Revista Jornalismo e Cidadania Nº 10

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Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 1

| ISSN 2526-2440 | nº 10 | Ano 2017

Jornalismo e cidadania

Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade | PPGCOM/UFPE

Armando Medeiros

Comunicação e Pós-Verdade

Pedro de Souza

Eleições na França

E mais...


JORNALISMO E CIDADANIA | 2

Expediente

Arte da Capa: Designed by Freepik.com

Colaboradores |

Editor Geral | Heitor Rocha professor PPGCOM/UFPE

Marcos Costa Lima Pós-Graduação em Ciência Política/UFPE

Editoração Gráfica | Ivo Henrique Dantas doutorando PPGCOM/UFPE

Túlio Velho Barreto Fundação Joaquim Nabuco

Articulistas |

Gustavo Ferreira da Costa Lima Pós-Graduação em Sociologia/UFPB

PROSA REAL Alexandre Zarate Maciel doutorando PPGCOM/UFPE

Luiz Lorenzo Núcleo de Rádios e TV Universitárias/UFPE

MÍDIA ALTERNATIVA Xenya Bucchioni doutoranda PPGCOM/UFPE

Ada Cristina Machado Silveira Professora da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM

NO BALANÇO DA REDE Ivo Henrique Dantas doutorando PPGCOM/UFPE

Antonio Jucá Filho Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco – FUNDAJ Auríbio Farias Conceição Professor do Departamento de Letras e Humanidades – DLH/ UEPB

JORNALISMO E POLÍTICA Laís Ferreira mestranda PPGCOM/UFPE

Leonardo Souza Ramos Professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC –Minas Gerais e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Potências Médias (GPPM)

JORNALISMO AMBIENTAL Robério Daniel da Silva Coutinho mestre em Comunicação UFPE

Rubens Pinto Lyra Professor do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas da UFPB

PODER PLURAL Rakel de Castro doutoranda PPGCOM/UFPE e UBI CIDADANIA EM REDE Nataly Queiroz doutoranda PPGCOM/UFPE

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Prosa Real

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Opinião | Armando Medeiros de Faria

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Opinião | Mariana Yante

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Opinião | Joyce Helena da Silva

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Comunicação na Web

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Jornalismo Independente

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MUDE O CANAL Ticianne Perdigão doutoranda PPGCOM/UFPE

Jornalismo Ambiental

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Opinião | Lúcia Helena da Silva

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COMUNICAÇÃO NA WEB Ana Célia de Sá Doutoranda em Comunicação UFPE

Opinião | Pedro de Souza

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Opinião | Bárbara Lopes Campos

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Opinião | Rubens Pinto Lyra

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Mídia Fora do Armário

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JORNALISMO INDEPENDENTE Karolina Calado doutoranda PPGCOM/UFPE MÍDIA FORA DO ARMÁRIO Rui Caeiro mestre em Comunicação UFPE

NA TELA DA TV Mariana Banja mestranda em Comunicação UFPE

Índice

Editorial

COMUNICAÇÃO PÚBLICA Ana Paula Lucena doutoranda PPGCOM/UFPE

Bolsista e Aluno Voluntário | Lucyanna Maria de Souza Melo Yago de Oliveira Mendes Graduandos de Jornalismo UFPE

Acesse: facebook.com/ Jornalismoecidadania | issuu.com/revistajornalismoecidadania


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Editorial Por Heitor Rocha

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o início da década 80 do século passado, há quase 25 anos, período final da ditadura militar, a censura e repressão ao movimento popular pelas eleições diretas não podem ser comparadas à forma como os manifestantes da greve geral e a sociedade brasileira foram tratados no dia 28 de abril. A truculência da violência resultou na morte de um cidadão que protestava pacificamente. Não há justificativa para este crime praticado pelo aparelho de Estado. Também não há justificativa para a violência da censura praticada pelos veículos de comunicação, um patente atentado ao direito da sociedade brasileira de acesso à informação digna, como a que diz respeito à dívida de mais de 400 bilhões dos bancos e grandes corporações com a Previdência. As grandes redes de televisão e jornais de circulação comerciais identificados como Grande Mídia, que já viam ignorando solenemente a obrigação de articular a discussão pública dos assuntos de interesse coletivo, como as reformas trabalhista e da previdência, com todas as versões significativas existentes na sociedade, chegou ao máximo da indignidade ao restringir a cobertura das manifestações de 28 de abril às reclamações sobre a dificuldade de locomoção e de comerciantes lamentando a falta de consumidores. Também causou espécie o insistente espaço concedido às manifestações no Estados Unidos de protesto aos cem dias de Donald Trump e na Venezuela contra Maduro. Tudo indica que a censura e desqualificação da greve geral não ocorreu só na Rede Globo, mas em toda a grande mídia nacional. As manchetes do jornal O Globo (“Temer lamenta bloqueios e reafirma que fará as reformas”), do Estado de São Paulo (“Manifestação contra reformas afeta as grandes cidades e termina em violência”) e Folha de São Paulo (“Greve atinge transportes e escolas em dia de confronto”) evidenciam a clara e descarada intenção de

estigmatizar e criminalizar os protestos. A cobertura na imprensa internacional, no entanto, mostrou a verdadeira realidade brasileira: New York Times (“Greve contra o governo vergonhoso de Michel Temer”), Le Monde (“Greve histórica”), BBC (“Primeira greve geral em duas décadas”) e Le Monde (“Brasil: o grande salto para trás”). As declarações de Michel Temer, por sua vez, mostram o seu caráter de usurpador da representação política maior do País e de medo em relação à opinião pública, ao argumentar que a discussão das reformas trabalhista e da previdência deve ser restrita ao Congresso Nacional. Desta forma, a opinião pública é completamente desautorizada como esfera de legitimação da política. Certamente, ele acredita que, com a cumplicidade da mídia, do Judiciário e, sobretudo do Legislativo – com quem desenvolve uma política abertamente não republicana de oferecimento de vantagens e ameaças de perseguição aos opositores -, conseguirá impor à sociedade o projeto de precarização do trabalho e da vida dos brasileiros para aumentar o lucro das grandes empresas, especialmente as multinacionais. Segundo o professor Roberto Mangabeira Unger, este programa pode ser classificado como “salazarismo contábil”, em referência à política do antigo ditador fascista português António de Oliveira Salazar, sem qualquer condição de promover mudanças positivas para a nação, que precisa realmente de um projeto de desenvolvimento que leve em conta o seu maior trunfo: a vitalidade e critividade do povo brasileiro. Heitor Costa Lima da Rocha, Editor Geral da Revista Jornalismo e Cidadania, é professor do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.


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Prosa Real

Livro-reportagem, jornalismo e contexto Por Alexandre Zarate Maciel

Benjamim Costallat: repórter-cronista mergulhou fundo no cotidiano

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os anos 1920, a imprensa brasileira favoreceu o florescimento de repórteres-cronistas interessados no mergulho do submundo das cidades em transformação. Benjamim Costallat fez tanto sucesso nessa época que chegou a ser lido em outros países da América do Sul. Ele fechou um contrato com o Jornal do Brasil em 1924, já famoso, para produzir uma série de reportagens intitulada Mistérios do Rio. No prefácio do livro homônimo que lançou agrupando todas as crônicas, o próprio Costallat já começa a distinguir o seu trabalho da ficção dos folhetins e da literatura: “Não se escreve mais com os recursos exagerados dos romances de ‘capa e espada’. Hoje, o que o escritor procura dar, e que o próprio público leitor exige, é a verdade. A verdade nos ambientes, a verdade na ação e a verdade nos personagens”. Os “contos-reportagem” de Costallat, como prefere definir Bulhões (2007, p.117), trazem tonalidades do “sórdido, do degradante, do aterrorizante e do trágico”, algumas vezes beirando o sensacionalismo. Mas estava ali a marca do repórter que vai a fundo. Alguns exemplos demonstram a ousadia de Costallat. Em “Quando os cabarés se abrem”, o jornalista compara as facetas da cidade diurna e os seus “vícios” noturnos, descrevendo o mundo do jogo e da prostituição no Rio de Janeiro. Outra crônica curiosa é “Os fumantes da morte”, na qual um personagem leva o repórter para um bairro chinês, em busca dos consumidores de ópio. Já em “No bairro da cocaína”, antecipando lances do jornalismo investigativo, Costallat se traveste ele mesmo de cocainômano e sai em busca da droga para esmiuçar como se dá o submundo do tráfico e do vício. Em “O túnel do pavor”, Costallat posiciona-se ao lado de um policial e um ilustrador em um local de grande incidência de assaltos. Bulhões (2007, p. 119) conclui que Costallat soube amalgamar em seu trabalho os “procedimentos do jornalismo in-

vestigativo” de uma forma “perfeitamente afinada à feição ficcional de uma narrativa vibrante, com a presença de suspense, clímax e desenlace”.

Autor do mês: Elio Gaspari

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ntre os jornalistas-autores brasileiros, Elio Gaspari foi o que mais se aproveitou do sentido do aprofundamento contextual que um livro-reportagem pode proporcionar para entender os acontecimentos contemporâneos. E também das noções estendidas de tempo para a produção e de espaço para organizar de forma interessante todas as informações apuradas. Escolheu como matéria-prima um passado recente, porém complexo de entender, já que envolveu e ainda enfrenta várias tentativas de silenciamento e apagamento: o período da ditadura militar brasileira, de 1964 a 1985. O resultado de mais de 30 anos de pesquisas documentais e entrevistas exclusivas é a maior série de livros-reportagem sobre um mesmo assunto já produzida no Brasil até agora, intitulada Ilusões Armadas, com cinco livros. A ditadura envergonhada (2002), o primeiro volume, concentra-se no período que vai da deposição do presidente João Goulart, em 31 de março de 1964, até logo depois do AI-5, de 13 de dezembro de 1968. A ditadura escancarada (2002) continua a história a partir do ano de 1969, já com os efeitos do ato e segue até o extermínio da guerrilha do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), no Araguaia, em 1974. Os dois volumes seguintes, A ditadura derrotada (2003) e A ditadura encurralada (2004) têm como foco a vida do ex-presidente Ernesto Geisel e seu fiel assessor Golbery do Couto e Silva, detalhando os bastidores sobre a volta de ambos ao Planalto e os quatro primeiros anos do governo Geisel. Com um intervalo de 12 anos após a penúltima parte, Gaspari lançou, em 2016, A ditadura acabada. O livro trata dos acontecimentos que vão desde 1977, ainda na presidência de Geisel, até os fatos que marcaram a gestão de João Baptista Figueiredo e o próprio fim do


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governo militar, como a explosão do Riocentro, em 1981, a crise econômica e a campanha popular das Diretas Já. Mesmo tendo a segurança de todo esse material na mão, organizado, com ajuda de terceiros, em um banco de dados que somou 28 mil fichas, e contando com décadas para trabalhar com paciência na sua organização e interpretação do seu conteúdo, Gaspari acredita que nunca lhe passou pela cabeça dar conta da história da ditadura brasileira, ainda que tenha escrito cinco livros sobre o assunto.

Iluminando conceitos: Alsina e o “contrato fiduciário” no livroreportagem

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e acordo com Alsina (2005, p. 20), o jornalismo é socialmente legitimado para “gerar construções da realidade socialmente relevantes”. Estabelece-se, assim, o que ele chama de “contrato pragmático fiduciário” (ALSINA, 2005, p.10) entre os seus produtores e os seus consumidores ou reconhecedores. Por sua vez, Alsina (2005, p.46) faz questão de frisar que o processo de construção da realidade é, ao mesmo tempo, “social e intersubjetivamente construído”. No entanto, como se trata de um discurso social, o jornalismo está obviamente inserido em um sistema produtivo que leva em conta a “produção, a circulação e o consumo ou reconhecimento” (ALSINA, 2005, p. 10). Cabe analisar como se dão os termos desse contrato no caso do livro-reportagem. Ao produzir essas obras, o jornalista deixa o campo tradicional de produção (marcado por rotinas produtivas, pressão pelo “furo”, velocidade, pouco espaço); circulação (o peso da concorrência, lógica das grandes empresas, a força da marca de um jornal); e consumo ou reconhecimento (para um público que procura a credibilidade de um órgão de imprensa e não necessariamente do repórter em específico). Assim, se estabelecem outras lógicas em um contrato que é pragmático (pois envolve uma organização e produção de discurso) e fiduciário (já que tem a ver com uma relação de confiança nos atributos de “verdade” e verossimilhança do extenso relato apresentado na obra). Nesse cenário, o jornalista é um autor individual, seu tempo de produção é mais dilatado, suas formas de angulação e enquadramento dos contextos narrados são mais libertas, em tese. No

entanto, para que sua obra circule, terá que contar com um esquema de marketing editorial que pode ser enorme, como no caso de Laurentino Gomes ou praticamente nulo, dependendo da sua valorização no mercado. São preferenciais as lógicas das boas vendagens anteriores, fama adquirida no jornalismo e tema ou personagem escolhido. Acima de tudo terá que “abraçar” e divulgar com afinco a sua obra, comparecendo em festivais de literatura, concedendo entrevistas ou ministrando palestras para universitários. Seu público também, como no jornalismo em geral, é heterogêneo e indefinido.

Referências: ALSINA, Miquel Rodrigo. A construção da notícia. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2009. BULHÕES, Marcelo. Jornalismo e convergência. São Paulo: Ética, 2006.

literatura

em

COSTALLAT, Benjamim. Mistérios do Rio. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca, 1990. GASPARI, Elio. A Ditadura Envergonhada, volume 1. Coleção As Ilusões Armadas, São Paulo: Companhia das Letras, 2002. _________, Elio. A Ditadura Escancarada, volume 2. Coleção As Ilusões Armadas, São Paulo: Companhia das Letras, 2002. _________, Elio. A Ditadura Derrotada, volume 3. Coleção O Sacerdote e o Feiticeiro, São Paulo: Companhia das Letras, 2003. _________, Elio. A Ditadura Encurralada, volume 4. Coleção O Sacerdote e o Feiticeiro, São Paulo: Companhia das Letras, 2004. _________, Elio. A Ditadura Acabada, volume 5. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016.

Elaborada pelo professor do curso de Jornalismo da UFMA, campus de Imperatriz, Alexandre Zarate Maciel, que está cursando o doutorado em Comunicação na UFPE, a coluna Prosa Real traz, todos os meses, uma perspectiva dos estudos acadêmicos sobre a área do livro-reportagem e também um olhar sobre o mercado editorial para esse tipo de produto, os principais autores, títulos e a visão do leitor.


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Opinião

A Comunicação Pública e Pós-Verdade Por Armando Medeiros de Faria

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pelos emocionais e que mobilizam crenças pessoais são mais eficazes para conquistar a opinião pública do que fatos objetivos. Argumentos mais racionais, à luz dos fatos, cedem lugar para convicções arraigadas. Versões apressadas ocupam a agenda social e pouco importa o nexo que tenham com a realidade. Este é o significado de post-truth (pós-verdade), a palavra emblemática do ano de 2016, de acordo com Oxford Dictionaries. Subjetividade, ideologias, aspectos inconscientes e crenças na releitura da realidade estão presentes nas teorias da persuasão, na psicanálise, na trajetória das revoluções científicas e no pragmatismo da política (“o que importa é a versão, não o fato”, diz um antigo mantra de políticos mineiros). Assim, embora não seja exatamente uma nova descoberta o conceito de pós-verdade foi revigorado a partir da explosão de informações geradas ou reproduzidas na web. O fenômeno produz sinais de alerta inquietantes. Nas mídias sociais, a ausência de uma instância para estabelecer filtros, separar o joio do trigo e colocar em perspectiva visões distintas, cria um quadro propício para não se acreditar em nada do que o outro diz, e se agarrar em sua própria convicção. O jornalismo, asfixiado, enfrenta distúrbios de identidade e profunda crise financeira. Nesse quadro, as possibilidades de reinvenção da imprensa tradicional em torno do pilar “credibilidade” diminuíram drasticamente. A intimidade das redes e das trocas digitais passa a ser espaço nobre de convencimento como ocorreu recentemente em mudanças impactantes como a saída da Grã-Bretanha da União Europeia, o plebiscito em torno de acordo de paz com as Farc na Colômbia, o impeachment da presidente Dilma e a disputada campanha eleitoral norte-americana. Fica claro que guerrilheiros da “verdade” e guerrilheiros da “mentira” – ambos alternando posições – prosperam em contextos altamente inflamáveis e radicalizados. Em um tempo de nervos à flor da pele e explosão de conflitos, com julgamentos sumários e

reações impacientes, a velocidade da informação, propagada em redes, traz idêntica advertência sobre tempos de guerra: a primeira vítima é a verdade. A disputa entre aqueles que gritaram “a favor” e aqueles que gritaram “contra”, nos acontecimentos acima, cristalizam a ideia de um mundo movido a paixões e crenças. Onde a verdade não é mais necessária. Se a verdade não mais importa, a comunicação pública – do Estado e de seus atores para a sociedade, ou com a sociedade – torna-se mais refém dos embates da política. Poderá a comunicação publica ficar indiferente e não tomar “partido”? Os agentes públicos, como mostram os exemplos citados acima, todos eles em contextos efervescentes, ingressam na espiral das versões e contraversões. Se a comunicação pública implica diálogo, pluralismo e participação a partir de premissas básicas como “não mentir para a sociedade”, como administrar as ondas de pós-verdade? Como estabelecer pontes para o Estado e a sociedade neste ambiente de divisões, polarizações e disputas intensas no campo simbólico? A imprensa como “reguladora” da opinião geral da sociedade há muito foi desalojada desse papel, embora detenha o capital simbólico de credibilidade (Bourdieu). Daí que o novelo controvertido da pós-verdade joga ainda mais combustível no relacionamento entre fontes oficiais e a imprensa. Nos EUA, para sustentar sua narrativa, o candidato e hoje titular da Casa Branca continua a disparar duras críticas sobre o comportamento da imprensa. Trump, conhecido por disseminar crenças e abordagens extremistas, utiliza amplamente as redes sociais, um ambiente onde a checagem tem critérios frouxos. E é exatamente nas redes sociais que o presidente e seu núcleo duro ecoam, aos quatro cantos, o que ele próprio dissemina como sua “verdade”: “a imprensa é mentirosa”. As tensões chegaram ao ponto de o próprio Trump qualificar os jornalistas como as espécies mais desonestas do planeta. A ousadia da comunicação governamental na era Trump, ao enfrentar pesadas críticas da im-


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prensa, choca-se frontalmente com a letárgica comunicação da ex-presidente Dilma no auge da batalha política que decretou seu afastamento definitivo da Presidência da República. Não se trata de fazer apologia dos delírios de Trump e nem de lamentar a passividade comunicativa de Dilma. Embora nitidamente distintos, ambos contextos apresentam atitudes governamentais radicalmente diferentes nos embates simbólicos com setores da imprensa e da sociedade. No primeiro caso, o disparo de pós-verdades vem de forma oficial, aberta, sem sequer apoiar-se nas estratégias de disseminar informações em off. O governo estabelecido entra no jogo das “verdades alternativas” e o desconforto histórico nas relações “poder e imprensa” dá lugar à uma situação de confronto aberto, no qual o governo usa intensamente as redes sociais para declarar que a imprensa não tem prerrogativa e nem credibilidade de falar em nome da sociedade. No caso brasileiro, os setores de oposição foram capazes de conquistar tamanho espaço no campo das versões que deixaram a narrativa oficial recuada, acuada, encurralada. Em ambos os casos, no comparativo da comunicação Estado com a Sociedade, a disputa crucial é quem tem poder para estabelecer a “verdade” numa era de (pós) verdade. É uma realidade na qual os emissores de notícias – na concepção de apurar, checar, ouvir diferentes vozes – não são mais facilmente identificáveis. E na outra ponta, autoridades e governantes parecem engajados na propagação de pós-verdade. Tudo indica que os novos capítulos na equação comunicativa Estado, Imprensa e Cidadãos serão emoldurados pelas disputas de apropriação do burburinho digital das redes sociais e de escancaradas lutas em torno da “verdade”. A fiscalização do Estado, ou à crítica ao Estado, antes tradicionalmente delegada à imprensa, ganha novos atores empoderados de emails, posts e mensagens via celulares, um território de conteúdos disseminados massivamente e em alta velocidade, mas com baixo controle de qualidade. É justamente a perda de referência de credibilidade que colocará a comunicação pública no dilema de gastar energia para restaurar a verdade ou simplesmente aderir aos movimentos de disseminar crenças. Para atuar na comunicação pública os novos tempos de pós-verdade colocam atitudes ajustadas a um outro desafio: o dever de ser correto nas informações e a luta, desgastante, em combater quem dissemina fantasias, caminho pavimentado pela propaganda política e típica das disputas entre atores políticos que lutam para estabelecer hegemonia (no sentido de Gramsci, obter a “direção

consentida”, a formação de consenso social para evitar o uso da força). Para concluir, o contexto da pós-verdade enfraquece a comunicação pública porque vivemos um tempo no qual os procedimentos de checagem sobre a veracidade da informação estão sendo desprezados. A prática corriqueira e cotidiana da maioria das pessoas é compartilhar “convicções” nas redes sociais, imediatamente, sem quaisquer preocupações com autenticidade. Nas conjunturas polarizadas, quando a maioria da sociedade fica à mercê de agentes cuja habilidade é criar cortinas de fumaça e manipular informações, vale pensar em mecanismos de proteção social. É necessário avançar em regulações que possam conter os inventores de mentiras e meias-verdades. Apresentar convicções com base em desinformações pode ser compreensível, mas oferece riscos. Quando ninguém acredita mais que exista uma verdade, ou algo aproximado, quando o que vale é simplesmente acreditar na sua própria razão, parece que a verdade está sendo abolida ou expulsa da convivência social. As consequências sociais deste contexto são inquietantes, não apenas para os agentes da comunicação pública. Na política, o enfraquecimento da noção e do valor da verdade é um perigo para a sociedade. O roteiro previsível aponta um horizonte de acirramento da intolerância e de estímulo ao totalitarismo. A pós-verdade pode custar caro. Referências: ALMEIDA, Rodrigo de. À sombra do poder: bastidores da crise que derrubou Dilma Rousseff. São Paulo: Leya, 2016 GIANNETTI, Eduardo. O Mercado das Crenças. São Paulo, Cia. das Letras, 2003. KUHN, Thomas S. Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo, Editora Perspectiva, 1998. MARCONDES. Ciro. Sociedade Tecnológica. São Paulo, Scipione. 1994.

Armando Medeiros de Faria é vice-presidente da ABCPública - Associação Brasileira de Comunicação Pública, mestre em Ciências da Comunicação pela USP, diretor de comunicação e marketing do Banco do Brasil e coordenador na Secretaria de Comunicação da Presidência da República. Edita o site www.conexaopublica. com.br e é consultor da LS Comunicação.


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Opinião

Estados Unidos, Coréia do Norte e China: Guerra iminente? Por Mariana Yante

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as últimas semanas, os maiores veículos midiáticos internacionais vêm noticiando a troca de recados pouco diplomáticos entre Estados Unidos e Coreia do Norte por meio de medidas que sugerem o recrudescimento da crise nuclear na Península da Coreia. No início de janeiro, a Coreia do Norte havia anunciado a realização de seu quarto teste nuclear e, no último dia cinco de março, o lançamento de um suposto míssil desde Pyongyang se constituiu em novo episódio de desgaste no processo que se alastra desde outubro de 2002, quando a Coreia do Norte anunciara publicamente o início do seu pro-

grama nuclear de enriquecimento de urânio. A Coreia do Norte, no entanto, comunicou que havia apenas posto um satélite em órbita no âmbito de um programa espacial alegadamente de fins exclusivamente científicos, ao passo que a comunidade internacional cogitou tratar-se na verdade de um teste de míssil balístico, ainda que não tenha havido confirmação da natureza do lançamento. Em resposta, o Conselho de Segurança das Nações Unidas se pronunciou após reunião de urgência sobre o rechaço a quaisquer medidas que viessem a ferir os tratados internacionais existentes sobre armas nucleares.


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O órgão da ONU – que é composto por Rússia, Estados Unidos, França, Reino Unido e China como únicos membros permanentes e com poder de veto – aprovou, na oportunidade, em meio a um sessão extraordinária, declaração no sentido de que aprovaria sanções em resposta às “perigosas e graves violações” por parte da Coreia do Norte. No entanto, no mesmo dia em que a rede televisiva oficial norte-coreana fez o anúncio oficial de que o país colocara em órbita o satélite de observação Kwangmyong 4, Coreia do Sul e Estados Unidos anunciaram publicamente as negociações para a implementação do sistema antimísseis THAAD no território da primeira. À continuidade, em oito de março, a Coreia do Sul emitiu disparos de advertência, desde Seul. O Ministério da Defesa sul-coreano sustentou que os disparos ocorreram em razão de um barco do país comunista haver cruzado zona de disputa fronteiriça no Mar Amarelo – o que, na verdade, é um incidente constante, considerando a inexistência de fronteira marítima demarcada nessa região. No dia 23 de março, o Conselho de Segurança também aprovou a Resolução 2345/2017, renovando o mandato do Painel de Expertos existentes desde 2009 para até 24 de Abril de 2018. O documento também registra a possibilidade de ampliar as competências do órgão, além de requisitar um reporte de suas atividades até setembro. A redação sugere que se trata de uma réplica aos acontecimentos mais recentes, embora o fortalecimento das tensões na península coreana demonstre a ineficácia dos pronunciamentos das Nações Unidas. Recentemente, o Ministro das Relações Exteriores chinês Wang Yi participou de uma coletiva de imprensa em duas sessões em Beijing (8 de março) e se manifestou de forma contundente acerca do emprego do sistema de defesa antimísseis THAAD (acrônimo em inglês para Terminal High Altitude Area Defense) por parte da República da Coreia. Na ocasião, o Premier afirmou que a instalação do terminal seria obviamente “uma escolha errada” e assinalou que a posição adotada pela China foi de que as partes envolvidas não dessem continuidade às suas ações, pois terminariam machucando umas às outras. Nesse sentido, reforçou que seu país propusera uma “dupla suspensão”, ou seja, que a Coreia do Norte e as demais potências deveriam trabalhar para reverter a crise latente na Península da Coreia. Para isso, afirmou que a prioridade deve ser prevenir as tensões entre a República da Coreia, a Coreia do Norte e os Estados Unidos. Wang Yi também lembrou que este ano marca o aniversário de 25 anos de relações diplomáticas entre a China e a República da Coreia, a qual deveria seguir respeitando as bases em que se estabelecera.

Existem, assim, indícios de que a China tenta dar continuidade à sua estratégia conciliatória para a Península da Coreia, considerando sua relevância como intermediadora de um diálogo entre os dois governos. É importante apontarmos que, ao contrário do que ocorre no Ocidente, os países asiáticos não recorrem à mediação em geral, e tampouco buscam desempenhar a função de mediadores. Está em vigor, desde 1954, o documento chamado Cinco Princípios da Coexistência Pacífica, assinado por China, Índia e Mianmar, e, a partir dele, pode-se interpretar que a não interferência (que também rechaçaria a figura da mediação), é algo que caracteriza não somente a política externa chinesa, mas é basilar na dinâmica entre os países asiáticos. Segundo Qian e XiaoHui, o papel desempenhado pela China na crise entre as duas Coreias – que se desenrola desde 2003, no âmbito das Six-Party Talks (uma rodada para mitigar as tensões na Península, a partir do anúncio do programa nuclear da Coreia do Norte) – é excepcional. Justifica-se porque a ameaça nuclear abrange toda a Ásia e também em razão de que a China é o único país do continente que mantém relações historicamente amistosas com a Coreia do Norte. De acordo com os autores, é preciso observar, sobretudo, que a China teme a intervenção dos Estados Unidos no problema (já que este país possui relações turbulentas com Pyongyang) – o que se fortaleceu depois do desfecho trágico da Guerra do Iraque para a solução de uma crise nuclear, até hoje de origem controversa. Com os recentes anúncios sobre a parceria entre EUA e Coreia do Sul, essas variáveis parecem ter se potencializado. Além de deixar claro seu apoio a um dos lados, Donald Trump – a despeito das muitas teorias no sentido de que a Ásia estaria em segundo plano na nova política externa estadunidense – igualmente mostrou ser evidente o propósito de intervir no problema. Evidentemente, é preciso atentar para os próximos acontecimentos para entender de que maneira a China irá conduzir essa nova onda de tensões sem personificar a questão como um embate entre esta e o governo norte-americano e tentar manter uma postura neutral diante da instabilidade crescente. Resta, ainda, observar qual será a postura estadunidense diante de uma China cada vez mais central nas Relações Internacionais.

Mariana Yante é doutoranda de Relações Internacionais na Universidade de Wuhan/China.


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Opinião

Produção, realização e a pedra no meio do caminho

Por Joyce Helena Ferreira da Silva

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capital, no século XXI, tem na mobilidade um de seus principais artifícios. Busca valorização utilizando tempo e deslocamento geográfico em seu favor. No processo ininterrupto de acumulação, o capital necessita elevar a produtividade para ampliar a produção, em menos tempo e de forma mais eficiente. Aqui, se inserem os papeis da tecnologia, da mecanização, das inovações que pavimentam o caminho da lucratividade. Também vale mencionar a criação de cadeias globais de produção, onde se procura isenções de impostos, novos mercados, mão de obra abundante e barata, menos burocracia, etc. Tais processos aparecem no discurso padrão como positivos, desejáveis. Mecanização, terceirização, flexibilização são transformações vendidas midiaticamente como necessária e inescapável “modernização”. Sendo a mercantilização da força de trabalho um dos pilares do modo de produção capitalista, compreende-se que uma das contradições fundamentais é a que se coloca entre salários e lucros, estando ambos em ferrenha oposição. A luta por fatias maiores do produto social é o que está no cerne da luta de classes e se coloca como uma das principais engrenagens do sistema. Desta forma, em um determinado arranjo da correlação de forças, o trabalho pode angariar maiores ganhos na

forma de salários, reprimindo os lucros. Em resposta, o capital reduz investimentos e produz movimentos reversos, nos quais a ampliação do exército industrial de reserva faz com que os salários sejam novamente reprimidos e assim por diante. Em meio ao indissolúvel conflito entre lucros e salários, o capital procura, cada vez mais, livrar-se do trabalho vivo dentro do processo produtivo. É aqui que se insere o movimento de mecanização, como elemento substitutivo, e se coloca a necessidade de se avaliar o duplo papel social do trabalhador: o comprador de mercadorias e o vendedor da única mercadoria a sua disposição - a força de trabalho. Temos, portanto, uma nova contradição. Enquanto amplia o uso de máquinas em substituição ao trabalho humano, o capital objetiva o aumento da lucratividade; contudo, ao fazê-lo, ele amplia as fileiras do exército industrial de reserva, reduzindo, assim, a demanda agregada. De tal dinâmica surge a ruptura entre produção e realização de mercadorias, que leva às crises. Desta forma: “os trabalhadores, como compradores de mercadorias, são importantes para o mercado. Mas como vendedores de sua mercadoria – a força de trabalho -, a sociedade capitalista tem a tendência a reduzi-los ao mínimo do preço” (MARX, 2014, p. 412). A terceirização é outra face dessa “descartabi-


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lidade” da mão de obra e da ampliação dos lucros em relação os salários. Trata-se da diminuição dos salários - ou, nos termos de Marx, de sua redução “ao mínimo do preço”-, já que um trabalhador terceirizado recebe, em média, 30% a menos do que um não-terceirizado. Significa, ainda, a instabilidade conferida por contratos temporários, o aumento da jornada de trabalho e a supremacia do acordado sobre o legislado. Isto para não entrar na esfera do adoecimento, do aumento do número de acidentes, da perda de conquistas históricas. Desta forma, quando se observam os movimentos de mecanização e de terceirização, condena-se o trabalhador a ter de lidar com o dilema de estar entre a precarização e o desemprego. Tendo em vista a consolidação de cadeias globais de produção, a realização das mercadorias não precisa ocorrer dentro das fronteiras onde é produzida. Por exemplo, a indústria automobilística estabelecida no México permite que se utilize mão de obra barata, fruto de terceirização irrestrita, capaz de fornecer automóveis a preços competitivos no mercado norte-americano. Neste caso, a ruptura entre produção e realização pela pauperização do trabalho é temporariamente superada, já que, do total de 3.768.268 carros produzidos em território mexicano em 2016, 79,87% foi exportado. Entretanto, com o aumento da desigualdade em território americano, tem sido reacendido o discurso nacionalista de se “repatriar” estes empregos. Como dado adicional, atualmente, apenas 8,8% dos trabalhadores mexicanos é sindicalizado, tendo a precarização afetado, principalmente, a população mais vulnerável (jovens, mulheres e índios). Em tal estágio da organização laboral capitalista, o trabalhador é reintroduzido no processo produtivo em uma acentuada divisão do trabalho, levada ao extremo. Neste cenário, a atividade se torna repetitiva, suprimindo qualquer forma de iniciativa criativa e de desenvolvimento mental, intelectual. Transforma-se o trabalhador em um acessório, por vezes dispensável, impondo-lhe um nível de exaustão que interfere em suas relações sociais mais diversas. Na era da financeirização, dos ganhos auferidos fora da economia real, vive-se o imaterial também no mundo do trabalho, sendo nestas bases fictícias, não humanas e desumanas que se sustenta o capitalismo contemporâneo. Com a sobreposição do real pelo imaterial, tem-se como resultado uma ampliação sistemática da desigualdade em escala global. Para se ter a dimensão de tal processo, basta averiguar que, após a crise de 2008, o capital financeiro conseguiu uma valorização ainda maior, a despeito do crescimento brutal da disparidade de renda. Nos Estados Unidos, epicentro da crise, o 1% mais rico capturou 93% da

renda adicional criada no ano de 2010, em comparação com 2009. Após o colapso de 2008, tendo havido uma queda geral nos rendimentos, no setor financeiro, a recuperação foi rápida e impressionante: em 2010, um CEO recebeu, em média, 243 dólares para cada dólar de um trabalhador típico (STIGLITZ, 2012). Apesar disso, a unidade contraditória entre produção e realização permanece. Estes trabalhadores pauperizados, exercendo seu duplo papel social, transformam-se em consumidores com capacidade aquisitiva reduzida às necessidades básicas de subsistência. Resta saber, até quando será possível dissociar uma esfera de valorização contínua, imaterial e fictícia da instância produtiva, da economia real. O empobrecimento das camadas mais pobres e da classe média terá um limite e tal dinâmica imporá ao capital um recuo necessário a sua própria reprodução. A supremacia do setor financeiro não significa que a pauperização da classe trabalhadora tenha deixado de ser uma pedra no meio do caminho entre a produção e a realização de mercadorias. Neste sentido, será possível o estabelecimento de uma saída ao estilo “30 anos gloriosos”? O capitalismo suportará uma nova era de keynesianismo global? Os meios ainda são obscuros, mas se colocará na agenda do capital, nas próximas décadas, a urgente busca de soluções pela ótica da demanda e isto passa, necessariamente, pela valorização da força de trabalho. Sejamos otimistas a este respeito.

Referências: HARVEY, D. 17 contradições e o fim do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2016. MARX, K. O Capital: crítica da economia política, Livro II: O processo de circulação do capital. São Paulo: Boitempo, 2014. SILVA, V. M. Prometendo modernizar lei, terceirização no México consagrou precarização, diz especialista. Disponível em: <http://www. rev istaforum.com.br/2015/04/16/prometendomodernizar-lei-terceirizacao-no-mexico-consagrouprecarizacao-diz-especialista/>. Acesso em: 24 abril 2017. STIGLITZ, J. The price of inequality. Londres: Penguin, 2012.

Joyce Helena Ferreira da Silva é doutoranda em Ciência Política pela UFPE e pesquisadora-associada do Instituto de Estudos da Ásia (UFPE). Graduada em Economia e mestra em Ciência Política.


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Comunicação na Web Jornalismo, Sociedade e Internet Por Ana Célia de Sá

A propagação informativa no âmbito da relação espaçotempo na internet

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ensar a relação espaço-tempo na web requer desprendimento quanto às percepções sociais edificadas até a segunda metade do século XX. Em linhas gerais, a rede mundial de computadores tem suas bases fincadas na concepção espacial simbolicamente ilimitada e na proposta de tempo real, preterindo a espacialidade física e o tempo cronológico, histórico e sucessivo. Este contexto remete ao pensamento de Bauman (2001). Para o autor, a Modernidade é vista como a era da fluidez, em que o tempo se sobressai ao espaço e à forma. Esta concepção aponta a ideia de liquidez, de mobilidade, de libertação de demarcações sólidas em torno das quais a sociedade fundamentou o modo de produção capitalista, cuja indústria demarcou espaços e delimitou fronteiras praticamente impenetráveis dos bens de produção. O uso da tecnologia na propagação informacional também reconfigura a questão espacial e temporal. A internet pôs fim à noção de distância para a informação, uma vez que pode ser acessada em

qualquer parte do globo, dissociada do deslocamento físico. O tempo on-line também ganha nova dimensão e passa a se caracterizar pela instantaneidade. A informação movimenta-se na velocidade da banda de conexão, em um ritmo normalmente superior ao dos corpos. Com o tempo de comunicação implodindo e encolhendo para a insignificância do instante, o espaço e os delimitadores de espaço deixam de importar, pelo menos para aqueles cujas ações podem se mover na velocidade da mensagem eletrônica (BAUMAN, 1999, p. 20). Nesta perspectiva, é possível inserir a internet no ambiente social líquido, que prioriza o tempo e afasta-se do limite geográfico na distribuição informativa. As relações mediadas pelo computador fortificam-se, reorganizando os processos de interação humana. A comunicação rápida amplia a quantidade de informação e, ao mesmo tempo, aumenta a efemeridade dela, podendo provocar inclusive uma sobrecarga da memória, em vez de alimentá-la. No espaço digital conectado, as distâncias são simbólicas, isto é, sem localização física para a informação. Tanto o produto on-line quanto o profissional atuante neste meio passam por um processo de desterritorialização, que valoriza o tempo e redimensiona espaços (SCOLARI, 2008). Assim, o consumo informacional abandona o vínculo com o local ou o tempo de produção da notícia – no caso


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do jornalismo, por exemplo – e passa a interatuar diretamente com o ambiente cibernético. Na era da informação, conforme explica Castells (1999), a sociedade ajusta-se em torno de fluxos operados entre posições fisicamente desarticuladas, numa contraposição ao espaço de lugares, e em tempo simultâneo, não histórico. Estas operações de intercâmbio e interação acontecem em setores diversos, tais como capital, tecnologia, imagens, sons e informação. Nesta dimensão, relega-se o espaço enquanto expressão da estrutura social, formatado em referência a práticas que dão a ele função e sentido. Também o tempo cronológico e histórico passa ao segundo plano, dando lugar a uma temporalidade prioritariamente simbólica: as tecnologias em rede promovem a fragmentação temporal e a intemporalidade, que utiliza aparatos tecnológicos numa fuga de contextos preestabelecidos pelo relógio e ruma à consequente absorção seletiva de valores sociais que cada contexto oferece ao “presente eterno”. Emerge, assim, uma nova forma espaço-temporal das práticas humanas, na sociedade em rede, articuladas pelas elites econômicas, políticas e simbólicas. O hipertexto (ou hipermídia) também tem papel importante na configuração espaço-temporal na internet, uma vez que desarticula padrões históricos e cronológicos dos acontecimentos e associa fatos de acordo com predileções do usuário (CASTELLS, 1999). Este recurso rompe a linearidade textual por meio da interferência direta de cada pessoa, possibilitando uma mistura de temporalidades linguísticas amparadas por bancos de dados, que recuperam o passado e organizam o presente em servidores digitais cujas capacidades podem quebrar barreiras espaciais e beirar o infinito. Embora a ideia de leitura por associação (não-linear) seja anterior aos textos digitais e ao surgimento da internet, é na rede mundial de computadores que ela atinge o ápice. Entre os motivos estão a facilidade para armazenar conteúdos, o caráter multimidiático da web – que associa mídias diversas em um mesmo produto e constrói este enredo mediante o uso de hiperlinks – e um maior grau de autonomia e liberdade do usuário para eleger roteiros de leitura personalizados. Na contramão do panorama apresentado, a parcela da população off-line (leia-se: pobre) permanece vinculada aos territórios geográficos e às temporalidades do relógio, em um distanciamento dos centros geradores de sentido e da mobilidade que caracteriza o poder no mundo globalizado. A elite extraterritorial, personificada na figura do “turista”, emancipa-se de restrições geográficas e passa a viver no tempo, levando consigo o capital e suas benesses. Já a camada pobre, composta pelo “vagabundo”, continua enraizada ao espaço geográfico

estigmatizado pela “Era Líquida”. A sociedade polariza-se, então, entre uma elite global e uma população local (BAUMAN, 1999). Na conjuntura das redes de comunicação, Castells (1999) também lembra a diversidade temporal ainda vivenciada por grupos sociais distintos fora do espaço de fluxos, ou seja, associada ao espaço de lugares. Nestes casos, o tempo biológico e a sequência socialmente determinada continuam a estruturar e a desestruturar materialmente sociedades mundo afora. Os indivíduos que controlam o espaço simbólico de fluxos transcendem o tempo, impõem padrões culturais, vivem em estado de liberdade e delimitam o acesso aos centros de poder. Os demais, no entanto, absorvem padrões em uma relação de participação predeterminada e apenas vivem enquanto o tempo transcorre. As percepções de espaço e tempo sociais sempre remetem ao contexto no qual se inserem. Cultura, religião, política, economia e comunicação compõem o alicerce das relações espaço-temporais ao longo da história humana, sob interferência – porém não determinação – da tecnologia. Conforme demonstra Moretzsohn (2002), os próprios estudos na área das Ciências Sociais sobre esta temática deixam claro que as análises podem sofrer variações correspondentes às características de cada cultura. Para acompanhar este processo, é necessário sintonizar-se ao espaço e ao tempo atuais.

Referências: BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. _________________. Modernidade Líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. Tradução de Roneide Venâncio Majer. Atualização para 6ª edição de Jussara Simões. 7. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999. (A era da informação: economia, sociedade e cultura. v. 1) MORETZSOHN, Sylvia. Jornalismo em “tempo real”: o fetiche da velocidade. Rio de Janeiro: Revan, 2002. SCOLARI, Carlos. Hipermediaciones: Elementos para una Teoría de la Comunicación Digital Interactiva. Barcelona: Gedisa, 2008.

Ana Célia Sá Leitão é doutoranda no Programa de PósGraduação da Universidade Federal de Pernambuco PPGCOM/UFPE.


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Jornalismo Independente Jornalismo e financiamento coletivo Por Karolina Calado

A relação da mídia com a publicidade e propaganda do Governo Temer: o que o povo tem a ver com isso?

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m u ma ép o c a na qu a l o dis c urs o de cr is e é const ante no p aís, é no mí n i mo quest ionável o mot ivo que l e va o atu a l pre sidente a p agar uma exorbit ante qu ant i a de din heiro com anúnc io pu bl i c it ár i o à g rande mídi a br asi l eir a. Ent re mai o e agosto de 2016, p or exempl o, a Glo b o re ceb e u 24% a mais em rel aç ão a ess es me s mos me s e s em 2015. A Abr i l, p or su a ve z, re ceb e u u m v a l or 624% maior que em i gu a l p e r í o d o do ano anter ior. “D es de que assumiu a pre si dênc i a d a repúbl ic a, inter iname nte, d e p ois def init iv amente, o gover no Mi chel Te me r el e vou, s em qu a l quer c onst rang i me nto, as ver b as publ icit ár i as p ara a g rand e mí di a ol igárquic a que pro du z as manche te s qu e infor mam e desinfor mam a mai or p ar te d a p opu l aç ão br asi l eir a” (A NT U N ES , 2016) . A S e cre t ar i a de C omunic aç ão do G ove r no Fe d e ra l us a a just if ic at iv a de que o anúnci o publ i cit ár i o é p ago tendo em v ist a a aud iênc i a d o ve í c u lo. O que j á fere o pr inc ípi o d emo crát i co de direito, p ois há, cer t amen te, um favore ci mento de uns em det r imento d e out ros . Mais co erente s er i a est ipu l ar u m f u nd o qu e pudess e for t a l e cer a m í d i a i nd e p e nde nte. O que tor na ess es v a l ios os anú nci os i le g ít i mos é p ens ar que, enqu anto o t rab a l ha dor br asi l eiro p erde direito s p or just if i c at ivas de cr is e, o G over no Fe d era l enche o b ols o d os donos do s g r andes veí c u l o s d e comu n i c aç ão. Iss o mesmo, o din hei ro f i c a conce nt rad o, p orque o prof issiona l d o j or na lismo s e g ue com su as at iv id ades c ad a ve z mais pre c ár i as. No ent anto, em nome d a l i n ha e d itor i a l dos s eus p at rõ es, ess es j orna l ist as pro c u ram c ons cient izar ac erc a d os

“ b enef í ci os” d as p olít i c as prop ost as p el o G over no Temer. Fa lt a a mai or i a d os prof is s i onais d a comun i c aç ão expli c ar como i r á convencer que é i mp or t ante cor t ar/congel ar gastos em s aúd e e e duc aç ão p or 2 0 ano s ou ai nd a que é ess enci a l refor mar a leg isl a ç ã o que protege a ap os ent ad or i a d o p ovo br asilei ro em prol d o e qui líbr i o d a pre v i d ê nc i a s o ci a l s e, ao mes mo temp o, os veí c u lo s, p ar a os qu ais t rab a l ha, re ceb em t anto di n he i ro com verb as publi cit ár i as . C omo s e não b ast ass e to d o ess e de smand o com o d i n hei ro públi co, vê- s e, ai nd a , m i l hõ es s end o d est i nad os à pro duç ão d e pro p agand as que v is am à mel hor i a d a i mage m d e um gover no i leg ít i mo, j á que o me smo s e encont ra em uma f as e cr ít i c a d e p opul ar i d ad e. A i mp opu l ar i d ad e é expli c a d a p or f atores n ít i d os , d es d e o d i a em que Mi chel Temer assumiu o p o d er exe c ut ivo, s e u gover no não f az out ra cois a, a não s e r provo c ar um comb ate ass í duo cont ra as cl ass e s menos f avore ci d as d o Bras i l. Q ue há rel evânci a na publi ci d ad e d e gover nos qu e s e pre o c up am com as d emand as s o ci ais , iss o é f ato. O que não p are ce s er o c as o d o atua l gover no. “ ( . . . ) o leitor pre cis a s ab e r qu e as verb as publi cit ár i as s ão uma i mp or t ante fer rament a d e qu a lquer gover no p ar a f a l ar com a p opu l aç ão. Por mei o d a prop ag and a , o p ovo é i n for mad o d e c amp an has d e v a ci naç ão, proj etos s o ci ais , açõ es e duc at iv as, a lteraçõ es d e reg ras d a pre v i d ênci a s o c i a l, d os praz os p ara p agamentos d e i mp o sto s, ent re out ros . Por t anto, qu anto mais mu ni cípi os forem abrang i d os , mai or s er á a p o pu l aç ão a re ceb er a mens agem” ( A N TU N ES, 2016). A C onst itui ç ão Fe d erat iva d a R e públ i c a Bras i lei ra a ler t a, em s eu ar t i go 3 7 , § 1 º , qu e : “ A publi ci d ad e d os atos , prog ramas , obr as, s er v i ç os e c amp an has d os órgãos públ i c o s d e verá ter c aráter e duc at ivo, i n for mat ivo ou d e or i ent aç ão s o ci a l, d el a não p o d e nd o const ar nomes , s í mb olos ou i mage ns qu e c arac ter i z em promo ç ão p ess o a l d e autor i d ad es ou s er v i d ores públi cos”. No e nt anto, d e mo d o i r resp ons ável, o G over no Fe d e r a l,


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e m prop ag and a s obre a refor ma do E nsi no Mé d i o, p or e xe mpl o, fa l a que 72% dos j o vens aprovam a refer id a refor ma. E nt ret an to, as o c up a çõ es nas es col as, nos s egu nd o s eme st re de 201 6, most r ar am o cont r ár i o. R e c e nte me nte, a prop agand a s obre a R eforma d a Pre v i d ê nci a foi susp ens a p or des resp e it ar o D e cre to nº 6.555/ 2008, d a Pres i d ê nci a d a R e públ ic a, referente às açõ es d e c omun i c aç ã o do Po der E xe c ut ivo Fe der a l, o qu a l re za qu e é p ap el d a prop agand a: “I I d ivu lg ar os d i reito s do cid ad ão e s er v i ços c ol o c a dos à su a disp osiç ão” e “III - est imu l ar a p ar t i cip aç ão d a s o cie d ade no deb ate e na for mu l a ç ão de p ol ít ic as públ ic as”. Ness e c onte xto brasi l eiro, é p o ssível est ab elec e r u ma aproxi maç ão com a c r ít ic a feit a p or Hab er mas ( 1984) ao ana l is ar a publ ic id ad e e prop ag and a na esfer a públ ic a burgues a: “A prop ag and a é a out r a f unç ão que uma es fera públi c a d omi nad a p or mídi as assum iu. Os p ar t id os e as su as organizaçõ es auxi l i ares vê em- s e, p or iss o, obr igados a inf luenci ar as d e cis õ e s ele itor ais de mo do publ icit ár i o, d e u m mo do b e m aná l ogo à press ão dos comerci ais s obre as de c is õ es de c ompr a /9 7 /: su rge o ne gó ci o do market ing p ol ít ico. Os ag it adore s p ar t id ár io s e o s prop agandist as a o vel ho e st i lo d ão lugar a esp e ci a l ist as em publi ci d a de, ne ut ro s em matér i a de p ol ít i c a p ar t id ár i a e qu e s ão c ont r at ado s p ar a vend e r p olít i c a ap olit ic amente (p. 252)”. Hab e r mas ( 1984) probl emat iza que a publ i c id ad e foi ut i l izad a de dist int as manei ras na for maç ã o d a esfer a públ ic a burgu es a. Em u m pr i me i ro momento, com a f unç ão d e publi ci zar ou tor nar públ ico deter m i na d o s assu ntos e dep ois assumindo o p ap el d e man ipu l ar s e j a em ter mos ide ol ó g icos, s ej a e m te r mos me rc adol óg ic os. “À me did a que a e s fera públi c a é, p orém, tomad a p el a public i d a d e come rci a l, p ess o as pr iv ad as p ass am i me di at ame nte a atu ar enqu anto propr i et ár i os pr ivad os s obre p ess o as pr iv ad as en qu anto públi co. Niss o, p or cer to, a c omerc i a l izaç ã o d a i mprens a v ai de enc ont ro à met amor fos e d a esfer a públ ic a em um mei o d a prop ag and a: invers amente, aquel a t amb ém é, no e nt anto, l e v ad a av ante p or ne ces s i d a de s d e prop agand a c omerc i a l or iund as autonomame nte de contextos e conômic os”. Ai nd a, Hab e r mas (1984) enfat iza que “o i nve st i me nto no s etor d a publ icid ade, um d e s envolv i me nto de rel açõ es públ ic as confor ma mo d e r nos méto do s de gest ão, mo st ra qu e a ‘publi ci d ade’, g r andemente esp oli ad a

d e su as f unç õ es or i g i nais , est á agora , s ob o p at ro cí n i o d as ad mi n ist raç õ es , d as ass o c i a çõ es e d os p ar t i d os , mobi li z ad a d e um out ro mo d o no pro cess o d e i nteg raç ão ent re E st ad o e s o ci e d ad e” ( p. 2 3 1 - 2 3 1 ) . O f i lós ofo a lemão acres cent a que hav i a d ois t ip os d e publi ci d ad es : a man ipu l at iv a e a cr ít i c a, ess es conceitos s ão, p or t anto, b e m contemp orâne as nos d i as atu ais . “Na re a li d ad e const ituci ona l d o E st ad o d a s o c i a l- d emo craci a ( c apit a list a) , há uma d isput a d ess a f i gura d a ‘publi ci d ad e’ cr ít ic a c om aquel a publi ci d ad e que é organ i z ad a ap e nas com f i ns man ipu l at ivos /1 2 5 /; a es c a l a e m que el a s e i mp õ e i nd i c a o g rau d e d e mo c r at i z aç ão d e uma s o ci e d ad e i ndust r i a l e st r uturad a como s o ci a l- d emo craci a – ou s e j a , raci ona li z aç ão d o exercí ci o d o p o d e r s o c i a l e p olít i co” ( HA BE RM AS , 1 9 8 4 , p. 2 7 0 ). E nt re prop agand as , anúnci os publ i c it á r i os e uma mí d i a que teme p erd er su a g r an d e fonte d e re c urs os e, p or t anto, s i le nc i a ou pro c ura most rar o “ l ad o b om” d as re for mas, têm- s e mais d i reitos s o ci ais ame a ç a d o s, a lém d e um públi co que compra as i d e i as cr i ad as p elo G over no, as qu ais s ão re pro duz i d as p el a mí d i a e p or g r up os esp e c í f i c o s. E , en f i m, obs er va- s e mov i mentos p opu l are s en f raque ci d os , i nclus ive, p or cont a d e u ma g rand e mass a que s e comp or t a d e for ma ap olít i c a, resu lt ad o d e uma comu ni c a ç ã o s istemat i c amente d istorci d a.

Referências: HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Tradução: Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. 398p. Texto de Pablo Antunes. “Temer tira a grande imprensa do vermelho”. Disponível em: < http:// obser vatoriodaimprensa.com.br/imprensa-emquestao/temer-tira-grande-imprensa-do-vermelho/ > Acesso em 20 de abril de 2017.

Karolina Calado é doutorando do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. Nesta coluna, proponho uma discussão acerca das questões que envolvem a economia política dos meios de comunicação, especialmente a partir da internet e dos modelos de financiamento coletivo.


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Jornalismo Ambiental Sociedade, natureza e mudanças climáticas Por Robério Daniel da Silva Coutinho

Educação ambiental e comunicação popular e comunitária made in PE

Não haverá harmonia e felicidade para uma sociedade que ignora, que deixa à margem, que abandona na periferia parte de si mesma” (Papa Francisco, 2013). A “periferia” aqui tratada pelo pontífice na sua encíclica sobre a natureza pode/deve ser entendida como a vida humana e a vida não humana na Terra - uma casa comum de todos. Assim, “o tema ambiental é muito mais que uma escolha sábia e necessária nos tempos atuais – em que muito se fala, mas pouco se faz pelo Meio Ambiente (e pela humanidade) – é também uma motivação para continuar acreditando que um mundo melhor é possível” (OLIVEIRA, 2014 apud SILVA, 2014). No entanto, esta crença por um mundo melhor ne-

cessita passar por uma “nova ética que valorize não só a vida humana, mas a vida não-humana” (LIMA, 2004), por meio de atividade e de saber que busca reconstruir a relação entre a educação, a sociedade e o meio ambiente visando formular respostas teóricas e práticas aos desafios colocados por uma crise socioambiental, como, por exemplo, o extermínio de jovens nas periferias de Pernambuco, quando compreendemos que a questão ambiental está para além de sua vertente conversadora, não reduzindo-se só a fauna, flora e recursos naturais, mas incluindo o homem como parte. Essa perspectiva ética demanda uma educação ambiental emancipatória, da qual Lima (2004) discorre como aquela que procura enfatizar e associar as noções de mudança social e cultural, de emancipação/ libertação individual e social e de integração no sentido de complexidade. Uma mudança social oriunda de uma insatisfação ou inconformismo com o estado atual do mundo, com as relações sociais que os indivíduos estabelecem entre si, com as relações dos indiví-


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duos consigo mesmos e com as relações que estabelecem com o seu meio ambiente. Dentro deste contexto, destaca-se aqui a busca por uma mudança social proveniente desta perspectiva de educação ambiental emancipatória praticada por uma comunicação popular e comunitária promovida pelo Coletivo Tururu, grupo de jovens da comunidade do Tururu no bairro do Janga, na cidade de Paulista, na Região Metropolitana do Recife, em Pernambuco. Há mais de um ano, o grupo vem fazendo um trabalho local de educação e comunicação socioambiental. Tem mostrado que a vida humana (especificamente a dos jovens mortos) e a vida não humana (os problemas da mata atlântica no bairro) carecem de uma educação visibilizada por meio de uma prática comunicacional simbólica através da referida realidade social de violência vivida no bairro, a fim de não naturalizar a morte dos jovens, mas encará-las como um extermínio e que carece ser problematizada e perceptível por toda comunidade em busca de nova realidade.

Um vida (árvore) para cada jovem assassinato na periferia O Coletivo Tururu está imerso na campanha de educação e comunicação “Eu não quero ser o próximo”. Nela, através da utilização de recursos da comunicação, em especial da fotografia, audiovisual e de cartazes lambe-lambe, têm-se inserido discussões na comunidade referentes à bandeira de luta permanente do grupo (dar visibilidade à violência e extermínio da juventude). Este ano, um dos pontos auges da campanha integra a questão socioambiental via a estratégia de mobilizar a comunidade e a sociedade em geral para uma iniciativa prática e simbólica de associar a vida da árvore com a vida do jovem - ambos que sofrem com as violências nestes aglomerados humanos urbanos. No próximo dia 5 de maio, uma muda de árvore será plantada na mata do Tururu (reserva da floresta Atlântica no local) para cada jovem que foi assassinado na comunidade. A ação não é para simbolizar a morte, mas para valorizar a vida e pedir um basta no extermínio - não à violência e contribuir na esperança em um mundo melhor para todos. Além dessa atividade, a campanha “Eu não quero ser o próximo” vem atuando na articulação de diversas ações sistemáticas para atingir o objetivo supracitado. O objetivo central é chamar a atenção pública e política para o problema do extermínio dos jovens. O Coletivo Tururu tem organizado um grupo de jovens na comunidade a fim de serem formados em educação popular para debater a temática da violência e extermínio da juventude através da fotografia e elaboração de vídeos sobre jovens e a comunidade, e tem realizado exposições de fotografia. As estratégicas de comunicação e de educação po-

pular do grupo têm apostado na elaboração também de jornal fanzine com o tema em questão e distribuído na cidade, como instrumento e processo informativo e formativo permanente. Também produzem e afixam banners pela comunidade/bairro. Neles, há fotos dos moradores com dados sobre a violência no Estado e o extermínio da juventude, denunciando e chamando a atenção da população para este gravíssimo problema. A experiência desenvolvida pelo Coletivo Tururu vem demonstrando pública e politicamente em uma comunidade de Paulista, com reflexos para outros bairros, cidades e estados, que não haverá mesmo “harmonia e felicidade para uma sociedade que ignora, que deixa à margem, que abandona na periferia parte de si mesma”. É por isto que (a partir da insatisfação deste jovens com relação ao estado atual do amplo e ainda naturalizado problema da violência e morte da juventude no bairro, e com relações que são estabelecidas com o seu meio ambiente) eles buscam provocar a mudança social através da referida educação e comunicação popular e comunitária. Tais iniciativas começam a ser reconhecidas à nível nacional. O Coletivo foi premiado pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos pela produção do Documentário “Tururu: Justiça, Paz e Vida” e pelo Ministério da Cultura pelo conjunto das ações desenvolvidas pelo grupo.

Referências: LIMA, G. F. C. Educação, emancipação e sustentabilidade: em defesa de uma pedagogia libertadora para a educação ambiental. In: Identidades da educação ambiental brasileira. Brasília: Ministério do Meio Ambiente, 2004; OLIVEIRA, M. A.B. A Educação Ambiental em PE. In: A educação ambiental de Pernambuco (1979 a 1988). SILVA, L. F. M. Recife: Ed. UFPE, 2014; PAPA FRANCISCO. Carta Encíclica Laudato SI: sobre o cuidado da casa comum. Vaticano. Ed. Vaticana, 2015.

Este espaço apresenta abordagens críticas e interdisciplinares relativas à produção da representação noticiosa da realidade social (jornalismo) sobre as mudanças climáticas e a sua influência na constituição do sentido social sobre a questão. É escrito pelo jornalista Robério Coutinho, mestre em Comunicação pela UFPE, com formação básica em Meteorologia pelo INPE/CPTEC, exassessor de imprensa do Laboratório de Meteorologia de PE, bolsista pesquisador da Rede Brasileira de Mudança Climática e autor de livros sobre o temática.


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Opinião

Biodança: Caminho Percorrido Por Lúcia Helena Ramos da Silva

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onforme o prof. Dr. Rolando Toro, educador, psicólogo e antropólogo, a proposta da biodança “não consiste só em dançar, mas em ativar, mediante certas danças, potenciais afetivos e de comunicação que nos conectem com nós mesmos, com o semelhante e com a natureza”. Ao longo de 50 anos, a partir das experiências profissionais na aérea de educação primária, de investigações sobre os efeitos de psicoativos, sobre saúde mental e pela expressão artística através do teatro, ele construiu e sedimentou um sistema de desenvolvimento humano, com base teórico-metodológica interdisciplinar. A biodança foi concebida a partir de uma visão integral do ser humano, a qual impõe como consequência a necessidade de desconstruir modelos epistêmicos dissociados e que tornam as relações sociais conduzidas por valores anti-vida. Com aguçada visão crítica sobre rigidez de valores sociais e métodos educacionais vigentes, Rolando Toro entende que esta rigidez nos aprisiona e impede que nos expressemos de forma genuína e profunda. Desse modo, Rolando Toro pauta suas práticas educativas a partir da estimulação da expressão artística pela pintura e desenho utilizados nas aulas de educação primária nas escolas públicas da região sul do Chile. Nos anos 1969 deu início às investigações na aérea da música pesquisando sobre Dança terapia, Musicoterapia e psicodrama, práticas que buscavam caminhos paralelos aos consolidados pela academia. Posteriormente fez investigações sobre o efeito da música em pessoas com transtornos mentais no Hospital Psiquiátrico ligado ao Centro de Estudos de Antropologia

Médica da Escola de Medicina da Universidade do Chile. Foi assim que surgiram as primeiras noções de uma metodologia denominada, à época, Psicodança que tinha como força o poder da música na expressão dos conteúdos emocionais individuais. Segundo Rolando Toro “Um dos propósitos da Psicodança é eliminar a rigidez musical, que está sempre ligada à rigidez do comportamento”. Com isto, objetivava sensibilizar as pessoas para se permitirem conhecer expressões musicais de todas as culturas. Compreendia que todas as pessoas em sua formação deveriam ter acesso a diferentes estilos musicais, eliminando fronteiras socioeconômicas e intelectuais na escuta musical. Possibilitar que se ingresse em um “universo sonoro” muito amplo e variado foi sendo a proposta para o desenvolvimento de processos identitários. Outro caminho percorrido para a construção da dança como movimento de vida se deu pelas experiências com as artes cênicas com grupos de estudantes universitários, no início dos anos 70, quando lecionou a Disciplina de Psicologia da Criatividade na Universidade Católica do Chile. Os Jogos de Psicodança eram espetáculos de teatro experimental contemporâneo, com expressões livres pela dança, a partir de temas críticos. Já como antropólogo introduziu o conhecimento sobre as cerimônias de transe e danças ritualísticas dos grupos Xamânicos no sul do Chile, por entender a relevância de se vivenciar seus efeitos de ampliação de consciência e vinculação com a natureza. Os rituais das danças em diferentes povos originários foram investigados e serviram de referência na estrutura metodológica da Biodança para


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produzir um estado interno de conexão com os próprios sentimentos e vínculo com o universo, com a coletividade. O que é Biodança? Nesta estrutura a música e a expressão de emoções tornaram-se a base para a construção de uma prática interdisciplinar, que leva em conta não apenas os aspectos psicológicos, mas biológicos, fisiológicos, artísticos, culturais e filosóficos como importantes para a integração do ser humano. Por essa razão, entende ser mais adequado o nome Biodança ao invés de Psicodança. Durante as danças surgem formas de expressões que ao mesmo tempo são próprias do individuo, mas também seguem modelos de imagens coletivas e que só têm sentido se houver um ambiente humano favorável às expressões destes conteúdos. A Biodança se fundamenta numa compreensão sistêmica de saúde. A doença, segundo Toro (1997), se dá pelo desequilíbrio da totalidade do organismo, pois compreende que o funcionamento orgânico ocorre em circuitos interligados. A proposta é, através dos exercícios, promover a expressão de emoções de forma integradora. Tal expressão favorece a auto regulação orgânica, uma vez que atua nos sistemas neurológico, endócrino e imunológico. As vivências em grupo, estimuladas por músicas apropriadas, favorecem o aprendizado do indivíduo consigo mesmo, ao promover um contato maior com suas emoções; com o outro, entendendo o outro como ecofator positivo (alguém com quem é possível se conectar para favorecer a expressão das emoções); e com a totalidade, considerando o homem como um ser vivo a mais no universo. Através da música são estimuladas expressões de emoções, que podem não ser expressas em decorrência das repressões sociais. Os movimentos corporais sugerem uma dança carregada de emoções autênticas que deflagradas pela música, liberam potenciais individuais. As aulas, com objetivos de promover o desenvolvimento humano, obedecem à dinâmica do grupo, atentam para facilitar expressões de ânimo, força vital, prazer em viver, criatividade, entusiasmo, ímpeto, afeto por si e pelo outro. O programa de Biodança, entre outras coisas, inclui: a) exercícios de expressão de emoções reprimidas (raiva, medo, sofrimento); b) autorregulação neurovegetativa; c) Mobilização e desbloqueio de tensões corporais; d) cuidado consigo, com o outro, e com a natureza; e) reforço da autoestima e da segurança em si mesmo; f) fortalecimento de relações afetivas; g) eliminação de impulsos autodestrutivos inconscientes. Um fator importante no processo a que a pessoa é submetida é que, ao ser estimulada a expressar potenciais, descobre e/ou redescobre outras habilidades, sejam criativas, afetivas ou vitais. Neste sentido as aulas de Biodança dão subsídios para elevar a qualidade de vida, o aumento das defesas imunológicas, a destreza motora e o ímpeto vital, bem como sentir-se motivado a viver e melhorar a comunicação nas relações interpessoais.

O campo de atuação em Biodança envolve as áreas clínica, educacional e organizacional. Na área clínica, com grupos de crianças, adultos, idosos, jovens. A Biodança com fins clínicos auxilia no tratamento de neuroses, enfermidades motoras, psicológicas e de adaptação social. Na aérea de educação, a atuação é feita em espaços de aprendizagem formal e informal, com proposta de educação biocêntrica para educadores, alunos e pais de alunos. E em empresas com objetivos de motivação para o trabalho, diminuição de ansiedade e estresses. Recentemente o Ministério da Saúde do Brasil, considerando que a OMS preconiza o reconhecimento das Medicinas Tradicionais e Complementares nos sistemas nacionais de saúde, denominadas como práticas integrativas, reconheceu a Biodança como uma delas. Entendemos que esta conquista amplia o campo de atuação da Biodança, bem como oferece novas possibilidades de acesso ao público. METODOLOGIA - A metodologia de Biodança consiste na utilização da música, da dança e do canto para facilitar a expressão das emoções e, assim, promover possibilidades de mudanças e descobertas pessoais. Para tanto realizamos dois momentos de grupo: no primeiro, através do relato, a pessoa troca experiências de emoções vivenciadas; e, no segundo, se dá a vivência propriamente dita, onde o grupo de fato dança. Essa vivência são sempre acompanhados de músicas, exercícios individuais e coletivos. As músicas por um lado são alegres para promover vitalidade e integração entre as pessoas, e, por outro, músicas introspectivas para favorecer um estado de interiorização e conexão consigo. A dança entendida como movimento de vida faz com que a pessoa ao se movimentar expresse sentimentos direcionados às habilidades: vital, afetiva, criativa, de prazer de viver e de plenitude. Através dos exercícios o aprendizado se dá em três níveis: consigo mesmo, com o outro e com a totalidade, o meio ambiente. No âmbito nacional a Biodança é oferecida em todos os estados brasileiros, com escolas de formação para desenvolvimento de competências. Bem como em países da América-latina, Europa, estados Unidos, Ásia e África.

Referências: TORO, R. Biodanza. Editorial Olavobrás/EPB,São Paulo,2002,2005 TORO, R. Rolando Toro: Origens da Biodanza. Edições Corrientes Alterna. 2012.

Lúcia Helena Ramos da Silva é Mestre em Psicologia Social – UFPE, Professora de Biodança, Diretora da Escola de Biodança de Pernambuco e Diretora do Museu de Artes Afro-Brasil.


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Eleições na França: a reforma em aberto Por Pedro de Souza

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mmanuel Macron, 39 anos, ex-ministro da economia do penúltimo governo francês, será, muito provavelmente, o próximo Presidente da República da França, o mais jovem de sempre, excluindo Napoleão Bonaparte, Imperador aos 34 anos. O seu programa social-liberal não parece diferir fundamentalmente do programa do atual Presidente Hollande. No entanto, devemos sublinhar o seu compromisso favorável à refundação da União Europeia, num momento em que esta é severamente posta em causa por políticos dos mais variados quadrantes. No primeiro turno da eleição presidencial, dia 23 de abril de 2017, Macron obteve 24,01% dos votos, contra Martine Le Pen (21,3%), candidata do Front National, partido de extrema-direita, os dois disputando o segundo turno dia 7 de maio. Dois outros candidatos, agora eliminados da competição, obtiveram resultados muito próximos: François Fillon, o candidato da direita (20,01%), e Jean-Luc Melenchon, candidato da esquerda radical (19,58%). Nunca se assistiu a tal divisão do eleitorado francês. O candidato do Partido Socialista ficou em quinto lugar com apenas 6,36%%. Pela

primeira vez na história da quinta República francesa nenhum dos dois partidos de governo, o de direita e o socialista, estarão presentes no segundo turno da eleição presidencial. Ambos apelaram a votar Macron. Apesar do voto favorável de 24% do eleitorado não ser um lastro inicial dos mais seguros para um Presidente, o sucesso do trajeto de Macron, que nunca disputara uma eleição, é inegável. Ao longo da campanha ele se beneficiou no entanto de uma série de coincidências, nomeadamente pelo fato do presidente precedente não se recandidatar. Embora Hollande não fosse reeleito, dada a sua impopularidade, Macron teria de dividir o mesmo espaço político o que, dada à reduzida diferença dos resultados, seria suficiente para inviabilizar a sua passagem ao segundo turno. Além disso, os candidatos dos dois principais partidos, de direita e socialista, foram escolhidos em primárias abertas aos “simpatizantes” desses partidos, daí resultando que nenhum deles fosse o melhor candidato, do ponto de vista eleitoral. Com o candidato da direita acusado de nepotismo e tentando pescar votos entre os apoiantes de


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Le Pen, e o socialista tentando captar os de Melenchon, abriu-se um largo espaço ao centro, que Macron ocupou, seduzindo o eleitor francês com sua juventude, vagas promessas de modernidade, e se apresentando acima dos partidos tradicionais. Mas o seu sucesso se deve também às dezenas de milhares de militantes benévolos que conseguiu motivar para fazer um porta-a-porta de contato com a população, coisa que os candidatos “do sistema” não se dão mais ao trabalho de fazer. Esse entusiasmo foi partilhado por largos setores da imprensa, da política e da finança: vários ministros e responsáveis socialistas preferiram apoiá-lo contra o candidato oficial do seu partido, e dinheiro não faltou à campanha daquele que virou também o candidato do establishment. Dando oportunidade a que Marine Le Pen se auto-intitule agora a “candidata do povo”. O outro caso de sucesso nessa eleição foi o de Jean Luc Melenchon, um socialista que abandonou o partido em 2008, para criar o Parti de Gauche (Partido de Esquerda). Melenchon já tinha se candidatado à Presidência em 2012, representando um largo leque de movimentos de esquerda e ecologia radicais, e obtendo um bom resultado: 11,10%. Em 2017 chegou a acreditar que disputaria o segundo turno, ficando finalmente a apenas 1,72% pontos da segunda candidata. Melenchon, que é um excelente orador, adotou nesta eleição uma estratégia baseada nos mais atuais recursos das redes sociais, e também tecnológicos, chegando a projetar a sua imagem simultaneamente em meetings em cidades distantes, através de hologramas. Mas o seu programa valeu sobretudo pela crítica do capitalismo financeirizado, defendido por instituições como o Banco Central Europeu, inimigo de qualquer avanço social num país que, embora rico, assiste há mais de 20 anos, impotente, ao desemprego, à estagnação econômica e à concentração da renda. Melenchon foi taxado de populista de esquerda, de nacionalista, de bolivariano - sinônimo de aventureiro - pela imprensa e pelos restantes candidatos, quando começou a subir nas sondagens. Se algumas das suas propostas, que não podemos desenvolver aqui, eram utópicas e até demagógicas, o diagnóstico, nas suas grandes linhas, era correto. Muitos dos novos votos que somou vinham de eleitores que normalmente votariam socialista, mas a estratégia de Melenchon passava também por ir ao encontro de setores populares radicalizados, que fornecem o grosso das hostes do Front National. Análises finas dirão mais tarde se esse objetivo foi alcançado. Mas isso ajuda a explicar por que Melenchon não apelou até o momento a votar Macron na segunda volta das eleições presidenciais, o que lhe tem valido críticas generalizadas. É que Melen-

chon não desistiu de seduzir uma parte do eleitorado do FN. De fato esta revolução da política francesa não termina com o segundo turno das eleições presidenciais. Às eleições presidenciais se sucedem as legislativas, visto que o presidente recém-eleito, que dispõe do poder de dissolver a assembleia, precisa de uma maioria parlamentar para governar. No caso de Macron isso será ainda mais necessário, visto que o seu partido, criado em 2016, ainda não foi a eleições. Dado o sistema francês (distrital majoritário uninominal com dois turnos, e uma barreira de 12.5% para passar para o segundo), que favorece a fidelidade ao deputado local, a vitória na presidencial não terá tradução homóloga nas legislativas. Mas é previsível que os dois partidos de governo percam deputados para En Marche! para o partido de Melenchon e o Front National, que se banalizou no panorama político francês, quando se trata de um partido que mal oculta a sua natureza racista e xenófoba. Está na hora da esquerda refletir sobre os seus objetivos e estratégia. Na França, na Europa e não só, pois de contrário a tendência será caminhar para uma espécie de integrismo identitário, xenófobo, ocultando um capitalismo selvagem, que é o que a extrema-direita tem a oferecer, com as consequências que conhecemos. O caminho para a reconquista do voto popular depende das tradições de cada país, e dos seus sistemas eleitorais, mas não há dúvida que é necessário resgatar o voto popular, convencer os eleitores de que a agressividade identitária não é a solução para os problemas do mundo. Por outro lado, o capitalismo produtivo deve entender também onde está o seu interesse e evitar a aliança entre a direita mais retrógrada, a finança especulativa e o belicismo, que é aquilo a que se assiste nos EUA, e tende a ser exportado pelo mundo. Esta eleição na França ilustra ainda o fato da política ser uma arte que joga com oportunidades, mas que exige mais que manifestar opiniões e decisões de gabinete: nada se alcança sem uma mobilização profunda da população, coisa que os grandes partidos franceses parecem ter esquecido, e agora pagaram.

Pedro de Souza é pesquisador, editor e exSuperintendente Executivo do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento. E-mail: pdrdesouza@gmail.com.


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Opinião

A Igualdade de Gênero no Governo de Rafael Correa Por Bárbara Lopes Campos

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Equador acaba de completar mais um ciclo eleitoral em meio a processos intricados e complexos no cenário latino-americano. Porém, os resultados das elecciones generales de 2017 não garantem imediatamente a continuidade do legado de Rafael Correa, inclusive no que diz respeito à abordagem que incorpora a agenda da promoção da igualdade de gênero no país e na região. Acontecimentos recentes no Brasil, Paraguai e Venezuela, por exemplo, estão revelando movimentos que demonstram inquietude política na região. Com a retirada de Dilma Rousseff do poder em 2016, interrompendo a liderança política do Partido dos Trabalhadores no Brasil, diversas discussões emergiram, movidas pelas transformações que assombram a população brasileira. Os projetos políticos pautados pelo governo incluem cortes de investimento social por parte do Estado, reformas no sistema previdenciário, na legislação trabalhista e mudanças que alteraram mecanismos institucionais, como a própria Secretaria de Políticas para Mulheres. O processo de impeachment de Fernando Lugo no Paraguai, que durou apenas 36 dias em 2012, abriu espaço para o retorno do partido Colorado, que lidera o cenário político paraguaio desde a década

de 1940. Porém, a recente manobra de Horácio Cartes, eleito em 2013, resultando na aprovação do senado da possibilidade de reeleição do presidente, foi mal recebida pela população. Protestos irromperam no país, desencadeando atos que culminaram no atear de fogo no congresso paraguaio, atitude que pode representar profunda rejeição da população pelo caminho político seguido pelo país. Já na Venezuela, a incerteza do governo de Nicolás Maduro, que assumiu a liderança do país também em 2013, demonstra a impossibilidade de uma estabilidade pelo discurso da continuidade do legado de Hugo Chávez. A oposição ao governo está se mobilizando contra Maduro, impulsionando medidas como o referendo revogatório ao presidente. Porém, Maduro apresenta uma postura rígida à fragilidade política do país, instituindo medidas de cunho autoritário como a proibição de Henrique Capriles, um dos maiores líderes da oposição venezuelana, a concorrer em cargos políticos pelos próximos 15 anos. Tendo como pano de fundo tal conjuntura, Lenín Moreno emerge na disputada presidencial equatoriana como o sucessor de Rafael Corra. Sendo membro do Alianza País e vice-presidente de Correa até 2013, Moreno – ele próprio cadei-


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rante – demarcou sua presença na política nacional e internacional como um defensor e promotor dos direitos de pessoas com deficiência e de minorias. Sua campanha eleitoral foi guiada pelo discurso da necessidade de aprofundar a agenda política e social do governo, ao mesmo tempo em que seria independente de Correa. No dia 02 de abril, Moreno é declarado presidente eleito da República do Equador com 51,16% dos votos. Porém, a disputa eleitoral foi acirrada e o cenário político se configura como desafiador para o novo presidente. O resultado apertado do segundo turno, onde o líder da oposição Guillerme Lasso – da base Creo-Suma – recebeu 48,84% dos votos, confirma uma tendência heterogênea e não foi respaldado pela oposição (CONSEJO NACIONAL ELECTORAL, 2017). O resultado eleitoral foi recebido com protestos em algumas regiões do país e Guillerme Lasso pediu recontagem imediata de votos, afirmando que um poder executivo liderado por Moreno seria ilegítimo (MANETTO, 2017). Rafael Correa, por sua vez, declarou em redes sociais que o Alianza País acatou o pedido do Creo para recontagem dos votos, com a condição de que a oposição peça desculpas para o Equador e ao mundo quando a vitória de Lenín for confirmada. A manutenção ou não de um governo executivo comandado por Lenín Moreno, no sentido de dar continuidade à agenda de Correa, pode ter impactos significativos na forma como questões de gênero, assim com outras demandas sociais, têm sido tratadas pelo Equador nos últimos anos. Desde a ascensão de Rafael Correa em 2006, o Estado equatoriano passou por uma imensa transformação ao incluir, em seu interior, as discussões sobre Estado Plurinacional e a filosofia do Bem Viver (SCHAVELZON, 2015). A partir da Revolución Ciudadana Ecuatoriana, a nova Constituição do Equador incluiu de forma sistemática no Estado a importância da promoção da igualdade de gênero (DEFENSORÍA DEL PUEBLO DEL ECUADOR). A partir daí, diversos projetos de lei e políticas públicas voltadas para os direitos das mulheres e de outras minorias foram elaborados e adotados no governo de Correa, muitos deles sendo inclusive de sua autoria. Dentre eles vale destacar a Ley Orgánica de los Consejos Nacionales para la Igualdad, proposta pelo executivo e aprovada pela Assembleia Nacional em 2014. A lei estabelece Conselhos que exercem atribuições, em todos os níveis do governo, na formação, transversalização, observância, acompanhamento e evolução das políticas públicas relacionadas às temáticas de: gêne-

ro, etnia, geração, intercultura e de deficiência e mobilidade humana. Em especial, o Conselho Nacional para a Igualdade de Gênero está diretamente ligado à elaboração da agenda para a igualdade de gênero a nível nacional (REPÚBLICA DEL ECUADOR, 2014b). Ainda, Rafael Correa propôs e conseguiu aprovar pela Assembleia importantes projetos de lei como o Código Orgánico de Organización Territorial, Autonomía y Descentralización, aprovado em 2010, que aprofunda e estabelece mecanismos que garantem a continuidade da agência dos Conselhos Nacionais (REPÚBLICA DEL ECUADOR, 2010). Além disso, vale destacar o Código Orgánico Integral Penal, aprovado em 2014, que é de extrema importância para garantir direitos básicos das mulheres equatorianas. Nessa legislação, avanços importantes foram conquistados em termos da tipificação de feminicídio, discriminação e violência doméstica; além de estabelecer sanções e penas claras para a prática de tais crimes (REPÚBLICA DEL ECUADOR, 2014a). Podemos destacar, portanto, a importância de Rafael Correa na incorporação de tais pautas, de modo que a diretriz de seu poder executivo, juntamente com o respaldo e a maioria de seu partido no poder legislativo, encaminharam importantes pautas no país sobre direitos das mulheres e de minorias. Diante de tais processos, e apesar da tensão política constante, as eleições para o legislativo nacional confirmaram a maioria do partido de Correa, Alianza País, na Assembleia Nacional, indicando uma continuidade no alinhamento entre o poder legislativo e executivo, caso Lenín Moreno se consolide na presidência (REPÚBLICA DEL ECUADOR, 2017). Porém, a eleição acirrada e o descontentamento dos segmentos empresarias, juntamente com a perda de apoio por segmentos campesinos e indígenas no país, podem indicar uma situação mais difícil de ser balanceada pelo sucessor de Correa. Tal situação conflituosa implica em desafios para a manutenção e aprofundamento da agenda política e social de promoção da igualdade de gênero e de direitos de minorias desenvolvida no Equador na última década.

Bárbara Lopes Campos é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais. Este artigo foi originalmente publicado em 18 de abril de 2017 pelo Grupo Potências Medias.


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A politização da justiça: Aspectos doutrinários e ideológicos Por Rubens Pinto Lyra

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justiça é politizada quando o Ministério Público e o Poder Judiciário deixam de atuar no âmbito estritamente jurídico, fundamentando no direito vigente as suas denúncias, investigações, ordens e sentenças judiciais para submetê-las a motivações de natureza política, em nome do “interesse coletivo”, da “preser vação da “estabilidade’ ou da “ordem pública”, sempre levando em conta o “clamor das ruas”. Fica evidente que a politização da Justiça implica a substituição de critérios objetivos, que esculpem a normatividade jurídica, na conduta ministerial ou judicial, por decisões de cunho predominantemente subjetivo, com a constante adoção de medidas consideradas excepcionais, transgressoras dos direitos fundamentais. Não confundi-la com a judicialização da política, pois esta consiste de inter venção judicial, seja para arbitrar conflitos entre os Poderes, seja para preencher o vácuo produzido pela pouca apetência (ou pela incompetência) dos legisladores para legislar, ou para arbitrar desentendimentos interna corporis (NETO, 2015). O protagonismo da Justiça é alimentado pelo enfraquecimento dos partidos, pela falta de legitimidade do Poder Executivo e pelo Congresso majoritariamente corrupto, cujos integrantes não são reconhecidos como representantes idôneos dos cidadãos. Mas tem fontes de natureza doutrinária e ideológica nem sempre assumida. Sérgio Moro, cultor do famoso jurista Carl Schmitt, sustenta a necessidade de uma posição pró-ativa por parte do juiz, sem necessidade de levar em conta a interpretação dada por outros poderes constituídos pela Carta Maior. Estes, ao contrário, é que devem ser submetidos a severo escrutínio do Poder Judiciário. Moro refere-se ao círculo virtuoso das prisões, confissões e publicidade, tanto na operação Mani Pulite, na Itália, como na Lavajato, no Brasil. O protagonismo judicial, associado a uma estreita colaboração da mídia, foi es-

sencial para construir uma imagem positiva dos juízes. Para ele, quanto maior a deslegitimação do sistema político, maior a legitimação da magistratura (CAMARGO E VIEIRA, 2016, p. 299). A práxis do controvertido juiz curitibano e de muitos de seus colegas se orienta - conscientemente ou não - pela aplicação do conceito schmittiano do Estado de exceção, que é, entretanto, incompatível com o da soberania popular, e, portanto, com a democracia. Com efeito, para Carl Schmitt, A necessidade de decidir ante os casos excepcionais não pode contar com a participação do povo [....] nem com a decisão fundamental plasmada na Constituição. Neste último caso, a ordem constitucional representa uma anormalidade que precisa e faltamente vai ser quebrada pela urgência que envolve o caso excepcional (apud ALMEIDA, 2013, p.100-101). A explicação encontrada por Almeida (2013, p. 105) sobre aparente antinomia no pensamento schmittiano parece ajustar-se como uma luva à realidade brasileira: “Pode ser que o titular do poder de tomar a decisão se identifique com o grupo mais forte e que o modo de este grupo compreender a realidade política seja aproveitar as bases institucionais existentes para impor o seu domínio”. Não é difícil adivinhar, no Brasil atual, a qual grupo pertencem os que vão exercer a soberania, “desaplicando” a lei, com suas medidas excepcionais, tomadas em virtude de uma suposta excepcionalidade econômica, política ou social. Mas há também os que identificam em setores de esquerda que se insurgiram contra a dogmática jurídica - entusiastas do “direito achado na rua” – um importante fator dessa exaltação do “ativismo judicial”. Para Peixoto (2016, p. 212-213), eles teriam formado pelo menos duas gerações de “juízes missionários”: Jusnaturalistas irrefletidos, contrários à idéia de ritos processuais regidos pela letra legal, esses juízes adentraram a jurisprudência e as escolas. E da demanda por democracia e por


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transformação, represada pela ditadura, nasce uma elite no Judiciário que toma a legalidade como derivativa, suspeita, paquidérmica, problemática. Por outro lado, a realidade pós-Constituição de 1988 teria favorecido o sentimento de independência de setores do Judiciário e do Ministério Público em relação à própria normatividade jurídica, graças a salários desproporcionais ao nível de formação, estabilidade total, ausência de qualquer controle social e jurídico externo e penduricalhos (auxílios-moradia, paletó e outras aberrações) contribuíram para que o problema acarretado pela contaminação jusnaturalista se tornasse maior (PEIXOTO, 2016, p. 212-213) A Operação Lava Jato seria “um caso paradigmático dessa aberração anti-legalista e fortemente imbuída de uma missão externa à legalidade”. Ela deságua “na distribuição da suspeita anti-legalista, anti-jurídica e contra a idéia mesmo de representação política”, colocando na vala comum dos crimes contra a pessoa questões de natureza eminentemente social e política (PEIXOTO, 2016, p. 212-213). Em termos práticos, a questão fulcral consiste na extensão que se quer dar ao campo de atuação do Poder Judiciário e do Ministério Público na repressão à corrupção. O ativismo de influentes juízes e promotores pretende estendê-lo à esfera pública a partir de uma concepção elástica do conceito de “ordem pública”. Os promotores José Carlos Blat e Cássio Conserino ambicionam, nem mais nem menos, com a extensão desse conceito, “refundar a República” (BLOG DO JOTA, 2016). Uma ilustração clara de como se julgam investidos de uma missão demiúrgica, desconhecendo que, em uma democracia, só o povo, no exercício de seu poder soberano, tem poderes para refundá-la. Esse tipo de “doutrina” ser viu de respaldo ao pedido de encarceramento do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por condução coercitiva do Juiz Sérgio Moro, entre tantas outras medidas ilegais que extrapolam o legítimo arbítrio reconhecido aos magistrados, de aplicar a lei, para adentrar na esfera política, comprometendo a autonomia desta, e, com ela, a própria democracia. A extensão do conceito de ordem pública, se aceita, abriria caminho para a criminalização da atividade política, conforme a orientação

ideológica da autoridade judicial ou policial, em cada caso. Trata-se de processo insidioso, ambivalente, pois tudo é feito no âmbito do sistema de justiça, sempre em nome da lei, ora dentro dos seus limites, ora ultrapassando-os. Fica então difícil questionar como ilegais ou ilegítimas suas arbitrariedades visto que elas são praticadas pelo órgão que é precisamente encarregado de coibi-las: o Judiciário. Não obstante os condicionamentos ideológicos presentes naqueles que se acham investidos da missão de “salvadores da pátria”, estes afirmam agir com total isenção e imparcialidade, estando submetidos apenas à fria objetividade da lei. A julgar pelo posicionamento das seis associações de membros do Ministério Público, em solidariedade à atuação do Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, “a Procuradoria Geral da República atua sempre com total imparcialidade, de acordo coma lei, sem olhar a quem” (AGENCIA BRASIL, 2016). Mas o insuspeito testemunho do Promotor Dartan Dallagnol, chefe da Operação Lava Jato, desvela, sem o querer, a falácia dos que pretendem ignorar o peso dos fatores subjetivos, de natureza puramente ideológica, na conduta do agente público. Nas suas palavras: “O juiz da Lava Jato pode determinar os rumos de toda a operação. A mentalidade dele, sua forma de pensar, sua visão de mundo e do direito pode determinar o sucesso ou o naufrágio da operação. Especialmente, o juiz que é relator no STF” (DALLAGNOL, 2017, UOL). A compreensão da ameaça à democracia, representada pela politização da justiça, só poderá ser percebida, na sua real dimensão, e combatida, se a questão democrática e as atinentes à importância da hegemonia cultural - como a da democratização dos meios de comunicação - vierem a ser consideradas como prioritárias, dentre as propostas de mudança a serem apresentadas pela esquerda.

Rubens Pinto Lyra é Doutor em Direito Público e Ciência Política (Université de Nancy, França) e Professor do Programa de Pós-Graduação Direitos Humanos, Políticas Públicas e Cidadania da UFPB. Email: rubelyra@uol.com.br


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Mídia Fora do Armário Jornalismo e construções identitárias Por Rui Caeiro

Mídia fora do armário: jornalismo e construções identitárias

J

aneiro de 1995, Curitiba. Seis meses depois, Rio de Janeiro. Falar sobre a história LGBT brasileira sem mencionar essas datas e locais significa ignorar um dos pontos altos da afirmação do orgulho LGBT. Foi então, com cerca de 500 pessoas em cada um dos locais, que pessoas de sexualidades e/ou gêneros não normativos, ou seja, alvos preferenciais de violências várias, se encontraram para ocupar as ruas e gritar pelo direito a existir nos seus próprios termos. Essas Paradas não foram as primeiras manifestações no país: a passeata de 1980, em São Paulo, na qual se reuniram cerca de mil pessoas para protestar contra a violência policial, é disso exemplo. Contudo, é apenas nos anos 90 que os já citados eventos se tornam fixos, realizados anualmente, não enquanto reação a algum acontecimento pontual, mas resultado da organização coletiva que procura expor e combater as premissas cisheteronormativas que justificam o extermínio de sujeitos que marcam as violentas limitações desse sistema e que, portanto, ameaçam a sua (nada) natural (re)produção. Assim, por todo o mundo consideradas como verdadeiras marchas de orgulho, tendo em conta os

demorados e complexos processos na construção de uma força individual e coletiva que, apesar de todos os discursos, celebre a diferença, as Paradas se constituem, também devido ao elevado número de pessoas que conseguem reunir, como os eventos LGBT que maior visibilidade midiática conseguem alcançar, tanto a nível nacional como internacional. A visibilidade, no entanto, sem que em relação a ela tenhamos um posicionamento crítico, não nos diz muito sobre os significados construídos. Não basta celebrar a publicidade de determinadas realidades/eventos, mas em que termos ela é feita. Analisando a realidade nacional, bem como a local, somos obrigados/as a constatar que a mídia tem dado espaço, por vezes de destaque, aos já referidos eventos. Em harmonia com o aumento de participantes, bem como o impacto que têm na (economia) das cidades, essa visibilidade vem crescendo desde as primeiras edições. Iran Ferreira de Melo, professor na Universidade Federal Rural de Pernambuco, tem desenvolvido trabalho de investigação sobre a representação midiática da população LGBT em tais eventos e, sobre o tema, é assertivo: “a imprensa dominante restringe a diversidade e diferença entre LGBT, estigmatiza e cria discursos que limitam a agentividade política dos/as militantes. Isso se dá num nível micro de evidência quando, por exemplo, vamos ver o nomes usados para se referirem a essas pessoas, quando observamos que ações são atribuídas a


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elas e qual o grau de inserção política elas ganham quando os jornais as reportam”. Ainda que a produção seja cada vez em maior quantidade, não podemos então, segundo o investigador, falar numa mudança de paradigma, uma vez que a qualidade é a mesma ao longo dos anos e em diferentes jornais líderes de tiragem e venda: “LGBT têm suas especificidades apagadas, são estigmatizados como pândegos e possuem seu poder político e transformador reduzido”. Não se trata aqui, evidentemente, de criticar o caráter festivo que tais eventos também apresentam. Afinal, caso fosse necessário justifica-lo, esse caráter festivo é, desde logo, também político, no sentido em que, como já referido, trata da celebração das diferenças e igualdades, dos beijos e abraços, danças e falas desses sujeitos em espaços (públicos) que, normalmente, lhes são vedados (enquanto LGBT). Sendo a mídia co-responsável pela (re)construção da realidade – na medida em que publicita, dentro de determinados moldes interpretativos, os acontecimentos, conectando-os ao passado e projetando-os no futuro –, é necessário tentar perceber porque determinadas realidades são enclausuradas em rigidas possibilidades interpretativas. Aliás, não nos limitarmos a tentar perceber as causas disso, mas também os efeitos. Tendo em atenção as especificidades da realidade a que nos referimos, Melo lança uma hipótese explicativa para as limitadas representações construídas pelos veículos de maior circulação em solo nacional: “os jornais da imprensa dominante são produtos de grandes corporações empresariais. Não existe consonância entre os interesses dessas corporações e os interesses de movimentos por direitos civis e sociais no Brasil. Nesse sentido, interessará aos jornais apontar, no máximo, o caráter turístico do evento e caracterizá-lo como uma manifestação que dificulta o trânsito nas cidades, mitigando e deslegitimando o papel político de ação para a mudança social que as paradas possuem. Esses veículos de comunicação só se importam com a repercussão econômica que esses eventos dão às cidades e buscam desvalorizar as propostas políticas LGBT, uma vez que elas se alinham com uma mudança ética que não centraliza o consumo como principal razão.” Não por acaso, essa construção não é propriedade exclusiva do jornalismo brasileiro. Em 2012, o PortugalGay – primeiro portal da internet de Portugal voltado à população LGBT – perguntava: “alguma vez viu uma Marcha do Orgulho LGBT ao vivo?” 70% dos inquiridos responderam que não, sendo que desses, 26% especificaram que nem tinham interesse em fazê-lo. Questionado sobre o porquê de tal resultado, João Paulo, membro orga-

nizador das primeiras Marchas de Orgulho LGBT em Portugal, afirma: “as pessoas influenciam-se porque nunca foram ver, nunca estiveram lá. Pegam no jornal e o que é que vêm? […] Eu lembro-me de um ano em que houve umas guerras meio malucas porque queriam dizer a travestis para não ir. Quando se fez o comunicado da marcha as pessoas que estavam disponíveis para falar aos meios de comunicação social assinaram uma folha. A Marcha começou e contaram-se as pessoas que estariam mais “exuberantes”. Eram perto de dez. Tínhamos 1500 pessoas a marchar. Tínhamos as pessoas para falar com a imprensa identificadas. Fez-se questão de manter cada faixa a 2 ou 3 metros de distância entre si, de forma que se pudessem ver bem. Não apareceram as faixas, ninguém falou com as pessoas indicadas. Quem é que apareceu e foi entrevistado? Aquelas 10 pessoas.” Como já escrito por Berger e Luckmann (2004, p. 68), é impossível ignorar, mesmo na atualidade, com a cada vez maior produção de mídias alternativas/ independentes, o papel central que a mídia, considerada tradicional, desempenha nas nossas sociedades, conectando as experiências coletivas e individuais, oferecendo interpretações típicas para acontecimentos/problemas tidos como típicos. Nesse processo, realidades e valores são selecionados, organizados e, por conseguinte, até transformados. Sendo o jornalismo uma instituição não-monolítica, desde logo devido à impossibilidade de ele existir sem ser por meio do contato com o público e todos os atores sociais que sobre ele procuram atuar para tentar fazer entrar seus posicionamentos na discussão pública, terminamos sublinhando a fala de Melo, ao considerar que, apesar de tudo, continua sendo necessário insistir no diálogo, que o seja verdadeiramente, entre comunidade LGBT e jornalismo, “passo mais do que necessário para construirmos outra forma de produção de sentido não só sobre o movimento social, mas também sobre as vivências em si de LGBT”. Referências: BERGER, Peter & LUCKMANN, Thomas. (2004). Modernidade, Pluralismo e Crise de sentido: A orientação do homem moderno. Petrópolis: Vozes, 2004. Assinada pelo jornalista Rui Caeiro, mestre em Comunicação pela UFPE, a coluna ambiciona instigar reflexões que se debrucem sobre as relações que se estabelecem entre produção midiática/jornalística e a construção e vivência de identidades consideradas abjetas em nossa sociedade. O foco será em sexualidade e gênero.


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