Prosa
Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 1 Jornalismo
Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade | PPGCOM/UFPE
ISSN 2526-2440 | e cidadania A Crise Ambiental
tem prazo de validade?
Revista
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Opinião Livro-reportagem
Real E mais...
2017
nº 17 | Novembro
JORNALISMO E CIDADANIA
Expediente
Editor Geral | Heitor Rocha professor PPGCOM/UFPE
Editor Executivo | Ivo Henrique Dantas doutorando PPGCOM/UFPE
Editor Internacional | Marcos Costa Lima Pós-Graduação em Ciência Política/UFPE
Articulistas |
PROSA REAL
Alexandre Zarate Maciel doutorando PPGCOM/UFPE
MÍDIA ALTERNATIVA
Xenya Bucchioni doutoranda PPGCOM/UFPE
NO BALANÇO DA REDE
Ivo Henrique Dantas doutorando PPGCOM/UFPE
JORNALISMO E POLÍTICA
Laís Ferreira mestranda PPGCOM/UFPE
JORNALISMO AMBIENTAL
Robério Daniel da Silva Coutinho mestre em Comunicação UFPE
PODER PLURAL
Rakel de Castro doutoranda PPGCOM/UFPE e UBI
CIDADANIA EM REDE
Nataly Queiroz doutoranda PPGCOM/UFPE
COMUNICAÇÃO PÚBLICA
Ana Paula Lucena doutoranda PPGCOM/UFPE
JORNALISMO INDEPENDENTE
Karolina Calado doutoranda PPGCOM/UFPE
MÍDIA FORA DO ARMÁRIO
Rui Caeiro mestre em Comunicação UFPE
MUDE O CANAL
Ticianne Perdigão doutoranda PPGCOM/UFPE
COMUNICAÇÃO NA WEB
Ana Célia de Sá Doutoranda em Comunicação UFPE
NA TELA DA TV
Mariana Banja mestranda em Comunicação UFPE
Alunos Voluntários | Lucyanna Maria de Souza Melo Yago de Oliveira Mendes
José Tarisson Costa da Silva
Colaboradores |
Alfredo Vizeu Professor PPGCOM - UFPE
Túlio Velho Barreto Fundação Joaquim Nabuco
Gustavo Ferreira da Costa Lima Pós-Graduação em Sociologia/UFPB
Luiz Lorenzo
Núcleo de Rádios e TV Universitárias/UFPE
Ada Cristina Machado Silveira Professora da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM
Antonio Jucá Filho Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco – FUNDAJ
Auríbio Farias Conceição
Professor do Departamento de Letras e Humanidades – DLH/ UEPB
Leonardo Souza Ramos
Professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC –Minas Gerais e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Potências Médias (GPPM)
Rubens Pinto Lyra
Professor do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas da UFPB
Editorial Prosa Real
Opinião | Glaudston Lima
Comunicação na Web
Opinião | Marcos Lima e Eduardo Oliveira
Opinião | Antônio Jucá
Jornalismo Independente
Opinião | Jean de Mulder
Opinião | Mariana Yante
Opinião | Rubens Pinto Lyra
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Índice
Opinião
Jornalismo Ambiental | 3 | 4 | 6 | 8 | 10 | 14 | 16 | 18 | 20 | 22 | 24 Arte da Capa: Designed by Freepik.com Acesse: facebook.com/ Jornalismoecidadania | issuu.com/revistajornalismoecidadania
Editorial
Por Heitor Rocha
Apressão que a opinião pública pode exercer ou exerce efetivamente em algumas circunstâncias é algo que fica evidente na forma como os representantes políticos desempenham suas funções, demonstrando apreço com o reconhecimento que suas decisões podem ter da sociedade em face da sua retitude ética ou, no sentido contrário, menosprezando a capacidade da opinião pública de funcionar como um tribunal da reputação e da honra cuja sentença de desaprovação é capaz de condenar o transgressor das normas à execração pública e a sofrer os rigores do isolamento imposto nas relações sociais, mas também das leis, quando obriga as instituições a cumprirem suas obrigações, no caso o Judiciário e o Ministério Público.
No último mês tivemos acontecimentos que desafiam a compreensão da consciência coletiva da nação, como a declaração do diretor geral da Polícia Federal, Fernando Segóvia, considerando que só a mala com 500 mil reais recebida pelo assessor de Temer não configuraria evidência de ação criminosa. Certamente, ele estava mais empenhado em fazer boa figura com a autoridade que lhe indicou para o cargo do que com possíveis consequências sociais negativas para a sua reputação. Parece ser o caso em que a mentalidade patrimonialista (apropriação dos bens públicos por poderosos interesses particulares e de grupos) – cuja máxima é “manda quem pode, obedece quem tem juízo” – desdenha da capacidade de discernimento da opinião pública. Neste desvio pode ser identificada também a atitude reincidente de um ministro do STF que concede decisões favoráveis a presos de seu círculo familiar e/ou da patota da lavanderia de recursos públicos, sem nenhum pudor, completamente cético de qualquer represália legal.
Os esforços para conceder certo ar de dignidade a estas imposturas confirmam, somente, a constatação de que a maioria das pessoas não está corrompida e precisa ser enganada. Porém a retórica sofística primária não consegue ocultar o desprezo diante da possibilidade de se verificar a autoridade do público, como aconteceu com os congressistas que pretendiam com a PEC 37 proibir o Ministério Público de investigar e foram obrigados a rejeitá-la diante das manifestações populares nas ruas, com medo de não renovarem seus mandatos em 2014. Esta postura pública cínica, certamente, precisa de certa reverência dos veículos de comunicação, como aconteceu com recente editorial do jornal Estado de São Paulo (31/10/2017) que classificou de custo com a boa governança o gasto de 12 bilhões de reais de recursos públicos através de emendas parlamentares para evitar o acatamento no Congresso da denúncia da Procuradoria Geral da União que pretendia investigar o Presidente Temer. Citando um professor da Fundação Getúlio Vargas, o editorial conclui considerando o descarado episódio de obstrução de justiça uma demonstração de que o governo Temer “governa com o Congresso, e não com-
prando o Congresso”.
No livro A espiral do silêncio, Opinião Pública: nossa pele social, Elizabeth Noelle-Neumann (2003, p. 206) comenta o episódio de um assassinato de um fiscal federal ocorrido na Alemanha em 1977, quando a cobertura midiática foi fraca e não conseguiu articular o tribunal da opinião pública para condenação do crime: “Apesar de comentários editoriais tibiamente condenatórios, que apenas ocultavam uma aprovação subjacente, a publicidade produziu uma impressão de que se podia estar secretamente satisfeito por saber que um fiscal federal havia sido assassinado e que isto podia se expressar publicamente sem correr o risco de isolamento. Algo semelhante acontece sempre que uma conduta tabu seja apresentada publicamente – pelo motivo que seja – sem que a qualifiquem de má, de algo que se deve evitar ou condenar. É muito fácil saber se nos encontramos com uma notoriedade que estigmatiza ou com uma que perdoa um comportamento. Dar a conhecer uma conduta que viola normas sem censurá-la energicamente a faz mais adequada socialmente, mais aceitável. Todos podem ver que esta conduta já não isola. Os que rompem normas sociais anseiam com frequência receber as mínimas mostras de simpatia pública. E sua avidez está justificada, porque desse modo a regra, a norma, se torna debilitada”. Como sinal positivo de dignidade e decência podemos reconhecer a relevante decisão da juíza do Distrito Federal que suspendeu a propaganda do governo federal que utilizava recurso público para enganar a população sobre os “benefícios” que a reforma da previdência poderá trazer para o país. Outro episódio merecedor de registro foi o brilhante posicionamento da jornalista Paula Cesarino Costa, Ombudsman da Folha de São Paulo, publicada em 19 de novembro último, analisando a quase inexistente cobertura do jornal (apenas uma foto-legenda) sobre o protesto de mais de 10 mil mulheres realizado em várias cidades do País contra a PEC 181 que criminaliza o aborto nos casos de estupro ou feto anencéfalo, enquanto concedeu espaço para divulgar uma página apócrifa criada em rede social por mulheres “ditas feministas” apoiadoras e Jair Bolsonaro. Para a jornalista que desempenha com admirável honradez o tão importante instituto do ombudsman, “o jornalismo é uma das ferramentas responsáveis por construção de identidades. Certas ações ou omissões são moldadoras de tal processo de produção social”.
Heitor Costa Lima da Rocha, Editor Geral da Revista Jornalismo e Cidadania, é professor do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.
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Prosa Real
Livro-reportagem, jornalismo e contexto
Por Alexandre Zarate Maciel
Livro-reportagem tem prazo de validade?
Será que o livro-reportagem transcende mesmo alguns dos principais cânones do jornalismo diário, a periodicidade e a atualidade? Ou o livro escrito por jornalistas tem prazo de validade? Tendo escrito o livro A ilha, — que ganhou a sua 37ª edição em 2017 ao completar 41 anos, apesar de ser um relato da Cuba dos anos 1970 — Fernando Morais, em entrevista ao autor desta coluna, disse que acredita que a obra mantém a sua atualidade e interesse por “ser o retrato de um país em um determinado momento”. Para Laurentino Gomes o prazo de validade de um livro-reportagem depende do tema abordado: “Claro, o historiador do futuro vai ler esse livro como fonte de informação. Mas o leitor comum tende a ir perdendo interesse por ele à medida que esse assunto for ficando muito no passado”. Mas no seu caso específico, em que trabalhou assuntos muito distantes no tempo, o valor da efeméride faz com que, “provavelmente daqui a 200 anos”, alguém vai querer ler o livro 1808. Editor da Companhia das Letras, Otávio Costa lembra que alguns lançamentos, os chamados instant-books, “livros sobre fatos de um décimo de segundo, algo de atualidade muito imediata”, naturalmente até podem durar, mas não precisam, pois só tratam de assuntos muito contemporâneos ao leitor. “Mas a nossa grande vocação como editora é fazer livros que resistam ao tempo. Ainda que o contexto retratado em dez anos não seja mais o mesmo, a ideia é que o livro, por si, se sustente e permaneça uma leitura interessante, embora, entre aspas, desatualizada”.
Autor do mês: Fabiana Morais
O caso da jornalista pernambucana Fabiana Moraes é um exemplo de transição por várias etapas do jornalismo. No Jornal do Commércio, no qual trabalhou por 20 anos, foi jornalista, editora assistente e repórter especial. Grandes
projetos de reportagem sob o seu comando foram premiados e ampliados para o formato de livro. Enquanto seguia nas redações, Fabiana Moraes fez o mestrado em comunicação na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e o doutorado em sociologia na mesma instituição. Em 2016, deixou a redação para assumir o cargo de professora efetiva no núcleo de Design e
Comunicação do Campus do Agreste da UFPE, com intenção de alternar obras acadêmicas e livros com reportagens. O seu livro-reportagem Os Sertões (2009), quando publicado, anteriormente, em forma de caderno especial no Jornal do Commércio, venceu o Esso Regional. Outro
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especial da jornalista, Nabucos em pretos e brancos, foi transposto para livro em 2011. Fruto de uma série vencedora do prêmio Esso de Reportagem. Em O nascimento de Joyce (2015) Fabiana Moraes resolveu acrescentar no livro, além da reportagem original, dois capítulos extras. Em “Aproximação e distanciamento”, revela os bastidores do seu convívio algumas vezes conflituoso com o ex-agricultor João Batista, que se transformou em Joyce após a cirurgia de redesignação sexual. E, no capítulo final, “O subjetivo como elemento político”, em um tom acadêmico, defende o jornalismo de aproximação mais intersubjetiva com os personagens, termo que ela prefere em vez de fonte de informação. Refletindo sobre os personagens, sobretudo aqueles fora dos holofotes, com os quais costuma dialogar, Fabiana Moraes (2015, p. 159) defende a prática, em qualquer suporte, de um jornalismo que se utilize, “sem constrangimentos, da subjetividade, reconhecendo-a como um ganho fundamental na prática da reportagem e mesmo da notícia cotidiana”. Essa postura envolve uma profunda autoanálise profissional, levando o repórter a assumir “que não é possível dominar o mundo exterior – e o Outro – em sua totalidade”. Mesmo assim, pode buscar, pelo diálogo intersubjetivo mediado pelas práticas jornalísticas, englobar “as fissuras e as subjetividades inerentes à vida”. O resultado, nunca definitivo e sempre complexo, é “uma produção na qual o ser humano é percebido em sua integralidade e complexidade, com menos reduções”.
Iluminando conceitos: Adelmo Genro Filho e a grande reportagem
Ao teorizar sobre a reportagem e toda a sua configuração de maior contextualização e aprofundamento, Adelmo Genro Filho (2012, p. 208) considera que a “particularidade (enquanto categoria epistemológica) assume uma relativa autonomia ao invés de ser apenas um contexto de significação do singular”. Dessa forma, ela própria procura a sua “significação na totalidade da matéria jornalística, concorrendo com a singularidade do fenômeno que aborda e dos fatos que o configuram”. Assim, na reportagem, e, acrescenta-se aqui, em muitos casos, no livro-reportagem, “a singularidade atinge a particularidade sem, no entanto, superar-se ou diluir-se nela”, atingindo algo próximo do que ocorre na arte. Tratando do caso específico do jornalismo literário, particularmente como foi desenvolvido pelos norte-americanos, Genro Filho (2012, p. 210) considera que a busca do particular-es -
tético ou o típico permitiu a esses jornalistas “a percepção de certos aspectos que o simples relato jornalístico cristalizado na singularidade não comportava”. Mesmo assim, essa categoria não seria preponderante, pois os recursos literários seriam utilizados como “instrumento para a dramatização do acontecimento e a revelação mais explícita – e não apenas insinuada ou pressuposta – do conteúdo universal do fenômeno reproduzido”. Embora esses recursos dêem a ilusão no espectador de vivenciar os acontecimentos, o leitor vai continuar na sua postura de certo distanciamento, pois sabe que eles são “reais” e ele realmente não os viveu. Na arte, o efeito de catarse é mais eficaz, na ótica de Genro Filho, pois essa realidade não é mais do que um “sonho” do autor que pode ser compartilhado e vivenciado como “verdadeiro” pelo leitor. O pesquisador admite que em reportagens raras que consigam sintetizar “aspectos lógicos e emocionais” de forma plena o jornalista pode realmente fazer com que os espectadores ou leitores, como no caso do livro-reportagem, sintam-se como “testemunhas e participantes dos fatos reais”. Porém, cético, acrescenta que “não vale a pena substituir um bom jornalismo por má literatura”.
Referências:
GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo. Série Jornalismo a Rigor, volume 6. Santa Catarina: Editora Insular, 2012.
MORAIS, Fabiana. O nascimento de Joyce: transexualidade, jornalismo e os limites entre repórter e personagem. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2015.
_______, Fabiana. Os sertões. Recife: Cepe editora, 2010.
_______, Fabiana. Nabuco em pretos e brancos. Recife: Massangana, 2012.
Elaborada pelo professor do curso de Jornalismo da UFMA, campus de Imperatriz, Alexandre Zarate Maciel, que está cursando o doutorado em Comunicação na UFPE, a coluna Prosa Real traz, todos os meses, uma perspectiva dos estudos acadêmicos sobre a área do livro-reportagem e também um olhar sobre o mercado editorial para esse tipo de produto, os principais autores, títulos e a visão do leitor.
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Opinião
Reinvenção da Intimidade e Viver com HIV e AIDS
Por Glaudston Lima
Aexperiência com HIV e AIDS é vivida como a presença de um estrangeiro no corpo que ativa as imaginações de ameaça e morte, um desejo persecutório parece invadir o corpo, instalando efeitos da ordem da angústia, tais como: perda de peso, náuseas, fragilidade imunológica, desinvestimento sexual, ameaças de discriminações, quebra da imagem social e a possibilidade de morte, geram os conflitos nas
imagens de si e do corpo. E o que se é? O que imaginamos, falamos e vivemos, nesse caso, as agruras das representações no imaginário cultural, de ordem moral, sobre o sexual.
A partir dos primeiros casos de AIDS no Brasil, em 1980, a epidemia trouxe os sintomas inscritos no corpo e na gramática da discriminação que impactaram a subjetividade das pessoas ao viverem com o HIV/AIDS. Na origem da epidemia houve uma associação da
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“doença” a “grupos de risco” (prostitutas, homossexuais e usuários de drogas injetáveis) que sofreram a pecha de trazerem a “peste” e a morte. Os estigmas e os estereótipos destinados a eles serviram de envelopes para lidar com a epidemia.
No compromisso de resistir ao contexto de discriminação, a Gestos apareceu para oferecer um ambiente onde à escuta psicológica a pessoas com HIV e AIDS possibilitasse a expressão das representações imaginárias e simbólicas que afetam e paralisam a vida. O primeiro passo foi saber sobre o processo histórico de aparecimento do HIV/AIDS, pois só assim se reconhece as dificuldades, dúvidas e incertezas que se estendem desde o período inicial (década de 80) até os dias atuais. É necessário saber que houve avanços nas tecnologias de tratamento e prevenção, mas encontramos um ambiente ainda precário nas respostas sociais e nos diversos sentidos dos cuidados endereçados à complexidade de cada pessoa que vive essa experiência.
A clínica praticada, desde o início, encontrou na psicanálise os conceitos que ajudam a entender os discursos que pretendem alienar o sujeito ao desejo do Outro. O efeito dessa alienação resulta na identificação do sujeito à imagem que lhe é ofertada. A noção de corpo e sexualidade impulsiona para a ideia de um corpo estranho, traduzindo a experiência de viver com HIV e AIDS na ordem do sujeito do mal-estar corporal.
O estudo de Freud (1919/1969), especialmente em seu trabalho intitulado “O estranho” apresenta uma busca geral sobre o termo: “O estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar”. A definição de Freud (1919/1969) serve como articulação entre o termo estranho e o diagnóstico de HIV, assim pode-se perguntar: o que esta remete ao conhecido, ao há muito tempo recalcado? Que representações recalcadas ela reinvoca? Quais as representações e imagens sobre o corpo e a sexualidade acionadas no diagnóstico? As pessoas que vivem com HIV passam a terem o sentimento de estranheza do seu corpo? O que HIV passa a ser um estranho que há em mim?
Diante do diagnóstico do HIV/AIDS, o desejo das pessoas que vivem com HIV e AIDS é da ordem do esconder e esquecer. Esconder do seu convívio social para não sofrer com os estigmas e o preconceito. E esquecer, na ilusão de que o não pensar e não falar aliviará o sofrimento. O efeito da atividade clínica é o
aparecimento de novas possibilidades de vida no tempo, o tempo é transformado em uma experiência, menos cronológica, mais subjetiva, assim outras e novas questões tomam a cena no cenário de viver com uma “doença” carregada de estigmas, basicamente, ligados à moral sexual e seus efeitos no imaginário social. As respostas buscadas na clínica são transformadas em apostas: o que posso esperar de mim e do Outro? Como vou me posicionar frente ao viver com HIV e AIDS?
Referências:
Ceccarelli, P. R. Acaso, repetição e sexualidade: como colocar “camisinha” na fantasia? In: Guedes Moreira, A. C.; Ribeiro de Oliveira, P. de T. & Piani, P. P. F. (orgs.). Cuidando da saúde – práticas e sentidos em construção. Belém: Pakatatu, 2011.
Fernandes, Maria Helena. Corpo: clínica psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.
Freud, S. (1919/1969). O estranho. Obras completas, ESB, v. XVII. Rio de Janeiro: Imago.
Freud, S. (1940/1972). A divisão do ego no processo de defesa. Obras completas, ESB, v. XXIII. Rio de Janeiro: Imago.
Forbes, Jorge. Inconsciente e Responsabilidade: psicanálise do século XXI. Barueri, SP: Manole, 2012.
Lima, Glaudston. Reflexões sobre o inquietante de ser portador de HIV/Aids. Revista Tempo psicanalítico, Rio de Janeiro, v. 44.2, p. 271-284, 2012.
Nasio, J.-D. Meu corpo e suas imagens. Rio de Janeiro: ZAHAR, 2009.
Miller, Jacques-Alain. O osso de uma análise. Rio de Janeiro: ZAHAR, 2015.
Nilo, Alessandra. Mulher, violência e AIDS: explorando interfaces. Gestos: Recife, 2008.
Polistchuck, L. Mudanças na vida sexual após o sorodiagnóstico para o AIDS: uma comparação entre homens e mulheres. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Saúde Pública. Portal da Saúde, Ministério da Saúde do Estado de São Paulo, 2010.
Rocha, Zeferino. Os destinos da angústia na psicanálise freudiana. São Paulo: Escuta, 2000.
Glaudston Lima é Mestre em Psicologia, professor das Faculdades ESUDA e FAINTVISA, com formação em Psicanálise na EPP e IPLA (São Paulo).
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Comunicação na Web
Jornalismo, Sociedade e Internet
Por Ana Célia de Sá
Convergência midiática e apropriações do webjornalismo
Aconvergência midiática integra plataformas e conteúdos, numa reconfiguração das relações culturais, sociais, tecnológicas e de mercado. A amplitude deste processo é percebida por Jenkins (2009, p. 30): “A convergência não ocorre por meio de aparelhos, por mais sofisticados que venham a ser. A convergência ocorre dentro dos cérebros de consumidores individuais e em suas interações sociais com outros. Cada um de nós constrói a própria mitologia pessoal, a partir de pedaços e fragmentos de informações extraídos do fluxo midiático e transformados em recursos através dos quais compreendemos nossa vida cotidiana”.
A internet, palco das transformações digitais, proporciona a circulação multidirecional de produtos baseada em interatividade, coletividade e dinamismo, com uma performance conjunta de velhas e novas mídias voltada mais à interação do que à substituição. Jenkins (2009, p. 347, 348) observa que a “[...] cultura da convergência está sendo moldada pelo crescente contato e colaboração entre as instituições de mídia consagradas e as emergentes, pela expansão do número de agentes produzindo e circulando a mídia, e o
fluxo de conteúdo pelas múltiplas plataformas e redes”.
Uma das faces da convergência no webjornalismo é a multimidialidade dos produtos noticiosos. O profissional que atua na internet tem ao seu dispor um espaço virtual simbolicamente ilimitado e recursos digitais variados (áudio, vídeo, fotografia, arte gráfica e texto escrito) capazes de se associarem, formatando produtos completos aos sentidos do internauta. A agregação de conteúdos em diferentes plataformas e linguagens é um importante recurso de aprofundamento dos fatos, em conexão direta com os preceitos da qualidade da notícia. “No mundo da convergência das mídias, toda história importante é contada, toda marca é vendida e todo consumidor é cortejado por múltiplas plataformas de mídia” (JENKINS, 2009, p. 29).
O cruzamento de mídias, articulado por hiperlinks, deve ser pensado desde a concepção até a finalização do produto, enxergando o potencial de cada recurso da web, de modo a evitar a mera justaposição de plataformas. Isso porque, na comparação com os meios de comunicação tradicionais, o ambiente on-line possui características peculiares que modificam a fruição do material noticioso e a relação entre produtor e usuário, tais como a não linearidade, a produção colaborativa, a construção coletiva do conhecimento, além da dilatação espacial e da cultura do
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tempo real.
Prado (2011) destrincha as plataformas midiáticas e seus usos na internet. O formato MP3 e o recurso do podcasting – por meio do qual é possível ouvir gravações por streaming ou download – facilitaram a disponibilização do áudio na internet, tanto para uso conjunto com outras mídias quanto para a reprodução da programação radiofônica comum. Independentemente do tipo de transmissão, a produção on-line deve ser pensada para atender a um público diferenciado, desinteressado pela programação em fluxo das emissoras de rádio tradicionais.
“O público que passa por uma rádio no formato audiocast pode tornar-se assíduo e usufruir de um canal em que ele possa interagir para solucionar suas dúvidas e assim adquirir mais informações dentro dos temas que envolvem seus interesses” (PRADO, 2011, p. 130). Isso não significa, entretanto, o fim dos conteúdos homogeneizados na rede. Eles existem, porém iniciativas independentes começam a ganhar força e aparecem como alternativa ao modelo pasteurizado avesso ao padrão participativo da rede.
A autora continua seu percurso ao tratar de vídeos, imagens e animações gráficas capazes de agregar rico conteúdo informativo. Embora acredite na possibilidade de contextualização e aprofundamento por meio de textos escritos, Prado (2011) deixa clara a importância de ampliar plataformas para o enriquecimento da notícia.
“O que se constata é que, com a soma de material gravado, a reportagem ganha em contexto, em aprofundamento. Não que em texto não se consiga contextualizar ou aprofundar, não é isso, é que o vídeo e/ou o áudio podem trazer emoção, estados de espírito e, assim, agregar informação visual e auditiva complementando a reportagem” (PRADO, 2011, p. 146).
O comentário reitera a necessidade de pensar a notícia multimídia como um produto integrado, e não apenas como uma simultaneidade de plataformas, o que pode resultar em repetição do material escrito ou em relatos isolados que pouco conversam entre si. A possibilidade de uso das linguagens escrita, visual e sonora em um mesmo espaço, a constante atualização dos fatos e a interação com o usuário ampliam a linha do tempo da informação, como lembra Prado (2011), com reflexos na compreensão da notícia.
Neste cenário, a figura do jornalista deve estar atrelada à profissionalização, à qualidade de conteúdos e à credibilidade. Para alcançar este patamar, a formação do profissional deve ser repensada, numa visão multitarefa, multidisciplinar e gestora, o que não deve ser confundi -
do com a sobrecarga de atividades. Adequado às tecnologias digitais e ao perfil participativo do novo público, o jornalismo tenta recompor seu posto formal na comunicação social e renovar as rotinas produtivas em sintonia com os anseios do usuário.
A compreensão da dinâmica das mídias digitais e o preparo do jornalista, no entanto, não são os únicos fatores que interferem na construção de um produto multimídia bem-sucedido. É preciso considerar também a estrutura das redações digitais. No viés técnico, é necessária a atualização de softwares e hardwares capazes de viabilizar a produção de áudios, vídeos, imagens, infográficos e, até mesmo, textos escritos. No que diz respeito aos recursos humanos, é importante ponderar sobre a quantidade de profissionais e a distribuição das atividades, uma vez que a produção multimídia requer tempo e dedicação dos jornalistas, um paradoxo perante a cultura do tempo real observada na internet.
Conforme já vislumbrado, a inovação tecnológica relaciona-se à aquisição de novas potencialidades jornalísticas, embora a primeira não determine a segunda. A relação entre esses fatores ultrapassa questões referentes ao aumento da produtividade e à aceleração de ritmos produtivos. Ela alcança o conteúdo noticioso, as mudanças na estrutura das redações, nas rotinas de trabalho jornalísticas e na relação com o público (FRANCISCATO; TORRES; SANTOS, 2010). Embora a tecnologia seja fundamental para viabilizar as mudanças, os impactos mais estimulantes estão nas relações sociais, condutoras da vida humana.
Referências:
FRANCISCATO, Carlos Eduardo; TORRES, Dijna Andrade; SANTOS, Getúlio Cajé dos. Tecnologia e desenvolvimento na produção jornalística. IN: SCHWINGEL, Carla; ZANOTTI, Carlos A. (Orgs.). Produção e Colaboração no Jornalismo Digital. Florianópolis: Insular, 2010.
JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. Tradução de Susana Alexandria. 2. ed. São Paulo: Aleph, 2009.
PRADO, Magaly. Webjornalismo. Rio de Janeiro: LTC, 2011.
Ana Célia de Sá é jornalista e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (PPGCOM-UFPE).
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Opinião
A Crise Ambiental e os Sinais de Catástrofes
Por Marcos Costa Lima e Eduardo Oliveira
Ofalecido sociólogo alemão Ulrich Beck (1998) já havia dito, vinte anos atrás em seu livro “A Sociedade de Risco”, que a humanidade se tornou ameaçada pelos efeitos colaterais de suas tecnologias e de excessos expansionistas. O aumento da temperatura global, do nível dos oceanos, a sua acidificação e outros impactos graves associados estão afetando as áreas costeiras e já são visíveis em diversas partes do mundo. Sabemos hoje que as regiões do Ártico e do Antártico têm sofrido perdas de áreas geladas perenes, com danos sobre os oceanos e desaparecimento de peixes. A ONU, em um relatório de 2015, repetiu a assertiva de Beck ao dizer que a sobrevivência de muitas sociedades e o sistema de suporte biológico do planeta estão em risco.
As reflexões do sociólogo Jason Moore têm por objetivo entender a historia dos últimos cinco séculos de forma que nos ajudasse a responder aos desafios que nos deparemos hoje em dia. Durante as últimas quatro décadas, segundo ele, nós tivemos uma “aritmética verde” como abordagem para a crise. Os ambientalistas e outros grupos radicais têm levantado o alarme sobre estas crises que vêm impactando o planeta, mas nunca realmente pensaram em como agrupá-las. Pensadores ambientalistas têm dito uma coisa e, então, feito outra, pois reclamam que os humanos são parte da natureza e que tudo no mundo moderno é sobre nosso relacionamento com a biosfera. Mas, quando eles começam a organizar e analisar os fenômenos, eles retornam ao sentido “Sociedade + Natureza”. Como se esta relação não fosse tão intima e direta e imediata como ela realmente é.
“Eu penso que muitos de nós entende intuitivamente – mesmo em nossos quadros analíticos deixados para trás – que o capitalismo é mais do que um sistema econômico, e ainda mais do que isso um sistema social”; o capitalismo é uma forma de (des)organizar a natureza, humana e não humana. Muitos o percebem como desorganização, outros como organização e, uma boa parcela da humanidade não se põe a questão.
A premissa do livro de Jason Moore (2015) é que nós precisamos quebrar o dualismo “natureza/sociedade” que tem prevalecido em muito do pensamento que ele intitula “vermelho” ou “verde”. De onde vem esta ideia e por que é tão artificial, tão absorvida sem maiores questionamentos? Segundo ele a ideia de que os homens estão fora da natureza tem uma longa história. É uma criação do mundo moderno. Muitas civilizações antes do capitalismo tiveram o sentido de que os humanos eram distintos.
Mas nos séculos 16, 17 e 18 esta poderosa ideia emergiu - e veio articulada com a violência do imperialismo e o despossuir, o expropriar dos camponeses. E que uma série de recomposições do que significava ser um ser humano, particularmente nas divisões em torno de raça e gênero, passou a ser adotada. Adam Smith falava em “sociedade civilizada”, que incluía alguns humanos, sobretudo os europeus, mas não a ampla totalidade deles. Muitos eram colocados na categoria “natureza”. E tidos como algo a ser controlado, dominado e postos a trabalhar e, quiçá um dia, serem civilizados.
Claude Lévi-Strauss escreveu em 1951 para a UNESCO um livro marcante, intitulado Raça e História; neste brilhante pequeno livro, um libelo contra a ideia de progresso, desenvolveu o conceito de selvagem que para ele fora um artifício dos europeus para justificar, não apenas as violências, as mortes e o aprisionamento e mesmo a escravidão dos povos encontrados nas Américas. O catolicismo necessitava de uma justificativa para a questão, uma vez que segundo a Bíblia, todos os homens eram iguais. Pois denominaram estes habitantes de “selvagens”, seres que não eram humanos, pois estavam do lado da natureza, não falavam língua humana e, assim, eram como bichos que podiam ser mortos sem compaixão (Strauss, 1951).
Soa muito abstrato, mas o mundo moderno foi realmente baseado nestas ideias de que alguns grupos humanos eram tidos como “sociedade”, mas a maioria ia para a caixa da “natureza” (Chaterjee, 2004). Foi uma ideia poderosa que surgiu não apenas porque cientistas, cartógrafos ou agentes coloniais houvessem decidido que fosse uma boa ideia, mas porque um longo processo que unia mercado, indústria, império e novas formas de ver o mundo que vão junto com uma larga concepção de revolução científica, daquilo que é verdadeiro e chancelado por cientistas e setores dominantes. Esta ideia de natureza e sociedade esta enraizada em outros dualismos do mundo moderno: o capitalista e o trabalhador; o Ocidente e o Oriente e o Resto (SAID, 2007); homens e mulheres, brancos e negros; civilização e barbárie. Importante assinalar o deslizamento semântico, pois justamente os europeus se intitulavam “civilizados”, quando barbarizavam povos diferentes, que falavam diferente, que se expressavam diferentemente. A maioria destes dualismos, entre tantos, encontraram suas raízes no conceito dual “natureza/sociedade”, que tem sido uma pratica pervasiva e até hoje atualizada.
Para Jason Moore é necessário entender que o capi-
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talismo é co-produzido por humanos e pelo restante da natureza, sobretudo para entendermos a crise contemporânea, em geral atribuída aos aspectos econômicos. Hoje sabemos que a dimensão da crise é, digamos, multidimensional. Não se pode falar de um sem o outro e, ao superarmos o dualismo, nós poderemos ter um conhecimento mais aproximado da crise atual. Uma crise singular com muitas expressões: a financeira, que é pervasiva e afeta a dimensão do emprego, da agricultura, da saúde, da educação, mas também uma outra mais emergente, que é a extinção da vida no planeta – derrubada de florestas, degradação dos rios, pesticidas, aquecimento global, derretimento das glaciais, que aparecem como puramente ambientais mas são provocados pela ação humana. Como diz Jason Moore – Wall Street é sem sombra de dúvidas uma das formas de (des) organizar a natureza.
Há hoje uma rica literatura que faz convergir o entendimento que os seres humanos, pelos desgastes acelerados que têm feito incidir sobre a natureza, estão perdendo para uns, ou já perderam, para outros, as possibilidades de reverter os impactos. A filósofa da ciência Isabelle Stengers contrasta o fato de que há 50 anos atrás havia uma grande fé nas inovações tecnológicas que eram então sinônimo de progresso. Mas, com a aceleração dos desgastes e impactos duros sobre a natureza, tal “fé cega” sofreu fissuras: “A confiança foi profundamente abalada. Não é nada assegurado que as ciências, como as conhecemos, pelo menos, estão equipadas para responder às ameaças do futuro; por outro lado, com o que chamamos de “economia do conhecimento”, é relativamente certo que os cientistas não deixarão de propor respostas, no entanto, não serão suficientes para permitir e evitar a barbárie” (Stengers, 2009, p. 27). Olhando pelo lado do papel dos Estados, Stengers entende que eles desistiram de todas as possibilidades que lhes permitiriam assumir suas responsabilidades e confiaram ao jogo livre do mercado mundial a importância do futuro do Planeta. O que intitulamos de captura dos Estados pelo grande capital.
Não é outra a argumentação de Jason Moore (2016) em livro mais recente, intitulado Anthropocene or Capitalocene onde argumenta que o tão bem recebido conceito de Antropoceno, que deu ao químico holandês Paul Crutzen no ano 2000 o premio Nobel, quando afirmou que a biosfera e o tempo geológico têm sido fundamentalmente transformados pela atividade humana. Daí a necessidade de um novo conceito de tempo geológico, que incluísse a humanidade como uma força geológica maior se fez necessário. Pois bem, Jason Moore considera o novo conceito importante, mas discorda dele, sobretudo, por dois aspectos relevantes: seja porque o Antropoceno crê excessivamente na Ciência e na Tecnologia, seja porque entende que o capitalismo surgiu com o carvão e o vapor, quando para Moore a destruição ambiental acelerou no início do capitalismo, no final do século XV, quando dos procesos coloniais em escala planetária. Moore entende que o conceito de Antropoceno reduz o mosaico da ativi-
dade humana na teia da vida a uma dimensão abstrata, a uma Humanidade homogênea. Ele remove a desigualdade, a mercantilização, o imperialismo, patriarcado, e muito mais do problema da humanidade-natureza. Sobretudo porque, cartesianamente, separa homem da natureza. Para ele, a história do capitalismo é uma relação de capital, poder e natureza: um todo orgânico. Para o capitalismo, a Natureza é “barata” (“cheap-nature”) em um duplo sentido, torna os elementos da Natureza “baratos” no preço; e também para barateá-los, degradá-los ou torná-los inferiores em um sentido ético-político.
Um outro cientista muito respeitado, Johan Rockström, professor de ciência do meio ambiente com ênfase em recursos hídricos e sustentabilidade global na Universidade de Estocolmo e diretor executivo do Stockholm Resilience Centre publicou um surpreendente documento em janeiro de 2015 na Science. O artigo aponta 9 critérios para que nós tenhamos um relativo equilíbrio com a natureza, que ele chama de “9 fronteiras” que balizariam nossa relação com o ambiente. Para ele, a humanidade já ultrapassou quatro dos nove limites, o que dificultaria que o nosso planeta tivesse uma resposta, digamos hospitaleira, para a vida contemporânea. O clima está mudando muito rapidamente, as espécies estão extinguindo-se muito rápido, estamos adicionando muitos nutrientes como o nitrogênio em nossos ecossistemas e continuamos cortando florestas e outras terras naturais. E estamos avançando para cruzar os cinco limites restantes: 1 mudança climática; 2 perda da biodiversidade; 3 adição de fósforo e nitrogeneo nas plantações e ecossistemas; 4 desmatamento de florestas; 5 emissão de aerosóis; 6 desgaste da camada de ozônio; 7 acidificação dos oceanos; 8 poluição das águas potáveis; 9 acúmulo de materiais radioativos, poluentes orgânicos, resíduos de plástico, entre outros.
Referências:
Beck, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona, Paidós, 1998.
Carey, John (2015), The 9 limits of our planet … and how we’ve raced past 4 of them. Mar 5, Natur
Chaterjee, Partha (2004), The Nation and its Fragments. In: The Partha Chaterjee Omnibus. Oxfor University Press Moore, Jason. Capitalism in the web of life: ecology and the accumulation of capital. Londres: Verso Ed., 2015.
Moore, Jason (Ed.). Anthropocene or Capitalocene? Nature, History, and the Crisis of Capitalism. Oakland: Kairós, 2016.
Rockström, Johan; Kluv, Mattias. Big World, Small planet. Abundance within planet Boundaries. Yale University Press, 2014.
Said, Edward. Orientaliesmo. O oriente como Invenção do Ocidente.Rio de Janeiro. Cia das Letras, 2007.
Stengers, Isabelle. Au temps dês Catastrophes. Resister à la barbarie qui vient. Paris: La Découverte, 2009.
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Opinião
A Padronização de Moradias e as Carências de Serviços em Projetos Habitacionais
Por Antônio Jucá
Do ponto de vista psicossocial, a padronização excessiva de projetos de conjuntos habitacionais, associados à carência de serviços e equipamentos sociais urbanos, gera um ambiente negativo para a formação da autoidentidade e da identidade coletiva. O pertencimento (uma identidade coletiva que se associa ao lugar de moradia e relações de vizinhança) também passa a ser negativo, embora as dificuldades de subsistência também gerem solidariedade, autoajuda, estratégias de sobrevivência e luta política por melhores condições de vida – uma via de transformação dentro da negatividade de condições.
Não obstante, a falta de oportunidades de emprego e renda, o rito da juventude, os modelos de sucesso da propaganda capitalista, o racismo velado brasileiro na linguagem e no tratamento preconceituoso, geram auto identidade negativa nos jovens, que passam a buscar reconhecimento pessoal e grupal por formas negativas ligadas ao crime como forma de empoderamento, afirmação, acesso a bens de consumo e ao tráfico ou consumo de entorpecentes sem controle social.
Assim, o acesso ao esporte na realização do rito da juventude e como forma de ascensão social, as escolas profissionalizantes e o desenvolvimento de pendores artísticos exercem um papel importante na criação de identidades coletivas e individuais positivas, em comunidades pobres cujo traço cultural proativo é observável na construção por autoajuda, na festa que os bairros pobres se transformam nos fins de semana. Os espaços públicos de convivência comunitária são essenciais à saúde psicossocial e criação de identidades positivas. Desse modo, tanto a requalificação ou reconstrução dos assentamentos informais são necessários, constituindo também uma oportunidade de organização comunitária, quanto na construção de novos conjuntos habitacionais ditos de interesse social. Na realidade todas as soluções habitacionais são de interesse social e a verticalização de moradias induz a uma espécie de apartheid social, inclusive interno às habitações multifamiliares. Mesmo quando equipamentos coletivos de lazer estão presentes, se servem muitas vezes apenas como atributos de venda e status social.
De um lado temos interesses privados que moldam o modo de vida e convivência social, num processo quase que resumido a uma frase escrita em um muro na Tamarineira – o urbanista (da cidade) do Recife é o capital! Isto junto com um aparelho ideológico de estado que não tem condições de propor uma civilização. De outro lado, o banditismo, que já contaminou o aparelho de estado, constitui de certo modo um fim para o estado de direito, a perda de valores primordiais coletivos, onde se inclui o direito à cidade.
Do ponto de vista técnico, a padronização se associava à industrialização construtiva de edificações, cuja vertente aberta (sistemas de componentes comuns a vários fabricantes de peças modularmente padronizadas) e fechada (quando as empresas fabricam e montam sistemas próprios cujos componentes são fornecidos apenas por estas). Tinha-se, basicamente, por justificação a redução do custo marginal de produção por aumento em escala, a redução de tempo na construção, redução drástica de desperdícios e maior controle de qualidade em fábricas fixas, ou nas variantes de moldagem industrializada em canteiro, inclusas em ciclos produtivos bem definidos que caracterizam o processo industrial.
Contudo, o advento das máquinas de controle digital tornou viável a padronização flexível de produtos industriais, outrora semimanufaturados, multiplicando a possibilidade de adequação a especificidades ou gosto dos usuários-clientes. Firmas líderes já faziam isso há décadas notadamente no Japão para casas de madeira de alto padrão. Entretanto, como conceber isto para a construção habitacional de interesse social?
Primeiro, cabe colocar que temos que fixar, nesta linha de desenvolvimento, sobretudo a quebra de paradigma tecnológico (ou seja, uma linha hermenêutica ou princípio de desenvolvimento e descoberta) que isto representa, verificando que a padronização flexível pode se engendrar por alta, média e baixa tecnologia, neste último caso, por exemplo, com formas de barramentos móveis, redesenho de componentes tradicionais, projetos flexíveis. Há problemas de difusão, aceitação e continuidade, mas novos componentes estão entrando no mercado de materiais de construção,
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porém sem coordenação modular...
O que assistimos desde décadas é a produção de conjuntos habitacionais populares cujos projetos micro urbanos e arquitetônicos, supostamente, se caracterizam em grande parte por:
1. Um loteamento reticulado uniforme de ruas e lotes retangulares (concepção onerosa na provisão de infraestrutura), contendo casas térreas (com oitão bilateral e afastamento frontal e de fundos) ou edifícios multifamiliares de até quatro pavimentos (naturalmente, sem elevador);
2. Infraestrutura, mas limitada à rede elétrica e ao abastecimento d’água, alguma pavimentação nas vias principais quando muito, arborização muito menos;
3. A coleta de resíduos sólidos, o esgotamento sanitário e a drenagem, normalmente, lamentáveis;
4. Muitos destes conjuntos se localizam fora da cidade, sem conexão direta com a malha urbana de ruas e redes de serviços, inclusive linhas de transporte público;
5. As casas ou prédios de apartamentos são quase sempre invariavelmente iguais, “cabendo” aos moradores a tarefa de personalizá-las, esteticamente para pior, por não serem sensíveis ao princípio da unidade na variedade, e por nada que regule a transformação da feição dos conjuntos;
6. As concepções de projeto não consideram o desempenho do trabalho doméstico, caracterizado por múltiplas tarefas concomitantes, o que dentro de uma cultura patriarcal faz pesar sobre o trabalho das mulheres;
7. Ademais, os equipamentos sociais urbanos, os espaços públicos não lineares, os espaços de comércio, de manufaturas, de lazer, de esportes e a manutenção disso tudo, normalmente, não entra nos projetos.
Ouvimos, até de quem não esperávamos, dizer que habitação de interesse social é para criar empregos. – Não, senhor! Habitação de interesse social é a base da vida social e a matriz da cidadania, é o caminho para construção de nossa nação mestiça.
Nossas favelas reconhecidas como parte da cidade e requalificadas, nossos conjuntos requalificados, são perfeitamente possíveis e ultra viáveis, na medida em que a visão do lugar do trabalho na habitação for se materializando, se auto sustentando. A reconstrução, requalificação e construção de novos conjuntos com a discussão com a população, na definição dos projetos com margem para a adequação aos clientes, às suas condições financeiras, disponibilidades em materiais de construção, suas necessidades de espaço presente e futuro, possibilidades de ampliações, permutas... Projetos
que podem ser sugeridos, mas susceptíveis de adequações de dentro para fora em processos de elaboração de baixo para cima.
Assim, tais propostas de projetos podem se materializar, gerando muito mais empregos, gerando empresas, inclusive de construção de moradias e infraestruturas urbanas também pela própria população. Há o contra-argumento de que quando o estado ou outro agente externo entra na produção da moradia popular os custos se elevam, o que é um argumento frágil, quando se considera a relação qualidade/custo, o aumento da produtividade total com a redução da quantidade de horas trabalhadas para um mesmo resultado e a redução de perdas de materiais na construção, para não falar dos ganhos sociais.
Como condições facilitadoras para a inserção deste novo paradigma apontamos:
1. Políticas de regularização fundiária;
2. Formação de estoque de terras públicas;
3. Controle urbano com direcionamento da migração para áreas devidamente previstas;
4. Desenvolvimento de uma política multisetorial articulando desde obras públicas a serviços sociais partícipes na elaboração de projetos com a população, o que deve continuar no pós-ocupação;
5. Parcerias com o setor privado, tendo como princípio o interesse maior em um processo civilizatório (no dizer de Darcy Ribeiro). Ademais, foi a visão inglesa com suas companhias de urbanização que desenvolveram nossos primeiros mercados urbanos e indústria.
Devem-se apontar outras condições para superarmos de nossas “Cidades de Deus” em série.
Inspirado no grande timoneiro chinês pode-se dizer que o primado do social deve ser ponto de partida e bússola para todos, pois quase tudo vale a pena quando a alma não é pequena!
Referências:
Cardoso, Adauto Lucio; Aragão, Thêmis Amorim, Jaenisch, Samuel Thomas Organizadores. Vinte e dois anos de política habitacional no Brasil: da euforia à crise, 1. ed., Rio de Janeiro: Letra Capital: Observatório das Metrópoles, 2017.
Antônio Jucá é arquiteto e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco – FUNDAJ.
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Jornalismo Independente
Jornalismo e financiamento coletivo
Por Karolina Calado
Liberdade de expressão é ameaçada no Brasil segundo relatório da campanha Calar Jamais!
Há um ano, o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) laçou uma campanha intitulada “Calar Jamais!” no intuito de colher dados de violações à liberdade de expressão no Brasil. No período, todo indivíduo que tivesse seu direito à livre manifestação violado poderia submeter uma denúncia no site http://www.paraexpressaraliberdade.org.br/calar-jamais/. A campanha objetivou reunir testemunhos de pessoas vítimas de cerceamento, censura, repressão, entre outros. “Além
de cobrar publicamente a responsabilidade dos agentes internos responsáveis pelos ataques à liberdade de expressão relatadas, pretendemos levar este relatório para autoridades nacionais e organismos internacionais de defesa dos direitos humanos, dando ampla divulgação ao cenário de violações à liberdade de expressão que se instalou no Brasil. E, assim, quem sabe, condenar o Estado brasileiro nas cortes internacionais por estas violações” (RELATÓRIO CALAR JAMAIS, 2017, p. 8).
Passados 12 meses, o FNDC apresentou um relatório com 66 casos graves de violações, mostrando o quanto a garantia da liberdade de expressão se encontra ameaçada em decorrência de uma série de abusos cometidos pelo Estado brasileiro. Os casos foram organizados nas seguintes categorias: violações contra jornalistas, comunicadores sociais e meios de comunicação; censura a manifestações artísticas; cerceamento
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a servidores públicos; repressão a protestos, manifestações, movimentos sociais e organizações políticas; repressão e censura nas escolas; censura nas redes sociais; e desmonte da comunicação pública.
O documento esclarece que, quando os abusos se referem à imprensa, os fatos relatados incluem tanto veículos independentes quanto a grande mídia, e vão desde a censura ao jornal da Central Única dos Trabalhadores do Rio Grande do Sul (CUT-RS) até a condenação de jornalista por conta de erro em notícia. Evidentemente, a mídia independente sofre mais sanção por seu teor ideológico, tem sua voz desmoralizada por quem detém o poder e teme ser atingido pelo discurso contra-hegemônico que almeja alterar o status quo. Dentre os vários citados, merece destaque o caso do repórter fotográfico da Rede Jornalistas Livres que teve seu equipamento confiscado pela Polícia Militar de São Paulo quando cobria uma marcha antifascista; outro exemplo foi o caso do blogueiro Eduardo Magalhães do blog Cidadania, detido pela Polícia Federal por ser acusado de vazar informações da Operação Lava Jato. Ameaça de detenção foi cometida também por policiais e fiscais ambientais contra dois jornalistas enquanto esses visitavam fazendas irregulares do Ministro-chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha (PMDB), no Mato Grosso, dentro do Parque Estadual Serra de Ricardo Franco.
Não é à toa que estamos vendo avançar tamanhos abusos num contexto de queda de um governo legítimo, eleito pelo povo e, no lugar desse, passando a governar um presidente ilegítimo, com uma equipe defensora de um discurso neoliberal em prol do favorecimento dos ricos em detrimento dos pobres. Nesse cenário, a direita ganha voz e se mostra intolerante às minorias, às mudanças sociopolíticas, ao diálogo aberto e democrático. Seus discursos giram em torno da ordem, do Estado mínimo, da ideologia de gênero, da ditadura de esquerda e de tantas outras. Não há debate, há autoritarismo, há repressão e censura. “Com a crise e a polarização política no Brasil, após a efetivação do golpe que levou ao impeachment da Presidenta Dilma Rousseff e a imposição de políticas retrógradas por parte do governo de Michel Temer, tem avançado significativamente no país a repressão a protestos e a imposição de restrições à liberdade de organização” (RELATÓRIO CALAR JAMAIS, 2017, p. 41).
Se não há liberdade de expressão, mesmo essa sendo uma garantia da Constituição Federal, nossa democracia corre sérios ricos. O artigo IX da CF é claro em defender que “é livre a expressão de atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de censura ou licença.” Estamos, portanto, assistindo a uma série de violações desse direito democrático básico.
Essa campanha do FNDC, então, é crida em um oportuno momento, em um cenário que requer da
sociedade civil mais luta, resistência e articulação política, em prol da pluralidade de vozes e respeito às diferenças, a fim de que se crie condições para a consolidação da democracia. “Tínhamos, e ainda temos, a plena convicção de que, sem estabelecer regras e iniciativas para ampliar a diversidade e a pluralidade nos meios –fim essenciais para a livre circulação de ideias –, não há possibilidade de se construir uma democracia saudável e efetiva. Já alertávamos nas manifestações do FNDC que sem liberdade de expressão não há democracia. O pleno exercício deste direito está estritamente relacionado com o grau de maturidade das instituições (públicas e privadas) e das pessoas para conviverem com o contraditório e com a livre opinião na sociedade” (RELATÓRIO CALAR JAMAIS, 2017, p. 7).
Além da mídia, merece visibilidade os abusos da Polícia contra manifestantes, a exemplo do jovem morto por um policial militar durante uma manifestação que pedia mais segurança na Zona da Mata Norte, em Pernambuco; ou ainda os jovens que se tornaram réus pelo judiciário por conta de protesto contra Temer, em São Paulo. “Repressão a protestos, uso de armas letais contra manifestantes e prisões arbitrárias são exemplos dos expedientes que têm sido levados a cabo por parte do Estado brasileiro, especialmente por meio das forças de segurança e, especificamente, pelas Polícias Militares. Fruto do período da ditadura no Brasil, a lógica da militarização da polícia e sua ação para criminalizar movimentos sociais, mais uma vez, tem servido a regimes antidemocráticos” (RELATÓRIO CALAR JAMAIS, 2017, p. 41).
Por fim, qualquer pessoa que sofrer algum tipo de cerceamento, censura ou repressão por conta da manifestação de ideias pode enviar sua denúncia à campanha Calar Jamais!, através do site: http://www.paraexpressaraliberdade.org.br/calar-jamais/. Só assim, esse tipo de problema terá ainda mais visibilidade e maior possibilidade de ser combatido.
Referências:
Campanha Calar Jamais!. Disponível em: < http://www. fndc.org.br/campanhas/calar-jamais/ Acesso em outubro de 2017.
Karolina Calado é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. Nesta coluna, proponho uma discussão acerca das questões que envolvem a economia política dos meios de comunicação, especialmente a partir da internet e dos modelos de financiamento coletivo.
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Opinião
Eleições presidenciais no Chile
Por Jean De Mulder Fuentes
No dia 19 de novembro de 2017, os chilenos foram às urnas para votarem para presidente. O sistema constitucional chileno não permite a reeleição contínua de um presidente. Ao não alcançar a maioria absoluta (51%), as eleições presidenciais devem ser definidas em 17 de dezembro entre o candidato de centro-esquerda Alejandro Guillier e o candidato de centro-direita Sebastián Piñera.
Perguntamo-nos se a renovação do cenário político tem repercussões ou não no modelo econômico chileno, o mais liberal da América Latina. Devemos dizer, primeiro que o Chile, como muitos países latino-americanos, foi um dos grandes cenários de experiências da doutrina neoliberal mais sistemática do mundo. Isso aconteceu sob a ditadura de Pinochet (1973-1990), alguns anos antes da implementação do programa de Margaret Thatcher na Inglaterra. A características central do modelo econômico do regime militar foi a inspiração filosófica econômica de Hayek, usando o Chile como um laboratório, sob a influência de Milton Friedman e da escola de Chicago, sob o acordo de cooperação que esta universidade havia assinado com a Universidade Católica do Chile. Muitos dos consultores econômicos do ditador estavam retornando ao Chile com doutorado em economia, tendo sido orientados por Milton Friedman.
Ricardo Ffrench-Davis (2003), economista da CEPAL, argumenta que no período de 1973 a 1981 um programa de transformação estrutural da economia foi implementado de forma drástica e decisiva, com desregulamentação, desemprego em massa, repressão sindical, redistribuição de renda a favor de uma minoria dos setores mais enriquecidos, privatização de todos os bens públicos, etc., como não havia sido visto em nenhum outro país do mundo. O princípio básico do sistema neoliberal consistiu em “colocar um preço sobre as coisas”, e estas são negociadas e regulamentadas no mercado. E se houver um mercado totalmente livre, haverá uma economia com mais desenvolvimento e isso eliminará a pobreza. A evidência empírica mostra que o mercado
livre gera efetivamente algum crescimento para alguns e uma grande desigualdade para os demais. Em 1982, no momento do tratamento de choque para a economia, mais de 30% da população trabalhadora estava desempregada, e os bolsões de pobreza estavam em torno das principais cidades do Chile. Ffrench-Davis chama esse período de “neoliberalismo puro” (2004).
O neoliberalismo chileno impôs duas condições para sua implantação. Por um lado, a abolição da democracia, consistindo na eliminação de atores e espaços sociais e políticos e mecanismos de deliberação e ações que o contradizem, ou seja, um modelo político específico. O golpe militar de 1973, além de derrubar o governo de Salvador Allende e a Unidade Popular com seu projeto de “caminho chileno para o socialismo”, trouxe repressão por meio da instauração de uma das mais sangrentas ditaduras da história latino-americana, facilitando a implementação do neoliberalismo chileno. Por outro lado, havia a formação de um núcleo de militares e civis hegemônicos na condução do aparato do Estado que daria ao poder militar um projeto que lhe faltava, além da repressão e desarmamento da sociedade precedente. O objetivo do modelo neoliberal no Chile foi erradicar completamente o modelo socioeconômico prevalecente no país. Foi um esforço fundamental para criar uma economia de mercado livre, baseada no respeito irrestrito à propriedade privada, ao papel subsidiário do Estado, ainda que reduzido em seus compromissos sociais e produtivos, focado na tarefa repressiva e na manutenção do equilíbrio macroeconômico, a eliminação de instituições corporativas, especialmente sindicatos e também associações profissionais, e plena integração no mercado internacional. O projeto neoliberal abrangeria muito mais do que o aspecto econômico, permeando a vida social e cultural durante a ditadura, nas chamadas “modernizações”. Áreas-chave seriam privatizadas como educação (em todos os níveis), saúde, segurança social, bancos, hidrelétricas, privatização da água, etc.
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Castells (2005) faz sua própria descrição do modelo chileno depois da recuperação da democracia, restabelecida em 1990. Em sua opinião, o caso do Chile, ao contrário do resto da América Latina, caracterizou-se por um crescimento econômico sustentado desde 1984, com uma aceleração do crescimento nos anos noventa, apresentando uma ligeira recessão no final de tal década, seguida pelo crescimento moderado entre 2000 e 2003 e uma recuperação em 2004. O resultado dos indicadores de crescimento e os indicadores de competitividade e de redução dos níveis de pobreza mostram a experiência chilena como um exemplo das possibilidades de integrar um modelo econômico que encoraja o crescimento com a extensão dos benefícios sociais e dos direitos dos cidadãos para a maioria da população, ainda que de forma desigual. O autor ainda ressalta que dois modelos de desenvolvimento foram realizados no Chile: um de tipo autoritário, que exclui o liberalismo, e outro que inclui uma democracia liberal inclusiva (2005: 57-58). Ambos foram chamados de liberais, dada a ênfase que ambos colocaram no mercado e na abertura econômica internacional como elementos essenciais do crescimento econômico. Por “Modelo autoritário liberal excludente” entende-se um modelo de desenvolvimento que exclui os benefícios do crescimento para uma grande parte da população através do exercício autoritário e descontrolado do poder do Estado e que prioriza os mecanismos de mercado sobre os valores da solidariedade social, sem a aplicação de políticas públicas que corrigem as desigualdades e os privilégios das elites sociais e econômicas (op.cit. 58). Esse modelo corresponde ao período do regime ditatorial. Por “modelo democrático liberal inclusivo” entende-se um modelo de desenvolvimento administrado a partir de um governo democrático, produto da livre escolha por parte dos cidadãos. Embora mantenha os mecanismos de mercado como uma forma essencial de alocação de recursos, é responsável pela implementação de políticas públicas voltadas para a inclusão da população como um todo nos benefícios do crescimento, especificamente através de políticas redistributivas destinadas a melhorar as condições de vida da população. Este modelo também é inclusivo porque estabelece mecanismos de negociação e consulta com atores sociais, para a geração de consenso entre os representantes dos diferentes interesses da sociedade. De acordo com o autor, tal modelo
foi estabelecido a partir dos anos noventa e se caracterizou principalmente por uma economia aberta com ampla liberalização nos processos de intercâmbio e mercados internos, mas com a presença estratégica do setor público em termos de regulação da política macroeconômica, de crédito e comércio exterior. Em resumo, o modelo econômico neoliberal implementado na ditadura foi o modelo implementado por Pinochet e passado adiante quando da sua saída do governo em 1990. Apesar dos diferentes governos democráticos que aconteceram até hoje, o Chile não conseguiu reverter os elementos essenciais do modelo neoliberal, por uma série de entraves constitucionais herdados da ditadura, entre outras razões. Os detratores da democracia argumentavam que apenas um governo forte poderia manter taxas de crescimento médio de 5% nos últimos 20 anos. No entanto, os governos socialistas não só atingiram taxas médias de crescimento de 7% ao ano, mas também reduziram a pobreza em 40% e construíram um sistema básico de proteção social universal, especialmente em educação, saúde e habitação, sempre tendo em mente a população mais pobre e vulnerável. O sistema econômico nos últimos 20 anos teve um rosto mais social, com mais participação e regulação do Estado. Cabe ao próximo presidente do Chile exorcizar o modelo neoliberal, transformando-o em um sistema mais solidário, inclusivo e justo.
Referências:
CASTELLS, M. (2005): Globalización, desarrollo y democracia: Chile en el contexto mundial, Fondo de Cultura Económica, México.
FFRENCH-DAVIS, R. (2004): Entre el neoliberalismo y el crecimiento con equidad, Siglo XXI Editores, Buenos Aires.
O’DONNELL, G. (1997): Contrapuntos: estudios escogidos sobre autoritarismo y democracia, Editorial Paidós, Buenos Aires.
Jean De Mulder Fuentes é doutor em Ciencia Politica pela UFPE.
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Opinião
A retórica chinesa na educação inclusiva
Por Mariana Yante
De acordo com a organização Handcap International, existem na China aproximadamente 85 milhões de pessoas com alguma incapacidade, das quais apenas um terço das que necessitam de algum serviço de reabilitação tem acesso à saúde. Reporta-se, também, que o último censo nacional sobre a questão (datado de 2006) registrou que os rendimentos anuais das pessoas com deficiência na China é menos da metade da média nacional.
Apenas para traçar uma comparação, no Brasil, de acordo com o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística-IBGE, as Pessoas com Deficiência representam 45 milhões ou aproximadamente 24% da população brasileira. Destas, somente 403,2 mil trabalham formalmente, embora o país possua políticas públicas específicas de incentivo à contratação, como a Lei de Cotas, com a obrigatoriedade de pessoas com deficiência, além da reserva de vagas no âmbito dos concursos públicos.
É possível que as estatísticas chinesas ainda estejam bem aquém da realidade do pais, devido às dificuldades de acesso aos serviços básicos no interior e à precariedade relativa à obtenção de informações acerca da população rural, onde se estima que mais de 75% do total das Pessoas com Deficiência residam na China.
Em se tratando de políticas educacionais, o estabelecimento de marcos normativos e agendas efetivamente inclusivas e duradoras é um desafio em muitos países. Utilizando-se o marco comparativo de China e Brasil, temos que, em relação ao último, a implementação dos compromissos internacionais relativos à integração das pessoas com deficiência é relativamente recente.
Dentre esses documentos, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu protocolo facultativo, promulgada no Brasil a partir do Decreto n. 6.949/2009, tem força de norma constitucional. Sua influência, todavia, apenas se sentiu de forma mais significativa a partir do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146/2015) – também conhecida como Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência.
No país asiático, até o final de fevereiro do ano corrente, o marco regulatório dos direitos da pessoa com deficiência correspondia a uma lei datada de 1994 (Ordem n. 161, do Conselho de Estado da República Popular da China, de agosto de 1994; revisada de acordo com a “Decisão do Conselho de Estado para Revogação e Revisão de Diversas Regulações Administrativas (State Council Decision on Repealing and Revising Several Administrative Regulations) em 08 de janeiro de 2011;
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revisada no âmbito da 161ª Reunião Executiva do Conselho de Estado de 11 de Janeiro de 2017). A nova regulação, que entrou em vigor desde o primeiro de maio, adota uma perspectiva antissegregacionista, coroando o princípio da promoção à educação inclusiva, com diretrizes sobre acessibilidade estrutural.
Existem, também, referências à Convenção das Nações Unidas para os Direitos das Pessoas com Deficiência, apesar de haver entrado em vigor no país desde agosto de 2008. A despeito das críticas que podem advir sobretudo da inefetividade do compromisso internacional, em setembro de 2012 a China participou voluntariamente das atividades do comitê de revisão/monitoramento para a implementação da convenção (First UN Disability Rights Review).
A iniciativa foi apontada à época como um grande contraste com a não responsividade do país quando das atividades do Conselho de Direitos Humanos da ONU no que tange à implementação da Convenção Contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes – quando o governo chinês se recusou a colaborar com a prestação de informações.
É importante salientar, contudo, que a efetividade dos reportes depende da transparência e da precisão dos dados disponibilizados e que, em relação aos direitos das pessoas com deficiência, algumas análises apontam o uso excessivo dos veículos midiáticos oficiais para difundir as políticas implementadas nesse sentido como propaganda. Existem registros desde a ratificação da Convenção, em 2006, que apontam que os principais meios de comunicação – a saber, a Xinghuanet e a China Daily –, ambos controlados pelo governo, vinham veiculando notícias tendenciosas sobre o tópico.
Evidentemente, essa realidade não é exclusiva do cenário chinês, mas se mostra valiosa para analisarmos, a médio e longo prazo, a retórica do país em relação aos compromissos e pautas de Direitos Humanos desde sua projeção e aumento de influência no cenário internacional.
No caso do reporte em referência, houve a participação de organizações de Direitos Humanos e outros grupos da sociedade civil com apoio internacional e as críticas relativas à discrepância entre o texto da Convenção e a realidade chinesa se fizeram presentes – o que, juntamente com a recente revisão normativa, parece ser um bom indicativo de progressos institucionais substanciais na discussão do tema.
No entanto, o documento é criticado por sua falta de especificidade em alguns aspectos, com a utilização de termos abrangentes ou indefinidos
que podem levar à não implementação de uma agenda progressista. Um exemplo diz respeito à necessidade de que o(a) estudante demonstre habilidade para “receber uma educação ordinária” a fim de ser admitido(a) nas escolas regulares (Artigo 17), como aponta recente artigo publicado pela organização Open Society Foundations.
Outro exemplo que identificamos no mesmo dispositivo corresponde à determinação de que a designação de uma escola regular “com os recursos e condições adequadas dentro de uma certa região” seja feita com base na “condição física” das crianças e jovens, em detrimento de um conceito mais abrangente de deficiência, que abarque as enfermidades cognitivas/mentais.
Vale lembrar que, de acordo com a Nota Geral n. 4 do Comitê das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, a integração das crianças em escolas tradicionais apenas deve ser considerada inclusiva se abranger mudanças curriculares, bem como de metodologias de ensino ou de aprendizagem.
É muito importante ressaltar, contudo, que muitas vezes a resistência à implementação de políticas afirmativas vem da própria sociedade, que reproduz ciclos de invisibilidade e marginalização. Em dezembro de 2016, em Beijing, capital chinesa, pais e mães de crianças do Ensino Primário deixaram de mandá-las para a escola por alguns dias em protesto à presença de uma criança autista de oito anos na sala de aula, a fim de pressionar sua família e a administração do estabelecimento a transferir a garota para uma “escola especial” para crianças com deficiência – episódio que se concluiu com sua desistência.
Enquanto a situação, em termos formais, concernia ao conflito entre a regulação que exigia, à época dos fatos, que a menina frequentasse a escola mais próxima de sua casa, e ao argumento da escola de falta de estrutura para lhe dar suporte, na prática refletiu as lacunas sociais e institucionais da educação inclusiva.
Assim, os desafios chineses em transcender a retórica da inclusão como sinônimo de câmbio normativo e transformá-la em realidade é, como no resto do mundo, social e institucional. O acesso à educação adquire, assim, uma relevância especial, por se tratar não apenas de direito fundamental, mas de vetor crítico para uma mudança estrutural.
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Mariana
Yante é doutoranda em Relações Internacionais na Universidade de Wuhan/China.
Opinião
A Revolução Russa, a Democracia e o Socialismo
Por Rubens Pinto Lyra
Comemoram-se 100 anos da Revolução Russa. A rigor, não se trata propriamente de comemoração, já que os regimes dela oriundos naufragaram, tendo sido o seu desmoronamento festejado pelos povos sob cujo jugo viviam.
Mas por que, se esses regimes eram anticapitalistas? Não teriam dado passos decisivos para a supressão da exploração do homem pelo homem e, assim fazendo, ampliado a liberdade e o bem-estar social dos trabalhadores?
Os comunistas acreditavam que esse “socialismo real”, embora com “deformações”, haveria, com o enfraquecimento mundial do capitalismo, de superar suas dificuldades econômicas e avançar no rumo da democracia sem classes.
Ocorre que tais regimes nunca foram socialistas, pois beneficiaram sobretudo a nomenklatura (a alta burocracia dos Estados “comunistas”) e a direção de seus Partidos. A propriedade capitalista foi realmente confiscada, tendo o povo se tornado o seu titular, porém apenas de forma nominal, já que a posse efetiva e o usufruto dos meios de produção se tornaram apanágio da casta burocrático-partidária.
Essas não são digressões de anti-comunistas ou de reacionários empedernidos. Emanam de Karl Kautsky,
principal teórico marxista da II Internacional, associação de sindicatos e de partidos de orientação predominante marxista, mas que congregava socialistas de todos os matizes. Desde a eclosão da Revolução Russa, Kautsky discordou de Lênin, quando este pretendeu conferir caráter socialista à Revolução. E o fez na esteira dos ensinamentos do próprio Marx para quem o advento de um regime socialista somente poderia ocorrer em um país capitalista desenvolvido.
Com efeito, é nele que se estabelece a contradição entre a natureza privada da propriedade, na qual a produção é organizada para atender as necessidades do capital que a rege, e o caráter cada vez mais social da produção. Este exige, ao contrário, o planejamento do Estado para que o processo produtivo sirva aos interesses da coletividade.
Não poderia, portanto, a Rússia czarista, do ponto de vista econômico, parir, nas entranhas do seu regime semi-feudal, relações de produção socialistas. Também não do ponto de vista social, pois nela inexistia o proletariado, protagonista indispensável da revolução socialista. Sob esse ângulo, a existência de uma classe operária numerosa, organizada e amadurecida é pré-condição para que o processo revolucionário se efetive. Assim, em não havendo essa classe, não pode-
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ria existir a própria democracia, materializada no que Marx denominou de “autogestão dos trabalhadores associados”.
Quiniou lembra que “o caráter democrático da transformação é uma conseqüência lógica do lugar destinado à transição socialista: o capitalismo desenvolvido é quem fornece não apenas seus meios, mas também seus agentes. A escolha da democracia é, pois, consubstancial à teoria histórica em si mesma, tanto mais que materialismo, história e política são conceitualmente solidários. Não se trata de uma simples preocupação ética: exprime, na política, a verdade do modelo histórico” (1992,133-134).
Ora, Lênin levou a cabo, na Rússia czarista, uma revolução de tipo insurrecional, promovendo a substituição do proletariado – quase inexistente - pelo partido único - o comunista - o qual, minoritário na população russa, valeu-se de uma ditadura para a manutenção no poder, justificando, para tanto, a “utilização” do terror para quebrar a resistência das classes dominantes. Na sua concepção, “os exploradores deveriam ser “esmagados” pela classe oprimida e “excluídos da democracia” (1979, p. 31). Contrariamente a Lênin, que considerava a “democracia burguesa” uma “farsa”, uma “democracia exclusivamente para os ricos”, o teórico da social- democracia alemã demonstra que sua existência é essencial “para que o proletariado ganhe maturidade ano a ano”, pois que a práxis democrática enseja “a organização, a propaganda e a conquista de reformas sociais”.
Através das conquistas obtidas – como a redução da jornada de trabalho - “a massa do povo amplia o seu tempo livre, adquire experiência da auto administração e se capacita, por conseguinte, a lutar, ela própria, pela Revolução”. Trata-se, portanto, de “processo revolucionário que exige longa e paciente preparação, baseado na luta política e reivindicatória e em um árduo trabalho de convencimento das massas, até que estas estejam preparadas para a Revolução” (KAUTSKY, 1979, p 24).
Nas palavras de Kautsky: “Para que não se perca a vitória adquirida e ela seja mantida, será necessário esclarecer e convencer as massas pela propaganda intensiva, antes que comecemos a empreender a execução do socialismo” (1979, p. 25.).
Nesse aspecto, é nítida a proximidade do seu pensamento com o de Gramsci. O teórico da II Internacional considera a democracia necessária, não somente para promover a derrubada do capitalismo, mas também para constituir “a base indispensável à construção do modo de produção socialista”. E somente graças aos efeitos da democracia, sublinha, “o proletariado adquire a necessária maturidade para a realização do socialismo” (KAUTSKY, 1979,24).
Vê-se que a formação de um Estado totalitário, comandado pela nomenklatura; a ausência de pluralismo
ideológico, com o controle efetivo sobre as consciências em domínios que devem estar fora de seu alcance, como a religião, a ciência e a arte, enfim, o recurso à violência indiscriminada, não têm nada a ver com a concepção democrática de socialismo de Marx.
Desde 1919, portanto, há quase cem anos, o “mestre do marxismo” já antevia a impossibilidade de se implantar o socialismo na Rússia quando afirmava que os comunistas estavam condenados à sina de aprendizes de feiticeiro, voltados à realização de um objetivo impossível: “os dirigentes bolcheviques tomaram o poder, desfazendo-se de suas convicções democráticas e somente nele se manterão renunciando às suas convicções socialistas (Kautsky, 1919: 210).
Em 1931, no auge do stalinismo, Kautsky proclamava que “a tentativa de edificar, na Rússia, em ambiente econômico e social atrasado, o socialismo, através do terrorismo policial, burocrático e centralista, está fadada por antecipação à falência. Nem um feiticeiro poderá retirar o bolchevismo do impasse em que se encontra” (1931, 22).
Essas predições, feitas tantos anos antes do desmoronamento dos regimes do Leste europeu, permaneceram desconhecidas de quase todos, tendo em vista o anátema de “renegado”, lançado por Lênin contra Kautsky e que perdurou durante todo o período de vigência dos regimes ditos comunistas.
Mas a história deu razão ao segundo para quem a democracia é, ao mesmo tempo, o ponto de partida, a forma constante e o objetivo último do socialismo. Longe de poder defini-la como simples exigência deste, devemos considerá-la a essência do socialismo. É o socialismo que deve ser considerado, no sentido inverso, uma exigência da democracia.
Referências:
KAUTSKY, KARL. A ditadura do proletariado. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979. P.1-90.
___________ Le bolchevisme dans l’impasse. Paris: Presses Universitaires de France, 1982 . 162 p.
LÊNIN, Wladimir Ulianov. A ditadura do proletariado. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979. P. 91-195.
____________ Terrorisme et comunisme. Paris: Ed. Jacques Povolovsky,1919.
QUINIOU, Yvon. Morte de Lênin, vida de Marx. In: Lyra, Rubens Pinto (org.). Socialismo: impasses e perspectivas. São Paulo: Scritta, 1992. 203 p.
Rubens Pinto Lyra é Doutor em Direito Público e Ciência Política.
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Jornalismo Ambiental
Sociedade, natureza e mudanças climáticas
Por Robério Daniel da Silva Coutinho
Energia solar pernambucana: uma questão também de segurança hídrica e alimentar
Apauta das mudanças climáticas foi visibilizada com destaque pela imprensa pernambucana no último dia do mês de novembro. Os três principais jornais do estado (DiárioPE, Jornal do Commercio e FolhaPE) pautaram sobre o referido fenômeno antrôpico do clima. As matérias foram publicadas nos respectivos cadernos de economia. Foram construídas a partir de fontes oficiais do governo pernambucano, inclusive com o governador, além de fontes de setores empresariais. As matérias abordaram sobre o lançamento do Atlas Eólico e Solar do Estado. O “documento traz radiografia do potencial energético de Pernambuco e está disponível para a consulta pública” (DIÁRIO-PE, 2017) através do endereço www.atlaseolicosolar.pe.gov.br.
“O estado mapeou toda a sua capacidade na geração de energia solar e eólica para facilitar a atração de novos investimentos” (FOLHA-PE, 2017). A diversificação da matriz energética usada no estado é o objetivo central
do atlas, que levou três anos para ser elaborado. A estratégia é ampliar a matriz energética para além das fontes poluentes, que continuam elevadas. O estado de Pernambuco possui 20% da sua matriz de energia limpa - aquela não originária de matrizes fósseis, a exemplo da queima do carvão e do petróleo, estas responsáveis pelo advento e pela evolução do aquecimento global e mudanças climáticas antrópicas, bem como o surgimento dos impactos ambientais (biofísicos) e socioeconômicos, ora revelados pelo PBMC (2012).
“A energia eólica já é uma realidade no nosso estado e a solar vem se mostrando competitiva a cada ano” (CAMARA, DIÁRIO-PE, 2017). Eis o interesse do Estado em mapear o potencial da energia renovável dos ventos e do sol. PE foi inclusive o 1º Estado brasileiro a inaugurar um parque híbrido (usina eólica e solar), em 2015, em Tacaratu (Sertão do São Francisco) (JC, 2017). O Sertão pernambucano tem grande potencial para instalação de empresas na área, porque venta muito durante toda a noite e a madrugada e há bastante sol durante o dia inteiro.
A imprensa pernambucana, por sua vez, garantiu a devida visibilidade desta pauta voltada à diversificação da matriz energética no estado. A publicação das matérias nos três jornais sobre o referido atlas conferiu notoriedade do assunto para o público. A visibilidade é indispensável para contribuir na percepção e problematização pública sobre a questão, sobretudo diante das vulnerabilidades ambientais e socioeconômicos e oportunidades
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Rom á rio HenriqueSERTA
decorrentes das mudanças do clima, sendo necessária a publicização para a esfera pública buscar suas respostas necessárias.
Constata-se, portanto, que a partir desta realidade social diante do contexto das mudanças climáticas com os seus desafios civilizatórios e as necessárias demandas por novas estratégias humanas de adaptação aos tradicionais paradigmas, a exemplo do uso de matrizes energéticas, abre-se um potencial e pertinente direcionamento crítico também sobre o campo jornalístico. É preciso reanalisar a sua função social a partir da qualidade da sua representação noticiosa desta realidade social. É necessário superar a ainda abstração de que a notícia jornalística não tem uma função central e estratégica de mediar e articular a discussão pública. Portanto, toda construção noticiosa precisa conferir sentido social de cunho educativo neste novo e desafiador contexto que demanda por inovadoras cognições da esfera pública relativas à superação das vulnerabilidades ambientais e socioeconomicas e às devidas potencialidades.
Desse modo, reafirma-se o potencial jornalístico centrado numa racionalidade que nega o antigo paradigma da pseudo objetividade e neutralidade, porque nada é neutro ou imparcial socialmente, nem mesmo natural, a exemplo da mudança do clima antrópica. Afinal, foi o modo de entender (e agir) a relação entre a vida humana e não-humana no planeta e o uso dos recursos naturais que criou tal desafio civilizatório, sendo preciso agir também para superá-los. Assim, o papel social jornalístico e o fazer jornalismo carecem de ser concebidos por uma ética/valor enquanto construtor social da realidade, a partir da visibilidade dada aos problemas vigentes por meio de sua adequada representação noticiosa da realidade social. Logo, acentua-se neste processo a responsabilidade da seleção jornalística do tema, fonte e enquadramento noticioso voltados para o necessário estimulo à resonância da questão visibilizada ao público.
Neste contexto, sob o viés econômico, mas também socioambiental, não faltam oportunidades para a imprensa e a mídia diversificarem as suas coberturas relativas ao tema climático e a segurança energética em tempos de demandas por mais energia limpa no sertão. E é pertinente porque essa abordagem jornalística sobre a adaptação às mudanças do clima carece de ser qualificada diante da necessidade da sociedade de encontrar as soluções para a convivência harmônica das populações com o semiárido, que tem se tornando cada vez mais árido, quente e seco.
Nesta direção, à título de sugestão, um projeto inovador recém aprovado pelo CNPq reúne tais condições de ser representado noticiosamente e visibilizado por envolver, nos próximos três anos, ações de pesquisa e desenvolvimento na área de energia fotovoltaica. De forma geral, o projeto intitulado Socioeconomia Verde na Caatinga, coordenado pela climatologista Francis Larceda, do Instituto Agronômico de Pernambuco, em parceria com a
UFPE, INPE, SEMAS, INSA, EMBRAPA E SERTA, fará experimentos na capitação de energia solar com o objetivo de contribuir na segurança energética dos usuários no Bioma Caatinga e região semiárida, em cenários de alterações climáticas no Nordeste em Pernambuco, bem como associado ao uso desta nova matriz energética limpa para garantir também as seguranças hídrica e alimentar.
“O fundamento desse novo paradigma é uso da energia do sol, como elemento transformador de uma realidade de miséria e pobreza para uma realidade próspera e abundante” (LACERDA, 2017). De início, o projeto pretende implantar um projeto piloto na escola Serta, em Ibimirim (uma escola de Agroecologia), que se tornará 100% energeticamente independente com uso de placas fotovoltaicas. A inovação consistirá ainda na gestão inteligente de recursos naturais, como a gota d’água para a agricultura familiar, obtida com o Bioma e pela adoção de técnicas simples já existentes, além do uso de boas práticas e a consideração do potencial humano existente localmente, representada pela força e vigor do povo sertanejo. É assim que esta rede de pesquisadores pretende propor um novo paradigma no contexto da mudança do clima, desenvolvendo práxis calcada na sustentabilidade que seja facilmente replicável no semiárido.
Referências:
DiárioPE. Estado lança atlas de energias eólica e solar. Sávio Gabriel. Recife. 2017;
FolhaPE. Atlas revela potencial energético. Recife. 2017;
JC - Jornal do Commercio. Energia renovável mapeada. Adriana Guarda. Recife. 2017;
LARCERDA, Francis. Entrevista concedida a Robério Coutinho por e-mail. Recife, 30 nov. 2017;
PBMC - PAINEL BRASILEIRO DE MUDANÇAS
CLIMÁTICAS. Impacto, vulnerabilidades e adaptações. Primeiro Relatório de Avaliação Nacional. V. II. Rio de Janeiro, 2012.
Este espaço apresenta abordagens críticas e interdisciplinares relativas à produção da representação noticiosa da realidade social (jornalismo) sobre as mudanças climáticas e a sua influência na constituição do sentido social sobre a questão. É escrito pelo jornalista Robério Coutinho, mestre em Comunicação pela UFPE, com formação básica em Meteorologia pelo INPE/CPTEC, exassessor de imprensa do Laboratório de Meteorologia de PE, bolsista pesquisador da Rede Brasileira de Mudança Climática e autor de livros sobre o temática.
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