Revista Jornalismo e Cidadania Número 22/2018

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Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 1 Jornalismo Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade | PPGCOM/UFPE | ISSN 2526-2440 | e cidadania Jornalismo e Base de Dados Comunicação na Web Representatividade Midiática OPINIÁO E mais... nº 22 | ABRIL 2018

JORNALISMO E CIDADANIA

Expediente

Editor Geral | Heitor Rocha professor PPGCOM/UFPE

Editor Executivo | Ivo Henrique Dantas doutorando PPGCOM/UFPE

Editor Internacional | Marcos Costa Lima Pós-Graduação em Ciência Política/UFPE

Revisão | Laís Ferreira Mestre em Comunicação

Articulistas |

PROSA REAL

Alexandre Zarate Maciel doutorando PPGCOM/UFPE

MÍDIA ALTERNATIVA

Xenya Bucchioni doutoranda PPGCOM/UFPE

NO BALANÇO DA REDE

Ivo Henrique Dantas doutorando PPGCOM/UFPE

JORNALISMO E POLÍTICA

Laís Ferreira

Mestre em comunicação

JORNALISMO AMBIENTAL

Robério Daniel da Silva Coutinho mestre em Comunicação UFPE

PODER PLURAL

Rakel de Castro doutoranda PPGCOM/UFPE e UBI

CIDADANIA EM REDE

Nataly Queiroz doutoranda PPGCOM/UFPE

JORNALISMO INDEPENDENTE

Karolina Calado doutoranda PPGCOM/UFPE

MÍDIA FORA DO ARMÁRIO

Rui Caeiro

mestre em Comunicação UFPE

MUDE O CANAL

Ticianne Perdigão doutoranda PPGCOM/UFPE

COMUNICAÇÃO NA WEB

Ana Célia de Sá

Doutoranda em Comunicação UFPE

NA TELA DA TV

Mariana Banja mestranda em Comunicação UFPE

Alunos Voluntários | Lucyanna Maria de Souza Melo

Yago de Oliveira Mendes

José Tarisson Costa da Silva

Colaboradores |

Alfredo Vizeu Professor PPGCOM - UFPE

Túlio Velho Barreto Fundação Joaquim Nabuco

Gustavo Ferreira da Costa Lima Pós-Graduação em Sociologia/UFPB

Luiz Lorenzo

Núcleo de Rádios e TV Universitárias/UFPE

Ada Cristina Machado Silveira Professora da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM

Antonio Jucá Filho Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco – FUNDAJ

Auríbio Farias Conceição

Professor do Departamento de Letras e Humanidades – DLH/ UEPB

Leonardo Souza Ramos

Professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC –Minas Gerais e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Potências Médias (GPPM)

Rubens Pinto Lyra

Professor do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas  da UFPB

Editorial Prosa Real

Comunicação na Web

Opinião | Arturo Guillén

Opinião | Ana Carolina Polessa

Opinião | Marcos Costa Lima

Opinião | Liliane do Nascimento Santos

Opinião | Rubens Pinto Lyra

Opinião | Pedro de Souza

Opinião | Carolina Dantas

Opinião | Inâ Cândido

Opinião | Flávia Rabelo e Rafaella Prata

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Índice
Mídia Fora do Armário | 3 | 4 | 6 | 8 | 10 | 12 | 14 | 16 | 18 | 20 | 22 | 24 | 26 Arte da Capa: Designed by Freepik.com Acesse: facebook.com/ Jornalismoecidadania | issuu.com/revistajornalismoecidadania

Por Heitor Rocha

Oexercício do poder da representação política no Brasil apresenta, quase de forma generalizada, uma acentuada discrepância em relação à realidade da opinião pública devido à extrema desigualdade, em que a metade da população é excluída das políticas públicas, do processo produtivo e da representação midiática. Assim, o discurso político dos representantes da elite política caracteriza-se por um descarado cinismo que faz com que alguns cheguem às raias da alucinação, como foi o caso do presidente Temer ao comparecer ao prédio que ruiu em São Paulo para fazer demagogia, escapando por pouco do linchamento pelos populares presentes. A capacidade de sedução dos marqueteiros que trabalham a imagem do presidente pode ser comparada à da fábula em que os alfaiates fizeram o rei desfilar nu iludido com a sedutora fantasia de que suas vestes eram tão incrivelmente belas que ninguém conseguia vê-las.

A técnica da prestidigitação retórica também pode ser identificada na argumentação de que a reforma da previdência foi tirada da pauta do congresso devido ao formalismo constitucional de que a intervenção na segurança pública do Rio de Janeiro impedia qualquer mudança na Constituição. Uma medida completamente desnecessária, pois as forças armadas foram chamadas a comparecer em diversos Estados para garantir a ordem pública, sem que fosse preciso uma intervenção formal. A grande verdade escondida pela pirotecnia político-midiática era o fato da famigerada reforma da previdência ser algo tão impopular que os congressistas da base governistas não a aprovariam por medo do resultado que viriam a ter nas urnas em outubro.

Outra expressão do caráter mistificador da retórica presidencial foi a afirmação de que a reforma da previdência poderia ser votada ainda este ano. Ou seja, depois da eleição, quando os atuais congressistas não se sentiriam mais pressionados pelo controle social da opinião pública e poderiam aprovar uma medida impopular para garantir os interesses das elites. Esta pressa na votação de uma matéria tão importante ainda este ano, para tentar satisfazer os interesses particulares poderosos, evidencia, também, a expectativa desses tão esforçados representantes dos donos do dinheiro no País de que o novo congresso não terá um perfil tão absurdamente conservador quanto o que foi eleito

em 2014, quando estimativas apontam que as dez maiores corporações envolvidas na conspiração criminosa que foi articulada desde a ditadura militar conseguiram eleger 360 congressistas, ou seja, a maioria absoluta do Pode Legislativo do País.

Subjacente nesta análise está a questão da crença de que o público possa exercer uma relativa autoridade capaz de conferir à coletividade capacidade para neutralizar a influência do poder dos grupos que controlam o aparelho de Estado e o dinheiro das grandes corporações do mercado, a fim de garantir deliberações que contemplem o bem-comum, num processo de discussão ética em que possamos ter consensos autênticos sobre os assuntos políticos. Quando, ao contrário, o que estamos acostumados a ver são os pseudo-consensos disseminados pela grande mídia para tentar fazer passar os interesses particulares poderosos como sendo expressão do interesse coletivo/público, através da criação de um clima de opinião no qual a posição majoritária da sociedade, que pode ser inferida nas intenções de voto expressas pelas pesquisas de opinião que dão largo favoritismo a Lula, apesar de toda a campanha de mídia, aparece como minoritária, enquanto o posicionamento das elites, cujos presidenciáveis não conseguem maior expressão nas enquetes, é forjado como majoritário.

Diante do quadro da absurda desigualdade social e da miserabilidade de quase metade da população, com as deficiências cognitivas das classes subalternas decorrentes de uma educação pública sucateada, quando não elitizada, mesmo pessoas de bem chegam a duvidar da possibilidade de formação de opinião consistente, vontade política e poder comunicativo suficiente do povo brasileiro para a reconquista da Presidência da República e formação de uma legislatura no Congresso Nacional de maioria independente das manobras de corrupção ativa das grandes corporações do mercado. Assim; é inegável que esta é uma utopia que vale à pena lutar para concretizar.

Heitor Costa Lima da Rocha, Editor Geral da Revista Jornalismo e Cidadania, é professor do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.

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Editorial

Prosa Real

Livro-reportagem, jornalismo e contexto

Mesmo em um mercado editorial instável, livroreportagem é boa aposta

“ Vivemos um momento de crise econômica do país e, consequentemente, uma crise bastante aguda no mercado editorial”. A constatação do editor da Companhia das Letras, Otávio Costa, é complementada com a ideia de que a não ficção e, particularmente, a produção de biografias jornalísticas mantêm certo fôlego. Em momentos de retomada, costuma representar um investimento com mais margem de segurança para as editoras do que a ficção. Otávio Costa diagnostica que a crise é preocupante, pois atinge o varejo e as livrarias. “Sem um varejo forte como é que você chega ao leitor, como é que distribui os livros? O Brasil é um lugar em que a venda on-line ainda não tem uma participação majoritária”. Mesmo assim, o publisher reforça que a aposta das editoras em livros-reportagem com assuntos ou personagens biografados de interesse mais amplo tem boa aceitação do mercado. “E em momentos de crise também desperta interesse tanto pelo presente, como pela história. Acho que desperta um interesse pelo real, pelo que se passa, pelo concreto”. Na sua ótica, os livros-reportagem “ajudam as pessoas a tentar entender por que chegamos aqui”, quando as crises políticas, econômicas e sociais embaçam o sentido de nação. “Momentos de crise geram boas histórias, além de interesse do público por essas histórias”.

Autores do mês: Jornalistas-cronistas dos anos 1910 e 1920

Narrar as cidades em profusão, seus tipos humanos e até mesmo denunciar as mazelas escondidas por trás do suposto progresso desenfreado do início do século XX foram marcas do que podemos chamar de jornalistas-cronistas que se aventuraram no território do livro nos anos 1910 e 1920. Eles são herdeiros do pioneiro João do Rio, que já havia aberto caminhos na primeira década. Responsável pela organi -

Divulgação

zação do Arquivo do Estado de São Paulo por 30 anos, Antonio Egydio Martins (1863-1922) conseguiu reunir farto material documental sobre a história paulistana, que resultou em várias crônicas publicadas no jornal Diário Popular. O material foi transposto para o livro São Paulo antigo: 1554 a 1910, lançado originalmente em dois volumes, em 1911 e 1912. Reeditado pela

editora Paz e Terra, a obra trata da vida pitoresca da cidade em transformação, com os seus personagens, festas e costumes. Mas a herança de João do Rio foi mais forte, com o florescimento de repórteres-cronistas interessados no mergulho no submundo das cidades em transformação nos anos 1920. Benjamim Costallat (1897-1961), por exemplo, fechou um contrato com o Jornal do Brasil em 1924, para produzir

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uma série de crônicas-reportagem intitulada “Mistérios do Rio”, também transformada em livro. Na primeira, Costallat (1990, p. 21) flana “No bairro da cocaína”, no caso o da Glória, e entrevista várias pessoas sobre os detalhes do comércio ilegal da droga: “– Onde? A mulher, num sussurro, disse-me no ouvido: – De noite... Na Glória... No jardim... debaixo do Hotel Glória... Sim, um homem está ali. – Quanto? –Oito mil réis”. Na mesma época, em São Paulo, o jornalista Sylvio Floreal (1863-1929), pseudônimo de Domingos Alexandre, percorria bares, praças, presídios, hospitais e hospícios, consolidando uma herança do repórter que vai às ruas para interpretar o seu pulsar intenso, em seu trabalho no jornal O Estado de S. Paulo. As crônicas foram reunidas no livro Ronda da meia-noite (1925). Assim como Costallat, o cronista posiciona-se como um narrador imerso nos ambientes, cheio de juízos de valor. Na crônica “O inferno: duas horas na cadeia pública”, o escritor (2003, p. 77) descortina ambientes e personagens sórdidas: “Pelo enxadrezado de ferro da porta, espio para dentro dessa prisão. O quadro é desolador e repugnante. No soalho, e sobre colchões encardidos, roídos pelo tempo e pela sujeira, há mulheres sentadas, em atitudes indecentes”.

Iluminando conceitos: Tom Wolfe e a formação do repórter escritor

Tratando do jornalismo norte-americano dos anos 1960, Tom Wolfe (2005, p. 13) menciona que, além dos repórteres de jornal, que competiam pelo furo jornalístico, poderiam ser identificados outros profissionais, como os “escritores de reportagens especiais”, que consideravam “o jornal um motel onde você se hospedava para passar a noite a caminho do triunfo final”. Para esses profissionais, em uma interpretação irônica do pesquisador, o emprego em uma redação ajudava a pagar as contas, eliminar “um pouco de gordura do seu estilo” e mesmo travar contato com as experiências cotidianas. A intenção final, no entanto, era outra: “demitir-se pura e simplesmente, dizer adeus ao jornalismo, se mudar para uma cabana em algum lugar, trabalhar dia e noite durante seis meses, e iluminar o céu com o triunfo final. O triunfo final era conhecido como O

Romance”. Wolfe (2005, p. 16) explica que “O Romance não era uma mera forma literária. Era um fenômeno psicológico. Era uma febre cortical”. Certos jornalistas, como John Reed, Lilian Ross, John Hersey e, posteriormente, Gay Talese e o próprio Tom Wolfe, passaram a experimentar na imprensa técnicas que já haviam sido exploradas na literatura de escritores como George Orwell, Charles Dickens ou Jack London, como o olhar atento para os seres humanos comuns em um mundo pulsante, seus diálogos, ações e personalidades. Wolfe (2005, p. 19) diz que uma “curiosa ideia, nova, quente o bastante para inflamar o ego” começou a se insinuar no início dos anos 1960, “nos estreitos limites da statusfera” das reportagens especiais: “Essa descoberta, de início modesta, na verdade, reverencial, poderíamos dizer, era que talvez fosse possível escrever jornalismo para ser... lido como romance”.

Referências:

COSTA, Otávio [18/09/2016]. Entrevistador: Alexandre Zarate Maciel. São Paulo: sede da editora Companhia das Letras. 1 arquivo .mp3 (1h).

COSTALLAT, Benjamim. Mistérios do Rio. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca, 1990.

FLOREAL, Sylvio. Ronda da meia-noite. São Paulo: Paz e Terra, 2003.

MANGARIELO, Fernando [15/09/2016]. Entrevistador: Alexandre Zarate Maciel. São Paulo: residência do autor. 1 arquivo .mp3 (1h05min).

MARTINS, Antonio Egydio. São Paulo antigo: 1554-1910. São Paulo: Paz e Terra, 2003.

WOLFE, Tom. Radical chique e o novo jornalismo: o espírito de uma época em que tudo se transformou radicalmente, inclusive o jeito de fazer reportagem. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

Elaborada pelo professor doutor do curso de Jornalismo da UFMA, campus de Imperatriz, Alexandre Zarate Maciel, a coluna Prosa Real traz, todos os meses, uma perspectiva dos estudos acadêmicos sobre a área do livro-reportagem e também um olhar sobre o mercado editorial para esse tipo de produto, os principais autores, títulos e a visão do leitor.

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Comunicação na Web

Jornalismo, Sociedade e Internet

Jornalismo e bases de dados

Adigitalização de conteúdos facilitou o armazenamento, a organização e a recuperação de dados na internet, características centrais das bases de dados – estruturas lógico-matemáticas que permitem o arranjo de informações em bancos de dados. O uso desse recurso pelo webjornalismo tem sido apontado como uma das ferramentas contemporâneas de aprofundamento da notícia, acompanhando a tendência da fragmentação, da instantaneidade, da interatividade, da memória coletiva e do aproveitamento do espaço virtual em camadas noticiosas. “Na verdade, na cultura dos computadores, a narrativa em vez de uma simples sucessão de ações, fica configurada, cada vez mais, como uma viagem através do espaço constituído pelos conjuntos estruturados de itens organizados na forma de bancos de dados” (MACHADO, 2007, p. 112).

Fidalgo (2007) corrobora desta expectativa ao afirmar que a base de dados facilita a concretização da universalidade jornalística, baseada nas vertentes de precisão e contextualização. “A tecnologia da base de dados potencia essa realização de um modo extraordinário e

torna obsoletas as formas tradicionais de aprofundamento, acompanhamento e perspectivação das notícias” (FIDALGO, 2007, p. 109, 110).

A pluralidade e a diversidade do jornalismo desenvolvido sob base de dados refletem-se no que Fidalgo (2007) chama de resolução semântica: o grau de complementação e precisão informativas do conjunto de notícias digitais articuladas na web com uso de elementos escritos, visuais e sonoros, além da interatividade do público. De acordo com a importância da notícia, o quadro informativo progride em quantidade e detalhamento, aumentando, assim, a resolução semântica, cujo grau de saturação está na meta infinita de disponibilizar todas as informações existentes sobre o assunto. Neste modelo, a evolução noticiosa está estruturada em camadas ou “fatias” informativas: a divisão começa com a resposta das questões clássicas do lead; em seguida, cada item é destrinchado e pormenorizado em novas porções de notícias que se complementam, desafiando a própria estrutura da pirâmide invertida. Como explica Fidalgo, uma das características do uso de bases de dados no jornalismo digital é “[...] preterir as descrições únicas e extensas de um acontecimento em favor de um mosaico informativo de pequenas notícias sobre

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Pixabay

o tema” (FIDALGO, 2007, p. 101).

Este emaranhado noticioso pode ser acessado pelo internauta numa progressão gradual de camadas semânticas, ordenadas a partir das estruturas internas e das inúmeras classificações externas da notícia em bases de dados fundamentadas no dia, local, tipos de ações, entre outros aspectos dos acontecimentos. O cruzamento dessas informações pode originar novos conhecimentos, capazes de aumentar a resolução semântica da notícia (FIDALGO, 2007).

A digitalização, aliada a sistemas de indexação e recuperação de dados, amplia a memória jornalística graças à facilidade de armazenamento e disponibilização de materiais produzidos anteriormente. Amparado pelas bases de dados, o jornalismo na web tem a possibilidade de combinar instantaneidade, interatividade e hipertextualidade, reconfigurando a formação da memória coletiva acionada pelo produtor e pelo usuário.

Palacios (2003) explica que o jornalismo encontra na web a sua primeira forma de memória múltipla, instantânea e cumulativa. Isso se dá perante um contexto de espaço ilimitado, de extrema rapidez de acesso (instantaneidade) e alimentação (interatividade), além de grande flexibilidade combinatória (hipertextualidade).

A produção multimidiática em base de dados está apoiada tecnicamente em sistemas automatizados de gestão de conteúdos. Com eles, é possível otimizar a formatação noticiosa em diversos tipos de narrativas e acelerar sua difusão na internet. Vale destacar que a simples adoção dos sistemas não é sinônimo de multimidialidade, pois depende da versatilidade tecnológica deles, do tipo de produção de cada veículo e dos padrões impostos pelas redações diante da priorização da produtividade (MACHADO, 2007).

A natureza do webjornalismo em base de dados distancia o produto midiático do fluxo linear e plano dos meios de comunicação tradicionais (impresso, rádio e televisão), pois organiza camadas ou módulos narrativos que podem ser usufruídos de modo particular e não linear pelo usuário. Por conseguinte, ela estimula modalidades produtivas complexas (hipertextuais) e amplia o potencial jornalístico através de bancos de dados convertidos em material de contextualização e aprofundamento.

“O jornalismo on-line recorrerá necessariamente à tecnologia das bases de dados como especificidade que o distinguirá substancialmente do jornalismo dos meios tradicionais da imprensa, rádio e televisão. Enquanto não enveredar pela tecnologia das bases de dados, apenas será uma cópia dos meios tradicionais. Será essa especificidade que lhe conferirá maior rigor, maior objectividade e melhor cobertura da realidade humana a noticiar” (FIDALGO, 2003, p. 61).

Apesar do enorme potencial apresentado por essa modalidade, observa-se: “O que é importante que se diga aqui é que enquanto a criação de estruturas hiper-

textuais, dos fluxos de narrativa e das combinações de elementos multimídia estiver a cargo unicamente dos profissionais, dificilmente, com exceção dos especiais ou da infografia multimídia, em que o profissional dispõe de mais tempo, os cibermeios vão aproveitar todas as potencialidades expressivas do ciberespaço” (MACHADO, 2007, p. 122).

Forma-se uma lacuna referente à potencialização dos recursos multimídia na produção jornalística factual, que nos portais de notícias recai sobre a rotina das seções de “Últimas”. Balancear as relações espaço-temporais e as práticas cotidianas e prover as redações com profissionais em número e capacitação adequados podem ser estratégias positivas na promoção da qualidade noticiosa.

Referências:

FIDALGO, António. Sintaxe e semântica das notícias online. Para um jornalismo assente em base de dados. IN: FIDALGO, António; SERRA, Joaquim Paulo (Orgs.). Informação e Comunicação Online (Volume I): jornalismo online. Covilhã: LabCom – Universidade da Beira Interior, 2003. [e-book]. Disponível em: <http://www.livroslabcom.ubi.pt/ pdfs/20110829-fidalgo_serra_ico1_jornalismo_ online.pdf>. Acesso em: 19 abr. 2018. (Coleção: Estados da Arte)

________________. A resolução semântica no jornalismo online. IN: BARBOSA, Suzana (Org.). Jornalismo Digital de Terceira Geração. Covilhã: LabCom – Universidade da Beira Interior, 2007. [e-book]. Disponível em: <http://www.livroslabcom. ubi.pt/pdfs/20110824-barbosa_suzana_jornalismo_ digital_terceira_geracao.pdf>. Acesso em: 08 set. 2013.

MACHADO, Elias. A Base de Dados como espaço de composição multimídia. IN: BARBOSA, Suzana (Org.). Jornalismo Digital de Terceira Geração. Covilhã: LabCom – Universidade da Beira Interior, 2007. [e-book]. Disponível em: <http://www. livroslabcom.ubi.pt/pdfs/20110824-barbosa_ suzana_jornalismo_digital_terceira_geracao.pdf>. Acesso em: 08 set. 2013.

PALACIOS, Marcos. Jornalismo online, informação e memória: apontamentos para debate. IN: FIDALGO, António; SERRA, Joaquim Paulo (Orgs.). Informação e Comunicação Online (Volume I): jornalismo online. Covilhã: LabCom – Universidade da Beira Interior, 2003. [e-book]. Disponível em: <http://www.livroslabcom.ubi.pt/pdfs/20110829fidalgo_serra_ico1_jornalismo_online.pdf>. Acesso em: 01 out. 2013. (Coleção: Estados da Arte)

Ana Célia de Sá é jornalista e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (PPGCOM-UFPE).

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Opinião

Las elecciones mexicanas de 2018

El 1 de julio de este año se efectuarán elecciones presidenciales en México y se renovarán las dos Cámaras del Congreso. Asimismo, estarán en disputa autoridades locales en varios estados de la República.

Estas elecciones cobran especial relevancia porque existe una alta probabilidad de que el candidato presidencial de la izquierda Andrés Manuel López Obrador (AMLO), y postulado por la coalición Juntos Haremos Historia encabezada por el partido Morena, resulte ganador. Al momento de escribir esta nota, AMLO aventaja holgadamente en las encuestas a todos sus competidores: a Ricardo Anaya postulado por la alianza México al Frente, integrada por el Partido de Acción Nacional (PAN), el cada vez más derechizado partido de “izquierda” Partido de la Revolución Democrática (PRD) y el partido Movimiento Ciudadano; a José Antonio Meade - ex-secretario de estado de los gobiernos de Enrique Peña Nieto y Felipe Calderón - candidato dizque ciudadano del Frente Todos por México, integrado por el Partido Revolucionario Institucional (PRI), el Partido Verde y el Partido Nueva Alianza; y a los candidatos “independientes” Margarita Zavala, esposa del ex presidente Calderón, y Jaime Rodríguez, alias El Bronco, gobernador con licencia del Estado de Nuevo León.

AMLO aventaja con alrededor de veinte puntos porcentuales al segundo lugar, Anaya, y aventaja por treinta puntos a Meade, el candidato priísta. Ello ha encendido las alarmas entre las altas esferas del poder económico y político, a las que AMLO identifica como la “mafia del poder”. Es grande su temor de que el “bloque neoliberal” de panistas y priístas que ha gobernado el país durante los últimos treinta años sea desplazado.

Esta es la tercera ocasión que AMLO intenta conquistar la presidencia. En 2006 fue impedido de llegar a ella, mediante la orquestación de un monumental fraude electoral para hacer ganar al candidato neoliberal Felipe Calderón, quien, según los datos oficiales, adelantó a López Obrador por solo medio punto porcentual. En 2012, Enrique Peña Nieto superó a AMLO en las urnas por una ventaja de seis puntos, pero después de una campaña electoral inundada por el dinero público y privado, y mediante la compra masiva de votos.

La probabilidad de que AMLO resulte ahora ganador de la contienda son más altas que nunca. El país ha cambiado. Hay un hastío generalizado de la gran mayoría de la población con los pobres resultados conseguidos por el modelo neoliberal y con el hecho de que las reformas

estructurales impulsadas por el gobierno de Peña Nieto no se han visto reflejadas en los bolsillos de los trabajadores, ni en el bienestar de la gente. El crecimiento económico de México durante los últimos treinta años ha sido mediocre (2 por ciento promedio anual); los salarios son los más bajos de América Latina; los empleos creados son mayoritariamente precarios; la informalidad se ha multiplicado; y los niveles de pobreza siguen siendo muy altos, a pesar de los programas focalizados para combatirla. Además del desencanto, es un hecho que el amplio espectro de la población que simpatiza con MORENA ha acrecentado sus niveles de conciencia y organización. Y esto es válido también para el sinnúmero de movimientos sociales y políticos fuera de MORENA, los cuales, aunque desarticulados entre sí, realizan todos los días múltiples luchas de resistencia ante violaciones de derechos humanos, actos de despojo de las trasnacionales y de los gobiernos, etc.

Pero más que los nimios resultados económicos y sociales de los regímenes, tanto priístas como panistas que se han alternado en el gobierno, lo que ha colmado el vaso y provocado la indignación popular, son los altos niveles de corrupción, inseguridad, violencia e impunidad que prevalecen en México. El hartazgo social está a flor de piel.

México es uno de los países más corruptos de América Latina, no solamente en la esfera pública, sino también en la privada. Según datos de Transparencia Internacional, el Índice de Percepción de la Corrupción, el cual es medido en una escala de 0 a 100, siendo 0 el país más corrupto y 100 el más transparente, México ocupa el lugar 135 de un total de 180 países. Tiene un índice de 29, sólo arriba de algunos países africanos y de países en guerra como Irak. En el sexenio de Peña Nieto la corrupción alcanzó sus cotas más altas, destacándose el escándalo de la Casa Blanca del Presidente, una mansión superlujosa donada por un contratista privado beneficiario de obras públicas; el desvío de recursos federales y estatales a las campañas políticas, mediante la creación de empresas fantasmas, como ocurrió con muchos gobernadores del PRI y del PAN, que ahora enfrentan causas penales; y las coimas (los llamados “moches”) del gobierno federal a los diputados, senadores y gobiernos locales de todos los partidos cercanos al régimen, con el fin de lograr su lealtad política y asegurar la aprobación de las “reformas estructurales” neoliberales.

El tema de la corrupción ha estado en el centro de la campaña electoral. Todos los candidatos la aluden y pro-

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meten combatirla. Sin embargo, este es un terreno donde AMLO es fuerte y en el que sus rivales carecen de credibilidad. Desde 2006 los adversarios políticos de AMLO han tratado infructuosamente de descubrir actos de corrupción en su historial político, sin encontrar uno solo que lo involucre personalmente. Su honradez y honorabilidad son uno de sus principales activos, lo que le ha permitido crecer en las encuestas. En cambio, Ricardo Anaya está vinculado con actos de lavado de dinero para financiar su campaña, a más de haber sido el enlace con el gobierno de Peña Nieto para canalizar los “moches” a los congresistas de su partido. Y en el caso de Meade, si bien no se le conoce un acto personal de corrupción, juega en su contra el hecho de durante más de veinte años ha sido un alto funcionario de los gobiernos neoliberales más corruptos de la historia de México, sin haber dicho pío ni mover un solo dedo sobre los innumerables actos de pillaje cometidos. La corrupción rampante de la administración de Peña Nieto es una pesada loza sobre su candidatura, la cual explica, en buena medida, la debilidad de su campaña. Su complicidad con el régimen corrupto de Peña Nieto quedó evidenciado en un entrevista de la televisora Televisa, cuando a la pregunta de si consideraba que Peña Nieto y Calderón son gobernantes honestos, respondió cínicamente que sí.

El otro tema candente que concentra la atención de la ciudadanía es el relativo a la violencia exacerbada que priva en el país. México registra uno de los índices de violencia más elevados del mundo. La violencia se disparó al asumir Felipe Calderón la presidencia de la república en 2006. Como llegó al gobierno después de un fraude electoral, el principal mecanismo que utilizó para legitimarse fue subordinar la política de lucha contra el narcotráfico a la estrategia antiterrorista del gobierno de Estados Unidos. Se comprometió ante la administración Obama a sacar al ejército mexicano a las calles para combatir al crimen organizado violando flagrantemente la Constitución. Esa estrategia fue refrendada por Peña Nieto. Según datos del Instituto Nacional de Geografía y Estadística (INEGI), durante esos dos sexenios se registraron 234 mil 996 homicidios dolosos. Además hasta octubre 2017 había en el país 33 mil 993 desaparecidos, sólo por debajo de Siria, país en guerra. El caso de los 43 estudiantes de Ayotzinapa fue emblemático. Por si no fuera suficiente, habría que agregar a ello la multiplicación de asesinatos de periodistas, alcaldes y de candidatos a puestos de representación política registrados en los últimos años.

AMLO es el único candidato presidencial que ha ofrecido modificar la estrategia contra el narcotráfico y eliminar la violencia atacando las causas económicas y sociales de fondo y decretando una amnistía. Los demás candidatos, tanto Anaya como Meade, si bien balbucean que es necesario realizar cambios, defienden el mantener a las fuerzas armadas en las calles y aprueban la Ley de Seguridad Interior aprobada hace algunos meses por el Congreso y enviada, ante la protesta de diversas organizaciones

sociales, a revisión de la Suprema Corte de Justicia. Dicha ley no solamente es anticonstitucional, sino que implica la instauración de un estado de excepción permanente. Nunca había estado un candidato de la izquierda tan cerca de llegar a la presidencia. Su triunfo significaría un cambio en la correlación de fuerzas, no únicamente en México sino en América Latina. Sin embargo, no será fácil. Faltan aun casi dos meses para el día de la elección y la derecha ha desatado la guerra sucia reeditando la campaña del miedo de 2006 y presentando a AMLO como “un peligro para México”. Pero como una muestra más de que el país ha cambiado, esta nueva guerra sucia, en vez de restarle votos a López Obrador, se los ha restado a los candidatos de la “mafia en el poder”. Es por ello que muchos de los partidarios del cambio no descartan un posible nuevo fraude electoral, el cual incendiaría la pradera. No es un escenario improbable. México nunca ha tenido una democracia representativa real. La transición a la democracia que se inició con la alternancia con el gobierno de Fox en el año 2000 fue más mito que realidad. Más que una democracia incipiente, la mexicana es una democracia secuestrada que expresa los intereses de una plutocracia rentista cada vez más dependiente de los Estados Unidos.

Si AMLO logra finalmente ganar las elecciones, no será nada sencillo impulsar una agenda de cambio. El neoliberalismo a lo largo de su reinado ha reconfigurado a profundidad el sistema productivo. Además están establecidos candados como el Tratado de Libre Comercio de América del Norte (TLCAN) y la “independencia” del banco central que limitan grandemente la posibilidad de aplicar cambios de fondo en la política macroeconómica.

Lo que sí resulta claro es que AMLO representa la única opción electoral. Solamente él ofrece un cambio de rumbo. Si logra detener la absurda y criminal guerra contra el narco, si contiene la corrupción y la impunidad y logra reorientar la política económica y social en función de los intereses nacionales y populares, su gobierno significaría un quiebre histórico. Pero no hay que adelantar vísperas. Por de pronto, necesita consolidar su amplia ventaja en las intenciones de voto, así como frustrar cualquier intento de fraude electoral. Para lograr ello y para gobernar, en un contexto amenazado por nuevas turbulencias financieras en la economía mundial y seguramente con un segmento del gran poder económico que buscará cooptarlo o frustrar cualquier intento importante de cambio, se requerirá del apoyo activo y organizado de los grupos populares.

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Arturo Guillén é Professor e Investigador do Departamento de Economia da Universidad Autónoma Metropolitana Iztapalapa (México).

Opinião

Roube este artigo: contracultura, política e a cena hacker

Em 1968, uma série de protestos que começaram como uma crítica ao setor educacional, rapidamente absorveram debates com potencial revolucionário ao redor do mundo, com uma forte crítica política e social ao capitalismo e a sociedade de consumo.

No epicentro destas manifestações, ocorre a ascensão dos movimentos de contracultura, que de acordo com Sterling (1986) são frequentemente associados à sua visão romantizada e principalmente anticapitalista, antitecnológica e anticiência, mas que sempre encontravam alguma contradição ou alguma antítese a sua essência. No entanto nunca houve uma única e unificada contracultura. (STERLING,1986; TURNER,2006; STREETER,2010)

Mas, afinal, como o meio hacker se relaciona a todo este cenário? Uma das raízes desta relação, pode ser identificada nos Estados Unidos, destacando-se a criação do Youth International Party (Partido Internacional da Juventude), também chamados de Yippies uma variante dos Hippies, considerados “hippies politicamente engajados”, que tem como fundadores Jerry Rubin (1938-1994) e principalmente Abbie Hoffman (1936-1986), que foi um ativista social e político dos Estados Unidos nascido em Long Island, uma ilha ao sudeste do estado de Nova Iorque. Entre os fundamentos do movimento está a cooperação, a falta de hierarquia, a liberdade, o pacifismo, o sentido de comunidade e um “contraditório” senso de desobediência civil. (POLESSA;2016)

Teria sido a partir de Hoffman que manifestantes envolvidos em ondas de protesto em Chicago (Illinois), durante a Convenção Nacional Democrática de 1968, aprenderam a utilizar os meios de comunicação ao seu favor. O mais importante segundo Wainberg (2015, p.16) era aparecer na televisão enquanto estavam sofrendo algum tipo de repressão policial e advertir que “o mundo estava olhando”. (POLESSA;2016)

Em junho de 1971, Hoffman e um entusiasta do telefone, que era sarcasticamente conhecido como Al Bell (em referência à Bell’s Company, atual AT&T, seu nome verdadeiro era Alan Fiestein), começaram a publicar um boletim chamado Youth International Party Line (YIPL), que posteriormente passou a ser chamado de TAP Magazine (Technological American Party ou Technological Assistance Program), mantendo um modelo de publicação que mesclava a parte técnica com debates políticos. Estima-se que havia cerca de

1400 leitores cadastrados para receber o boletim na década de 1970 (STERLING;1994).

Na realidade Sterling (1994) explica que a TAP surge como uma resposta de uma sobretaxa nos serviços de telefonia durante a Guerra do Vietnã (1955-1975) e que Hoffman acreditava que o phreaking deveria ser uma forma de desobediência civil, já que não forneceria fundos para uma guerra que ele considerava imoral (STERLING;1994).

O que a TAP Magazine fez foi popularizar uma prática chamada phreaking, que originalmente tinha um objetivo semelhante a um jogo intelectual e de exploração dos sistemas de telefonia. Posteriormente o phreaking se tornou uma verdadeira comunidade underground envolvendo entusiastas do telefone no coração dos movimentos contraculturais estadunidenses, incluindo pesquisadores universitários e de centros de pesquisa como os programadores da Arpanet (Advanced Research Project Agency Network, uma das primeiras redes do mundo desenvolvida nos EUA, que começou a operar em 1969), que calçavam tênis e usavam broches antiguerra com seu estilo contracultural e ajudaram a mudar o centro de gravidade nas visões dominantes do que os computadores eram, como eles poderiam ser construídos e utilizados.” (STREETER;2010, POLESSA;2016)

Para Hoffman, a possibilidade de ter o maior número de pessoas possível desenvolvendo e utilizando suas próprias blue-box (que era um pequeno dispositivo que, conectado ao telefone, era capaz de emitir a frequência de 2600 Hz, necessária para que o usuário fizesse ligações nacionais e internacionais gratuitas) atingiria diretamente o lucro das empresas que financiavam a guerra do Vietnã se tornando uma forma de protesto efetiva.

Como aponta Flory (1990), as Blue-boxes eram usadas por diversos grupos com agendas muito variadas. Contudo, parece contraditório pensar que uma prática como o phreaking tenha se desenvolvida neste meio ou que tivesse alguma relação como o movimento de contracultura, mas foi o que aconteceu.

Clough e Mungo (1992, p. 21) afirmam que “um passatempo que antes era apolítico foi adotado por um movimento radical. Era uma mistura estranha dos viciados da alta tecnologia ao lado de revolucionários teatrais da extrema esquerda, todos foram parte da contracultura”. (POLESSA;2016)

Hoffman se tornou uma das figuras mais impor-

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tantes do movimento de contracultura. Uma de suas obras mais conhecidas e mais importantes do movimento de contracultura “Steal this Book” (“Roube este livro”), de 1971, é dividida em três partes: Survive (com orientações para conseguir dinheiro, alimento, roupa e moradia de graça); Fight (com orientações de defesa pessoal) e Liberate (com dicas de sobrevivência e roteiros culturais e artísticos em Los Angeles, Nova Iorque, Chicago e São Francisco). Um livro que, segundo Sterling (1994), teria sido o “ancestral espiritual do vírus de computador”.

Com os grandes prejuízos, as empresas de telefonia que se sucederam, juntamente com o FBI, abriram uma série de processos e investigações, fazendo o phreaking se tornar um problema social. Este foi um período que marcou o declínio do phreaking (19761983), na mesma época em que houve o início da comercialização dos videogames e dos computadores pessoais, fazendo com que phreaking e hacking de computador convergissem.

Em janeiro de 1984, a revista estadunidense 2600 começa a circular, e o seu editorial “AHOY!” explicava que a publicação surgiu por uma necessidade “daqueles que realmente apreciam o conceito de comunicação, os entusiastas da tecnologia”. O editorial demonstrava preocupação com a utilização de termos como “hacker” ou “phreaker” para denotar significados como “criminosos ou anarquistas”. E afirmava que, na realidade, os indivíduos ou grupos identificados por estes termos buscavam não julgar ninguém, apenas expor ideias e informação.

Anos adiante, em 2014, Jeremy Hammond, um hacktivista (hacker politicamente engajado) ligado ao Anonymous, condenado a 10 anos de prisão por sua atuação online, fundou um site chamado “Hack This Site” (https://www.hackthissite.org/). Este site mantém uma forte referência, tanto com as demandas da comunidade hacker de explorar os limites de um sistema, quanto com a ideia da obra de Hoffman “Steal this Book”. O seu objetivo é formar uma comunidade aberta, na qual qualquer pessoa pode contribuir e participar livremente tanto da proteção quanto do desenvolvimento do site. O Hack This Site é gratuito e oferece desafios, treinamentos, recursos e a oportunidade de serem invadidos para que “hackers underground” testem suas habilidades incentivando a prática do hacking ético.

Do ponto de vista de Hammond (2014), o “hacktivismo existe dentro da história dos movimentos de justiça social. Hacktivismo ainda é o futuro, e é bom ver as pessoas ainda fazerem algo sobre isso”. Mesmo que ainda atualmente poucos conheçam a história do phreaking e de sua forte relação com os movimentos de contracultura, as contribuições para o ethos da cena hacker underground que se sucederam na década de 1980 foram muito férteis: seu sentido de comunidade,

a defesa do software livre como forma de resistência ao interesse das grandes corporações, o compartilhamento de informações de forma aberta, a utilização da mídia para dar visibilidade a suas causas, sua falta de hierarquia e liderança e até mesmo seus traços políticos e de “desobediência civil” podem ser vistos ainda nos dias de hoje, e melhor compreendidos, quando se conhece com mais profundidade a história do phreaking.

Referências

HAMMOND, Jeremy. I’m an Anonymous hacker in prison, and I am not a crook. I’m an activist. 2014. The Guardian. Disponível em < https://goo.gl/ p7W6RP > Acesso em: 19 mai. 2018

HOFFMAN, Abbie, et al. Steal this book. New York: Pirate editions, 1971.

MUNGO, Paul; CLOUGH, Bryan. Approaching zero: the extraordinary underworld of hackers, phreakers, virus writers, and keyboard criminals. Random House Inc., 1993.

POLESSA, A.C.E. Societas Anonymous: a construção política e social do hacker. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais, Juiz de Fora, 2016. Disponível em < https://goo.gl/VgPXTd > Acesso em: 20 mai. 2018

STERLING, Bruce. Mirrorshades: The cyberpunk anthology. New York, Ace Books, 1988.

_____. The hacker crackdown: law and disorder on the electronic frontier. New York, Bantam Books, 1994

STREETER, Thomas. The net effect: Romanticism, capitalism, and the Internet. NYU Press, 2011.

TURNER, Fred. From counterculture to cyberculture: Stewart Brand, the Whole Earth Network, and the rise of digital utopianism. University Of Chicago Press, 2010.

WAINBERG, Jacques A. Revolucionários, mártires e terroristas: a utopia e suas consequências. Paulus. 2015.

Ana Carolina Estorani Polessa é Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora e Especialista em História do Brasil e Diversidade Cultural pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. E-mail: polessaa@gmail.com.

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Opinião

Planeta Plástico: uma ameaça real

Uma das questões que mais afronta a estabilidade dos ecossistemas e a poluição global é a utilização dos plásticos, que, por sua resiliência, estão não só na maioria dos setores industriais, mas nos produtos os mais diversos. Acabam tornando-se danosos quando entopem os bueiros, se enroscam nas raízes dos manguezais, ocupando a superfície de rios e canais e indo parar nos aterros sanitários e oceanos. São muitos os efeitos decorrentes, isto é, a mortandade e má-formação de peixes, baleias e tartarugas, que acabam por ingerir a substancia. Pesquisadores da Universidade da California (1) nos informam que 8.300 milhões de toneladas métricas (Mt) de plásticos virgens tenham sido produzidas até o momento (uma tonelada métrica é de 1000 quilos). A partir de 2015, foram gerados aproximadamente 6300 Mt de resíduos plásticos, dos quais cerca de 9% foram reciclados, 12% foram incinerados (aumentando, portanto, o aquecimento global) e 79% foram acumulados em aterros sanitários ou no ambiente natural. Se as tendências atuais de produção e gestão de resíduos continuarem, cerca de 12.000 Mt de resíduos plásticos estarão em aterros sanitários ou no ambiente natural até o ano de 2050.

Do ponto de vista histórico, o plástico é um fenômeno muito novo. Em 1950, a produção global total do material foi de pouco mais de 2 toneladas. Em 2015, ou seja, apenas 65 anos depois, a produção foi de 448 milhões de toneladas.

Atualmente, utiliza-se uma média global de aproximadamente 60 quilos de plástico por ano por pessoa. Nas regiões mais industrializadas – América do Norte, Europa Ocidental e Japão – a média é de mais de 100 quilos per capita. Uma vez nos mares, o plástico permanece ali por anos, já que não é biodegradável ou digerível. Normalmente, ele se fragmenta em pedaços cada vez menores e alguns deles são engolidos por organismos marinhos, entrando em cadeias alimentares – algo prejudicial tanto para ecossistemas marinhos quanto para as pessoas que comem peixe. “Estamos caminhando em direção a um planeta plástico”, disse o pesquisador da Universidade da Califórnia, Roland Geyer, coautor do novo estudo. Ele acrescenta que o crescimento global na produção de plásticos é “extraordinário e não dá sinais de que vá abrandar no curto prazo” (2).

Jenna R. Jambeck (3), que participa de um grupo diversificado de cientistas - oceanógrafos, ecologistas marinhos, especialistas em resíduos sólidos, estatísticos, ecologistas industriais, cientistas de polímeros e engenheiros -, afirma que, quando se reuniram pela primeira vez, o ponto de

partida que tinham foi o de perguntar: quais são as principais fontes de plástico no oceano? Descobriram que esses insumos produzidos em terra seriam uma fonte importante. Então, partiram para descobrir o quanto representavam. Esses números estimam a quantidade de plástico já no oceanonós chamamos isso de “o estoque permanente”. O que eles observaram foi a entrada anual em plático nos oceanos: “Nós estimamos que as pessoas adicionaram 8 milhões de toneladas métricas - ou seja, 8,8 milhões de toneladas - de plástico no oceano em 2010”.

Os métodos utilizados para essa estimativa foram o

de olhar para as taxas de geração de resíduos por pessoa em 2010 em 192 países com litoral no mundo. Como as atividades das pessoas mais próximas da costa são responsáveis pela maior parte do plástico que entra na água, a análise foi limitada a uma faixa de 50 km do litoral. A partir daí, analisaram o percentual desse resíduo que é de plástico, e qual a porcentagem disso é lixo mal administrado (o que significa lixo ou quando o lixo não é capturado e despejado na terra).

Se for assumida uma projeção comercial com populações crescentes, aumentando o consumo de plástico e aumentando a geração de resíduos, até 2025, esse número dobra - podemos

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estar adicionando 17,5 milhões de toneladas de plástico por ano. Se isso acontecer, então a nossa entrada acumulada ao longo do tempo de 2010 a 2025 é projetada para 155 milhões de toneladas métricas.

O ritmo da produção de plástico não dá mostras de abrandar. Cerca de metade do plástico fabricado entre 1950 e 2015 foi produzido nos últimos 13 anos. “Devíamos olhar para estes números e perguntarmo-nos, como sociedade, se é o que queremos e se não podemos fazer melhor”, disse a investigadora.

“Há pessoas vivas hoje que se lembram de um mundo sem plásticos”, afirmou Jemma Jambeck. “Mas os plásticos tornaram-se tão omnipresentes que não se pode ir a qualquer lugar sem se descobrirem detritos de plástico no nosso ambiente, incluindo nos nossos oceanos”. Estudos recentes têm revelado a presença de plástico nos lugares mais remotos: na Antártida, nas águas do Ártico, e numa das ilhas mais remotas do Oceano Pacífico, a ilha de Henderson. Até 2050, haverá mais plástico do que peixes (por peso) no mar e 99% das aves marinhas terão este material no seu aparelho digestivo.

Voltando aos efeitos adversos do plástico na população humana, há uma crescente literatura sobre os riscos potenciais para a saúde. Os produtos químicos que são usados na fabricação de plásticos são conhecidos por serem tóxicos. O biomonitoramento (a medição da concentração de contaminantes ambientais no tecido humano) fornece uma medida integrada da exposição de um organismo a contaminantes de múltiplas fontes. A abordagem mostrou que os produtos químicos usados na fabricação de plásticos estão presentes na população humana, e estudos usando animais de laboratório como organismos modelo indicam potenciais efeitos adversos à saúde desses produtos químicos (4). As cargas corporais de substâncias químicas que são usadas na fabricação de plásticos também foram correlacionadas com efeitos adversos na população humana, incluindo anormalidades reprodutivas. Em 2016, a Autoridade Europeia de Segurança Alimentar alertou para o crescente risco à saúde humana, dada a possibilidade de micropartículas de plástico estarem presentes nos tecidos dos peixes comercializados. A menos que haja uma mudança, dentro das próximas três décadas a massa total de lixo plástico nos oceanos pode ser maior do que a de peixes. Os microplásticos são muito pequenos para serem vistos a olho nu. Mexilhões, vermes marinhos e peixes absorvem alguns desses pequenos fragmentos ao se alimentarem.

Uma vez que o plástico não pode ser digerido, ele se acumula nesses pequenos organismos, e quando predadores se alimentam deles, também ingerem o plástico. Assim como outros poluentes, os microplásticos ficam mais concentrados no topo da cadeia alimentar.

Estudos mostram que a ingestão de microplásticos pode ter efeitos adversos em vários animais marinhos. Esses efeitos incluem: chances reduzidas de reprodução; crescimento e locomoção mais lentos; bem como uma maior tendência à inflamação e maior mortalidade.

Cientistas ainda não sabem ao certo quais toxinas químicas são transferidas de plásticos para o meio ambiente ou para a carne de organismos marinhos. A pesquisa sobre os impactos ambientais e biológicos dos microplásticos marinhos continua engatinhando. O que se sabe é que uma pequena quantidade de microplástico é inevitavelmente absorvida por seres humanos quando comemos peixes ou crustáceos.

Segundo o prof. Jamieson, da Universidade de New Castle, no Reino Unido, “houve casos em que as fibras poderiam realmente ser vistas no conteúdo do estômago quando estavam sendo removidas, disse ele. Sentimos que tínhamos que fazer este estudo, dado o acesso exclusivo que temos a alguns dos lugares mais remotos da Terra, e estamos usando essas amostras para fazer uma declaração comovente sobre o legado da humanidade” (5).

A equipe testou 90 crustáceos nas trincheiras ultraprofundas que abrangem o Oceano Pacífico - as trincheiras de Mariana, Japão, Izu-Bonin, Peru-Chile, Nova Hébridas e Kermadec. Descobriu-se que todos tinham criaturas que haviam comido alguma forma de fibra artificial ou plástico, variando de 50% nas Novas Hébridas a 100% na Mariana.

Animais do fundo do mar que comem “quase tudo” dependem da comida que cai da superfície.

“Precisamos de uma mudança radical – diz ele - na maneira como lidamos com os restos do plástico. Mantendo os padrões atuais, teremos que esperar até 2060 para que mais plástico seja reciclado do que jogado em aterros e no meio ambiente. É devagar demais, não podemos esperar tanto”.

Notas

1 Roland Geyr; Jenna R. Jambeck; Kare Lavander Law. “Production , use and fate of all plastics ever made”. In:Science Advance, 19 jul, 2017, v.3,n.7.

2 Por Deutsche Welle,31/07/2017, “Uso desenfreado de plástico ameaça oceanos e saúde humana”.

3 Plastic waste inputs from land into the ocean , Jambec, J.R., Andrady, A., Geyer, R., Narayan, R., Perryman, M., Siegler, T., Wilcox, C., Lavender Law, K. , (2015). Plastic waste inputs from land into the ocean, Science, 347, p. 768-771.

4 Talsness C.E, et all, “Components of Plastic experimental studies in animals: relevance for human health”. British Society, 364, 20179-2096.

5 Ver em https://www.independent.co.uk/news/ science/sea-creatures-manmade-fibres-seapollution-deep-ocean-scientists-mariana-trenchnewcastle-university-a8058106.html.

Marcos Costa Lima é professor do Programa de PósGraduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco.

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Opinião

Relevante para mim ou para você?

Por Liliane do Nascimento Santos Feitoza

Algumas perguntas frequentes, diante do desejo de estudar uma relevância jornalística e socialmente legítima, expõem o individualismo presente nas nossas percepções. “Mas essa relevância não vai sempre depender de cada um? Quer dizer, não é verdade que o que é relevante para você pode não ser relevante para mim?”

A resposta às duas questões é inevitavelmente um sim. Sim, de maneira sintética, a relevância representa o que é importante para um ator social e para os seus interesses particulares de ação. E, sim, é indiscutível que as pessoas são visivelmente diferentes e interessadas por temas distintos. Algumas podem voltar-se com mais atenção para notícias esportivas, outras para conteúdos científicos e outras ainda para o que disse determinada celebridade. Ainda assim, como qualquer uma dessas pessoas poderia deixar de prestar atenção a um terremoto na sua região ou a cura do câncer ou da AIDS? (SHOEMAKER, 2006).

Há pelos menos duas considerações que não

podem ser ignoradas a respeito da cognição do indivíduo diante da relevância. A primeira delas diz respeito a existência de alguns fatos ou acontecimentos que despertam relevância, independente dos gostos individuais, e a segunda se volta para a constituição da própria individualidade.

Sperber e Wilson (2001, 2005, 2010) fornecem uma elaborada explicação para a primeira consideração. De acordo com a sua Teoria da relevância, a atribuição de uma importância maior ou menor a um acontecimento se liga, em primeira instância, a pressões evolutivas que moldam e moldaram o desenvolvimento da cognição humana e que fizeram dela a principal vantagem competitiva da espécie. Para os autores, a cognição é uma função biológica, que busca garantir a sobrevivência da humanidade, antes de priorizar gostos individuais.

A partir dessa perspectiva, seria possível explicar, por exemplo, a constância de critérios de seleção que estabelecem relevância jornalística chamando a atenção para situações arriscadas ou perigosas, como nos valores-notícia negativida -

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de, morte, catástrofe e risco, muito abundantes na literatura Os valores-notícia que expressam essa ideia podem ser encontrados em diversos enredos de critérios de seleção dos acontecimentos, a exemplo do de Peucer (1690), Stieler (1695), Bond (1962), Galtung e Ruge (1965), Golding e Elliott (1979), Wolf (1985), Shoemaker (1991), Traquina (2005) e Guerra e Barreto (2013), todos previamente levantados em SANTOS (2014).

Apenas quando a necessidade de sobreviver, numa dimensão física, é superada, outras necessidades passam a ser priorizadas pela cognição, sem que a sobrevivência primeira seja esquecida. Numa situação como a de uma epidemia, por exemplo, em que a proliferação de uma enfermidade coloca em risco a vida de uma população, os gostos particulares são momentaneamente suprimidos, em função dessa sobrevivência primeira.

Todavia, durante a maior parte do tempo e na maioria das sociedades contemporâneas, essas situações são exceções, de forma que a atribuição de relevância precisa ser pensada em um contexto de ampliação do que se entende por importante e necessário. Os momentos de estabilidade nos conduzem para a segunda consideração, a da formação das individualidades. Para ampliar a percepção dos sujeitos, a fenomenologia de Alfred Schutz é especialmente frutífera.

Para o autor, o indivíduo é um ser social que não constitui a sua subjetividade de maneira isolada, mas a partir de uma realidade comum em que ele e os outros estão inseridos. Todo indivíduo, ao nascer, passa a fazer parte de um mundo de significados comuns, também chamado de mundo da vida, que não foi construído por ele, mas que lhe é ofertado já pronto, ainda que não estático (SCHUTZ, 2003). De forma que, para o autor, mesmo a experiência subjetiva possui aspectos sociais inerentes a ela.

O sistema de tipificações e relevâncias socialmente aprovado é o terreno comum no qual têm origem as estruturas de tipificação e relevâncias privadas. Isso acontece porque a situação privada do indivíduo tal como definida por ele é sempre uma situação dentro de um grupo, seus interesses são interesses com referência àqueles do grupo (seja mediante particularização ou antagonismo), seus problemas privados necessariamente existem tendo como contexto mais amplo os problemas do grupo. (SCHUTZ, 2012, p. 135)

O terreno comum, a que o autor se refere, não é uma realidade objetivada por ser essencial e perfeita, antes disso ela é uma construção

social que só existe graças a intersubjetividade. Na perspectiva schutziana, de nenhuma forma, as individualidades podem ser concebidas como oposições do social, uma vez que todas as subjetividades se formam a partir do social e que a sociedade só existe graças um compartilhamento de subjetividades.

Pensando na avaliação de relevância como uma forma de conhecimento, os dois casos fornecem elementos teóricos para concebê-la como mais do que um processo de escolha individual. Sendo a avaliação de relevância, antes de tudo, um instrumento da cognição e a própria cognição individual um construto social, o conhecimento da relevância encontra suporte, nas duas dimensões, para reivindicação de critérios socialmente válidos.

Reorientar o olhar para os valores que ajudam o jornalista a definir o que é ou não relevante é, antes de tudo, uma forma de abandonar uma postura de observador desinteressado e uma crença de que tais critérios se eximem de participar da construção de uma realidade desigual.

Referências

SANTOS, L. N. Os valores-notícia na literatura jornalística: elencos e operacionalização. 59 p. (Trabalho de Conclusão de Curso não publicado) Universidade Federal de Sergipe, Brasil, 2014.

SCHUTZ, Alfred. El problema dela realidade social: escritos I. 2ed. 1 reimp. Buenos Aires: Amorrortu, 2003.

SCHUTZ, Alfred. Sobre fenomenologia e relações sociais. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2012.

SHOEMAKER, Pamela J.; COHEN, Akiba A. News around the world: content, practitioners, and the public. New York, Estados Unidos: Routledge, 2006.

SPERBER, Dan; WILSON, Deirdre. Posfácio da edição de 1995 de “relevância: comunicação & cognição”. Linguagem em (Dis) curso, Santa Catarina, v. 5, p. 171-220, 2010.

SPERBER, Dan e WILSON, Deirdre. Relevância: Comunicação e Cognição. Tradução: Helen Santos Alves. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

SPERBER, Dan; WILSON, Deirdre. Teoria da relevância. Linguagem em (Dis) curso, Santa Catarina, v. 5, p. p. 221-268, 2005.

Liliane do Nascimento Santos Feitoza é jornalista, doutoranda do PPGCOM da UFPE e mestra em comunicação pela Universidade Federal de Sergipe (UFS)

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Opinião

Burocracia, autoritarismo e corporativismo

Acrítica à burocracia é tema recorrente na imprensa, que acolhe amiúde manifestações dos cidadãos que dela são vítimas. Tenha-se, contudo, que o aparato burocrático, quando escoimado de suas deformações, é essencial para o funcionamento do Estado. Nesse caso, ele garante que as demandas aos cidadãos sejam processadas de acordo com os princípios de moralidade, impessoalidade, economicidade e eficiência, previstos na Constituição brasileira. O problema é que nos encontramos há anos-luz do ideal retratado acima. As mazelas da máquina burocrática refletem e incorporam as que são onipresentes na formação social brasileira e no aparato estatal. Autoritarismo, cartorialismo e corporativismo, frequentemente mesclados, estão subjacentes às práticas deletérias dos agentes dessa máquina, determinando a acomodação destes diante de normas que não primam pela preocupação com a racionalidade e a eficiência do serviço público.

Tal como a mitológica Hidra de Lerna, a burocracia sem controle social é um monstro de muitas cabeças; quando lhe cortam uma delas, aparecem duas em seu lugar. Porém, enquanto o venenoso hálito da Hidra causa a morte imediata de quem dela se aproxima, a burocracia - salvo em casos específicos, como na área da saúde – não mata as suas vítimas. Ela as mantém vivas, pois sem estas não existiria, sugando-as diuturnamente, de maneira insidiosa e consentida, acostumando-as aos caprichos e à lerdeza que lhe são intrínsecas. As mantém, consequentemente, semi-paralisadas, privadas da sua natural desenvoltura, necessária ao atendimento de suas necessidades. Com efeito, a nossa cultura burocrática se alimenta de procedimentos repetitivos, nos quais os agentes públicos, aprisionados em rotinas excessivamente formalistas, enredam as demandas administrativas em múltiplos e desnecessários protocolos. Como o monstro da mitologia grega, a burocracia é expansiva. Mas, contrariamente a ele, se não chega a ser atrativa, mostra capacidade de

persuasão, esgrimindo o falso argumento de sua imprescindibilidade.

As grandes e pequenas excrescências por ela impostas, a despeito de sua inutilidade e do desperdício que acarretam, são suportadas estoicamente pelo cidadão. Deixa-se, assim, inocular pelo vírus do conformismo, não percebendo, regra geral, que elas funcionam como poderoso instrumento de controle social. À guisa de exemplo: como explicar a aceitação passiva da exigência de quem presta serviço ao Estado ter de comprovar a utilização da passagem que recebeu, mesmo se as companhias do ramo podem fazê-lo, sem ônus financeiro, nem perda de tempo? Quem cumpriu o contratado tem, ademais, de preencher execráveis prestações de contas que servem apenas para lhe dar dor de cabeça. E são rejeitadas, caso não sejam acompanhadas dos tickets de embarque.

Também marcada por profunda e dispendiosa irracionalidade: a exigência, feita a palestrantes de órgãos públicos, de preparar extensas justificativas, além de documentos que sintetizem as suas palestras, as quais, todavia, tomam mais tempo e trabalho do que o destinado à sua preparação e apresentação! Pior ainda: imenso é o papelório que deve ser elaborado pelos funcionários dos órgãos referidos sobre essas palestras, especialmente no que diz respeito à comprovação de sua necessidade, efetiva realização e pagamento. O dispêndio por esse trabalho termina sendo bem superior ao do valor com que se remunera o palestrante. Quer dizer, a atividade meio, sobre ser inútil, custa mais caro do que a atividade fim. Mas a tradição cartorial se combina, negativamente, com o autoritarismo interiorizado no comportamento de muitos funcionários públicos, que não se sentem nem agem como servidores, e sim como se fossem os donos do “pedaço”.

Tratam mal o cidadão, se escudando em legislação inteiramente ultrapassada. Coroando a arrogância burocrática, os balcões que o atendem exibem, com destaque, dis -

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positivos do Código Penal que tipificam como crime, com pena de até dois anos de detenção: “desacatar funcionário público, no exercício da função pública, ou em razão dela”. E imaginem aonde: nas Casas da Cidadania! Não se tem notícia de que as ouvidorias tenham denunciado o caráter intimidatório e discriminador desse dispositivo, nem buscado sua revogação. E nem se empenhado em retirá-lo de ambiente que deveria ser marcado pelo estímulo à participação! Aliás, esse santo nome é invocado, com indisfarçável hipocrisia, por governantes que abastardaram os instrumentos participativos - a começar pelas ouvidoriasdespojando-os de sua autonomia e caráter democrático. Tal comportamento expressa a notória resistência da chamada “classe política” às diferentes formas de controle da administração por órgãos independentes do gestor e com prerrogativas que assegurem o compartilhamento da gestão pública com a cidadania. Resistência que estimula a acomodação corporativista e a incúria dos servidores menos vocacionados para o múnus público e a dos gestores despreparados ou negligentes, em detrimento do respeito aos direitos do cidadão e do princípio de economicidade no serviço público.

Com efeito, o corporativismo tem disseminado seus efeitos deletérios em toda a administração, inclusive no âmbito do Poder Judiciário e do Ministério Público. É, portanto, necessário que os órgãos de controle desses Poderes, especialmente o mais importante - o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) - reformulem a sua composição, tornando-os mais amplamente permeáveis à participação de entidades da sociedade.

Dessa forma, o CNJ estará habilitado a promover não somente o efetivo controle das falhas do sistema de justiça, mas, sobretudo, a impedir que o viés corporativista dos órgãos acima mencionados iniba a crítica de seu funcionamento, assim como o caráter sistêmico dessa crítica.

No que nos interessa de mais perto – a universidade pública – é necessário redefinir sua concepção de democracia participativa, escoimando-a de seu viés corporativo, que faz com que algumas delas discutam seus rumos e suas políticas apenas interna corporis, alijando-se dessa discussão a comunidade, a que ela deve estar umbilicalmente ligada. Destarte, urge rever o modelo eleitoral prevalecente na maioria das uni -

versidades públicas, baseado no sistema tripartite de participação, que confere o direito de escolha dos seus dirigentes, com peso igual, aos três segmentos que a compõem: docentes, estudantes e servidores técnico-administrativos. Este sistema tem engessado a administração universitária, submetendo-a à ditadura dessas três corporações e deixando sem vez nem voz a sociedade, razão de ser de sua existência.

Contudo, é no plano político stricto sensu que o autoritarismo burocrático revela-se mais intolerável, com repercussões decisivas em relação ao próprio funcionamento da democracia. É assim que se pretende, através do voto obrigatório, impor aos cidadãos ato soberano, que, por isso mesmo, só pode ser idôneo se for espontâneo, nunca praticado sob coerção. E, também, caso não vote, obrigá-los a justificar-se, sujeitando-os à perda de tempo, multa, despesa de deslocamento, e, em muitos casos, a espera para atendimento debaixo de sol e de chuva - como ocorre em muitas cidades – sabe Deus até quando!

Enquanto milhões são desperdiçados na manutenção de serviços decorrentes da obrigatoriedade do voto, milhares de brasileiros ficam desassistidos por falta de recursos do Estado para prover os seus serviços. Posturas inovadoras e inclusivas, indispensáveis à construção de uma sociedade democrática e igualitária, são incompatíveis com o conformismo entranhado que comanda a rotina administrativa e que permanece infensa ao controle social. Uma democracia digna desse nome necessita de instrumentos independentes do gestor, capazes de eliminar exigências burocráticas que ferem o princípio de eficiência da administração pública e o de igualdade de todos perante a lei. E do compromisso de cada cidadão de mobilizar-se para a conquista desses instrumentos, exigindo do Estado o respeito aos seus direitos.

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Rubens Pinto Lyra é Doutor em Direito Público e Ciência Política.

Opinião

A conspiração reacionária no Brasil

Toda a espetacularização da justiça a que se assiste no Brasil, e que arrisca expandir-se por outras regiões, é a outra vertente do jornalismo “de guerra”: chamar a opinião pública a se substituir à justiça. O tempo da justiça não é o da mídia e, sob influência do “sistema”, a justiça não funciona. Enquanto a corrupção se beneficia grandemente da globalização da finança e dos novos meios de comunicação, nesse mesmo momento esse novo mundo torna patentes as fragilidades da justiça e do Estado.

Então se chama a população a se insurgir contra a corrupção, mas se mantém o sistema que abriga os paraísos fiscais e demais formas de branqueamento e repatriamento de capitais, anistias e isenções fiscais e outras artimanhas de favorecimento na subtração à lei, à justiça e à moral.

A esquerda sempre achou positivo o jornalismo de denúncia, porque era um meio de evidenciar que a justiça não funcionava, ou era parcial. Isso se passava enquanto os jornais eram, na sua maioria, controlados pelo poder econômico. Eram possíveis denúncias contra o sistema, dentro de certos limites. A partir do momento em que o PT começou a ganhar eleições sucessivas, esses limites foram propositalmente violados no interesse dos patrões da mídia.

Mas tudo isso estourou com o Google, o Facebook, Twitter, Whatsapp e similares. Com as redes sociais, a opinião pública adquiriu uma aparente independência, e um peso muito maior, difundindo a informação-lixo e manipulando de

forma deliberadamente torpe as convicções da população. Essas novas redes estão na mão de técnicos sem qualquer espécie de compromisso, permitem que oficinas com motivações escusas espalhem falsas informações, que no caso do Whatsapp são ainda mais difíceis de identificar e reprimir. ,

Constatando o poder das redes sociais, interesses brasileiros e estrangeiros concluíram que era possível usar esse poder e manipular a opinião pública para se substituir à justiça, ou para coadjuvar a justiça cúmplice, sem a interferência da sociedade civil “legitimista”, ou outros formadores de opinião, a fim de derrubar políticos que punham em causa o sistema. Nada disso é radicalmente novo. Trata-se de uma nova modalidade, com novos meios, de algo que já foi usado desde o final do século XIX com a imprensa escrita (o que resultou na primeira guerra mundial) e na primeira metade do século XX com o rádio, com a tomada do poder pelo fascismo, e que foi denunciado na época por autores como Karl Kraus.

No caso brasileiro, a mídia, ou seja, basicamente a Globo (e a Veja, que precisamente vinha do jornalismo investigativo “de guerra” no caso do impeachment de Collor) adquire proeminência porque era esse o seu papel, pois já vinha dando meios à conspiração reacionária, e lutando também pela sua sobrevivência. O objetivo primeiro da mídia tradicional é manter o poder sobre a parcela do Estado que lhe permite obter a publicidade pública, que deve substituir o faturamento que lhe é subtraído pelas redes sociais, uma vez que não funciona mais o controle

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via proibição do investimento externo na mídia. A nova mídia pula as fronteiras.

Então, quando a esquerda diz que é necessário fazer uma reforma da mídia, para implantar limites que existem em qualquer democracia, ninguém pode negar isso, que era, aliás, exigido há anos, mas trata-se de uma reforma do passado. Hoje uma reforma da mídia não é suficiente, a menos que abranja as redes sociais. É o que está sendo feito pela Rússia e China, com custo elevadíssimo. Pois é difícil atingir esse objetivo salvaguardando a liberdade de expressão, a democracia, a menos que se invente algum tipo de controle democrático sobre a mídia social.

A verdadeira reforma que há a fazer é a da justiça. Além de afastar as partes podres que se prestaram a esse jogo de índole totalitária, nomeadamente através da delação - um sistema inquisitorial em que cabe ao acusado provar que é inocente - é necessário que se cuide da formação nas escolas de polícia e magistratura, que se melhore a eficiência da justiça, e que se estabeleçam regras para separá-la tanto quanto possível do poder político, do mediático e do econômico.

Basicamente, a manipulação a que se assiste no Brasil é a mesma que foi descoberta na campanha do Brexit, montada com a colaboração da Facebook. A diferença é que isso foi feito num contexto brasileiro onde as instituições estavam debilitadas diante dos desafios que tinham de enfrentar. Todas as instituições: jurídicas, policiais, políticas. O que havia desmoronou como um castelo de cartas, surpreendendo certamente até os mentores do golpe.

O golpe chegou no bojo de uma conspiração conservadora que atingira boa parte da população. Prova disso é o espetáculo do Congresso no dia da destituição da presidente Dilma Rousseff, a atuação da Presidência e do governo Michel Temer, o exercício da Justiça por Moro, e muitos outros juízes e tribunais, incluindo o STF, no caso da prisão do presidente Lula, ou o comportamento da polícia quando do assassinato de Marielle Franco, que só são possíveis num país onde todas as instituições estavam já à deriva. A comunicação política, as instituições, tornadas obsoletas pela nova sociedade nascida da democracia, foram abandonadas pelos governos recentes, foram vítimas da governabilidade espúria que este sucesso exigiu, e finalmente foram manipuladas por uma conspiração reacionária.

A maioria dos juízes, promotores públicos e delegados, de trinta e poucos anos, à frente de operações como a Lava-Jato e outras, são filhos da promoção social criada pela democracia. Não são os tradicionais descendentes das elites brasi -

leiras ligadas ao poder econômico, uma pequena minoria incapaz de responder à expansão do novo Brasil. Essas novas elites judiciárias e policiais são frequentemente doutrinadas por seitas evangélicas cujas matrizes ideológicas estão no sul escravocrata dos EUA. Enviados para lugares como o Acre ou o Amapá, regiões onde a lei inexiste e sempre inexistiu, com salários e vantagens milionários em relação à população local (sem o que nunca aceitariam residir em tais lugares), a quem se espera que eles se aliem senão ao poder econômico e político interessado em explorar os recursos naturais dessas regiões, a essa ilusão de modernidade e progresso? Ou seria de esperar que se aliassem às indigentes populações locais, ou aos índios, que vivem em universos que não os desses novos ricos? Nessas regiões remotas, que podem ser também as franjas do Paraná, ou do Rio Grande do Sul, onde impera a grande propriedade excludente, apenas as novas universidades federais abertas pelos governos PT representam alguma espécie de esperança de progresso autocentrado, promoção social e desenvolvimento (e por isso serão esvaziadas pelo novo regime, e amputadas as cotas raciais e sociais).

Por outro lado, a quem se espera que adira a população da periferia das metrópoles, onde dezenas de milhões de pessoas, vítimas da especulação do rentismo fundiário, vivem em condições indignas, num caldo de cultura baseado no tripé da televisão, das redes sociais e dessas igrejas? Como esperar que a polícia, que daí provém e aí atua, fique imune à delinquência generalizada, aos tráficos de droga, entre outros?

Toda essa gente, pobres e novos ricos, constitui um exército mobilizável pelo extraordinário poder de atração do fascismo, esse radicalismo falsamente democrático e moralista.

Custou uma guerra mundial (e um plano Marshall) à Europa para se libertar do fascismo. O Brasil vai levar tempo para se levantar dessa conspiração reacionária, que foi bem mais que um golpe político. Vai acordar enfraquecido, despossuído das suas maiores riquezas, capturadas pelo capital econômico internacional e pelos rentistas locais. E com as suas incipientes instituições em frangalhos. É do interesse de todos os povos matar no ovo esse fascismo renascente, e que o povo brasileiro tome de novo as rédeas de um novo desenvolvimento.

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Pedro de Souza é pesquisador, editor e exsuperintendente executivo do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento.

Opinião

Fake news: Contexto e perspectivas

Fake news foi eleita a palavra do ano de 2017 pelo dicionário Collins (BBC BRASIL, 2017). A equipe de curadoria do dicionário afirma que naquele ano aumentou em 365% o uso do termo, motivado principalmente pelas reclamações do presidente estadunidense Donald Trump a respeito de notícias falsas dirigidas a ele. Curiosamente, segundo pesquisa do Instituto da Internet da Universidade de Oxford (FOLHA DE SÃO PAULO, 2018), foi justamente o grupo que mais propaga fake news nos EUA, a extrema direita, o responsável por eleger Trump, de modo que ele foi beneficiado pela propagação de fake news.

As fake news não são algo novo. O dicionário Merriam-Webster (2017) aponta para o termo já na década de 1890. O Merriam-Webster vai além e explica que a ausência da palavra fake news antes desta época não implica na ausência do fenômeno, mas apenas em que o adjetivo fake era pouco usual em inglês até então.

Cabe aqui abrir um questionamento: se as notícias falsas são um problema antigo, por que elas só se tornaram relevantes agora? Bem, seria um erro dizer que as notícias falsas se tornaram relevantes apenas agora. Efetivamente, o uso do termo fake news e sua popularização lançam interesse sobre o tema. Interesse que não se restringe à dicionarização da expressão ou do seu uso, mas se relaciona aos escândalos envolvendo fake news na internet e seus impactos nas democracias ocidentais. Voltemos então a Trump. Diversas análises creditam sua eleição ao uso das fake news. Paul Horner, que assumidamente propagou fake news pró-Trump, chegou a afirmar ao Washington Post que “ninguém checa os fatos atualmente, e foi assim que Trump foi eleito” (HORNER, 2016). Horner fazia das fake news seu meio de vida, criava notícias mirabolantes para gerar clicks que produziriam faturamento com anúncios. Rapidamente ele notou as aplicações ideológicas deste sistema e passou a forjar notícias pró-Trump. Foi encontrado morto em sua residência em 18 de setembro de 2017, cerca de um ano após assumir sua

atuação na campanha presidencial. Entre as inverdades difundidas por ele constam a afirmação de que Obama era muçulmano ou que os manifestantes contrários a Trump recebiam salários de até 3.000 por ano.

Olhando assim, parece que as fake news pertencem a uma realidade distante, são coisa de irresponsáveis, radicais ou pessoas interessadas exclusivamente nos lucros ou benefícios auferidos nesta atividade. Destas afirmações, possivelmente a única que não se aplica é que as fake news são algo distante da realidade brasileira. Todas as outras podem ser colocadas em perspectiva e ponderadas. Aqui, vamos nos ater apenas a veículos de mídia corporativa para mostrar que irresponsabilidade, radicalismo e interesses particulares advindos da manipulação de informação não são exclusivos de não-jornalistas, como se costuma acusar quando se trata de fake news. Vejamos. Sobre a ocupação do edifício Wilton Paes de Almeida, que desabou no centro de São Paulo no dia 1º de maio de 2018, veículos relacionados ao Grupo Globo (G1 e O Globo), o jornal O Estado de São Paulo e as revistas Isto É e Veja afirmam que os moradores pagavam aluguel para viver no local. Dos veículos corporativos, apenas o UOL deu destaque à fala do líder da ocupação. Houve o uso sensacionalista do termo aluguel para provocar um efeito de sentido (que é por extensão ideológico) no público. Contudo, ao provocar-se tal efeito, neste e em outros casos, perde-se conexão com o factual.

Curiosamente, a Veja entrou numa cruzada contra as fake news. Em 24 de abril de 2018, a Veja organizou o “Páginas Amarelas ao Vivo - ‘Como as fake news e as redes sociais afetarão as eleições, o Brasil e você’”. O evento contou com a participação de celebridades da vida política brasileira, como os ministros do Supremo Tribunal federal Luiz Fux e Gilmar Mendes. Fux, aliás, está numa cruzada contra as notícias falsas. Sob sua gestão, o TSE criou um grupo para combater as fake news nas eleições de 2018. Mendes também deve estar preocupado. Segundo levantamento da própria Veja (2018a), ele, Lula, Temer e Moro são os

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principais alvos das fake news no país. Difícil mesmo é confiar na Veja e na sua preocupação quando ela mesma é acusada - e tem sido acusada há pelo menos 30 anos - de produzir e propagar fake news. A capa do dia 4 de maio de 2018 anuncia: “A Vida de Lula na Prisão” e diz: “VEJA teve acesso com exclusividade ao local onde o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) está detido e reconstituiu o cotidiano de seu primeiro mês na prisão (...)” (VEJA, 2018b). A respeito da matéria, já no dia 5 a Polícia Federal do Paraná havia lançado uma nota de esclarecimento elucidando inverdades disseminadas pela Veja.

A questão que se impõe é: é possível frear as fake news? Como foi dito, o STE pretende combater as fake news nas eleições de 2018. Fux (2018) afirma: “No TSE elegemos uma estrutura para agirmos preventivamente e repressivamente”. A declaração parece oportuna, mas esconde um risco. Da mesma forma que a transmissão de fake news pode ser maléfica, a supressão de informações também pode ser. Os órgãos reguladores serão capazes de verificar cada informação disseminada? Que critérios serão utilizados nas ações repressivas? Há de se tomar cuidado, pois, como vimos, fake news parecem ser, para além da factualidade, uma questão de perspectiva. Fake news são aquilo que é produzido pelo outro, isso é o que diz também Trump. Ele e a Veja são apenas dois exemplos, mas no Brasil e no mundo há milhares de casos semelhantes. De todo modo, como combatê-las? Reprimir como sugere o ministro? Vigilância e Punição, aponta Foucault, são caminhos da sociedade disciplinar. Quando o debate sobre a sociedade da informação começou, autores como Castells e Levy partiam do pressuposto que os ambientes digitais seriam livres. Escândalos, como o vazamento de dados dos usuários do Facebook em 2018, mostram que não. Mesmo assim, há de se insistir em certa liberdade e esta vem da diversidade, não só nos ambientes digitais, mas também nos não-digitais. Uma forma de coibir as fake news é criar contextos favoráveis para o florescimento de agências de comunicação independentes. Discutir o monopólio dos meios de comunicação, na internet ou fora dela também é relevante. É necessário, ainda, que produtores da informação sejam transparentes em relação à forma como ela é produzida. Ademais, é preciso informar as audiências sobre as fake news. Veículos tradicionais, plataformas digitais,

produtores independentes, governos, universidades, escolas e tribunais, em resumo, múltiplos agentes devem se envolver e informar o público sobre o que são as fake news e sobre a necessidade de se buscar informações. Nem a Veja, com seu evento sobre fake news, e nem Fux, com sua declaração, estão errados, trata-se apenas de como encaminhar a questão. Como se vê, a problemática é complexa. O futuro não é nada alentador se o combate às fake news não for imediato e contínuo. Contudo, o enfrentamento ao problema é bem menos complexo do que parece. Não se trata de atiçar fogo com fogo, de vigiar e punir ainda mais, mas de criar mecanismos para que as fake news, na medida do possível, se esgotem em si e por si sós.

Referências:

BBC BRASIL. ‘Fake News’ é eleita palavra do ano e ganhará menção em dicionário britânico. 2017. Disponível em: <http:// www.bbc.com/portuguese/internacional-41843695>. Acessado em 15 de Maio de 2018.

FOLHA DE SÃOPAULO. Ultradireita domina ‘fake news’ nos EUA, diz pesquisa de Oxford. 2018. Disponível em: <https:// www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/02/ultradireita-dominafake-news-nos-eua-diz-pesquisa-de-oxford.shtml>. Acessado em 17 de Maio de 2018.

MERRIAM-WEBSTER. The Real Story of ‘Fake News’. 2017. Disponível em: <https://www.merriam-webster.com/words-atplay/the-real-story-of-fake-news>. Acessado em 16 de Maio de 2018.

FUX, Luiz. Entrevista concedida no evento Páginas Amarelas ao Vivo - ‘Como as fake news e as redes sociais afetarão as eleições, o Brasil e você’. São Paulo, 2018.

HORNER, Paul. Entrevista dada ao Washington Post. Disponível em: <https://www.washingtonpost.com/news/ the-intersect/wp/2016/11/17/facebook-fake-news-writeri-think-donald-trump-is-in-the-white-house-because-ofme/?noredirect=on&utm_term=.bc240c3128e5>. Acessada em 17 de Maio de 2018.

VEJA. Lula, Temer e Moro são os maiores alvos de notícias falsas. 2018a. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/brasil/ ranking-alvos-vitimas-noticias-falsas-fake-news-politicabrasil/.>. Acessado em 16 de Maio de 2018.

VEJA. A vida de Lula na prisão. 2018b. Disponível em: <https:// veja.abril.com.br/tveja/ultima-edicao/a-vida-de-lula-naprisao/.>. Acessado em 16 de Maio de 2018.

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Opinião

O dilema dos jovens rurais: ficar ou sair do campo

Por Inã Cândido de Medeio

Diversos trabalhos na área de Ciências Sociais vêm pesquisando sobre a saída e a permanência dos jovens no campo. Pesquisas como a de Abramovay (2003), Carneiro (1998), Paulo (2010), Wanderley (2013) e Stropasolas (2006) destacam que a saída dos jovens agricultores em direção às cidades vem se intensificando nos últimos anos no país.

A “juventude” parece um desses termos óbvios, cercado de entendimentos tácitos, sendo, assim, uma dessas palavras que se explica por ela mesma e/ou um assunto sobre o qual todo mundo tem algo a dizer. Em algumas pesquisas que retratam a juventude rural, as associações negativas sobre juventude quase estão ausentes. “É como se nos jovens rurais fossem coladas imagens de uma vida rural idílica, por proporcionar maior contato com a natureza, onde a vida é mais calma, as pessoas mais simples e o ambiente menos competitivo, portanto em contraposição às imagens da vida urbana nas metrópoles” (TAVARES, 2009, p. 3). Por outro lado, um dos estereótipos em relação aos jovens rurais é o de que eles se encontram em uma situação sem alternativas de vida e que, na sua condição rural, resta-lhes apenas a escolha da migração.

Na perspectiva de Paulo (2010), a característica fundamental daquilo que define a “juventude” está diretamente relacionada aos seus contextos de vida e a complexidade de aspectos que se efetivam a partir daí. O que se evidencia, com isso, é a multiplicidade e singularidade da juventude, pois ela apresenta trajetórias e percursos distintos. Para ela, muitos jovens rurais têm alternativas para permanecerem ou saírem do campo. O antropólogo da CEPAL - Comissão Econômica para a América Latina, John Durston (1997), ao estudar a juventude rural dos países latino-americanos, destacou que os jovens desen -

volvem pensamentos e ações estratégicas em vários campos de possibilidades. Em um primeiro momento, por meio da imaginação e da fantasia, para depois progressivamente modificar suas ações sociais em objetivos que orientam as possibilidades de realização de projetos em curto, médio ou longo prazo.

Enquanto o projeto para o futuro dos jovens urbanos significa um processo de escolha de uma profissão, para os jovens rurais pode ser carregado de uma tensão maior, à medida que implica na decisão entre ficar ou permanecer com a família no local de origem. Souza (2001) destaca alguns fatores determinantes que podem contribuir na escolha da profissão: a oferta de escolas e centros de formação geral, a diferenciação social, a valorização do campo e a precariedade das condições da unidade produtiva.

Segundo Wanderley (2013), as expectativas de permanência nas atividades agrícolas da juventude rural estão condicionadas a fatores socioeconômicos externos e internos relacionados à propriedade familiar, especialmente naquilo que diz respeito à escolha profissional e a valorização da profissão do agricultor em relação a outras atividades. Tais situações, somadas à escassez de oferta local, podem comprometer o projeto para o futuro dos jovens, pois a busca de melhores condições profissionais e educacionais fazem com que muitos migrem para municípios vizinhos ou outras regiões do país.

Dada à precariedade das alternativas locais e existindo as possibilidades de trabalho e estudo em outros municípios, muitos jovens agricultores migram como estratégia de sobrevivência. “Migrar pode vir a ser um sinal de libertação. Ao decidirem tentar a vida em outro lugar, é como se dessem um basta à situação em que ali vivenciam” (MENEZES, 2009, p.276). Assim, a migração

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pode ser considerada uma maior autonomia para o jovem agricultor diante da subordinação anteriormente vivenciada.

Para Souza e Cruz (2015), dentre as diversas instituições sociais, a família se destaca por ser um ambiente privilegiado para a escolha profissional por ser o primeiro grupo de contato social dos mais jovens. No entanto, o projeto de vida dos jovens rurais, apesar de sofrer influência dos familiares, tem como referência fundamental a figura paterna. Trata-se de uma relação de solidariedade e de subordinação aos objetivos familiares vinculados à autoridade do pai.

Os projetos profissionais fora das atividades agrícolas também recebem uma forte influência familiar. Mas, as estratégias de escolhas de uma profissão dependem das oportunidades oferecidas no local ou da disposição que o jovem tem para se deslocar de forma temporária ou permanente.

Contudo, a migração das moças e dos rapazes nem sempre está diretamente relacionada à falta de condições básicas no meio rural, mas à complexa dinâmica cultural e social. Segundo Rendin (2014), a saída do campo para os jovens pode estar atrelada a diversos aspectos que envolvem: a busca de lazer e entretenimento propiciados pelos espaços urbanos, um status midiatizado do jovem urbano e a busca de oportunidades que atendam as suas aspirações pessoais (seja no campo profissional, social, econômico ou cultural).

A questão da migração é de fundamental importância para a compreensão da realidade da juventude rural, por ser a maior parte dos migrantes jovens e por existir uma grande variedade de situações no interior da migração juvenil (DURSTON, 1997). Ademais, os trajetos migratórios captam as nuanças entre o momento histórico e social dos jovens agricultores camponeses e das unidades familiares as quais eles pertencem.

Portanto, no mundo rural, as expectativas para o futuro desses jovens são caracterizadas por uma dinâmica social e temporal interligada ao passado das tradições familiares. O presente e o futuro se expressam principalmente por

Referências:

ABRAMOVAY, Ricardo. O Futuro das regiões rurais. Editora da UFRGS. Porto Alegre, 2003.

CARNEIRO, Maria José. Ruralidade: novas identidades em construção. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, n.11, p-53-75, ou. 1998.

Juventude Rural: Vida no campo e projetos para o futuro. Ed. Universitária da UFPE, Recife. 2013.

DURSTON, John. A juventude rural excluída da América Latina: reduzindo a invisibilidade. Trabalho apresentado no Congresso de La AsociacionLatinoamericana de Sociologia (ALAS), 1997.

______. Juventud rural em Brasil y México: reduciendo La invisibilidad. Santiago do Chile: CEPAL, 1998. Disponível em www.cinterfor.org.uy. Acesso em 05/04/2018.

MEDEIRO, Inã Cândido de. Os sujeitos da formação profissional: Os jovens agricultores. In: MEDEIRO, Inã Cândido de. A formação profissional proposta pelo Serta: Construindo o futuro dos jovens no campo. Recife: Ufpe, 2017. Cap. 2. p. 54-60. MENEZES, Marilda Aparecida; SILVA, M. S. Uma experiência histórica do campesinato do Nordeste In: GODOI, E.P,; MENEZES, M.A., MARIN, R.A. (ORG) Diversidade do campesinato e categorias, Estratégias de reprodução.V.2. São Paulo: Editora UNESP; Brasília, DF: NEAD, 2009.

PAULO, Maria de Assunção Lima de. As construções de identidades e diferenças entre jovens rurais e urbanos em um pequeno município. Tese de doutorado. Recife, UFPE /PPGS, 2010.

RENDIN, Ezequiel. O futuro incerto do jovem rural. PombalPB: Intensa, v. 8, n. 1, 30/11/2014.

SOUZA, Romier; CRUZ, Renilton. Educação do campo, Formação Profissional e Agroecologia na Amazônia: Saberes e práticas pedagógicas. Belém: IFPA, 2015.

TAVARES, Mauricio Antunes. Caminhos cruzados, trajetórias entrelaçadas: Vida Social de jovens entre o campo e a cidade no Sertão Pernambucano. 2009. 350 f. Tese (Doutorado) - Curso de Sociologia, PPGS, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2009.

WANDERLEY, Maria de Nazareth Baudel. Juventude Rural: Vida no campo e projetos para o futuro. Ed. Universitária da UFPE, Recife. 2013. meio de escolhas profissionais, de práticas de herança e de estratégias de migração temporária ou permanente.

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Inã Cândido de Medeioé graduado em Ciências Sociais pela UFPB e mestre em Sociologia pela UFPE.

Opinião

Religiões afro-brasileiras e a falta de representatividade midiática

Tomamos como referência aspectos culturais, sociais e a própria contextualização das religiões de matriz africana na dinâmica social brasileira. A escravização dos negros, além de ser uma história de ruptura cultural, é também uma passagem de exploração, humilhação e desistitucionalização de uma nação. Mesmo não sendo possível trazer consigo suas religiões, foi possível estabelecer uma sincretização da religião vinda apenas na memória dos escravizados, dando origem a uma religião marcada por resistência cultural e, que, ao mesmo tempo, lança mão de aspectos de outras religiões.

A resistência negra ganhou força com a redemocratização do país, em 1980, mas, desde 1960, o questionamento e a crítica sobre as influências estrangeiras em nossa cultura fizeram surgir movimentos de consciência negra e artísticos (tropicalismo), em torno da valorização de temas nacionais. A Bahia se colocou como referência desse movimento e o Rio de Janeiro tornou-se a capital do samba, dança de origem negra muito influenciada pelos sons dos batuques vindo das casas e terreiros.

A construção da matriz de religião afro-brasileira se dará ao longo da história do país e incorporará questões da própria construção des -

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se Novo Mundo. O recorte que interessa neste momento é a emblemática situação de resistência para manutenção de uma cultura que culminou em total ignorância e desrespeito por parte, primeiramente, de sujeitos que se beneficiaram com a escravidão e, nos nossos dias, por uma população desinformada e preconceituosa. Outra variável de forças se dá por uma cooptação de espaços de poderes político-pedagógicos que se sobrepõe a uma conscientização religiosa, comandada por grupos autoritários, que se articulam por interesses particulares.

Falar de religiões de matriz africana é compreender sobre a Umbanda, o Candomblé, a Macumba, entre outras menos conhecidas. Apesar de representarem menos de um por cento da população brasileira, seus elementos culturais e ideológicos encontram-se difundidos em toda sociedade. O caso mais novo é a proximidade de ritos e mitos dessas religiões sendo incorporados em alguns cultos pentecostais, ainda que essas religiões neguem tal prática. A magia africana vista como diabólica, como já ocorria com as religiões indígenas, chega à pós-modernidade com a mesma força de preconceito. Antes rebatida pelos sacerdotes eclesiásticos, hoje alvo de ataques por parte de católicos, mas principalmente, de evangélicos, que acreditam na diabolização das práticas dessas religiões.

Diante deste cenário, nos deparamos com notícias de ataques a terreiros e/ou casas Umbandistas ou de Candomblé. Temos como exemplo a matéria intitulada “Trafico evangelizado é acusado de liderar ataques a terreiros no rio”. O grupo de Nova Iguaçu (Baixada Fluminense) pronunciava trechos do tipo: “O capeta chefe tá aqui. Taca fogo em tudo! Apaga as velas, porque o sangue de Jesus tem poder!”, registrados pelo jornal. E, mesmo diante destas ações que se perpetuam em diferentes cidades, não percebemos que poderia existir uma cobertura jornalística capaz de abranger a pluralidade de situações no cotidiano destas comunidades. São mídias tradicionais que silenciam muitas vezes acontecimentos ou não fornecem a suficiente visibilidade, em detrimento de uma supervalorização quando um cristão é atacado. Os registros ficam por conta de cidadãos comuns, que divulgam os conteúdos em plataformas como as redes sociais.

Num mundo cada vez mais plural, apesar de ter na Constituição Federal brasileira que todos são iguais perante a lei, independente de credo, cor ou situação social, e, ainda, a Declaração Universal dos Direitos Humanos que confirma a liberdade religiosa para todos os povos, não é possível se iludir, pois violações continu -

am sendo notícia, ainda que estas informações sejam restritas a mídias alternativas. De todas as denúncias relacionadas à liberdade religiosa, cerca de setenta por cento são contra religiões de Matriz Africana.

Apesar de termos um significativo número de pessoas brancas que frequentam essas religiões, as mesmas são tidas pela maioria esmagadora da população como demoníacas. Estamos em 2018, século XXI, mas, ao nos depararmos com assassinatos de religiosos de Matriz Africana, talvez nosso pensamento se conecte com tempos de escravização, em que era inconcebível a fé dos afrodescendentes, mas esses a faziam as escondidas e, caso fossem descobertos, poderiam pagar com a própria vida.

A sociedade, no seu desejo de “branquear” qualquer traço que lembre o passado, utiliza-se de formas para ocultar e expulsar tentativas de resistência. [Sendo a religião expressão máxima dessa resistência, todos os olhares são voltados a elas, mas não para reconhece-las, mas numa tentativa de fazê-la ser esquecida e/ou suprimi-la da sociedade brasileira. Mudar esse cenário, somente com a educação de um ensino religioso laico, no qual religiões são tratadas como riqueza cultural e não como vergonha, além de uma conscientização social por parte das mídias e o acompanhamento dos jornalistas desses relatos como forma de cobrar do poder público alguma resolução para estes problemas.

Referências:

GONÇALVES, Leonardo Oliveira. DIVERSIDADE RELIGIOSA E DIREITOS HUMANOS. Centro de Referência em Direitos Humanos do Distrito Federal. Casa dos Direitos União Planetária, editora União Planetária, 3ª ed. 2013.

SILVA, Vagner da Silva. Candomblé e Umbanda caminhos da devoção brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2005. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/10/1922713trafico-evangelizado-e-acusado-de-liderar-ataques-a-terreirosno-rio.shtml Acesso em: 21 de mai de 2018.

Flávia Rabelo Beghini é Pedagoga e Graduanda em Ciências da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

Rafaella Prata Rabello é Jornalista, Licenciada em Letras e Doutoranda em Comunicação pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

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Mídia Fora do Armário

Jornalismo e construções identitárias

Na luta contra violências estruturais, apenas mais escuta não basta

Não é de hoje, nem de uma só voz, a denúncia de que a grande mídia brasileira é (re)produtora de estruturas de poder que violentam minorias (políticas). Seja pela invisibilização ou por visibilização nociva, longas faixas populacionais não se reconhecem naquele espaço, e particularmente naquele Jornalismo, tantas vezes afirmado como instância a serviço da democracia. A questão central, percebidas essas formações, passa a ser como combatê-las? É possível transformar esse Jornalismo (da grande mídia)?

Concordo com Marcia Veiga, quando escreve que “a busca por novas fontes de saber, a escuta genuína das diferentes vozes e verdades e a tentativa de compreensão do outro a partir de seus valores (e não dos “nossos”) têm sido caminhos demonstradamente possíveis de serem trilhados no exercício de boas práticas jornalísticas aquelas que não transformam os diferentes em desiguais” . Essa, contudo, não pode ser a única, ou principal, resposta – não se é sobre o Jornalismo, enquanto instituição que diariamente contribui para a formação de valores

e opinião pública, que buscamos trabalhar. A resposta não pode passar apenas, ou principalmente, pela boa vontade e formação de jornalistas, repórteres e restantes indivíduos que contribuem para a produção dos materiais informativos/opinativos. Afinal, tais profissionais enquadram-se numa estrutura organizativa empresarial, em que os esforços e conhecimentos individuais (ou de pequenos grupos internos), sendo importantíssimos, têm, via da regra, pouco poder de decisão - diminuído também pela precarização das condições de trabalho, assunto que terá de ficar para outra oportunidade devido aos limites de espaço. Para eventuais mudanças, duradouras e profundas, não podemos perder de vista a estrutura, o esqueleto que condiciona todos os possíveis (e preferenciais) movimentos de produção.

Um paradoxo

O Jornalismo, como o conhecemos hoje, nasce de um parodoxo que permanece, principalmente na grande mídia, bem e de boa saúde: a produção e publicitação de informação – premissa necessária à formação de opinião pública, debate e tomadas de decisão legítimas em democracia –, é moldada pelo interesse econômico. Por um lado, existe o interesse público, base de legitimação social do trabalho jornalístico; por outro, existe o interesse do público, argumento muitas vezes utilizado, principalmente por quem tem poder de decisão, para justificar o

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porquê de uma matéria, em detrimento de outra, ser tornada pública.

Não basta que uma estória seja relevante e ´verdadeira’, é necessário que seja pertinente (para o público), vendável. Quem compõe esse “público” é uma questão que nunca é fácil de responder, principalmente quando falamos de um meio de comunicação generalista, mas se tivermos em conta que, no Brasil, machismo, lgbtfobia e outras formações do gênero grassam pelo tecido social, será fácil compreender que mensagens têm maior probabilidade de gerar aceitação, interesse, produção, compra. Tais escolhas não podem, obviamente, ser imputadas exclusivamente à decisão de um público que, em última instância, apenas decide em função do que já lhe é oferecido. Jornalismo que orienta a sua existência com base na vontade de um público consumidor (menos homogêneo do que, convenientemente, é caracterizado) precisa(ria) também assumir a função a que assim se presta.

Em verdade, hoje podemos definir as grandes empresas de comunicação no país – num mercado controlado por poucos, um oligopólio , em que a informação, tornada mercadoria, é o bem mais precioso – como empresas de negócio, onde o lucro que se almeja, e gera, não é exclusivamente econômico, mas político/ ideológico.

(Des)regulação e a (im)possibilidade de outras vozes

Foi nos governos petistas, primeiro com Lula e depois com Dilma, que o tema da regulação da mídia ganhou maior destaque nacional. Na última campanha da agora ex-presidenta, o destaque dado pela mesma era sobre a regulação econômica, deixando de fora a regulação de conteúdo. Apesar dessa ressalva, as acusações de tentativa de censura e restrições à liberdade de expressão não se fizeram esperar, fazendo com que o debate alargado, e eventual projeto, tenha caído, mais uma vez, por terra.

Não por acaso, as referidas críticas foram cultivadas pelas grandes cadeias de comunicação, preocupadas em preservar o livre-conduto de que gozam para selecionar as estórias que devem chegar à população. Contrariamente ao disseminado, a regulação da mídia, como vem sendo pleiteado por ativistas e teóricos/as preocupados com a democratização da comunicação, tem por objetivo abrir o leque de narrativas possíveis, diversificar os sujeitos produtores, a distribuição de financiamento mais equilibrada e atenta às diferenças sociais/ culturais (para mais informação sobre o assunto, sugerimos o trabalho da Empresa Brasil de Comunicação ). Ou seja, colaborar para o implemento de ferramentas, leis que contribuam para a retirada dos meios de produção das mãos de poucos e altere o debate sobre as vozes que se escutam: não mais a

possibilidade dos sujeitos verem suas vozes reconhecidas no modelo atual, mas serem autores num modelo em que as suas vozes valem por elas mesmas, já não tão dependentes da atenção e esforço do outro (jornalista) sensibilizado para a diferença. Oligopólios não são geridos em prole da democracia, pensem ou não assim aqueles que vendem sua força de trabalho às empresas empregadoras. A mídia, e o Jornalismo, não é exceção à regra. A responsabilidade pela manutenção, ou desmantelamento, dessas formações – e dos produtos que produzem – não pode ser imputada, exclusiva ou principalmente, a quem nelas trabalha, mas a toda a sociedade. A informação é um bem público, devendo por isso ser plural e diversa, não refém daqueles que têm mais poder (econômico e político). A liberdade de escolha não está, ao contrário do que afirmou o pré-candidato à Presidência Ciro Gomes , no controle remoto da TV – visão que encara o público como mero consumidor, reduzido às escolhas já existentes –, mas na luta por leis que permitam uma produção descentralizada.

A existência pública de vozes plurais, dissensos verdadeiramente democráticos, visões de mundo tidas hegemonicamente como não legítimas (como aquelas produzidas por movimentos sociais) só é possível quando a visão neoliberal da comunicação for encarada de frente, não reduzida ao apelo individualizante por mais alteridade, mas na procura do desmantelamento de uma lógica de produção que, insistentemente, se camufla no apelo a uma liberdade que apenas favorece aqueles que já são livres para falar e escutar, produzir e fazer produzir seus interesses excludentes.

Referências:

https://jornalismonobrasilem2017.com/a-alteridade-comochave-para-os-encontros-com-a-diversidade-5fb57d69137a

http://brazil.mom-rsf.org/br/proprietarios/

http://www.ebc.com.br/regulacaodamidia

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/02/melhorregulacao-da-midia-e-o-controle-remoto-diz-ciro-gomes.shtml

Assinada pelo jornalista Rui Caeiro, mestre em Comunicação pela UFPE, a coluna ambiciona instigar reflexões que se debrucem sobre as relações que se estabelecem entre produção midiática/ jornalística e a construção e vivência de identidades consideradas abjetas em nossa sociedade. O foco será, preferencialmente, em sexualidade e gênero.

Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 27

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