Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 1 Jornalismo Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade | PPGCOM/UFPE | ISSN 2526-2440 | e cidadania Corporativismo judicial Opiniáo Agenda 2030 OPINIÁO E mais... nº 20 | FEVEREIRO 2018
JORNALISMO E CIDADANIA
Expediente
Editor Geral | Heitor Rocha professor PPGCOM/UFPE
Editor Executivo | Ivo Henrique Dantas doutorando PPGCOM/UFPE
Editor
em Ciência Política/UFPE Revisão | Laís Ferreira
em Comunicação
Articulistas |
PROSA REAL
Alexandre Zarate Maciel doutorando PPGCOM/UFPE
MÍDIA ALTERNATIVA
Xenya Bucchioni doutoranda PPGCOM/UFPE
NO BALANÇO DA REDE
Ivo Henrique Dantas doutorando PPGCOM/UFPE
JORNALISMO E POLÍTICA
Laís Ferreira
Mestre em comunicação
JORNALISMO AMBIENTAL
Robério Daniel da Silva Coutinho mestre em Comunicação UFPE
PODER PLURAL
Rakel de Castro doutoranda PPGCOM/UFPE e UBI
CIDADANIA EM REDE
Nataly Queiroz doutoranda PPGCOM/UFPE
JORNALISMO INDEPENDENTE
Karolina Calado doutoranda PPGCOM/UFPE
MÍDIA FORA DO ARMÁRIO
Rui Caeiro
mestre em Comunicação UFPE
MUDE O CANAL
Ticianne Perdigão doutoranda PPGCOM/UFPE COMUNICAÇÃO
Colaboradores |
Alfredo Vizeu Professor PPGCOM - UFPE
Túlio Velho Barreto Fundação Joaquim Nabuco
Gustavo Ferreira da Costa Lima Pós-Graduação em Sociologia/UFPB
Luiz Lorenzo
Núcleo de Rádios e TV Universitárias/UFPE
Ada Cristina Machado Silveira Professora da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM
Antonio Jucá Filho Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco – FUNDAJ
Auríbio Farias Conceição
Professor do Departamento de Letras e Humanidades – DLH/ UEPB
Leonardo Souza Ramos
Professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC –Minas Gerais e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Potências Médias (GPPM)
Rubens Pinto Lyra
Professor do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas da UFPB
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NA WEB Ana Célia de Sá Doutoranda em Comunicação UFPE NA TELA DA TV Mariana Banja mestranda em Comunicação UFPE Alunos Voluntários | Lucyanna Maria de Souza Melo Yago de Oliveira Mendes José Tarisson Costa da Silva Índice Editorial Prosa Real Comunicação na Web Jornalismo Independente Opinião | Arnaldo Sucuma Opinião | Marcos Costa Lima Opinião | Edval JP Opinião | Rubens Pinto Lyra Opinião | Jean de Mulder Opinião | Iris de Mel Opinião | Iná Cândido | 3 | 4 | 6 | 8 | 10 | 14 | 16 | 18 | 20 | 24 | 26 Arte da Capa: Designed by Freepik.com Acesse: facebook.com/ Jornalismoecidadania | issuu.com/revistajornalismoecidadania
Internacional
Pós-Graduação
Mestre
| Marcos Costa Lima
Por Heitor Rocha
Como entender o discurso de ódio aos pobres, negros e negras, mulheres, LGBT e de elogio à barbárie da violência perpetrada contra estes grupos sociais marginalizados senão como resultado da ideologia fascista cuja grande característica é o conjunto de nefastos sentimentos como individualismo, egoísmo e a falta de solidariedade com os membros da espécie humana que não cultuam o dinheiro e o poder? Conforme Theodor Adorno, se fossem seres humanos e não simples animais, o ódio que o leão nutre pelo antílope que quer devorar seria ideologia.
Portanto, as manifestações de ódio expressas nas redes sociais, como em site que apregoa o ceticismo político e desdenha dos esforços pela mudança social para tornar o mundo da vida menos ameaçado, pretendem fazer crer que seria simples ironia a referência desumana ao brutal assassinato da vereadora Marielle Franco como tendo sido “ditado por seu engajamento político”, pois ela estaria “engajada com bandidos” e teria sido eleita “pelo comando vermelho”.
Estas são declarações da desembargadora Marília Castro Neves, do Rio de Janeiro, de acordo com a coluna de Mônica Bérgamo. O que estes ideólogos da direita não entendem é que tratar com tibieza e justificar, mesmo que de forma indireta, os casos de transgressão à norma ou à lei não é ironia, é fazer apologia ao crime, o que se configura como delito penal, ou seja, também é crime. Sobretudo com o agravante da responsável pelo ato delinquente fazer parte do Pleno do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Desta maneira, só a cegueira resultante do discurso de ódio pode explicar a ofensa moral à vítima do bárbaro assassinato e também à consciência coletiva da nação cometida pela desembargadora, demonstrando não temer a corregedoria do TJ/RJ e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Contudo, não se pode escamotear a motivação do assassinato de Marielle em virtude de sua atuação contra os abusos da polícia e em defesa dos favelados. Não se pode considerar o assassinato da vereadora Marielle Franco um crime comum, como pretende o discurso de ódio da direita. Não se pode deixar de reconhecer este assassinato como um crime político, como também foi o que tirou a vida, três dias antes, de Paulo Sérgio Almeida Nascimento, um dos líderes da Associação dos Caboclos, Indígenas e Quilombolas da Amazônia (Cainquiama), na cidade de Barcarema, devido a suas denúncias contra a refinaria Hydro Alunorte, responsável pelo vazamento de dejetos tóxicos nas águas da região no começo do mês (Este crime ambiental é tema de um dos artigos desta edição da Revista Jornalismo e Cidadania).
Nos últimos quatro anos, o historiador Fernando Horta, doutorando na Universidade de Brasília, relacionou mais de
20 líderes comunitários e políticos executados no País, sem contar as mortes suspeitas de lideranças nem trabalhadores que não tinham, pelo menos de forma evidente, papel político de liderança.
Em homenagem a estes mártires da causa popular no Brasil, citamos seus nomes:
Marielle Franco, vereadora no Rio de Janeiro pelo PSOL – 15/03/ 2018; Paulo Sérgio Almeida Nascimento, líder comunitário na Amazônia – 12/03/2018; George de Andrade Lima Rodrigues, líder comunitário em Recife – 23/02/2018; Carlos Antônio dos Santos, líder comunitário no Mato Grosso – 07/02/ 2018; Leandro Altenir Ribeiro Ribas, líder comunitário em Porto Alegre – 28/01/2018; Márcio Oliveira Matos, liderança do MST na Bahia – 24/01/2018; Valdemir Resplandes, líder do MST no Pará – 09/01/2018; Jefferson Marcelo do Nascimento, líder comunitário no Rio – 04/01/2018; Clodoaldo do Santos, líder sindical em Sergipe – 14/12/2017; Jair Cleber dos Santos, líder de acampamento no Pará – 22/09/2017; Fabio Gabriel Pacifico dos Santos, líder quilombola na Bahia – 18/09/2017; José Raimundo da Mota de Souza Júnior, líder do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) na Bahia – 13/07/2017; Rosenildo Pereira de Almeida, líder comunitário da ocupação na Fazenda Santa Lúcia, no Pará – 08/07/2017; Eraldo Lima Costa e Silva, líder do MST no Recife – 20/06/2017; Valdenir Juventino Izidoro, líder camponês de Rondônia – 04/06/2017; Luís César Santiago da Silva, líder sindical do Ceará – 15/04/2017; Waldomiro Costa Pereira, líder do MST no Pará – 20/03/2017; João Natalício Xukuru-Kariri, líder indígena em Alagoas – 11/10/2016; Almir Silva dos Santos, líder comunitário no Maranhão –08/07/2016; José Bernardo da Silva, líder do MST em Pernambuco – 26/04/2016; José Conceição Pereira, líder comunitário no Maranhão – 14/04/2016; Edmilson Alves da Silva, líder comunitário em Alagoas – 22/027/2016; Nilce de Souza Magalhães, líder comunitária e membro do Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB) em Rondônia – 07/01/2016; Simeão Vilhalva Cristiano Navarro, líder indígena do Mato Grosso – 01/08/2015; Paulo Sérgio Santos, líder quilombola na Bahia – 06/07/2014.
PRESENTES!
Heitor Costa Lima da Rocha, Editor Geral da Revista Jornalismo e Cidadania, é professor do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.
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Editorial
Prosa Real
Livro-reportagem, jornalismo e contexto
Por Alexandre Zarate Maciel
Biografias jornalísticas: desvendando vidas e contextos
As biografias jornalísticas brasileiras, além de representarem uma aposta editorial que costuma dar certo, contribuem para o resgate da memória nacional, como comentam jornalistas biógrafos entrevistados para a tese de doutorado do autor desta coluna. Para Lira Neto, biógrafo de padre Cícero, do ex-presidente Getúlio Vargas e da cantora Maysa, o jornalista sente que o seu trabalho está avançado quando percebe que pode “materializar o personagem na sua frente”: “Se ele sentasse aqui na sua frente você saberia como ele deveria falar. Se ele tem algum tique nervoso. Se ele chegasse em sua casa, o que você serviria para ele comer?” Esse personagem vive, na ótica de Lira Neto, uma relação quase “incestuosa” com o jornalista que busca compreendê-lo, já que o biografado “invade sua vida na perspectiva em que tudo o que você faz ao longo do seu dia você está pensando nele”. Como desafio pessoal, Ruy Castro, ao escolher um personagem para biografar, sempre pensa em quais abordagens ainda não foram feitas sobre ele. O jornalista conta que quando teve a ideia de interpretar a vida de Carmen Miranda para o livro Carmen: uma biografia pensou em duas questões que nenhum outro biógrafo havia aprofundado sobre a cantora. A primeira missão era não ficar concentrado apenas na Carmen “norte-americana”, que está fartamente documentada, e sim lançar luzes sobre a sua vida no Brasil. Outro foco foi descrever o impacto que a dependência química de álcool e remédios causou no organismo da artista, já que esses abusos foram cruciais para sua morte precoce. Na ótica de Fernando Morais, que biografou Olga Prestes e o empresário de comunicação Assis Chateaubriand, “é muita pretensão, muita arrogância, muita soberba alguém dizer que biografia é definitiva”.
Autores do mês: Os biógrafos pioneiros
Embora menos conhecidos nos dias de hoje, alguns biógrafos já haviam deixado a sua marca no passado. Destaque para o projeto do pernambucano Otávio Tarquínio de Sousa (1889-1959), que surge nos anos 1930, ao lado de Gilberto Freyre, propondo uma visão mais humanizada da história. A partir de 1957 a editora José Olympio reeditou várias de suas obras, como lembra Hallewell
(2005, p. 516), na coleção História dos fundadores do Império do Brasil, “em 10 volumes, com um total de 193 ilustrações”. Otávio Tarquínio biografou, entre outras personalidades, o imperador D. Pedro I, Diogo Feijó, Evaristo da Veiga e José Bonifácio. O jornalista e biógrafo Raimundo Magalhães Júnior (1907-1981), que trabalhou na revista Manchete, por sua vez, gastava dias na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro pesquisando para os seus livros. Sua biografia Rui: o homem e o
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mito, de 1964, sobre o intelectual Rui Barbosa, causou polêmica ao apontar incongruências em suas ações políticas e em sua obra. Raimundo também escreveu vários livros sobre o escritor Machado de Assis, entre os quais Ideias e imagens de Machado de Assis (1956). Contribuiu, também, com as biografias A vida turbulenta de José do Patrocínio (1969) e José de Alencar e sua época (1971). Não pode ser esquecido o jornalista e biógrafo Francisco de Assis Barbosa (1914-1991), que inclusive foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1970. A historiadora Lilia Schwarcz (2017, p. 19), autora da biografia Lima Barreto: triste visionário, dedica-lhe uma menção especial por ter feito a “primeira biografia completa” do escritor, A vida de Lima Barreto (1952), definida por ela como um “guia de viagem”. E também elogia o esforço do jornalista do Correio da Manhã, Última Hora, revista Diretrizes, entre outros órgãos de imprensa, por ter liderado uma “verdadeira operação editorial com o objetivo de trazer de volta ao público, na década de 1950, a integralidade dos textos do autor”. Outras biografias de sua autoria foram Juscelino Kubitschek: uma revisão na política brasileira (1962) e Santos Dumont inventor (1973).
Iluminando conceitos: Schwarcz & Starling e os livros biográficos
As historiadoras Lilia Schwarcz e Heloisa Starling aceitaram o desafio da editora Companhia das Letras de organizar uma biografia do país, que recebeu justamente o título de Brasil: uma biografia. No texto de introdução da obra, justificam porque deixaram de lado a ambição de construir uma “história geral dos brasileiros” para abraçar a visão biográfica, ou seja, “conhecer os muitos eventos que afetaram nossas vidas, e de tal modo, que continuaram presentes na agenda atual”. Em seguida, as pesquisadoras apontam alguns elementos que compõem o conceito de biografar, úteis para os jornalistas que se lançam em aventuras semelhantes, inclusive abordando eventos ou personagens históricos em suas obras. Ao constatar que uma biografia é a evidência da “profunda conexão entre as esferas pública e privada”, as autoras acrescentam que “somente quando estão articuladas, essas esferas conseguem compor o tecido de uma vida, tornando-a real para sempre” (SCHWARCZ & STARLING, 2015, p. 19). Elas também sugerem atenção à multiplicidade das fontes, outro tema
caro aos jornalistas escritores de livros-reportagem. Consideram que em uma biografia sobre um país cabem “os grandes tipos; os homens públicos, as celebridades”, mas, também deve haver espaço para “personagens miúdos, quase anônimos” (SCHWARCZ & STARLING, 2015, p. 20).
Referências:
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. São Paulo: Civilização Brasileira, 1952.
________. JK: uma revisão na política brasileira. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988.
________. Santos Dumont inventor. São Paulo: José Olympio, 1973.
CASTRO, Ruy. Carmen: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil: sua história. São Paulo: Edusp, 2012.
MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Rui: o homem e o mito. São Paulo: Civilização Brasileira, 1964.
________. Ideias e imagens de Machado de Assis. São Paulo: Civilização Brasileira, 1956.
________. A vida turbulenta de José do Patrocínio. Rio de Janeiro: Sabiá, 1969.
________. José de Alencar e sua época. São Paulo: Lisa, 1971.
MORAIS, Fernando. Olga. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
SCHWARCZ, Lilia M.; STARLING, Heloisa M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
SCHWARCZ, Lilia M. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
SOUSA, Otávio Tarquínio de. História dos fundadores do Império no Brasil. 10 v. São Paulo: José Olympio, 1957.
Elaborada pelo professor do curso de Jornalismo da UFMA, campus de Imperatriz, Alexandre Zarate Maciel, que está cursando o doutorado em Comunicação na UFPE, a coluna Prosa Real traz, todos os meses, uma perspectiva dos estudos acadêmicos sobre a área do livro-reportagem e também um olhar sobre o mercado editorial para esse tipo de produto, os principais autores, títulos e a visão do leitor.
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Comunicação na Web
Jornalismo, Sociedade e Internet
Por Ana Célia de Sá
Notícia e conhecimento
Noticiar diz respeito a comunicar algo novo. Este ato pode acontecer diretamente entre membros de grupos sociais ou mediado pelo jornalismo, cujos valores estão legitimados na estrutura social, desde a profissionalização do jornalista no século XIX. A percepção da notícia como conhecimento leva à reflexão sobre as formas de aquisição do saber e as suas classificações.
A notícia pode ser considerada um documento público vinculado a eventos de repercussão social e validado a partir da publicação. Ela informa e orienta o ser humano e a sociedade no mundo, ocupando um lugar específico no continuum do conhecimento formal e do senso comum. Por centrar-se em eventos únicos, fixos no tempo e espacialmente localizados, a notícia não é considerada um conhecimento sistemático como o das ciências físicas, as quais se ocupam de coisas móveis e mutáveis em contextos espaço-temporais, ao mesmo tempo em que essas coisas possuem certa estabilidade em sua organização interna (PARK, 2008).
Por outro lado, a notícia não é enquadrada como história porque enfoca eventos isolados sem necessariamente conectá-los uns aos outros. “A história não só descreve eventos mas procura colocá-los no seu próprio lugar na sucessão histórica e assim descobrir as tendências e forças que encontram expressão neles” (PARK, 2008, p. 58). Neste ponto, o trabalho do repórter diferencia-se da atividade do historiador. Isso porque o primeiro registra o evento somente quando ele acontece, buscando o passado e o futuro apenas para complementar o presente. Já o segundo aprofunda a relação de um evento com o passado contextualizado. Um terceiro papel, que conecta um evento a determinações do futuro, caberia às ciências sociais e aos seus diversos ramos, conforme explica Park (2008).
Por enfocar o presente, naturalmente, a notícia assume qualidade transitória e efêmera, com variações quanto à sua durabilidade social. “Diferentes tipos de notícia têm diferente duração de tempo. Na sua forma mais elementar o relato da notícia é um simples ‘flash’, anunciando que um evento aconteceu. Se o evento for de real importância, o interesse por ele levará a uma maior análise e a uma familiaridade maior com suas circunstâncias. Um evento deixa de ser notícia tão logo
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a tensão provocada acabe e a atenção do público seja direcionada para um outro aspecto do habitat ou outro incidente novo e emocionante ou importante para prender sua atenção” (PARK, 2008, p. 59).
Recai-se, assim, na presentificação que sempre acompanha o jornalismo profissional, recurso utilizado para a vivência social do “agora”. Franciscato (2005) elenca cinco categorias descritivas de fenômenos temporais vinculados ao trabalho jornalístico: instantaneidade, simultaneidade, periodicidade, novidade e revelação pública. Juntas e inseridas no contexto histórico, elas interferem nas relações sociais e de sentido e na institucionalização de valores jornalísticos, com destaque para aqueles ligados à presentificação. Ao tentar controlar o tempo, o jornalismo busca garantir a manutenção da atualidade perante a efemeridade do discurso noticioso.
“A notícia tem um tempo de existência efêmero, seja em consequência da velocidade do movimento do mundo que desatualiza o relato jornalístico, seja pelos modos como a organização jornalística aplica a esta volatilidade mecanismos para sua substituição regular ou sua permanência em desdobramentos sucessivos” (FRANCISCATO, 2005, p. 18).
No contexto da internet, a notícia torna-se ainda mais fugaz devido à perspectiva de tempo real, à atualização em fluxo contínuo e ao aumento de canais de divulgação e publicação viabilizados pela tecnologia on-line. Surge, então, um novo olhar sobre a construção do conhecimento, o qual passa a ser compartilhado entre produtores tradicionais e grupos de usuários, estando os últimos mais ativos nos processos de produção e circulação de informações em comparação ao período que antecedeu a Web 2.0.
A combinação de saberes advindos de atores sociais diversos resulta no que Lévy (2007) conceitua como inteligência coletiva. Nela, todas as pessoas envolvidas contribuem com informações e conhecimentos pessoais, sem base em um sistema hierárquico e sem rigor organizacional – a coordenação dos saberes é coletiva. Esta aquisição de conhecimento, feita de forma dinâmica e interdisciplinar, pode também ser utilizada na construção da notícia jornalística na internet, facilitando a cooperação entre jornalistas profissionais e internautas.
Esta concepção associa-se à interatividade e à participação na Web 2.0, características que rearticulam os papéis de produtores e consumidores, mesmo que haja diferentes graus de interferência e poder. Como afirmam Jenkins, Green e Ford (2014), esses atributos da internet estimulam o envolvimento do público na produção e na circulação de serviços e mensagens, em vez de fazê-lo esperar por produtos finalizados exclusivamente pelos produtores corporativos. Esta ideia pode ser aplicada tanto ao entretenimento quanto ao jornalismo.
Percebe-se que o entendimento da notícia como conhecimento, vislumbrado desde os meios de comunicação tradicionais (impresso, rádio e televisão), pode ser mantido no cenário digital on-line. Porém a forma de construir esse conhecimento passa por mudanças fomentadas por aspectos tecnológicos (a exemplo do tempo real, da espacialidade virtual ilimitada, da multimidialidade e da ampliação dos meios de publicação) e sociais (como a postura mais ativa do usuário na produção de conteúdos).
Park (2008) ressalta que a notícia é uma das primeiras e mais elementares formas de conhecimento, com interesse mais pragmático do que apreciativo para o seu público. Ela incentiva o debate social, podendo levar a interpretações e formação de opiniões coletivas que orientam os cidadãos sobre assuntos relevantes da sociedade. “Portanto, parece que a notícia, como forma de conhecimento, contribui a partir do registro de eventos não só para a história e para a sociologia, mas para o folclore e a literatura; contribui não apenas para as ciências sociais, mas também para as humanidades” (PARK, 2008, p. 65).
Embora não seja classificada como um saber formal, a notícia ocupa lugar de destaque na sociedade, pois informa, impulsiona a deliberação pública e fortalece o agir coletivo. Desta maneira, os produtos jornalísticos contribuem para a construção de conhecimentos em diversos campos, a exemplo de política, economia, cultura, entre outros, e para a formação da memória coletiva.
Referências:
FRANCISCATO, Carlos Eduardo. A Fabricação do Presente: como o jornalismo reformulou a experiência do tempo nas sociedades ocidentais. São Cristóvão: Editora UFS; Aracaju: Fundação Oviêdo Teixeira, 2005.
JENKINS, Henry; GREEN, Joshua; FORD, Sam. Cultura da Conexão: criando valor e significado por meio da mídia propagável. Tradução de Patricia Arnaud. São Paulo: Aleph, 2014.
LÉVY, Pierre. A Inteligência Coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. 5. ed. São Paulo: Loyola, 2007.
PARK, Robert E. A notícia como forma de conhecimento: um capítulo dentro da sociologia do conhecimento. IN: BERGER, Christa; MAROCCO, Beatriz (Orgs.). A Era Glacial do Jornalismo: teorias sociais da imprensa. V. 2. Porto Alegre: Sulina, 2008.
Ana Célia de Sá é jornalista e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (PPGCOM-UFPE).
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Jornalismo Independente
Jornalismo e financiamento coletivo
Por Karolina Calado
Conferência Nacional convoca escolas a desenvolverem plano de ação sustentável
“ Vamos cuidar do Brasil cuidando das águas” é o tema da V Conferência Nacional Infantojuvenil de Meio Ambiente (CNIJMA) que acontecerá em Brasília, de 15 a 19 de junho de 2018. Essa conferência consiste em 4 etapas: escolar, municipal/regional, estadual e nacional. Na última etapa, serão reunidos 460 jovens, de 11 a 14 anos, que desenvolveram junto a suas escolas planos de ação para a transformação da realidade socioambiental local e regional.
Durante o mês de março, a comunidade escolar está se mobilizando para discutir a sustentabilidade em seu entorno e desenvol -
vendo seu plano de ação. A coordenadora de Educação Ambiental da Gerência de Direitos Humanos da Secretaria de Educação do Estado, Angela Gallo, explica como acontece essa primeira etapa da conferência nas escolas: “pessoas como pais, alunos e professores vão identificar uma situação-problema e vão arranjar soluções possíveis para amenizar tal problema ou no espaço físico da escola ou em seu entorno”.
O protagonismo estudantil é estimulado nessa conferência. A gestora da Educação Ambiental da Secretaria Estadual de Meio Ambiente acrescenta que se trata de um processo pautado pela participação democrática dos alunos. “Os alunos formam comissões, como a Comissão de Meio Ambiente e Qualidade de Vida. Essas comissões organizam junto ao professor-facilitador as conferências. Quando a conferência termina, essas comissões tendem a aumentar, e os alunos que um dia foram delegados são os próximos facilitadores, que
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se organizam em coletivos de jovens pelo meio ambiente”. Na escola, os alunos vão escolher seu delegado e o suplente para representá-los na etapa estadual. Também na conferência estadual, os alunos escolherão seus representantes para a conferência nacional. Tal escolha segue o seguinte princípio: “jovem educa jovem; jovem escolhe jovem; e uma geração aprende com a outra”.
A conferência nacional foi criada em 2003 a partir de uma iniciativa do Ministério do Meio Ambiente junto ao Ministério da Educação, e seu objetivo é “incluir o público infantojuvenil nos espaços de participação social, professores e toda a comunidade escolar no debate das questões socioambientais globais e locais e das políticas públicas de meio ambiente e educação” (SITE DA CONFERÊNCIA, 2018). Em sua primeira edição, foram envolvidas 15.452 escolas, com 5.658.877 de pessoas, em 3.461 municípios. Em Pernambuco, esta é a terceira edição e tem como tema “Vamos cuidar de Pernambuco cuidando da água”.
Questionada sobre as ações envolvendo o cuidado com a água no estado de Pernambuco, Genilse Gonçalves respondeu que várias ações têm sido executadas para tratar dessa temática, a exemplo de concursos de redação. “Os alunos mostram através de experimentos e desenhos que é possível viver com a escassez e com a abundância da água”.
Ao encontro de Gonçalves, Gallo diz que é função da escola trabalhar a cidadania e formar cidadãos conscientes do seu papel na sociedade, além de ensinar o respeito aos recursos naturais. Pontua que há muito engajamento nos projetos que envolvem água, inclusive de alunos que vivenciam a falta da mesma. A coordenadora cita que os alunos desenvolvem trabalhos com foco, por exemplo, no reaproveitamento da água do ar-condicionado, do reaproveitamento de água da chuva e no reúso da água da pia do banheiro para regar as plantas e lavar a escola.
Gonçalves também falou sobre conflitos e corresponsabilidades nas esferas micro e macro, em uma relação entre indivíduo e sociedade. “As pessoas estão mais comprometidas. Os setores empresarial e público começam a trabalhar em seu planejamento de atividade esse olhar socioambiental, analisam como conviver e usar de forma responsável os recursos naturais”.
Sobre o preparo dos professores para atuarem em temas como educação ambiental, a coordenadora Angela Gallo colocou que há um
trabalho sendo feito no estado de Pernambuco. “A Secretaria de Educação, através da Gerência de Direitos Humanos, oferece todo ano uma capacitação continuada para os profissionais que trabalham a educação ambiental, a exemplo dos técnicos da educação ambiental, mas não apenas para eles. Os técnicos são multiplicadores. Eles levam as informações para as suas regionais, ao todo são 16 regionais [subdivisões da secretaria] distribuídas em todo o estado de Pernambuco. A capacitação é feita com esses representantes das regionais, os quais se tornam multiplicadores de vários temas importantes para o desenvolvimento da educação ambiental. Os assuntos são fundamentados nas Diretrizes Curriculares Nacionais de Educação Ambiental e na LDB. Especificamente para a conferência, os professores estão tendo todo o suporte, capacitação e oficinas que foram feitas em cada regional.”
A gestora Genilse Gonçalves comenta que há repercussão positiva para quem participa da conferência. “A gente recebe os relatórios do MEC e visualizamos vídeos, inclusive, produzidos pelos próprios delegados, aqueles alunos que foram para a etapa nacional. Somos também informados acerca das escolas que realizaram as conferências e os trabalhos que terão continuidade”.
A coordenadora Angela Gallo acrescenta que “as escolas que participarem irão ser certificadas, e essa certificação poderá abrir uma porta para o Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE-escola sustentável)”.
A escola interessada deverá inscrever seu projeto de ação abordando a temática da água até o dia 3 de abril, através do seguinte site: http://conferenciainfanto.mec.gov.br/. A previsão é que escolas quilombolas, de assentamento rural, indígena, da rede federal, estadual e municipal participem da conferência estadual e, consequentemente, da nacional. Seus projetos deverão refletir a realidade local de cada comunidade.
Karolina Calado é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. Nesta coluna, proponho uma discussão acerca das questões que envolvem a economia política dos meios de comunicação, especialmente a partir da internet e dos modelos de financiamento coletivo.
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Opinião
Economia e sociedade na Guiné-Bissau
Por Arnaldo Sucuma
Durante este período pós-independência, concretamente de 1973 a 1980, sob comando do presidente Luís Cabral, o governo da Guiné-Bissau iniciou um processo de progresso econômico focado nas indústrias de base de pequeno porte. Segundo Monteiro (ex-ministro da Educação e dos Negócios Estrangeiros), “havia fábricas, havia ideias, criava-se bem-estar. Os primeiros anos de independência da Guiné-Bissau foram fabulosos em termos de investimento público no desenvolvimento”. Por outro lado, este período foi marcado também pelas relações políticas estremecidas entre políticos do Partido Africano Para Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Muitos atores políticos foram presos, torturados e perseguidos. Neste contexto, o país vivia sob um regime do partido único, que à época era o PAIGC. Este cenário continuou até nos anos 80, já sob comando do presidente João Bernardo Vieira, que assumiu o poder através de um golpe de estado em 14 de novembro de 1980, que se estendeu até junho de 1998, quando foi derrubado por um golpe militar, que gerou um conflito politico-militar.
Nos últimos vinte anos, que compreende final dos anos 90 até aos dias atuais, o país vem sofrendo constantes crises políticas, resultantes em quedas de vários governos, golpes de estado, cerceamento de liberdade de expressão e perseguições políticas veladas. Após a independência, a situação de violação dos direitos humanos deveria ser combatida e superada pelos
atores políticos que assumiram o poder, através de legislações mais modernas e políticas públicas que ajudam a preservar a integridade física e política dos indivíduos na sociedade. Infelizmente, constatou-se que os sucessivos governos que geriram o país ao longo dos quarenta e dois anos da independência constituem os principais violadores dos direitos humanos. Seus agentes usam o prestígio do cargo para cometerem atos que violam direitos humanos em nome do Estado.
Diante deste histórico de violência política e humana, percebe-se também que esta instabilidade governativa atinge fortemente a viabilização das políticas públicas que ajudam a minimizar as mazelas da pobreza e garantir a liberdade de expressão. Por isso, as organizações da sociedade civil vêm cobrando dos diversos governos uma intervenção nesta direção.
Em termos sociais, a relação entre o Estado e sociedade civil tem sido de muita cobrança por parte das organizações da sociedade civil em relação ao Estado sobre a redução da pobreza, oportunidade de emprego para jovens, garantias de liberdade de expressão, saúde e educação de qualidade. De acordo Teixeira, “A questão de equilíbrio social, segurança e paz, direitos e desenvolvimento são compreendidos com ausência do Estado em sua relação social” (2015, p. 444).
Uma evidência do agravamento da situação é o fato de que, desde as primeiras eleições gerais e multipartidárias realizada no país em 1994 até aos dias atuais, nenhum eleito para governar conseguiu terminar seu mandato, o que é muito
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grave.
Através de um dos documentários realizados pela TV Universitária da Universidade Federal de Pernambuco (TVU), produzidos na Guiné-Bissau, em parceria com a Associação Força Guiné/AFG, os jornalistas da Televisão da Guiné-Bissau/TGB denunciam as ameaças que os jornalistas sofrem sempre que é deflagrado um golpe militar (Documentários exibidos nos dias 17, 24 e 31 de julho de 2016, às 21h pela TVU).
A economia da Guiné-Bissau no espaço UEMOA
No campo econômico, após a independência política, o Estado Bissau Guineense tinha muitos investimentos, sobretudo com a instalação das indústrias de base, com ajuda de financiamento externo. Não obstante, essas empresas foram à falência por problemas de gestão. As empresas estatais foram criadas mediante financiamentos internacionais. A maioria das empresas supracitadas era viável e administrável. Porém, todas elas foram à falência por má gestão e uma administração ineficiente (BARROS, 2011).
Atualmente, o país enfrenta graves problemas econômicos, acompanhado de baixíssimo crescimento econômico. A integração econômica e política na África é uma realidade substancial, com vários blocos, que teve início na década de 80 e se intensificou na década de 90. No nosso estudo, vamos nos deter na região da África Ocidental (AO), onde a Guiné-Bissau está localizada. Na África Ocidental foram criados dois blocos, sendo um político e outro econômico. O bloco denominado político se chama Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), que foi criado em 28 de maio de 1975. Segundo Miyazaki e Santos: “A CEDEAO, embora criada apenas em 1975, com o tratado de Lagos (Nigéria), a proposta de uma comunidade que englobe toda a África Ocidental tem a sua origem nos anos 1960 e a Nigéria teria sido a sua mais importante e ardorosa proponente” (2013 apud RODRIGUES, 2016, p. 35). A criação do bloco visa fortalecer os países da região em relação à ameaça de invasão externa, combater a pobreza e fortalecer economias locais e regionais.
A CEDEAO possui uma primeira zona monetária denominada de UEMOA (União Econômica Monetária Oeste Africana), instituída pela UMOA (União Monetária Oeste Africana) que também instituiu um Tratado adicional que lhe munia do Banco Central dos Estados da África do Oeste (BCEAO) e do Banco Oeste Africana de Desenvolvimento (BOAD), instituições especializadas autônomas. Esse Tratado adicional que instituiu a UEMOA foi assinado em Dakar (Senegal), a 10 de janeiro de 1994, pelos presidentes de sete dos quinze países da CEDEAO, nomeadamente, Benin, Burkina-Faso, Costa do Marfim, Mali, Níger, Senegal e Togo.
A tabela abaixo mostra o tamanho da economia dos países que compõem o principal bloco econômico da região do oeste africano, dando ênfase para a Guiné-Bissau com o menor PIB da região. Ainda destacamos a taxa do crescimento daqueles países no período de 2016, onde a Burkina
Faso (11,12%), Costa de Marfim (7,51%) e Senegal (6,57%) registraram as maiores taxas de crescimento. A economia guineense cresceu 5,20% neste mesmo período, que poderia ser algo bastante interessante se as suas exportações não fossem apenas impulsionadas pelo grande volume da venda de castanha de caju bruta para o mercado internacional. Este produto, por não agregar valor, a sua contribuição para o desenvolvimento social e econômico é bastante tímida.
A Guiné-Bissau é o único país da lusofonia neste espaço, com o menor PIB, que corresponde a apenas 1,21% de toda a riqueza da união. Os Produtos Internos Bruto dos países da UEMOA são caracterizados, em grande parte, pelos produtos primários que incluem a produção e exportação de algodão, amendoim, azeite de palma, cacau, castanha de caju, café, madeira, peixe, bananas, inhame, petróleo, gás, diamantes, ouro, fosfato, urânio etc. Esse baixo PIB reflete também na incapacidade financeira do país de investir pesado nas políticas públicas como um todo e reduzir a pobreza.
Em suma, apesar de esforços realizados para a obtenção da independência e ensaiar diversos projetos de desenvolvimento, que não tiveram continuidade, fica evidente a necessidade de a classe política e a sociedade civil organizada de forma geral construírem uma agenda conjunta, acompanhada de um planejamento estratégico que permita realizar reformas profundas no campo político (no aparelho de Estado como um todo) e econômico, capaz de trazer benefícios concretos voltados para o desenvolvimento social e econômico do País, assim como de combate à pobreza e promoção de direitos humanos. Desta maneira, estão colocados, para os agentes públicos no exercício do poder e a sociedade civil de uma maneira geral, os desafios da constante instabilidade política e do fraco crescimento econômico do País.
Referências:
BARROS, Filinto. Testemunho. Bissau: INACEP, 2011.
MONTEIRO, João José Silva. Os primeiros anos de independência são fabulosos. Disponível em: www.lusa.pt. Acesso em: 10 out. 2015.
RODRIGUES, Julio. A inserção da Guiné-Bissau na União Econômica e Monetária Oeste Africana (UEMOA): limites e oportunidades para o desenvolvimento socioeconômico do país (1997-2013). Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais, 2016.
TEIXEIRA, Ricardino Jacinto Dumas. Cabo Verde e GuinéBissau – As Relações entre a Sociedade Civil e o Estado. Recife: Editora da UFPE, 2015.
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é doutorando no Programa de Pós-
em Serviço Social da UFPE.
Arnaldo
Sucuma
Graduação
Opinião
O comportamento predatório das mineradoras no Brasil
Por Marcos Costa Lima
Estava eu a reler a Introdução do último livro de François Chesnais (2017) – Finance Capital – para apresentar a meus alunos quando caí sobre um trecho onde ele fala da predação da natureza em países periféricos que não têm regulação sobre seu território nem sobre os seus recursos naturais.
“ Quando se deixa o círculo do capital financeiro, a preeminência dos bancos e fundos sobre as firmas começa a se apresentar. Pequenas corporações são mais propensas do que as maiores a serem objeto de aquisições alavancadas (LBOs) por fundos de capital próprio - a forma mais comum de capital predatório. Quando se desloca para a periferia do sistema mundial analisado em sua dimensão da globalização financeira, principalmente no “quintal” dos EUA, a importância do capital financeiro é impressionante, na medida em que afeta as interfaces de investimento financeiro e se funde com a acumulação de capital doméstico, consolidando oligopólios baseados na depredação das dotações de recursos naturais no agronegócio e na mineração”.
Pois bem, dois dias antes, saíra uma notícia grave que denunciava a violência de multinacionais com relação aos recursos naturais, no caso, em Barcarena, no Pará, quando a empresa norueguesa lançava, de forma criminosa, resíduos de sua fábrica de alumínio em rio da Amazônia. O mais irônico da questão é que um país tão notoriamente defensor do meio ambiente em seu território, praticava, via uma de suas multinacionais, a degradação ambiental em um país periférico (1).
Segundo Catarina Barbosa (2018), treze comunidades ribeirinhas, que dependem dos recursos naturais dos igarapés Bom Futuro, Gurajuba e dos rios Murucupi e Tauá, na bacia do rio Pará, em Barcarena, viram seus quintais e poços artesianos serem tomados por uma lama vermelha na sexta-feira (16/fev). Chovia forte na região. Mas a certeza era outra. Houve o que eles temiam há muitos anos: o vazamento de rejeitos químicos das atividades de processamento da mineradora Hydro Alunorte, de capital norueguês, reconhecida como a maior refinaria de bauxita do mundo.
O Instituto Evandro Chagas (IEC), em Belém, foi acionado pelo Ministério Público estadual e pelo Ministério Público Federal para avaliar os impactos socioambientais e riscos à saúde dos moradores das comunidades. Barcarena tem 112 comunidades ribeirinhas e um total de 121.190 habitantes, segundo o último censo do IBGE. Na quarta-feira (21), a Hydro Alunorte negou o vazamento da barragem de rejeitos de bauxita. A empresa é de propriedade da multinacional norueguesa Norsk Hydro.
A Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Barcarena também negou o vazamento. O descaso das autoridades e da empresa lembra como foram tratados os moradores de Mariana (MG) (Dia 05 de novembro de 2015 duas barragens de rejeitos de mineração, Fundão e Santarém, ambas da em-
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presa Samarco, se romperam, no estado de Minas Gerais. A lama contaminada, saída de Mariana em Minas Gerais, atingiu o oceano, passando pelo estado do Espírito Santo, e destruiu a vida de milhares de pequenos moradores). No caso do vazamento no Pará, a contaminação começa na cabeceira do rio Murucupi, depois cai dentro do rio Pará e aí vai para todo o lado, deixando um rastro de contaminação.
Conforme o laudo do Instituto Evandro Chagas (3), os produtos químicos encontrados na água do igarapé Bom Futuro e rio Pará são chumbo, nitrato, sódio e alumínio, que podem provocar doenças gástricas e até câncer.
Jason Moore, que é o autor do conceito de “cheap nature”, nos alerta sobre uma obviedade esquecida pelo homem moderno, a saber, que os humanos são parte da natureza e que tudo que fazem está emaranhado no “tecido da vida”. Ele reposiciona a ecologia política na qual a modernidade seja entendida como uma série de processos e projetos para recriar com a natureza este tecido que vem sendo destruído à medida que o capitalismo avança. De 1450 a 1750 tivemos uma revolução na produção do meio ambiente sem precedentes, segundo ele, desde a revolução neolítica. Para Moore, estamos carecendo de um novo vocabulário conceitual e temos que sair de um pensamento dicotômico homem/natureza; sociedade/natureza, ou seja, de uma visão dualista para tomarmos outro caminho, se a sociedade mundial quiser sobreviver e caminhar na direção de uma visão generativa, criativa, dinâmica e multinível. Portanto, uma nova política ontológica é crucial para forjar um projeto político emancipatório e sustentável no século XXI, sem estar atrelado a um pensamento unidimensional que supervaloriza a economia, os ganhos imediatistas de produtividade a qualquer custo; a destruição do patrimônio natural e imaterial, onde a vida humana e extra humana possam libertar-se dos ditames e estrutura do capital.
A destruição da Amazônia, por falta de regulação do Estado, que tem trabalhado na facilitação dos grandes interesses privados, como é o caso da multinacional norueguesa que opera no Pará, e que extrai bauxita, recebe incentivos do governo brasileiro que lhe dá subsídios energéticos vultosos, mas destrói a natureza e polui a vida de milhares de populações pobres. Como afirma Maurílio Monteiro (2005), os projetos de mineração foram apresentados à sociedade como um processo produtivo portador de alta tecnologia e de progresso, e décadas depois, revelaram-se como verdadeiras “bombas de efeito retardado”.
Concluo, recolocando a questão fundamental posta por um dos intelectuais lúcidos deste Brasil, o economista Carlos Brandão (2010), que reforça a direção deste artigo: [“...poder-se-ia afirmar que o Brasil, antes que uma nação, deveria ser caracterizado como uma mera e enorme plataforma territorial-econômica, que conjuga alta e fácil valorização para capitais mercantis e financeirizados, com, provavelmente, a maior máquina de exclusão, esterilização de excedente social, depredação cultural, desfiliação, degradação ambiental e predação de pessoas e espaços geográficos do planeta?”
Notas:
1. André Cabette Fábio (2017), “Por que a Noruega financia um fundo de conservação da Amazônia?” Após uma queda de 15% em 2014, a taxa de desmatamento na Amazônia — a quantidade de terras que têm toda a cobertura vegetal destruída anualmente — teve um aumento de 24% em 2015 e, em seguida, de 29%, segundo dados preliminares de 2016. As informações são do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Estratégicas). Quase 8.000 km² foram desmatados em 2016, o pior índice desde 2008. Esse aumento causou um problema político ao governo Michel Temer, durante a visita do presidente à Noruega ao país. Autoridades do país escandinavo anunciaram o corte pela metade de seus repasses ao Fundo Amazônia, que serve para implementar ações de conservação da floresta. O ministro norueguês do Meio Ambiente, Vidar Hegelsen, afirmou que os cortes representarão R$ 166 milhões a menos para o fundo neste ano de 2017. Ver: https:// www.nexojornal.com.br/expresso/2017/06/23/Por-que-a-Noruega-financia-um-fundo-de-conserva%C3%A7%C3%A3o-da-Amaz%C3%B4nia, acessado em 03/03/2018.
2. Vilela, Marcelo (2018)“Laudo confirma vazamento de rejeitos de mineradora em Barcarena, no PA. in: A Nova democracia. Ano XVI, nº 205, fevereiro 23.
3. “Instituto Evandro Chagas confirma vazamento de resíduos tóxicos em Barcarena (PA)”: http://radios.ebc.com. br/reporter-amazonia/2018/02/laudo-do-instituto-evandro-chagas-confirma-vazamento-de-residuos-toxicos; acessado em 3/03/2018
Referências:
Barbosa, Catarina (2018), “Vazamento de rejeitos da Hydro Alunorte causa danos ambientais em Barcarena”. In: Amazonia Rea. http://amazoniareal.com.br/vazamento-de-rejeitos-dahydro-alunorte-causa-danos-socioambientais-em-barcarenano-para/l, acessado em 27/02/2018.
Brandão, Carlos (2010), “Acumulação Primitiva Permanente e desenvolvimento Capitalista no Brasil Contemporâneo”. In: Alfredo Wagner B. de Almeida et al: Capitalismo globalizado e recursos territoriais. Rio de Janeiro: lamparina, p.39.
François Chesnais (2017). Finance Capital Today, Corporations and Banks in the Lasting Global Slump. Leiden: Brill, p.8.
Monteiro, Maurílio de Abreu (2005), “Meio século de mineração industrial na Amazônia e suas implicações para o desenvolvimento regional”. In: ESTUDOS AVANÇADOS 19 (53), p.187-207.
Marcos Costa Lima é professor do Programa de PósGraduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco.
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Opinião
Privatização da Eletrobras
Por Edval JP Santos
Aempresa pública tem um papel crucial na economia brasileira. A empresa pública garante a estabilidade, quando o setor privado desiste do negócio. Ela pode tanto estimular, como estabelecer padrões ou limites ao setor privado. Além de ser um mecanismo que a população tem de ter controle sobre a macroeconomia. Fazer face à concentração irrestrita de renda, de maneira que a política econômica sirva aos interesses da maioria da população e não apenas aos interesses de uma minoria rentista. É o controle através do voto. No Brasil, 6 pessoas detêm a mesma riqueza que os 100 milhões mais pobres de brasileiros. A maioria perde com a péssima distribuição de renda. Lembrando que o enriquecimento extremo não é necessariamente resultante de uma atividade lícita ou uma dádiva divina.
A ELETROBRAS foi criada em 1962 pelo presidente João Goulart. Tem 47 usinas hidroelétricas, várias com mais de 30 anos e, portanto, já estão pagas. A ELETROBRAS é uma empresa lucrativa. Para empresas públicas desse porte, a conta não é apenas de receitas em um determinado ano. O horizonte tem que ser de décadas. O pensamento não é o da bolsa, mas sim o estratégico. O que reforça a necessidade de estarem submetidas à supervisão direta do gestor público. Isso não quer dizer que não haja problemas, que as empresas públicas brasileiras não estejam em parte capturadas por corporações ou grupos de interesse. No entanto, pode-se buscar melhorar a governança e a transparência, nunca perder o controle. As ações dessas empresas deveriam ser negociadas exclusivamente em bolsas nacionais.
Estima-se que a venda deve render entre 10 bilhões e 20 bilhões para uma empresa em que a receita líquida em 2016 foi de 60 bilhões (EBITDA = Earnings before interest, taxes, depreciation, and amortization, sem juros ou impostos). Valor de venda que está muito abaixo do valor real, como é de praxe nessas “vendas” feitas por neoliberais. Portanto a venda não se justifica do ponto de vista contábil. Os argumentos de que os recursos da ven -
da vão ser usados para abater a dívida pública ou que a iniciativa privada é necessariamente mais eficiente são falsos. Usar um problema conjuntural para apresentar uma solução estrutural é uma linha de argumentação digna do sofismo. No entanto, não é uma manobra de gente estúpida. É uma ação coordenada de um grupo ou quadrilha muito bem articulado.
No máximo os recursos da venda da ELETROBRAS devem ser usados para abater parte das despesas recorrentes e fugir de questões legais do excesso de gastos sem orçamento. Aliás, se desfazer de patrimônio para pagar despesas recorrentes é estupidez. É vender a casa para ir dormir em um hotel. Uma hora o dinheiro acaba, fica-se sem a casa e sem o hotel. Estima-se que a venda da ELETROBRAS possa cobrir cerca de 15 dias do rombo gerado pelo golpe de Aécio e Temer. Esse, sim, um verdadeiro crime de responsabilidade. Fugir do crime que cometeu, é o que tenta todo criminoso.
A dívida pública, que é a farra dos rentistas e virou uma bola de neve, precisa ser auditada.
O primeiro problema grave:
Observa-se que se dá muita liberdade e quase nenhuma restrição para alienação de patrimônio público. Governantes não deveriam ter a liberdade de vender algo do qual são apenas gerentes e não donos, sem consultar o verdadeiro dono que é o povo brasileiro. Para vender patrimônio público, teriam que obrigatoriamente apresentar isso como programa de governo em campanha eleitoral. Certamente, não deveria ser permitido nenhuma alienação realizada por um governo temporário. Tem-se uma falha na própria constituição. Como escreve Gilberto Bercovici, Professor Titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da USP: Trata-se de uma expropriação para a qual não há regulamentação.
O segundo problema grave:
Observa-se que a alienação de patrimônio
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público realizada por neoliberais tem um roteiro bem conhecido. Trata-se de negociata. desvaloriza ativos da empresa → se for feito algum investimento, é para o comprador →
planta notícias sobre a ineficiência da empresa →
fatia a empresa, se necessário → vende para grupos amigos.
No caso em questão, o senhor Temer é um governante que assumiu sem ser eleito, portanto, deveria ficar automaticamente impedido de se desfazer de patrimônio público. De acordo com Gilberto Bercovici: “se a negociata continuar terá que ser revertida”. Como diz o senador Roberto Requião: “não compre mercadoria roubada”.
O terceiro problema grave:
Quem compra vai recuperar todo o dinheiro pago, usando para isso a tarifa. Assim pagamos novamente por algo que já temos!!! O investidor ganha a empresa gratuitamente e cobra para fazer investimentos.
1. Impacto na tarifa. No fim quem paga ao governo o preço da compra é a população. O investidor deve recuperar todo o valor pago. A população vai pagar mais uma vez por uma empresa que é dela e algumas já estão pagas.
2. Quando não houver lucro, pode não ocorrer investimento, o que pode provocar apagão.
3. Impacto nos recursos hídricos. O rio não é apenas para gerar energia. Hoje já existem problemas no baixo São Francisco, devido à redução da vazão na represa de Xingó.
4. Agências não funcionam para o consumidor. O consumidor é o elo mais fraco. São facilmente capturadas pelas empresas que elas deveriam regular.
5. Impacto na integração do sistema.
6. Impacto na política energética.
7. Impacto no planejamento estratégico.
8. Impacto no desenvolvimento tecnológico.
9. Impacto na soberania do país.
10. Impacto em programas estratégicos, como o programa nuclear e o programa de energias alternativas.
Considerações finais
Essa agenda neoliberal é antiga. É a agenda dos descendentes de Dona Maria I a louca, da UDN, dos lacerdistas, dos partidários de Eu -
gênio Gudin, do golpe liberal de 64, do PSDB (herdeiros da UDN). É o paradoxo da riqueza brasileira, que infelizmente foi descoberta antes da independência, logo no início da colonização. Atraindo todo tipo de vigarista. Vinham para o Brasil com a esperança de ficar rico e voltar para Lisboa. Hoje, exploram predatoriamente e, ao enriquecer, compram uma casa em Miami ou Orlando. Alguns preferem Paris.
Os absurdos não param aí, são muitos. Vejamos uma pequena lista:
• 100 % da comunicação em mãos de multinacionais (incluindo o satélite).
• Privatização dos bancos públicos. Banco do Brasil re-estruturado pelo Itaú.
• BNDES fora do investimento em infraestrutura.
• Entrega de minerais estratégicos em reservas ambientais. Ação de assaltantes contra a soberania nacional.
• Pseudo-reforma política para preservar grupos.
• Ditadura do judiciário. (“Com tudo”, como falou o senador Romero Jucá).
• Privatização dos Correios
• Privatização da Casa da Moeda.
• Dar acesso ao exército estadunidense à Amazônia brasileira.
• Entregar a EMBRAER e o espaço aéreo.
• Entregar o urânio e nióbio.
Finais mas não tanto
A grande imprensa serve apenas a interesses de seus proprietários e não ao interesse público. Enquanto a comunicação puramente pública é quase inexistente. De 2013 para cá, o transe e estupefação foram crescendo, como que paralisando o poder de reação. Irresponsáveis, tolos úteis e mal intencionados juntos para sacrificar o país. Não se pode ceder o estado de direito, a democracia e a independência do Brasil. Não há um estado sem patrimônio. Não há democracia sem povo. Em meio a essa desesperança, é necessário lutar por nós, por nossos filhos, por nossos netos.
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Edval J. P. Santos é PhD e professor titular de engenharia da UFPE.
Opinião
Reducionismo ideológico e corporativismo judicial
Por Rubens Pinto Lyra
Dentre os cacoetes presentes na atualidade política e social que mais a apequenam, destacam-se o comportamento e o raciocínio maniqueísta de parcelas significativas da intelligenztia e das corporações estatais. Elas só conseguem enxergar o bem de um lado e o mal do outro, sem nuances ou relativizações.
A primeira questão diz respeito a como destacados ideólogos de direita formulam análises nas quais o objeto de suas críticas tem características grosseiramente simplificadas. Assim, não consideram o pensamento de esquerda um gênero no qual cabem várias espécies de ideologias, reduzindo-o, caricaturalmente, a uma só.
Entendem que todos os que se pretendem marxistas pensam da mesma forma e todos os socialistas são comunistas e contrários à democracia, merecendo, indistintamente, o epíteto de “esquerdopata” e “totalitário”.
Por esse ângulo, ignoram as diferenças antagônicas que opõem dois tipos de socialismo: o leninista, que justifica como necessário o sacrifício das liberdades democráticas e do sufrágio universal, em nome da luta contra a dominação burguesa, e o democrático, que sempre defendeu sua imprescindibilidade, denunciando com veemência os regimes de partido único.
Nessa linha de raciocínio, reduzem a disputa e os posicionamentos políticos ao apoio incondicional ou a oposição sem tréguas ao PT e também não distinguem as expressivas diferenças existentes entre os seus filiados.
Ilustre-se essa análise com o seguinte comentário de Ruy Fausto, um dos mais reputados teóricos da esquerda brasileira:
A maioria dos ideólogos da nova-velha direita – trânsfugas da esquerda, frequentemente - opera, em seus ataques, uma espécie de homogeneização de todo o campo da esquerda. Assim, Reinaldo de Azevedo não para de afirmar que não há diferença entre esquerdista do tipo estalinista e um homem de esquerda de tipo democrático. É como se ele dissesse, por exemplo, que entre Andrei Jdánov, teórico stalinista do realismo socialista e Cornelius Castoriadis, pensador grego-francês da esquerda libertária e democrática, não há diferença essencial. Ora, o erro está em que existe entre os dois um abismo: um é totalitário, outro não. Essa diferença é tão importante
quanto a oposição entre direita e esquerda, embora não venha a abolir essa segunda polaridade (FAUSTO, 2017, p. 57).
Somente a ideologia, que deforma a apreensão do real, condicionando-a a valores e interesses determinados – como os de classe -, pode explicar que pessoas intelectualmente qualificadas possam expressar pontos de vista tão indefensáveis, como faz a direita brasileira. Neles, como dizem os franceses, inteligência e cultura, de um lado, e ideologia e parti pris, do outro, hurlent d’être ensemble.
Na sua exacerbação maniqueísta, subordinam todos que não aceitam a sociedade ser regida, sem qualquer controle, pelo mercado, à condição de ignorantes ou sectários, ou ambos, assumindo, assim, o totalitarismo ideológico que dizem combater.
Essa forma de pensar da nata da direita, assim como o autoritarismo profundamente incrustado na sociedade, concorrem para que corporações influentes, na defesa de seus privilégios, se deixem determinar por posicionamento conservador, de nítido caráter maniqueísta.
Não é outra a postura das entidades representativas dos magistrados e dos integrantes do Parquet. Põem ostensivamente de lado os valores da justiça social e da ética, na sua apreciação dos penduricalhos de que se beneficiam para justificar a defesa destes, invocando apenas critérios de duvidosa legalidade.
Para tanto, utilizam teses extravagantes para justificar inaceitáveis privilégios. Assim, os diferentes auxílios atribuídos aos que já ganham os mais altos salários do serviço público se justificariam como forma esdrúxula de compensar a ausência de reajustes salariais e de minimizar a diferença das suas remunerações em relação a dos advogados mais bem pagos do país.
A dar-lhes razão, não somente os magistrados e procuradores, mas também docentes universitários que iniciam suas carreiras com doutorado - cuja preparação exige que fiquem, durante anos, sem auferir salários - e todos os portadores de elevada qualificação seriam legitimados a pleitear remunerações segundo os mesmos critérios de mercado! Ademais, o pleito em questão ignora candidamente que a ampla maioria dos milhares de magistrados e membros do Ministério Público não tem o nível de conhecimento jurídico e o talento dos grandes advogados a cujos proventos querem nivelar os dos seus integrantes. E
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parecem deslembrar-se de que nenhum advogado tem prerrogativas comparáveis às garantias de estabilidade, vitaliciedade irredutibilidade salarial e aos poderes inerentes a juízes e procuradores. Ora, tais vantagens não devem ser contabilizadas no cálculo de atribuição de salário?
Gaspari considera que “os penduricalhos transformaram-se em “uma ferida na cara do Judiciário, agravada pela má qualidade da argumentação dos magistrados na sua defesa” (FSP, 1.2.2018).
Magnoli lembra que Gilmar Mendes fulminou a “re-significação do auxilio-moradia, qualificando-o como a “ponta de um iceberg” que fabrica castas privilegiadas (FSP,10.2.2018). O que é mais grave: da Torre de Marfim em que se refugiam, as referidas corporações pretendem criminalizar as críticas a elas endereçadas, por, supostamente, denegrirem a honra de seus membros e desmoralizá-los, mesmo sendo desprovidas de cunho pessoal (FSP. Poder, 31.1.2018).
Mas essas críticas expressam apenas o sentimento, compartilhado pela sociedade, de rejeição à escandalosa desigualdade de remuneração que beneficiam apenas algumas castas do serviço público e a exigência que ela não tenha como parâmetro principal o mercado, ou a mera legalidade, mas a observância dos princípios de equidade e de justiça distributiva. A Folha de São Paulo lembra que a Justiça brasileira custou, em 2015, quase 80 bilhões de reais (dos quais cinco bilhões devem ser creditados aos penduricalhos, pois que, com base na isonomia, outras carreiras jurídicas passaram a ter o mesmo direito). Ou seja, o equivalente a 1.3% da renda do país, reproduzindo, no setor público, a concentração de renda que existe na sociedade.
Esse jornal revela ainda que, de 2014 para 2015, os penduricalhos do Judiciário elevaram-se em espantosos trinta por cento: “o percentual extravagante decorre em grande parte das benesses que magistrados desfrutam, incompatíveis com o desenvolvimento econômico nacional” (FSP. Editorial 31.1.2017).
Já a despesa média com cada magistrado atingiu 47,7 mil reais por mês (FSP, 21.1.2018). A Folha considera “especialmente escandaloso” o auxílio-moradia de 4.377 reais, concedido a todos os magistrados brasileiros por meio de decisão provisória do Ministro do SFT, Luiz Fux (FSP, 31.1.2017).
Fux, que tem uma filha desembargadora recebendo auxílio-moradia, “reteve por três anos no STF o processo que contesta a legalidade do mimo classista”. Também o juiz Marcelo Bretas recebe com sua mulher, como ele juíza, 8.600 reais, por aquele auxílio, apesar de morarem em uma mesma residência (GASPARI, 31.1.2018).
A Justiça (PJ e MP) está, inquestionavelmente, na berlinda, sendo que o leque ideológico dos que a cri-
ticam vai da esquerda, até algum tempo quase isolada na matéria, aos que professam convicções liberais direitistas, como Demétrio Magnoli.
O debate sobre o seu desempenho mostra que o ativismo judicial “capturou a Justiça para usá-la como um talismã que confere aos juízes o poder extraordinário, ilegal, de reinterpretar a lei segundo suas convicções ideológicas”. A sua reação face à questão do auxílio constitui “passo ousado na escalada da re-significação: a lei deve ser aquilo que seus interesses corporativos dizem que é “(MAGNOLI, 2017).
O corporativismo judicial traz, com cada vez mais força, o seu perigoso concurso à consolidação de um “Estado de exceção”. Mas, para ele, existe um antídoto: mais democracia.
Um dos mais destacados sociólogos da atualidade, Boaventura de Sousa Santos nos fornece sobre a matéria as mais sábias conclusões:
A independência judicial é um dos bens mais preciosos da sociedades democráticas. Só que, em muitos países, ela se transformou em independência corporativa. E a independência corporativa é um boicote à independência judicial democrática. Ela foi criada para defender os interesses democráticos dos cidadãos e não os interesses de classe. E, ao contrário do que se pensa em alguns meios judiciários, a independência judicial democrática pode exigir o controle externo do poder judicial (SANTOS, 2010, 123).
Referências:
EDITORIAL. Ajuda dispensável. FSP, São Paulo, 21.1.2018.
EDITORIAL. Regalias judiciárias. FSP, São Paulo, 31.1.2017.
FAUSTO, Ruy.Caminhos da esquerda: elementos para uma reconstrução. São Paulo, Cia. de Letras, 2017.
GASPARI, Elio. O Judiciário resolveu ser réu. Colunistas. FSP, São Paulo, 31.1.2018.
MAGNOLI, Demétrio. Patrimonialismo, a outra face. Colunistas. FSP, 10.2.2018.
PODER. Associação de juízes diz que crítica a Bretas é campanha de desmoralização. FSP, São Paulo, 29.1.2018.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da sociedade. São Paulo, Cortez Editora, 2010.
Rubens Pinto Lyra é Doutor em Direito Público e Ciência Política.
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Opinião
CEPAL, 70 anos de história
Por Jean De Mulder F.
AComissão Econômica para a América Latina (CEPAL), com sede em Santiago, no Chile, comemora 70 anos de trabalho. Fundada em 25 de fevereiro de 1948, a CEPAL é uma das cinco comissões regionais das Nações Unidas (NU). Foi fundada com o objetivo de contribuir para o desenvolvimento econômico da América Latina, coordenar ações voltadas para sua promoção e fortalecer as relações econômicas dos países da região entre si e com as demais nações do mundo. Posteriormente, sua atuação foi estendida aos países do Caribe e o objetivo de promover o desenvolvimento social foi incorporado.
Sob uma perspectiva histórico-estruturalista, a CEPAL concebeu uma teoria que compreendeu o subdesenvolvimento regional como condição estrutural das economias periféricas, buscando formular políticas econômicas que respondessem às condições históricas da América Latina. É justamente essa característica que diferencia a CEPAL em relação à Organização dos Estados Americanos (OEA), em que os Estados Unidos exercem forte influência de acordo com os seus interesses.
A CEPAL tem sido uma referência com pensamento econômico próprio, pensando, refletindo e propondo alternativas aos governos da região. Ela tem como ponto de partida, desde suas origens, o desenvolvimento dos países, elaborando um pensamento estruturalista, cuja característica central é o método “histórico estrutural”, o qual analisa como as instituições e a estrutura produtiva herdadas condicionam a dinâmica econômica dos países
em desenvolvimento e geram comportamentos que são diferentes do comportamento das nações mais desenvolvidas. O método está focalizado na idéia de desenvolvimento tardio da América Latina, tendo como característica fundamental a “heterogeneidade cultural”. Os principais problemas econômicos e sociais da América Latina são o foco de análise, com base no desenvolvimento teórico de Raúl Prebisch e Celso Furtado (CEPAL, 2011. Cf. Atualidade do pensamento de Celso Furtado na avaliação do desenvolvimento social da América Latina), pensadores que influenciaram as mentes mais brilhantes do pensamento econômico e social do continente (Juan F. Noyola, Anibal Pinto, Osvaldo Sunkel, Fernando Fajnzylber, Ricardo
Bielschowsky, José A. Ocampo, entre outros). Sob essa perspectiva histórico-estruturalista, a CEPAL concebeu uma teoria que compreendeu o subdesenvolvimento regional como condição estrutural das economias periféricas, buscando formular políticas econômicas que respondessem às condições históricas da América Latina. Nesse sentido, “sua proposta se apresentava como “modernizadora” e “industrialista”, em contraponto a um pensamento “identitário”, caracterizador de uma identidade latino-americana” (Valdés, Eduardo D. El pensamiento latinoamericano em el siglo XX. Tomo II: Desde la CEPAL al neoliberalismo (1950 – 1990). Santiago: Biblios – Politeia, 2003).
Antes do desenvolvimento do pensamento econômico da CEPAL, argumentava-se que havia apenas um modelo de desenvolvimento e que a modernização poderia trazer os mesmos efeitos sociais aos países do terceiro mundo em uma trajetória linear: industrialização, urbanização, aumento no grau de escolaridade, baixa mortalidade e maior desenvolvimento político. A CEPAL desafiou tal teoria da modernização e desenvolveu uma teoria do desenvolvimento da América Latina, da nossa região, superando o eurocentrismo e a ideia de um modelo único.
A visão da CEPAL foi muito clara: fazer com que o desenvolvimento desigual entre os países centrais e os países periféricos (desenvolvidos e subdesenvolvidos), a heterogeneidade estrutural das economias de nosso continente, a disparidade entre os termos de troca entre os sujeitos e os produtos com valor agregado que a região importa, as políticas de industrialização e a necessidade de integração entre os países da região se tornassem o centro da discussão.
Do mesmo modo, a CEPAL propôs a ideia de “desenvolvimento interno”, apostando na industrialização e diversificação em vários ramos e setores da economia, complementada pela redução necessária da dependência externa do comércio exterior. Nesta proposta de mudança para o desenvolvimento, o Estado ocupou o papel de grande estrategista para reduzir o desemprego, acabar com o desequilíbrio externo e a deterioração dos termos de troca. Com a crise financeira do início dos anos 80, houve uma forte crítica dos projetos de desenvolvimento nacional e da industrialização
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com o forte apoio do Estado. A crise da dívida foi um dos grandes fatores que condicionou a dinâmica do desenvolvimento em nossa região. A pressão dos países centrais e a posição inflexível das agências de crédito
multilaterais, tais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, fizeram com que o Estado se visse forçado a fazer ajustes fiscais fortes e a redefinir os gastos públicos, a fim de garantir recursos suficientes para o pagamento da dívida pública. Nestas condições, o neoliberalismo tornou-se o pensamento econômico dominante da região, apoiado em vários países por ditaduras militares que reprimiram violentamente qualquer forma de pensamento alternativo. Consequentemente, o pensamento da CEPAL acabou sendo erradicado das universidades e banido das recomendações políticas das organizações internacionais.
No entanto, a história nos mostrou a importância, relevância e transcendência do pensamento que a CEPAL desenvolveu sobre as questões mencionadas anteriormente e sobre a integração das economias dos países da América Latina as do resto do mundo, levando em consideração aspectos fundamentais para uma economia sustentável e duradoura, como, por exemplo, o respeito ao meio-ambiente.
As prioridades da CEPAL em sua agenda foram atribuídas a questões de política pública em relação às características e problemas históricos dos países latino-americanos no contexto mundial: a necessidade de industrialização, os efeitos da dívida externa, a igualdade como eixo de desenvolvimento e crescimento econômico, o respeito pelo meio ambiente, o papel do Estado em reduzir as desigualdades, os efeitos dos programas de distribuição de renda, os impactos das novas tecnologias, etc., são alguns dos principais problemas que a CEPAL vem pesquisando e discutindo. A partir desta perspectiva, propôs a ideia de “desenvolvimento interno”, apostando na industrialização e diversificação em diversos ramos e setores da economia.
A CEPAL nunca foi isenta de críticas, não só pelo seu diagnóstico de problemas latino-americanos, mas também pela percepção de seus críticos quanto à globalização e à economia privada como eixos centrais de desenvolvimento para que se alcance uma economia “aberta, livre e competitiva”. Essas críticas são injustificadas, uma vez que, em se tratando de uma “economia de iniciativa privada”, esta é privilegiada, exclui e mina o poder de participação da população em tal tipo de iniciativa devido à escassez de recursos da grande maioria dos cidadãos. Mencione-se, ainda, que a CEPAL promove o “crescimento com igualdade” (https://
www.cepal.org/sites/default/files/presentation/files/2011.11.09-macroeconomia.pdf). A evidência empírica mostra que as economias não se auto-regulam ou são reguladas para benefício e controle de alguns, conforme demonstrado na crise de 2008, na qual os governos injetaram dinheiro para salvar o sistema bancário global.
De fato, Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de Economia, afirma que o “Consenso de Washington estimou que, se se permitisse que os mercados funcionassem sozinhos, os países conseguiriam se desenvolver”. Contudo, isso não aconteceu. Sua crítica é que o Consenso induziu os países a se concentrarem em um programa econômico restrito e perderam a visão dos objetivos mais amplos da reforma social.
Em resumo, a CEPAL vem defendendo de forma histórico-evolutiva o seu pensamento, levando em consideração a necessidade de se ajustar aos novos cenários da região e do mundo a favor da formulação de políticas econômicas que reflitam um melhor equilíbrio entre os mercados e o Estado e que busquem o fortalecimento simultâneo de ambos.
Assim como nos anos 50, o tema central do organismo era a industrialização; nos anos
60 foram as reformas que impedem a industrialização; na década dos anos 70 foi a reorientação dos estilos de desenvolvimento para uma homogeneização social e diversificação exportadora; nos anos 80 foi a superação do problema do endividamento externo mediante o “ajuste com crescimento”; nos anos 90 foi a transformação produtiva com equidade. Nos últimos 20 anos, os pontos de discussão teórica e empírica na CEPAL vêm aprofundando os temas das inequidades, da igualdade de oportunidades, do respeito ao meio ambiente, o impacto das novas tecnologias, e monitorando o cumprimento da Agenda 2030 em cada um de nossos países.
Que a CEPAL seja inspiradora de trabalho, nos mobilize e inspire a trabalhar pelos problemas reais de nosso país, aportando na discussão e nas soluções com senso profissional e de boa gestão. Como dizia o mestre Celso Furtado, o desenvolvimento é também uma questão de crescimento, mais finalmente é uma questão ética.
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Jean De Mulder é Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco.
Opinião
Agroecologia e a Agenda 2030
Por Iris de Mel Trindade Dias
Lançada em 2015, a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável dá continuidade aos esforços das Nações Unidas para a redução das desigualdades sociais iniciados com os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ODM) (2000-2015). Diferentemente dos ODM, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) não se restringem a metas a serem alcançadas por países em desenvolvimento, mas abrangem toda a comunidade internacional, integrando as dimensões econômica, social e ambiental.
Tal abordagem universalista e transversal reflete um contexto recente de várias crises globais interrelacionadas: econômico-financeira, ambiental, alimentar e energética. Neste cenário, o ODS 2, Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e a melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável, consiste em um exercício sistêmico que relaciona questões de saúde, acesso à renda e governança dos recursos naturais. Perante os atuais debates acerca da sustentabilidade do atual regime alimentar e das repercussões da crise alimentar mundial de 2007/2008, bem como das mudanças climáticas, a agroecologia tem recebido destaque em discussões internacionais como uma abordagem relevante para a realização da segurança alimentar de forma sustentável.
Ao abordar a produção de alimentos de forma sistêmica, a agroecologia abrange de forma integrada elementos das dimensões ecológica e técnico-agronômica, socioeconômica, cultural, e sociopolítica (SEVILLA GUZMÁN e OTTMANN, 2004). Devido ao carater intrinsecamente holístico de sua abordagem, a agroecologia pode ser considerada uma ciência transdisciplinar, um conjunto de práticas, e um movimento social (WEZEL, et al. 2009).
Como movimento social, a agroecologia enfatiza a valorização dos povos e dos conhecimentos tradicionais para o cultivo harmônico da terra, a preservação do patrimônio genético e o acesso ao alimento de qualidade. Estas questões estão no centro da atuação global do movimento campesino em sua mobilização pela soberania alimentar. Uma abordagem da segurança alimentar centrada na soberania relaciona-se estreitamente com as questões agrárias que envolvem o acesso à terra e à água. Posto que a soberania alimentar corresponde à autonomia dos povos em termos de políticas agrárias e alimentares, em detrimento das pressões capitalistas, a produção agroecológica tem marcado
a agenda das mobilizações para que populações usufruam dos alimentos produzidos localmente e tenham seus hábitos alimentares respeitados.
Neste contexto, a agricultura familiar desponta como tema fulcral, não apenas porque o campo concentra altos índices de vulnerabilidade social, mas também devido ao potencial da agricultura familiar de desenvolver práticas ecologicamente sustentáveis. Em 2014, Ano Internacional da Agricultura Familiar nas Nações Unidas, os discursos da Organização ressaltaram o papel dos agricultores familiares como fundamental para a conservação do meio ambiente e da biodiversidade. Entretanto, o Diretor-Geral da FAO, José Graziano, destacou que o desenvolvimento pleno das potencialidades de produção sustentável da agricultura familiar depende de inovações conduzidas em conjunto por sociedade civil e Estado (FAO, 2014).
Experiências agroecológicas podem ser encontradas em todo o mundo e alguns países têm desenvolvido políticas específicas neste campo. Na América Latina, o Brasil é um exemplo de como integrar agroecologia e políticas sociais. A abordagem da segurança alimentar e nutricional consagrada na legislação brasileira, Lei nº 11.346/2006, tem como base a realização do Direito Humano à Alimentação Adequada e guarda estreita relação com a soberania alimentar, pois especifica que “a segurança alimentar deve ter como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis.” (BRASIL, 2006). A partir deste enquadramento, foram desenvolvidas políticas para o fomento da relação sustentabilidade-inclusão social. Um dos mais evidentes exemplos deste nexo é a relação entre o Programa Nacional de Alimentação Escolar e o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar. A integração entre essas duas políticas compõe um mercado institucional que usa o poder de compra do Estado para abastecer as cantinas escolares com a produção de pequenos agricultores, havendo, inclusive, o pagamento de adicional para produtos orgânicos.
A Política Brasileira de Agroecologia e Produção Orgânica tem sido implementada desde 2012 com a participação de produtores, governos e organizações da sociedade civil. Essa política aborda a segurança alimentar e nutricional, a soberania alimentar, o uso de recursos naturais, o uso sustentável da biodiversidade, a produção orgânica, questões de gênero e juven-
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tude, entre outras. A França aprovou, em 2014, a Lei sobre o Futuro da Agricultura. Nesta lei, a agroecologia é considerada o caminho viável para implementar a transição produtiva rumo a um modelo que concilie questões ambientais, sociais e econômicas. Em 2015, a China lançou o Plano Nacional Estratégico para o Desenvolvimento da Agricultura Sustentável (20152030) e as Diretrizes do Conselho de Estado para o Aceleramento da Transformação dos Mecanismos de Desenvolvimento da Agricultura.
Em confluência com este movimento global, o Comitê Mundial de Segurança Alimentar - a plataforma de governança global ligada à Organização para Agricultura e Alimentação das Nações Unidas (FAO) – tem promovido diversas discussões sobre agroecologia. Estes debates têm abordado a promoção da agricultura familiar, a construção de mercados institucionais, a resiliência dos ecossistemas e as mudanças climáticas. Por conseguinte, nota-se que os princípios agroecológicos têm sido uma referência significativa para o Painel de Alto Nível de especialistas do Comitê.
Em 2014, a FAO promoveu o Simpósio Internacional de Agroecologia para Segurança Alimentar e Nutrição. Este Simpósio foi seguido por reuniões regionais no Brasil, Senegal e Tailândia, em 2015, e pelo Simpósio Internacional de Agroecologia para Agricultura Sustentável e Sistemas Alimentares, realizado na cidade chinesa de Kunming, em 2016. Em 2017, a FAO lançou um Centro de Conhecimentos de Agroecologia, que visa promover os benefícios desta abordagem através do fortalecimento da base de dados empírica sobre o tema, compartilhando exemplos de políticas, estratégias e experiências bem-sucedidas.
Todas as iniciativas locais, nacionais e globais apresentadas acima mostram a consciência de que as recentes discussões sobre sustentabilidade aumentaram. O lançamento da Agenda 2030 criou um cenário favorável para levar a agroecologia ao centro dos debates internacionais e com isso a oportunidade de explorar como práticas alternativas podem ser implementadas para alcançar a proteção social e ambiental em uma perspectiva integrada.
A partir do enquadramento das dinâmicas de produção e distribuição de alimentos no processo histórico da acumulação capitalista, o conceito de regime alimentar compõe uma base analítica que permite a observação dos aspectos conjunturais que regem estas dinâmicas (ARAGHI, 2003; MACMICHAEL, 2017). Assim, McMichael (2017) destaca que o regime alimentar corporativo, baseado nos princípios neoliberais de financeirização, está a dar evidências de uma crise de sustentabilidade e aponta a agroecologia como um movimento refundador das questões agrárias sob uma perspectiva de soberania alimentar.
No entanto, como todo fenômeno de natureza político-econômica, a produção e a distribuição de
alimentos apresenta-se como uma arena de disputa de poder. No Brasil, país que alcançou significativo avanço no combate à fome, os atuais cortes no orçamento das políticas sociais tendem a aumentar significativamente a vulnerabilidade dos mais pobres. Assim, de acordo com recentes pesquisas, o Brasil corre sérios riscos de voltar ao mapa da fome da FAO (GTSC 2030, 2017).
Como apontado pelo Diretor-geral da FAO, a inovação é um aspecto essencial para que sistemas alimentares combinem produtividade e sustentabilidade. Neste sentido, é fundamental a junção de esforços de diferentes atores para que o potencial da agroecologia como uma alternativa viável à superação das crises seja consolidado no cenário político nacional e internacional.
Referências:
BRASIL. Lei nº 11346, de 15 de Setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional com vistas a assegurar o Direito Humano à Alimentação Adequada.
FAO HIGH LEVEL PANEL OF EXPERTS. Sustainable Agricultural Development for Food Security and Nutrition: what roles for livestock? Roma, 2017.
GRUPO DE TRABALHO DA SOCIEDADE CIVIL DA AGENDA 2030, ACTION AID BRASIL. Relatório Luz da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável. 2017. MCMICHAEL, PHILIP.. Regimes Alimentares e a Questão Agrária. São Paulo: Unesp. 2017.
SEVILLA GUZMÁN, E.; OTTMANN, G. Las dimensiones de la Agroecología. In: INSTITUTO DE SOCIOLOGÍA Y ESTUDIOS CAMPESINOS. Manual de oliviculturaecológica. Córdoba: Universidad de Córdoba, 2004. p. 11-26. (Proyecto Equal-Adaptagro).
Wezel, Alexander et al. 2009. Agroecology as a science, a movement and a practice. A review. Agronomy for Sustainable Development. Volume 29, Issue 4, pp 503–515.
Agroecology Knowledge Hub. http://www.fao.org/agroecology/ overview/en/ Institute of Rural Reconstruction of China. 52 Profiles on Agroecology: Revitalizing Agroecology in China. http://www. fao.org/3/a-be865e.pdf.
Iris de Mel Trindade Dias é Cientista Social, Mestre em Relações Internacionais e Doutoranda em Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade do Minho em cotutela com a Universidade de Brasília, A autora é também Membro Colaborador do Centro de Investigação em Ciência Política da Universidade do Minho e Técnica do Ministério Público de Pernambuco.
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Opinião
O Pensamento e ação de Josué de Castro
Por Inã Cândido
ORelatório Luz da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável (http:// actionaid.org.br/wp-content/files_ mf/1499785232Relatorio_sintese_v2_23jun.pdf > acesso em10/03/2018), elaborado por vinte entidades da sociedade civil, apresentado no ano de 2017, sobre o desempenho do Brasil nos cumprimentos dos objetivos para o desenvolvimento sustentável, alertou que há um risco enorme do país voltar ao mapa da fome. Entre os principais motivos destacados no documento, estão o aumento do desemprego, os cortes de benefícios como o Bolsa Família e o congelamento dos gastos públicos nos próximos 20 anos.
Nesse complicado cenário atual, conhecer mais sobre a trajetória do médico, sociólogo e geógrafo Josué de Castro, pioneiro no combate à fome no Brasil e no mundo, passa a ter ainda maior relevância. O esforço de “pensar o pensamento” (BRANDÃO, 2007) de Castro pode auxiliar na reflexão sobre os dilemas nacionais de ontem e de hoje. “Uma das formas de que podemos lançar mão para construir um futuro é estudar o pensamento e ação de homens públicos, de cientistas e de políticos que dedicaram a vida enfrentando maiores resistências tentando alcançar tal fim” (ANDRADE, 1997, p.169).
Josué Apolônio de Castro nasceu na cidade do Recife, Pernambuco, no ano de 1908. Durante a grande seca de 1877, seu pai mudou-se com a família de Cabaceiras, alto sertão da Paraíba, para a capital de Pernambuco, onde tornou-se proprietário de terras e mercador de gado e leite. Sua mãe, Josepha Carneiro, era filha de senhor de engenho da Zona da Mata pernambucana e tornou-se professora.
De acordo com Andrade (1997), no início do século XX Recife era uma cidade com pouco mais de 200 mil habitantes e possuía um centro administrativo e comercial de grande relevância. Nesse ambiente, a descoberta do fenômeno da fome na infância por Castro tornou-se um fator crucial para sua formação intelectual. Conforme o próprio Castro evidenciou (CASTRO, 1967), não foi na Sorbonne nem em qualquer outra universidade que tomou conhecimento desse fenômeno, mas através dos mangues do Capibaribe e nos bairros miseráveis do Recife:
Esta é que foi minha Sorbonne: a lama dos mangues do Recife, fervilhando de caranguejos e povo -
ada de seres humanos feitos de carne de caranguejo, pensando e sentindo como caranguejos. Seres anfíbios - habitantes da terra e da água, meio homens, meio bichos. Alimentados na infância com caldo de caranguejo: Seres humanos que se faziam irmãos de leite dos caranguejos (CASTRO, 1967, p.12).
Nesse contexto, deparou-se com seres humanos que procuravam sobreviver no meio da lama dos manguezais, alimentando-se de caranguejos. Foi levado a ter grande ternura por esses habitantes dos mangues. Posteriormente, seu engajamento viria a ser dedicado principalmente à causa dos famintos e excluídos em diversos âmbitos.
A partir da obra Geografia da Fome, escrita em 1946, Josué de Castro denunciou que o fenômeno da fome nacional e internacional não era exclusivamente biológico, mas possuía um complexo caráter multidimensional: cultural, social, político e econômico. Segundo o autor, o tabu da fome foi propiciado pelos preconceitos morais de uma cultura ocidental que historicamente buscou impor de todas as maneiras o predomínio da razão e, simultaneamente, negou refletir sobre os fundamentos básicos da vida e da conduta humana. Para ele, fenômenos como a fome não foram devidamente discutidos e esclarecidos.
Em 1947, Castro se tornou membro da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), exercendo entre 1952 e 1956 a Presidência do Conselho Executivo desse órgão internacional. Foi deputado federal pelo PTB (Partido Trabalhista Brasileiro). Sua atuação parlamentar foi tão marcante que se reelegeu com a maior votação do Nordeste. Em 1958, no segundo mandato, propôs o Cupom Alimentação, baseado em uma política pública implementada nos Estados Unidos em 1939, conhecida como Food Stamp Plan. Contudo, o projeto foi deixado para segundo plano após a construção de Brasília e outras propostas tidas como prioritárias. Segundo Nascimento (2012), em 2003 essa experiência norte-americana foi retomada no governo de Luís Inácio Lula da Silva, quando implementou o Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar (MESA). Através do MESA, se criou o cartão alimentação, depois reformulado e transformado no programa Bolsa Família, que agregou programas como o Bolsa Escola, do Ministério da Educação, e o Bolsa Alimentação, da Saúde.
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Dando continuidade a estes estudos através da obra Geopolítica da Fome (1951), Castro criticou a teoria de controle de aumento populacional, do economista britânico Thomas Malthus e dos neomalthusianos, assim como, denunciou e analisou o fenômeno da fome não só no âmbito nacional, mas também no internacional, inclusive nos países desenvolvidos. Os dois livros definiram de forma incontestável seu engajamento e posição política contra o flagelo da fome.
Ao lado do tema relativo às questões alimentares e à fome, Castro procurava destacar os aspectos fundamentais das possíveis estratégias de desenvolvimento para o nosso país. Ele, ao analisar a ocorrência do flagelo da fome no Brasil e no mundo, buscava demonstrar a conexão entre as carências nutricionais e alimentares e as dificuldades de construção de estratégias de desenvolvimento. O fio condutor do argumento do autor pernambucano passava pela defesa de um desenvolvimentismo social, antes que apenas focado no crescimento econômico. Portanto, Castro era favorável a um desenvolvimento mais humanista, contraposto à perspectiva de lucro desenfreado presente no modelo capitalista.
Durante sua trajetória, Castro exerceu o papel de cientista, intelectual e membro da burocracia estatal. Desse modo, seu pensar e agir o caracterizou como “homem da medicina e das ciências sociais, da tribuna parlamentar e das associações e dos centros de pesquisa que fundou e dirigiu, da literatura e do cinema” (MELO, 2007, p. 110). Castro não foi apenas um intelectual acadêmico, seu engajamento contra a fome contribuiu para a formação do pensamento desenvolvimentista do país e, particularmente, abriu caminho para os estudos futuros sobre nutrição e alimentação no país. Sua militância nacional e internacional contra a fome, à frente de diversos órgãos de Estado, instituições diplomáticas e organizações mundiais, como a FAO da ONU, foi reconhecida em todo o mundo e, especialmente, na França, como um dos mais importantes pensadores do século XX. O reconhecimento internacional da luta de Castro para erradicar a fome no mundo lhe rendeu a dignificação de receber uma indicação para o prêmio Nobel de Medicina e duas indicações para o prêmio Nobel da Paz.
Visto pelos militares como ameaça, em face de suas posturas consideradas ‘subversivas’, como no caso da defesa da reforma agrária, Josué de Castro teve seus direitos políticos cassados pouco depois do golpe militar de 1964. O intelectual foi destituído do cargo de embaixador no Brasil junto aos organismos internacionais ligados à ONU. Este fato tornou Castro um “ilustre desconhecido” em seu próprio país, “mesmo depois do regime militar em que os livros de Castro foram considerados subversivos,
predominou o silêncio sobre suas obras, sobretudo nos cursos de Ciências Sociais do Nordeste” (NOGUEIRA; SANTOS, 2012, p.96). Exilado, morou na França, onde continuou sua luta contra a fome, vindo a falecer em Paris após um período de depressão seguido de um enfarte, aos 65 anos de idade, em 1973.
A retomada do pensamento social e político de Josué de Castro se mostra relevante não somente devido sua importância histórica, mas também pelo motivo da persistência dos problemas relacionados a fome e dos desafios para o desenvolvimento do país que tornam ainda atuais suas ideias e seus projetos para a sociedade.
Referências:
ANDRADE, Manuel Correa de. Josué de Castro: O homem e cientista e seu tempo. Estudos Avançados, São Paulo, v.11, n.29, p.169-194, 1997.
BRANDÃO, GILDO. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2007.
CASTRO, Josué de. Geografia da Fome: o dilema brasileiro do pão e aço. Rio de Janeiro: Antares /Achiamé, 1980.
________________. Geopolítica da Fome. São Paulo: Brasiliense, 5ª Ed, 1959.
_______________. Homens e Caranguejos. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1967.
MEDEIRO, Inã Cândido de. A práxis de Josué de Castro: dilemas e estratégias para o desenvolvimento do Nordeste açucareiro. 2015. 80 f. Monografia (Especialização) - Curso de Ciências Sociais, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes., Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2015.
MELO, M. M.; NEVES, T. C. W. (Orgs.). Perfis Parlamentares 52: Josué de Castro. Brasília: Plenarium, 2007.
NASCIMENTO, Renato Carvalheira. Josué de Castro: cientista social in: MAGNO, Tânia Elias (org.) Josué de Castro. Rio de Janeiro: Fundação Miguel de Cervantes, 2012 (memória do saber).
NOGUEIRA, Maria Aparecida Lopes; SANTOS, Mercês. Sociedade dos Mangues: Josué de Castro sempre in: MAGNO, Tânia Elias (org.) Josué de Castro. Rio de Janeiro: Fundação Miguel de Cervantes, 2012 (memória do saber).
Relatório Luz da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável: Síntese. Disponível em: < http://actionaid.org.br/wp-content/ files_mf/1499785232Relatorio_sintese_v2_23jun.pdf> acesso em10/03/2018.
Inã Cândido é Graduado em Ciências Sociais pela UFPB e mestre em Sociologia pela UFPE.
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