publicada na FolhaPE.
Salientamos que o título, formado por “orações curtas, concisas e bastantes específicas, o que facilita o recorte temático” (GONÇALVES, 2010), é um fundamental elemento da matéria para a constituição de sentido da realidade social do público leitor. Isso, porque, como explica Moulliaud (1997), “o acontecimento tem um lugar privilegiado (na notícia), que é a região dos títulos. É ao nível do título que o leitor se depara com o acontecimento em estado puro”.
Assim, o título analisado enuncia “Ano ruim para o meio ambiente” e mostra no corpo do matéria, dentre outras abordagem técnicas, que “as temperaturas, o nível dos mares e as emissões de gases do efeito estufa atingiram novos recordes no ano passado” (FOLHAPE, 2016). Mas será que o recorde de calor trará consequências negativas somente para a natureza (meio ambiente), como afirma o título, naturalizando a então vertente de educação ambiental acrítica ao segregar o homem e seu modo socioeconômico de viver quando abordam questões e problemáticas ambientais, para
intitularmos tal a matéria fazendo uma menção conservadora de um “Ano ruim para o meio ambiente? E o quanto será ruim para o homem? Não aparece!
Além disso, será mesmo que é um “Ano ruim para o meio ambiente”? Será que a anômala mudança do clima da Terra - da qual não se separa o homem do “meio ambiente”, ao contrário, se reconhece como uma alteração antrópica, sendo o homem o seu causador e intensificador - não mostra exatamente que o planeta está tendo seu próprio clima transformado na busca de se adequar (diante dessa então nova composição biofísica e química da atmosfera devido a grande emissão de gases de efeito estufa liberados antropicamente), independente da necessidade dos humanos ou do seu modo de vida pautado no sistema capitalista do consumo e produção insustentável?
Comunicando uma educação ambiental necessária “N
ão haverá harmonia e felicidade para uma sociedade que ignora, que deixa à margem, que abandona na periferia parte de si mesma” (Papa Francisco, 2013). A “periferia” aqui tratada pelo pontífice na sua encíclica sobre a natureza pode/deve ser entendida como a vida humana e a vida não humana na Terra - uma casa comum de todos. Assim, “O tema ambiental é muito mais que uma escolha sábia e necessária nos tempos atuais – em que muito se fala, mas pouco se faz pelo Meio Ambiente (e grande parte da humanidade) – é também uma motivação para continuar acreditando que um mundo melhor é possível” (OLIVEIRA, 2014 apud SILVA, 2014). No entanto, esta crença por um mundo melhor necessita passar por uma “nova ética que valorize não só a vida humana, mas a vida não-humana” (LIMA, 2004), por meio de atividade e de saber que busca reconstruir a relação entre a educação, a sociedade e o meio ambiente visando formular respostas teóricas e práticas aos desafios colocados por uma crise socioambiental global, como, por exemplo, os recordes de calor e os amplos impactos e efeitos causados pela mudança climática, com consequências à vida humana e outras vidas.
Essa perspectiva ética demanda uma educação ambiental emancipatória, da qual Lima (2004) discorre como aquela que procura enfatizar e associar as noções de mudança social e cultural, de emancipação/ libertação individual e social e de integração no sentido de complexidade. Uma mudança social oriunda de uma insatisfação ou inconformismo com o estado atual do mundo, com as relações sociais que os indivíduos
estabelecem entre si, com as relações dos indivíduos consigo mesmos e com as relações que estabelecem com o seu meio ambiente. Mudança esta, por exemplo, demonstrada através da práxis de atores sociais ainda no período Ditadura Militar, como a Associação Pernambucana de Defesa da Natureza (Aspan), Movimento em Defesa da Mata do Engenho Uchôa e da Sociedade Nordestina de Ecologia, grupos ambientalistas pioneiros em PE ainda ativos (SILVA, 2014). A vida humana e não humana carece, portanto, de uma educação ambiental emancipatória visibilizada dentro da representação noticiosa da realidade social (jornalismo).
Referências:
BLUNDEN,J.;ARNDT,D.S.(Eds.)(2016):StateoftheClimate in 2015. DOI:10.1175/2016BAMSStateoftheClimate.1.
FOLHAPE. 2015: ano ruim ao meio ambiente. Recife. 03 de ago. 2016;
GONÇALVES, J.C. Manchetes socioambientais: noticiabilidade e agendamento em diário impressos brasileiros / Janayde de Castro Gonçalves. – Recife: O Autor, 2010; IPCC. Intergovernmental Panel on Climate Change. Climate Change – The physical science basis. Contribution of working group I to the fourth assessment report of the IPCC. Cambridge Univ. Press, Cambridge, 2007;
LIMA, G. F. C. Educação, emancipação e sustentabilidade: em defesa de uma pedagogia libertadora para a educação ambiental. In: Identidades da educação ambiental brasileira. Brasília: Ministério do Meio Ambiente, 2004.
MOUILLAUD, M. S. E. O Jornal da forma ao sentido. Brasília: Parelelo 15, 1997;
OLIVEIRA, M. A.B. A Educação Ambiental em PE. In: A educação ambiental de Pernambuco (1979 a 1988). SILVA, L. F. M. Recife: Ed. UFPE, 2014;
PAPA FRANCISCO. Carta Encíclica Laudato SI: sobre o cuidado da casa comum. Vaticano. Ed. Vaticana, 2015. SILVA, L. F. M. A educação ambiental de Pernambuco (1979 a 1988). Recife: Ed. UFPE, 2014.
Este espaço apresenta abordagens críticas e interdisciplinares mensais relativas à produção da representação noticiosa da realidade social (jornalismo) sobre as Mudanças Climáticas e a sua influência na constituição do sentido social sobre a questão. Escrito pelo jornalista Robério Coutinho, mestre em Comunicação pela UFPE com formação básica em Meteorologia pelo INPE/CPTEC, que foi assessor de imprensa do Laboratório de Meteorologia de PE, bolsista pesquisador da Rede Brasileira de Mudança Climática e é autor de livros sobre o temática.
Poder Plural
Política contemporânea e Internet
Por Rakel de Castro
As formas de determinação e ampliação do Estado capitalista moderno
Aprimeira noção de Estado surge com o Estado Absolutista da Europa (no qual ainda prevalecem os valores de linhagem familiar), marcado fortemente pelas relações de poder, pela presença ainda dos estamentos (semelhantemente as sociedade feudais, em que a ascensão social é limitada, pois a posição social do indivíduo era dada pelo nascimento, e não por acúmulo de capital e em que as pessoas eram desiguais perante a lei), pelo monopólio da arrecadação de impostos (através do qual se desenvolveu um princípio de máquina burocrático-administrativa) e, sobretudo,
pelo aspecto coercitivo / militar.
Historicamente o Estado Absolutista europeu evoluiu para o “Estado de Direito” (Liberal – no qual surge a separação dos poderes do Estado, o início da capitalização na fase concorrencial, o reconhecimento legal do indivíduo etc.), período marcado pela Revolução Inglesa do Século XVII; e deste para o “Estado Democrático de Direito”, assinalado pela Revolução Francesa do Século XVIII, em que a condição de cidadania passava do ato de delegá-la para o ato de exercê-la (participação). Após a Revolução Francesa, cria-se a educação pública para construir um novo cidadão, a fim de manter os ideais socialistas – tem-se início o Estado Social de Direito.
Foi essa concepção explosiva de revoluções versus o poder coercitivo (ainda bem presente na dimensão estatal desde o absolutismo) que Karl Marx (1997) vivenciou e teorizou sobre isso. Um dos primeiros e tímidos contributos para a ampliação da noção de Estado foi feita ainda por Marx (1997), quando analisou o Estado Bonapartista, em que o poder executivo se fortaleceu em detrimento do poder legislativo.
Uma outra contribuição, feita mais tarde, para a ampliação da noção de Estado é dado com Antônio Gramsci (1851 - 1937), que, quando preso em 1926, diante do fortalecimento de um Estado fascista italiano, vivenciou literalmente a experiência de um Estado Penal, numa sociedade capitalista. A partir de então, Gramsci teoriza sobre a dimensão consensual da construção da hegemonia em complementação à dimensão coercitiva vista por Marx.
Gramsci (1984) concebe o conceito de hegemonia, em que o poder das classes dominantes não seria exercido simplesmente através do controle dos aparatos repressivos do Estado, observando que, dessa forma, pois, esse poder seria facilmente sobrepujado. Bastava que se encontrassem aliados do proletariado ou das classes dominadas que tivessem uma força militar/armada semelhante ao do Estado e tivessem interesse em combatê-lo. O Estado seria, então, conquistado mediante um ataque direto, de caráter militar (guerra de movimento).
Assim o poder das classes dominantes é produzido e reproduzido fundamentalmente pela “hegemonia” que elas têm sobre as classes dominadas, através do controle do sistema educacional, das instituições religiosas e dos meios de comunicação. Usando des -
te controle, as classes dominantes ensinam os dominados para que estes aceitem consensualmente essa (e consintam nessa) dominação como algo dado, naturalizado e até correto para o bem comum.
Mas vale ressaltar que o conceito de hegemonia vai além do fato de subordinação de um grupo hegemônico sobre outro. Conforme Gramsci (1984, p. 33), o fato da hegemonia pressupõe “que se deve levar em conta os interesses e as tendências dos grupos sobre o qual a hegemonia é exercida; que se forme certo equilíbrio de compromisso, isto é, que o grupo dirigente faça sacrifícios de ordem econômico-corporativa”. A hegemonia seria então uma constante disputa simbólica e consensual por espaços e posições.
Finalmente, para Gramsci, tanto na teoria, como na prática política, as lutas podem e devem ser conduzidas desenvolvendo-se o conceito de hegemonia. A guerra (antes de movimento) agora seria de posições.
Seguindo esta linha, Nicos Poulantzas, na década de 1970, faz a terceira ampliação do conceito de Estado, no Capitalismo. Agora com mais elementos de determinação, Poulantzas percebe o Estado com certa autonomia em relação à economia, aos modos de produção e às classes dominantes.
Conforme o autor grego (2000), o Estado apresenta uma ossatura material própria que não pode ser reduzida à simples dominação política. Assim o aparelho de Estado não se esgota no poder do Estado e, portanto, não é totalmente produzido pelas classes dominantes, nem por elas monopolizado.
Para uma teoria de formação do Estado, Poulantzas analisa as relações de produção como fundamentos que traçam o campo do Estado, o qual desempenha seu papel autônomo na formação dessas relações.
Daí decorre-se que o Estado age de outras maneiras e a relação das massas com o poder e o Estado, no que se chama especialmente consenso, possui sempre uma base material. Entre outros motivos, porque o Estado, trabalhando para a hegemonia de classe, age no campo de equilíbrio instável de compromisso entre as classes dominantes e dominadas (POULANTZAS, 2000).
O autor grego exemplifica:
Ora, mesmo o fascismo foi obrigado a tomar uma série de medidas positivas para as massas (reabsorção do desemprego, manutenção e às vezes melhoria do poder real de compra de certas categorias populares, legislação dita social). Que o aspecto ideológico-engodo esteja sempre presente, isto não altera o fato de que o Estado também age pela produção do substrato material do consenso das massas em relação ao poder (POULANTZAS, 2000, p. 30).
Isso significa que o Estado não produz sempre um discurso unificado, mas vários discursos dirigidos para classes distintas. Esses discursos estariam, pois, encarnados diferentemente nos diversos aparelhos estatais.
Nicos Poulantzas explica que o discurso do Estado, mesmo quando expandido aos seus aparelhos ideológicos, não esgota todo o discurso político, o qual já inclui, em sua estrutura, um poder de classe. Semelhantemente o poder ideológico não se finda nas ações do Estado e de seus aparelhos.
Assim como Max Weber diz que não é a igreja que cria a religião, mas ao contrário (a religião que cria e perpetua a igreja); também não são os aparelhos que criam a ideologia dominante. Resumindo, as relações ideológicas apresentam sempre um lastreamento que transcende os aparelhos e que já são em si relações de poder.
Finalmente, se faz necessário pensar em um Estado que tenha papel constitutivo nas relações de produção e nos poderes que elas exercem, bem como em todas as outras ligações de poder. Entretanto, são as lutas, campo primeiro das relações de poder, que sempre detêm a primazia sobre o Estado. E isso se refere não apenas às lutas econômicas, mas a todas as outras lutas presentes na sociedade, inclusive as lutas políticas e ideológicas.
Referências:
ALVERGA, Carlos Frederico Rubino Polari de. Teoria marxista do estado capitalista: uma comparação entre Gramsci e Poulantzas. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/18964/teoria-marxista-doestado-capitalista-uma-comparacao-entre-gramsci-epoulantzas/2#ixzz2heJaSw5z>. Acesso em: 13 out 2013.
GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a política e o estado moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984.
______. Cuardenos de la cárcel: Tomo 6. Puebla: Benemérita Universidad Autónoma de Puebla, 2000.
MARX, Karl. O 18 Brumário e cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder, o socialismo. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
Escrita pela jornalista Rakel de Castro, doutoranda em Comunicação pela UFPE e em Ciências da Comunicação pela Universidade da Beira Interior (UBI) / Portugal, a coluna Poder Plural aborda a análise política e sua relação com a internet feita à margem dos veículos tradicionais. Mensalmente, o espaço apresentará um Raio-X de temas debatidos no Brasil e/ou no mundo que se coadunem as questões de Participação política em sociedades democráticas e as novas formatações políticas no Brasil e no mundo.
Cidadania em Rede
Redes sociais virtuais e esfera pública ampliada
Por Nataly QueirozTecnologia, política e antipolítica
Vários institutos de pesquisa têm se debruçado sobre a relação entre eleições e redes sociais. Os próprios partidos têm contratado consultorias especializadas para entender o universo da internet e otimizar suas estratégias de intervenção no ciberespaço, o qual inevitavelmente integra e redefine os contornos da esfera pública brasileira. São diversos também os motivos que levam à necessidade do olhar aguçado sobre a rede mundial de computadores: vão desde a ocupação deste espaço por parte considerável da sociedade civil para ação política (e antipolítica) até as res -
trições orçamentárias advindas das regras eleitorais atuais. É preciso debater o quanto há de fetichização e de realidade neste cenário. Vamos por partes. Um estudo, divulgado massivamente na imprensa nacional no mês passado, realizado pela Consultoria Medialogue, demonstrou que o eleitorado, em geral, não debate qualificadamente as propostas políticas nas redes sociais. O universo da pesquisa contemplou postagens de Facebook e Twitter, que mencionassem os candidatos à presidência da república em 2014, Dilma Roussef e Aécio Neves. O período de coleta de dados foi de 5 de julho a 5 de outubro daquele ano. Foram 10 milhões de pessoas comentando política nas duas redes. A pesquisa revelou que apenas 4% dos posts se detinham a propostas de políticas dos candidatos de forma propo -
sitiva. As demais postagens eram memes e piadas, em geral, sobre os candidatos.
O destaque maior é o peso da mídia tradicional na discussão sobre política. De acordo com a mesma pesquisa, 70% das conversas nas redes eram desdobramentos de coberturas jornalísticas de televisão e rádio e, principalmente, dos debates promovidos por estas empresas de comunicação. Muitos internautas, isoladas em suas reconfortantes bolhas comunicacionais, talvez pensem que esse peso é menor. Ao que parece o jornalismo e os veículos de massa tradicionais estão mais vivos e atuantes do que imaginamos. Isto ressalta a importância de não nos distanciarmos da discussão que envolve políticas de comunicação e comunicação política, em especial em tempos sombrios como o nosso, no qual a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) sofre o achatamento do seu espaço cidadão com perdas consideráveis, dentre as quais a diluição do conselho da sociedade civil, ferindo regimentos que davam as bases para que a TV Pública não se transformasse numa TV de Governo - naturezas bem distintas. Apesar deste não ser o foco do presente artigo, a informação é de grande interesse público e não podemos nos furtar de tocar no assunto.
vAs empresas de comunicação que aparecem como as principais agenciadoras da opinião pública foram a TV Globo e a Folha de São Paulo. Logicamente, se deve considerar que o cenário político de 2014 é diferente deste ano, mas as fiéis audiências, formadas ao longo de décadas, ainda estão atentas ao discurso da mídia hegemônica. Nas redes sociais, os partidos repercutem os noticiários locais de maior audiência para dar credibilidade ao seu caminhar. E, aparentemente, o eleitorado médio continua consumindo (e desdobrando) os conteúdos políticos segundo o letramento simplificador da comunicação de massa comercial. Mesmo em estruturas mais abertas como as redes sociais.
Em todo o Brasil, os partidos têm se empenhado em promover um letramento digital para os seus candidatos e candidatas, ainda mais neste ano, no qual a internet e, especialmente, as redes sociais aparecem como uma solução para uma campanha eleitoral mais enxuta. Mas não são apenas as legendas com poucos recursos que se utilizam das redes. As candidaturas que dispõem de mais recursos também estão empenhadas em aplicar valiosas estratégias de marketing para alcançar um eleitor-consumidor, ávido pela promessa de uma vida mais segura e estável. Os bancos de dados, os algoritmos, propiciam um enorme arsenal de informações para esta guerra pelo eleitorado. Preferências e hábitos, previamente catalogados, podem moldar os discursos, adequando não apenas conteúdos e proposições políticas, como a forma como os mesmos
serão apresentados para públicos de nicho. A campanha de Obama foi emblemática neste sentido. As eleições municipais deste ano, possivelmente, serão um grande laboratório para o nebuloso pleito à presidência de 2018.
E nós, o eleitorado?
Oeleitorado brasileiro está conectado, ainda que haja desníveis em termos de acesso e de apropriações tecnológicas. Somos 94,2 milhões de usuários na internet, 80% dos acessos são móveis. São 261,8 milhões de aparelhos celulares no país. Os modelos de sociabilidade foram redefinidos pela presença destas tecnologias no dia a dia das pessoas. Isto não significa uma revolução em termos de hábitos políticos, como temos visto ao longo do artigo. Alguns estudiosos chegam a prospectar que a velha boca-de-urna será ainda mais forte devido as diversas possibilidades de uso de plataformas já popularizadas como o Whatsapp e o Messenger.
De acordo com o Facebook, o qual detém as duas empresas anteriormente citadas, são 1 bilhão de usuários conectados à plataforma de Whatsapp e 800 milhões de brasileiros vinculados ao Messenger. Alguns destes usuários possuem contas nas duas plataformas.
Neste contexto, urgente mesmo é o letramento político desta massa de usuários. A internet é um território de amplas possibilidades cidadãs. Nos seus perfis, usuários criam suas audiências, produzem conteúdo, falam sem intermediários. No entanto, essa presença não consciente do campo de forças políticas e econômicas em disputa sob o manto de atraentes interfaces tecnológicas pode ser o espaço privilegiado da antipolítica, da negação do outro, de um abominável espectro de promoção do ódio – elementos que juntos destroem as bases de uma sociedade não opressora. É preciso atenção, pois o pior tipo de prisão é aquela cujas grades não estão visíveis. Se o Brasil realmente quer mudança é preciso um olhar mais aprofundado sobre nossas práticas e sobre o nosso entorno.
Escrita pela jornalista Nataly Queiroz, professora universitária e doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco. A coluna Cidadania em Rede aborda temas relacionados à atuação política e cidadã na rede mundial de computadores, bem como as apropriações das novas tecnologias de informação e comunicação por parte da sociedade civil para a incidência em prol da democracia e da cidadania.
Comunicação Pública
O desmantelo da EBC pelo governo Temer, o que fazer?
As insistentes investidas de Michel Temer para submeter a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) ao seu mando e desmando, realmente, não cessam. A última tentativa aconteceu no dia primeiro de setembro, quando publicou no Diário Oficial da União (DOU) a Medida Provisória N° 744/2016 alterando o Estatuto Social da EBC. Essa medida, extremamente autoritária, faz com que a empresa se vincule à Casa Civil perdendo a sua autonomia. Além desse comedimento, existem outras consequências graves que ferem diretamente a comunicação pública. O texto da MP extingue o Conselho Curador, que existe para primar pelos princípios e pela autonomia da EBC, impedindo que haja interferência do governo e do mercado sobre a sua gestão e programação. Acaba com o mandato do diretor-presidente, uma vez que será nomeado e exonerado pela Presidência da República. A redação dá plenos poderes ao governo para definir produção, programação e distribuição de conteúdo no sistema público de radiodifusão. A medida muda o Conselho de Administração da EBC, incluindo mais representantes do governo (Ministérios da Educação e da Cultura).
Ou seja, o governo golpista altera completamente a Lei n° 11.652, de 07 de abril de 2008, que constituiu a EBC. Segundo Jonas Valente, trabalhador da empresa, “a MP escancara o que o governo Temer queria: extirpar o diretor-presidente indicado na época de Dilma Rousseff, acabar com a participação social na empresa e atacar os instrumentos concretos que configuravam
o seu caráter público. Mesmo que os objetivos da Lei não tenham sido alterados, e que bom que não foram, na prática a MP abre a porteira para a EBC voltar a fazer comunicação governamental”. Portanto, se restava alguma dúvida sobre a natureza autoritária do governo Michel Temer, que transita na contramão da democracia, essa medida não deixa dúvida.
Tão logo as repercussões começaram nas redes sociais, o governo voltou atrás, apenas, quanto à destituição de Laerte de Lima Rimoli da função de diretor-presidente da EBC, possivelmente com receio da resposta do Superior Tribunal Federal (STF). Essa foi a segunda vez que tentou exonerar o presidente da EBC, Ricardo Melo, que tem o direito de cumprir o seu mandato de quatro anos de acordo com o Art. 18, parágrafo segundo da Lei N° 11.652/2008. A primeira investida de remoção foi em maio desse ano, vindo a ser barrada por um Mandado de Segurança (petição nº 26797/2016) que garantiu a Melo a permanência no cargo.
É importante compreender que os desmandos ferem os direitos humanos, a democracia e a diversidade de opiniões e de pontos de vista. Para o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), “acabar com o instrumento de participação da sociedade na Empresa de Comunicação Pública – que era constituído por artistas, intelectuais e representantes do movimento social brasileiro – é uma violência e mostra que o governo golpista não pretende estabelecer qualquer diálogo com a sociedade. (...) fica clara a prática de cerceamento à liberdade de expressão por parte da gestão Temer”.
Diante desses acontecimentos, cabe a pergunta: o que fazer para que a comunicação pública prevaleça? Primeiro, a EBC precisa comunicar aos brasileiros e
brasileiras que ela existe e quais os seus propósitos. O cidadão pode até ler algumas dessas matérias na internet, que relataram o episódio em voga, mas certamente não compreende os prejuízos a vida social como também nem sabe que empresa é essa. Assim, a conjuntura chama atenção para o imperativo de buscar alternativas urgentes de comunicação social com o intuito de informar o que é a EBC. Como instituição da democracia brasileira, criada em 2007, nestes quase dez anos de existência os seus esforços de divulgação ainda são bastante tímidos.
Através de grandes esforços, a EBC pretende desenvolver estratégias de comunicação com a sociedade para explicar a finalidade do sistema público de comunicação, assim como instruir que “(...) a mídia privada brasileira não progrediu na tarefa (que nunca assumiu) de fazer as pessoas do Brasil terem vez e voz” (MORAES, 2009). Os esclarecimentos podem começar, por exemplo, através de uma difusão informativa – com maior cobertura possível – nas rádios comunitários e nos jornais de bairro. Deste modo, para o povo defender a permanência da EBC como de caráter público, carece de ser instruído e educado, inicialmente, com relação à diversidade, cidadania e valores culturais.
Outra iniciativa, que pode funcionar muito bem, é ocupar os espaços disponíveis na rede dos movimentos sociais espalhados pelo país e que apoiam a luta. As ocupações podem se dá nos inúmeros eventos locais e regionais espalhados pelas cidades e nas escolas e universidades da rede pública, onde pessoas engajadas possam falar para cidadãos alheios acerca da existência da EBC e da sua relevância para o desenvolvimento social. Nestes encontros, os presentes poderão vir a ficar cientes dos seus propósitos (Decreto 6.689/2008, Art. 3°), que são:
I - oferecer mecanismos para debate público acerca de temas de relevância nacional e internacional;
II - desenvolver a consciência crítica do cidadão, mediante programação educativa, artística, cultural, informativa, científica e promotora de cidadania;
III - fomentar a construção da cidadania, a consolidação da democracia e a participação na sociedade, garantindo o direito à informação, à livre expressão do pensamento, à criação e à comunicação;
IV - cooperar com os processos educacionais e de formação do cidadão;
V - apoiar processos de inclusão social e socialização da produção de conhecimento, garantindo espaços para exibição de produções regionais e independentes;
VI - buscar excelência em conteúdos e linguagens e desenvolver formatos criativos e inovadores, constituindo-se em centro de inovação e formação de talentos;
VII - direcionar sua produção e programação pelas finalidades educativas, artísticas, culturais, informati-
vas, científicas e promotoras da cidadania, sem com isso retirar seu caráter competitivo na busca do interesse do maior número de ouvintes ou telespectadores;
VIII - promover parcerias e fomentar produção audiovisual nacional, contribuindo para a expansão de sua produção e difusão; e
IX - estimular a produção e garantir a veiculação, inclusive na rede mundial de computadores, de conteúdos interativos, especialmente aqueles voltados para a universalização da prestação de serviços públicos.
O governo que derrubou a presidente da República não vai sossegar enquanto não exterminar por completo com a comunicação pública independente. É fato, a nova MP publiciza um governo patrimonialista. Portanto, “(...) é intrinsecamente personalista, tendendo a desprezar a distinção entre as esferas pública e privada” (CAMPANTE, 2003), além de qualificar e definir um tipo específico de dominação. Agora sim, a feição das artimanhas políticas tem nome e já pode ser reconhecida no governo de Michel Temer.
Voltando a falar nas ações combativas, a Empresa Brasil de Comunicação tem ainda a capacidade de vivenciar sua principal essência, a comunicação pública, afora da gestão da TV Brasil, TV Brasil Internacional, Agência Brasil, Radioagência Nacional e do sistema público de Rádio, composto por oito emissoras. Significa dizer que a instituição é capaz de ficar mais próxima do cidadão, criando alternativas educativas, informativas e dialógicas para externar, sistematicamente, que nasceu da mobilização social e com a participação da sociedade. Agora, é hora de marcar território com todos os recursos legais e conhecimentos de que dispõe. Deste modo, a EBC precisa se apresentar para cada brasileiro e brasileira.
Referências:
CAMPANTE, Rubens Goyatá. O patrimonialismo em Faoro e Weber e a sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Scielo Brasil. Disponível:< http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S0011-52582003000100005>. Acesso em: 20 ago. 2016.
FNDC. Repúdio ao desmonte da EBC pelo governo Temer. Disponível em: < http://www.fndc.org.br/noticias/repudioao-desmonte-da-ebc-pelo-governo-temer-924739/>. Acesso em: 02 set. 2016.
MORAES, Ivan. Comunicação: o sistema público, o privado e o estatal. Disponível em: < http://ombudspe.org.br/artigos/ comunicacao-o-sistema-publico-o-privado-e-o-estatal/>. Acesso em: 03 set. 2016.
Jornalismo Independente
Jornalismo e financiamento coletivo
Por Karolina CaladoAs práticas coletivas e a promoção do bem
comum
Otexto desse mês objetiva uma reflexão sobre as práticas sociais que são, literalmente, desenvolvidas em coletividade. É com base na ótica da cooperação que o consumo, o negócio e o jornalismo têm sido idealizados, ultimamente.
O modelo de práticas coletivas é usado por diferentes grupos em nossa sociedade. Quem nunca pegou um Uber, comprou ou vendeu algum produto em sites como OLX, Enjoei ou Mercado Livre, ou ainda se reuniu com milhares de pessoas em uma “vaquinha” para financiar algum projeto, seja ele cultural, social ou jornalístico?
Pois bem, facilitadas pela internet, essas práticas se desenvolvem em nível crescente, tornando-se cada vez mais explícita a união de pessoas que agem de modo colaborativo, já que está em pauta pertinentes temas que levam em consideração a permanência do ser humano na terra com qualidade de vida, a exemplo do consumo consciente, a troca de produtos, a crise econômica global e local e a limitação dos recursos naturais. Sendo, portanto, urgente a conscientização e mudança de hábitos cotidianos
tanto dos indivíduos, na escala micro; quanto dos detentores do poder, na escala macro.
O sentido de coletividade também tem ganhado espaço no modus operandi do jornalismo, ou seja, no fazer jornalístico, a partir do envio de fotos, vídeos e, ainda, no momento em que diferentes indivíduos se tornam fontes, por meio de seus blogs ou redes sociais, ou mesmo quando contribuem com o financiamento da mídia. Esses agrupamentos de pessoas em prol de uma causa foram responsáveis pelo surgimento de conceitos como crowdsourcing e crowdfunding (Howe, 2006 apud CARVALHO e ANDRADE, 2015). O primeiro se refere à multidão de fontes disponíveis na internet e, o segundo, à multidão que financia algum projeto.
Na lógica crowdfunding, surgem plataformas como Kickstarter, atualmente, a maior plataforma no âmbito internacional. Somente em 2014, ela conseguiu arrecadar US$ 1 bilhão. No Brasil, a principal plataforma é o Catarse, no ano de 2015, teve 2 mil projetos financiados e, de 2011 até 2015, já totalizaram R$ 35 milhões arrecadados em campanhas bem-sucedidas. Recentemente, a proposta recorde na plataforma foi a “Jornada pela Democracia - Todos por Dilma” que buscou juntar dinheiro para que a presidenta afastada Dilma Rousseff” pudesse viajar por todo o país, denunciando o golpe em curso no Congresso Nacional que veio a derrubá-la da Pre-
sidência da República, em 31 de agosto do presente ano. Essa campanha conseguiu reunir R$ 791.996,00 atingindo 158% da meta, na qual recebeu a colaboração de 11.471 pessoas.
No jornalismo, inúmeras práticas de financiamento coletivo têm surgido frente às distintas problematizações que reverberam no jornalismo enquanto instituição e enquanto profissão. Entre os diversos problemas, eu citarei apenas dois: primeiro, há uma ideia de crise nas redações que gerou e gera medo entre os jornalistas, precarização do trabalho e demissão em massa; segundo, há uma crise de credibilidade do público que tem refletido na queda de legitimidade dos veículos como porta-voz da verdade dos fatos. Nessa perspectiva, vê-se, constantemente, protestos enfatizando o descontentamento do povo em relação à grande mídia: carros de emissoras já foram queimados por manifestantes, jornalistas foram hostilizados e impedidos de fazer cobertura, além de vários protestos defronte a emissoras como a Globo.
Diante do cenário apresentado, outras práticas com diferenciadas políticas têm se desenvolvido no jornalismo. A mídia financiada pelo coletivo se diferencia de outras já conhecidas por todos nós, justamente por exercer o jornalismo de forma independente e se preocupar com a tematização da causa em si. É por acreditar nesse tipo de produção que tantas pessoas se propõem a fazer doações e, assim, promover a viabilização de muitos projetos jornalísticos.
Dentre os diversos exemplos de sucesso internacional de financiamento a partir da coletividade, eu citarei apenas alguns. Em 2003, US$ 15 mil foram levantados pelo repórter Chris Albritton junto ao público do seu blog back to Iraq. Esse dinheiro foi pedido por Albritton no intuito de fazer uma cobertura alternativa em relação à grande mídia (DONINI, 2014). Antes disso, o Oh My News, um jornal coreano criado em 2000, recebeu várias colaborações de seus leitores que doavam ao veículo a partir das narrativas que mais gostassem. Há também, o jornal de El Salvador, El faro, o qual cobre temas de impunidade, violência, corrupção, desigualdade ou imigração. No final de 2015, ele conseguiu US$ 26 mil de doação. Recentemente, jornalistas desse veículo ganharam o “Prêmio García Márquez de Excelência”, um reconhecimento pelo trabalho feito com “independência, integridade e compromisso com os ideais de serviço público do jornalismo”, segundo o site.
No Brasil, além da Agência Pública, que articula um excelente trabalho investigativo, disponibilizando suas matérias e dados para outros veículos, há vários outros coletivos que desenvolvem suas matérias jornalísticos a partir da colaboração financeira e do compartilhamento de ideias de interesse público. Esses veículos alternativos se baseiam em temas como direitos humanos, escassez dos espaços urbanos para
as pessoas, política, trabalho escravo, falta de água, entres outros temas caros a nossa sociedade. Inúmeros são os casos que obtiveram sucesso nas plataformas de financiamento coletivo. A título de ilustração, eu cito: Cidade para as Pessoas, Arquitetura da Gentrificação, Diário do Centro do Mundo, Aos Fatos e Jornalistas Livres.
Conforme discussão brevemente apresentada aqui, as práticas coletivas são necessárias à sociedade por trazer o homem para o centro da responsabilidade e impulsioná-lo a agir em prol do bem comum. São necessárias também ao jornalismo, porque tonam o indivíduo parte do processo, possibilitando que mais informações sejam coletadas e que sejam feitas doações capazes de viabilizar a produção independente. Esses coletivos midiáticos passam a não ter uma dependência em relação aos anunciantes, sejam eles governamentais ou comerciais. No entanto, apesar de sabermos dos números em evolução das práticas citadas, temos a consciência de que as mudanças precisam acontecer de modo mais efetivo na escala macro, com governos e corporações comprometidos com a coletividade. Em relação ao jornalismo, é evidente o poder de visibilidade em massa dos grandes grupos midiáticas. Não podemos achar que o financiamento coletivo salvará o jornalismo no curto prazo. É importante olharmos para o financiamento coletivo como uma possibilidade com o potencial incrível de tornar a viabilidade econômica de uma comunicação mais democrática.
Referências:
Artigo sobre o crowdfunding no site da ABRAJI. Disponível em: < http://www.abraji.org.br/?id=90&id_noticia=3387 > Acesso em 08 de agosto de 2016.
CARVALHO, J, M; ANDRADE, S, S. Quem paga a conta? As possibilidades do crowdfunding para o jornalismo nas indústrias criativas. In: Revista Brasileira de Ensino de Jornalismo, Brasília, v. 5, n. 17, p. 202-218, jul./dez. 2015
ISSN: 1981-4542. Disponível em: http://www.fnpj.org.br/ rebej/ojs/index.php/rebej/article/viewFile/431/259 Acesso em 29 de junho de 2016.
DONINI, Marcela. A vaquinha não foi pro brejo: como o financiamento coletivo pode ajudar o jornalismo. Porto Alegre: Farol, 2014.
Karolina Calado é doutorando do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. Nesta coluna, proponho uma discussão acerca das questões que envolvem a economia política dos meios de comunicação, especialmente a partir da internet e dos modelos de financiamento coletivo.
Mídia Fora do Armário
Jornalismo e construções identitárias
Por Rui Caeiro“Uma vez fui para uma reunião… era uma reunião para saber o que ia ser chamada na capa do jornal no outro dia. Aí, todo o mundo foi chamado pelo próprio nome. Quando chegou a minha vez: «e tu nega, o que é que tem?». Depois eu cheguei pra ele e pedi que, numa reunião de trabalho, em que todo o mundo tem nome… que me chamasse pelo meu. Essa pessoa parou de me falar! E eu fiquei com medo de ser demitida. Lembro que há alguns anos vim trabalhar com um turbante e perguntaram se eu ia vender acarajé. A primeira vez que ganhei tal prémio, teve gente que disse que eu dormia com o chefe porque era a única maneira de explicar o fato de eu ter conquistas…”
“Eu nunca tive problema por ser mulher, mas já tive por ser gorda: teve uma matéria que eu queria muito fazer e não deixaram porque «eu sou gordinha e não ia aguentar fazer caminhada»”.
“Há muito tempo atrás a gente teve um colega homossexual. E era assim: em plena redação, se o telefone tocava para ele, já vinha a piadinha em voz alta, na redação todinha. Isso marcou ele, ele é meu amigo até hoje e isso o marcou”.
Estas falas, de jornalistas cujos nomes preferimos não revelar para tentar escapar à individualização das violências relatadas, podem ser percebidas como denúncia desse problema estrutural a que o Jornalismo não escapa: as relações de poder que legitimam algumas falas e ações como ‘naturais brincadeiras’, sendo outras apontadas como ‘frescuras’, discurso de vitimização de quem leva a vida demasiado a sério. Como afirma Djamila Ribeiro, filósofa e feminista negra, “a partir do momento que a gente é morto, que é agredido, que a
gente não tem os nossos direitos garantidos, a gente é vítima sim de uma sociedade desigual. Mas a partir do momento que a gente fala e que a gente cobra nossos direitos, a gente é um sujeito de ação. E acho que as pessoas que estão no poder têm dificuldade de aceitar que a gente foi vítima, porque, a partir do momento que você reconhece, você precisa reparar. Você precisa saber qual é o seu lugar, qual é a sua responsabilidade em reparar aquilo. Então é muito mais fácil inverter o discurso e dizer que você está se vitimizando, do que eu entender qual é o meu papel para te manter naquele lugar de vulnerabilidade” (https://www.youtube.com/ watch?v=UkEXfXBvJ3w).
Essas construções funcionam assim como naturalização de opressões, deslegitimação da fala daquelas/es que narram essas experiências, recusa de perceber o outro não apenas como capaz de falar por si, mas também sobre os dispositivos que tentam empurrar as vivências e denúncias para o silêncio. Falamos pois de construções socio-históricas concretas (ou seja, não naturais, mas aprendidas e reproduzidas, sem muitas vezes nos apercebermos) que têm nome: racismo, LGBTfobia, classismo, machismo, entre outras. A denúncia desta última impulsionou o movimento ‘Jornalistas contra o assédio’ (https://www.facebook.com/jornalistascontraoassedio/), que nas redes sociais deu, também, espaço ao relato de várias profissionais: “«Equiparei o teu salário ao ‘dele’». ‘Ele’ tocava UMA editoria, enquanto eu comandava CINCO”, “Quando eu trabalhava com política e frequentava eventos do tipo, passei a usar aliança para ter um pouco de paz”, “«Mulher no rádio tem que ter voz de cama. Tu tem voz de cama»”, “«Com esse decote você vai longe» (não tinha decote)”.
70 anos de existência,
2 mulheres na presidência
Maria José Braga foi eleita, em agosto deste ano, para a presidência da Federação Nacional de Jornalistas (FENAJ). Esta é apenas a segunda vez, desde que a instituição foi fundada (1946), que tal cargo é ocupado por uma mulher (a primeira foi em 1998, por Beth Costa). Refletir sobre esse fato é importante. É possível conjecturar um país em que os cargos diretivos sejam ocupados, quase exclusivamente, por mulheres? Conseguiremos perceber alguma ‘naturalidade’ nessa eventual exclusão de homens? Não se trata aqui, obviamente, de afirmar que um gênero ou outro terá mais capacidade de ocupar determinado cargo mas, pelo contrário, de pensar os diferentes obstáculos que são colocados a um e a outro (a existência de pessoas que não se enquadram dentro desse modelo binário – ou homem ou mulher – não será, claro, sequer reconhecida nessa equação). Nesse sentido, a atual presidente da FENAJ considera que a sua eleição tem, “também, um valor simbólico significativo, pois as relações de poder no jornalismo são marcadas pelo machismo existente no Brasil”.
O machismo de que Maria José Braga fala é estrutural, ou seja, ele não existe apenas nas ações violentas que determinado sujeito exerce (verbal ou fisicamente), antes é constituinte de uma ordem social que delimita quais são os espaços reservados a diferentes sujeitos e em que termos eles podem existir neles. Ordem social que regula as produções de conhecimentos, condicionadas por uma ‘hierarquia de credibilidade’: quanto mais positivamente valoradas as identidades e posições sociais dos sujeitos, mais provável é que suas produções sejam consideradas legítimas, verdadeiras. Em verdade, as posições que os sujeitos ocupam não podem ser pensadas apartadas de suas identidades. A análise de jornais europeus por Van Dijk (2005) dá-nos conta disso mesmo. O autor afirma que são poucos os veículos que “têm jornalistas das minorias étnicas, sem falar de minorias em posições editoriais mais altas. Neste aspecto, os media (tanto de esquerda como de direita) são pouco diferentes de outras instituições de elite e de negócios corporativos, que bloqueiam o acesso e a promoção dos “estrangeiros” com argumentos transparentes sobre a “falta de qualificações” ou os “problemas culturais” que culpam basicamente a vítima”.
Em uma sociedade cientificista, importa pensar sobre que qualificações são consideradas relevantes para produzir conhecimento – é a Técnica e a Ciência (ocidentais, maioritariamente), afirmadas por muitos como imparciais (como se fosse possível pensar qualquer produção afastada do sujeito produtor), que, normalmente, garantem tais qualificações, assim relegando para a sombra narrativas várias, construídas por diferentes sujeitos em diferentes espaços –, mas também sobre quem tem acesso a tais qualificações. Se elas são obtidas em espaços formais (como
a escola), não podemos deixar de notar, para além dessa (falsa) exclusividade de aprendizagem, a exclusão educacional que isso acarreta. Luma Andrade (2012) reflete sobre esse fenômeno em relação a pessoas trans: “os(as) educandos(as) são simbolicamente ou não submetidos, por integrantes da comunidade escolar, a tratamentos constrangedores até que não suportem conviver naquele espaço e o abandonem. Esta estratégia, não por acaso, exime os gestores de oficializar o ato de expulsão por temer questionamentos e intervenções externas que possibilitem um recuo na decisão”.
E o jornalismo?
Se estruturas de opressão, ao classificarem e hierarquizarem corpos, organizando-os nos espaços próprios a cada grupo (mulher no lar, travesti na prostituição, negro na prisão, etc.), condicionam a construção de conhecimentos em nossa sociedade, importa, mais uma vez, sublinhar que o Jornalismo (da grande mídia ou não, ainda que no caso da primeira seja fulcral, com mais força, tentar perceber como tais relações são moldadas pelo capital), enquanto espaço de (re)produção de conhecimento, existe, e é resultado (como o movimento Jornalistas Contra o Assédio deixa perceber), nessa/dessa estrutura social.
Insistir em um Jornalismo que se recusa a perceber (sequer considerar) dessa forma, fundamentado em uma imparcialidade que não é desvinculada de marcadores sociais como os aqui apontados (gênero, raça, classe, etc.), que não existe sem a subjetividade que constitui os produtores-consumidores e consumidores-produtores de significados, que rejeita ocupar uma posição de ação para além das transcrições de ‘fontes credíveis’ (que definem quais são os consensos e dissensos possíveis), que personaliza opressões e problemas sociais, é mantê-lo numa confortável (e imparcial) posição de despolitização. Como ela pode ser ultrapassada, se assim desejada? Essa é a pergunta que se impõem, tanto aos/às profissionais da área como a toda a sociedade.
Referências:
ANDRADE, Luma Nogueira de. Travestis na escola: assujeitamento e resistência à ordem normativa. Tese de doutorado. Fortaleza: Doutorado em Educação. Universidade Federal do Ceará, 2012. 278 p.
VAN DIJK, Teun. Discurso, Notícia e Ideologia: Estudos na Análise Crítica do Discurso. Porto: Campo das Letras, 2005.
Assinada pelo jornalista Rui Caeiro, mestre em Comunicação pela UFPE, a coluna ambiciona instigar reflexões que se debrucem sobre as relações que se estabelecem entre produção midiática/jornalística e a construção e vivência de identidades consideradas abjetas em nossa sociedade. O foco será em sexualidade e gênero.
Opinião
O Brasil busca novos modelos
Por Marconi Aurélio e Silva
Em 1904, a “Comissão de Estudos de Minas e Carvão de Pedra do Brasil” foi instituída e coordenada pelo geólogo norte-americano Israel Charles White. Havia expectativa do País encontrar em seu território reservas de hidrocarbonetos (petróleo e gás). À época, o relatório da “Missão White” foi taxativo: “[...] as possibilidades são todas contra a descoberta de petróleo em quantidade comercial em qualquer parte do sul do Brasil”.
Passados os anos, aumentou-se a dependência brasileira pelo petróleo importado. Getúlio Vargas buscou, então, desenvolver o setor, durante o Estado Novo, mas só o efetivou em 1951, a partir da criação da PETROBRAS. Com ela, implementou-se também o monopólio estatal no setor, a exemplo de outros países. Não possuindo a tecnologia necessária para realizar prospecção, a Companhia contratou o ex-geólogo da Standard Oil of New Jersey, Walter Link. Os resultados apresentados por Link, em 1960, concluíram que os prováveis recursos naturais estariam, apenas, no Baixo Amazonas e em Sergipe. Ambas hipóteses, foram descartadas três meses depois.
Sob o Governo de João Goulart, em 1963, houve articulação alternativa com a então União Soviética. A PETROBRAS contratou, assim, os especialistas russos Bakirov e Tagiev, que apresentaram grandes possibilidades de se encontrar reservas offshore (sob o oceano) e em diferentes estados brasileiros. Para viabilizá-las, sugeriu-se a aproximação do Brasil com a Índia, visando a criação de uma espécie de centro de pesquisa, como os então existentes naquele tempo: o Instituto de Petróleo de Moscou e o Instituto Científico e Tecnológico de Petróleo da Índia. Criou-se, naquele mesmo ano, o CENPESPETROBRAS.
Em 1964, o regime militar assumiu a Presidência da República e implementou diferentes parcerias tecnológicas, sobretudo, com universidades e empresas da América do Norte, França e Inglaterra, visando aprimorar o setor. A partir das crises do petróleo de 1973 e 1978 o drama nacional se ampliou, tamanha era a nossa dependência internacional. É que os hidrocarbonetos produzem mais de 2.000 subprodutos, essenciais aos padrões de desenvolvimento atual, tais como: cimento, plásticos, fertilizantes, isopor, tecido sintético, combustíveis estratégicos etc.
Geisel, que tinha sido presidente da Companhia até 1973, tornou-se o penúltimo presidente do regime militar (1974-1979). Em 1973, produzíamos apenas 21% do que consumíamos e, em 1979, eram só 14,3%. Nesse cenário, a produção de etanol derivado da cana de açúcar surgiu como alternativa energética e tornou-se a escolha política de então (PRÓALCOOL). Isso resolveria o problema do
abastecimento temporariamente, mas, também consolidaria a produção latifundiária na Região Nordeste, sob inspiração da “Revolução Verde”, região onde justamente tinham surgido os movimentos de luta por Reforma Agrária, combatidos pelo regime militar.
Apesar de afirmar-se que a década de 1980 foi perdida, com o esforço tecnológico da PETROBRAS intensificado naquele tempo, chegou-se ao fim dos anos 1990 com produção nacional de 53% do consumo interno. Importante notar que, no cenário de reorganização da economia de mercado no Brasil, a dependência internacional desse recurso e o problema das reservas cambiais sempre foram temas sensíveis e gargalos estruturais.
Nos anos da liberalização econômica houve privatização de empresas estatais e a redução do Estado. Apesar da Companhia não ter sido vendida em sua totalidade pelo Governo FHC, houve flexibilização do mercado e quebra de seu monopólio de exploração, produção e refino. Com isso, o setor se reorganizou e, de uma reserva comprovada de 1,3 bilhões de barris, em 1980, passou-se para 15,1 bilhões de barris, em 2011 (crescimento de 1.162%).
É importante notar que em 2007 foram anunciadas as primeiras descobertas de reservas no Pré-Sal, o que daria autossuficiência e ampla capacidade de produção brasileira, pelo menos até o fim do século XXI, tornando o País um exportador líquido de aproximadamente dois milhões de barris por dia, já em 2020. Com o barril de petróleo valendo algo em torno de US$ 70,00 em 2007, projetava-se a injeção de cerca de US$ 51 bilhões / ano.
Para explorar o Pré-Sal, entretanto, foi criada nova empresa, que restabelecia o monopólio estatal sobre tais reservas. As negociações nas bolsas de valores do mundo, com ações da nova empresa petrolífera brasileira, registraram a maior captação financeira da história do capitalismo!! As cifras bilionárias de investimento plurianual davam conta da pretensão: à época, figuravam entre os três maiores investimentos realizados no mundo inteiro. Vale lembrar que no fim do 2º Governo Lula, o setor de Petróleo e Gás representava cerca de 10% da economia nacional, a maior parte do investimento tecnológico e de engenharia à época e que uma em cada 10 empresas do Brasil era prestadora de serviços ou fornecedora de produtos à PETROBRAS.
Por outro lado, em 2009, houve a formalização da articulação política do BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China), no esteio da estratégia de Cooperação Sul-Sul, sendo a África do Sul também incluída no grupo, em 2011, tornando-se BRICS.
No fim do 2º Governo Lula foi sancionada a Lei n. 12.351/2010, que tratou do tema da partilha de produção em áreas do pré-sal e criou o Fundo Social
(FS), destinado às próximas gerações - algo parecido com o que a Noruega fez nas últimas décadas, o que a tornou um dos países com melhores IDH e Coeficiente de Gini do mundo. No 1º Governo Dilma, foi sancionada a Lei n. 12.858/2013, que tratava da destinação, para educação e saúde, da parcela de participação no resultado ou compensação financeira da exploração do petróleo e gás natural. Entretanto, tal lei teve os 149 vetos da presidente Dilma derrubados pelo Congresso Nacional. Além do mais, um dia após a sua sanção, foi questionada a sua constitucionalidade pelos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo junto ao Supremo Tribunal Federal.
Em 2013, Edward Snowden tornou público o escândalo de espionagem realizada pela agência norte-americana, cujos alvos principais no Brasil eram a presidente Dilma Rousseff e a PETROBRAS, às vésperas das rodadas licitatórias da Agência Nacional de Petróleo (ANP) justamente nos campos do Pré-Sal. As empresas vencedoras daqueles leilões, à época, foram chinesas.
Em 2015, o BRICS anunciou a criação de seu Banco de Desenvolvimento, voltado aos países emergentes, numa clara afronta ao sistema financeiro internacional, oriundo de Bretton Woods. Além do mais, instituiu a rede de universidades BRICS.
Foi nesse contexto que surgiu a “Operação Lava a Jato”, que identificou esquemas de corrupção e desvio de dinheiro na PETROBRAS e em seus fornecedores. A reboque desse escândalo, viu-se um uso estratégico e seletivo de informações, no melhor estilo dos “meios quentes e frios”, outrora descritos pelo teórico da comunicação Marshall McLuhan. Diuturnamente, as notícias limitaram-se a descredibilizar a estratégia geopolítica então adotada, a saber:
(1) Compra da refinaria de Passadena (EUA) –sabe-se que a maior parte do comércio internacional se dá entre matriz e filiais. Sendo os Estados Unidos o maior consumidor global de petróleo, a compra de uma refinaria naquele país tinha, sobretudo, objetivo de conquistar espaço no mercado, através de subsidiária, por onde seriam vendidos derivados refinados no Brasil, a partir do petróleo do Pré-Sal.
(2) Investimentos do BNDES no Porto de Mariel (Cuba) – O investimento brasileiro em Cuba trata-se de estratégia de posicionamento logístico internacional, na América Central, o que permitiria ao Brasil escoar produtos pelo novo Canal da Nicarágua, que está sendo construído pela China, como alternativa ao monopólio do Canal do Panamá. Isso permitiria acesso privilegiado aos mercados da Ásia.
(3) Investimento nas refinarias Abreu e Lima (PE), Premium I (CE) e Premium II (MA) – Mesmo fora do principal eixo consumidor nacional (Sudeste), estas permitiriam que pelo menos mais um milhão de barris de petróleo por dia fossem refinados
no Brasil, com parte significativa disto sendo exportada, já que estariam geograficamente mais próximas do Atlântico Norte e do Canal da Nicarágua.
Rapidamente, os EUA reataram as alianças diplomáticas com Cuba; estreitaram as negociações com as FARC na Colômbia; além de reaproximarem-se da Argentina (que recentemente teve aprovada pelas Nações Unidas a expansão de suas fronteiras marítimas). Com a “Guerra ao Terror” concentrada neste momento na Europa, é chegado o tempo de reposicionar-se no Atlântico e Pacífico Sul, reconquistando a influência sobre parceiros que nos últimos anos priorizaram outros hemisférios. Isso se torna natural em um momento de cansaço político e baixa inovação de governos populistas que dominaram a América do Sul desde os anos 2000.
Além disso, a própria criação da “Aliança para o Pacífico”, no ano de 2012, envolvendo Chile, Colômbia, Peru e México, praticamente isolaram a parte leste da América do Sul e inviabilizaram o escoamento de bens por território, no que ainda poderia se esperar da “Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana” (IIRSA), destinada a integrar fisicamente o subcontinente.
Mantendo desunida a região seria mais fácil exercer influência política, econômica e cultural.
Com a instabilidade política brasileira instaurada e sucessivas denúncias de escândalos de corrupção, os tempos para a mudança de rumo amadureceram. E ocorreram a partir da improvável, mas efetiva, reeleição de Dilma Rousseff. Desde os primeiros meses de seu segundo mandato, o desgaste com o Congresso Nacional se aprofundou, culminando com a ruptura de seu vice-presidente, Michel Temer, em outubro/2015; e, o avanço em seu processo de impedimento, levado adiante pelo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, no início de 2016. A mudança de rumo de um governo de “centro-esquerda” eleito - por falta de apoio parlamentar, inabilidade e erros políticos da presidente - retirou do Planalto Dilma e sagrou Temer à frente do Poder Executivo brasileiro, devido à associação de seu partido (PMDB) com a então oposição (PSDB, DEM, PPS, PSB, entre outros) ao governo do qual ele mesmo fazia parte. Menos de um mês depois de Dilma ser impedida, o próprio deputado Eduardo Cunha (RJ) teve o seu mandato cassado na Câmara Federal, por quebra de decoro parlamentar.
Um governo mais liberal certamente seria oportuno àqueles que defendem mudança na trajetória e estratégia geopolítica do Estado brasileiro, pois:
(1) Isso limitaria articulação internacional autônoma e soberana dos países emergentes (notadamente dos BRICS, que enfrentam diversas dificuldades desde 2015 relativas a políticas financeiras implementadas nos países centrais do sistema inter-
nacional, bem como, explicitação de problemas de transparência, corrupção e desmandos com a coisa pública).
(2) Também inviabilizaria, como de fato já o está fazendo, a política de exigência de conteúdo tecnológico local mínimo, voltada a alavancar as competências nacionais e a transbordar essas expertises para outros setores econômicos.
(3) Por fim, tiraria das licitações bilionárias realizadas pelo setor as construtoras brasileiras, como Odebrecht, OAS etc., apontadas como a origem da corrupção (e não o sistema político ou a falta de regulamentação do lobby ou advocacy no Brasil!!). Isso abriria o mercado nacional para que empresas multinacionais pudessem participar de licitações e, assim, adquirirem e dominarem a tecnologia de exploração em águas profundas e ultra-profundas cujo Brasil, nesse momento, é o maior detentor mundial.
É justamente isso o que defende o plano “Uma Ponte para o Futuro”, que Temer propôs em outubro de 2015, em sua ruptura com o governo. Lê-se, à página 18 do referido documento:
d) executar uma política de desenvolvimento centrada na iniciativa privada, por meio de transferências de ativos que se fizerem necessárias, concessões amplas em todas as áreas de logística e infraestrutura, parcerias para complementar a oferta de serviços públicos e retorno a regime anterior de concessões na área de petróleo, dando-se a Petrobras o direito de preferência;
e) realizar a inserção plena da economia brasileira no comércio internacional, com maior abertura comercial e busca de acordos regionais de comércio em todas as áreas econômicas relevantes – Estados Unidos, União Europeia e Ásia – com ou sem a companhia do Mercosul, embora preferencialmente com eles. Apoio real para que o nosso setor produtivo integre-se às cadeias globais de valor, auxiliando no aumento da produtividade e alinhando nossas normas aos novos padrões normativos que estão se formando no comércio internacional;
Vale lembrar que, em 2016, a nova estatal Pré Sal Petróleo S/A inicia a venda da parcela de petróleo que cabe ao governo, como previsto no contrato de partilha firmado em todos os blocos do Pré-Sal, entre o litoral do Espírito Santo e de Santa Catarina, previsto para alcançar cifras de 300 mil a 700 mil barris / dia no fim da próxima década.
Em meio a todas essas complexas realidades, no dia 31 de março de 2016, foi realizada a assinatura do “Memorando de Cooperação entre o Governo da República Federativa do Brasil e Governo dos Estados Unidos da América sobre o Desenvolvimento de Infraestrutura” que, entre outras prioridades, foca projetos de infraestrutura de padrão internacional e financiamentos de longo prazo. O Memorando bus -
ca envolver ainda outras iniciativas bilaterais como a “Parceria em Transportes Brasil-Estados Unidos”, a “Parceria em Aviação Brasil-Estados Unidos” e o “Diálogo Estratégico em Energia Brasil-Estados Unidos”, reforçando o interesse de reaproximação entre o Atlântico Norte e o Sul.
Assim, à luz dos acontecimentos políticos e midiáticos dos últimos meses no Brasil, é curioso notar que a “Operação Lava Jato” tenha arrefecido sua exposição pública logo após a divulgação da lista com mais de 200 nomes de políticos, oriundos de 25 partidos diferentes, que também receberam “doação” de dinheiro por parte da construtora Odebrecht.
Num contexto de práticas de corrupção em diversos governos democráticos de países emergentes, vêm à tona, simultaneamente, crises políticas internas, sobretudo no caso dos BRICS, demonstrando o esvaziamento da política acerca dos valores comunitários e a crescente influência do poder econômico internacional sobre instituições nacionais e a burocracia estatal. Também em democracias ocidentais mais desenvolvidas, observa-se profunda crise ética.
Para além das questões econômicas que se interconectam com as de política, a questão que aqui se coloca é sobre qual futuro de País se pretende seguir e se os atuais modelos (estado social e estado liberal) dão realmente conta das novas exigências da população por crescente participação política, democratização dos meios de comunicação, controle social do poder e inclusão de todos. Não seria oportuno gestar pacto por um novo modelo de democracia? Não seria o caso de estabelecer-se nova Constituinte para ajustar os equívocos de nossa democracia e estabelecer as necessárias reformas política, fiscal e tributária, em amplo diálogo com a sociedade civil? Será que além de derrubar governos, não seria necessário proporcionar limpeza ética em nossas instituições e sociedade, com maior transparência, mecanismos de controle e grande esforço de educação à cidadania?
Pode ser que nossas ricas reservas de petróleo (recursos finitos) sirvam mais do que apenas enricar alguns e poluir o meio ambiente. Oxalá propicie salto qualitativo no desenvolvimento do Brasil, começando por suas estruturas político-econômicas e de educação cidadã para construirmos sistema e Estado mais justos!!
Marconi Aurélio e Silva é Doutor em Ciência Política (UFPE), coordenador do Bacharelado em Relações Internacionais no Centro Universitário Tabosa de Almeida – Asces / Unita, líder do “Projeto BRICS”Laboratório de Práticas em Relações Internacionais (LAPRI) e pesquisador associado do Instituto Ásia (UFPE).
Na Tela da TV
Jornalismo, linguagem e representação social
Por Mariana BanjaAprenda a fazer um ovo cozido durante o julgamento do impeachment
No dia 11 de maio deste ano, foi realizada a sessão de votação para a admissibilidade do impedimento da presidenta eleita Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados. O evento foi transmitido para todo o país por vários canais de televisão, públicos e comerciais, dentre eles a TV Globo. Já no dia 29 de agosto, data em que o Senado Federal, dando continuidade ao processo, deu início ao julgamento da presidenta, a maior rede de televisão do país se negou a exibir ao vivo o pronunciamento da presidente, bem como a sessão que se estendeu por várias horas, em razão da sabatina feita pelos senadores.
Na internet, o assunto não demorou a ser comentado. Logo cedo, a seletividade da emissora causou espanto e foi criticada nas redes sociais. “A Rede Globo parou um domingo inteiro para ver Deputados mencionarem suas famílias para dizer um sim -
ples ‘sim’. Neste momento, uma presença histórica no Senado de uma Presidente fazendo sua própria defesa num processo de Impeachment. Goste dela ou não, a história está sendo agora. Neste momento a Rede Globo está ensinando a fazer um ovo cozido”, escreveu o internauta Bernardo Barbosa Filho, no Facebook.
Mesmo sem nominar os grupos, em sua defesa a presidenta eleita citou a mídia como apoiadora do processo de impeachment. Em seu discurso, Dilma mencionou a palavra “mídia” duas vezes. Em um primeiro momento falou que “situações foram criadas, com apoio escancarado de setores da mídia, para construir o clima político necessário para a desconstituição do resultado eleitoral de 2014”.
Em nova menção, afirmou: “Curiosamente, serei julgada, por crimes que não cometi, antes do julgamento do ex-presidente da Câmara, acusado de ter praticado gravíssimos atos ilícitos e que liderou as tramas e os ardis que alavancaram as ações voltadas à minha destituição. Ironia da história? Não, de forma nenhuma. Trata-se de uma ação deliberada que conta com o silêncio cúmplice de setores da grande mídia brasileira.”
Atuação midiática é referenciada pela presidenta
por um duplo movimento: um de apoio escancarado e outro do silêncio cúmplice. Revela, em um tempo, interesse pelo assunto, quando a instauração do clima de instabilidade política, como, em outro, um desinteresse, ao não contextualizar o cenário político de instauração do processo do impedimento e como este foi tratado como barganha política pelo deputado federal, réu em ações penais, Eduardo Cunha.
Ora, o duplo movimento possui vetores em mesma direção, tendo mesmo sentido. Evencia-se, portanto, no silenciamento, voz. No não dizer, portanto, há aquilo que se constitui como não-dito, aqui traduzido em apoio à cassação de mandato.
A crítica de Dilma evidencia, em primeiro plano, o problema da concentração midiática no Brasil. Oligopolizada, seis famílias controlam as principais empresas no país e 90% da receita publicitária pública e privada. São eles: Globo, Editora Abril, Folha, Grupo RBS (vinculada à Globo), Silvio Santos e Rede Record.
Como diz Porcello (2008, p. 48), no livro A sociedade do telejornalismo, “as emissoras de TV no Brasil foram criadas, cresceram e mantêm-se, até hoje, dependendo de verbas e concessões oficiais. Mas contam, também, com a necessidade dos governos de usar a mídia como espaço político”.
Embora todas sejam concessões públicas, são de caráter comercial, o que as alinha com interesses de determinados grupos político-econômicos. Aqui é inevitável não se problematizar sobre quais são os limites editoriais de uma empresa que funciona por concessão pública. Até que ponto a Globo, por exemplo, poderia ignorar na sua programação o discurso e a sabatina de Dilma Rousseff. Não haveria interesse público suficiente para uma transmissão integral do fato?
A mesma questão foi levantada no Facebook pela internauta Ana Paula Freitas. “É normal que o maior canal de TV do país não esteja transmitindo o interrogatório de impeachment da presidente ao vivo (eu tô falando da Globo)? O que é interesse público e interesse do público numa mídia de concessão pública?”, escreveu.
O relator da Organização das Nações Unidas para a Liberdade de Opinião e Expressão, o guatelmateco Frank William La Rue, em entrevista para o site Repórter Brasil, fez críticas à concentração de imprensa no Brasil e na América Latina. “A concentração de mídias traz concentração de poder político e isso atenta não só contra o direito à diversidade, mas também contra a democracia”, destacou. “Na América Latina, temos uma visão excessivamente comercial [da comunicação] e isso faz mal para a sociedade. Em outros lugares, a comunicação é prioritariamente pública com diversidade etno-social”,
afirmou. “A mídia comercial é legítima, sem problemas, mas não deve prevalecer de forma absoluta. O direito à comunicação deve ser de todos”.
Para Porcello (2008, p. 57), parte das distorções da relação entre poder e mídia no Brasil é derivada da legislação. Como é sabido, as telecomunicações no país são regidas pelo Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei 4.117), de 1962. “Essa legislação passou por atualizações, mas tem uma concepção antiga. A Constituição do Brasil reza, desde 1988, que os Meios de Comunicação Social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio (parágrafo 5, art. 220), mas as normas legais mais recentes - como a lei do Cabo, a Lei Mínima e a Lei Geral de Telecomunicações –, por intenção expressa do legislador, não incluíram dispositivos diretos que limitassem ou controlassem a concentração da propriedade”.
A concentração midiática também está relacionada ao descumprimento do Decreto-lei 236/1967 que limita a participação societária do mesmo grupo nas empresas de radiodifusão a cinco concessões em VHF (em nível nacional) e em duas em UHF (em nível regional). De acordo com Venício Lima (2000, p. 97) as maiores redes nacionais violam os parâmetros. A Globo, por exemplo, tem participação em 32 emissoras, sendo que dez são próprias.
Referências:
Intervozes, Disponível em: <http://intervozes.org.br/>. Acesso em 29 de agosto de 2016.
LIMA, Venício A. Mídia: teoria e política. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001.
PORCELLO, Flávio. Mídia e poder: os dois lados de uma mesma moeda - A influência política da TV no Brasil. In: VIZEU, Alfredo. Petrópolis/RJ: Vozes, 2008.
SANTINI, Daniel. Relator da ONU para Liberdade de Expressão critica concentração de mídia no Brasil. Disponível em: <http://reporterbrasil.org.br/2013/03/relator-da-onu-para-liberdade-de-expressao-critica-concentracao-de-midia-no-brasil/>. Acesso em 29 de agosto de 2016.
Mariana Banja é jornalista diplomada pela Universidade Católica de Pernambuco e mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social na Universidade Federal de Pernambuco. Assina a seção Jornalismo, Linguagem e Representação Social cujo objetivo é observar, analisar e refletir sobre as narrativas telejornalísticas.
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Opinião
Gilberto Freyre e Aquarius: intelectuais e os golpes de 1964 e 2016
Por Túlio Velho Barreto
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No dia 17 de maio de 2016, a equipe do filme Aquarius, tendo à frente o diretor Kleber Mendonça Filho e a atriz principal Sônia Braga, realizou um protesto denunciando o golpe parlamentar então em curso no País. O protesto ocorreu antes de sua exibição no Festival de Cannes, na França, um dos mais tradicionais e importantes do mundo, em que concorreu à Palma de Ouro. Tal fato chamou a atenção da mídia internacional. E, no Brasil, não foi diferente. Mas, aqui, o protesto despertou igualmente a ira dos novos governantes, dos artífices da nova ordem - na verdade, nem tão nova assim -, de intelectuais e das pessoas que patrocinaram, defenderam ou aderiram ao golpe contra a democracia. E fez com que muitos falassem e escrevessem a respeito do fato de o diretor de Aquarius ser servidor público federal, ainda que apenas ocupante de cargo comissionado, na Fundação Joaquim Nabuco, na qual é curador dos cinemas da Fundaj e do Museu.
Foi o que ocorreu no dia 27 de maio último, portanto, apenas 10 dias após o referido protesto, quando o Diario de Pernambuco publicou o artigo “O livro das perguntas”, do articulista José Paulo Cavalcanti Filho. Nele, o autor faz referência ao Libro de las Preguntas, do poeta chileno Pablo Neruda, para fazer várias afirmações, que são expostas sob a rubrica de FATO, e algumas perguntas. A certa altura, escreve Cavalcanti Filho: “FATO. O cineasta Kleber Mendonça Filho exerce função de confiança (sem concurso público) na Fundação Joaquim Nabuco. Bem remunerada. Em Cannes, se sentiu à vontade para atender pedido de alguns membros do governo Dilma (que o contratou). E fez um estrondoso protesto contra o ‘golpe’. PERGUNTA. O cineasta, que não renunciou a seu emprego, se sente à vontade para exercer um cargo de confiança no governo Temer”.
Ora, aqui, não é o caso de chamar a atenção apenas para os equívocos cometidos pelo articulista quando trata dos “fatos”, embora não possa deixar de enumerá-los, exatamente porque nem todos são “fatos”. Por exemplo, o cineasta, realmente, exerce um cargo em comissão na Fundação, e não uma função, como é dito; e este cargo de Direção e Assessoramento Superior (DAS-101.3), não é tão bem remunerado, como se quer crer, o que uma rápida pesquisa na internet mostra; também não foi contratado, mas, sim, nomeado, já que os servidores públicos federais de carreira ou comissionados são regidos pelo Regime Único (Lei nº8.112/90), e não pela CLT; e, finalmente, ele não foi, no caso, nomeado, pelo governo Dilma, mas, sim, em 1998, quando o presidente da República era Fernando Henrique Cardoso e o presidente da Fundação, Fernando de Mello Freyre, e não um petista.
Foi a partir dessas últimas referências, ou seja, o fato de Kleber Mendonça Filho ser comissionado na Fundação e de esta ter sido presidida, ao longo de 32 anos, pelo filho de Gilberto Freyre, Fernando, mas, sobretudo, pelo importante papel que Freyre cumpriu ao longo dos 21 anos de ditadura civil-militar, inaugurada por um golpe,
que muitos, inclusive o Mestre de Apipucos, chamavam de “Revolução de 1964”, assim como hoje se chama o “golpe” de ”impeachment”, que fui instado a repensar acerca do que os intelectuais do establishment, e não apenas os que pregavam aberta e incisivamente o “Brasil: ame-o ou deixe-o”, preconizavam naqueles tempos sombrios. E tratar, ainda que brevemente, a trajetória de Gilberto Freyre: do jovem que escreveu Casa-Grande & Senzala, passando pelo homem maduro que apoiou o fim do Estado Novo e a redemocratização em 1946 até o senhor que apoiou incondicionalmente o golpe civil-militar de 1964 e o regime de exceção dele resultante.
Gilberto Freyre e o golpe de 1964
De forma recorrente, o efusivo apoio do sociólogo Gilberto Freyre (1900-87) ao golpe militar de 1964 ganha status de enigma. Isso acontece porque inexiste uma biografia de Freyre que ultrapasse os enfoques culturais de sua vasta obra ou pontuais de sua longa vida. Daí resulta alguma dificuldade para que sejam estabelecidas relações entre seu breve exílio, provocado pela Revolução de 1930, sua eleição para deputado federal constituinte, após o Estado Novo (1937-45), com apoio de parcela da esquerda, e seu comportamento diante do golpe de 1964.
Embora trate aqui de artigos de Freyre publicados pouco antes e logo após o golpe, em especial aqueles em que se posiciona contra a permanência do reitor da Universidade do Recife no cargo, darei algumas pistas de como tenho tentado propor a resolução do referido enigma. Isto é, quando ocorreu a Revolução de 1930, Gilberto Freyre era secretário particular do governador deposto, com quem se exilou. Apesar disso e da reação dos conservadores a Casa-Grande e Senzala, Freyre frequentou o Catete durante o Estado Novo e foi convidado para o cargo de ministro da Educação, que recusou. Getúlio Vargas ofereceu-lhe, então, uma embaixada, Londres ou Lisboa, também sem sucesso.
Nos anos 1940, o escritor teve atuação política mais ativa quando universitários pernambucanos passaram a usar suas ideias sobre raça e cultura como contraponto àquelas professadas pelos nazistas. E, pela mesma razão, se aproximou da esquerda. Assim, participou da redemocratização e se elegeu deputado constituinte pela Esquerda Democrática. Mas, mesmo filiado à UDN, ele se apresentou como candidato independente.
Já no início dos anos 1960, Freyre se relacionava pessoalmente com o general Castello Branco, então comandante do 4º Exército, em Recife. “Gilberto apoiou a Revolução de 64. Ele era amigo de Castello Branco, que vinha muito à casa de Apipucos, chegava muitas vezes às seis horas da manhã, com o jornal debaixo do braço, e ficava no terraço esperando que papai o atendesse. Ele acordava muito
cedo e os dois iam conversar”, narrou seu filho em entrevista ao jornal O Povo, do Ceará (edição de 1º/12/2003). Em 11/4/1964, o mesmo Castello Branco, já chefe do Estado-Maior do Exército, tornou-se o primeiro general-presidente do novo regime.
Intelectual do regime
Dessa forma, não deve ter causado surpresa o convite para que Freyre assumisse o Ministério da Educação, cargo que, apesar da “inesquecível emoção”, novamente declinaria em razão de seus compromissos “quase sagrados com a vocação máxima de escritor”. Poderia, entretanto, assumir “missões extraordinárias”, quando fosse “oportuno ou necessário”, segundo telegrama ao general-presidente. Também não deve causar estranheza a recusa. Ademais, tal decisão só robusteceu sua autoproclamada independência intelectual e política. Na verdade, em nome dela, ao longo da vida, Freyre fez parte do establishment sem precisar, de fato, integrá-lo formalmente. Em 1964, com a idade do século, tornou-se, enfim, “o” intelectual do regime.
Assim, transformou sua coluna semanal nos jornais de Assis Chateaubriand em tribuna para exaltar a “nova e saudável presença das Forças Armadas na vida pública brasileira” e lembrar que já escrevera artigo para uma revista internacional destacando o caráter suprapartidário das Forças Armadas brasileiras, “cuja intervenção na vida pública ocorreria apenas, de modo decisivo e superior, em momento de agudo desajustamento internacional ou interpartidário e para sobrepor aos interesses facciosos, em conflito ou em choque extremado, o interesse ou a conveniência autenticamente nacional”. Ou seja, o que acabara de ocorrer. Tal ideia passou a ser recorrente na coluna e mesmo em publicações mais acadêmicas.
Entretanto, um mês antes do golpe, Freyre havia escrito sobre a presença do embaixador soviético no Recife, que se fazia acompanhar de professores universitários pernambucanos, e não de líderes comunistas. Aproveita para ressaltar a importância que a ‘Rússia Soviética” dava às universidades e à pesquisa científica, pois lá “as universidades, em vez de cuidarem de campanha de alfabetização, cuidam de preparar elites não só de técnicos como de cientistas. Não se esquivam ao que possa ser considerado aristocrático nas tarefas que cabe às universidades desempenhar. Não se deixam dominar por um descabido democratismo que resultasse na anulação da elite”.
Na verdade, o artigo era um pretexto para criticar o reitor da Universidade do Recife (hoje, Universidade Federal de Pernambuco), o médico e professor João Alfredo da Costa Lima. Em Vida e Mimesis (Editora 34, 1995), o professor universitário e crítico Luiz Costa Lima, sem qualquer parentesco com o reitor, registre-se, relembra que, no início de 1963, foi convidado para assumir a editoria da recém-criada revista Estudos Universitários e explica: “O reitor cogitava romper o caráter rançoso - mais rançoso
do que apenas reacionário - da instituição, criando, simultaneamente, uma rádio cultural, um serviço de extensão e uma revista. A primeira seria dirigida [por] José Laurênio de Melo e o segundo, por Paulo Freire. Em breve, o serviço de extensão se converteu no centro de preparação do método de alfabetização idealizada por Paulo”. Em outras palavras, pode-se dizer, o reitor operava uma pequena revolução cultural na instituição, o que suscitava reações dos intelectuais conservadores.
Então veio o golpe, o convite e a recusa para assumir o Ministério da Educação, o que não significava abrir mão de um poder, que Freyre sabia possuir - quer por sua estatura intelectual, quer por relações pessoais. Muito pelo contrário. Após três artigos em que exaltava as Forças Armadas, ele escreve: “Várias são as pessoas que me vêm interrogando acerca da minha opinião em face da permanência do ilustre professor João Alfredo da Costa Lima como Reitor da Universidade do Recife”. O preâmbulo servia, apenas, para expor um claro objetivo: “A Revolução de 31 de março, para ser fiel a si mesma, está obrigada a afastar de comandos importantes os responsáveis por uns tantos extremos nos últimos anos do Governo deposto, nefasto precisamente pelo que nele se vinha requintando, ora como conivência, ora como complacência com a infiltração comunista no Brasil”.
Em cruzada contra a permanência do reitor no cargo, Freyre argumentava que a considerava incompatível “com uma nova fase na vida brasileira, de corajosas reformas, de estilo de Governo e de normas de administração”. Além disso, representava “uma negação da justiça revolucionária” e poderia tornar o esforço revolucionário vão, afirmava enfaticamente. Até porque, para ele, era preciso que a “revolução não [temesse] ser ou parecer Revolução pelo receio de desagradar certos liberalões dos Estados Unidos ou da Europa ou Caracas”. Por isso, critica a comissão criada para investigar o reitor, pois, em outros órgãos, a exoneração e substituição de dirigentes foram imediatas. Embora o reitor resista, Freyre passa a especular sobre quem poderia assumir o cargo, sugerindo o nome da filósofa e professora Maria do Carmo Tavares de Miranda, ao mesmo tempo em que se “consola” com as diversas exonerações e nomeações então em curso nos órgãos federais em Pernambuco. Finalmente, em junho, João Alfredo é afastado. Freyre, então, muda de assunto e se volta para os “compromissos quase sagrados” com sua vocação de escritor, intelectual e politicamente, independente. Ou seja, mantém o mesmo comportamento que, na década de 1940, já levara o poeta João Cabral de Melo Neto, seu primo, a denominá-lo “ditador intelectual desta boa província”. Hoje, uma vez consumado o golpe parlamentar, espera-se que “aprendizes de Gilberto Freyre” não se multipliquem nesta província, que continua a mesma, tão bem retratada em Aquarius.
Túlio Velho Barreto é cientista político e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco.