Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 1
| ISSN 2526-2440 | nº 12 | Ano 2017
Jornalismo e cidadania
Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade | PPGCOM/UFPE
Pedro de Souza
Efeito Trump
Tiago Muniz
Reforma Trabalhista
E mais...
JORNALISMO E CIDADANIA | 2
Expediente
Arte da Capa: Designed by Freepik.com
Colaboradores |
Editor Geral | Heitor Rocha professor PPGCOM/UFPE
Marcos Costa Lima Pós-Graduação em Ciência Política/UFPE
Editoração Gráfica | Ivo Henrique Dantas doutorando PPGCOM/UFPE
Túlio Velho Barreto Fundação Joaquim Nabuco
Articulistas |
Gustavo Ferreira da Costa Lima Pós-Graduação em Sociologia/UFPB
PROSA REAL Alexandre Zarate Maciel doutorando PPGCOM/UFPE
Luiz Lorenzo Núcleo de Rádios e TV Universitárias/UFPE
MÍDIA ALTERNATIVA Xenya Bucchioni doutoranda PPGCOM/UFPE
Ada Cristina Machado Silveira Professora da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM
NO BALANÇO DA REDE Ivo Henrique Dantas doutorando PPGCOM/UFPE
Antonio Jucá Filho Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco – FUNDAJ Auríbio Farias Conceição Professor do Departamento de Letras e Humanidades – DLH/ UEPB
JORNALISMO E POLÍTICA Laís Ferreira mestranda PPGCOM/UFPE
Leonardo Souza Ramos Professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC –Minas Gerais e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Potências Médias (GPPM)
JORNALISMO AMBIENTAL Robério Daniel da Silva Coutinho mestre em Comunicação UFPE
Rubens Pinto Lyra Professor do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas da UFPB
PODER PLURAL Rakel de Castro doutoranda PPGCOM/UFPE e UBI CIDADANIA EM REDE Nataly Queiroz doutoranda PPGCOM/UFPE
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Prosa Real
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Opinião | Antônio Jucá
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Opinião | Renan Holanda Montenegro
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Opinião | Pedro de Souza
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Comunicação na Web
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Opinião | Jean De Mulder Fuentes
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MUDE O CANAL Ticianne Perdigão doutoranda PPGCOM/UFPE
Opinião | Tiago Muniz
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Opinião | Camilo Soares
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COMUNICAÇÃO NA WEB Ana Célia de Sá Doutoranda em Comunicação UFPE
Opinião | Giselle Cahú
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JORNALISMO INDEPENDENTE Karolina Calado doutoranda PPGCOM/UFPE MÍDIA FORA DO ARMÁRIO Rui Caeiro mestre em Comunicação UFPE
NA TELA DA TV Mariana Banja mestranda em Comunicação UFPE Bolsista e Aluno Voluntário | Lucyanna Maria de Souza Melo Yago de Oliveira Mendes José Tarisson Costa da Silva
Índice
Editorial
COMUNICAÇÃO PÚBLICA Ana Paula Lucena doutoranda PPGCOM/UFPE
Opinião | Roberto Ramos e Jorge Bonito | 22 Opinião | Rubens Pinto Lyra
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Mídia Fora do Armário
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Mude o Canal
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Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 3
Editorial Por Heitor Rocha
A
Revista Jornalismo e Cidadania nº 12 começa a circular no momento em que o senhor Michel Temer, que comandou articulação golpista para retirar a Presidente Dilma Rousseff com o artifício jurídico sofístico das “pedaladas fiscais”, está sendo denunciado pela Procuradoria Geral da República por prática de corrupção, com praticamente todos os seus assessores presos ou respondendo processo judicial, enquanto a maioria do Congresso Nacional está sendo intimidada com ameaças ou recebendo promessas de vantagens – o atendimento de emendas parlamentares, que não chegava a 1 bilhão de reais, agora no último mês já soma mais de 4 bilhões de reais. Neste contexto, é interessante observar que o cinismo, ao contrário do que as elites brasileiras pensam, não é a grande qualidade dos representantes políticos e econômicos para saquear os recursos públicos, mas apenas um elogio que o vício faz à virtude, evidenciando que a maioria da nação brasileira é decente e precisa ser enganada com a encenação do discurso dos líderes governistas que, por exemplo, lamentaram pesarosamente a prisão do ex-ministro Geddel Vieira, bem como da própria mídia, que sempre assume a versão dos poderosos, considerando este fato “muito triste”, por não distinguir os interesses particulares destas fontes oficiais dos legítimos interesses da sociedade brasileira. Assim, a perspectiva republicana é referida no artigo do procurador do Trabalho e doutorando em Direito Tiago Muniz Cavalcanti, ao analisar a pretendida “reforma” trabalhista, caso esta venha a ser aprovada, como “um gigantesco desmonte no aparato jurídico-normativo do Direito do Trabalho, ensejando a mais nova metamorfose da CLT: de Consolidação das Leis do Trabalho para Consolidação do Livre-comércio do Trabalho”. Garante Cavalcanti que, “ao contrário do que pretensamente objetiva o projeto, a redução dos custos da produção por meio do barateamento da força de trabalho não possibilitará ao País reduzir seu índice de desemprego”, pois “a retirada de direitos trabalhistas e, com efeito, o encolhimento da renda ensejarão a diminuição da capacidade aquisitiva dos consumidores”. Para corroborar sua análise, o procurador do Trabalho cita estudo realizado pela OIT em 63 países desenvolvidos e em desenvolvimento cuja conclusão é categórica: “a diminuição da proteção trabalhista não estimula a criação de empregos e não é capaz de reduzir a taxa de desemprego”. A Medida Provisória 759/2016, que trata da regularização fundiária do País, é comentada em artigo de Giselle Cahú, estudante de Jornalismo da UFPE, a partir de rela-
to do programa Jornalismo e Cidadania, exibido na Rádio Universitária FM, no mês de maio, que contou com a participação do arquiteto Marcos Mendonça (IAB) e de Aglaílson Amauri da Paixão, assessor de políticas agrárias da Federação dos Trabalhadores Rurais do Estado de Pernambuco (Fetape). A opinião expressa pelo arquiteto é que esta medida “extingue critérios que asseguram o interesse social da propriedade, rompe com regimes jurídicos de acesso à terra, de regularização fundiária de assentamentos urbanos e viola os marcos legais sobre a política urbana e a função social da propriedade”. Para o assessor da Fetape, no tocante à reforma agrária, a medida provisória traz a regularização de terras griladas e, com isso, a institucionalização da grilhagem, se constituindo em “incentivo ao trabalho escravo, ou o trabalho análogo ao trabalho escravo”, a possibilidade de venda das terras da União e de terras de fronteiras, o que pode vir a extinguir a nossa Amazônia. Para ele, “estas mudanças irão mexer profundamente na nossa relação de posse com a terra, além de servir à especulação imobiliária”. A observação da atuação da mídia brasileira é desenvolvida nesta edição da Revista Jornalismo e Cidadania nas colunas das jornalistas e doutorandas (PPGCOM/ UFPE) Ticianne Perdigão, com uma crítica da cobertura das rebeliões nos presídios, e Ana Célia de Sá, com a avaliação do papel das fontes no novo cenário das mídias digitais. Na coluna Prosa Real: Livro-reportagem, jornalismo e contexto, o doutorando Alexandre Zarate Maciel compara a influência da questão do tempo nas produções jornalísticas dos periódicos diários e semanais da que é exercida sobre a elaboração do livro-reportagem. Ainda neste número, a Revista JeC aborda a política internacional nos artigos do doutorando em Ciência Política (UFPE) Renan Holanda Montenegro, sobre os desafios da política externa chinesas no século XXI; de Pedro de Souza (pesquisador, editor e ex-Superintendente Executivo do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento), comentando o fenômeno Trump e os populismos na Europa; e de Jean De Mulder Fuentes, Doutor em Ciência Política (UFPE), avaliando o desafio da desigualdade social na América Latina. Heitor Costa Lima da Rocha, Editor Geral da Revista Jornalismo e Cidadania, é professor do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.
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Prosa Real
Livro-reportagem, jornalismo e contexto Por Alexandre Zarate Maciel
Lógicas particulares do tempo no livroreportagem
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os estudos de Teoria do Jornalismo que focam a produção e rotina jornalísticas o fator tempo é uma questão apontada como essencial. Jornalistas escritores entrevistados para a tese de doutorado que o autor desta coluna está desenvolvendo na UFPE falaram sobre os reflexos de um tempo mais dilatado de produção no caso dos livros-reportagem e os seus reais efeitos. O jornalista Laurentino Gomes diz que precisa criar “compartimentos de pressão” internos para o seu trabalho como escritor para poder trabalhar melhor: “Nas redações eu sempre gostei de trabalhar sobre pressão. Isso é um componente importante para mim. De maneira que chegava um momento em que eu ou escrevia a matéria ou a minha reputação estava completamente destruída. Daí saía”. Hoje, apenas produzindo livros, Laurentino Gomes destaca que a pressão da editora é mínima, mas a pessoal é enorme. Assim, ele procura organizar rigorosamente o seu tempo. A experiência de trabalhar com reportagens especiais no jornal Tribuna de Minas legou à jornalista Daniela Arbex o aprendizado sobre em que momento é necessário parar de apurar para escrever o texto. “Tem gente que não se sente segura e quer apurar indefinidamente. Isso, em redação, não rola. O máximo que eu já tive foram três meses. Então eu tenho esse timming de que agora é hora”. No caso do livro, são outras as rotinas, segundo Daniela Arbex. “Eu sei mais ou menos quanto eu gasto para escrever, que são cinco meses. Escrevendo todo dia, 10 horas por dia, o tempo que der. Inclusive, não tem esse negócio de sábado e domingo não”. O jornalista Leonencio Nossa pondera, ainda, a respeito de outra questão crucial que um jornalista tem que pensar quando está escrevendo um livro: a sua perenidade. “Estou escrevendo uma coisa que você sabe que só vai ser lido da-
qui a dois anos. Não pode ser aquela coisa para responder apenas um plano atual”.
Autor do mês: Edmar Morel Nome consolidado na imprensa desde os anos 1930 e tendo se formado nas redações de O Globo, A Tarde, Diário da Noite, mas, principalmente, em O Cruzeiro, entre 1938 e 1947, Edmar Morel deixou um legado de reportagens publicadas em forma de livros, como Moscou ida e volta (1952), A revolta da chibata (1959), O golpe começou em Washington (1965), Padre Cícero: o santo do Juazeiro (1966) e A marcha da liberdade (1987). De origem humilde e formação autodidata, Edmar Morel caracterizou-se por reportagens intrépidas, como uma volta pelas fronteiras do Brasil em 12 dias, percorrendo 20 mil quilômetros em 200 horas de vôo. Também desbravou Mato Grosso, em 1943, em busca do coronel Fawcet, cuja expedição foi eliminada pelos indígenas Kalapalo, segundo pôde apurar, e transformou a história no livro E Fawcet não voltou, em 1944. Em prefácio intitulado “Morel, o repórter”, Nelson Werneck Sodré (1999, p.12) elogia as características do jornalista, que reunia, em sua opinião, “qualidades excepcionais de coragem, audácia, faro para o acontecimento insólito, capaz de atrair as atenções e prendê-las a ponto de absorver o interesse do público por dias e dias”. E acrescenta outra qualidade: “Morel sabia extrair da ganga bruta do noticiário do dia aquilo que deveria merecer tratamento especial, aquilo que deveria ser objeto de reportagem”. Para tanto, partia a campo “enfrentando qualquer perigo, desafiando os impedimentos mais variados e incríveis”. Na apresentação do livro Histórias de um repórter, Edmar Morel (1999, p.10), em texto de 1988, brinca com a ausência de lucros em sua carreira de autor de livros-reportagem: “Contemplo meus 15 livros, num total de 23 edições. Todos os direitos autorais não dão para comprar um Fusca zero quilômetro”.
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Iluminando Conceitos: Liçoes de Tuchman Na concepção de Gaye Tuchman (1983, p. 229), socióloga que mergulhou nas redações norte-americanas para entender o comportamento em grupo dos jornalistas, em um cenário de mídia democrático, “os profissionais da informação teriam que questionar as premissas mesmas da rede de notícias e suas próprias práticas de rotina”. Junto ao seu público, deveriam, ainda, “reconhecer as limitações inerentes às formas narrativas que estão associadas com a trama da faticidade” (TUCHMAN, 1983, p. 229). Tuchman ilumina, nesse sentido, o que chama de marco problemático do jornalismo. Lembra que, ao buscar disseminar a informação que as pessoas querem, necessitam e deveriam conhecer, “as organizações informativas fazem circular e, ao mesmo tempo, dão forma ao conhecimento” e acrescenta que os meios de comunicação “têm o poder de dar forma às opiniões dos consumidores de notícias sobre aqueles tópicos acerca dos quais eles ignoram” (TUCHMAN, 1983, p.14). Mas não podemos esquecer, segundo frisa Tuchman (1983, p.16), que a notícia é “inevitavelmente, um produto dos informadores que atuam dentro de processos institucionais e de conformidade com práticas institucionais”. Fica a pergunta: e no caso do trabalho mais individual dos autores de livros-reportagem? Embora em tese esteja realizando uma obra de autor, mais solitária, esse jornalista está inserido em lógicas editoriais que, algumas vezes, estão marcadas pelo lucro da vendagem dos seus produtos. Assim, devem entender, portanto, o seu trabalho como indicativo e reflexivo, já que os jornalistas estão inseridos no próprio mundo da vida que ajudam a construir simbolicamente. Tuchman acabou encontrando, no seu percurso de pesquisa nas redações, possibilidades de grande flexibilidade, ainda que sutis, o que legitima a teoria da autonomia do jornalista, mesmo pressionado pelo poder das tipificações e estereótipos que contaminam a narrativa da realidade de forma apressada e limitada. Em entrevistas, repórteres escritores demonstram uma consciência lúcida sobre seus papeis reconfigurados na postura de jornalistas autores de livros-reportagem e também conseguem engendrar reflexões profundas sobre o jornalismo como instituição.
Referências: MOREL, Edmar. A revolta da chibata. São Paulo: Graal, 1979. ______, Edmar. Padre Cícero: o santo do Juazeiro. São Paulo: Civilização Brasileira, 1966. ______, Edmar. Histórias de um repórter. São Paulo: Record, 1999. ______, Edmar. A marcha da liberdade. São Paulo: Vozes, 1987. ______, Edmar. O golpe começou em Washington. São Paulo: Civilização Brasileira, 1965. TUCHMAN, Gaye. La producción de la noticia: Estudio sobre la construcción de la realidad. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli S.A., 1983. Elaborada pelo professor do curso de Jornalismo da UFMA, campus de Imperatriz, Alexandre Zarate Maciel, que está cursando o doutorado em Comunicação na UFPE, a coluna Prosa Real traz, todos os meses, uma perspectiva dos estudos acadêmicos sobre a área do livro-reportagem e também um olhar sobre o mercado editorial para esse tipo de produto, os principais autores, títulos e a visão do leitor.
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Opinião
O planejamento e a política Por Antônio Jucá
E
ntendemos planejamento como a condução racional de ações articuladas de diversas naturezas para o alcance de fins predefinidos. O problema central do planejamento envolve, portanto, questões multidisciplinares, que não se resolvem apenas nas disciplinas e não há solução, no máximo, uma condução relativamente bem-sucedida para fins desejados. O agravamento dos problemas ambientais, dada as relações entre cultura e natureza em um planeta excessivamente artificializado, não apenas por áreas urbanas, mas no que as redes urbanas implicam em ocupação com território rural. Isto fez restar poucas áreas conservadas, o que a pegada ecológica revela em significado. O tratamento da questão ambiental pressupõe o planejamento e a gestão planejada, o que fez ampliar o nível de complexidade destas abordagens. Além disso, gerou a quebra de paradigmas, como hierarquia disciplinar, última instância explicativa e com o representacionismo (ver Maturana e Varela). O mais determinante na condução de conjunto depende da interação, comunicação, informação de agentes-sujeitos, interagindo em redes com ciclos naturais. A política suscita à memória a ideia de processo, explicações de processos, mas sobretudo de condução de interesses de grupos, maiorias, sociedades, grupos de sociedades, até interesses planetários que envolvem a relação retroativa entre cultura e natureza. Assim, emerge a ruptura paradigmática com o antropocentrismo e o advento da autopoiese, interpretada, aqui, como a auto reprodução, auto alimentação e auto regeneração contínua e recorrente de uma estrutura organizativa que se sofistica, se complexifica na negentropia, entretanto compreendendo entropia e se alimentando desta. “Viver de morte, morrer de vida”. Pode-se questionar o conceito de processo, com etapas, fases, mas, mesmo quando mudanças contínuas induzem a definição de etapas discricionárias, os recortes podem ser justificados nos objetivos da análise, sempre não neutros. Se o conhecimento é um processo interativo entre o observador e o observado, só observar o observado perde o sentido. Além disso, a natureza é prodiga em sistemas recorrentes físicos, químicos e bioló-
gicos por fases evidentes. Sob o olhar organizacional, em sistemas vivos e sociais há a reprodução de funções elementares com aumento da complexidade, ou seja, aumento de elementos e interações entre estes, gerando fenômenos emergentes. O planejamento e a política apresentam muitos atributos comuns. Ambos envolvem estratégia, objetivos e metas, diretrizes, instrumentos e mecanismos de ação. Compreendem etapas (reconhecimento, elaboração, aprovação, implementação, execução, monitoramento), envolvem recursos humanos, materiais, financeiros e apoios de grupos de interesse. Demandam ainda um arcabouço legal, institucional e organizacional de gestão, planos, inclusive de gestão. Têm vida, podem se reproduzir, se regenerar, se alimentar e terem fim. Entretanto, o que diferencia estes termos, os une em um circuito integrado. Aparentemente, os processos de definição dos interesses subordinam os processos de condução das ações, embora estas últimas retroajam sobre as motivações, em um processo contínuo sujeito a imprecisões, negligências, indeterminações e erros. Contextualizando este circuito, observamos que o planejamento centralizado circunscreve as decisões mais abrangentes às elites técnicas, sendo estas mesmas hierarquizadas, embora subordinadas à elite política, independentemente de sistemas de produção. Nestes contextos, a base de sustentação da elite política depende mais do sucesso da elite técnica (que tem pouca ou nenhuma visibilidade). Contudo, o sucesso, no caso limite, pode apenas significar satisfazer minorias e controlar os demais com mitos e repressões. Os mitos são a associação, sem relação de natureza, entre discursos a imagens (o que a mídia e a publicidade realizam tão bem, difundindo e gerando desejos ideológicos para a reprodução dos sistemas de produção). Nesta operação, as elites organizacionais tendem a se fechar, reforçando campos de domínio autorreferentes. Os regimes políticos e meios de comunicação e informação fomentam a auto repressão dos indivíduos pelo medo, ameaças sutis ou diretas, ou as repressões reais com prisões, tortura, assassinatos e guerras. Por outro lado, há sempre lugar para uma politização do desejo, a crítica das motivações, para a análise, auto-
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análise, autocrítica, que podem levar a auto ética e a ética coletiva. Em casos onde a relações entre sociedade organizada e estado resultam em compartilhamento de decisões por mecanismos de governança, o planejamento pode resultar em instrumentos multifinalitários a serem operados em redes institucionais multisetoriais, envolvendo estado e sociedade, perpassando fronteiras territoriais e políticas. Existe uma evolução metodológica neste sentido, sobre o que se destaca, aqui, o papel da liderança de pessoas e/ou instituições. A pilotagem tem que ser consciente do processo, o que se associa à formação empírica ou teórica-empírica das lideranças. O que observamos do contexto brasileiro em 2017 A subordinação do planejamento à política no Brasil tem muitas explicações. Observo, aqui, algumas destas como: a) a setorização e hierarquização desarticulada; b) o divórcio entre processo político e planejamento que, mesmo quando os instrumentos de planejamento setoriais têm força de lei, sofrem descontinuidades não se constituindo em políticas de estado, ou não se institucionalizando; c) em geral, quando o planejamento é demandado, seus produtos constituem, no máximo, instrumentos dos políticos, ou de grupos políticos e não em instrumentos políticos, ou instrumentos de política de estado, ou melhor, de governança, que se distingue de governo por constituir arranjos institucionais de decisão e ação onde a sociedade organizada participa da gestão pública. A história revela que a governança se inscreve dentro de sistemas de governo, sejam estes de que caráter for, sob diversos níveis de legitimidade e manipulação. A análise de diversas políticas públicas no contexto brasileiro mostra mais do que uma relação de subordinação do planejamento à política. Fala-se na necessidade de uma reforma política, evidente para a sociedade organizada ou consciente. Fala-se na necessidade da implantação do financiamento público de companhas eleitorais, como instrumento para a redução da corrupção dos políticos com empresas privadas, estabelecendo relações promíscuas (como qualificam os jornalistas para designar desvio ilegal de recursos públicos). No entanto, consideremos ainda que há, subjacente, um circuito vicioso de corrupção, que se estabelece na gestão efetiva dos governos que se reflete no divórcio entre discurso de campanha e práticas ou resultados de gestão. Esta distância reflete-se no circuito vicioso da corrupção, que é também consequência da subordinação do planejamento ao processo político, que se manifesta na negligência dos políticos sobre os
debates técnicos, ou debates entre técnicos e sociedade organizada. Em quase todos os encontros públicos, sejam em conselhos de políticas setoriais, sejam em seminários ou congressos profissionais onde se debatem questões políticas, grande parte dos políticos, quando comparecem, estão nas mesas inaugurais. Não assistem às apresentações de conteúdo (grande parte de acesso intelectual aos leigos), tampouco participam dos debates. Saem das mesas iniciais, deixando “a discussão à nós”. Eles têm o poder de escolher os técnicos e executar as questões da agenda política de suas conveniências. Quando estes poderão promover a construção de um planejamento abrangente e articulado com uma governança amplamente reconhecida como legítima? Há neste ponto uma necessidade não apenas quantitativa, mas também qualitativa neste reconhecimento, objeto do discurso de representantes de grupos sociais de interesse. O mecanismo da corrupção está na personalização da representação política, o descompromisso com políticas amplamente discutidas, planos, programas, projetos e que, ainda assim, são meros instrumentos. Considerando o processo de produção das políticas e a gestão compartilhada, estará em causa o que e como realizar, inclusive, diante do aumento atuais das incertezas. Como chegar à importância de todos para um todo consciente? Proponho o retorno e aprofundamento da democracia direta, que os poderes e privilégios dos políticos sejam constitucionalmente reduzidos, que sejam instituídos fóruns ou conselhos abertos e em rede, com poderes deliberativos reunindo sociedade civil e estado com representação paritária como órgãos estatais de gestão. Tais instrumentos gerados na discussão social e amplamente debatidos, devem ser posteriormente monitorados junto com a sociedade, onde o papel de lideranças políticas gestadas e engajadas na governança, se caracterize, sobretudo, pelo empenho na qualificação dos discursos, na tradução de discursos técnicos em discursos políticos acessíveis, na administração de conflitos e na geração de alianças. Os meios de informação, comunicação e interação sociais virtuais facilitam este processo. Nascidas ou se voltando para este papel, se formarão lideranças legítimas e possivelmente mais aptas a contribuir para a saída deste impasse político-sistêmico em que nos encontramos.
Antônio Jucá é pesquisador Titular da Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ).
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Opinião
Os desafios da política externa chinesa no século 21 Por Renan Holanda Montenegro
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omada em perspectiva histórica, a atuação internacional da China pode ser caracterizada, de maneira geral, pelo isolamento. Por séculos, os chineses entenderam o mundo como uma extensão da própria ordem doméstica, construída em torno de um rigoroso sistema tributário no qual o imperador era dotado de um mandato celestial que o permitia governar tudo abaixo do céu (tianxia). Nesse contexto, não havia interesse direto em influenciar a vizinhança; pelo contrário, acreditava-se que os povos vizinhos se beneficiavam por meio do contato com a China. Tal noção de excepcionalismo também está presente no milieux político do governo comunista atual, muito embora a inserção global contemporânea do país traga elementos essencialmente distintos daqueles de outrora. No campo econômico, a China já tem o maior PIB do mundo se levarmos em conta a paridade do poder de compra (PPP). Em termos nominais, só fica atrás dos Estados Unidos. O potente dinamismo doméstico ainda faz dos chineses os principais parceiros comerciais de centenas de nações ao redor do mundo, entre elas o Brasil e a Alemanha, por exemplo. Na seara militar, é o país que mais aumentou os gastos com defesa ao longo dos últimos anos, embora também esteja uma posição atrás dos americanos no ranking geral. Entre 2007 e 2016, a China teve um crescimento de 118% no seu gasto com defesa, ficando à frente de Rússia (87%) e Índia (54%). No mesmo período, entre os 15 primeiros desse ranking, somente Itália, Reino Unido e Estados Unidos registraram quedas no orçamento militar, com -16%, -12% e -4,8% respectivamente (TIAN, FLEURANT, WEZEMAN & WEZEMAN, 2017). Some-se isso à presença em arranjos globais e regionais dos mais diversos, como o Fórum de Cooperação China-África (FOCAC), a Organização para Cooperação de Xangai (OCX) e os BRICS. Esses e outros fatores posicionam a China em um lócus extremamente privilegiado na política internacional do século 21. Entretanto, ao mesmo tempo em que os acontecimen-
tos vão consolidando o país como o principal player desta era, novos desafios se apresentam. Pelo menos três deles são de importância decisiva para a consecução dos objetivos da política externa chinesa ao longo dos próximos anos: 1) desenvolvimento do poder marítimo nacional; 2) conciliar a atuação nos organismos multilaterais estabelecidos com a construção de uma ordem institucional global paralela; e 3) ampliar a influência regional ao passo em que administra as relações com os Estados Unidas de maneira minimamente amistosa. Apesar de ter ensaiado tornar-se uma grande potência naval com as navegações comandadas pelo almirante Zheng He no século 15, historicamente a China sempre concentrou suas atenções na consolidação do poderio terrestre. Atualmente, contudo, o destaque alcançado internacionalmente pelo país trouxe mudanças significativas nesse aspecto. Se a agenda marítima chinesa recente limitava-se à defesa da costa ou a uma suposta guerra contra a Ilha de Taiwan, hoje a temática naval adquiriu contornos de prioridade dentro da estratégia global tocada pela diplomacia de Pequim. Em primeiro lugar, o fato de ter um poder naval relativamente enfraquecido se comparado ao de potências como os Estados Unidos e o Reino Unido já é suficiente para causar alguma preocupação. Além disso, o projeto de tornar-se uma potência marítima tem clara relação com a estratégia agressiva da China no que diz respeito aos litígios territoriais nas suas águas meridionais. O controle completo do entorno marítimo do seu território tem uma relevância estratégica decisiva para as aspirações internacionais do país, que passam pelo sucesso da Nova Rota Marítima da Seda e pela proteção de interesses relativos à exploração comercial e de recursos naturais. Nesse cenário, o Oceano Índico certamente terá alguma prioridade dentro da agenda naval chinesa. Não apenas porque o Pacífico tradicionalmente tem sido comandado pelos norte-americanos, mas também devido a espaços geoestratégicos extremamente importantes que estão de alguma forma conectados pelas
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águas índicas, como o estreito de Malaca, de Bab-el-Mandeb, e os golfos Pérsico e de Áden (KAPLAN, 2011). Uma percentagem considerável do comércio mundial circula por essas regiões e interesses cruciais para a economia chinesa lá estão em jogo. O desenvolvimento do arcabouço de defesa faz parte de um contexto maior onde a China busca preencher vacâncias de poder no tabuleiro internacional. Essa espécie de grande estratégia também passa pela construção e operação de uma ordem institucional paralela àquela em vigor desde o pós-guerra. O projeto do Cinturão e Rota (em inglês, “One Belt, One Road”, ou OBOR), que contempla a já mencionada Rota Marítima da Seda, constitui apenas uma parte de um conjunto de ações ousadas da diplomacia chinesa. Na esteira desses acontecimentos, a capital Pequim sediou em maio o primeiro fórum internacional no âmbito do OBOR, ocasião na qual o país se apresentou como paymaster de uma nova economia global construída em torno da cooperação e do benefício mútuo entre os envolvidos. Em 2013, o governo chinês já havia lançado o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB), uma instituição multilateral de desenvolvimento que busca disponibilizar capital para o financiamento de obras de infraestrutura na região do mundo que mais cresce. No âmbito dos BRICS, os chineses também participaram da criação do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) e do Arranjo Contingente de Reservas (ACR). Tido como uma alternativa ao Banco Mundial, o AIIB é encarado com desconfiança pelos Estados Unidos. Primeiramente porque o continente asiático já possui uma iniciativa financeira na mesma linha: o Banco Asiático de Desenvolvimento (ADB), capitaneado pelo Japão. Em segundo lugar, a proposta da China recebeu a adesão de parceiros tradicionais dos norte-americanos, como França, Alemanha, Reino Unido, Austrália, Canadá, Israel e Coreia do Sul. Na medida em que a disputa com os Estados Unidos por zonas de influência institucional for se acirrando, a China pode enfrentar problemas para conciliar o papel de líder nessa nova ordem com a atuação nos organismos multilaterais tradicionais. Vale lembrar que a China possui assento permanente no Conselho de Segurança e é um dos países que mais contribui com pessoal para as operações de paz das Nações Unidas. Além disso, está entre os maiores cotistas do Fundo Monetário Internacional.
Ainda que a cúpula comunista negue qualquer intenção de se apresentar como alternativa à hegemonia dos Estados Unidos, é certo que esse novo arcabouço institucional global proposto pelos chineses deve se configurar como um ponto de tensão permanente nas relações sino-americanas ao longo dos próximos anos. Aliás, uma parte significativa dos desafios contemporâneos da política externa da China diz respeito à relação com os Estados Unidos. Em termos regionais, o eixo sino-americano é testado constantemente pelo menos em três frentes: nas questões envolvendo Taiwan; nas discussões sobre a escalada nuclear norte-coreana; e na disputa com o Japão pela liderança regional. Em suma, para além de todos esses desafios de ordem estritamente material/operacional, a China ainda tem uma dupla missão no campo retórico: a de adaptar sua narrativa de desenvolvimento pacífico e mundo harmonioso com uma práxis cada vez mais assertiva; e a de conciliar seus status dúbio de grande potência/ aspirante à hegemonia e potência emergente/ líder do “Sul Global”. Com o passar do tempo, será cada vez mais difícil atuar como um coringa das relações internacionais. A China inevitavelmente terá de escolher lados. Ademais, resta a certeza de que os destinos da política global neste século 21 passam pelas decisões que serão tomadas nos gabinetes da alta cúpula comunista em Pequim. A conferir.
Referências: KAPLAN, Robert D. Monsoon: the Indian Ocean and the future of American Power. New York: Random House, 2011 TIAN, Nan; FLEURANT, Aude; WEZEMAN, Pieter D.; WEZEMAN, Siemon T. Trends in Worlds Military Expenditure, 2016. Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI). Abril, 2017. Disponível em https://www.sipri.org/sites/default/files/Trendsworld-military-expenditure-2016.pdf. Data do acesso: 29 de maio de 2017.
Renan Holanda Montenegro é doutorando em Ciência Política (UFPE), mestre em Relações Internacionais (UERJ) e pesquisador associado do Instituto de Estudos da Ásia (UFPE).
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Opinião
Efeito Trump: recesso dos populismos na Europa
Por Pedro de Souza
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este último mês de junho Reino Unido e França chamaram os eleitores às urnas para eleger os seus deputados. No Reino Unido os conservadores de Theresa May, defendendo um Brexit duro, ganharam as eleições. Na França, o recém-eleito Presidente Emmanuel Macron, claramente favorável à União Europeia, obteve uma maioria muito confortável. Em ambos os casos, porém, o sistema eleitoral amplificou as vitórias, ou seja, proporcionou maiorias muito mais volumosas do que o resultado das urnas em percentagem. No caso britânico a diferença entre conservadores e trabalhistas foi apenas de dois pontos percentuais. Um ano após o desastre do Brexit, Theresa May ganhou as eleições, mas, ao inverso do que esperava, perdeu a maioria no parlamento. O líder trabalhista, Jeremy Corbyn, que tinha contra si o desprezo do establishment, incluindo o seu próprio partido, e a quase totalidade da mídia, foi se impondo como líder, entusiasmando a juventude com um programa claramente de esquerda, e reduzindo a muito pouco a diferença
de 20 pontos que, segundo os institutos de sondagens, separavam trabalhistas de conservadores no começo da campanha. No caso da França, o aparente terramoto político foi também fruto do sistema eleitoral e não de profundas inflexões nas opções políticas. O eleitorado voltou a apresentar-se dividido em quatro famílias, como no primeiro turno das eleições presidenciais: a esquerda, dos socialistas à extrema-esquerda, o centro de Macron, a direita conservadora, e a extrema direita. Entre uma eleição e outra essas quatro famílias variaram de tamanho, em benefício dos centristas. Quem se mobilizou para as legislativas (assim mesmo a abstenção de 57% no segundo turno foi a maior de sempre) foram os eleitores que votaram em Macron no primeiro turno da eleição presidencial. E o maior prejudicado com a abstenção foi o partido de extrema direita de Marine Le Pen. Dada a vitória relativa de Corbyn, muitos comentadores se apressaram em anunciar a derrota do blairismo (do nome de Tony Blair, ex-Primeiro Ministro britânico trabalhista), da terceira
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via, marcada pela aliança entre o mercado e o modelo social europeu, claramente alinhada com a política imperial americana - que a Europa está pagando até hoje com a atual onda de atentados. Essa conclusão é algo apressada. É claro que as ilusões do caráter benigno do atual capitalismo financeiro deixaram de enganar muita gente, como já tinha ficado claro com Bernie Sanders. A coerência ideológica e sinceridade evidente de Corbyn mobilizaram um eleitorado habitualmente abstencionista, sobretudo entre os jovens. No entanto não parece que todos os eleitores de Corbyn tenham “comprado” o seu programa, muito mais à esquerda do que qualquer outro programa trabalhista recente. De fato concorreu para o resultado uma censura ao populismo de direita de May, ao seu “trumpismo”, à insistência no desinvestimento na política social, e sobretudo à sua opção por um Brexit agressivo: “Mais vale um não-acordo que um mau acordo”, repetiu May interminavelmente no decurso da campanha. Uma primeira análise do mapa dos resultados eleitorais indica que parte do eleitorado tradicional dos trabalhistas, assim como os eleitores mais velhos e mais rurais, depois de votar o Brexit (e no partido que o defendeu, o UKIP, que agora sumiu do parlamento) passou a votar conservador. Enquanto que o eleitorado mais jovem, mais ativo e com largas franjas da classe média citadina, nomeadamente londrina, antes eleitores conservadores, acabaram votando trabalhista. Assinalavam desse modo a sua oposição ao Brexit, ou pelo menos a um Brexit duro, isolando o Reino Unido da UE. O mesmo aconteceu certamente com os meios de negócios, para quem o Brexit é uma tragédia. Isso, claro, não significa que tenham aderido às ideias de Corbyn. O partido conservador ao optar por um Brexit duro alienou uma parte do seu eleitorado tradicional. Se considerarmos que as ideias de Macron na França não estão tão longe das ideias do partido do ex-Presidente François Hollande, de quem aliás Macron foi Ministro da Economia, constatamos que ambas as eleições, na França e no RU, mostram que o eleitorado de hoje já não é fiel como antes. As ideologias, os partidos, não têm mais o mesmo apelo. O eleitor mais jovem, o eleitor mais formado e informado, nomeadamente via redes sociais, vota estrategicamente. Por vezes a favor de certas políticas, frequentemente contra aquilo que os partidos lhe apresentam como opção. O voto Corbyn foi um voto na esperança, mas não forçosamente um voto numa esquerda radical. Foi também um voto contra a demagogia
isolacionista de May, contra os cortes na política social, contra a dificuldade de acesso ao ensino superior, cada vez mais elitista e inabordável, contra a xenofobia; contra a ameaça explicitada por May de transformar o Reino Unido num paraíso fiscal adossado à União Europeia, num porto de abrigo de magnatas e especuladores de todo o mundo, caso o Brexit não fosse negociável. Embora menos claramente o voto no partido de Macron foi também um voto no futuro, por uma renovação da classe política, que há 40 anos assiste às mesmas brigas de galinheiro entre políticos, sobretudo de direita, fazendo o jogo da extrema direita fascistoide, e à predominância de um corporativismo sindical que ignorou sistematicamente os excluídos do sistema. Resta que May continua dirigindo o governo britânico, numa posição ainda mais enfraquecida depois do incêndio na torre Grenfeld, em Londres, quando se mostrou alheia à gravidade do sinistro. Essa fragilidade pode até facilitar a negociação de um qualquer Brexit, ou até o seu abandono. De qualquer forma a sua cabeça está a prêmio. Quanto a Macron, que prometeu não deixar ninguém na beira da estrada, é possível que graças ao neoisolacionismo de Trump consiga o que Hollande não conseguiu: infletir a política econômica de austeridade alemã. Mas nada indica que ele encare reformas mais consequentes, como o desarmar da finança especulativa, já que um das suas primeiras medidas foi anular a taxa sobre as transações financeiras. Resta também que a esperança que se pode detectar nessas duas eleições não é a dos trabalhadores menos qualificados, dos emigrantes de segunda geração, dos velhos, mergulhados numa civilização de pobreza e desperdício, num norte da Europa tido como exemplar. Nem é a esperança dos países do sul da Europa, sobretudo da Grécia, na primeira linha das ondas de refugiados, e a braços com um desemprego endêmico e dívidas impagáveis. Os votos inglês e francês foram um claro sinal de que as alianças entre socialismo democrático e capitalismo financeiro não têm futuro, mas sobretudo que o populismo isolacionista de Trump não irá longe na Europa. Resta saber se para os excluídos do sistema a esperança será mais que uma ilusão.
Pedro de Souza é Pesquisador, editor e exSuperintendente Executivo do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento.
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Comunicação na Web Jornalismo, Sociedade e Internet Por Ana Célia de Sá
Fontes de informação: uma via de mão dupla
A
noticiabilidade é uma questão i nt r i n c a d a à As r o t i n a s p r o d u tivas do jornalismo passam pela r e l a ç ã o c o m a s f o nt e s d e i n f o r m a ç ã o, f u n d a m e nt a i s à c o l e t a d e d a d o s . E l a s p e r s o n i f i c a m o s a c o nt e c i m e nt o s j o r n a l í s t i c o s , r at i f i c a m i nt e r p r e t a ç õ e s e i n s e r e m - s e n o p a d r ã o d o s v a l o r e s - n o t í c i a . Ta m b é m aj u d a m a s i s t e m at i z a r o s h á b i t o s d e p r o d u ç ã o, c o m p r o c e d i m e nt o s aj u s t a d o s a o t e mp o e à s l i m i t a ç õ e s e s t r u t u r a i s d a r e d a ç ã o. As f o nt e s p o d e m a s s u m i r d i v e r s o s p ap é i s n o p r o d u t o n o t i c i o s o. Po d e m s e r o f i c i a i s o u o f i c i o s a s , at i v a s o u p a s s i v a s , e s t áv e i s o u p r ov i s ó r i a s , e s p e c i a l i z a d a s o u m e s m o t e s t e mu n h a i s . “ Um a f o nt e é u m a p e s s o a q u e o j o r n a l i s t a o b s e r v a o u e nt r e v i s t a e q u e f o rn e c e i n f o r m a ç õ e s . Po d e s e r p o t e n c i a l m e n t e q u a l q u e r p e s s o a e nv o l v i d a , c o n h e c e d o r a o u t e s t e mu n h a d e d e t e r m i n a d o a c o nt e c i m e nt o o u a s s u nt o” ( T R AQ U I NA , 2 0 0 5 , p. 190). No m e i o j o r n a l í s t i c o, d e s t a c a m - s e a s f o nt e s q u e t ê m c r e d i b i l i d a d e , o f e r e c e m i n f o r m a ç õ e s f i d e d i g n a s e c o nt r i b u e m c o m o s ap a r at o s p r o f i s s i o n a i s . E n q u a d r a m - s e n e s t e p e r f i l , p o r e x e mp l o, a s f o nt e s i n s t i t u c i o n a i s e o f i c i a i s . A r e s p e i t a b i l i d a d e n at u r a l d e l a s r e d u z n e c e s s i d a d e s d e c o nt r o l e . E l a s t a m b é m s e v i n c u l a m à p r o d u t i v i d a d e p o rq u e , h a b i t u a l m e nt e , d i s p o n i b i l i z a m m at e r i a l s u f i c i e nt e à e l a b o r a ç ã o d a n o t í c i a , o q u e aj u d a o j o r n a l i s t a a p o u p a r t e mp o e c u s t o s . “A l é m d i s s o – e m r e l a ç ã o a o s v a l o r e s / n o t í c i a d a ‘ i mp o r t â n c i a’ d o ‘c a r át e r e x au s t i v o’ e d o ‘e q u i l í b r i o’ – , e s s a s f o nt e s parecem necessárias, uma vez que repres e nt a m o p o nt o d e v i s t a o f i c i a l s o b r e a s q u e s t õ e s c o nt r ov e r s a s” ( WO L F, 2 0 0 8 , p. 237-238). A au t o r i d a d e e o p r e s t í g i o s o c i a l d a f o n -
te também incidem na escolha dela pelo jornalista. Em alguns casos, conforme ress a l t a Tr a q u i n a ( 2 0 0 5 ) , o r e p ó r t e r p o d e e s c o l h e r u m a f o nt e m a i s p e l o q u e e l a é d o q u e p e l o q u e e l a s a b e . E s t e g r au d e c o n f i a n ç a a s s o c i a d o à au t o r i d a d e d a p e s s o a é c h a m a d o p e l o au t o r d e “ h i e r a r q u i a d a c r e d i b i l i d a d e”. O r e l a c i o n a m e nt o e nt r e f o nt e e r e p ó r t e r d á - s e d e m a n e i r a s d i f e r e nt e s , m a s a i n f l u ência que exercem um sobre o outro está s e mp r e p r e s e nt e . O e s t u d o d o n e w s m a k i n g m o s t r a q u e “ [ . . . ] a r e d e d e f o nt e s q u e o s ap a r at o s d e i n f o r m a ç ã o e s t a b i l i z a m c o m o i n s t r u m e nt o e s s e n c i a l p a r a o s e u f u n c i o n a m e nt o r e f l e t e , d e u m l a d o, a e s t r u t u r a s o c i a l e d e p o d e r e x i s t e nt e e , d e o u t r o, o rganiza-se na base das exigências colocadas p e l o s p r o c e d i m e nt o s d e p r o d u ç ã o” ( WO L F, 2 0 0 8 , p. 2 3 5 ) . E s t a p e r s p e c t i v a m o d i f i c a a i d e i a d e q u e a p a s s a g e m d e c o n h e c i m e nt o s e nt r e f o nt e , j o r n a l i s t a e l e i t o r s e j a l i n e a r, n e u t r a e t r a n s p a r e nt e . S e g u n d o e x p l i c a Wo l f ( 2 0 0 8 ) , n a v e r d a d e , a r e l a ç ã o e nv o l v e f at o r e s c o mp l e x o s , t r a n s p a s s a d o s p e l o s i n t e r e s s e s d o s at o r e s s o c i a i s . Ha l l e t a l . ( 1 9 9 9 ) d e f e n d e m q u e a m í d i a n ã o c r i a a n o t í c i a d e m a n e i r a au t ô n o m a , e s i m e m d e p e n d ê n c i a d o s a s s u nt o s f o r n e c i d o s p e l a s f o nt e s i n s t i t u c i o n a i s r e g u l a r e s . Po r m e i o d e l a s , a m í d i a c o n s e g u e c u mp r i r o b r i g a ç õ e s i mp o s t a s p e l a p r e s s ã o i nt e rn a d a e s t r u t u r a p r o f i s s i o n a l e r e n ov a r o s c o n c e i t o s d e i mp a r c i a l i d a d e , e q u i l í b r i o e o b j e t i v i d a d e . No e nt a nt o, o u s o d e f o nt e s oficiais pode resultar na formação de uma r e a l i d a d e s o c i a l o r i e nt a d a p o r e l a s , nu m a reprodução simbólica da estrutura de poder institucional. Os porta-vozes poderosos, chamados de definidores primários (primar y definers) d e t ó p i c o s , a s s u m e m p o s i ç ã o d e i nt é r p r e t e s p r i m á r i o s d o s a c o nt e c i m e nt o s e , d e s t a maneira, norteiam a cobertura da mídia. O e n q u a d r a m e nt o i mp o s t o p o r e s s a s f o nt e s l i m i t a a s d i s c u s s õ e s s u b s e q u e nt e s e o g r au d e r e l e v â n c i a d o s f at o s . At é m e s m o o s a r-
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g u m e nt o s c o nt r á r i o s i n s e r e m - s e n e s t a d e f i n i ç ã o p r i m á r i a ( HA L L e t a l . , 1 9 9 9 ) . Ne s t a p e r s p e c t i v a , a m í d i a a s s u m i r i a p ap e l s e c u n d á r i o n a c o b e r t u r a d o s a c o n t e c i m e nt o s . Um a at u a ç ã o m a i s at i v a e au t ô n o m a s e d a r i a n a e t ap a s e l e t i v a d a i n f o rm a ç ã o, n a q u a l o p e r a m o s v a l o r e s - n o t í c i a d e c a d a v e í c u l o, e n a a d e q u a ç ã o d o i d i o ma público da mídia, linguagem e discurso p a r t i c u l a r e s a s s u m i d o s p o r c a d a v e í c u l o. A i n d a a s s i m , Ha l l e t a l . ( 1 9 9 9 ) a r g u m e nt a m q u e o i d i o m a p ú b l i c o n ã o g a r a nt e a q u e b r a do processo de reprodução ideológica dos definidores primários, já que ele pode est a r i mp r e g n a d o p e l a i d e o l o g i a d o m i n a nt e . “Q u a n d o o s j o r n a l i s t a s f i c a m d e p e n d e n t e s d a s f o nt e s , p o d e m f i c a r o r i e nt a d o s p a r a a f o nt e e , a s s i m , c e d e r à t e nt a ç ã o d e e s c r e v e r p a r a a f o nt e e n ã o p a r a o p ú b l i c o” ( T R AQ U I NA , 2 0 0 5 , p. 1 9 6 ) . Ao s e g u i r e s t a t e n d ê n c i a , o j o r n a l i s t a d e i x a a f o nt e d e f i nir a situação – retorno à concepção do def i n i d o r p r i m á r i o. O preparo do jornalista também pode i nt e r f e r i r n a c o l e t a d a i n f o r m a ç ã o. O p r o fissional especializado (setorista) tem m a i o r c o n h e c i m e nt o s o b r e o t e m a e u m c o nt at o d e m a i o r q u a l i d a d e c o m a f o nt e , p o r i s s o e s p e r a - s e u m g r au d e ap r o f u n d a m e nt o m a i s e l e v a d o. Um a r e l a ç ã o e s t áv e l e nt r e r e p ó r t e r e f o nt e , e nt r e t a nt o, p o d e g e r a r o b r i g a ç õ e s mú t u a s e au m e nt a r a s c h a n c e s d e d i s t o r ç õ e s d a n o t í c i a . Na s i t u ação oposta, o profissional não especializado (generalista) tem menor bagagem de c o n h e c i m e nt o e s p e c í f i c o e , a o c o n s u l t a r a f o nt e , t e n d e a n ã o s e ap r o f u n d a r n o t e m a e m a nt e r a h o m o g e n e i d a d e d a c o b e r t u r a j o rn a l í s t i c a . O l a d o p o s i t i v o é l i b e r a r- s e d a r e l a ç ã o d e c o nv e n i ê n c i a r e c í p r o c a c o mu m e m u m r e l a c i o n a m e nt o e s t áv e l c o m a f o nt e ( WO L F, 2 0 0 8 ) . C o m a c h e g a d a d a w e b, o r e l a c i o n a m e nt o c o m a s f o nt e s a d ap t a - s e a r e c u r s o s como e-mail, páginas pessoais e institucionais e redes sociais. O primeiro funciona c o m o u m á g i l c a n a l p a r a a t r o c a d e i n f o rm a ç õ e s – e nt r e v i s t a s , c h e c a g e m d e d a d o s e t r a n s f e r ê n c i a d e a r q u i v o s – e nt r e p e s s o a s e s p e c í f i c a s . As m e n s a g e n s e l e t r ô n i c a s , a r g u m e nt a G a r r i s o n ( 2 0 1 2 ) , t o r n a r a m - s e f e r r a m e nt a i n d i s p e n s áv e l p a r a o j o r n a l i s t a d e v i d o a o b a i x o c u s t o, à f l e x i b i l i d a d e e à s e g u r a n ç a . A l é m d i s s o, p o d e m s e r o ú n i c o m é t o d o d i s p o n í v e l p a r a c o nt at a r f o nt e s g e o g r a f i c a m e nt e d i s t a nt e s .
Os sites podem figurar como vitrines de s e u s au t o r e s e , d e s t a f o r m a , l e g i t i m a r e m - s e c o m o f o nt e s c o n f i áv e i s , e s p e c i a l m e nt e n o caso das páginas institucionais, elevadas a o p at a m a r d e f o nt e s o f i c i a i s . Ab e r t o s a o g r a n d e p ú b l i c o, d e t e r m i n a d o s s i t e s p o d e m d i v u l g a r d a d o s q u e s e r ã o r e p l i c a d o s , mu i t a s v e z e s , s e m c h e c a g e m , c o m o a c o nt e c e c o m a s f o nt e s o f i c i a i s p e r s o n i f i c a d a s f i s i c a m e nt e . As r e d e s s o c i a i s c o n f i g u r a m u m c a s o m a i s c o mp l e x o. Is s o p o r q u e e l a s f o r m at a m uma espécie de espaço público virtual em q u e a s p u b l i c a ç õ e s e o s c o m e nt á r i o s p o d e m s e t o r n a r m at é r i a - p r i m a d a n o t í c i a , c o m o u s e m a nu ê n c i a d i r e t a d o au t o r, c o m o u s e m c h e c a g e m p o r p a r t e d o r e p ó r t e r. Po t e n c i a l m e nt e , q u a l q u e r u s u á r i o d a r e d e mu n d i a l d e c o mp u t a d o r e s p o d e s e t o r n a r f o nt e j o r n a l í s t i c a a o ap r e s e nt a r f at o s , d e f o r m a p ú b l i c a , i d e nt i f i c a d o s c o m o s c r i t é r i o s d e n o t i c i a b i l i d a d e . P r át i c a s d e s t e t i p o a c a b a m l e g i t i m a d a s p e l o c a r át e r i nt e r at i v o, p a r t i c i p at i v o e c o l a b o r at i v o d a i nt e rn e t , e m b o r a o a s s u nt o e x i j a u m a d i s c u s s ã o é t i c a s o b r e a s f o r m a s d e ap r o p r i a ç ã o d e s t a s informações.
Referências: GARRISON, Bruce. O uso de e-mail na busca de notícias. IN: FERRARI, Pollyana (Org.). Hipertexto, Hipermídia: as novas ferramentas da comunicação digital. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2012. HALL, Stuart et al. A produção social das notícias: o mugging nos media. IN: TRAQUINA, Nelson (Org.). Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. 2. ed. Lisboa: Vega, 1999. TRAQUINA, Nelson. Teorias do Jornalismo: porque as notícias são como são. V. 1. 2. ed. Florianópolis: Insular, 2005. 2 v. WOLF, Mauro. Teorias das Comunicações de Massa. Tradução de Karina Jannini. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
Ana Célia de Sá é jornalista e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (PPGCOM-UFPE).
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Opinião
Desigualdade social na américa latina (2002-2016) Por Jean De Mulder Fuentes
O
i n for me s o c i a l d a C om iss ão E conômi c a p ar a a Amér ic a L at i na 2016 (CE PAL, 2017) est á c ent ra d o no te ma d a desigu a l d ade, v ist a como um t r a ç o e st r utu ra l d a Amér ic a L at ina e como u m ob st á c u lo p ar a o des envolv imento sus te nt ável. E ste i nfor me chama a atenç ão p ara a d e s i g u a ld ad e p el a su a compl exid ade e p e l as di me ns õ e s que el a adquire enqu anto d e s i g u a ld a de s e conômic as, s o ci ais, de gênero, é t n i c o- ra ci ais ( indígenas e af ro des cend en te s ) e tc. E ss as dimens õ es, na maior i a d os p aís e s d a Amé r i c a L at ina, p otenc i a l izam- s e, e nt re cr u zam- s e c omo b ar reir as que apre s ent am g rande s des af io s aos gover no s e aos c i d a d ã os. Ne ste ar t igo nos refer imos ap enas às de s i g u a ld ad e s s o c i ais. A i g u a ld ad e s o c i a l é um tema histór i co re at ivame nte re cente, que nas c e a p ar t i r d a R e volu ç ão Franc es a e est á pre ce did a p el a e x istê nci a d o E st ado Mo der no e p el a sub st itu i ç ão do sú dito p el o cid ad ão. É uma i d ei a qu e t rans cor re u ent re o s s é c u l os X IX e X XI . Pe ns e mos , p or exempl o, em como a es crav id ã o at rave ss ou a dis c uss ão de to do o s é c u lo XI X. Em e st r ito r i gor, a histór i a no s apre s ent a b as i c ame nte dois mo do s de resp onder à d e s ig u a ld a de. O pr imeiro é o mo do re voluc i onár i o, sub st ituindo a e conomi a de merc a d o p or u ma col et iv izaç ão do s meio s d e pro du ç ã o. E st a for ma não te ve como resu l t a d o u ma s o ci e d ade mais igu a l it ár i a, mas s i m u ma s o ci e d ade mais igu a l it ar ist a, mais u n i for mi za d a , que muito dif ic i l mente p ô d e c onv ive r com a demo cr aci a e c om a l ib erd a d e d as p e ss o as. O s egundo é uma v is ão re for mad ora , que, aceit ando a existênci a d a e conomi a d e merc ado, ger a uma s ér ie d e me di d as e conôm ic as e s o ci ais dir ig id as a m i ni mi zar as d esigu a l d ades em prol do d es envolv i me nto e de uma maior igu a l d ade d e op or tu n i d ad e s , onde, re con he cendo e prem i and o o mé r ito indiv idu a l, protege àquel as p e ss o as qu e não p o dem a l c anç ar ess as re a l i z a çõ e s s o ci ais ap enas p or mér ito, e v it an d o qu e as p e ss o as c ai am em um est ado d e
d es amp aro em s aúd e, e duc aç ão, t ransp or te e qu a li d ad e d e v i d a. A e conomi a d e merc ad o gerou histor i c a mente o marco te ór i co conceitu a l p ar a romp er a concep ç ão s o ci a l d e or i gem. Ent re t anto, p or su a própr i a nature z a, o me rc a d o tend e a pro duz i r d es i gu a ld ad e qu and o nã o é regu l ad o. D e f ato, em 2 0 0 8 , à rai z d a qu ebra f i nancei ra, organ i z aç õ es i nter nac i onais, como o Fund o Monet ár i o Inter na c i ona l ( FM I ) ou a O rgan i z aç ão p ara a E conom i a , C o op eraç ão e D es envolv i mento ( OE CD), recon he ceram que as p olít i c as d e cres c i me nto e conômi co não s ão suf i ci entes p or s i s ó p ar a ass egurar o b em- est ar d e uma s o ci e d a d e. O i n for me “D iv i d e d we st and : w hy i ne qu a l it y ke eps r is i ng” ( OE C D, 2 0 1 1 ) é um e xe mpl o d e como o asp e c to d a d es i gu a ld ad e e su a d i mens ão d e i njust i ç a s o ci a l s e i nt ro du z e m nos cent ros ac ad êmi cos d e e conomi as “du ras”. E m 2 0 1 0 , a C E PA L colo c a a que st ã o na agend a reg i ona l com a publi c aç ão “A hor a d a i gu a ld ad e”, d o c umento que marc a u m hor i z onte est ratég i co d e d es envolv i mento, e nqu anto não s e refere à i gu a ld ad e ap e nas d e mei os e conômi cos ( i ng ress os , propr i e d a d e ), mas t amb ém i gu a ld ad e d e d i reitos , d e c ap aci d ad es , d e autonomi as . D e mo d o que o tema ad qui re rel e v ânc i a em âmbito mund i a l no ano 2 0 1 2 , qu and o Jos eph St i g litz , prêmi o Nob el d e E c onom i a 2 0 0 1 , es cre veu T he pr i ce of Ine qu a l it y, l i v ro que colo c a em e v i d ênci a as c ara c te r ís t i c as d a d es i gu a ld ad e e su as cons e qu ê nc i as: a ltos í nd i ces d e cr i mi na li d ad e, probl e mas s an it ár i os , menores n íveis d e e duc a ç ã o, d e har mon i a s o ci a l e d e exp e c t at iva d e v i d a . No pr i mei ro c apítu lo d o liv ro encont r a -s e o argumento d e que ap enas p ara 1 % d a p opu l aç ão d os E st ad os Un i d os o s on ho ame r i c ano ai nd a ten ha v i gênci a. As b ar re i r as e conômi c as que um ci d ad ão nor te- ame r i c ano tem p ara ter acess o à s aúd e, à e du c a ç ã o ou, i nclus ive, p ara garant i r su a s eg u r anç a , s itu am este p aís muito at rás d e p aís e s e u rop eus , em ter mos d e mobi li d ad e s o c i a l. O
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l iv ro p ass ou a s er um referenci a l no deb ate e re f le xão mu ndi a l. “O pre ço d a desigu a l d ade: 1% d a p opul a ç ão te m o qu e 99% ne c essit am” conf i r ma a te s e d e B ou rdieu de que o s E st ado s Un id o s de i xaram há temp os de s er o p aís d as op or tu n i d ad e s , p orque, def init iv amente, as op or tu n i d ad e s est ão c ondicionad as a “ heranç as”: he ranç a e c onômic a dos p ais, os c ont atos s o ci ais, o b air ro onde s e nas ce, o c ol é g i o ond e s e estud a, o lugar aonde s e vai du r ante as fé r i as, o s esp or tes que s e prat i c am e tc. I NDIC A D ORE S DE DE SIGUALDADE Amé r i c a L at i na, s egundo to dos os orga n is mos i nte r nac ionais, é a reg i ão mais d es i g u a l do mu ndo. To d av i a, ent re os anos 2 0 0 2 - 2015, as est at íst ic as inter nac ionais , me di d as p elo í ndice de Gini, mo st r am uma d i m inu i ç ã o i mp or t ante na desigu a l d ade en t re as p e ss o as. A desigu a l d ade dim inuiu, no p e r í o do ante s i ndic ado, c erc a de 0,9% anu a l. Ent re os anos 2008-2012, a dim inuiç ão foi d e 1 , 2% e, e nt re o s ano s 2012-2015, o r it mo d e d i mi nu i ç ão foi de 0,6% anu a l. C ab e- nos p e rgu nt ar o p orquê dess a que d a na diminuiç ã o e nt re 2012 e 2015? D e ac ordo com os d a d os e st at íst i cos d as Naçõ es Unid as, ess a qu e d a s e d e ve ao fato de que o ing ress o d os l are s com me nos re c urs os aumentou mais qu e os l are s com mais re c urs os. D e acordo com a CE PAL, ess a mel hor a na re duç ão d a de si gu a l d ade não s e expl ic a ap el as p el a b onanç a d as com mo dit ies no p er ío d o ana lis ad o, mas t amb ém p el as p ol ít i c as s o c i ais at ivas, no âmbito do merc ado de t ra b a l ho e d o s o ci a l, impl ement ad as p or divers o s gove r nos d e p aís es l at ino-amer ic anos , d ando i mp or t ânci a iné dit a ao s obj et ivo s d e re duç ão d a p obre za e d a desigu a l d ade. E nt re e ss as p olít i c as est ão, p or exempl o, a v a lor iza ç ão do s a l ár i o mínimo, p ol ít ic as de t ransfe rênci as condi c ionad as de ing ress ão etc. E ss e s s ão ap e nas a l guns do s c as os mais relevante s, e m maté r i a de inov aç ão em p ol ít i c as s o c i ais d e ss e p er ío do, que t iver am efe itos i mp or t ante s na re duç ão d a p obre za e d a d es i g u a ld a de e m a l guns p aís es de Amér ic a L a t i na , e sp e ci a lmente no Br asi l, no E qu ad or, na B olív i a, no Per u, no Ur ugu ai e na Vene z uel a . E ste ar t igo não tem c omo obj e t ivo re a l izar u ma ap ol og i a de t a l ou qu a l proj eto p ol ít i co, mas , sim, simpl esmente, most rar, d e acord o com as est at íst ic as d a CE PAL, que o s p aís e s d a re g i ão que apl ic ar am p ol ít i c as d e fo c a li za ç ão s o c i a l e e c onômic as acer t a-
d as não ap enas d emonst raram que as p aut as ne olib erais não s ão p os it ivas , como t amb é m most raram e d emonst raram que, apl i c and o p olít i c as s o ci ais e e conômi c as ant i c í cl i c as resp ons áveis , pud eram d i mi nui r os níve is d e d es i gu a ld ad e, re atu a li z and o a i nte r pret aç ão te ór i c a d as raz õ es histór i c as d a d e si gu a ld ad e. Q u a l é a qu ant i d ad e e a qu a li d ad e d o s d ireitos que as p ess o as p o d em exercer? A re sp ost a a est a p ergunt a est á d ad a, pr i me i ro, p el a const at aç ão d a existênci a d e um e sp a ç o na d i mens ão d as p olít i c as naci onais, qu e p o d em f az er uma d i ferenç a s i g n i f i c at iv a na velo ci d ad e d a re duç ão d a d es i gu a l d a d e. S egund o, p el a cent ra li d ad e que este te ma p o d e ter na aç ão públi c a, ou s ej a, o p ap el d o E st ad o i n f luenci a na qu a li d ad e d e v i d a d as p ess o as e nas t rans for maç õ es s o c i ais e e conômi c as . E m resumo, o i n for me s o ci a l 2 0 1 7 d a C E PA L colo c a em e v i d ênci as as c ara c te r íst i c as d a d es i gu a ld ad e e su as cons e qu ê nc i as: a ltos í nd i ces d e cr i mi na li d ad e, probl e mas s an it ár i os , menores n íveis d e e duc a ç ã o, d e co es ão s o ci a l e d e exp e c t at iva d e v i d a , mo st rand o os g rand es avanços que o Br asi l e a Amér i c a L at i na a lc anç aram nos pr i me i ro s 1 5 anos d este s é c u lo. O aumento d a d e sigu a ld ad e le va a uma s o ci e d ad e f rag me nt a d a, que conspi ra cont ra a har mon i a s o c i a l, cont ra a existênci a d e um “nós” ond e no s p o d emos re con he cer.
Referências: CEPAL . Informe social da Comissão Econômica para a América Latina 2016. CEPAL, Naciones Unidas. Santiago, mayo 2017. Disponivel em: http://www.cepal.org/es/ publicaciones/41598-panorama-social-americalatina-2016-documento-informativo SAVIANI, D. Os intelectuais, memória e política. Conferência UFPE, 12 junho 2017. STIGLITZ, J. The price of inequity. WW Norton & Company. London, 2012.
Jean De Mulder Fuentes é Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco, UFPE.
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Opinião
A reforma trabalhista e o surgimento de uma nova CLT Por Tiago Muniz Cavalcanti
A
História conta que o Direito do Trabalho revolucionou a teoria das relações contratuais privadas ao estabelecer uma intervenção protecionista estatal no âmago do contrato de trabalho. A finalidade desse ramo específico do Direito seria, pois, assegurar à parte mais frágil da relação - o trabalhador - uma proteção jurídica apta a garantir a incolumidade da sua dignidade. A despeito da nobre pretensão da ciência jurídica trabalhista, a situação da classe trabalhadora brasileira sempre foi de extrema desproteção,
desamparo e indignidade. Isso porque o trajeto de conquistas sociais em nosso país foi por demais tardio, só passando a contar com uma legislação trabalhista fabril na década de 1940 e, somente muito depois, estendendo-a aos trabalhadores do campo (1963). Até recentemente, em pleno século XXI, os empregados domésticos não tinham assegurados determinados direitos considerados fundamentais pelo texto constitucional e, somente há pouco, foram plenamente incorporados a esse universo protetivo. Não por acaso, os índices de trabalho precarizado são alarmantes por aqui: somos
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referência em acidentes, fraudes, assédio, trabalho escravo, infantil e, lógico, inadimplemento. Se as condições de vida e de trabalho não são favoráveis ao trabalhador brasileiro, ele deveria reivindicar a melhoria de sua condição social, sobretudo pelo aumento da teia protecionista decorrente da legislação trabalhista. No entanto, o atual contexto de retrocessos econômico-sociais tem conduzido o trabalhador a uma postura conservadora, de defesa do aparato normativo juslaboral em face dos sucessivos ataques legislativos persecutórios de mais “flexibilidade” em prol de uma melhor “adequação” da força de trabalho ao sistema econômico. Apesar das incertezas inerentes ao atual cenário político-institucional, caminha a passos largos na casa legislativa central um projeto que pretende tornar ainda mais flexível o direito aplicado às relações individuais de trabalho. Fundada numa suposta obsolescência da legislação, a reforma trabalhista almejaria “aprimorá-la” e “modernizá-la”, proporcionando, assim, condições vantajosas para a geração de empregos. Esse propósito convincente não condiz, no entanto, com o verdadeiro intento mascarado: atualização e modernização da lei trabalhista são palavras ao vento com interesses econômicos acaçapados. Perfidamente, a proposta se serve da momentânea desaceleração econômica para justificar medidas amorfas que nunca, jamais, em tempo algum fugiram da pauta reivindicativa patronal, nem mesmo em tempos de pujança. A desfaçatez do plano não resiste a uma análise mais diligente dos seus lastros. A Consolidação das Leis do Trabalho – alegadamente arcaica, porquanto nascida na década de 1940 – teve mais de 85% (oitenta e cinco por cento) dos seus dispositivos alterados ao longo destes setenta anos. Várias outras leis esparsas, cronologicamente mais “modernas”, também se prestam a regular as relações de trabalho: ou seja, a legislação trabalhista não é tão vetusta quanto se sustenta. Não é verdade, ademais, que a nossa legislação seja rígida e dificulte investimentos. Ao contrário do direito coletivo do trabalho, rígido por natureza, as relações individuais de trabalho gozam de uma plasticidade característica de países periféricos, revelada na redutibilidade salarial por negociação coletiva – art. 7º, VI, CF –, na compensação da jornada de trabalho – que afasta o pagamento do adicional de horas extras e diminui os custos da produção – e, sobretudo, na desproteção do encerramento unilateral do contrato de trabalho – o que gera elevada rotatividade de mão de obra. Ao contrário do que pretensamente objeti-
va o projeto, a redução dos custos da produção por meio do barateamento da força de trabalho não possibilitará ao País reduzir seu índice de desemprego. Ao revés, a retirada de direitos trabalhistas e, com efeito, o encolhimento da renda ensejarão a diminuição da capacidade aquisitiva dos consumidores. Não é outro o resultado do estudo promovido pela OIT em 63 países desenvolvidos e em desenvolvimento: a diminuição da proteção trabalhista não estimula a criação de empregos e não é capaz de reduzir a taxa de desemprego. Na realidade, a reforma induz ao erro. A aparência “moderna” que se pretende dar à superflexibilização deixa às sombras um passado longínquo pós-revolução industrial marcado pela desregulação e pela precarização. A intervenção regulatória estatal decorre da inescusável constatação de que não existe harmonia entre lobos e cordeiros: “entre fortes e fracos, entre ricos e pobres, entre senhor e servo é a liberdade que oprime e a lei que liberta” (Henri Dominique Lacordaire). Precisa-se de mais proteção, e não de menos. O projeto, entretanto, na forma como está posto, corrói, destrói e precariza, mormente por meio da elevação da jornada de trabalho, da permissão legal à negociação precarizante, da substituição do contrato por prazo indeterminado por trabalho temporário e a tempo parcial. E não é só. O projeto diminui sensivelmente a garantia patrimonial decorrente do grupo econômico trabalhista; faz nascer a figura do trabalhador que presta serviços com exclusividade e de forma contínua sem, no entanto, perder sua condição de autônomo; cria a figura do trabalhador ultraflexível, disponível a qualquer hora do dia, da noite, da semana, do ano, podendo alternar períodos de prestação de serviços e de inatividade à mercê da necessidade do patrão; e, mais grave, estende vastamente e sem limites a terceirização, legitimando a locação da mão de obra humana. Se aprovada, a reforma trabalhista provocará um gigantesco desmonte no aparato jurídico-normativo do Direito do Trabalho, ensejando a mais nova metamorfose da CLT: de Consolidação das Leis do Trabalho para Consolidação do Livre-comércio do Trabalho. A partir desta nova realidade, a compra e venda da força de trabalho far-se-á, como outrora, em praça pública e de acordo com a espessura das canelas. Tiago Muniz Cavalcanti é Procurador do Trabalho e Doutorando em Direito do Trabalho e Teoria Social Crítica pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.
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Opinião
A comunicação ainda é possível no turbilhão digital? Por Camilo Soares
V
irou até clichê dizer que o conturbado cenário político brasileiro ultrapassa qualquer roteiro mirabolante de série americana, no que toca à constância de fatos inusitados, a rapidez de reviravoltas e, sobretudo, a mórbida configuração que revela. Já não bastasse nossa confusão própria, somos bombardeados em tempo real por notícias de um mundo conectado e cada vez mais difuso: temos a sensação de seguir de perto a influência dos hackers russos nas eleições americanas, os foguetes de Kim Jong Un (Coreia do Norte), ou o derradeiro atentado reivindicado pelo Estado Islâmico, sem falar dos milhares de faits divers compartilhados pela internet, que nos chocam tão rapidamente como são esquecidos. Essa enxurrada de novidades acaba desvendando uma sociedade de excesso de acontecimentos e informações, onde reina uma perplexidade de notícias difusas, incompletas e muitas vezes falsas, cujas imagens e legendas, ao carecer de coesão, parecem incapazes de produzir sentido. Diante de tamanha confusão e falsas novidades, qual o papel do comunicador para fomentar uma leitura crítica dos tempos atuais ? A inovação pela inovação advinda da lógica do benchmarking industrial chegou à mídia com a necessidade de alimentar o mercado com fatos novos e constantes, muitas vezes dispersos
nas futilidades do jetset ou em notícias bombásticas com pouco análise. Paradoxalmente, tal hiper-difusão de novidades parece muitas vezes disfarçar velhas práticas e casos infelizmente costumeiros (como as repetidas cheias, que geram medidas e repasses emergenciais que não deveriam mais ser emergenciais). Tal superabundância de acontecimentos no mundo contemporâneo caracteriza para o etnólogo francês Marc Auge a sobremodernidade, na qual a convivência do novo e do ancião na modernidade baudelairiana virou um tênue fluxo sem contexto. Esse fenômeno é materializado nos espaços de passagem como aeroportos, supermercados, postos de gasolina, que ele chama de não-lugares por sua natureza não-identitária, não-relacional e não-histórica. Tais ambientes não tiveram apenas um impacto sensorial-afetivo, mas também sobre a capacidade coletiva de dar sentido à história recente diante do ininterrupto presente que se parece cada vez mais a um museu de grandes novidades. Esses lugares de anonimato parecem ter encontrado hoje um extremo e paradoxal ápice no frenético mundo virtual das mídias sociais. Ao mesmo tempo em que tais mídias demandam uma afirmação contínua de uma identidade, projetada numa interatividade calculada, nunca se esteve tão desamparado diante um
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ambiente sem laços rígidos identitários, relacionais e históricos. Como nos não-lugares concretos, em tais meios virtuais, as referências tomam lugar das coisas de fato. Só que agora as fontes são ainda mais dispersas, seja isso pela ânsia do rápido consumo de informações, seja pela pulverização das origens dos fatos diante de opiniões hegemônicas em grupos específicos (amplificada pelos seletivos algoritmos das redes sociais, que conduz a oferta de informações e a possibilidade de interações), seja pelas verdades legitimadas por compartilhamentos apressados. O fato é que essa difusão provou ter forte impacto na opinião pública, como foi evidenciado nas recentes eleições norte-americanas pela turva estratégia de marketing de Donald Trump, replicando mentiras para torná-las uma “verdade” eficiente, mesmo que efêmera, processo que foi chamado de pós-verdade. Tal fenômeno eleitoral virtual parece ter chegado de vez no Brasil. Pelo menos é o que se pode supor de uma recente pesquisa do Ibope, que revela que 56% dos brasileiros aptos a votar dizem que sua escolha pelo candidato a presidente em 2018 será influenciada em algum grau pelas redes sociais; ainda mais relevante é que 36% dizem que seu voto será muito influenciado por mídias sociais virtuais, que pela primeira vez desbancam a influência da mídia tradicional, que ficou com 35% nesse quesito. Evidentemente que a queda de influência da mídia oligarca brasileira é uma leitura interessante dessa pesquisa, assim como a diminuição no poder de persuasão das megaproduções de marketing político televisivo, mas como evitar que falácias, preconceitos, boatos e dados distorcidos disseminados no fluxo virtual não venham a determinar o rumo da política nacional? Qual o novo papel do jornalismo sério (ou do comunicador, de forma mais ampla) diante desse não-lugar virtual, desse hiper-lugar totalizante e fugidio, no processo democrático atual? Talvez a resposta venha justamente de novas relações de poder que tal mundo virtual vem estruturando. De um lado, surge justamente a proposta de verificar em bases de dados oficiais se afirmações proferidas por homens públicos ou instituições são falaciosas ou imprecisas. Isso é uma tendência mundial representada por grupos de fact-cheking, evidenciada pelo selo da IFCN (International Fact-Checking Network), concedido pelo Instituto Poynter nos EUA, após auditoria a grupos comprometidos com a produção de checagens transparentes, isentas e plurais. No Brasil, esses incômodos
“checadores” são representados por grupos como a agência Lupa e o site Aos fatos. No entanto, eles tampouco devem ser considerados os novos ministros da verdade mundial, como desconfia o site alternativo The Freedom Articles, apontando que os principais financiadores da IFCN são instituições ligadas a George Soros, Bill Gates, Pierre Omidyar (dono da Paypal e conectado com a industria militar via Booz Allen Hamilton), além da Google e do recente apoio do Facebook, o que não deslegitima necessariamente sua importância (o fato é posto transparentemente no site da organização), mas nos coloca uma pulga multinacional atrás da orelha. Finalmente, como no sistema político brasileiro, parece que recaímos numa última e fundamental questão: quem dá o dinheiro (e, pressupostamente, as cartas do jogo)? Uma mídia transparente deve deixar claro, por exemplo, o grupo que a comanda e que ideologia defende. Na recente eleição no Reino Unido, o site de esquerda The Canary (que teve um investimento inicial equivalente a apenas cerca de R$ 2 mil), demonstrou decisivo (com 13 milhões de acessos únicos em maio) na impressionante retomada de força do Partido Trabalhista e de seu líder Jeremy Corbyn, apesar do massacre que esse sofreu na grande mídia por suas supostas ideias esquerdistas ultrapassadas. Tais novas mídias se mostram viáveis e influentes, apesar do sempre difícil equilíbrio financeiro dos meios virtuais. O fato é que leitores estão buscando esses sites como alternativas de informações (em detrimento da grande mídia desacreditada por suas ligações financeiras), como é o caso dos Les Jours e Mediapart (França), El Confidencial e El Español (Espanha), Correctiv e Krautreporter (Alemanha), do também britânico Investigative Journalism, além do exemplo local de jornalismo independente do Marco Zero Conteúdo. Assim, apesar da desolação referencial, as novas e complexas composições do meio virtual podem igualmente abrir possibilidades para a busca de significado ao excesso de informações desses hiper-lugares. Evidentemente, tal processo requer um tempo de compreensão e aprimoramento, a perda de romantismo e inocência e, sobretudo, a atitude de comunicadores para encarar novas lógicas de informação e de viabilidade econômica, para que o novo, que sempre vem, venha como uma nova possibilidade. Mas, enquanto isso, não se prive do tempo para reciclar as ideias abrindo um bom e velho livro, mesmo que em formato digital.
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Opinião
O cabo de guerra do uso da terra Por Giselle Cahú
O
Ministro das Cidades, Bruno Araújo, através de entrevista veiculada no rádio, ao ser indagado se a sua principal preocupação na Pasta que exerce era com a moradia, a casa, respondeu ao locutor que, certamente, estre as suas preocupações “a principal é a habitação, que toma conta de 70% do Ministério, depois vem saneamento, depois vem mobilidade, [...] mas seguramente a habitação, com Cartão Reforma, com Minha Casa Minha Vida, com Regularização Fundiária, é 60/70% do ministério”. Devido à sua relevância, é extremamente necessário o aprofundamento pela mídia do que vem a ser a reforma fundiária, mas, infelizmente, não é isso que tem acontecido. Segundo o Artigo 46 da Lei número 11977 de 2009, a Regularização Fundiária é um conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de habitações irregulares e à titulação de seus ocupantes de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. É um processo de caráter universalista, distributivo e demográfico que transforma terra urbana em terra urbanizada. O arquiteto Marcos Mendonça, do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), com ampla experiência em planos diretores e programas de desenvolvimento regional e urbano, durante sua participação no Programa Jornalismo e Cidadania sobre o tema Regularização Fundiária e Reforma Agrária, veiculado pela Rádio Universitária FM no dia 29 de maio de 2017, explicou que terra urbana é toda terra contida dentro dos limites da cidade e que é considerada urbana dentro de cada município, visto que cada município tem sua própria definição de área urbana e área rural. Em alguns casos, diz Marcos, praticamente não existem mais áreas rurais, como na cidade do Recife. “A maior parte dessas áreas têm alguma infraestrutura para de fato ser considerada urbana, que é sobretudo o fornecimento de água encanada, drenagem, pavimentação das vias e iluminação pública, contudo, na maioria das áreas urbanas brasileiras não existe esgo-
to sanitário”, completou o arquiteto. Segundo dados do Instituto Trata Brasil, publicados em Março de 2016, 49,8% do País não tem saneamento básico, o que coloca o Brasil em 11º lugar no ranking latino-americano deste serviço, atrás de países como Peru, Bolívia e Venezuela. Portanto, concluiu Marcos, a definição do urbano como algo que tem infraestrutura é muito carente, de modo que a cidade também possui áreas que não contam com estes equipamentos, embora sejam caracterizadas como áreas urbanas. A Regularização Fundiária está muito presente nos noticiários desde a mudança de governo em 2016, com a usurpação da presidência por Michel Temer. A notícia é a Medida Provisória 759/2016 publicada pelo Governo Federal no dia 22 de Dezembro de 2016 que tem como argumento a modernização da regularização fundiária no País. Também conhecida como “MP da Regularização Fundiária”, a medida provisória 759 busca, de forma geral, desburocratizar a regularização de imóveis urbanos e rurais. No entanto, inserida numa Proposta de Emenda Constitucional conhecida como PEC do fim do mundo, a MP extingue critérios que asseguram o interesse social da propriedade, rompe com regimes jurídicos de acesso à terra, de regularização fundiária de assentamentos urbanos e viola os marcos legais sobre a política urbana e a função social da propriedade. Em 31 de Maio de 2017 o plenário do Senado aprovou a Medida Provisória da Regularização Fundiária, editada por Temer, que mexe com os três grandes temas: assentamentos de reforma agrária, regularização de terras nas cidades e venda de terras da União. Sabemos que Reforma Agrária, segundo a Lei número 4504 de 1964 do Estatuto da Terra, é o conjunto de medidas que busca promover a melhor distribuição da terra mediante modificações no regime de posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social, desenvolvimento rural sustentável e aumento de produção. No endereço eletrônico do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), estão elencados nove itens que indicam o que a Re-
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forma Agrária proporciona na prática. São eles: desconcentração e democratização da estrutura fundiária; produção de alimentos básicos; geração de ocupação e renda; combate à fome e à miséria; interiorização dos serviços públicos básicos; redução da migração campo-cidade; promoção da cidadania e da justiça social; diversificação do comércio e dos serviços no meio rural e a democratização das estruturas de poder. O assessor de políticas agrárias da Federação dos Trabalhadores Rurais do Estado de Pernambuco (Fetape) Aglailson Amauri da Paixão, que também participou do Programa Jornalismo e Cidadania sobre o tema Regularização Fundiária e Reforma Agrária, comentou as implicações da Medida Provisória 756 no que diz respeito aos assentamentos de Reforma Agrária. Segundo ele, a medida provisória traz, antes de mais nada, a regularização de terras griladas; a possibilidade de venda das terras da União; a possibilidade de negociação de terras de fronteiras, o que pode vir a extinguir a nossa Amazônia; a regularização da grilagem e, com isso, o incentivo ao trabalho escravo, ou o trabalho análogo ao trabalho escravo. Paixão assegura que estas mudanças irão mexer profundamente na nossa relação de posse com a terra, além de servir à especulação imobiliária. O aumento do preço dos imóveis rurais, diz ele, favorece a estrangeirização da terra brasileira, permitindo também a implantação das grandes produtoras de comódites e os grandes produtores de defensivos agrícolas. “Infelizmente, nesse pacote de maldade, essa maldita medida provisória veio para destruir a nossa soberania não só alimentar, mas a nossa soberania de territorialidade”, acrescentou Aglailson Paixão. A Anistia aos desmatadores e grileiros na Amazônia, nos lembra o escândalo ocorrido em 2008 no Mato Grosso, que fez réu o atual diretor de desapropriações do Incra sob a acusação de grilagem. O presidente do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) de Cuiabá, Clóvis Figueiredo Cardoso, foi apontado pelo Ministério Público como participante de um esquema que fraudava a desapropriação de terras durante sua primeira passagem pelo órgão, escândalo conhecido como “a farra com terras da União”, mas a ação prescreveu sem que o mérito do caso fosse julgado. As terras que Clóvis foi acusado de fraudar estão sob seu comando desde sua posse em 10 de Janeiro de 2017. Segundo o site Poder Trezentos e Sessenta, o Incra afirmou que a nomeação de Clóvis Figueiredo Cardoso foi aprovada pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin), órgão da
Presidência da República responsável por produzir conhecimentos para subsidiar a tomada de decisões do presidente. A primeira matéria do Jornal Nacional do dia 6 de Maio tratou da atuação do Incra nos atuais casos de conflitos agrários. Segundo o noticiário, o Incra reduziu os investimentos nas políticas de Reforma Agrária, e não há uma resposta efetiva do estado para resolver esta situação. Sobre a forma como todas estas mudanças e acontecimentos estão sendo midiatizados, Marcos Mendonça denuncia, referindo-se ao golpe que tornou Michel Temer presidente, que “existe uma mídia dominante que faz todo o esforço possível para maquear este quadro e levar à formação de uma opinião iludida por esse golpe midiático”. Esta afirmação foi reiterada por Aglailson Amauri, ao observar que “as inverdades fazem com que a população não tenha uma visão periférica e olhe apenas por um único foco e tendência. Manipuladas pela mídia dominante, [as pessoas] não conhecem as razões sociais dos conflitos, os movimentos sociais, a produção de alimento e a dignidade da pessoa humana que provém do trabalho em prol da família”. A saída para resolver esses problemas, segundo Marcos, é politizar a população. Para ele, “uma das coisas mais importantes que podemos fazer no Brasil é concorrer para a politização da poulação, e isso só podemos obter quando a população está sabendo o que está acontecendo. Estamos passando por um processo dificílimo de descontrução de toda uma luta de várias décadas que foram travadas no Brasil”. E Aglaílson também expõe sua preocupação com o tamanho do perigo que estamos correndo nas mãos dos atuais gestores do País: “A nossa constituição está sendo rasgada e ateada fogo. Quando rasga a genta ainda consegue emendar as partes, mas quando ateia fogo ela vira cinzas. Queira Deus que seja uma fênix, que renasça das cinzas os nossos direitos e a nossa constituição que está sendo trucidada por este governo ilegítimo”.
Giselle Cahú é graduanda no Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco e aluna voluntária no Projeto de Extensão Programa Jornalismo e Cidadania Ano 2.
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Opinião
Para uma Universidade em Seu Tempo Por Roberto Ramos Santos e Jorge Bonito
E
ste artigo faz parte do trabalho de pesquisa Pensar e construir a universidade no século XXI, desenvolvido pelo Núcleo de Pesquisas Eleitorais e Políticas da Amazônia (Nupepa) em parceria com a Escola de Ciências Sociais da Universidade de Évora, Portugal. Uma parte deste estudo, reunindo ideias de pesquisadores de quatro países (Argentina, Brasil, Equador e Portugal), foi publicada pela editora da Universidade Federal de Roraima com o objetivo de estimular o debate sobre os caminhos futuros da Universidade e sua inserção no mundo. Esse objetivo é visto também nas publicações de outros autores, entre eles, Buarque (2014), Kourganoff (1990), Mello (2011), Morhy (2003) e Rollemberg (2005). Em seu processo histórico, pode-se dizer que, desde a origem, não importando o tempo, as Universidades sempre deram contribuições muito importantes ao desenvolvimento da sociedade. A motivação em encontrar respostas aos problemas que desafiam a natureza do homem, quer
por meio da pesquisa e do ensino, quer por meio da extensão universitária, transformou-se em uma das suas principais características normativas e endógenas. Isso talvez seja responsável por sua capacidade de sobrevivência ao longo do tempo e pela posição destacada que ocupa entre as instituições que, até os dias atuais, propuseram-se a entender e mudar o mundo utilizando como ferramenta os saberes produzidos pelos diversos ramos do conhecimento científico. Fazem parte da natureza universitária as inquietações com a realidade social e o acolhimento às ideias novas, ainda que sejam utópicas e possam suscitar debates sobre os benefícios gerados à humanidade. Mesmo que cultive o passado e intervenha no presente, a Universidade, com sua produção acadêmica, é o lugar privilegiado para produzir e receber o futuro de acordo com as mudanças e os valores éticos que são cultivados pela sociedade. Por isso, torna-se hoje cada vez mais necessário inseri-la em seu tempo; incutir no quadro das profissões ensinadas – por meio do processo for-
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mativo, com os métodos e as técnicas de investigação apropriadas – a importância da liberdade de pensamento e a quebra de paradigmas como forma de manter sua relevância social e identidade política. No mundo contemporâneo, há uma enorme expectativa sobre o papel do ensino desempenhado pela Universidade em um século em que a inovação tecnológica e a revolução no conhecimento ganharam uma importância econômica nunca registrada pela História. O desafio universitário neste século parece ser o de conseguir formar pessoas com conhecimento científico em escala global, em um período curto e interdisciplinar, para atender ao novo ciclo de desenvolvimento econômico e à promoção do bem-estar social. O papel da Universidade em promover a dignidade humana como valor cívico e ético, ao mesmo tempo em que trabalha pelo avanço científico e tecnológico, tem proporcionado socialmente a ampliação dos preceitos de igualdade, liberdade e justiça. Torna-se cada vez mais comum observar nas Instituições de Ensino Superior a formação de uma opinião pública em favor da defesa de valores democráticos que respeitem a preferência política e a diversidade das pessoas, seja pelo sexo e pela etnia, seja pela orientação sexual, simultaneamente a valorização e o respeito ao meio ambiente como condição necessária à sustentabilidade da vida no planeta; ainda, sua luta pela superação da pobreza criada pelos modelos excludentes de desenvolvimento capitalista, que em muitos lugares negaram às camadas mais pobres da sociedade o direito à educação superior. Assim, a função de compreender as tradições sociais e de enriquecer a cultura dos povos é uma obrigação política e educacional da Universidade, mas só pode ser realizada plenamente quando a base do conhecimento e do compromisso acadêmico for a defesa plena da cidadania e a elevação do padrão de vida da população onde ela estiver. Contudo, a dimensão veloz das mudanças tecnológicas ocorridas na atualidade, em face da forte competição econômica registrada em todos os setores, impõe um reexame quase constante da trajetória das ações universitárias, como forma de melhor adaptação ao ambiente exterior, identificando novas oportunidades e modernos caminhos para a elevação de sua capacidade de responder aos problemas criados pelas circunstâncias atuais e pelos interesses econômicos e sociais. Espera-se que a reflexão apresentada nes-
te artigo contribua para o desenho de uma proposta de Universidade para o século XXI. Como sugestão de construção de uma agenda positiva de pesquisa sobre o tema, considera-se necessária a ampliação do debate sobre o caráter humanista da Universidade, em uma perspectiva inter e transdisciplinar, que almeje a criação de uma sociedade de paz e não opressiva. Nesse mesmo sentido, torna-se importante, pela divulgação acadêmica, gerar estímulos para o aparecimento em escala global de novas pesquisas tecnológicas, integradas, sobre meio ambiente e sustentabilidade econômica e social. Ainda, verificar o papel empreendedor das atividades de pesquisa desenvolvidas pelos cientistas. Nas funções acadêmicas, a sugestão de análise é para o aprofundamento dos estudos de melhoria das práticas pedagógicas de ensino e das práticas de gestão universitária como forma de torná-las mais dinâmicas e contemporâneas. Referências: BUARQUE, Cristovam. A universidade encruzilhada. São Paulo: UNESP, 2014.
na
KOURGANOFF, Wladimir. A face oculta da universidade. São Paulo: UNESP, 1990. MELLO, Alex Fiúza de. Globalização, sociedade do conhecimento e educação superior. Brasília: UnB, 2011. MORHY, Lauro. Universidade em questão. Brasília: UnB, 2003. ROLLEMBERG, Marcello (Org.). Universidade: formação e transformação. São Paulo: EDUSP, 2005. SANTOS, Roberto Ramos; BONITO, Jorge (Org.). Pensar e construir a universidade no século XXI. Boa Vista: EDUFRR, 2015.
Roberto Ramos Santos é Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), professor no Curso de Ciências Sociais da UFRR e pesquisador no Núcleo de Pesquisas Eleitorais e Políticas da Amazônia (Nupepa). E-mail: roberto.ramos@ufrr.br. Jorge Bonito é Doutor em Ciências da Educação pela Universidade de Coimbra, professor na Escola de Ciências Sociais da Universidade de Évora e pesquisador no Centro de Investigação “Didática e Tecnologia na Formação de Formadores” da Universidade de Aveiro. E-mail:jbonito@uevora.pt.
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Opinião
Os procuradores da república Por Rubens Pinto Lyra
O
s Procuradores da República de tendência progressista desafiam a suposta homogeneidade e unidade da categoria, das quais certo corporativismo mesquinho é incondicional defensor e dão o exemplo aos demais setores da sociedade brasileira: o momento é o de ir para a chuva e se molhar. Eles o fazem em documentos distintos: na Carta aberta à sociedade brasileira, subscrita por quase 40 Procuradores da República da ativa, e em entrevista concedida por dois de seus maiores ícones, o ex Procurador Geral da República Claúdio Fontelles e o ex-Presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República Alvaro Ribeiro da Costa, ambos aposentados. Em alguns aspectos de sua crítica, foram precedidos por outra liderança inconteste do MPF: o Sub-Procurador Geral da República Eugênio Aragão, ex Corregedor Geral do Ministério Público e ex Ministro da Justiça. Como dizem Ribeiro da Costa e Claudio Fonteles, “como não nos calamos antes, em momentos decisivos de nossa história, não podemos nos calar agora porque o que nos move é propiciar uma reflexão madura e serena sobre os acontecimentos presentes na sociedade brasileira” ( AULER, 2017). Noblesse oblige: o interesse nacional e os compromissos com a defesa da democracia dos membros do MPF, guardiões da Constituição que juraram defender, os obrigam a sair do seu casulo e apontar para os perigos decorrentes da politização à direita de parcela (hegemônica?) de sua categoria. Sabem que o respeito à autonomía do Parquet e a credibilidade que construiram com sua ação corajosa em defesa dos direitos humanos estão em jogo. Na dicção de Álvaro Ribeiro da Costa e Claudio Fonteles “que a atuação do Ministério Público contra a corrupção prossiga válidamente, instaurando-se e ampliando-se os instrumentos legitimos e necessários a serem conduzidos de modo exemplar e amplo, sem seletividades, vieses ou desvíos. É o que a lei impõe e a sociedade exige, para que não se convertam em instrumentos de mera perseguição, sensasionalismos e facciocismos nos chamados espaços e horários nobres da mídia” (AULER,
2017). Observe-se que nessa denúncia de ilegalidades praticadas por certos Promotores e Procuradores de Justiça está também embutida a crítica ao oligopolio midiático televisivo, que busca criar unanimidades acríticas em relação à condução de operações dos órgãos da Justiça, a exemplo da Lava Jato. Por isso reiteram: “o trabalho institucional não condiz com arroubos espetaculares, protagonismos em demasia, exaltações midiáticas e prejulgamento” (AULER, 2017). Ribeiro da Costa e Fontelles focam especialmente na desobediencia aos parâmetros legais perpetrada na criação da figura do investigado, com os consequentes constrangimentos contra ele cometidos, na condução coercitiva, na prisão preventiva e na tentativa de se promover a auto-acusação: “isto não aproveita um processo válido, antes mancha a verdade institucional do Ministério Público”, afirmam Fonteles e Ribeiro da Costa (AULER, 2017). Essa mesma coragem, senso de oportunidade e viés anti-corporativo está igualmente presente na Carta Aberta de Procuradores da República, cujas críticas vão no mesmo sentido das feitas por essas duas lideranças do MPF. A Carta lembra o mandato que a Constituição de 1988 conferiu ao Parquet: não só o de agente de promoção do direito penal, mas também o de defensor dos direitos humanos e do regime democrático, o que o obriga a ir além do viés punitivo. Mas os subscritores da Carta Aberta preocupam-se também com ‘’o avanço de propostas de reformas no sistema público de saúde, de educação, na previdência social, nos direitos das minorías e das comunidades tradicionais, as quais podem acabar sendo feitas sem o crivo das urnas. Decisões sobre direitos fundamentais, principalmente sociais, econômicos e culturais pressupõem, mais do que nunca, discussão publica ampla, sob pena de ilegitimidade democrática” (NÓBREGA, 2017). As criticas dos setores mais progresistas do Parquet são corajosas, pertinentes e inovadoras: pela maneira como as vincula, convidando a sociedade brasileira para com ele debater o papel da instituição ministerial; pela denúncia do conteúdo de políticas que pretendem alterar o desenho institucional do Estado brasileiro, comprometendo os
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direitos fundamentais e pelo fato de considerar essas políticas carantes de legitimidade democrática. Destarte, os signatários da Carta Aberta reprovam a politização da Justiça e enfatizam o papel político lato senso do Ministério Público: o de defensor do regime democrático que, reiteram, não pode estar em contradição com o desempenho de suas atribuições no âmbito penal (NÓBREGA, 2017). Ressalte-se que os posicionamentos dos Procuradores da República são anteriores à ocorrência de insólito abuso de poder na área da educação, atingindo as liberdades individuais e violando a laicidade consagrada na Constituição. O Procurador de Justiça Sérgio Harfouche, de Dourados (MA), entendeu ser seu direito obrigar os pais de familia de uma escola municipal a ouvir sua palestra, que visava, supostamente, falar sobre educação. Na verdade, ela consistiu em uma pregação religiosa fundamentalista contra a identidade de gênero (YAROCHEVSKY, 2017). O estádio de Dourados ficou abarrotado, tendo em vista a ameaça de aplicação de pesada multa de até 18.700 reais para familias que não atendessem à convocação do MP. Essa conduta, flagrantemente ilegal, realça a necessidade premente de aprovação de legislação contra o abuso de autoridade, quaisquer que sejam as motivações de parte dos parlamentares que a apóiam. As palavras do venerando jurista brasileiro Paulo Bonavides se ajustam como uma luva aos membros do MP, mas apenas aos que se identificam com a promoção dos direitos humanos e com a legalidade democrática Aún no tenemos la guardia eficaz de la Constitución por un Tribunal de jueces constitucionales. Tenemos, sin embargo, la guardia de la sociedad por un cuerpo de miembros del Ministerio Público. Son aquellos que, en los términos de su presente actuactión, se conportam como soldados de la Ley Fundamental, sacerdotes del Estado de Derecho, órganos de la democracia participativa, que ellos conduzen de la región teórica a las esferas de la praxis y de la sociedad (BONAVIDES, 2012, p. 246-247). O posicionamento dos Procuradores da República tem, ademais das qualidades já ressaltadas, o de servir como exemplo pedagógico para os membros de outras instituições públicas e para entidades da sociedade. Quando autoridades de seu nivel, umbelicalmente vinculadas à institucionalidade, julgam indispensável se manifestar em defesa da legalidade, quem pode alegar não poder fazê-lo, em razão de supostas imposições ou constrangimentos legais? O fortalecimento da democracia no Brasil
depende, em larga medida, da capacidade que demonstre a sociedade, mas também os que detêm responsabilidades institucionais, de se mobilizar pela preservação da ordem jurídica democrática, consideravelmente enfraquecida pelo protagonismo político de setores preponderantes da magistratura e do Parquet. Entre outras, instituições públicas como as Universidades, os institutos científicos e os Conselhos Estaduais de Direitos Humanos - órgãos independentes do Estado e com forte componente societal - não podem estar ausentes dessa moblização. Sem a garantia de uma ordem democrática plena, não será possivel promover nenhuma das diversas categorias de direitos humanos, nem garantir autonomia e liberdade de pensamento, tão caras à instituição universitária. Em meio às dificuldades próprias de um período conturbado, temos o privilégio de poder ensaiar e propor soluções inovadoras. Devemos avançar em relação a reivindicações não apenas corporativas; desenvolver novas formas de organização partidária; atuar não somente nos sindicatos e movimentos sociais mas estender a nossa praxis transformadora à chamada “superestrutura”: luta pelo respeito às conquistas democráticas e ao Estado de Direito, e por propostas que se contraponham ao autoritarismo obscurantista, colocando a democracia no epicentro da vida social e política brasileira.
Referências: AULER, Marcelo. A crítica ao Ministério Público por dois ícones do MPF: Claudio Fonteles e Alvaro Costa. Blog Marcelo Alves réporter. 21.6.2017. BONAVIDES, Paulo. In: Lyra, Rubens Pinto y Constenla, Carlos (org.). Ombudsman, Ministerio Público y Ouvidorías: las dos facetas del Ombudsman en Brasil. Defensorías del Pueblo y Ouvidorías en Iberoamérica. Santa Fé: Universidad Nacional del Litoral, 2012. NÓBREGA, Rubens. Carta de Procuradores da República pede cautela no MPF e critica reformas de Temer. Jornal da Paraíba on line. 7.6.2017. YAROCHEWSKY, Leonardo Isaac. Procurador ameaça com processo pais de alunos que não assistirem a sua palestra. Blog Conjur, 28.5.2017.
Rubens Pinto Lyra é Doutor em Direito Público e Ciência Política (Université de Nancy, França) e Professor do Programa de Pós-Graduação Direitos Humanos, Políticas Públicas e Cidadania da UFPB. Email: rubelyra@uol.com.br
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Mídia Fora do Armário Jornalismo e construções identitárias Por Rui Caeiro Consultor da UNESCO na 3ª Conferência Nacional LGBT, Conselheiro Nacional LGBT e Assessor de Políticas LGBT da Prefeitura de Caruaru e militante no Coletivo Lutas: essas são apenas algumas das experiências que podemos encontrar no já rico currículo de Cleyton Feitosa. Mestre em Direitos Humanos (UFPE), viajou recentemente para a capital do país, onde é doutorando em Ciência Política (UnB). À partida, entretanto, não pressupôs real afastamento: militante do Coletivo Lutas e Cores, sediado na cidade do agreste pernambucano, a ligação com a cidade onde pela primeira ficou vislumbrado “com a possibilidade de sair do armário e politizar uma causa considerada de foro íntimo” continua pulsando. Nesse sentido, falou com a Revista Jornalismo & Cidadania sobre visibilidade e representação política LGBT, temas que continuam tencionando a luta por reconhecimento e dignidade de pessoas de sexualidades e/ou gêneros não normativos. J&C: Cleyton Feitosa, fale um pouco sobre a tua entrada no ativismo, em Caruaru. Já havia um movimento forte, organizado? CF: Existia uma militância, mas ainda um pouco frágil, com poucas pessoas. Havia uma ativista trans, Priscilla Presley, que tinha realizado as primeiras Paradas do Orgulho LGBT em 2005 ou 2006 (não lembro o ano exatamente) com apoio da ONG recifense Leões do Norte que também tinha a intensão de interiorizar a pauta LGBT. Priscilla coordenava um coletivo e realizava algumas ações, dava entrevistas para a imprensa local. Acho que a agenda se fortaleceu muito desde então: avançamos de uma ação mais focada nas Paradas para uma outra que se articulava com a comunidade universitária da região e com instituições públicas da cidade como a Câmara de Vereadores, a Prefeitura de Caruaru e o Ministério Público. Essa interlocução possibilitou uma entrada da causa LGBT nos órgãos, ensejando uma discussão mais permanente, mais visibilidade na esfera pública e a criação de políticas públicas de diversidade sexual.
J&C: Esse é um ponto que continua importante na atualidade, a representação e participação política de LGBTs. Temos avançado nos últimos anos? Eu avalio que a participação política da população LGBT vem aumentando cada vez mais, e por três vertentes principais. (1) Na sociedade civil organizada, (i) numa corrente mais institucionalizada, em formato de ONG ou influenciada por esse tipo de formato – redes, coletivos e grupos que interagem diretamente com o aparato estatal em suas diversas frentes como nos poderes executivos, judiciários e, em menor medida, legislativos. Essa corrente cresceu nos últimos anos a partir das políticas participacionistas como as conferências, conselhos, comissões, comitês, etc. e (ii) noutra menos institucionalizada, que não tem interesse em disputar os rumos da sociedade via Estado – coletivos que discordam dos formatos hierarquizados e burocráticos das ONG’s, que se organizam autonomamente, buscando mais horizontalidade e uma transformação social através da cultura, do diálogo com as bases, através de manifestações artísticas e da ruptura com pensamentos mais tradicionais e clássicos do Movimento LGBT. Consigo ver essa corrente muito forte nos coletivos universitários e nos grupos artísticos e periféricos. Ainda há aqueles grupos que sofrem a influência dessas duas correntes: visam a transformação da cultura, mas não abrem mão da institucionalidade e da interlocução com os governos. (2) Outra forma de participação, que também vem crescendo, é aquela que almeja disputar o Estado e as instituições pelos moldes mais tradicionais, como as eleições, por exemplo. É possível visualizar cada vez mais ativistas entrando nos partidos políticos, disputando suas agendas, lançando candidaturas majoritárias e proporcionais e construindo um ativismo a partir da representação política e dos moldes liberais. Esse tipo de participação encontra muitos desafios e obstáculos devido ao fechamento histórico dessas instituições a quem sempre esteve na margem, mas acredito que há uma luta por uma democracia mais densa e substancial. (3) A última forma
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de participação política é aquela presente nas universidades e faculdades brasileiras. E aqui não me refiro apenas aos coletivos universitários, mas ao conjunto de discentes e docentes que vêm construindo espaços mais arejados como grupos de pesquisa, pesquisas qualificadas e eventos científicos que se tornaram verdadeiros espaços de militância. Na verdade é um híbrido de produção de conhecimento e luta política. Também percebo uma expansão, norte-nordestinização e interiorização desses eventos. J&C: é fácil hoje depararmo-nos com a denúncia, principalmente dentro dos movimentos, de uma subrepresentação/visibilidade de determinadas lutas/identidades (LBT, por exemplo), inclusive com falta de recorte de classe e raça, dentre outros. Como vês essas críticas, olhando também para o caso de Caruaru? CF: Apesar de um ativismo LGBT mais organizado se ter iniciado em Caruaru através de uma pessoa trans, isso não quer dizer que a pauta trans fosse evidenciada. Por exemplo, o nome do coletivo de Priscilla era “Grupo de Resistência Gay de Caruaru”. Naquela época, a luta LGBT era subsumida numa causa Gay. Era como se a palavra Gay representasse toda a diversidade presente na nossa população. O Movimento de Lésbicas, de Trans e a influência da Teoria Queer na academia subverteram bastante isso nos últimos anos no Brasil, ao ponto da agenda trans hoje ser uma das mais discutidas em diferentes setores da sociedade, incluindo a grande mídia. Isso foi excelente, claro, mas outras identidades continuam completamente invisibilizadas no debate público (como as lésbicas, pessoas bissexuais, homens trans e pessoas intersexuais). Além disso, gays continuam com altos índices de infecção por HIV e registros de homicídios. Eu defendo uma luta mais unificada, menos fechada em identidades específicas, embora reconheça a importância de trazer demandas identitárias. Normalmente, em meus textos, procuro fazer debates mais gerais, focar em pontos comuns, que afetam a toda a população LGBT sem menosprezar reivindicações mais específicas. Sobretudo na conjuntura atual de recrudescimento do neoliberalismo, fascismo, fundamentalismo e pensamentos anti-democráticos. Quanto à interseccionalidade entre LGBT, classe e raça, eu acredito que isso também venha aumentando nos últimos anos no Brasil,
tanto no meio acadêmico quanto nos movimentos e coletivos protagonizados pelas juventudes, principalmente as periféricas. Tem sido muito rico tudo isso. Mas eu atribuo a invisibilidade dessas questões a uma demanda por visibilizar e enfatizar o aspecto da sexualidade que sempre foi secundarizado nos movimentos operários, feministas e negros. O Movimento LGBT nasce com uma demanda muito específica que é o de revalorizar aspectos marginalizados da sexualidade. Hoje, cada vez mais entendemos que há uma convergência de opressões cruzadas entre gênero, sexualidade, raça e classe e que não dá pra discutir apenas uma dimensão das nossas vidas porque nossas identidades são multifacetadas. Acredito que a agenda LGBT também tenha penetrado com mais vigor nos últimos anos nos Movimentos Negro, Feminista e de Trabalhadores. J&C: E quanto à presença na mídia? CF: Penso que cada vez mais a mídia empresarial tem se interessado pela luta LGBT. Talvez justamente pela proliferação de espaços alternativos de expressão, através das mídias digitais, é que as grandes empresas de comunicação tradicionais não estejam mais conseguindo ignorar a temática. Além disso, como o debate LGBT é muito abafado em outros setores da sociedade, como a educação, por exemplo, ele acaba chamando muita atenção da mídia e do público consumidor das informações. Cada vez mais eu tenho visto a agenda LGBT em telenovelas, em grandes jornais impressos e televisivos, programas de entrevista, além das expressões artístico-culturais como peças de teatro e música. Basta ver como estão bombando artistas LGBT no cenário contemporâneo. Tudo isso tem interface direta com a grande mídia, além da abertura das redes sociais.
Assinada pelo jornalista Rui Caeiro, mestre em Comunicação pela UFPE, a coluna ambiciona instigar reflexões que se debrucem sobre as relações que se estabelecem entre produção midiática/jornalística e a construção e vivência de identidades consideradas abjetas em nossa sociedade. O foco será em sexualidade e gênero.
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Mude o Canal
Sensacionalismo e exploração de acontecimentos Por Ticianne Perdigão
N
o início de 2017, as rebeliões ocorridas dentro de presídios no Brasil deram visibilidade, inclusive internacional, à falência do sistema prisional e ao poder de comando que facções criminosos possuem mesmo estando confinadas em cadeias. O surto dentro das penitenciárias provocou discussões que permearam a falência do sistema penitenciário, crime organizado, direitos humanos e possíveis saídas para a crise. Ao contrário do massacre que aconteceu em Carandiru em que a polícia foi o principal causadora da morte dos detentos, as chacinas ocorridas no início do ano tiveram como responsáveis os próprios presos ligados a facções do crime organizado. A imprensa, neste sentido, se viu dentro de um novo agendamento sobre a violência. As narrativas jornalísticas usualmente focados em crimes com emprego de violência sem contextualização de suas causas passaram a dividir, em meio à crise, a cobertura das rebeliões. Os atos de vandalismo e homicídios ocorridos nas Penitenciárias foram, como já dito, entre os seu pares, tirando da pauta a “vítima” do crime. Neste sentido, tem-se uma complexidade maior do binômio bandido-vítima na cobertura. Novos pontos estavam em pauta que envolvem o Estado, sistema penitenciário, crime organizado, direitos humanos, etc. Mesmo a exposição de crimes na imprensa brasileira sendo uma constante, a crise do sistema penitenciário revelou também a superficialidade da cobertura da crise. Para Silva Ramos e Anabela Paiva A cobertura das políticas públicas pela imprensa é irregular e muitas vezes – como ocorre no caso de segurança pública – focalizada em sua execução. Processos de construção das políticas, como votações sobre o orçamento e o diálogo com setores da sociedade, são, muitas vezes, ignorados (RAMOS & PAIVA, 2005, p. 5). Tal aspecto também é fruto da própria forma como a sociedade e Estado tratam o siste-
ma prisional: como uma escória de marginais que não merecem cuidado e atenção. Para Luciano Oliveira (1996), o sociedade só passou a se incomodar com o sistema prisional e todas as violações de direitos humanos ocorridas lá dentro após a Ditadura Militar. Sobre a questão, Lefort (1996) reitera as ideias de Oliveira no prefácio do livro Neo-miséria e Neo-nazismo, ao obser var que “a opinião pública só se apavorou com a violência da repressão quando ela já não golpeou somente os comunistas e terroristas, mas se abateu sobre padres, membros das profissões liberais e cidadãos comuns” (LEFORT, 1996, p. II e III). Este aspecto expôs o sistema prisional brasileiro e, principalmente, uma elite que até então não havia sido atingida por sua precariedade e práticas torturantes. A cobertura midiática do caso Vladimir Herzog reflete um posicionamento mais advertido de uma camada da população que, inclusive, apoiava o governo militar. Anos depois, o massacre de Carandiru chamou atenção neste debate entre violação de direitos e sistema penitenciário. Ocorrido em 1992 e com 111 presos mortos pela polícia, para Ramos e Paiva (2008), a cobertura ocorrida no massacre se mostrou mais sólida por ter sido capaz de mobilizar respostas do governo, da justiça e da sociedade civil (RAMOS e Paiva, 2008). Quase 25 anos depois do massacre de Carandiru, o medo parece estar mais próximo. A violência cresceu vertiginosamente bem como a sua cobertura. Sobre essa pauta presente na imprensa e sua recepção social, Patrícia Bandeira de Melo coloca: Na abordagem da teoria do agenda-setting, a imprensa pauta a agenda pessoal de preocupações, e os eleitores e espectadores tendem a incluir em suas agendas os temas escolhidos pela imprensa, que ganha pessoa para a coletividade. Pode-se, assim, concluir que a agenda pessoal determinada pela agenda midiática é produto da interação dos indivíduos com os meios de comunicação e dos indivíduos entre si, gerando, desta forma, um efeito coletivo
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regular de retroalimento: o trauma cultural do medo de ser vítima de uma ação humana violenta. (MELO. 2010, p. 337) Ou seja, a sensação de medo social se configurou em uma relação de causa e efeito na cobertura midiática difícil de ser quebrada. E, ainda que a violência não seja tão próxima como os programas policialescos repetidas vezes apontam, a sensação de medo é, gerando efeitos para o sistema prisional e para a vida dos indivíduos. Neste contexto, vale lembrar que essa superexposição à violência piora o sistema prisional, na medida em que a sensação de medo é inserida na sociedade em geral, que passa a apoiar medidas mais severas aos bandidos. Caímos então em um paradoxo. Ao mesmo tempo que a sensação de medo é gerada pela impunidade e pela quantidade de pessoas que cometem crimes soltas nas ruas, a população carcerária brasileira se mostra como uma das maiores do mundo. A conta não fecha. Ao ser questionada sobre essa ambiguidade, a pesquisadora Carolina Salazar respondeu que, ao contrário do senso comum que diz que o Brasil é o país da impunidade, o Brasil é o país da punição. “A maior marca disso é a população carcerária” (SALAZAR, 2017). A pesquisadora indica fatores que contribuem para esta sensação de impunidade como a baixa taxa de elucidação de homicídios e a própria cobertura midiática. O Brasil precisa fechar as portas da cadeia. Mais da metade da população carcerária pernambucana é de presos provisórios. A gente pune antecipadamente essas pessoas. Até pode ser uma resposta para a sociedade do querer punir. Além disso, a quantidade de pessoas encarcerada em relação a homicídios é baixa, a maioria dos crimes é de tráfico e de cunho patrimonial, crimes não violentos que podem ser resolvidos em outra esfera que não no âmbito do sistema carcerário”. (SALAZAR, 2017) Outro aspecto que envolve o tratamento dado à segurança pública pelo Estado e a cobertura midiática em relação às chacinas nas prisões é a aceitação desses crimes a partir da concepção de que “bandido bom é bandido morto”. Ao tempo que nunca se viu uma chacina tão cruel, percebe-se na sociedade um desejo sádico de vingança, fruto de um cotidiano permeado pela sensação de medo. Para Luciano Oliveira o medo está conduzindo para uma sociedade neonazista porque as pessoas passam a não mais acreditar que exis-
te uma solução democrática para controlar a criminalidade (OLIVEIRA, 1996). Além do número de mortos em chacinas, impressiona também a crueldade dos crimes, muitos deles com uso de decapitações. A banalidade a vida aparece tanto pela aprovação social quanto pelos próprios presos. O advogado criminalista João Olímpio coloca que “a solução mais fácil é mandar matar. Se começarmos a admitir esse tipo de comportamento voltaríamos ao início da civilização. Devemos enfrentar o problema e ter consciência que o cidadão pode perder a liberdade, mas não a dignidade” (OLÍMPIO, 2017).
Referências: LEFORT, Claude. PREFÁCIO. In: OLIVEIRA, Luciano. Neo-miséria e Neo- nazismo. Uma Revisita à Crítica à Razão Dualista. Política Hoje, Revista do Mestrado em Ciência Política da UFPE, Recife: Universitária, V.II, M.4, Jul a Dez de 1995, Ano II, V.III,N.5, Jan a Jun de 1996. MELO. Patrícia Bandeira de. Histórias que a mídia conta: o discurso sobre crime violento e o trauma da cultura do medo. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2010. OLÍMPIO, João. Programa Jornalismo e Cidadania. FM Universitária. Recife, 2017. Debate. OLIVEIRA, Luciano. Neo-miséria e Neo- nazismo. Uma Revisita à Crítica à Razão Dualista. Política Hoje, Revista do Mestrado em Ciência Política da UFPE, Recife: Universitária, V.II, M.4, Jul a Dez de 1995, Ano II, V.III,N.5, Jan a Jun de 1996. _____________ Imagens da Democracia. Os Direitos Humanos e o Pensamento de Esquerda no Brasil. Recife: Pindorama, 1996, p. II e III. RAMOS, Silvia. & PAIVA, Anabela. Mídia e violência: como os jornais retratam a violência e a segurança pública no Brasil. Rio de Janeiro: Relatório preliminar Cesec, 2005. _____________. Mídia e violência: o desafio brasileiro na cobertura sobre violência, criminalidade e segurança pública. Cadernos Adenauer, pp. 29-41, v. IX, n. 4, 2008, SALAZAR, Carolina. Programa Jornalismo e Cidadania. FM Universitária. Recife, 2017. Debate. Ticianne Perdigão é formada em Direito e em Jornalismo. Tem mestrado em Direito mas agora curso Doutorado em Comunicação Social. Essa ambiguidade acadêmica fez com que temas como Liberdade de Expressão e Regulação da Mídia fossem seu foco de estudo.