Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 1
Jornalismo e cidadania nº 15 | Setembro 2017
| ISSN 2526-2440 |
Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade | PPGCOM/UFPE
Jornalismo Independente
O suicídio na mídia
Especial
Centenário da Revolução Russa
E mais...
JORNALISMO E CIDADANIA | 2
Expediente
Arte da Capa: Designed by Freepik.com
Editor Geral | Heitor Rocha professor PPGCOM/UFPE
Alunos Voluntários | Lucyanna Maria de Souza Melo Yago de Oliveira Mendes José Tarisson Costa da Silva
Editoração Gráfica | Ivo Henrique Dantas doutorando PPGCOM/UFPE
Colaboradores |
Editor Internacional | Marcos Costa Lima Pós-Graduação em Ciência Política/UFPE
Alfredo Vizeu Professor PPGCOM - UFPE
Articulistas |
Túlio Velho Barreto Fundação Joaquim Nabuco
PROSA REAL Alexandre Zarate Maciel doutorando PPGCOM/UFPE
Gustavo Ferreira da Costa Lima Pós-Graduação em Sociologia/UFPB
MÍDIA ALTERNATIVA Xenya Bucchioni doutoranda PPGCOM/UFPE
Luiz Lorenzo Núcleo de Rádios e TV Universitárias/UFPE Ada Cristina Machado Silveira Professora da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM
NO BALANÇO DA REDE Ivo Henrique Dantas doutorando PPGCOM/UFPE
Antonio Jucá Filho Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco – FUNDAJ
JORNALISMO E POLÍTICA Laís Ferreira mestranda PPGCOM/UFPE
Auríbio Farias Conceição Professor do Departamento de Letras e Humanidades – DLH/ UEPB
JORNALISMO AMBIENTAL Robério Daniel da Silva Coutinho mestre em Comunicação UFPE
Leonardo Souza Ramos Professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC –Minas Gerais e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Potências Médias (GPPM)
PODER PLURAL Rakel de Castro doutoranda PPGCOM/UFPE e UBI
COMUNICAÇÃO PÚBLICA Ana Paula Lucena doutoranda PPGCOM/UFPE JORNALISMO INDEPENDENTE Karolina Calado doutoranda PPGCOM/UFPE MÍDIA FORA DO ARMÁRIO Rui Caeiro mestre em Comunicação UFPE MUDE O CANAL Ticianne Perdigão doutoranda PPGCOM/UFPE COMUNICAÇÃO NA WEB Ana Célia de Sá Doutoranda em Comunicação UFPE NA TELA DA TV Mariana Banja mestranda em Comunicação UFPE
Índice
CIDADANIA EM REDE Nataly Queiroz doutoranda PPGCOM/UFPE
Rubens Pinto Lyra Professor do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas da UFPB
Editorial
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Prosa Real
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Jornalismo Independente
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Opinião | Rosa Freire
|8
Mídia Alternativa
| 10
Opinião |Eduardo Matos
| 12
Opinião | Suranjit Saha
| 14
Opinião | Mariana Yante
| 16
Jornalismo Ambiental
| 18
Mídia Fora do Armário
| 20
Opinião | Camilo Soares
| 22
Opinião | Michel Zaidan
| 24
Opinião | Túlio Velho Barreto
| 30
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Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 3
Editorial Por Heitor Rocha
A
15ª edição da Revista Jornalismo e Cidadania é lançada num momento extremamente constrangedor quando o país assiste a repetição do repugnante espetáculo em que o presidente Temer protagoniza a mais descarada e inequívoca demonstração de crime de obstrução de justiça, utilizando dinheiro público, através das emendas parlamentares, para comprar congressistas a fim de evitar a investigação solicitada pela Procuradoria Geral da República sobre atos de corrupção gravados e amplamente divulgados. Na encenação deste triste episódio, apareceu congressista, empedernido e orgulhosamente despudorado, cobrando o cumprimento pelo governo da liberação de emendas parlamentares prometidas ainda durante o primeiro crime de obstrução de justiça para impedir a investigação de inúmeros atos de corrupção. Nesta ocasião, uma comentarista de política da Globo News fez blague observando jocosamente que o congressista reclamava em público a propina sem sequer ficar com as bochechas coradas. Quando as transgressões e até os crimes são abordados pela instituição jornalística com brincadeiras, sem uma veemente cobrança pela responsabilização legal dos delinquentes, estes desvios morais e criminais são legitimados em prejuízo das leis do Estado de Direito, cujas instituições democráticas (no caso os Poderes Legislativo e Judiciário, cujo órgão máximo é o Supremo Tribunal Federal) não se sentem obrigadas a se posicionar contra estes atentados à legalidade, porque a opinião pública é impedida de se formar consistentemente e efetivamente como um tribunal público para julgar a honra dos infratores. A dimensão do desserviço prestado pela instituição jornalística chega às raias do absurdo de tal maneira que a melhor metáfora para explicar a situação é a do conto da roupa nova do rei de Hans Christian Andersen, em que o monarca é levado a se expor publicamente despido, quando os alfaiates construtores das vestes/imagem do soberano o convencem de que sua indumentária é tão extraordinária e fantástica que ninguém tem critérios e parâmetros para vê-la. Assim, mesmo sendo o rei enganado mais um capataz que exerce a coroa em nome dos donos do dinheiro, portanto um laranja oportunista, e menos um soberano de um país que deveria ser independente – na verdade, na concepção republicana de democracia a instância maior do país é concebida como sendo a so-
berania popular -, a sua responsabilidade não pode ser minimizada e se torna tão mais evidente e desnudada quanto a perplexidade da maior parte da nação brasileira diante da prestidigitação ideológica dos alfaiates da Grande Mídia, quando a insofismável realidade ecoa no grito da criança: “o rei está nu!” É neste contexto que o nº 15 da Revista Jornalismo e Cidadania apresenta a coluna escrita por Alexandre Maciel abordando as confluências de territórios entre o jornalismo e a história, homenageando como autor do mês o jornalista Joel Silveira e analisando as reflexões de Sodré e Ferrari sobre o namoro dos livros dos repórteres com a literatura. A contextualização, entendida como meio para o aprofundamento da informação jornalística, é considerada por Ana Célia de Sá, em sua coluna, a base da notícia através das duas questões formativas do jornalismo: o “como” e o “porquê” dos acontecimentos. Numa perspectiva construtivista, a doutoranda observa que na construção da notícia os jornalistas conectam sua interpretação da realidade à interpretação do público para alcançar uma aceitação intersubjetiva. No artigo de Mariana Yante são comentados os hábitos e normas de etiqueta da cultura chinesa, especialmente relacionados ao papel da mulher nesta sociedade. Um dos aspectos salientados no artigo de Mariana Yante é a importância que as famílias chinesas ainda dão ao casamento, expressa num “antigo ditado dos tempos do império que diz que os três grandes momentos da vida de um chinês (no masculino) são o exame imperial, o casamento e o nascimento de um filho”. Destacamos, por fim, que a presente edição da Revista Jornalismo e Cidadania inicia uma série de artigos especiais comentando o centenário da Revolução Russa de outubro de 1917, com uma análise da relevância histórica deste movimento revolucionário pelo professor Michel Zaidan, bem como de uma acurada descrição da importância da expressão artística do poeta Maiakóvsky no contexto cultural da União Soviética e do mundo. Heitor Costa Lima da Rocha, Editor Geral da Revista Jornalismo e Cidadania, é professor do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.
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Prosa Real
Livro-reportagem, jornalismo e contexto Por Alexandre Zarate Maciel
Jornalismo e história: território de confluências
C
omo lida com temas não factuais, porém situados na contemporaneidade, os jornalistas escritores de livros-reportagem aproximam o seu trabalho, de certa maneira, com os dos historiadores. Para o jornalista e escritor Lira Neto, que é biógrafo do ex-presidente Getúlio Vargas e de padre Cícero, em entrevista para o autor desta coluna, a rusga entre historiadores e jornalistas é “bizantina e burra” e foi sustentada, por muito tempo, por ambos os lados, devido às maneiras diferenciadas de encarar os acontecimentos que se tornam históricos. Atualmente, Lira Neto percebe uma “confluência maior” entre os dois polos, um “desarmamento de espíritos”: de um lado, os historiadores perceberam a importância de “não só lidar com o macro, mas trabalhar com a vida privada e a emoção do cotidiano”. Novas gerações de historiadores estariam reaprendendo a descoberta “do prazer do texto, da narrativa”. Por outro, Lira Neto se inclui no conjunto de jornalistas que prestam mais atenção no referenciamento sério das informações e o abandono de certo ar impressionista na narrativa. Já o jornalista e escritor Rubens Valente, que acaba de lançar Os Fuzis e as Flechas (2017), sobre a situação dos indígenas brasileiros na ditadura militar, acredita que o seu trabalho aproxima-se de uma investigação “jornalístico-histórica”. Ele argumenta que seus livros não têm ambição de ser história, porque esta teria suas regras bem claras. “Mas realmente tem mais a ver com o jornalismo, por quê? Pelas ferramentas: pesquisa de campo, ouvir as pessoas, análise documental e a escrita mais solta, que não estão tão presas a aqueles cânones da academia”. Diferenças à parte, no entanto, história e jornalismo podem contribuir, em conjunto, para a interpretação dos registros d a me mór i a humana.
Autor do mês: Joel Silveira
O
jornalista e escritor Joel Silveira (1918-2007) ficou conhecido por suas reportagens políticas recheadas de sarcasmo e ironia que lhe valeram o apelido de “víbora” por parte de um dos seus chefes e dono dos Diários Associados, Assis Chateaubriand. Reuniu seus textos em 19 livros de reportagens e crônicas, como Grã-finos em São Paulo e outras histórias do Brasil (1946), História de uma conspiração (1955), com Lourival Coutinho, Nitroglicerina pura (1992), em parceria com Geneton Moraes Neto (1956-2016), além de A milésima segunda noite da Avenida Paulista (2003) e A feijoada que derrubou o governo (2004). Seu momento mais marcante foi na cobertura da Segunda Guerra Mundial, da qual reuniu as suas impressões sobre as batalhas em Histórias de pracinhas (1945), relançado com um texto extra em 2005 como O inverno da guerra. No primeiro capítulo, intitulado “Não foi um passeio”, Joel Silveira conversa abertamente com o leitor a respeito de suas impressões como cronista-narrador. O jornalista conta que ficava irritado quando as pessoas lhe perguntavam se a vida de correspondente na Itália durante o conflito havia sido “um passeio” ou “sopa”, mas, com o tempo, deixou de incomodar-se com o chiste. Joel Silveira (2005, p. 9), reflete que “o diabo é testemunha de que não foi um passeio”, para, em seguida, com um estilo característico, destilar: “Muito pelo contrário: sofremos bastante lá no Apeninos. Medo, frio – muito frio – desconforto, e aquele constante odor de sangue velho e óleo diesel, que é o cheiro da guerra”. No final do mesmo capítulo, Joel Silveira (2005, p. 20) conclui: “Costumo dizer que cheguei à Itália com 26 anos e voltei com 40, embora lá só ficasse mais de oito meses”.
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Iluminando conceitos: Livros como “reportagemnovela” em Sodré e Ferrari
A
partir da classificação que criaram para categorizar os tipos de reportagem, Sodré e Ferrari (1986, p. 94) nomeiam os livros de repórteres que procuram o “namoro com a literatura” e cuja história se mantém “no foco do interesse do público” como “reportagem-novela”, emulando “a mesma fórmula do folhetim que veio a dar no romance”. Em meados dos anos 1980, já poderia ser enquadrado nessa categoria a biografia Olga, de Fernando Morais, não citada na análise desses autores. Mas os principais exemplos disponíveis eram livros de reportagens, com compilação de textos publicados em jornal. Pode-se dizer que este tipo de coletânea reuniria, na verdade, outros dois tipos de reportagem classificados pelos autores, comuns em toda linha histórica. Os pesquisadores consideram “reportagem-conto” aquelas em que os jornalistas “particularizam a ação”, escolhendo um personagem para ilustrar um tema que pretendem desenvolver, incorporando os seus f luxos de consciência e inserindo dados de forma dissimulada ao longo da narrativa. Já a “reportagem-crônica” comungaria com o gênero literário as características do narrador que obser va os personagens em sua “atitudes exteriores e f lagra seus comportamentos contraditórios, engraçados, mesquinhos ou mesmo trágicos” (SODRÉ e FERRARI, 1986, p. 87). Essas são justamente as principais marcas literárias dos textos produzidos por jornalistas brasileiros ao longo do século X X. Mas as experiências de produção específica de um livro, com uma longa reportagem em todos os seus desdobramentos e características de sedução narrativa pensada fora de uma redação, mais próxima da definição “reportagem-novela”, só seriam mais consolidadas no Brasil, na verdade, nos anos 1990.
Referências: SILVEIRA, Joel. A feijoada que derrubou o governo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. _________, Joel. A milésima segunda noite da Avenida Paulista. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. _________, Joel. Tempo de contar. Rio de Janeiro, Record, 1985. _________, Joel. O inverno da guerra. São Paulo, Objetiva, 2005. _________, Joel; NETO, Geneton Moraes. Nitroglicerina pura. Rio de Janeiro: Record, 1992. _________, Joel. Grã-finos em São Paulo e outras histórias do Brasil. Rio de Janeiro: Martins, 1945. _________, Joel. Histórias de pracinhas. Rio de Janeiro: Leitura, 1945. _________, Joel. COUTINHO, Lourival. História de uma conspiração. Rio de Janeiro: Coelho Branco, 1955. SODRÉ, Muniz, FERRARI, Maria Helena. Técnica de reportagem: notas sobre a narrativa jornalística. São Paulo: Summus, 1986. VALENTE, Rubens. Os fuzis e as flechas. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. Elaborada pelo professor do curso de Jornalismo da UFMA, campus de Imperatriz, Alexandre Zarate Maciel, que está cursando o doutorado em Comunicação na UFPE, a coluna Prosa Real traz, todos os meses, uma perspectiva dos estudos acadêmicos sobre a área do livro-reportagem e também um olhar sobre o mercado editorial para esse tipo de produto, os principais autores, títulos e a visão do leitor.
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Jornalismo Independente Jornalismo e financiamento coletivo Por Karolina Calado
Vamos falar sobre suicídio na mídia?
O
“Setembro Amarelo” é o mês dedicado à prevenção do suicídio, uma campanha criada pelo Centro de Valorização da Vida (CVV), o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), a qual desde 2015 tem procurado ter visibilidade nos setores midiáticos e de poder. Em apoio a esta causa, o Palácio do Campo das Princesas, sede do poder executivo do estado de Pernambuco, está iluminado na cor amarela. Essa temática é pouco abordada na mídia por conta da convenção de que as notícias podem aumentar o contágio entre os indivíduos e ocasionar mais suicídios. Ao encontro dessa perspectiva, em 2013, o IPEA divulgou uma pesquisa na qual conclui que “(…) o índice de mídia é o terceiro motivador de suicídios, depois do desemprego e da violência, para todos os grupos de pessoas. (...) o aumento de 1% na mídia eleva a taxa de suicídio de jovens do sexo masculino entre 15 e 29 anos em 5,34%.” Segundo Asa Briggs e Peter Burke, a associação entre suicídio e imprensa é conhecida já há algum tempo: “Dois exemplos concretos de como ajudar a moldar as atitudes de seus leitores referem-se ao suicídio e ao ceticismo. Em Sleepless Souls (1990), Michael MacDonald e Terence Murphy escrevem que ‘o estilo e o tom das histórias dos jornais sobre suicídio promoveram uma atitude secular crescente e simpática sobre esse ato’ no século XVIII na Inglaterra. Essa impressão foi-se criando pela frequência dos relatos que mostravam o suicídio como coisa comum. As cartas dos que se matavam eram publicadas nos jornais, permitindo aos leitores ver o evento do ponto de vista dos atores, sendo que essas cartas, por sua vez, influenciavam o estilo de outras deixadas por suicidas posteriores” (BRIGS; BURKE, 2006, p. 78-79). Outro fato bastante lembrado é a novela de Goethe “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, publicada em 1774. Nela, o
jovem comete um suicídio após uma desilusão amorosa. Por conta disso, vários jovens repetem esse tipo de morte. No entanto, o silenciamento diante deste assunto é maléfico para a sociedade como um todo. A prevenção só é possível através da informação de qualidade, da capacidade de informar para formar, da tematização, que só se consegue a partir do momento em que se discute o tema, levanta dados, ouve-se pessoas com possíveis distúrbios e se humaniza para a valorização da vida. “Os clínicos e os pesquisadores sabem que não é a cobertura jornalística do suicídio per se, mas alguns tipos de cobertura, que aumentam o comportamento suicida em populações vulneráveis” (Organização Mundial da Saúde). A mídia, portanto, ocupa um lugar essencial nesse processo. Ao compreender a relevância da problematização e discussão midiática, a Organização Mundial da Saúde (OMS) produziu o material “Prevenção do suicídio: um manual para profissionais da mídia”, a fim de orientar os jornalistas sobre a forma de abordar esse tipo de morte. “O suicídio é talvez a forma mais trágica de alguém terminar a vida. A maioria das pessoas que consideram a possibilidade de cometer o suicídio são ambivalentes. Elas não estão certas se querem realmente morrer. Um dos muitos fatores que podem levar um individuo vulnerável a efetivamente tirar sua vida pode ser a publicidade sobre os suicídios. A maneira como os meios de comunicação tratam casos públicos de suicídio pode influenciar a ocorrência de outros suicídios (OMS)”. No texto, orienta o que fazer na produção noticiosa: “Trabalhar em conjunto com autoridades de saúde na apresentação dos fatos. Referir-se ao suicídio como suicídio ‘consumado’, não como suicídio ‘bem sucedido’. Apresentar somente dados relevantes, em páginas internas de veículos impressos. Destacar as alternativas ao suicídio. Fornecer informações sobre números de telefones e endereços de grupos de apoio e serviços onde se possa obter ajuda. Mostrar indicadores de risco e sinais de alerta sobre comportamento suicida.” Nesse material, é também possível encontrar as orientações sobre o que
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não fazer: “Não publicar fotografias do falecido ou cartas suicidas. Não informar detalhes específicos do método utilizado. Não fornecer explicações simplistas. Não glorificar o suicídio ou fazer sensacionalismo sobre o caso. Não usar estereótipos religiosos ou culturais. Não atribuir culpas.” Ao tematizar a relevância da mídia no “Setembro Amarelo” e na inclusão desse assunto na discussão pública, o G1 lembrou da campanha sobre o câncer de mama que, por meio da publicização, alcançou a queda do número de pessoas com a doença desde a década de 1960. Nesse mesmo sentido, o Centro de Valorização da Vida promoveu em Porto Alegre (RS) o IV debate “Abordagem Responsável do Suicídio na Mídia”, no dia 10 de setembro, data em que se celebra o “Dia Mundial de Prevenção do Suicídio”. O local foi escolhido porque o Rio Grande do Sul possui 11 municípios dentre os 20 com os maiores índices de suicídio do Brasil. “A mídia desempenha um papel significativo na sociedade atual, ao proporcionar uma ampla gama de informações, através dos mais variados recursos. Influencia fortemente as atitudes, crenças e comportamentos da comunidade e ocupa um lugar central nas práticas políticas, econômicas e sociais. Devido a esta grande influência, os meios de comunicação podem também ter um papel ativo na prevenção do suicídio (OMS)”. No manual da OMS, informa-se que, junto com as notícias sobre suicídio, deve-se disponibilizar: “listas de serviços de saúde mental disponíveis e telefones e endereços de contato onde se possa obter ajuda (devidamente atualizados); listas com os sinais de alerta de comportamento suicida; esclarecimentos mostrando que o comportamento suicida frequentemente associa-se com depressão, sendo que esta é uma condição tratável; demonstrações de empatia aos sobreviventes (familiares e amigos das vítimas) com relação ao seu luto, oferecendo números de telefone e endereços de grupos de apoio, se disponíveis (OMS)”. Com uma boa base de dados, além da OMS, as fontes confiáveis para divulgar informações relacionadas ao suicídio são: Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) - Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (UNIFEM) - Instituto Inter-Regional das Nações Unidas para Investigações sobre Criminalidade e Justiça (UNICRI) - Rede Clínico-Epidemiológica Internacional (INCLEN), Sociedade Internacional para a Prevenção da Negligência e Abuso Infantis (ISPCAN), IN-
TERPOL, Departamento Estatístico da Comunidade Européia (EUROSTAT) e Banco Mundial. O CVV defende que a mídia tem um papel crucial na prevenção do suicídio e mostra, em seu site, matérias publicadas, de forma responsável, por diversos veículos sobre esse assunto. Esse Centro oferece serviço gratuito de ajuda, via ligação por meio do número 144, chat, Skype, e-mail ou presencialmente. Em Recife, por exemplo, o endereço é na Avenida Manuel Borba, 99/102 - Boa Vista, com funcionamento 24 horas. Maiores informações podem ser encontradas no site https://www.cvv.org.br/.
Referências: Centro de Valorização da Vida (CVV). Disponível em: << https://www.cvv.org.br/ >> acesso em 20 de setembro de 2017. BRIGGS, A; BURKE, P. Uma história social da mídia: de Gutenberg à Internet; tradução Maria Carmelita Pádua Dias; revisão técnica Paulo Vaz. 2.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. Estudo do IPEA: “Os efeitos da mídia sobre o suicídio: uma análise empírica para os estados brasileiros”. Disponível em: << http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/ PDFs/TDs/td_1851.pdf >> acesso em 20 de setembro de 2017. História do Setembro Amarelo. Disponível em: << http:// www.setembroamarelo.org.br/historia/ >> acesso em 20 de setembro de 2017. Notícia sobre o Setembro Amarelo no G1. Disponível em: << http://g1.globo.com/natureza/blog/mundosustentavel/post/setembro-amarelo.html >> acesso em 20 de setembro de 2017. Prevenção do suicídio: um manual para profissionais da mídia: Disponível em: << http://apps.who.int/iris/ bitstream/10665/67604/7/WHO_MNH_MBD_00.2_ por.pdf >> acesso em 20 de setembro de 2017. Setembro Amarelo (CVV). Disponível em: << https:// www.cvv.org.br/blog/um-setembro-mais-amarelo/ >> acesso em 20 de setembro de 2017.
Karolina Calado é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. Nesta coluna, proponho uma discussão acerca das questões que envolvem a economia política dos meios de comunicação, especialmente a partir da internet e dos modelos de financiamento coletivo.
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Comunicação na Web Jornalismo, Sociedade e Internet Por Ana Célia de Sá
A contextualização como recurso para o aprofundamento da notícia
A
contextualização é um dos caminhos para o aprofundamento da informação jornalística. Conforme indica Wolf (2008), a base da contextualização da notícia encontra-se, inicialmente, em duas questões formativas do jornalismo: o “como” e o “porquê” dos acontecimentos. Compreender as causas dos eventos noticiosos e suas implicações contribui para a reflexão e a formação do conhecimento por parte do público, além de diminuir imperfeições associadas ao processo de recorte social característico do produto midiático, a exemplo da aparente autossuficiência do evento e da fragmentação da narrativa. Do ponto de vista do construtivismo, o jornalismo profissional interpreta a realidade de maneira sucessiva, produzindo versões concentradas, dramatizadas e sugestivas dela. Esse ato interpretativo decifra a realidade do que acontece no mundo e assume o sentido e alcance dos fatos transmitidos pelos meios de comunicação (GOMIS, 1991). Ao produzir a notícia, o jornalista deve conectar sua interpretação da realidade à interpretação
do público para que a história narrada tenha aceitação intersubjetiva (ALSINA, 2009). A matéria-prima do jornalista é a realidade social de primeiro grau instituída pelas fontes de informação, as quais conferem sentido ao fato observado a partir da objetivação e da contextualização numa visão própria. Ao comunicador, cabe a tarefa de recontextualizar os acontecimentos no intuito de encontrar um sentido socialmente responsável e relevante, numa objetivação de segunda ordem (ALSINA, 2009). A aceitação coletiva, no entanto, não significa um real aprofundamento dos fatos. A produção noticiosa factual pode esbarrar na superficialidade justificada pela contínua tensão entre o tempo cronológico dos fatos e o tempo de produção jornalística; pela rigidez dos modelos noticiosos, que limitam o espaço e o tempo reservados às matérias especialmente nos veículos massivos tradicionais (impresso, rádio e televisão); pelo vínculo com o tempo presente, cujo foco está no fato do dia; ou, ainda, pelo preparo do profissional e sua capacidade de incentivar discussões qualificadas sobre os temas em questão. Wolf (2008, p. 199) argumenta que “[...] o conjunto de fatores que determina a noticiabilidade dos acontecimentos permite realizar cotidianamente a cobertura informativa, mas dificulta o aprofundamento e a compreensão de muitos aspectos significativos nos fatos
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apresentados como notícias. Desse modo, a noticiabilidade constitui um elemento da distorção involuntária, contida na cobertura informativa dos meios de comunicação de massa”. Na conjuntura da produção jornalística tradicional e padronizada, surge um questionamento: como ultrapassar as barreiras impostas pelas rotinas produtivas, pelas técnicas institucionalizadas e pela estrutura empresarial? A resposta provavelmente não está na ruptura com o sistema instituído, que poderia soar ilusória, mas sim na evolução e readequação de práticas e atitudes profissionais. A web pode lançar rotas para novas experiências produtivas capazes de unir a tecnologia digital e o cenário social contemporâneo, caracterizado pela fluidez espaço-temporal, pela multimidialidade, pelo dinamismo e pelo posicionamento ativo do internauta. Pavlik (2001) designa um modelo de produção na internet denominado “jornalismo contextualizado” (contextualized journalism), marcado pela multimidialidade, interatividade, hipermidialidade e personalização. Para o autor, a soma desses recursos é eficaz na formulação de notícias mais completas, que podem ajudar a retomar audiências cansadas de materiais jornalísticos retirados do contexto. A sociedade em rede modifica o papel do jornalista em três vertentes fundamentais, segundo Pavlik (2001): o jornalista deve desempenhar o papel de um articulador de fatos, capaz de filtrar a avalanche informativa da web, conectar eventos, circunstâncias e contextos em produtos completos; o grande volume de informações disponíveis na web exige do jornalista o desenvolvimento de habilidades de interpretação e edição; e, por fim, o jornalista assume posto central na reconexão de comunidades, promovendo o jornalismo cívico on-line que estimula a participação dos cidadãos e torna o comunicador profissional mais responsável pela sua audiência. Esta nova forma de exercício profissional ajudaria a sustentar a saúde dos negócios da instituição do jornalismo, aumentando as audiências e construindo fontes de receitas para manter a qualidade da reportagem. E, ainda mais importante, poria o jornalismo a serviço da informação necessária à construção do conhecimento dos cidadãos (PAVLIK, 2001). O “jornalismo contextualizado” adequa-se às características do ciberespaço, com bom aproveitamento dos principais recursos digitais. Entretanto a produção noticiosa cotidiana – do tipo “Últimas Notícias” – ainda está distante desse padrão. Além das razões mencionadas anteriormente para condução à superficialidade do jornalismo factual, é possível adicionar a sobrecarga dos profissionais como complicador para a concretização de procedimentos convergentes. Ao profissional multitarefa, resta pouco tempo para realização de ações que exigem maior dedicação, como a apuração detalhada, a busca por fontes plurais, a interpretação dos fatos, a elaboração da matéria e a formulação do roteiro mul-
timídia. O acúmulo de tarefas e o curto período para execução delas podem inviabilizar a total aplicação dos recursos da web. A organização mercadológica do webjornalismo também pode interferir na qualidade da produção noticiosa. Redações com boas estruturas material e humana tendem a facilitar o andamento do trabalho e podem conduzir a um melhor aproveitamento dos recursos disponíveis no mundo digital. Cabe, portanto, uma reflexão prática acerca das condições de trabalho do jornalista na atualidade. Vale ressaltar que a crítica ao modelo factual exposta neste artigo não significa a defesa pelo fim desse padrão, uma vez que ele é útil para informar os cidadãos sobre os fatos sociais. Na verdade, apoia-se uma produção diária capaz de sobrepor-se à superficialidade e de contribuir para a qualificação das informações em adequação à realidade das redações e à atividade jornalística profissional, com maior proveito dos recursos digitais da internet. Uma alternativa viável, já em uso, é a utilização de bancos de dados para potencializar o jornalismo de memória. Por meio do hiperlink, é possível costurar camadas informativas compostas por diversos materiais sobre um mesmo tema, dispondo ao usuário informações adicionais que contribuem para a contextualização e o aprofundamento dos fatos, numa leitura não linear. Embora simples, este ato representa um passo importante para a composição do produto digital, de modo a reconstituir a estrutura do material jornalístico e repensar formas de construção da notícia adequadas à sociedade contemporânea conectada. O mais importante, porém, é continuar a caminhada rumo à potencialização integral do webjornalismo para preencher lacunas referentes à qualificação da notícia e ao consequente incentivo à formação crítica do cidadão. Referências: ALSINA, Miquel Rodrigo. A Construção da Notícia. Tradução de Jacob A. Pierce. Petrópolis: Vozes, 2009. GOMIS, Lorenzo. Teoría del Periodismo: cómo se forma el presente. Guanajuato: Paidós, 1991. PAVLIK, John V. Journalism and new media. New York: Columbia University Press, 2001. WOLF, Mauro. Teorias das Comunicações de massa. Tradução de Karina Jannini. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
Ana Célia de Sá é jornalista e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (PPGCOM-UFPE).
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Opinião
Celso Furtado, a cultura e a economia Por Rosa Freire d’Aguiar
Q
uando um economista assume a pasta da Cultura, o que faz, naturalmente? Debruça-se sobre a Economia e a Cultura. Foi o que Celso Furtado fez, ao assumir em 1986 o Ministério da Cultura, re-
cém-criado pelo primeiro governo posterior à ditadura militar. Ainda não se usava a expressão Economia Criativa. Mas já se falava — ao menos Celso Furtado falava — em Economia E cultura. Em Criação E economia. Em Criatividade E cultura. Em Criatividade E economia. Criatividade & economia: este era o binômio em que Celso refletia desde os anos 1970. Mais especificamente, desde que lançara o livro Criatividade e dependência na civilização industrial, em 1978 (Furtado, 2008). Nesse livro, ele teorizou com grande originalidade e brilho sobre Acumulação (um conceito tipicamente da economia) e Criatividade (um conceito eminentemente ligado à cultura). Mostrava Celso, lá se vão quarenta anos, como as sociedades passaram, na história, da “lógica da acumulação” à “lógica da criatividade”. O que é essa passagem, senão — dita em outros termos — a da lógica da “produção industrial” à da lógica da “produção intelectual” de que falam os teóricos da economia criativa? O tema da cultura teve sempre um lugar destacado no pensamento de Celso Furtado. Já em meados dos anos 1970 é bem visível em seus livros a preocupação em teorizar sobre a dimensão cultural do desenvolvimento. Melhor dizendo, sobre o elo explícito entre cultura e
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desenvolvimento. Na verdade, como já ressaltaram estudiosos de seu pensamento, no Brasil e no exterior, Celso dera ênfase em livros anteriores ao conceito de cultura e à sua importância para a teorização sobre o desenvolvimento: em O mito do desenvolvimento econômico, de 1974, quando pela primeira vez ele analisou as consequências ecológicas da planetarização do sistema econômico vigente nos países capitalistas; ou, dois anos depois, em Prefácio a Nova economia política, quando consolidou algumas pistas dessa caminhada interdisciplinar, demonstrando que o uso abusivo da matemática e dos modelos econométricos para entender o Brasil e o mundo deixara de lado outras variáveis importantes dos problemas sociais, como a criatividade. Mas a apresentação mais acabada da faceta cultural de sua obra é, de fato, Criatividade e dependência, obra em que mais estuda o vasto campo da dimensão cultural do desenvolvimento. A seu ver, este era o ponto de partida para se chegar à cultura como sistema de valores e, em etapa posterior, como manifestação maior de uma sociedade. O tema que mais me fascina em Criatividade é a visão histórica e filosófica que Celso elabora a respeito dos vínculos entre cultura e desenvolvimento. Estudar o desenvolvimento a partir de sua dimensão cultural, como ele o fez, foi um enfoque inovador, que hoje é visto por pesquisadores como um de seus aportes teóricos mais originais. Ele costumava dizer que o homem se justifica pelos valores que tem — corolário de que o desenvolvimento seria menos o resultado da acumulação material e mais um processo de invenção de valores, comportamentos, estilos de vida, em suma, de criatividade. De inventividade. Celso dominou como poucos a lógica e as ferramentas econômicas. Mas soube ir além. Soube englobar, em seus livros, os valores maiores da vida, as necessidades espirituais e intelectuais, tendo assim um entendimento plural do subdesenvolvimento em sua busca para superá-lo. Alargou seu enfoque, em favor da cultura. Sua obra se distingue pela peculiaridade de elaborar de forma sistemática o tema da cultura e do desenvolvimento. Ora, de umas duas décadas para cá — mais especificamente desde os anos do primeiro-ministro Tony Blair na Inglaterra — surgiu o conceito de indústrias criativas. A economia criativa, afirma-se, seria aquela que estaria vinculada não tanto à produção industrial como à produção intelectual. Um produto típico das sociedades pós-industriais. De fato, a partir da
crise que mais ou menos se arrasta, com altos e baixos, desde os anos 1970, em suas várias facetas, muitos setores da produção industrial foram sendo substituídos por outros mais inovadores, com desdobramento de atividades, maior participação dos serviços, maior destaque para produção de software, jogos eletrônicos etc. Assim, é lícito supor que a economia criativa não data, como gostam de afirmar os ingleses, dos anos 1990, mas dos anos 1970. Mas pouco importa o momento de seu nascimento. Talvez ela seja uma faceta da ciência econômica, uma das muitas tentativas de resposta de um mundo em crise, ou ao menos em convulsão. De qualquer maneira, ela me parece um conceito redutor diante do conceito mais abrangente de economia & cultura, economia & criatividade. Pois é disso que se trata. Num país como o nosso, em que ainda estamos longe, muito longe, de alcançar o desenvolvimento — ao menos no sentido global e harmônico como o entendia Celso Furtado — há que existir um elo explícito entre cultura, economia e desenvolvimento. Foi essa a ideia-mestra que cristalizou, particularmente, nos três anos em que Celso esteve à frente da pasta da Cultura. A noção de cultura teve grande importância em sua visão do desenvolvimento — eu diria em sua visão de mundo — e eu destacaria duas frases, ditas por ele com alguns anos de distância, que bem a resumem. Se de início ele afirmava que “a cultura é uma dimensão essencial do desenvolvimento”, alguns anos depois estava convencido de que “todo projeto de desenvolvimento deve necessariamente partir da cultura”: é a própria essência da cultura como síntese do desenvolvimento.
Referências: FURTADO, Celso. Criatividade e dependência na civilização industrial. São Paulo: Companhia das Letras, 2008 [1978]. Rosa Freire d’Aguiar é jornalista e tradutora. Dirige a coleção Arquivos Celso Furtado, pela qual já publicou seis volumes. Texto elaborado a partir de apresentação no Fórum Internacional Economia, Criatividade, Cultura e Arte, realizado no Rio de Janeiro em novembro de 2015.
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Mídia Alternativa Jornalismo de oposição e resistência Por Xenya Bucchioni
A América Latina do jornalista e escritor Eric Nepomuceno
A
o sair do Brasil em 1973, ainda sob o clima barra pesada da ditadura, Eric Nepomuceno não imaginava que seu retorno ao país seria possível só 10 anos mais tarde. A ideia original era instalar-se em um país vizinho – o que de fato fez, ao escolher a capital portenha para sua nova morada. Como recorda Eric, saiu porque quis e tornou-se exilado lá fora: “ao ser impedido de voltar”. Em terras estrangeiras, passando da Argentina à Madri e, então, ao México, aprimorou os conhecimentos sobre a América Latina e a experiência como jornalista. E na imprensa local desses países, denunciou os abusos e as arbitrariedades da ditadura brasileira, o que o fez entrar para a lista dos que combatiam o governo por meio de campanha difamatória. Na bagagem da volta, mais do que um jornalismo com uma dimensão ampliada sobre o continente, trouxe também o contato de grandes escritores latino-americanos – Julio Cortázar, Gabriel García Márquez, Eduardo Galeano, Juan Carlos Onetti, entre outros – de quem foi tradutor de diversas obras para o português. Nesta entrevista, Eric conta sobre este período da sua vida e o trabalho como jornalista fora do país. Confira: O que você fazia no início dos anos 70? No início dos inícios daquela década, eu trabalhava num jornal inovador e, tecnicamente, revolucionário, o ‘Jornal da Tarde’, de São Paulo. Em 1972, especificamente, era repórter de ‘Variedades’, a seção de artes e cultura. Em meados daquele ano fiz uma viagem por quatro países sul-americanos: Uruguai, Argentina, Chile e Peru. Tinha decidido ir embora do Brasil e queria escolher onde iria me abrigar. Optei por Buenos Aires, onde me instalei no começo de 1973 (fevereiro ou março, não me lembro com exatidão).
Escola Superior de Propaganda e Marketing. E chegou a terminar a faculdade? Na USP, fiquei o primeiro ano. Na ESPM, exatos três meses: era demais para o meu pobre fígado. E na PUC cheguei ao terceiro ano (sendo que o primeiro fiz ao mesmo tempo que a USP). Nunca me formei. O que você sentia e pensava naquele período em relação aos rumos do regime militar? Era muito ruim. Tudo muito ruim. Trabalhávamos com um censor na redação. Você escrevia seu texto, passava para o editor, que eventualmente passava para um copy - Copy deriva da palavra copydesk, que era o professional responsável por fazer a revisão do texto nos aspectos para além da gramática e ortografia com objetivo de torná-lo claro e bem estruturado -, que devolvia ao editor, que mandava para o secretário de redação. E aí, em vez de ir para a gráfica, ia para o censor... Naquele começo dos anos 70, o ambiente era irrespirável, ao menos para mim. Por isso decidi ir para Buenos Aires. A Argentina vivia, é verdade, uma ditadura militar, mas havia eleições e um civil assumiria, como efetivamente assumiu (Héctor Cámpora, peronista, em maio de 1973). Era outro universo, outro mundo, outro tempo – eu sabia que seria assim, e quis estar lá. Aqui, a perspectiva era a pior possível, como de fato se confirmou. Fiquei em Buenos Aires até o começo de 1975, quando voltei. Mas aí o ambiente pesava para mim, diretamente. É que na temporada portenha escrevi muito para a imprensa local, denunciando o que acontecia no Brasil. E com isso passei a ser considerado perigoso. Então, fiquei no entra-e-sai. Vinha, ficava às vezes dez, quinze dias, e ia embora de novo. Passava um tempinho – dois meses, dois meses e meio –, e eu repetia a dose. Foi assim até o começo de 1976, quando já nem isso era recomendável e fui-me embora de vez.
E você era estudante? Se sim, que curso frequentava?
Ao longo dos 70, além de atuar como correspondente do JT em Buenos Aires, você colaborou com a revista Crisis. Gostaria que você contasse um pouco sobre as suas atividades na publicação. Você chegou a exercer outros trabalhos além da escrita?
Entrei em três faculdades, todas em São Paulo, onde morava na época: Filosofia na PUC, Filosofia na USP e a
Ao longo dos anos 70 fui correspondente em Buenos Aires, mas só até julho de 1976, quando precisei – literal-
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mente – fugir e não me deixaram ficar no Brasil. Fui parar na Espanha, até setembro de 1979, quando me mudei para o México. Aliás, já não no Jornal da Tarde, mas, desde abril de 1976, pela então revista Veja. Nesses três países (Argentina, Espanha, México) escrevi muito para a imprensa local. No período portenho, entre 1973 e 1976, escrevi, em Buenos Aires, para o jornal ‘La Opinión’ (seu suplemento de fim de semana, editado pelo escritor Tomás Eloy Martínez) e para a ‘Crisis’. Nunca tive, na vida, outro ofício que o de escrever. Minhas atividades na ‘Crisis’? Difícil de explicar. Éramos muito poucos a formar o que seria o núcleo comandado pelo criador da revista, o [Eduardo] Galeano. Dávamos palpite em tudo, fazíamos contatos, trazíamos colaboradores. Escrevia sobre o Brasil, sobre aquele tempo de breu. Foi também na ‘Crisis’ que publiquei meus primeiros contos. O filósofo e poeta Santiago Kovadloff, que na adolescência tinha morado no Brasil e falava português como qualquer um de nós, era o responsável pela literatura brasileira e portuguesa. Armava antologias, traduzia poemas, enfim, era a parte da luso-américa naquela publicação da hispano-américa. Eu era muito jovem. Em 1973, quando ‘Crisis saiu’, eu tinha 25 anos recém-feitos, em junho – a revista foi para as bancas em maio. Não tinha uma função específica que não fosse aprender. Havia o conhecimento, por parte do pessoal de Crisis, de que o projeto de Versus [publicação alternativa brasileira] se inspirava na edição argentina ou esse conhecimento era restrito a você e Eduardo Galeano? Eduardo e eu fomos, por razões óbvias, os primeiros a saber que ‘Versus’ existiria. Convém recordar que era um tempo em que não existia internet, nada dessas ferramentas velozes. O grupo de colaboradores de ‘Crisis’ sabia, claro, que no Brasil havia uma revista que seguia os passos da nossa, o nosso modelo. ‘Versus’ começou a ser publicada em outubro de 1975, tempos tumultuados no Brasil e tremendamente turbulentos na Argentina. Mas apesar da tensão que vivíamos por lá, acompanhávamos o que a ‘Versus’ fazia aqui e tratávamos de ajudar com contatos, ou escrevendo... Como conheceu o Versus? Não me lembro exatamente o mês, possivelmente no primeiro semestre de 1975. É fácil conferir isso. Eduardo Galeano, de quem eu era mais que amigo, uma espécie de irmão mais novo, veio ao Brasil e Marcos Faerman, meu colega de jornal, quis conhecê-lo. Nos reunimos, falamos muito da revista que Galeano dirigia – a ‘Crisis’, publicação mítica – e de cujo grupo eu fazia parte. Foi ali que o Marcos Faerman disse que iria fazer uma revista parecida, uma espécie de reflexo brasileiro da ‘Crisis’, e que se chamaria ‘Versus’. Marcos, além de professional formidável, era um
visionário. O que o motivou a colaborar com esta publicação? Na verdade, participei pouco, escrevi menos do que deveria e gostaria... O que me motivou? Ora, eu era dos poucos, e da minha geração talvez o único, que se dedicava aos temas da América Latina. Vivia nesse universo. ‘Versus’ tinha sido criada e era dirigida por um amigo, o Marcos Faerman, defendia posições políticas que também eram minhas, era uma trincheira de resistência e de conhecimento, informação... Se o Marcos não me pedisse textos, eu ofereceria... Falando sobre o Galeano, foi você que fez a ponte entre ele e o Versus? Apresentei o Marcos Faerman a ele, facilitei o contato com o Cortázar. Só depois ‘Versus’ existiu. Crisis publicou diversos autores brasileiros. Além de você, quem mais trabalhou nessa ponte Brasil-Argentina? O essencial foi, claro, o Galeano, que era acima de qualquer coisa um cidadão latino-americano, com profundo e vasto conhecimento do Brasil. Foi ele quem impulsou essa ponte. O Kovadloff teve papel fundamental. Mas quando ‘Crisis’ começou a circular (já no primeiro número trazia um conto do Guimarães Rosa) os próprios brasileiros passaram a colaborar. O Boal, por exemplo, exilado na Argentina, foi importantíssimo. Aqui, o Chico Buarque era propagandista da ‘Crisis’. Enfim, havia um trânsito intenso. Na sua opinião, haveria lugar para uma publicação como Versus e/ou Crisis nos dias de hoje? Mais do que haver lugar, e há, o que existe é uma imensa necessidade. Só que não vejo como. O que você acredita que ficou de legado dos tempos de Versus e da imprensa alternativa no Brasil? Não sei. De verdade, não sei. Aqui no Brasil, uma lição de ética e dignidade profissional. Só que, reitero, não sei se alguém se dá conta disso...
Escrita pela jornalista Xenya Bucchioni, doutoranda em Comunicação na UFPE e fundadora do Mezclador, estúdio de cultura contemporânea desenhado para realizar projetos de impacto social, a coluna Mídia Alternativa aborda a produção jornalística feita à margem dos veículos tradicionais. Mensalmente, o espaço apresentará um raio-x das publicações alternativas marcantes na história do jornalismo e do país, além de entrevistas e debates.
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Opinião
As Perspectivas Políticas sobre a Crise Ambiental Internacional Por Eduardo Matos Oliveira
À
medida que as alterações climáticas, o derretimento de geleiras e falta de água se agravam e se tornam cada vez mais um problema global, surgem diferentes discursos para justificar e resolver a situação. Esse artigo se propõe a analisar as principais retóricas que pretendem explicar e propor saídas para a crise ecológica. Naturalmente, considerando que o conhecimento na área ainda está sendo formado, há uma disputa por espaço não só no ambiente acadêmico, mas também nos principais meios de comunicação. Serão discutidas três principais perspectivas a respeito dos problemas ambientais: a primeira é a corrente que nega a relação entre a ação humana e o aquecimento global; em seguida, será trazida a posição daqueles que reconhecem o impacto da sociedade moderna nos problemas contemporâneos, mas acreditam que o avanço tecnológico pode resolver a situação; por fim, há teóricos que questionam se a abordagem puramente técnico-científica é capaz de encontrar saídas definitivas, visto que ela mesma seria a causa principal das mazelas ambientais. Atualmente, a ideia de que a relação entre o efeito estufa e a ação do homem é apenas uma falácia ganha força política, em especial, após a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos. Apesar de serem minoria, essa corrente é composta não apenas por seguidores de teorias da conspiração, mas também por membros da comunidade científica. Nesse caso, aproveita-se da impossibilidade do método científico em provar uma relação causal com absoluta certeza para questionar evidências que são robustas. Segundo Karl Popper (2012), uma hipótese nunca é confirmada de modo definitivo, mas está sempre sujeita a novas validações. Porém, isso não significa que não seja possível obter um razoável grau de certeza em relação a fenômenos naturais e sociais. Aqueles que negam a participação da atividade humana no efeito estufa argumentam que o aquecimento do planeta é um fenômeno que já aconteceria de qualquer forma, mesmo que não tivesse havido a emissão de carbono na atmosfera por
meio do desenvolvimento industrial. A sutileza do argumento é a dificuldade de obter evidências para corroborar ou rejeitar essa conjectura, uma vez que os experimentos naturais necessitam de um grupo de controle e outro de tratamento, e o planeta Terra é único. Não é possível observar a variação da temperatura da Terra com e sem a emissão de gases poluentes, por isso a dificuldade em mensurar o efeito da ação humana nas mudanças climáticas. Entretanto, além das pesquisas em âmbito global, há uma série de evidências que podem ser coletadas em âmbito regional e local que comprovam o efeito das sociedades industriais nas alterações ambientais vivenciadas nos últimos tempos. A maior parte da comunidade científica e dos líderes mundiais aceitam essa versão, porém há divergências a respeito de como lidar com o problema. O establishment político e econômico acredita que o mercado e a própria iniciativa privada representam a forma mais eficiente de encontrar uma solução para a crise ecológica. Para eles, o próprio desenvolvimento tecnológico associado ao interesse econômico vai engendrar saídas, abarcando desde problemas como a dessalinização de águas até ideias mais extremas como a necessidade de encontrar um novo planeta para continuar a civilização humana. Há uma tentativa de manter a premissa do crescimento econômico infinito como pressuposto para haver justiça social, desde que a produção econômica seja reestruturada em bases não poluentes. Em outras palavras, surge a ideia do “crescimento verde”, que atualmente figura entre as bases das recomendações do Banco Mundial (2012). Ademais, nos fóruns internacionais, há o predomínio de soluções vinculadas à lógica de mercado, como foi o caso dos créditos de carbono. Por outro lado, há teóricos que questionam a possibilidade de resolver a crise ambiental por meio da inovação tecnológica, visto que foi o próprio processo de desenvolvimento econômico alinhado ao avanço tecnológico para alimentar uma sociedade de consumo de massa que nos trouxe até o momento atual
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(STENGERS, 2009, p. 19). Como pode aquilo que foi a causa do problema também ser a solução? Dentro desta literatura, há uma reflexão sobre a distinção tradicionalmente feita entre homem e natureza. Questiona-se a ideia de que todo o planeta Terra está à disposição para ser explorado irrestritamente pelos seres humanos, que seriam algo separado do resto da biosfera. Portanto, nesta visão, seria necessária uma completa mudança de paradigma, e não apenas a tentativa de reduzir a emissão de gases poluentes sem interferir no padrão de consumo das sociedades industriais. A Europa, por exemplo, tem nas suas diretrizes econômicas a tentativa de criar uma sociedade do conhecimento (BONGARDT; TORRES, 2012), em que a produção interna seja pautada pela criação intelectual, patentes e outras atividades não poluentes. No entanto, os países europeus continuam importando os produtos eletrônicos fabricados na China, com matriz de carvão, a fim de evitar o aumento dos preços. Por conseguinte, os países do centro do sistema capitalista tentam reestruturar a sua produção interna para evitar a emissão de gases do efeito estufa, porém continuam consumindo tudo que é fabricado sem nenhum controle ambiental na periferia do sistema. Ou seja, a ideia do crescimento verde é uma forma do establishment “entregar os anéis para salvar os dedos”, uma vez que a lógica de mercado, que sustenta um consumo desenfreado, continua intacta (WANNER, 2015) sem que haja uma reflexão mais profunda a respeito das desigualdades estruturais do capitalismo. Faz-se urgente a proteção do meio ambiente não através de um preço de mercado, mas sim pelo valor em si daquilo que é fundamental para a existência da vida. A literatura que teoriza a respeito da impossibilidade de separação entre a ecologia e economia (GEORGESCU-ROEGEN, 1971) discute a inevitabilidade da redução do padrão de consumo e do decrescimento econômico para encontrar soluções ambientais que não sejam meros paliativos. Tempos atrás, talvez os questionamentos a respeito do crescimento econômico infinito parecessem improváveis de se tornarem uma agenda política efetiva, mas atualmente são as tentativas de resolver os problemas ambientais através da lógica de mercado que se tornam cada vez mais utópicas. Em relação às diferentes visões políticas apresentadas, a questão se agrava porque à medida que os efeitos negativos se tornam mais visíveis e catastróficos, aqueles que estão nos
centros de poder político e econômico tendem a migrar para perspectivas mais radicais, tanto em termos do negacionismo como em busca de soluções puramente técnico-científicas, uma vez que o custo de reverter a situação se torna cada vez mais elevado. Além do mais, se nossos líderes políticos e as elites econômicas acreditarem na possibilidade de salvação através de uma espaçonave para algum lugar fora da Terra, qual o incentivo que eles terão para buscar soluções que envolvam o resto do planeta? Ao fim da linha, quando a lógica de mercado se mostra sem possibilidades para resolver o problema, ainda é possível encontrar formas para lucrar com a situação. Por exemplo, atualmente já estão sendo vendidos abrigos dentro de montanhas totalmente revestidos e equipados para resistir a cenários apocalípticos com objetivo de atrair milionários e bilionários preocupados com o futuro (BBC BRASIL, 2017).
Referências: BBC BRASIL. Os abrigos para o fim do mundo construídos para os super-ricos. 2017. Disponível em: <http://www.bbc. com/portuguese/geral-38809611>. BONGARDT, A.; TORRES, F.. Lisbon Strategy. In: JONES, E.; MENON, A.; WEATHERILL, S. The Oxford Handbook of European Union. Oxford: Oxford University Press, 2012. GEORGESCU‑ROEGEN, Nicholas. The Entropy Law and the Economic Process. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1971. STENGERS, I. In Catastrophic Times: Resisting the Coming barbarism. Paris: Open Humanity Press, 2009. POPPER, Karl. [1935] The Logic of Scientific Discovery. Londres: Routledge, 2002. WANNER, T. The New “Passive Revolution” of the Green Economy and Growth Discourse: Maintaining the “Sustainable Development” of Neoliberal Capitalism. New Political Economy, vol. 20, n. 1, 2015. WORLD BANK. Inclusive Green Growth: The Pathway to Sustainable Development. Washington DC, 2012.
Eduardo Matos Oliveira é Doutorando e Mestre em Ciência Política e Relações Internacionais na UFPE.
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Opinião
Como os partidos de direita ganham eleições Por Suranjit Saha
O
grito de batalha “Nós s omos o s 9 9 p o r c e n t o”, d e s t a c a n d o o fato de que o um por cento das pessoas mais ricas na sociedade possuem uma parcela desproporcional de riqueza e influência política, agora é bem conhecido. Mas o paradoxo é este: nenhum partido político em qualquer lugar do mundo pode ganhar uma eleição com base no apoio de apenas 1 por cento da populaç ão. No ent anto, em qu as e to d as as pr incipais democracias do mundo de hoje, os partidos ou as coalizões governantes são os partidos da direita ou do centro-direita, cujas políticas fundamentais são para promover os interesses dos ricos. C omo isso acontece? O 1 % é, evidentemente, uma fração nacional e arbitrária da soc i e d a d e . Po r r a z õ e s d e e c o n o m i a , v a m o s c h a m a r e s s a d i n â m i c a “o s 1 0 % s u p e r i o r e s v e r s u s o s 9 0 % r e s t a n t e s”. O s 1 0 % s u p e r i o res precisam dos votos de um grande ped a ç o d o s o u t r o s 9 0 % p a r a g o v e r n a r. Imediatamente após o fim da segunda g u e r r a m u n d i a l , o P a r t i d o Tr a b a l h i s t a I n g l ê s , s o b a l i d e r a n ç a d e C l é m e n t At t l e e ganhou as eleições e formou o primeiro governo do pós-guerra da Grã-Bretanha. Nu m a é p o c a e m q u e a e c o n o m i a b r i t â nica estava quase quebrada sob a pressão de lutar contra uma guerra destrutiva de cinco anos, o partido teve a coragem de estabelecer os três fortes pilares de um estado de bem-estar moderno: um Ser viço Nacional de Saúde, um programa de habitação social e acesso gratuito à educação universit ár ia para to dos. Não s e es condeu a t r á s d a d e s c u l p a d o p a d r ã o d o s r i c o s : “A e c o n o m i a n ã o p o d e p a g a r i s s o”. Para que tal par tido começass e a p erder a fé em seu principal princípio de justiça social, estava provavelmente entre as piores regressões na cultura política do século XX. O longo período de regra conser vadora ininterrupta de 1979 a 1997 criou uma at-
mosfera de desesperança incansável entre a classe trabalhadora na Grã-Bretanha e f o i n e s s a a t m o s f e r a q u e To n y B l a i r p a s s o u a s e r e l e i t o l í d e r d o P a r t i d o Tr a b a l h i s t a em julho de 1994. Durante seus anos como primeiro-minist ro, ele rep osicionou f ir memente s eu p ar t ido à direit a do esp e c t ro p olít ico, às vezes mais à direita do que o Partido C o n s e r v a d o r. O dano duradouro das perspectivas políticas a médio e longo prazo da es querda foi feito pela engenharia social que ele praticou. Blair levou a mensagem em todos os seus discursos de que era impossível ganhar uma eleição na Grã-Bretanha, concentrando-se na justiça social. Ele rompeu a política trabalhista tradicional de construir uma coalizão social com as classes mais pobres e médias e substituiu isso por uma nova aliança de classes médias e mais ricas. E ss a engen har i a s o ci a l foi, de fato, um atrevido lance para derrotar os conser vadores em s eu própr io j ogo, tor nando-s e mais semelhantes a eles. Ness a dire ç ão, uma p e quena minor i a d a e l i t e s u p e r i o r, u s a n d o s u a m e l h o r e d u cação e outras formas de capital social ac umu l ado, div ide com êxito a s o cie d a de abaixo dela em uma hierarquia de um número infinito de classes estreitamente definidas; cada classe com desdém em rel aç ão aos de b aixo, p arasit as e const antemente aspirando a subir para as fileiras daqueles acima. Funciona constantemente insistindo nas virtudes do trabalho duro como uma rota para a mobilidade ascendente. O que a mídia, controlada pela elite, não diz é que qualquer quantidade de trabalho árduo não permitirá que as pessoas comuns ingressem no círculo mágico da pequena coterie dos privilegiados, a maioria educada em Eton / Harrow e Oxford / Cambridge e unida pelos fortes laços do interess e própr io.
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As posições que essas pessoas ocupam no Estado e no aparelho corporativo não se dão por causa do trabalho árduo ou do talento inerente, mas porque suas famílias tinham recursos para comprar o acesso a uma educação privada privilegiada e tinham a capacidade de colo cá-los na órbita daqueles proverbiais velhos clubes de meninos, que na maioria dos casos controlam o acesso a essas posições. At é o f i n a l d a s e g u n d a g u e r r a m u n dial, a educação universitária em geral, e não ap enas em Oxford e C ambr idge, p ermanecia, obviamente, como uma reser va exclusiva dos ricos e privilegiados, uma estreita camada superior da sociedade britânica. Ninguém sem um diploma universitário poderia razoavelmente aspirar a g a r a n t i r u m “t r a b a l h o a s s a l a r i a d o” e m uma posição responsável e ninguém fora desse círculo poderia aspirar a ter um diploma universit ár io. Foi somente depois que o governo trab a l h i s t a l i d e r a d o p o r At t l e e a b r i u o e n s i no universitário a todos, é que um grau de mobilidade social veio a existir neste país, abrindo um pequeno espaço de justiça em sua estrutura de estratos atrofiados. Em 1989, os conser vadores, sob Marg a r e t T h a t c h e r, i n i c i a r a m u m p r o c e s s o d e reverter o lento movimento de mobilidad e s o c i a l q u e o P a r t i d o Tr a b a l h i s t a h a v i a iniciado um quarto de século antes, mas ab oliu os subsídios de manutenç ão. Durante os 28 anos seguintes, o Reino Un i d o r e g r e d i u e m s u a s i t u a ç ã o p r é - 1 9 4 5 de uma divisão de classes atrofiada em relação ao acesso à educação universitária. To d o s o s e s t u d a n t e s q u e n ã o p e r t e n ciam aos 10% superiores da pirâmide de renda deixaram a universidade com uma dívida de cerca de £$ 60,000,00 (sessenta mil libras), mais de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais). A maioria se sentirá extremamente intimidada em assumir tal aposta no limiar da vida adulta. Limitar o acesso ao ensino superior a todos, exceto à e l i t e s u p e r i o r, é a p e n a s u m a p a r t e d o j o g o d e p o d e r. A direita utilizará o recurso à várias formas de dissimulação e discursos ambíguos, para ganhar votos do homem e da mu l her do p ovo, o que repres entou a out ra parte estratégica necessária. Assim, uma forma de dissimulação bastante popular
com os conser vadores é abusar constantemente do refrão sobre o quão bom e n e c e s s á r i o s ã o o s “c r i a d o r e s d e r i q u e z a” para a sociedade. Po r c r i a d o r e s d e r i q u e z a , e l e s s i g n i f i cam chefes cor porativos, desenvolvedores imobiliários, banqueiros, corretores de bolsa e os ricos em geral. S ó eles s ão os cr i adores de emprego. Po r t a n t o , e l e s n ã o d e v e m s e r t a x a d o s , r e gulamentados ou desfavorecidos de qualquer outra forma e deixados livres para gan har din heiro. Em qualquer economia real, no entanto, a cr i aç ão do pro duto s o ci a l f ina l, ou o va lor ag regado, que o direito chama de criação de riqueza, realmente acontece através da joint-venture e criatividade dos chefes e dos trabalhadores. No entanto, as reg ras de uma e conomi a c apit a list a sobre a distribuição deste produto final são tais que os chefes recebem uma proporção desproporcionalmente maior do que aquela dos trabalhadores. E, dentro do grupo de trabalhadores na maioria das organizações, o fosso entre o maior e o m e n o r é c a d a v e z m a i o r. É d i f í c i l v e r u m a razão válida para que os diretores exec u t i v o s d a s e m p r e s a s p r e c i s e m g a n h a r, em média, 262 vezes mais do que os funcionár ios com o menor s a l ár io, como foi relatado em uma publicação de pesquisa d o E q u a l i t y Tr u s t e m 2 0 1 1 . I s s o n ã o t e m conexão com nenhuma forma de racionalidade. O que está em jogo aqui são os valores capitalistas, que dizem que está tudo certo para alguns ganharem bônus de vários milhões de libras e que os trabalhadores de baixa remuneração trabalhem em tempo integral para tentar chegar ao fim. É a brutalidade desses tipos de valores que um partido da esquerda deve deixar claro para o conjunto dos 90 por cento da população e não se agrupar ou se associar com a ganância ilimitada dos 10 por cento superiores.
Suranjit Saha é professor sênior aposentado em estudos de desenvolvimento na Universidade de Swansea/País de Gales.
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Opinião
Trintenárias na China: entre o casamento e as mulheres-resto Por Mariana Yante
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o último artigo, discorremos um pouco acerca de hábitos e normas de etiqueta que permeiam a cultura chinesa e, de alguma forma, estão relacionados à visão da mulher na sociedade. Um dos aspectos que se destacam nas famílias asiáticas é a importância que se dá ao casamento, de forma que, na China, por exemplo, existe um antigo ditado dos tempos do império que diz que os três grandes momentos da vida de um chinês (no masculino) são o exame imperial, o casamento e o nascimento de um filho. Parte desses valores está sendo retomada em um contexto de derrocada demográfica no país. Com o envelhecimento da população, e a perspectiva de que a Índia supere a China em números absolutos de habitantes nos próximos sete anos, o governo chinês respondeu ao que especialistas já vinham apontando como uma tendência desde a década passada. Em tal contexto, não somente a política do filho único – que determinava, como regra geral, que apenas uma criança fosse gerada por casal, desde 1979 – foi banida, mas também outras medidas vem encorajando a mulher a “retomar” o espaço doméstico.
Recentemente, a organização Human Rights Watch reportou que o governo chinês tem investido massivamente, após a revogação da política pública, em outras iniciativas que incentivam a maternidade. Desde 2016, por exemplo, trinta das trinta e uma unidades administrativas do país implementaram a extensão das licenças-maternidade, sem, contudo, haverem criado ou aumentado a licença paternidade. Um exemplo são as as províncias de Hunan e Hainan, que atualmente concedem licenças-maternidade remuneradas de cento e noventa dias. Outra iniciativa também recente é a campanha oficial lançada na capital Beijing, e divulgada nos cartórios de registro de casamento, que utiliza desenhos e linguagem coloquial para deixar a mensagem de que “ser uma boa dona de casa, boa mãe, são as maiores conquistas das mulheres”Tradução livre: Ser uma boa dona de casa, boa esposa, são as maiores capacidades da mulher, por que insistir na ideia de, cansando-se em aborrecimentos, competir com os homens por recursos, demarcando território, ahn?). A importância do casamento é tamanha que a ingerência da família segue sendo grande nessa questão. Cada vez mais, jovens chineses e chinesas têm dado prioridade à
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sua carreira e, como consequência, encontrar um par e engajar-se no matrimônio parecem ser tarefas mais difíceis. Em Shanghai, por exemplo, existe um famoso mercado de casamentos, no qual os pais vão anunciar as qualidades de seu filho ou filha como cônjuge e buscar ofertas atrativas. A parte mais interessante é que essa atividade data apenas de 1996, ou seja, certamente responde a algumas dessas questões que pontuamos anteriormente. Nas tardes de sábados e domingos, próximo à Praça do Povo, pais e avós “à moda antiga” se utilizam de papel e caneta para apresentar informações que presumem ser relevantes, como data de nascimento (o signo é muito importante!), desempenho escolar, atual emprego e histórico de trabalho etc. É importante observar que, embora recente, o formato do mercado e o fato de que parentes mais velhos do futuro casal se encontram antes mesmo de que exista qualquer relação entre os(as) nubentes relembra a tradição chinesa e, por isso, para muitas famílias, esse espaço hoje representa uma rara maneira de manter costumes clássicos. Independentemente do consentimento dos(as) jovens, a família acredita que o entendimento entre os(as) parentes mais velhos(as) é essencial para que o eventual vínculo matrimonial possa vir a existir. A concorrência é tão grande que algumas preferem contratar casamenteiros(as) para a tarefa – além da possibilidade de recorrer a agências matrimoniais e, hoje em dia, programas de televisão e encontros coletivos em karaokês e bares. Assim como ocorre nas sociedades ocidentais cristãs e machistas, na China existem vários dizeres que refletem o “papel” da mulher no casamento. Após o matrimônio, a mulher passa a celebrar todas as festividades, tal como o Ano Novo Chinês (data mais importante do calendário lunar), junto à família de seu esposo, a quem passa a pertencer de forma direta. São populares alguns dizeres como – literalmente, “se você se casa com um frango, siga o frango; se você se casa com um cão, siga o cão”, traduzida como “a mulher deve seguir o que seu marido determina”. Curiosamente, desde a Revolução Cultural, devido à influência retórica do ideário comunista no sentido de que homens e mulheres são iguais, o costume jurídico de que as mulheres adotem os sobrenomes de seus maridos – como ainda ocorre nas nossas sociedades – foi abolido. A Revolução Comunista também provocou outras mudanças em algumas tradições chinesas relativas ao casamento. Uma delas é que, embora seja raro encontrar uma mulher aos trinta anos que não esteja seriamente comprometida ou casada – é popular o uso da expressão pejorativa (algo como mulher remanescente) –, relacionamentos amorosos são fortemente desencorajados durante a escola ou nos primeiros anos do ensino superior. Até 2005 estava em vigor uma lei que proibia o casamento entre estudantes universitários e, na década de oitenta, a polícia disciplinar chinesa punia jovens que estivessem flertando nos campi. O Partido desempenhou, além disso, uma função relevante nos matrimônios ocorridos logo após a implementação do comunismo no país, pois, a fim de repelir alguns
costumes reputados aristocráticos ou ligados à cultura do império, como os casamentos arranjados pelas famílias, o governo criou algumas agências matrimoniais. A ideia de homem provedor faz com que, atualmente, algumas famílias prefiram ter filhas e não filhos, já que, além de o seu descendente passar a ser financeiramente responsável pela família da esposa, no casamento os pais do noivo são encarregados de presentear o futuro casal com um apartamento ou casa. Evidentemente essas tradições têm se relativizado cada vez mais com a autonomia financeira feminina, porém para serem considerados um “bom partido” na China (mesmo entre as garotas), é imprescindível que os rapazes tenham (ou estejam em vias de adquirir) casa própria. Evidentemente, a preferência por filhos varões é algo que se estende da tradição chinesa até os dias atuais, sobretudo quando considerado o contexto campesino, onde ter um filho é duplamente garantir a seguridade social da família e a força de trabalho. De fato, embora não possamos discutir esse aspecto com maior detalhe, é importante salientar que até atualmente não existem estudos conclusivos sobre o número de abortos de garotas e de meninas não registradas por força da vigência da política do filho único por mais de três décadas. Outra tradição que provavelmente tem as mesmas raízes na necessidade do casamento precoce e no envelhecimento feminino é a ausência de celebração do aniversário de trinta anos entre as mulheres. A idade – que é considerada de má sorte – deve ser ignorada até o ano seguinte (de forma que a mulher segue tendo vinte e nove anos por dois anos consecutivos), no qual a aniversariante volta a comemorar seu nascimento, agora com trinta e um anos. Esse rechaço a certas idades a que chegam as mulheres nos recorda o que ocorre em muitas cidades do interior brasileiro, em que são associadas a “tiros na macaca” para fazer alusão ao esgotamento crescente das possibilidades de que venha a casar. Os trinta e três e os sessenta e seis anos também são vistos como aniversários femininos indesejados, e existem superstições ligadas a essas datas, como esconder-se atrás da porta da cozinha e cortar um pedaço de carne pelo mesmo número de vezes que a idade completada, a fim de evitar mal agouro no ano que se inicia (aos sessenta e seis, é a filha ou parente mais próxima quem deve fazer o ritual). Entre os homens, a idade do azar são os quarenta anos, embora também existam referências aos sessenta e seis. De acordo com a Academia Chinesa de Ciências Sociais, o número de homens solteiros em idade matrimonial deve superar o das mulheres em 2020 na cifra de 24 milhões. A ver se, até lá, os aniversários de azar são esquecidos.
Mariana Yante é doutoranda em Relações Internacionais na Universidade de Wuhan/China.
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Jornalismo Ambiental
Sociedade, natureza e mudanças climáticas Por Robério Daniel da Silva Coutinho
Vida longa à Renca e à Mata do Uchôa - Não ao extermínio das vidas e seus saberes
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recente ataque institucional da União contra uma gigantesca reserva da Floresta Amazônica (Renca), situada entre o Pará e o Amapá, do tamanho equivalente ao estado do Espírito Santo, recebeu ampla notoriedade midiática. O governo tentou extingui-la por decreto presidencial. A propositura governamental recebeu uma generalizada reação da sociedade civil organizada e por artistas. Contra tal mal feito, eles contraporam-se à consequente destruição da natureza e dos povos indígenas da área afetada e também contra toda gama de prejuízos socioambientais decorrentes e sobre os saberes histórico-culturais. Absurdo este que, guardadas as devidas proporções, acontece com a Mata do Engenho Uchôa e a sua biodiversidade, que fica no Nordeste, em uma área urbana da capital pernambucana. Para tanto, reverenciamos, de início, toda a resistência popular que há décadas tem mostrado a capacidade organizativa para preservar a mata, sobretudo a ação do pioneiro Movimento dos Amigos da Mata do Engenho Uchôa, ainda durante a Ditadura Militar (SILVA, 2014). Em um tempo de
costumes distintos do atual, mas com o propósito pioneiro de evitar a destruição da floresta contra o interesse de setores econômicos, como verificado agora nas mineradoras que pressionam pelo fim da Renca, um pequeno grupo de amigos pernambucanos surgia em 1979 preocupados em defender a Mata do Engenho Uchôa das ameaças a que a mesma estava submetida, especialmente por parte do setor imobiliário que desejava construir no local um privê de luxo. No livro A Educação Ambiental de Pernambuco, da Editora UFPE (2014), a professora Luci Machado, uma das participantes à época e até hoje do grupo em defesa da mata - movimento ambiental pioneiro no estado e ainda ativo -, conta que o desmatamento foi uma das questões que os motivaram a se organizarem. A docente, no entanto, reconhece que “não se tinha essa consciência ecológica (de hoje), mas sentia-se que morava-se num lugar bonito e com clima bom, diferenciado do resto do bairro e mesmo da cidade, sendo necessário preservá-lo”. O objetivo do grupo foi atingido após anos de luta, recebendo apoio de inúmeras instituições. O pequeno coletivo se tornou o então Movimento em Defesa da Mata do Engenho Uchôa e continua atuando até os dias atuais. Os seus encontros são realizados na 1ª terça-feira de cada mês, na Biblioteca da Escola Estadual Presidente Castello Branco, em Tejipió, no Recife/PE. Sem essa e outras resistências, hoje, possivelmente não teríamos mais a Mata do Engenho do Jardim Uchôa, que engloba três biomas (mangue, restinga e mata atlântica) e abriga nascentes e diferentes espécies da fauna e da flora. A
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mata é reconhecida no âmbito estadual como Refúgio de Vida Silvestre (RVS) com 20 hectares. E ainda como Área de Proteção Ambiental (APA) de 192 hectares, criada por Lei municipal em 1996. Uma máxima do movimento sindical é bastante pertinente diante desta constatação: A luta é quem faz a lei. Afinal, de quê e para que serve uma legislação se não for para a coletividade social? Vida longa à Renca na Floresta Amazônica e toda resistência popular, assim como tem sido pela mata pernambucana. Diante da reação e toda repercussão negativa nacional e internacional, o governo federal teve que suspender a aplicação do então Decreto presidencial pelo fim da Renca. Os prejuízos socioambientais serão amplos se o lobby das mineradoras vencer esta disputa. A mobilização dos defensores da floresta e dos povos tradicionais da região precisam continuar. Em Recife, por exemplo, se os Amigos da Mata do Engenho Uchôa não tivessem mantido tal luta, hoje, certamente, seriam maiores os prejuízos socioambientais na capital e em especial para 19% da população, parcela esta que mora em 11 bairros no entorno da APA da mata. Além dos problemas ambientais, a população recifense poderia sofrer danos também relativos aos saberes históricos e culturais guardados dentro da mata e todos aqueles constituídos no seu entorno ao longo da história da população no local. Saberes estes que o Programa de Pós-Graduação do Centro de Educação (PPGEdu), da Universidade Federal de Pernambuco tem se interessado em desvendar através do projeto de doutoramento em curso intitulado ‘Os saberes da/na Mata do Engenho do Jardim Uchôa’, situada na bacia do Rio Tejipió. “Através desta pesquisa e de outras aqui em curso voltadas à investigação dos saberes e não da história da educação formal/informal, começamos a vislumbrar a necessidade e talvez a possibilidade da criação de uma linha de investigação acadêmica voltada à história dos saberes” (SOUZA, 2017). Para Silva (2017), doutorando responsável pela referida pesquisa, é fundamental valorizar e desvendar os distintos saberes tradicionais derivados da relação humana com a mata. Os seus estudos exploratórios para compor a pesquisa já mostra inclusive uma parte dessa riqueza de saberes populares, como nos aspectos religiosos, históricos, culturais, na educação ambiental etc. Um dos fatos levantados por ele é que ainda enquanto terras do Engenho Uchôa, nos idos do século XIX, a área serviu como cenário de fuga de escravos perseguidos pelas autoridades policiais da época (SANTOS, 2008), sendo um importante local para estudos nesta direção. Nas suas pesquisas iniciais, constata-se ainda que, até hoje, a mata serve como terreiro para as práticas religiosas de grupos que para ali se dirigem na intenção de realizar as suas oferendas. A mata também servia de moradia. Havia casas no seu interior, sendo abandonadas durante uma grande enchente no século passado. “Meus irmãos trabalhavam colhendo cana no engenho que se acabou. Me acostumei a vir aqui todo dia. Cheguei a morar aqui, mas a chuva derrubou minha casinha”, revelou Olívia dos Santos, 78 anos, numa ma-
téria do JC (2012). Além dessa e outras peculiaridades que Silva classifica de ‘Saberes na/da mata’, os quais só podem ser pesquisadas agora por conta da reserva ambiental que ainda se mantém, o pesquisador verifica que a mata se constitui em real laboratório para práticas em educação ambiental, sendo fonte de pesquisa e produção de conhecimento para várias instituições escolares e comunidades do entorno. Assim, amparados no que Certeau (1998) classifica de tática diante do estabelecido pelo então estatuto hegemônico, conclui-se que os saberes já descritos compõem parte de um conjunto de informações, modos de fazer, criar e saber que circulam entre os participantes da comunidade do entorno da mata, fazendo parte de sua cultura, suas práticas, seus costumes e da memória. Saberes que, segundo defende Silva (2017), são táticas presentes no cotidiano dos sujeitos que se relacionam com a mata, mantendo-a preservada em suas diversas dimensões (ambiental - em particular a questão do clima e natureza biológica -, pedagógica, histórica, política, econômica, social, cultural e religiosa) até os dias atuais. Vida longa à Mata do Uchôa e à Renca e a toda vida e saberes dentro e fora delas. Não ao extermínio das vidas e seus saberes! Referências: CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1998; JC - Jornal do Commercio. A história de um parque de papel. Recife. 2012. Disponível em: http://jconline.ne10.uol.com. br/canal/cidades/cienciamambiente/noticia/2012/06/03/ahistoria-de-um-parque-de-papel-44204.php. Acesso em: 18 de sete 2017; SANTOS, L. R. N. dos. Justiça, controle social e escravidão em meados do século XIX. In: TJPE. Documentação e Memória. Recife, PE, v.1 n.1, 94- 115, jul. / dez. 2008. SILVA, L. F. M da. A Educação Ambiental de Pernambuco: (1979 a 1988). Recife: Editora UFPE, 2014; _________________. Os Saberes da Mata do Engenho Uchôa. Resumo Expandido do Texto da Pré-Tese no PPGEdu/UFPE. Recife, 2017; SOUZA, E. F de. Edilson Fernandes de Souza: Avaliação (set. 2017). Recife. PPGEdu/UFPE, 2017. Qualificação da Tese Os Saberes da Mata do Engenho Uchôa. Este espaço apresenta abordagens críticas e interdisciplinares relativas à produção da representação noticiosa da realidade social (jornalismo) sobre as mudanças climáticas e a sua influência na constituição do sentido social sobre a questão. É escrito pelo jornalista Robério Coutinho, mestre em Comunicação pela UFPE, com formação básica em Meteorologia pelo INPE/CPTEC, exassessor de imprensa do Laboratório de Meteorologia de PE, bolsista pesquisador da Rede Brasileira de Mudança Climática e autor de livros sobre o temática.
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Mídia Fora do Armário Jornalismo e construções identitárias Por Rui Caeiro
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assados 4 anos sobre o arquivamento da proposta de revisão da Resolução 001/99 que orienta a ação de psicólogos a respeito da homossexualidade, o debate voltou este ano a entrar em pauta. Se em 2013 a discussão, que popularmente ficou conhecida por “cura gay”, se deu por meio da proposta de emenda elaborada no seio de forças partidárias (representada pelo deputado João Campos, PSDB-GO), votada (e, antes de retirada, aprovada) na Câmara dos Deputados, este ano a discussão sobre o tratamento voltado à reorientação sexual entrou em pauta pela via Judicial, aprovada liminarmente depois de ação movida por alguns psicólogos. Nos dois casos, a justificativa é igual: a homossexualidade é um estado que pode ser tratado e portanto psicólogos não devem ser impedidos de prestar tais serviços a quem voluntariamente os procura. Ou seja, por meio do eufemismo “reorientação sexual”, é defendida a possibilidade de ser ofertada a “cura gay” para quem deseja se libertar de tal maleita. O foco é perversamente colocado sobre os direitos dos cidadãos - tanto daqueles que procurariam ajuda para se libertar da suposta doença quanto daqueles que, enquanto profissionais, estariam a sofrer censura de um projeto de sociedade que almeja a destruição populacional; em 2009, Rozângela Justino, que agora encabeça a ação judicial, comparava o ativismo “pró-homosexualismo” ao nazismo (http://origin.veja. abr i l. c om . br / 1 2 0 8 0 9 / h om o ss e x u ai s - p o d e m-mudar-p-015.shtml). Para que fique bem explícito o ataque aos direitos humanos de que falamos, alguns elementos devem ser tomados em conta: 1) psicólogos não são impedidos de prestar serviço a qualquer pessoa de orientação sexual dissidente que procure apoio para tentar sanar as dúvidas e sofrimentos que, em função de uma sociedade heterossexista, possa vivenciar; 2) tal apoio não pode pressupor a conversação da orientação sexual, posto que tal não existe (não existe qualquer prova científica de que a homossexualidade é uma doença, ou que possa ser modificada por meio de tratamentos médicos); 3) são inúmeros os casos documentados de como tais terapias são extremamente perigosas, resul-
tando no aumento exponencial de depressão e tentativas de suicídio (entre outros elementos) para aqueles/as que as experimentam – em 2014 o Comitê contra Tortura das Nações Unidas já alertava para isso, afirmando que as terapias de conversão aplicadas em pessoas LGBT deveriam ser erradicadas (http://www.nclrights. org/press-room/press-release/u-n-committee-raises-concern-about-lgbt-conversion-therapy-in-u-s/). Ao ser garantida “plena liberdade cíentifica” sobre a matéria a psicólogos, sem qualquer censura ou necessidade de licença prévia, o que está em causa é, como afirmado em nota pelo Conselho Federal de Psicologia (http://site.cfp. org.br/resolucao-cfp-0199-e-mantida-em-decisao-judicial/), a reentrada oficial da patologização da homossexualidade em solo brasileiro. Uma ação que ignora, ou finge ignorar, o contexto em que tal decisão se dá. Heterossexualidade compulsória Apesar de alguns avanços dos direitos de LGBTs no Brasil – por exemplo, a descriminlização/despatologização das orientações sexuais, algo que, é necessário frisar, continua a não alcançar, ou a merecer a devida atenção, para identidades de gênero não normativas –, a violência, nos mais variados âmbitos e intensidades, continua a ser uma constante para quem nega viver (mesmo que em segredo) de acordo com o ideal normativo (heterossexual e/ou cisgênero). De fato, violência e cura são duas palavras que LGBTs, não raras vezes, aprendem desde cedo que podem caminhar juntas – violência como cura (ou cura necessariamente penosa, tendo em conta o tamanho do pecado) para aprender a “ser homem de verdade” ou “mulher de verdade”, para corrigir trejeitos e gostos, violência sempre psicológica, muitas vezes físicas (a dificuldade de denunciar, de mapear, estupros corretivos, por exemplo, não os torna menos reais). Defendendo, o autor do texto, que a sexualidade não é algo inteiramente inato, mas mutável, construído, condicionado socialmente, sendo portanto, desde logo, impossível com-
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preender e viver desejos, práticas e identidade de forma inteiramente autônoma – e isso não é o mesmo que afirmar que tais elementos são inteiramente sociais, aprendidos, mas que a sua significânca e vivência se dá no âmbito de um contexto histórico-cultural concreto –, de onde decorre que é perfeitamente plausível a necessidade de apoio profissional para a auto-compreensão (nos termos do combate ao preconceito/violência, longe da “cura gay), cabe sublinhar as palavras de Helena Vieira, transfeminista, sobre o assunto: “não há possibilidade de se falar em liberdade de procurar a reorientação sexual, quando o mundo se organiza desde a matriz da heterossexualidade. Tudo é organizado, discutido, planejado, implementado tendo por norte o sujeito heterossexual: os afetos, a família, a política, as noções de saúde, de sexo, de bondade, de justiça, os papeis sociais. O sujeito homossexual é sempre, neste mundo, um sujeito em contradição com o mundo. Obviamente estar em contradição com a organização do mundo e da vida social tem um impacto negativo nos sujeitos, impactos que não são inerentes à homossexualidade, mas decorrentes da homofobia que existe socialmente. […] Se o mundo te rejeitasse, em casa, na escola, se você não visse que é possível existir com ‘normalidade’ fora dos padrões heterossexuais e então alguém dissesse que é possível reverter e mudar sua orientação sexual? Muitos homossexuais responderiam sim, que buscariam esse tratamento, mas não porque consideram nojento o desejo por pessoas do mesmo gênero, mas porque o mundo os pune. Não é liberdade isso” (https://www.facebook.com/ dantasdantasvieira/posts/1547294525335589?comment_id=1548970491834659&reply_comme nt_i d= 154897 1995167842&not if_t =fe e d _ comment_reply&notif_id=1506118140107028). A Mídia (im)parcial Muitas vezes comunicando os acontecimentos referentes à população LGBT a partir de um enquadramento que favorece os consensos hegemonicamente definidos – e desfavoráveis a esses sujeitos –, a maioria dos grandes veículos midiáticos posicionaram-se, neste caso, intencionalmente ou não, a favor da luta contra a decisão tomada pelo juiz da 14ª Vara Federal no Distrito Federal. Desde logo, o eufemismo “reorientação sexual”, como surge no documento oficial, foi substituído pelo mais popularmente conhecido “cura gay”, deixando claro, tendo em conta o contexto brasileiro – inclusive relem-
brando os atos de 2013 –, do que realmente está em causa. Reprovações surgiram, obviamente, nas redes sociais, blogues e por parte de alguns organismos, criticando a falta de imparcialidade, o alimentar do pânico entre a população e a publicação de falsas informações (afinal, o que estaria em causa não seria a “cura gay” mas o direito de homossexuais voluntariamente procurarem ajuda para os desejos que no seu íntimo julgam estar errados – aqui “estar errado” já não seria um estado, como a homossexualidade, mas uma essência, a verdade). A cobrança pela imparcialidade do jornalismo é ,na verdade, a cobrança pela ausência de interpretação, pelo simples espelhamento das falas e ações, pela, enfim, parcialidade de comunicar os acontecimentos nos termos daqueles que usam de eufemismos e objetividades nada neutrais para dar conta da realidade à sua imagem. Uma objetividade cínica que não apenas deve ser pedra basilar do jornalismo mas da própria ciência. Esse é, inclusive, um elemento que distingue 2013 do presente ano: são aqueles que estão ao serviço da saúde da população que afirmam que a homossexualidade pode deixar de causar sofrimento, pois pode ser eliminada. Diferentemente da luta política, tais sujeitos não estão imersos na luta por poder, pela definição da realidade – esse é um argumento que é necessário finalmente colocar em pauta, que seja debatido, se é numa sociedade verdadeiramente democrática que almejamos viver. Porque determinados corpos, desejos e práticas são considerados normais, que vozes podem e devem ser ouvidas, a construção desse conhecimento, a legitimidade das decisões e a aparente ação desinteressada daqueles que têm acesso privilegiado às instituições e discursos públicos estão no cerne da vida e morte de diferentes populações e projetos de sociedade. Não é sobre homossexualidade que a “cura gay” fala, não principalmente: o que está em causa é a manutenção da violência legítima, socialmente acertada, contra os sujeitos e utopias historicamente silenciadas.
Assinada pelo jornalista Rui Caeiro, mestre em Comunicação pela UFPE, a coluna ambiciona instigar reflexões que se debrucem sobre as relações que se estabelecem entre produção midiática/jornalística e a construção e vivência de identidades consideradas abjetas em nossa sociedade. O foco será em sexualidade e gênero.
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Opinião
Imersão audiovisual na nova paisagem urbana asiática Por Camilo Soares
A
s mudanças ambientais, sociais e subjetivas decorrentes da acelerada urbanização nas últimas décadas constituem um fenômeno que modificou intensamente a paisagem mundial. Além do inegável impacto negativo sobre a natureza e a saúde humana, tais transformações geográficas provocaram igualmente uma violenta mudança no equilíbrio social e econômico, mas também cultural e psicológico das populações locais. Na Ásia, a escala dessa metamorfose é ainda mais colossal, a exemplo da região chinesa do Delta do rio Pérola, que nas últimas décadas sofreu a maior transformação espacial vista na história da humanidade, segundo o Banco Mundial: de antigas vilas pesqueiras à mais extensa megacidade do mundo, ligando diversas municipalidades como Guangzhou (Cantão) e Shenzhen, até tocar nas margens de Hong Kong e Macau. As lentes de artistas visuais e cineastas não poderiam ficar imunes ao fenômeno, como atesta a mostra internacional M+ Screenings: City Limits, organizada nesse último agosto pelo M+ (Museu do Distrito Cultural do Leste de Kowloon), na Broadway Cinemateca de Hong Kong. Já faz algum tempo que o espaço não é mais considerado por filósofos, artistas e urbanistas como um simples dado objetivo, mas uma construção incessante de seus atores e revelador de experiências sociais e ambientais através de vivências materiais e subjetivas. Curiosamente, o cinema e suas linguagens deri-
vadas parecem ter desabrochado dessa sutil experiência do olhar sobre a cidade moderna emergente já na aurora dos primeiros filmes dos irmãos Lumière em 1895 (A Chegada do Trem na Estação Ciotat e A Saída dos Trabalhadores da fábrica Lumière em Lyon), aos primeiros passos da vídeo arte, quando Nam June Paik empunhou sua câmera Sony Portapak para captar, dentro de um táxi, a confusão do trânsito de Nova York decorrente da visita do Papa Paulo VI, em 1965, para em, seguida, mostrar as imagens brutas a amigos no café A Go-Go (a data precisa e circunstâncias dessa história são contestadas e mitificadas, mas a experiência urbana representada é incontestável). As obras selecionadas para a mostra City Limits também elaboram uma atenta observação sobre o viver urbano, contextualizadas no intrincado processo de modernização e globalização dos países asiáticos, especialmente a China. Dentro dessa perspectiva, tais filmes, vídeos e animações representam um olhar entre o testemunho e a apreciação subjetiva de um processo de mudança violento e muitas vezes traumático. Em Busca da Vida (2006), de Jia Zhangke, por exemplo, surgiu da urgência de registrar o iminente desaparecimento de uma enorme região histórica de mais de 2000 anos para a construção da maior represa do mundo. O filme de ficção foi curiosamente feito durante a visita do cineasta à região das Três Gargantas para filmar um
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documentário sobre o pintor Liu Xiaodong, quando o diretor sentiu a necessidade de fazer algo mais subjetivo para captar o impacto daquele processo na vida das pessoas comuns. Já o curta Ink City (2005), de Chen Shaoxiong foi realizado a partir de pinturas de nanquim de cenas urbanas, conjugando os contornos do concreto de viadutos e arranha-céus com retratos de transeuntes em seus caminhos cotidianos. Nessa contínua quebra de escala, o pintor marca idas e vindas entre uma paisagem de não-lugares e a subjetividade individual ou ainda entre um imediatismo incessante e a ancestralidade que a técnica de nanquim representa para a cultura chinesa. Tais percepções plásticas e audiovisuais evitam assim a representação distanciada dessa nova urbanidade, expressando mais o que Henri Lefebvre (1974, p. 15) chama de prática espacial, quando qualificava uma “projecão sur le terrain de todos os aspectos, elementos e momentos da prática social […], e isso sem abandonar um instante o controle global, a exemplo da sujeição de uma sociedade inteira à prática política, ao poder do Estado”. Os filmes não só refletem tal controle, como o problematizam nas sobreposições de fios narrativos contraditórios, construindo uma visão dialética desses espaços impostos. Em meios às ruínas do progresso, Jia Zhangke faz, por exemplo, um disco voador cruzar o céu ou um prédio decolar tal um foguete, cortando a suposta objetividade narrativa de um discurso desenvolvimentista, atinando para o absurdo da situação da China atual onde nada mais parece causar espanto. Tal disparate do real é também a maneira pela qual a artista visual Cao Fei, em Whose utopia (2006), põe em cena dançarinos dentro de enormes galpões de linhas de produção ou de estocagem de uma fábrica de lâmpadas Osram, evidenciando que as utopia de uma nação competitiva no mercado mundial é sustentada pela necessidade de uma massa de trabalhadores vinda do campo. Tal choque acarreta mudanças culturais importantes quando a subjetividade e sonhos de voar de uma juventude esbarra na fria, competitiva e exaustiva realidade de trabalho. David Harvey concorda com Lefebvre de que a revolução atual tem que ser urbana ou não será. Para tanto, Harvey apontou para aquilo que seria para ele uma das necessidades fundamentais da contemporaneidade, apesar de ser uma demanda ainda tão neglicenciada: o direito à cidade. Tal direito que vemos gritar nesses filmes não se refere apenas ao acesso individual aos recursos urbanos, mas sobretudo a “um direito de mudar a nós mesmos, mudando a cidade” (New Left Review 53, trad. Revista Piauí, #83, julho, 2013). Além disso, para Harvey, esse é um direito coletivo e não individual, já que “essa transformação depende do exercício de um poder coletivo para remodelar os processos de urbanização”. À sombra da destruição do patrimônio histó-
rico e da memória, da desapropriação e gentrificação dos centros urbanos, do individualismo e consumismo que se refletem na ansiedade e na desagregação social e afetiva da vida contemporânea, tais filmes propõem um olhar dialético sobre essas mudanças. Não fazem, no entanto, uma crítica simplista e radical, mas tecem uma reflexão expressa pelas propriedades da imagem em movimento. Quando um monge caminha em extrema lentidão numa agitada metrópole, a tensão normalizada por da temporalidade pós-industrial de um espaço funcional nos salta aos olhos, como no curta-performance Walker (2012) do diretor Tsai Ming-Liang, que saiu da Malásia para se tornar um dos grandes nomes do cinema de Taiwan. O filme propõe a experiência de desacelerar e perceber que talvez tenhamos desaprendido a olhar, na correria cotidiana, o mundo ao redor. Já em San Yuan Li (2003), um coletivo de doze artistas costura um retrato fragmentado de uma tradicional vila chinesa sitiada pelo insaciável crescimento urbano chinês, aqui representado pela cidade de Guangzhou e seus 12 milhões de habitantes. A sobreposição da frenética metrópole com o ritmo lento da ainda tradicional vila de San Yuan Li desvenda a marginalização, numa economia globalizada, de modos de vida da população mais desprovida. O reflexo da grande aeronave decolando sobre os campos encharcados de arroz é uma metáfora dessas tensões territoriais e temporais. Apesar da clara referência rítmica e visual, tal dialética difere tais filmes asiáticos das sinfonias urbanas das vanguardas da década de 1920 (como Manhatta de Paul Strand e Charles Sheeler ou Berlim, Sinfonia de uma Cidade, de Walter Rottmann), que exaltavam a morte do passado diante de um futuro já advindo. A mostra acaba se tornando uma breve expressão da necessidade de uma geração de artistas vivenciar tais mudanças, mapeando afetivamente esses espaços transformados, como Ulanda Blair, curadora da mostra, observa: “Representando realidades em rápida mutação da experiência urbana em um mundo cada vez mais homogêneo e fragmentado, os artistas do City Limits usam imagens em movimento para reformular o espaço urbano, posicionando-o não apenas como cenário, mas como um poderoso catalisador de história, memória e pertencimento”. A partir de propostas cinematográficas arrojadas, os filmes oferecem formas renovadas de percepção, pertencimento, sonhos e frustrações sobre as paisagens transitórias contemporâneas, unindo sensibilidade artística com a consciência, intrinsecamente política, do estar no mundo. Camilo Soares é Professor de Cinema na UFPE e doutor pela Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne.
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Opinião
Reflexões sobre a revolução russa no ano do seu centenário Por Michel Zaidan Filho
E
ste artigo pretende discutir algumas questões relacionadas à experiência da maior revolução socialista da história da humanidade, a Revolução Russa, que completa neste ano 100 anos. Como se trata de um movimento revolucionário que inspirou, pela teoria e pela prática, milhões de ativistas e militantes sociais no mundo, escolhemos alguns pontos desse grande acontecimento histórico para analisar, em perspectiva das lições e aprendizados para a luta social do século XXI. Primeiro, a questão ocidente versus oriente. Segundo, a relação nacionalismo, luta anti-imperialista e revolução. Terceiro, o lugar da democracia liberal, no processo revolucionário. Quarto, a dialética entre o nacional e o internacional. Quinto, a questão camponesa. Sexto, a relação entre democracia e socialismo. Sétimo, a questão da universalização do “modelo” da Revolução russa. I O primeiro ponto a se considerar sobre a Revolução Russa, numa retrospectiva de 100 anos, é se ela foi a última revolução europeia contra o capitalismo, do século XIX, ou se ela pode ser caracterizada como a primeira na periferia do mundo capitalista? É de se lembrar de que a Revolução Francesa iniciou um ciclo revolucionário, na Europa (e no resto do mundo), que se fecha com a derrota da Comuna de Paris (1781). Até a Comuna, é possível vislumbrar um conjunto de influências revolucionárias tais como: o anarquismo, o blanquismo, o socialismo pré-marxista etc. Ou seja, onde é patente a presença de ideias europeias e de militantes sociais europeus naquele movimento, sendo a influência das ideias de Marx muito pequena ou quase nula. (Vejam-se, a propósito, as críticas de Marx aos “comunards” franceses, nos manuscritos guardados no Museu de História Social de Amsterdam, e as de Lenin, no ensaio “As duas táticas da socialdemocracia russa” à Comuna de Paris). Já a Revolução Russa trai a participação decisiva dos bolcheviques e a orientação marxista na condução do movimento revolucionário, sem desprezar o papel de anarquistas, dos camponeses, solda-
dos e marinheiros. Sobre isso, há um longo debate entre revolucionários russos (não marxistas) e o próprio Marx sobre os caminhos disponíveis para a Revolução na Rússia, incluindo as possibilidades de uma passagem da antiga economia agrário-camponesa russa diretamente para o socialismo, muito ao contrário da ortodoxia engelesiana da necessidade de uma “revolução democrático-burguesa”. (Vejam-se as cartas de Marx a Vera Zazulitch, em comparação aos fragmentos publicados por Eric Hobsbawn, em “Formações econômicas pré-capitalistas”). Se for possível tomar a formulação leninista sobre o Imperialismo, e adotar a tese de que a Revolução se daria no “elo mais fraco” da cadeia imperialista, então temos de admitir que a Revolução Russa fosse a última grande revolução socialista europeia, já no século XX. É assim que se pode interpretar a análise de Gramsci sobre “a guerra de movimento”, em referência à revolução. E seu prognóstico de que as futuras revoluções no Ocidente seriam “guerras de posição”. (Veja-se Nota sobre Maquiavel, a Política e o Estado Moderno). Independentemente da controvérsia sobre a ortodoxia revolucionária dos bolcheviques e a natureza de sua revolução, é indiscutível que Lenin se louvará nas obras de Marx para defender a Revolução Russa. Como se sabe, nenhuma revolução se faz de acordo com um manual; ocorre sempre dentro de circunstâncias bem determinadas. E a despeito do estatuto teórico duvidoso de muitas das posições leninistas, podemos aceitar o caráter socialista da revolução, num contexto de guerra e cerco das potencias imperialistas à Revolução de Outubro. Nesse sentido, a Revolução Russa pode ser considerada a primeira Revolução Socialista (vitoriosa) da história contemporânea. E que teve um formidável efeito multiplicador das ideias revolucionárias no mundo inteiro: na Europa e fora dela. II Outro ponto importante tem a ver com a discussão sobre nacionalismo (ou luta anti-imperialista), democracia liberal e socialismo. Os que apontam na direção do “comunismo de guerra” dos primeiros anos, se dispõem a admitir que original-
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mente trata-se de uma revolução anti-imperialista, onde uma espécie de acumulação primitiva faz muitas concessões à propriedade agrária dos camponeses. Sendo, portanto, impossível caracterizar esse momento da luta revolucionária como uma construção socialista. É a etapa da chamada “Nova Política Econômica”, em que de fato abre-se um espaço para propriedade camponesa, a fim de que os camponeses apoiem a revolução, num momento crucial de sua existência. A defesa da Revolução é mais importante do que a socialização das terras, num contexto de uma pequena classe operária industrial e do oceano agrário que era a Rússia nesse então. Buscar uma base doutrinária em Marx, Engels, Kautsky ou Chayanov para justificar essas medidas é inútil e desnecessário. As medidas de Lenin se devem ao calor da hora e a urgência de garantir o apoio campesino á Revolução. Poder-se-ia objetar que tais concessões levariam a um reforço à mentalidade de proprietário do pequeno camponês. E que num momento seguinte, seria necessária a expropriação da pequena propriedade. Mas a questão foi adiada e coube a Stalin resolvê-la, pela força, desorganizando até hoje a agricultura russa.
III
Mais complicado é, sem dúvida, a questão da democracia liberal. Num momento em que a Assembleia Constituinte estava funcionando e mantinha a pluralidade partidária, tanto quanto os Conselhos de Operários e Soldados, os bolcheviques decidiram fechar a ele órgão de representação política e os Conselhos, sob a alegação de conspiração ou oposição contrarrevolucionária à nova ordem instituída. O que teria levado Rosa Luxemburgo a dizer que a democracia e a liberdade de expressão só se colocam para quem diverge de nós, não para quem pensa igual à gente. Na verdade, a questão da democracia no âmbito da cultura marxista-leninista sempre foi encarada como um expediente tático. Nunca como estratégia revolucionária. Seria necessário aguardar o pensamento de Antônio Gramsci e seus intérpretes, para que fosse possível repensar “a hegemonia como contrato”, ou “rousseunizar” Gramsci, como diz o ensaísta brasileiro Carlos Nelson Coutinho. (“Marxismo e Teoria Política”). O núcleo duro da teoria política marxista vê o Estado como um instrumento político à serviço da classe dominante. Dessa forma, a democracia só pode ser vista como um expediente tático, para acumulação de forças, em direção à revolução socialista. Daí o caráter das alianças políticas da classe operária e seu partido.
IV
Outra questão relevante é a dialética entre o nacional e o internacional, que depois estaria no centro do movimento comunista internacional, envolvendo Stalin e Trotsky. A revolução socialista é mundial ou pode fazer, inicialmente, concessões a minorias nacionais? – Como se sabe, desde “o” Manifesto Comunista”, Marx admite que a emancipação do proletariado moderno não pode se dá, isoladamente, neste ou naquele país. Tem de ser um movimento internacional, sob pena da contrarrevolução triunfar. Como o próprio capitalismo ajuda a escrever uma história mundial, a revolução socialista tem ser, também, em escala mundial. Mas as circunstâncias históricas onde ocorreu a Revolução Russa (tanto internas, quanto externas) foram determinantes no recuo estratégico e a defesa da União Soviética, durante o “comunismo de guerra”. Antes mesmo de Stalin proclamar a doutrina do “socialismo em um só país”, o próprio Lenin já reconhecia que era preciso consolidar a revolução e para isso, seria necessário fazer certas concessões ora aos camponeses ora às nacionalidades ora a burocracia residual do velho regime. Rosa Luxemburgo foi a primeira a chamar a atenção do líder bolchevique de que tais concessões poderiam representar, no futuro, uma ameaça ou entrave para a constituição de uma verdadeira República Soviética. Mas naturalmente prevaleceu a opinião de Lenin, depois muito reforçada por Stalin no debate com Zinoviev e Trotsky. Difícil seria, como em outros casos, achar uma segura base doutrinária para essa tese, já que se tratava de um arranjo tático numa conjuntura política crucial para a sobrevivência da Revolução (a propósito, leia-se “Um passo adiante e dois para trás” e “Esquerdismo: doença infantil do comunismo”, ambos de Lenin) Na verdade, quando se compara a possibilidade de uma revolução socialista na Europa com aquela que se deu na Ásia e depois, na América Latina e na África, é quanto se percebe o peso da questão nacional em relação ao internacionalismo proletário. A despeito, da Internacional Comunista ter sido pensada como “o estado maior da revolução mundial”, ela foi usada por Stalin em função das conveniências políticas (nacionais) da União Soviética. Veja-se, por exemplo, o que ocorreu com os comunistas na guerra civil espanhola. V Outro ponto muito discutido na experiência revolucionária russa (e fora da Rússia) é o do papel dos camponeses. É preciso dizer que Marx,
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diferentemente de Engels, Lenin ou Chayanov, nunca morreu de amores pelos camponeses e/ou a pequena propriedade rural. É conhecida a sua famosa expressão “um saco de batatas”, referindo-se ao campesinato francês, que sempre votava a favor dos Bonaparte. (Veja-se O Dezoito Brumário de Luiz Bonaparte). Seu companheiro Engels, e depois Lenin, é quem manifestaram uma maior acuidade política em relação à questão camponesa, na Europa e fora dela. O primeiro escreveu o conhecido artigo: “o problema camponês na França e na Alemanha”. E o segundo, sempre teve o maior cuidado de contemplar as reivindicações do pequeno campesinato no processo revolucionário, sobretudo na fase democrático-burguesa da revolução. A tendência do desenvolvimento do capitalismo no campo era a proletarização objetiva dos camponeses e sua transformação em operários. Mas, subjetivamente, as coisas não eram assim. Muitos alimentavam a ilusão da posse da terra, mesmo em condições de profundo endividamento. Não eram ideologicamente a favor da coletivização da terra. Se na Europa, ainda havia resquícios de uma mentalidade feudal ou camponesa entre os trabalhadores do campo, imagine na Rússia! Na verdade, a decisão de coletivizar (à força) a agricultura soviética foi de Stalin, numa espécie de acumulação primitiva do “socialismo em um só pais”. E essa decisão custou muito caro: desorganizou a agricultura soviética até hoje. Agora, como transformar isso numa teoria revolucionária, contemplando a situação particular dos camponeses, esse é o problema teórico. Máxime, para os países de desenvolvimento capitalista tardio. A não ser que os pequeno-camponeses fossem encarados como “aliados táticos”, numa certa fase da revolução. Depois, seriam descartados se não aderissem ao socialismo. Pessoalmente, considero a questão agrária ou camponesa como uma espécie de “ponto dollens” da teoria revolucionária do socialismo, sobretudo quando levado para a periferia do capitalismo. VI Já a questão da relação entre Democracia e Socialismo divide os marxistas há muito tempo. Marx, que não morria de amores pela “democracia burguesa”, pareceu não dá muita importância a essa questão. Apesar da tese dos marxistas contemporâneos, apoiados em Gramsci, apontarem para um processo de ampliação do Estado nas sociedades ocidentais, em razão da constituição de uma sociedade civil robusta e complexa, acho difícil encontrar no pensamento de Marx abrigo para uma estratégia democrática radical para o advento
do socialismo. Existe, é verdade, o testamento de Engels falando do avanço eleitoral da socialdemocracia alemã, no final do século, e da possibilidade de uma vitória eleitoral do proletariado naquele país. Entretanto, esse testamento tornou-se mais um problema – na história das disputas internas no pensamento socialista, do que uma solução. Foi preciso esperar os debates do pós-guerra, para ver a elaboração daquilo que veio a ser conhecido como “eurocomunismo” e de uma estratégia democrática (processual) para o advento do socialismo. Nada disso havia no período anterior à duas grandes guerras. O debate entre “guerra de movimento” e “guerra de posição” ainda não tinha se colocado com tanta força para os partidos socialistas do ocidente, como depois do refluxo da onda revolucionária. A questão parecia simples: Revolução Permanente, com a transmutação da revolução democrático-burguesa em revolução socialista, sob a liderança da classe operária, ou as revoluções por etapa, respeitando-se o ritmo, o caráter específico e a direção dos processos revolucionários. Como ficou conhecido, a primeira tese foi defendida por Trotsky, em sua famosa obra “A revolução Permanente”, apoiando-se no voluntarismo de Marx no contexto da revolução de 1848-1851 na França. A segunda, por Stalin e seus seguidores, em vários escritos de ocasião. Concordando-se ou não com o ponto de vista de Trotsky, é necessário convir que sua tese estivesse mais próxima da de Marx do que a de Stalin ou mesmo das concessões táticas do gênio de Lenin. De toda maneira, a sorte da questão democrática no interior da dialética revolucionária russa, é semelhante à da questão camponesa. Nunca se achou um fundamento estratégico sólido ora para o etapismo ora para a revolução permanente. O que há são escritos políticos de ocasião, com exceção naturalmente do livro de Trotsky. Mas isso dividiu o movimento revolucionário entre aqueles que acham ser a revolução um processo mundial, sem etapas rumo ao socialismo, e outros que defendiam uma sequência necessária entre uma etapa democrático-burguesa e a revolução socialista propriamente dita. Infelizmente, como as outras questões, esse debate produziu consequências políticas sérias para a revolução nos países onde os Partidos Comunistas tinham que atuar, incluindo o caso do Brasil, da China, do México etc. Mas essa é outra história que não cabe ser tratada aqui. A tese veiculada no 6º Congresso da internacional Comunista falava, por exemplo, de uma revolução democrático-burguesa anti-imperialista que devia realizar tarefas expropriatórias e políticas preparatórias para a revolução socialis-
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ta. Esta tese hegemônica, inspirada na Revolução Chinesa, se chocava com as elaborações nacionais de outros PCs que acentuavam a necessidade de uma revolução democrático pequeno-burguesa, bem mais limitada do que aquela. Mas prevaleceu a tese da IC e os partidos comunistas se alhearam dos processos revolucionários reais, dirigidos pela chamada “pequena-burguesia”. E os responsáveis pelas elaborações nacionais foram punidos e afastados dos PCs. VII Finalmente, chegamos à questão crucial: pode a revolução russa servir de modelo para a revolução socialista no mundo inteiro ou para aqueles países chamados de “coloniais” ou “neocoloniais” ou “dependentes”, como diziam as teses do 6º Congresso da IC? Faço minhas as palavras da grande revolucionária Rosa Luxemburgo, em seu opúsculo “A Revolução Russa”: não se pode transformar a necessidade em virtude, ou seja, é impossível a universalização de um tipo de revolução, que se deu em circunstâncias históricas e políticas muito particulares, a despeito da formulação leniniana do “elo mais fraco da corrente” numa época de dominação imperialista. Eram louváveis e necessários os esforços da socialdemocracia alemã e russa de analisar a especificidade do “capital monopolista” ou do “capital financeiro”, no final do século 19. E houve várias tentativas: “O Imperialismo – Etapa superior do capitalismo”, “O capital financeiro”, “Acumulação de Capital” e outros. Mas nada disso explicaria ou anteciparia as condições dramáticas em que ocorreu a revolução. Deve-se à enorme frente de militantes (anarquistas, social-revolucionários, bolcheviques) e ao gênio político de Vladimir Lênin todas as concessões táticas e estratégicas necessárias para o triunfo da onda vermelha, da defesa da Revolução e a própria constituição da URSS. Mas a leitura atenta de toda obra de Lenin, acrescida da de Trotsky e Stalin, não nos autoriza a construir um modelo universal de Revolução Socialista calcado nas vicissitudes da experiência soviética. Tanto os problemas que se apresentaram na construção socialista russa, como os advindos da mera transposição de táticas e estratégias do movimento comunista internacional para os movimentos socialistas ou de libertação nacional nos países da periferia do capitalismo foram resultantes de uma racionalização política equivocada e que trouxe mais prejuízos à causa da revolução mundial do que benefícios. De certo modo, a “queda do muro de Berlim” – tomada como uma expressão metafórica para falar da crise do socialismo realmente existente – é produto dessas contradi-
ções, ambiguidades e problemas mal resolvidos, que foram simplesmente transformados em solução. Cabe aos revolucionários do século XXI colher as preciosas lições de grande (e única) revolução socialista para repensar a sua prática revolucionária. A rica experiência da Revolução de outubro oferece um catálogo completo dos desafios e das possibilidades de se construir um mundo mais justo, mais humano e digno para toda a humanidade.
Referências: ““ MARX, K” Guerra civil em França” (com o posfácio de Engels). Obras escolhidas. Marx-Engels. São Paulo, Alfa ômega, 1975. ENGELS, F. “o problema camponês na França e na Alemanha”. Obras escolhidas, Alfa ômega, São Paulo, 1975. CHAYANOV. A questão camponesa. Buenos Aires, Cadernos PyP, 1978 ““LENIN, V.” As duas táticas da socialdemocracia na revolução democrático-burguesa”. São Paulo, Obras escolhidas. Alfa Ômega, 1976 TROTSKY, L. A revolução permanente. Madrid, Granica, 1972 MARX, K. O Dezoito Brumário de Luiz Bonaparte, Rio de janeiro, Paz e Terra. 1974 GAMSCI, A. Nota sobre Maquiavel, a Política e o estado Moderno. Rio, Civilização Brasileira. 1974 LUXEMBURGO, R. A revolução Russa. Porto, Centelha, 1972 ATAS do 6º Congresso da internacional Comunista. Buenos Ayres. PyP, 1972 ZAIDAN, M. A formação do primeiro grupo dirigente do PCB. Saabrucke, Deutschland, Novas Edições Acadêmicas, 2017. ZAIDAN, M. 0 PCB e a Internacional Comunista. São Paulo, Vértice, 1989 LENIN, V. Imperialismo: etapa superior do capitalismo. Obras escolhidas. São Paulo, Alfa Ômega, 1975. MARX, k. Manifesto do Partido Comunista. Obras escolhidas. São Paulo, Alfa Ômega, 1975 LUXEMBURGO, R. Acumulação de Capital. Rio Zahar, 1973 Professor-titular do Centro de Filosofia e Ciências Humanas-UFPE
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Opinião
Maiakovski e a Revolução Russa Por Túlio Velho Barreto
N
o ano em que a Revolução Russa completa 100 anos, vale a pena lembrar o poeta georgiano Vladimir Vladimirovitch Maiakovski e sua relação com aquele que se tornaria um acontecimento histórico fundamental para a compreensão do século XX. Mas este artigo não deixa de ser também uma homenagem a um dos maiores poetas do século passado. E pode servir ainda como uma introdução panorâmica para quem tiver interesse em conhecer mais profundamente o poeta e o seu tempo. Falar de Maiakovski significa necessariamente referir-se à poesia (“Sou poeta. É justamente por isto que sou interessante”, escreveu ele em sua autobiografia); à ideia de suicídio (o seu próprio); à revolução (a “sua” revolução); e ao amor e à paixão (dedicados sobretudo a Lília Brik). É isso o que se faz aqui. Embora Maiakovski, em sua breve autobiografia Eu mesmo, escrita entre 1922-1928, diga que nasceu “[...] em 7 de julho de 1894 (ou 1893 - há divergência entre a opinião de mamãe e a da folha de serviço de meu pai [...]”, Boris Schnaiderman, na introdução ao livro que organizou ao lado dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos, Maiakovski - Poemas, que será aqui citado várias vezes, afirma que, na realidade, o poeta nasceu em 7 de julho de 1893, destacando que há certo consenso a respeito dessa data. O nome de Maiakovski está intimamente relacionado à história da Revolução Russa (ou Soviética ou Bolchevique) de outubro de 1917. Maiakovski, embora de geração artística anterior à Revolução - mas com apenas 24 anos quando esta ocorreu -, participou ativamente dos principais acontecimentos artísticos do início do século XX na Europa. Tanto na literatura como nas artes plásticas, no teatro e no cinema foi, antes de tudo, um ativista, agitador e mentor de movimentos artísticos e culturais de vanguarda - quer em sua fase futurista, época de sua inseparável blusa amarela; quer junto aos construtivistas; ou, ainda, como ator e autor/diretor de teatro e cinema (ver MTV; PM - as obras das quais as citações foram retiradas são indicadas em nota no final deste artigo e estarão indicadas pelas abreviações de seus títulos ao longo do texto). Tais movimentos alcançaram, pode-se dizer, a maioridade com a Revolução, pois encontraram ali - naquele primeiro momento - clima propício para tanto: “Aderir ou não aderir? Esta questão não se colocava para mim. Era a minha revolução. Trabalhei em tudo que me chegava às mãos”, afirma em sua pequena autobiografia (AAP).
Para compreender, mesmo razoavelmente, sua vida e seu trabalho artístico, é fundamental que se leve em consideração as enormes contradições e convulsões que caracterizaram o início do século XX. Somente dessa forma pode-se entender o dilaceramento profundo que tomava corpo no poeta e de seus “companheiros de viagem” - para usar aqui uma expressão do filósofo alemão Nietzsche, na primeira parte de Assim falava Zaratustra. Pois, diz Maiakovski, “a poesia toda - é uma viagem ao desconhecido”. Para tanto, basta lembrar a Primeira Grande Guerra (1914-18), que, aliada a uma grave crise econômica, sacudiu a Europa, repercutindo, de forma particular, no atrasado Estado russo e em sua pobre população. A Revolução Soviética ocorreu assim, dentre outras razões, como resposta a esses acontecimentos; é o tempo da promessa de “paz, terra e pão” para todos (lema dos Bolcheviques). Para os soviéticos os primeiros anos após a Revolução foram de guerra civil e de fome, mas também de construção de algo novo, não experimentado, então único no mundo; em todos os sentidos, um salto à modernidade, mas, igualmente, ao desconhecido. Não é exagerado afirmar que foi no campo das artes onde se refletiu primeiramente o rompimento das amarras com o passado; e aqui se fala de um passado feudal. Ali surgiram mais rapidamente, no momento da ruptura, as necessidades de plena liberdade. Foi também no campo da criação artística que se fez sentir, mais tarde, de forma mais sensível, a mão-de-ferro da tirania e da burocracia estatal. Mão que, num primeiro instante, tentou moldar os artistas, para depois calá-los. Aliás, a tese estalinista da “cultura proletária” significou para as artes o mesmo que a do “socialismo em um só” para a política e a economia. Nesse contexto, Maiakovski vai tentar, em vão, vencer o seu próprio suicídio, recusando-se a ser moldado, rejeitando o silêncio, enfrentando os burocratas; tudo isso, enfim, em nome de “sua” revolução. Contudo, antes desta ocorrer, ainda em 1916, Maiakovski já escrevia, em seu poema Flauta Vertebrada: “Penso muito amiúde/ talvez fosse melhor/ dar à vida minha vida/ o ponto final de um balaço”. Para escrever depois: “– Transeunte!/ Esta é a Rua Jurovsky?/ Como uma criança diante de um esqueleto/ ele fixa o olhar em mim/ os olhos arregalados,/ querendo me evitar:/ ‘Esta é a Rua Maiakovski/ há milhares de anos./ Foi aqui, à porta da bem-amada,/ que ele se matou’./ Quem?/ Eu? Eu me matei?’” (MAP).
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Não só a ideia, mas, sobretudo, o suicídio como experiência próxima o perseguiu. Em 1925, o poeta Serguei Iessiênin, dois anos mais jovem que ele, suicidou-se. Ao despedir-se, Iessiênin escreveu que “Se morrer, nesta vida não é novo,/ tampouco há novidade em estar vivo”, arrancando uma contestação amarga de Maiakovski: “Nesta vida/ Morrer não é difícil./ O difícil é a vida e seu ofício”. Dois lados extremos de uma vida que parecia flertar todo o tempo com a morte estão claros em trechos desse mesmo poema, A Serguei Iessiênin, quando Maiakovski concorda que é “melhor/ morrer de vodka/ que de tédio”, para mais adiante fazer uma convocação: “Por enquanto/ há escória/ de sobra./ O tempo é escasso –/ mãos à obra./ Primeiro/ é preciso/ transformar a vida,/ para cantá-la –/ em seguida” (MP). Vinte dias antes de seu suicídio, Maiakovski, já bastante isolado, inaugurou, contando apenas com o apoio do Komsmólkaia Pravda (jornal da Juventude Comunista) uma amostra, Vinte Anos de Trabalho. Falando durante a abertura o poeta fez uma síntese de suas atividades literárias, ou seja, de sua própria vida: “[...] nunca trabalhei para fazer concessões, antes pelo contrário, tudo em mim se organizou de maneira a sempre ter procurado desagradar a todos. O meu trabalho fundamental é a injúria, o sarcasmo, contra tudo o que me pareça injusto e se torna necessário combater”. Retornando ao início de suas atividades literárias, quando aos 19 anos participou da publicação Bofetada no Gosto Público, prossegue o poeta: “A minha atividade literária destes vinte anos converteu-se, essencialmente, e para falar com toda a franqueza, num bofetão literário, no melhor sentido. A todo o momento foi necessário defender esta ou aquela posição revolucionária na literatura, lutar por ela, combater contra a inércia que já penetra nos nossos treze anos de República” (PCFV). Observe-se o ímpeto com que Maiakovski já criticava a paralisia que invadia o Estado soviético, isso em 1930, como também a força e a autenticidade dessa luta, não só contra seus inimigos e inimigos de “sua” revolução, mas, sobretudo, a luta de um artista contra a burocracia ali instalada. E, como era característico ao poeta, continua, na mesma conferência, em busca de outro contraponto: “[...] é claro que, no dia seguinte, [...] armo-me de nova coragem e de mangas arregaçadas volto para a luta, afirmando o meu direito de existir como escritor da revolução e pela revolução, não como mero fantoche [...] desejo mostrar que escritor revolucionário não é um fantoche, cujas poesias se transcrevem num livro para depois jazerem nas estantes até se cobrirem de pó, mas sim um homem que participa ativamente da vida cotidiana e do socialismo” (PCFC). O poeta do sarcasmo, por exemplo, está presente no poema Hino ao Crítico, de 1915: “Da paixão de um cocheiro e de uma lavadeira/ Tagarela, nasceu um
rebento raquítico,/ Filho não é bagulho, não se atira na lixeira./ A mãe chorou e batizou: crítico”. Ou, com certa dose de panfletagem, em Come Ananás, de 1917: “Come ananás, mastiga perdiz,/ teu dia está próximo, burguês” (MP). O artista que quer participar da vida cotidiana está nos cartazes construtivistas feitos em sua fase mais ligada ao Estado, mas mesmo assim considerados revolucionárias obras de arte. O Maiakovski moderno está representado pelos versos de Quadro Completo da Primavera: “Folhinhas./ Linhas. Zibelinas só-/ zinhas” (MP), escrito em 1913. O poeta por inteiro está em A Plenos Pulmões, de 1929-30, impossível de ser fragmentado. Declamar seus poemas em atividades públicas, políticas ou literárias foi uma das principais características do poeta. Esta foi a tarefa a que se propôs Maiakovski: ser poeta em meio às pessoas comuns, levar seu trabalho literário a todos os soviéticos e, em particular, às “massas operárias”. De fato, suas palestras e saraus tornaram-se famosos. Certa vez, durante a apresentação de um poema que terminava afirmando “Com Lênin em nossas cabeças/ E com um fuzil em nossas nas mãos [...]”, um soldado em meio à multidão gritou: “E com tua poesia em nossos corações, Camarada Maiakovski!” (MAP). É evidente que tais acontecimentos deveriam emocioná-lo, pois devia sentir-se gratificado pelo reconhecimento de seu esforço em unir as dimensões de poeta e ativista. É do lado mais próximo à Revolução o longo poema Vladimir Ilitch Lênin, que corresponde a todo um livro e foi escrito imediatamente após a morte do dirigente, em 1924, aqui publicado pela Fundação Maurício Grabois, em edição de 2012. Certa vez, o próprio Lênin disse sobre o poeta: “Por acaso li ontem no ‘Izvestia’ uma poesia de Maiakovski sobre um tema político [...], há muito tempo não experimentava um prazer tão grande do ponto de vista político e administrativo. Em seu poema ele ridiculariza as reuniões e zomba dos comunistas que se reúnem o tempo todo. Não posso julgar o aspecto poético, mas no que se refere à política, está perfeitamente justo” (MVO). Nessa poesia, O Reunismo, de 1922 - portanto, apenas cinco anos da Revolução -, Maiakovski descreve uma cena em que, após inúmeras tentativas de ser atendido numa repartição pública, e de ver as pessoas cortadas ao meio porque têm de participar de duas reuniões ao mesmo tempo, a personagem implora, depois de uma noite de insônia e angústias: “Oh, peço somente uma/ mais uma reunião/ para acabar com tantas reuniões” (MAP). Além da Revolução como tema de seus poemas, Maiakovski dedicou importante parte de seus trabalhos para falar do amor. E não deixava margem para qualquer dúvida acerca do lugar do amor em sua vida e obra: “O amor é a vida, o essencial. É ele que provoca os versos, a ação, o resto. O amor é o coração de tudo.
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Se for interrompido, tudo morre, se torna supérfluo, inútil. Mas se o coração trabalha, ele se manifesta em tudo. Sem ele eu sou como morto” (MVO). E o amor para ele tinha nome, face e corpo: Lília Brik, com quem viveu uma complexa e apaixonante relação por muitos anos. De fato, Lília Brik já era casada com Óssip Brik quando Maiakovski conheceu a ambos, em 1915. Logo ela se tornaria a sua grande paixão. Teriam vivido uma relação a três, mas o que é fato é que os eles viveram sob o mesmo teto durante algum tempo. Lília também suicidou-se, aos 86 anos, em 1971. Entre 1925 e 1930 não mais estiveram juntos, embora exista um bilhete de Maiakovski dirigido a ela neste período. E para Lilitchka, como a chamava, escreveu certa vez: “[...] nenhum som me importa/ afora o som do teu nome que eu adoro” (MP). E, como síntese de seus sentimentos por ela, escreveu um belo e emocionante poema, Amo, que tem um trecho citado de forma recorrente pelo artista plural Jorge Mautner em suas canções e apresentações: “[...] Nos demais,/ todo mundo sabe,/ o coração tem moradia certa,/ fica bem aqui no meio do peito,/ mas comigo a anatomia ficou louca./ Sou todo coração –/ em todas as partes palpita” (MAP). É por Lília Brik que Maiakovski vai, pelo menos momentaneamente, rejeitar a ideia do seu suicídio: “E não me lançarei no abismo,/ e não beberei veneno, e não poderei apertar na têmpora o gatilho”, tentou prometer em seu poema Em lugar de uma carta, de 1916, dedicado a ela (MP). Mas, no dia 8 de abril de 1930, o poeta cede e seu coração deixa de palpitar. Suicida-se, exatamente com um tiro no peito, o mais representativo poeta - e talvez mesmo o mais importante - da então nascente República dos Soviets. “Como se diz: ‘o incidente está encerrado/ O barco do amor’/ quebrou-se contra a vida cotidiana./ Estou quite com a vida/ Inútil passar em revista/ as dores/ as desgraças/ e os erros recíprocos” (MAP), escreve na carta de despedida. Sobre o suicídio, a abominável figura do secretário-geral do Partido Comunista, Joseph Stálin, num boletim, tenta mostrar que “sua morte nada tem a ver com sua vida social e literária”, como se fosse possível separá-las, sobretudo quando esta foi voluntária. Stálin, então, decide, por decreto, fazer de Maiakovski “o poeta oficial da República Soviética” - reconhecimento que o poeta certamente dispensaria. Talvez por isso mesmo tenha escrito na despedida: “[...] E nada de falatórios. O defunto tinha horror a isso” (MAP). Ao saber da morte, de como ela ocorreu e do conteúdo do boletim oficial, León Trotsky, um dos líderes da Revolução Russa e o principal adversário de Stálin no campo da esquerda, analisou assim tais fatos: “’O barco do amor/ quebrou-se contra a vida cotidiana’, escreveu Maiakovski, nos seus versos. Em outras palavras, ‘suas atividades sociais e literárias’ cessaram de elevá-lo das confusões da vida cotidiana, para colocá-
-lo ao abrigo de golpes insuportáveis que o atingiram. Como escrever ‘não tem nada a ver?’”. Opondo-se então à versão oficial, Trotsky tenta mostrar, em seu artigo sobre a morte do poeta, o quanto era impossível “encontrar harmonia artística” num período de tanta convulsão e dificuldades no que ele considera “limite não cicatrizado de duas épocas”. É mais uma vez Trotsky, ainda comentando o boletim oficial, que nos dá uma luz sobre a situação política da União Soviética no momento do suicídio do poeta (1930), ele próprio já banido do partido e do país: “Demonstraram, assim, que não compreenderam tanto o grande poeta como as contradições da época”, afirma em texto publicado, entre nós, em seu livro Literatura e Revolução (Zahar Editores, 1980). Aliás, o oficialismo com que Maiakovski foi tratado durante tantos anos praticamente impediu que o poeta modernista e libertário do “bofetão literário” fosse reconhecido plenamente pelos leitores mais desavisados. E, como se vê acima, três dos principais artífices e dirigentes da Revolução Russa se definem ao exporem suas visões acerca da vida, da obra e/ou da morte do poeta: Lênin ressalta a sua crítica ao burocratismo; Stálin age como um burocrata diante de sua obra e morte; já Trotsky, o mais intelectualizado deles, procura analisá-las à luz das condições históricas. De toda forma, pode-se dizer que a poesia de Maiakovski não deixou de ser pendular, isto é, podia ir de um extremo a outro ou de vários pontos a outros tantos. É possível encontrar versos mais trabalhados do ponto de vista linguístico, como Balalaica, de 1913, de antes da Revolução Russa, em que se lê: “Balalaica/ [como um balido abala/ a balada do baile de gala]/ [como um balido abala]/ abala [com balido]/ [a gala do baile]/ louca a bala/ laica” (MP) - poema que só foi encontrado em 1961. Como ressalta o crítico Schnaiderman, trata-se de um rico exemplo da poética de Maiakovski, que o concebeu da forma como está transcrito acima, embora sua versão final corresponda às palavras fora dos colchetes. Nesse caso, o poeta partiu de fórmula mais complexa para uma mais simples, eliminando certa “brincadeira” com as palavras e as rimas, mas sem perder a riqueza da poesia cria um brilhante (quase) haikai. Destaque-se que este poema foi musicado e gravado, em sua forma original, por Flaviola, no Recife, nos anos de 1970, em seu álbum Flaviola e o Bando do Sol. Poemas como Balalaica foram concebidos ao lado de versos mais formais, que colidiam intencionalmente com o “realismo cultural”, a tese estalinista da “cultura proletária”, então preconizado pelo regime em vigor. E com o mesmo ímpeto com que se esforçava para que a revolução alcançasse a área artística, Maiakovski frustrava-se diante das inúmeras dificuldades impostas pelos partidários do “realismo cultural” e, não admitindo ceder - mas não só por isso, é provável -,
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termina por dar um fim à própria vida. No entanto, como ressalta Boris Schnaiderman, um dos principais tradutores e introdutores da obra de Maiakovski entre nós, não é difícil reconhecer a existência de unidade na obra do poeta, bem como uma clara linha evolutiva ali desenvolvida, firmada no que há de comum em tudo que produziu com coerência, como artista e ativista, sendo consciente, desafiante e original. Maiakovski e o Brasil Um artigo sobre Maiakovski não poderia deixar de ressaltar a sua ligação com o Brasil, ainda que isso tenha se dado por meio da literatura e do teatro. De fato, em 1913, o poeta escreveu a sua peça Eu, em que afirma algo bastante curioso: “Dizem que em algum lugar/ parece que no Brasil,/ existe/ um homem feliz” (MVO), o que dá uma ideia já de sua visão cosmopolita do mundo ao mirar um país tão distante do seu. Bem, feliz ou não, para quem quiser conhecer melhor a vida e a obra desse monumental poeta, que tem como pano de fundo a própria história da Revolução Russa, existem várias publicações em nossa língua, algumas citadas ao longo deste artigo. São livros que vão desde tradução de muitos de seus poemas, suas peças teatrais, bem como críticas acerca de suas obras literárias e teatrais, além de biografias, como a mais recente Maiakovski, O Poeta da Revolução, de Aleksanor Mikhailov (Record, 2008), e ainda relatos de viagem, a exemplo de Minha Descoberta da América, do próprio Maiakovski (Martins Fontes, 2007) e a breve autobiografia do poeta. Registre-se que, no Brasil, muito cedo, alguns tomaram contato com a obra de Maiakovski. Já em 1924 - com o poeta ainda vivo -, Mario de Andrade refere-se a ele e ao Futurismo Russo em A Escrava que não é Isaura, no que parece ter sido a primeira vez entre nós. Já em 1958, no manifesto “Plano Piloto para a Poesia Concreta”, publicado na revista noigrandes, os irmãos Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari citam Maiakovski (“sem forma revolucionária não há arte revolucionária”), iniciando o que seria um longo e profícuo diálogo com o poeta, como destaca Gilberto M. Teles em Vanguarda Europeia e Modernismo Brasileiro (Vozes, 1982). Já na década seguinte, em 1964, Eduardo Alves da Costa escreveu o conhecido poema “No caminho, com Maiakovski”, comumente atribuído ao russo, muito difundido nos anos de ditadura civil-militar no Brasil (“Na primeira noite eles se aproximam/ e roubam uma flor/ do nosso jardim./ Na segunda noite, já não se escondem:/ pisam as flores,/ matam nosso cão,/ e não dizemos nada./ Até que um dia/ o mais frágil deles/ entra sozinho em nossa casa,/ rouba-nos a luz e,/ conhecendo nosso medo,/ arranca-nos a voz da garganta./ E já não podemos dizer nada.”) O poema está em livro ho-
mônimo de Eduardo Alves da Costa, publicado pela Editora Nova Fronteira, em 1985. No início da década de 1980, no Rio de Janeiro, foi montada uma peça sua, O Percevejo, de 1928, que fala da sociedade no século XXX (“onde não existam amores servis”). No texto, Maiakovski, por meio da personagem central, pede para ser ressuscitado naquela data (“Quero viver até o fim o que me cabe./ Minha vida”). Caetano Veloso musicou o poema O Amor, que era então cantado no final da peça e faz parte do longo poema A Propósito Disto, de 1923. A música foi gravada, ainda na década de 1980, por Gal Costa (1981) e Cida Moreira (1983). N’O Percevejo, mais uma vez, Maiakovski faz referência aos brasileiros, que estariam no zoológico para ver a personagem, descongelada anos depois, em uma exposição para um mundo já soviético. Passados 100 anos da Revolução Russa, e diante de um mundo (ainda) em crise, como em seu tempo, talvez devêssemos mesmo ressuscitar o poeta que um dia desafiou o sol, com ele bebeu chá e dele ficou íntimo para afinal firmarem um pacto para que ambos brilhassem para sempre, como narrado em seu inusitado e belo poema A extraordinária aventura vivida por Vladimir Maiakovski no verão na Datcha, de 1920.
Referências: As obras aqui citadas, das quais foram retirados trechos de poemas e depoimentos de Maiakovski, estão identificadas com as abreviações abaixo, sendo que as respectivas traduções são dos autores dos referidos livros ou estão ali indicadas: AAP - MAIAKOVSKY, V. V. Autobiografia e Alguns Poemas. Lisboa: Forma, 1975. MAP - GUERRA, Emílio C. Maiakovski. Antologia Poética. São Paulo: Max Limonad, 1981. PCFV - MAIAKOVSKY, V. V. Poética. Como Escrever Versos. São Paulo: Global, 1977. MVO - PEIXOTO, Fernando. Maiakovski. Vida e Obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. PM - SCHNAIDERMAN, Boris; CAMPOS, Haroldo; CAMPOS, Augusto. Maiakovski. Poemas. São Paulo: Perspectiva, 1982. MTV – RIPELLINO, Angelo Maria. Maiakovski e o Teatro de Vanguarda. São Paulo: Perspectiva, 1971.
Túlio Velho Barreto é pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco - FUNDAJ.