Revista Jornalismo e Cidadania - 28

Page 1

Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 1

Jornalismo e cidadania nº 28| Janeiro/Fevereiro de 2019

| ISSN 2526-2440 |

Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade | PPGCOM/UFPE

OPINIÁO

Governo Bolsonaro

Prosa Real

A divulgação do Livro-Reportagem

E mais...


JORNALISMO E CIDADANIA | 2

Expediente Editor Geral | Heitor Rocha professor PPGCOM/UFPE

Alunos Voluntários | Lucyanna Maria de Souza Melo Yago de Oliveira Mendes José Tarisson Costa da Silva

Editor Executivo | Ivo Henrique Dantas doutorando PPGCOM/UFPE

Colaboradores |

Editor Internacional | Marcos Costa Lima Pós-Graduação em Ciência Política/UFPE

Alfredo Vizeu Professor PPGCOM - UFPE

Revisão | Laís Ferreira / Bruno Marinho Mestre em Comunicação / Mestrando em Comunica;áo

Túlio Velho Barreto Fundação Joaquim Nabuco

Articulistas |

Gustavo Ferreira da Costa Lima Pós-Graduação em Sociologia/UFPB

PROSA REAL Alexandre Zarate Maciel Doutor em Comunicação

Luiz Lorenzo Núcleo de Rádios e TV Universitárias/UFPE Ada Cristina Machado Silveira Professora da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM

MÍDIA ALTERNATIVA Xenya Bucchioni Doutora PPGCOM/UFPE

Antonio Jucá Filho Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco – FUNDAJ

NO BALANÇO DA REDE Ivo Henrique Dantas doutorando PPGCOM/UFPE

Auríbio Farias Conceição Professor do Departamento de Letras e Humanidades – DLH/ UEPB

JORNALISMO E POLÍTICA Laís Ferreira Mestre em Comunicação

Leonardo Souza Ramos Professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC –Minas Gerais e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Potências Médias (GPPM)

JORNALISMO AMBIENTAL Robério Daniel da Silva Coutinho mestre em Comunicação UFPE

CIDADANIA EM REDE Nataly Queiroz Doutora em Comunicação JORNALISMO INDEPENDENTE Karolina Calado doutoranda PPGCOM/UFPE MÍDIA FORA DO ARMÁRIO Rui Caeiro Doutorando em Comunicação MUDE O CANAL Ticianne Perdigão doutoranda PPGCOM/UFPE

Índice

PODER PLURAL Rakel de Castro Doutora PPGCOM/UFPE e UBI

Rubens Pinto Lyra Professor do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas da UFPB

Editorial

|3

Prosa Real

|4

Comunicação na Web

|6

Opinião | Abdias de Carvalho

|8

Opinião | Ana Polessa

| 10

Opinião | Raissa Saldanha e Michel Zaidan

| 12

Opinião | Camilo Soares

| 14

Opinião |Emerson Xavier

| 16

Opinião |Marcos Costa Lima

| 18

Opinião |Pedro de Souza

| 20

Opinião |Rubens Pinto Lyra

| 22

COMUNICAÇÃO NA WEB Ana Célia de Sá Doutoranda em Comunicação UFPE NA TELA DA TV Mariana Banja Mestre em Comunicação

Acesse: facebook.com/ Jornalismoecidadania | issuu.com/revistajornalismoecidadania


Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 3

Editorial Por Heitor Rocha

Teste – Como ficariam as coisas se: Adélio Bispo, o autor da facada contra Jair Bolsonaro, fosse vizinho de Fernando Haddad no condomínio Vivendas da Barra. Se um delegado informasse que a filha de Adélio namorava um filho de Fernando Haddad. Se Adélio tivesse chegado ao local junto com um cidadão filiado ao PT. Se a polícia encontrasse 117 fuzis pertencentes a Adélio na casa de um amigo dele”. Este texto poderia ser atribuído a alguma pequena publicação alternativa de esquerda. Não! A observação da clara parcialidade da imprensa brasileira foi publicada pela coluna de Elio Gaspari nos periódicos Folha de São Paulo, O Globo e Jornal do Commercio, um espaço raro de jornalismo ético na chamada grande mídia comercial. Na mesma edição, o jornalista, que não pode ser considerado esquerdista, afirmou que “Sérgio Moro não deveria ter divulgado o grampo de uma conversa de Dilma Rousseff com Lula sabendo que ela ocorreu fora do prazo autorizado pela Justiça. Também não deveria ter divulgado um anexo irrelevante e inconclusivo da colaboração do comissário Antonio Palocci no calor da campanha eleitoral do ano passado. Talvez não devesse ter deixado a Vara de Curitiba e, certamente, os 12 procuradores signatários do acordo que criaria uma fundação de direito privado com recursos da Petrobras deveriam ter medido melhor os riscos que corriam”. Certamente, acreditaram que teriam direito de parte dos 2,6 bilhões de dólares que a justiça dos Estados Unidos extorquiu da Petrobras sob o pretexto de compensar o prejuízo dos investidores com a estatal brasileira, iniciativa que não cogitou na ocasião da fraude da IBM, na década de 1990, bem como da crise financeira de 2008 provocada pela bolha imobiliária, quando bilhões de dólares em recursos públicos foram despejados para evitar a falência do Banco Lehman Brothers (boa parte distribuída como bônus com os seus executivos como se fosse lucro), sem se preocupar em compensar os prejuízos dos acionistas. Voltando à coluna de Elio Gaspari, também comentando o assassinato da vereadora Marielle Franco, o jornalista observou que o delegado Giniton Lages, que investigava o caso, atribuiu a provável motivação do crime de ódio imputado ao ex-PM Ronnie Lessa a “uma obsessão por determinadas personalidades que militam à esquerda política”. E, em seguida, comparou este crime político a outros no Brasil e nos Estados Unidos, salientando que, “juntando-se todos esses atentados, jamais os criminosos tiveram negócios com o jogo clandestino e com milícias. Somando-se todas as armas dos atentados brasileiros e americanos, não se chega nem perto do arsenal de 117 fuzis de Ronnie Lessa”. As grandes corporações de comunicação comerciais no Brasil têm um considerável poder de influenciar a opinião pública, especialmente se levarmos em conta a precariedade material e

cultural de expressiva parcela da população. Contudo, não podem correr o risco de perde a credibilidade além de um certo limite que comprometa o valor do seu espaço comercial devido à diminuição de tamanho de sua audiência. Assim, podemos entender como a contribuição crítica de alguns jornalistas é suportada estrategicamente pelo sistema midiático hegemônico no país. O caráter colonizado do sistema midiático brasileiro fica mais do que patente na discussão articulada sobre o massacre ocorrido na Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano, com a abertura de espaço para autoridades, acreditando residir nos Estados Unidos, onde, por uma série de fatores, os assassinatos em escolas acontecem com uma frequência de mais de um por semana, cogitem convocar policias militares aposentados para dar expediente em estabelecimentos educacionais. Por mais que o presidente Bolsonaro idolatre os Estados Unidos e queira imitar a liberalidade no comércio de armas e a apologia da violência como forma de solução de conflitos que existem naquele país, não se verificam nas mesmas proporções no Brasil as patologias psíquicas de jovens com padrão econômico que permite adquirir armamentos pesados para tirarem a vida de um bocado de colegas nas escolas com a ilusão de poder, assim, superar as suas frustrações até a polícia acabar com a “festa” e as suas vidas. Definitivamente, este não é o problema de violência que ameaça a população brasileira, que vive encurralada nas favelas e periferias sob o fogo cruzado do crime organizado, da polícia e das milícias, um problema social e político que se agrava a cada dia diante do cinismo das elites que insistem em abocanhar crescentes volumes de recursos públicos através de renúncia fiscal, especialmente do agronegócio, entre outros privilégios, como a reforma trabalhista para desonerar os custos dos empresários e precarizar a vida dos trabalhadores e a reforma da previdência, sem assumir a responsabilidade de promover a ocupação no campo com a reforma agrária e outras verdadeiras iniciativas para redistribuir renda para incluir quase metade dos brasileiros que vivem à margem e são excluídos da cadeia produtiva. Desta maneira, pretendem resolver a insegurança pública com mais repressão e leis mais severas, o que, sem investimento em programas sociais, só vai conflagrar ainda mais a sociedade brasileira.

Heitor Costa Lima da Rocha, Editor Geral da Revista Jornalismo e Cidadania, é professor do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.


JORNALISMO E CIDADANIA | 4

Prosa Real

Livro-reportagem, jornalismo e contexto Por Alexandre Zarate Maciel

L

ivro-reportagem é um produto à venda como a notícia e a reportagem veiculadas nas mídias. As editoras impõem sanções, como o aceite de um tema central e vigilância prévia sobre possíveis questionamentos judiciais ou mesmo prazos de lançamento que casem com momentos propícios para uma divulgação e aceitação mais ampla dos consumidores, como as efemérides. Quase como um empresário autônomo, o autor tem que pensar em variáveis, como estratégias pessoais de divulgação em feiras literárias e palestras, de um produto que leva o seu nome, e não a marca de um jornal, revista ou site jornalístico. Se ambicionar viver como jornalista escritor de livros de não ficção, precisará, muitas vezes, encadear projetos um após o outro, articular contratos com adiantamentos e verbas de pesquisa gradativamente mais vantajosas e manter mais de um livro em catálogo. Esquecer esses, que não são meros detalhes, em nome de uma voz supostamente “autoral”, livre de concessões e grilhões, pode resultar em uma experiência desastrosa. Entre os jornalistas entrevistados para a tese de doutorado do autor desta coluna que abandonaram as redações, como Fernando Morais, Lira Neto, Ruy Castro e Laurentino Gomes, e mesmo os que continuam produzindo reportagens especiais, como Daniela Arbex, da Tribuna de Minas, é forte a impressão de que os leitores estão órfãos de uma visão mais complexa no jornalismo. Todos negam certo senso comum de que os leitores não estão mais interessados em narrativas de fôlego. Livros-reportagem e grandes reportagens complementam as informações fragmentadas do jornalismo factual diário, formato majoritário no cenário midiático atual. Mas não adianta imaginar que se está realizando um esforço de re-

portagem reunindo apenas três ou quatro fontes depondo sobre um acontecimento em muitas páginas, sem promover o exercício mais difícil da análise multiangular e pluralista. A voz dos autores: entrevistados como elemento central dos livros-reportagem Entrevistados pelo autor desta coluna para a sua tese de doutorado, jornalistas escritores como Fernando Morais, Ruy Castro, Caco Barcellos, Daniela Arbex e Zuenir Ventura, entre outros, apontam uma relação crucial, também cara aos estudos da teoria construcionista interacionista, dos repórteres com os seus personagens. A opinião quase unânime dos entrevistados é que é preciso nutrir uma postura sincera de abrir-se à descoberta do mundo do outro. Ter coragem de

Divulgação

Jornalistas enfrentam peculiaridades na divulgação de livrosreportagem


Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 5

despir-se dos preconceitos e entrevistar párias, marginais ou pessoas com quem não se concorda ideologicamente. No caso dos temas polêmicos, a conquista da confiança das fontes ainda é mais complexa e demorada, exigindo vários retornos. Confrontados seguidas vezes pelos jornalistas, eles podem até realizar um processo de autoanálise sobre os seus atos. Existe a impressão de que os personagens costumam organizar seus discursos com mais profundidade quando sabem que farão parte de um livro. As pessoas que têm a mídia pouco presente nas suas vidas, como os moradores de comunidades pobres, em geral são bem abertas aos jornalistas escritores. Nesse exercício de encontro com o Outro, um dos objetivos é o de captar a vivacidade e a melodia das falas cotidianas. Estar profundamente atento ao silêncio e ainda ao fato de que a fala, assim como os documentos, pode ser camuflada, povoada de elipses enigmáticas. Observam-se bastante os gestos, as atitudes dos personagens e os ambientes onde estão inseridos. Uma herança do new journalism e de toda uma tradição dos repórteres-cronistas brasileiros. No caso dos biografados, que muitas vezes são pessoas complexas e polêmicas, entrevistas múltiplas, em mosaico interpretativo, precisam traduzir essa riqueza humana. Outra questão mencionada é a necessidade de atenção constante ao fato de não existir informação desinteressada. A fala de alguém é sempre uma interpretação subjetiva, bem como a chamada voz narrativa do escritor, o que desafia princípios como os da imparcialidade e da objetividade. Sendo a memória escorregadia, é preciso evitar partir a campo com ideias pré-concebidas. De qualquer forma, os depoimentos indiciam que a convivência paciente desses escritores com um tema ou personagem central gera reflexões cuidadosas a respeito das estratégias de construção do real que irão engendrar no livro-reportagem. Por exemplo, nas biografias, a capacidade de enxergar o biografado à sua frente e encaixá-lo no contexto de toda uma época. Refletindo sobre a prática: a importância das fontes documentais Quanto à pesquisa documental, alguns jornalistas escritores vão mais a fundo nos documentos originais, como cartas e diários. Outros preferem contar com o porto seguro das análises já consolidadas de historiadores, apenas orquestrando visões. Qualquer fonte documental, a princípio, vale para iluminar os acontecimentos do passado. Jornais de época, mesmo os mais ide-

ológicos, charges, canções, tudo ajuda a recompor panos de fundo históricos. Mas os escritores esbarram nos eternos problemas da organização da memória brasileira em arquivos desleixados ou até mesmo proibidos devido à sombra dos regimes de exceção. Vem se tornando cada vez mais comum nos livros-reportagem a estratégia de publicar de onde veio cada informação, não no corpo da narrativa, o que atrapalharia a fluência do texto, mas nos anexos finais – uma legitimação do contrato de comunicação rumo a um referenciamento mais consistente. Com relação às fontes orais, mas também no que diz respeito às documentais, o contraditório assusta, pois não é possível oferecê-lo em uma nova reportagem no dia seguinte ou no próximo minuto. Colocar vários discursos em contraste no texto final ajuda, mas, diante de incertezas, já que contam com o tempo como aliado, os repórteres entrevistados preferem seguir em busca de novas evidências que a imprensa não alcançou. As lembranças das fontes podem ser embaçadas pela confusão de informações. Cabe aos jornalistas escritores orquestrar os discursos em linhas de força que equilibrem o direito inalienável de todos expressarem as suas opiniões. Estratégia típica é voltar várias vezes aos entrevistados para ver se, confrontado com as mesmas perguntas, eventualmente irão mudar de ideia. A postura honesta do autor para com o seu leitor, esse parceiro essencial, diante das inevitáveis lacunas históricas, é sempre a de compartilhar suas dúvidas e estar aberto a novos trabalhos jornalísticos que vão, ou não, saná-las no futuro.

Referências: MACIEL, Alexandre Zarate. Narradores do contemporâneo: jornalistas escritores e o livro-reportagem no Brasil. Recife, 2018. Tese (Doutorado em Comunicação) -Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Elaborada pelo professor doutor do curso de Jornalismo da UFMA, campus de Imperatriz, Alexandre Zarate Maciel, a coluna Prosa Real traz, todos os meses, uma perspectiva dos estudos acadêmicos sobre a área do livro-reportagem e também um olhar sobre o mercado editorial para esse tipo de produto, os principais autores, títulos e a visão do leitor.


JORNALISMO E CIDADANIA | 6

Comunicação na Web Jornalismo, Sociedade e Internet

Pixabay

Por Ana Célia de Sá

Curadoria e articulação: enfrentando a avalanche informativa na web

A

circulação de conteúdos na Web 2.0 acontece de maneira multidirecional (alavancando a descentralização informativa, a coletividade, a interatividade, o dinamismo social e a quebra hierárquica entre emissor e receptor) e multiplataforma (numa integração de plataformas midiáticas que vai da concepção até a finalização dos produtos, valorizando cada recurso da web na construção de materiais digitais inovadores). Esses aspectos ajudam a moldar a chamada cultura da convergência, a qual reformula as relações sociais, culturais, tecnológicas e de mercado, como indica Jenkins (2009). O autor explica que a “[...] cultura da convergência está sendo moldada pelo crescente contato e colaboração entre as instituições de mídia consagradas e as emergentes, pela expansão do número de agentes produzindo e circulando

mídia, e o fluxo de conteúdo pelas múltiplas plataformas e redes” (JENKINS, 2009, p. 347-348). Na conjuntura do ciberespaço, caracterizado pela digitalização, pelo espaço simbolicamente ilimitado e com alcance global, pela operação em tempo real e pela atualização em fluxo contínuo, os canais de difusão de conteúdos multiplicam-se a cada dia. As informações circulam principalmente por meio de sites, portais, blogs, fóruns, comunidades e redes sociais on-line. Cada um tem o seu perfil, mas todos podem se conectar por meio da tecnologia e da ação dos usuários. Esse cenário multidirecional apresenta consequências positivas quanto à abertura do leque informativo ao alcance do internauta, o qual pode ocupar o papel de consumidor e de produtor. Quebra-se o polo unidirecional de difusão, antigo monopólio das corporações de mídia, possibilitando a diversificação de formatos, vozes e pontos de vista em regime participativo – embora haja limitações impostas por relações de poder. O internauta passa a ocupar posição mais ativa e aumenta o grau de autonomia no processo comunicativo, numa perspectiva de horizontalidade. No contexto da cultura participativa, o público abando-


Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 7

na o consumo de mensagens pré-construídas e incube-se de moldar, compartilhar, reconfigurar e remixar conteúdos midiáticos a partir de demandas grupais, uma vez que o usuário se apresenta como integrante de comunidades e redes, numa propagação que ultrapassa suas vizinhanças geográficas (JENKINS; GREEN; FORD, 2014). Com isso, o internauta pode exercer maior impacto quanto ao teor e ao alcance dos produtos midiáticos, em um reconhecimento do potencial de contribuição para a construção de conteúdos de mídia e o fortalecimento das relações sociais. Por outro lado, o alargamento informativo na web pode ter respostas negativas no que se refere à função de comunicar. Ao estudar televisão e internet, Herreros (2004) alerta para os riscos de “infoxicação”, uma intoxicação informativa fomentada pelo excesso de conteúdos mal relacionados, que supera a capacidade de assimilação dos usuários. Inserida no ambiente social fluido, globalizado e instantâneo, a internet reconfigura a relação espaço-temporal e a comunicação humana. No ciberespaço, a informação move-se rapidamente, superando a mobilidade física dos corpos. Dessa forma, de acordo com Bauman (1999), o espaço e os seus delimitadores perdem importância, ao menos para as elites, livres das amarras geográficas e senhoras do tempo. Novas interações entre os seres humanos são, assim, observadas no ambiente líquido mediado por computador. A comunicação veloz aumenta a quantidade de informação circulante na rede, tornando-a também mais efêmera. Volta-se, então, à ideia de sobrecarga informativa citada por Herreros (2004). Nessa situação, o jornalista profissional assume papel importante, pois cabe a ele selecionar, contextualizar, valorar e hierarquizar as informações, cumprindo a função social do jornalismo. Nesse ponto, remete-se ao conceito de gatewatching (BRUNS, 2011) e ao “jornalismo contextualizado” (PAVLIK, 2001). Aplicado ao jornalismo participativo na web, o modelo de gatewatching tem se desenvolvido perante um contexto de multiplicação de canais de publicação e divulgação de notícias e de potencialização de modelos colaborativos de produção de conteúdos digitais. O gatewatching aponta o jornalista como um curador do material informativo disponibilizado na internet por empresas de comunicação e por cidadãos comuns, ao mesmo tempo em que é observado. Nesse sentido, a intervenção do jornalista na seleção de notícias centra-se em um direcionamento da agenda social cotidiana em meio ao grande volume informativo na web, levando em conta os princípios de qualidade que norteiam a profissão (BRUNS, 2011). Sob o prisma da participação, o gatewatching ainda possibilita ao internauta assumir a atividade de curadoria, ativando a lógica colaborativa de produsage. Para isso, explica Bruns (2011), estimula-se uma relação menos hierárquica entre jornalistas e usuários, respeitadas as especificidades de cada agente em prol de uma colaboração qualificada. O “jornalismo contextualizado” (“contextualized jour-

nalism”), que utiliza a multimidialidade, a interatividade, a hipermidialidade e a personalização para a formulação de notícias mais completas e aprofundadas, também acompanha as mudanças da ação do jornalista estimuladas pela sociedade em rede. Segundo Pavlik (2001), esse profissional deve assumir o perfil de articulador da informação, filtrando a avalanche informativa na web, conectando eventos, circunstâncias e contextos em produtos mais completos. Além disso, o jornalista precisa ampliar habilidades de interpretação e edição diante do grande volume de informações no ciberespaço. E, ainda, o jornalista assume posto central na reconexão de comunidades, promovendo o jornalismo cívico on-line. Nos dois modelos supracitados, o jornalista é posto no centro organizativo da informação on-line, numa contribuição direta para solucionar a questão da “infoxicação” citada por Herreros (2004). O papel de curador ou articulador de conteúdos renova a atuação profissional e demonstra a importância do olhar especializado em meio à infinidade de informações disponíveis na web, valorizando o contrato social com o público. Vale reforçar que isso não anula a relação participativa com o público, e sim aperfeiçoa-a à medida que valoriza a produção dos cidadãos e capta o seu poder transformador junto à sociedade.

Referências: BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. BRUNS, Axel. Gatekeeping, Gatewatching, Realimentação em Tempo Real: novos desafios para o Jornalismo. Brazilian Journalism Research, Brasília, v. 7, n. 2, p. 119-140, 2011. Disponível em: <https:// bjr.sbpjor.org.br/bjr/article/view/342/315>. Acesso em: 16 jan. 2018. HERREROS, Mariano Cebrián. La información en televisión. Barcelona: Gedisa, 2004. JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. Tradução de Susana Alexandria. 2. ed. São Paulo: Aleph, 2009. JENKINS, Henry; GREEN, Joshua; FORD, Sam. Cultura da Conexão: criando valor e significado por meio da mídia propagável. Tradução de Patricia Arnaud. São Paulo: Aleph, 2014. PAVLIK, John V. Journalism and new media. New York: Columbia University Press, 2001.

Ana Célia de Sá é jornalista e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (PPGCOM-UFPE).


JORNALISMO E CIDADANIA | 8

Opinião

O governo Jair Bolsonaro Por Abdias Vilar de Carvalho

“Não é possível praticar sem avaliar a prática”. (Paulo Freire, A importância do ato de ler)

P

assados 21 dias desde a posse, o presidente Jair Bolsonaro vem remalhando alguns falhas, símbolos e fatos dignos de reflexões. O Decreto anterior de nº 5.123, de 1º de julho de 2004, regulamentava a Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003, e, então, o que existia no Brasil passa a ter algumas modificações. O atual Decreto altera o anterior e diz respeito, sobretudo, a quem pode possuir armas e portá-las e por quanto tempo: agentes públicos, inclusive inativos; donos de estabelecimento comercial e industrial, moradores de área rural ou urbana de estados com altos índices de violência, envolvidos no exercício de atividades de poder de polícia administrativa ou de correição em caráter permanente; militares ativos e inativos. Quanto ao tempo, foi alargado para 10 anos. A CNH e outros documentos, exceto o CPF, têm validade menor. Agentes públicos mal preparados e que se sentem injustiçados quando, diante das enrolações burocráticas, são desafiados a cumprirem a lei, são agora portadores de armas? Como definir o estado da federação que tenha “altos índices de violência”? O próprio governo federal e os estados se encarregam da classificação. Como entender os atuais casos do Ceará e do Rio de Janeiro? Em todos os estados não existem atentados a pessoas, a bancos e ao comércio? O próprio decreto vem sendo questionado do ponto de vista da Constituição de 1988, conforme afirma o deputado Ivan Valente (PSOL/SP), para quem houve um atropelamento do “Estatuto do Desarmamento”. Os deputados da base governamental e mais algumas associações, como a Associação dos Oficiais da Reserva da PM no Brasil, a Associação de Praças das Forças Armadas e a Associação Nacional da Indústria de Armas e Munições (Aniam), se manifestaram favoráveis ao decreto. Em contrário, estão o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o Instituto Sou da Paz e o Núcleo de Estudos da Violência (NEV), da Universidade de São Paulo (USP).

Os que defendem o referido decreto afirmam que, no referendo de 2005, a população brasileira se manifestou majoritariamente favorável à compra de armas. Os contrários dizem que, no mesmo referendo, a população não foi consultada sobre o porte de armas. O prazo de 10 anos é outro ponto, muito bem discutido, pelos contrários ou não. Se, de 2016 até agosto de 2018, tinha havido uma redução de posse de armas de mais de 70%, esse número explode, havendo um desafio à lei em vigor, com a expectativa de vitória de Bolsonaro e com o novo decreto presidencial. Com efeito, o presidente eleito vai, aos poucos, cumprindo suas promessas de campanha. Mais importante ainda é que ele, Bolsonaro, inicia, assim, o pagamento de seus financiadores e apoiadores: a indústria de armas. Não é à toa que o conservador Jornal do Commercio, do Recife, no dia 17 de janeiro de 2019, estampa como manchete na primeira página: “Mercado de armas começa a esquentar”. Solicito sua atenção para o efeito ideológico e prático que todo o decreto e a fala do presidente representam. Em verdade, é, de um lado, uma falsa sensação de segurança, ignorando toda uma campanha para entrega voluntária de armas, e, de outro lado, grileiros, mais armados ainda e amparados legalmente, desmantam, invadem florestas, atiram e matam índios. Esses são os verdadeiros defensores das nossas matas e florestas. Convém acreditar no que disse a ministra da Agricultura sobre os grileiros? O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), sem recursos e com pouco pessoal, nada pode fazer no Norte do País, principal foco de atuação dos grileiros e madeireiros. Importa também frisar que o porte de armas vem sempre associado à defesa, à diminuição da violência. Ignora o governo que não é com um decreto que acabará a violência no país. Vamos viver num eterno faroeste americano? A respeito da decisão, liminar, do ministro Luiz Fux, vice-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), pensamos igualmente


Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 9

alguns fatos e os externamos. Antes da declaração de outro ministro do STF, que entende uma afirmação de culpa pelo senador Flávio Bolsonaro, tais atitude e comportamento foram vivamente condenados no WhatsApp, sendo inclusive motivo de piadas e de comparações, por alguns brasileiros. Um senador da República encobrindo, claramente, violação da lei? Não se trata de qualquer senador, mas do filho do presidente da República. Ou os brasileiros acreditam que o Senado dará licença para processar um de seus membros e da família presidencial? Da mesma forma, acreditam em impedimento do presidente e na condenação de sua atual esposa? Para que servem o STF e o Parlamento? Vários ex-ministros já disseram que o STF não julga conforme a Constituição Federal, portanto, não a respeita. Confirma-se dia a dia. Sem dúvida, a rapidez da decisão do ministro Fux tornou-se mais falada ainda, e mostra, muito bem, a que veio ou, melhor, porque está lá, apesar de sua nomeação pela expresidente Dilma. Em tudo contraria as decisões anteriores do próprio STF. E esse poder só mostra agilidade quando se trata de Lula. Só há um dado nesse caso a lamentar, a liminar gera acontecimento imediato. E não foi isso que levou tanto Flávio Bolsonaro quanto Queiroz a ficarem livres de quaisquer processos? Há outros efeitos ideológicos e práticos, como a generalização dos fatos de corrupção entre agentes públicos e de empresas, bem como o fato de que aqueles que hoje são denunciados por práticas de corrupção foram, certamente, os que debulharam argumentos contra a corrupção praticada pelo PT e foram às ruas, numa pura manifestação de ódio e de limpeza da e na sociedade brasileira. Um querido amigo e professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB), concordando com o que escrevi anteriormente, esclarece que o caso Queiroz já estava desde fevereiro nas mãos do ministro Marcos Aurélio, o qual já declarara que vai autorizar a continuação da investigação sobre o caso. Espero, esperamos, nós brasileiros, que o ministro Marco Aurélio tenha o apoio dos demais membros do STF. E o que diz o ministro da Justiça: silêncio. Ora, não era uma investigação pelo Ministério Público do Rio de Janeiro? Não é uma ação do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf )? Não desrespeita a lei e a Constituição? Não se trata nem do PT, nem de Lula, por isso nada a declarar, repetindo um célebre ministro

da ditadura militar. Os brasileiros acreditam que o STF revisará o caso, quando provocado? Por quem? No governo FHC, tínhamos um procurador-geral da República que foi apelidado de “engavetador”, porque nenhum processo contra corrupção, especialmente, saía da Procuradoria Geral da República (PGR) com sua assinatura. O fato agora se repete e com mais gravidade ainda, uma deliberação, mesmo que liminar, de um ministro do STF. Silêncio total! Nenhuma ministra abre a boca. Atenção, imagino que, caso Bolsonaro repita o gesto de Jânio Quadros, os seus votantes sairão à rua, liderados pelo MBR, para que possa cumprir o prometido. E, mais uma vez, o discurso e a rápida mobilização terão como tema maior: “É necessário vencer a esquerda corrupta”. É um efeito até agora desconhecido por alguns setores de esquerda, mas que convém considerar para não sermos pegos pela fúria da avalanche, e que contará com apoio do Parlamento e da Justiça. Não é em vão que Moro está lá. Mais do que ideológico há, porém, um fato digno de reflexão por todos os brasileiros. Vivemos um regime militar e também familiar. Militar pelas concepções do presidente eleito, militar, contudo, pela presença em vários escalões governamentais como a vice-presidência, ministérios, Caixa Econômica Federal (CEF), Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa), etc. E familiar pela presença de membros da família do presidente em reuniões, em orientações, nas redes sociais. Todos eles opinam e aconselham o sistema total. Não adiantar dar declarações de que a lei é para todos, se nem todos são considerados iguais perante a lei Militar e familiar trazem a marca de uma ditadura, de um clube fechado que se considera honesto e acima da lei, embora os discursos sejam outros. Triste Brasil, que não espera decisão correta, conforme está escrito na Constituição. E a democracia vai, cada vez mais, para o beléleu.

Abdias Vilar de Carvalho é Doutor em Ciências Sociais e pesquisador social.


JORNALISMO E CIDADANIA | 10

Opinião

Compreendendo a Internet das Coisas Por Ana Polessa

O

lhe em sua volta e repare quantos dispositivos estão conectados à internet neste momento. Não falo de notebooks ou smartphones, me refiro aos relógios inteligentes (chamados de wearables, ou tecnologias vestíveis), semáforos, câmeras de segurança, geladeiras inteligentes, Smart T Vs, carros inteligentes, entre outros. Esses dispositivos compõem o que chamamos de Internet das Coisas (do inglês Internet of Things – IoT), um termo que, em parte, é baseado nos trabalhos do cientista Mark Weiser, que publicou, em 1991, o artigo “The Computer for the 21st Centur y”, utilizando e definindo pela primeira vez o conceito de computação ubíqua, presumindo como os computadores seriam futuramente (cerca de 20 anos após esta publicação), imaginando equipamentos completamente integrados à vida cotidiana das pessoas, de uma maneira praticamente imperceptível. Na realidade, a definição de computação ubíqua começou a ser pensada pelo autor em 1988, baseada em trabalhos de cientistas sociais, filósofos e antropólogos do Xerox Palo Alto Research Center (PARC), instituição fundada em 1970 e que teve influência direta em empresas como a Apple e a Microsoft e é descrita pela revista Época Negócios em 2009 da seguinte forma: “O lugar é uma espécie de meca da cultura tecnológica”. Segundo Weiser (1996), esse grupo debatia como deveria ser a relação da sociedade com a computação e as redes, visando à facilitação da conexão entre pessoas ao redor do mundo por meio de dispositivos sem fios e sistemas operacionais de fácil utilização e totalmente incorporados ao tecido da vida social. A expressão Internet of Things surge como uma necessidade de se pensar um conceito capaz de englobar os avanços das interações M2M (machine-to-machine), por tratarem não apenas de sensores e objetos inteligentes, isto é, capazes de recolher, gerar e transmitir informações online, mas também as inteligências artificiais (IA) que serão inseridas nesse tipo de interação quando a IoT se converter

para IoE (Internet of Ever ything/ Internet de Tudo) . Em entrevista para a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), em 2015, Kevin Ashton (que utilizou o termo pela primeira vez no sentido que conhecemos) afirmou que a IoT representa um ponto de encontro entre a rede de comunicações humana (exemplificada na internet) e o mundo real das coisas, onde não mais apenas “usaremos um computador”, mas onde o “computador se use” independentemente, de modo a tornar a vida mais eficiente. Para Cisco (2011), parte do fato de o conceito IoT não ser amplamente utilizado por volta de 2000-2005 foi, por um lado, em função da quantidade de objetos inteligentes conectados em um levantamento da empresa em 2003: eram em torno de 500 milhões ao redor do mundo, para uma população mundial estimada em 6,3 bilhões de humanos; quer dizer, era uma tecnologia praticamente inexistente. Por outro, está diretamente relacionado ao mercado dos smartphones, em especial graças aos conceitos do iPhone, lançado pela Apple em 2007, que ampliou as redes de telefonia móvel em todo o mundo. Em 2017, segundo o “World Population Prospects”, divulgado pela Organização das Nações Unidas (ONU), a população mundial atingiu a marca de 7,6 bilhões, enquanto o número de objetos inteligentes conectados se aproxima dos 8,4 bilhões (sem levar em consideração tablets, smartphones e desktops), gerando mais dados e informações do que seres humanos produziram até então. (Gartner, Inc; 2017) Pierre Lévy (2015a) aponta que, durante a história humana, o conhecimento foi incorporado apenas a narrativas, rituais e ferramentas materiais. O autor separa as revoluções simbólicas em quatro grandes revoluções: a primeira é a invenção da escrita, que é a condição do pensamento crítico; a segunda, que trata da manipulação de símbolos por meio do alfabeto, gerando as primeiras culturas alfabetizadas e a filosofia com esforço para a obser vação e a dedução.


Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 11

A terceira revolução envolve a mecanização e a industrialização, com a difusão de símbolos por T V e as impressoras que levaram à cultura tipográfica, um período também marcado pela ciência fragmentada e pelas disciplinas incompatíveis. Agora, segundo Lévy (2015a), estaríamos diante da quarta revolução, referente à infosfera ubíqua e interconectada com símbolos que se transformariam em dados de todos os tipos. Para o autor, esse período marcará uma grande revolução nas ciências humanas e sociais, graças a uma quantidade volumétrica de dados e informações das sociedades humanas, levando a uma inteligência reflexiva, em que o homem irá se apropriar dos dados de sua própria comunidade. (LÉVY; 2015). Lévy (2015b) explica um novo nível de manipulação simbólica ao qual estaríamos diante: um ambiente misto que combina mundos virtuais e realidades aumentadas, descrevendo uma simplificação do modelo atual de internet: entre a internet das coisas e as nuvens, com dados se convergindo de forma onipresente. Em entrevista, Levy (2015c) descreve melhor essa relação: A internet pode ser analisada em dois aspectos conceitualmente distintos, mas praticamente interdependentes e inseparáveis. Por um lado, a infosfera, os dados, os algoritmos, imateriais e ubíquos. São as nuvens. Por outro lado, os receptores, os gadgets, os smartphones, os dispositivos móveis de todos os tipos, os computadores, os data-centers, os robôs, tudo aquilo que é inevitavelmente físico e localizado: os objetos. As nuvens não podem funcionar sem os objetos. Os objetos não podem funcionar sem as nuvens. A internet é a interação constante do localizado e do desterritorializado, a interação dos objetos e das nuvens. Tudo isso pode logicamente ser deduzido da automatização da manipulação do simbólico por meio de sistemas eletrônicos. Sentiremos cada vez mais, de agora em diante, as consequências disso tudo em nossas vidas cotidianas. As coisas, segundo Lévy (2015b), são realidades materiais, possuem GPS e IP e constituem áreas de territórios inteligentes, como as casas e as cidades e todos os dispositivos que podemos usar e que estão em constante interação com a memória onipresente das nuvens. É necessário compreender a IoT também como o resultado de uma produção humana, de desenvolvedores que têm objetivos, inten-

ções e interesses comerciais. Uma tecnologia que apresenta inúmeras vulnerabilidades (relacionadas à privacidade e segurança desses dispositivos), pontos que precisam ser questionados. Assim, poderíamos afirmar que essa tecnologia precisa ter uma maior atenção nas áreas de humanas, pois ela é essencialmente social: não são apenas máquinas, mas também pessoas, empresas e plataformas que estão em comunicação e, claro, em interação, mesmo que de maneira ubíqua. Como bem lembrado por Silveira (2017), não podemos naturalizar uma tecnologia, mas sim tratá-la de forma crítica, considerando as suas intenções e os seus projetos.

Referências LÉVY, Pierre. The Emergence of Reflexive Collective Intelligence. 2015. Disponível em: <https://goo.gl/ iizCje>. Acesso em: 20 jun. 2018. _____. Collective Intelligence for Educators. 2015. Disponível em: <https://goo.gl/UmXvnm>. Acesso em: 20 jun. 2018. _____. Sur la science des données. 2017. Disponível em: <https://goo.gl/UmXvnm>. Acesso em: 10 jul. 2018 SILVEIRA, S. A. Governo dos Algoritmos. Revista de Políticas Públicas, v. 21, n. 1, p. 267, 26 jul. 2017. WEISER, M. The Computer for the 21st Century, Scientific American, 265(3), 66-75, 1991. _____. Ubiquitous Computing. 1996. Disponível em: <https://goo.gl/VnYuxh>. Acesso em: 14 abr. 2017.

Ana Carolina Estorani Polessa é socióloga, especialista em História do Brasil e Diversidade Cultural pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora.


JORNALISMO E CIDADANIA | 12

Opinião

Reconhecimento Pelo Status Social Por Raissa Saldanha Menezes e Michel Zaidan Filho

E

ste artigo tem como objetivo apresentar, de forma didática, uma visão panorâmica do pensamento da autora americana Nancy Fraser e sua polêmica com as visões de Axel Honneth e Charles Taylor. A intenção é sumariar os principais pontos desse debate, anotando as tradições teóricas distintas seja da orientação pragmática americana seja da visão normativa anglo-saxônica. Assim, este ensaio de divulgação sobre as teorias do reconhecimento propõe-se a discutir a relação entre duas vertentes da Teoria do Reconhecimento: uma vertente anglo-saxã (norte-americana), que se caracteriza por tratar a questão cognoscitiva como “moralidade”, cuja origem é a filosofia de Kant (Crítica da Razão Prática), e uma vertente mais europeia e filosófica associada ao nome de Frederick Hegel, sobretudo o jovem Hegel dos tempos de Iena. Embora se trate de uma mesma teoria social, as consequências práticas e políticas são distintas, ora se adote a visão americana e canadense, ora se adote a visão europeia sobre o assunto. Para tanto, a autora inicia a sua análise pelo artigo “Da Redistribuição ao Reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista”, escrito em 2001. Este é um texto paradigmático quando se intenta analisar o seu posicionamento no que se refere à denominada Teo-

ria do Reconhecimento, defendida por aqueles autores, cada um com suas nuances particulares. Naquele texto, Fraser esclarece que a luta por reconhecimento se tornou a forma paradigmática de conflito político desde o final do século XX, uma vez que são as demandas por reconhecimento das diferenças que alimentam as disputas de grupos mais ou menos mobilizados. Assim, atualmente, são os conflitos pós-socialistas, nos quais a identidade de classe é suplantada pelas identidades grupais, os principais mobilizadores e agregadores políticos. Fraser distingue-se de Alex Honneth e Charles Taylo pela posição dualista ao separar reconhecimento e distribuição como dimensões distintas do comportamento social. Ao contrário de Axel Honneth, que enfatiza sobretudo a importância do Reconhecimento, assumindo uma postura “monista”, a autora americana Nancy Fraser busca elaborar uma tipologia de formas de reconhecimento, distinguindo entre as formas puras (o movimento da identidade gay), as formas mistas (o movimento das mulheres e o movimento negro) e as formas puras redistributivas (o movimento sindical). Segundo a autora, um movimento pode ser simultaneamente redistributivo e redistributivo ou pode ser exclusivamente cognoscitivo, não havendo incompatibilidade entre essas dimen-


Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 13

sões, embora, para ela, o paradigma dominante no século XXI seja o movimento cognoscitivo, ligado às questões pós-materiais. Já a vertente europeia, que parte do jovem Hegel, utiliza o modelo da luta pelo reconhecimento (no Sistema de Eticidade). Segundo essa tradição teórica, a questão fundamental do reconhecimento é a autoestima, o eu-reflexivo (self ), que depende da forma como o outro me percebe. Nesse sentido, Honneth desenvolve uma tipologia, baseado no psicólogo americano H.G. Mead, dividida em três etapas: amor, direitos e solidariedade. E contrapõe aos tipos correspondentes de desestima (a tortura, a insegurança e o preconceito). Mais importante, contudo, é a distinção dos efeitos práticos de cada teoria no terreno social e político. Para Fraser, é possível se pensar reconhecimento sem ética, como diz Raissa, desde que se adote uma perspectiva meramente procedimental, voltada para a paridade dos grupos na formulação de regras de valoração cultural, tese estratégica para a ação dos movimentos sociais. Já para Honneth e Taylor, o reconhecimento só pode se dar através de uma tradução política daquelas etapas do reconhecimento prevista pelo autor alemão em sua obra A luta pelo reconhecimento. Daí que, enquanto a obra de Nancy Fraser é um breviário para a ação dos movimentos indenitários (sobretudo o feminino), o trabalho de Honneth permanece no âmbito da teoria social. De todo jeito, o debate está muito longe de se encerrar, haja vista a quantidade de obras que os autores publicaram depois da discussão inicial. Aguardamos, com muito interesse, a conclusão desse diálogo de muita importância para a teoria e a política social do século XX. Podemos, ainda, constatar que a polêmica em torno da Teoria do Reconhecimento entre Nancy Fraser e Axel Honneth e Charles Taylor opõe duas tradições da Filosofia Política contemporânea: aquela que trabalha com uma noção normativa de ética, entendida como um conceito de “bom”, “justo” e “verdadeiro”, que tem em Hegel o seu fundamento filosófico (Sistema de Eticidade, Princípios da Filosofia do Direito) e a que se revela um legítimo herdeiro da filosofia pragmática americana, que, abandonando o monismo da posição de Honneth, opta por uma posição realista e prática no que diz respeito às lutas pelo reconhecimento social. Nessa direção, afasta-se ela de Hegel e se aproxima de Kant, de quem parece emprestar o conceito de moralidade.

Referências FRASER, NANCY. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era póssocialista. In Democracia Hoje: Novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Org. Jessé de Souza. Brasília: Editora UNB, 2001. FRASER, NANCY. Reconhecimento sem Ética? São Paulo: Lua Nova, 2007, disponível em http://www. scielo.br/pdf/ln/n70/a06n70.pdf HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Tradução de Luiz Repa. São Paulo: Editora 34, 2003. MATTOS, Patricia de Castro. A sociologia política do reconhecimento: as contribuições de Charles Taylor, Axel Honneth e Nancy Fraser. São Paulo: Annablume, 2006. ZAIDAN, Michel. Honnenth, Habermas e a dimensão política do reconhecimento. De Maquiavel ao Orçamento participativo. João Pessoa, Ed. Universitária. 2006 TADINI, Giulia. Uma breve introdução a Nancy Fraser. 2018, fev. In https://movimentorevista.com. br/2018/02/uma-breve-introducao-a-nancy-fraser, capturado em 12.12.2018. HABERMAS. J. Direito e Democracia. Rio de Janeiro, Tempo brasileiro. 2. Volume Entrevista com Nancy Fraser, realizada por Álvaro Gusmán Bastida, via CTXT, traduzida por Felipe Kantor. In https://lavrapalavra.com/2016/09/23/ entrevista-com-nancy-fraser, capturado em 12.12.2018.

Michel Zaidan Filho é professor permanente do Programa de Pós-graduacão em Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Raissa Saldanha Menezes é advogada e mestranda no Programa de Pós-graduacão em Direito da UFPE.


JORNALISMO E CIDADANIA | 14

Opinião

Quando o moral porn chove no dourado Por Camilo Soares

A

d e s g r a ç a d e u m a c r i a n ç a re t r a t a d a n o re c e nt e f i l m e l i b a n ê s C a f a r n au m , d a d i re t or a Na d i n e L a b a k i , re a s c e n d e u o t e r m o p ov e r t y p or n ( a qu i c h a m a d o d e p or n om i s é r i a ) , qu e d e s i g n av a or i g i n a l m e nt e c a mp a n h a s hu m a n i t á r i a s q u e u s a m i m a g e n s ap e l at i v a s ( c om o c r i a n ç a s d e s nut r i d a s ) p a r a p e d i r d o a ç õ e s a o s “c oit a d o s” d e p a í s e s p o bre s e e m d e s e nv o l v i m e nt o, e s p e r a n d o a s a l v a ç ã o p or aqueles que, em países abastados, teriam d ó l a re s ou e u ro s s o br a n d o p a r a c omp e n s a r- l h e s a c u lp a ou a p e n a . No mu n d o c u l tu r a l , o t e r m o re m e t e a o br a s qu e u s a m a i m a g e m d a m i s é r i a p a r a e nt re t e r o b om s e nt i m e nt o d a s c l a s s e s a b a s t a d a s . Ut i l i z a ç õ e s d a i m a g e m d o s out ro s p a r a f i n s e t i c a m e nt e c ont e s t áv e i s n ã o s ã o, n o e nt a nt o, e x c lu s i v i d a d e d a s b o a s i nt e n ç õ e s c a r it at i v a s . Ao d i v u l g a r n a s re d e s s o c i a i s i m a g e n s e x p l í c it a s d e u m g o l d e n s h ow e r e m u m v í d e o n o c a r n av a l p au l i s t a n o ( n o qu a l u m p a rc e i ro u r i n a s o bre o out ro ) , o pre s i d e nt e Ja i r B o l s on a ro n ã o ap e n a s qu e br a o d e c oro qu e s e u c a r g o e x i g e , e l e ap l i c a , e m n om e d e u m s up o s t o b om c o s tu m e , u m a pr át i c a m a l s ã e d e s on e s t a . S e u tu ít e re f orç a e s t e re ót ip o s e d i f a m a m i n or i a s , d i f u n d i d o p or u m a e s t r at é g i a q u e c h a m a re i d e m or a l it y p or n ou , s i mp l e s m e nt e , m or a l p or n . Ta l e x e mp l o d e p or n ô m or a l d o pre s i d e nt e f i c ou m a i s c h o c a nt e d e v i d o à re p e rc u s s ã o i nt e r n a c i on a l , m a s j á e r a u m a pr á t i c a c o s tu m a z d o e nt ã o d e put a d o e d e p oi s c a n d i d at o, c om o l e mbr a o e x - d e put a d o Je a n Wy l l y s , a l v o d e f a k e n e w s ( o a g or a d e put a d o f e d e r a l A l e x a n d re Frot a f oi c on d e n a d o p or u m a d e l a s ) e a m e a ç a s n a re d e : “Há a n o s o s B o l s on a ro e o s v e n d i l h õ e s d o s t e mp l o s p e nt e c o s t a i s d i f a m a m a s p a r a d a s d e or g u l h o L G BT e a s m a rc h a s f e m i n i s t a s c om i m a g e n s c h o c a nt e s d i v u l g a d a s n a s re d e s s o c i a i s e qu e q u a s e nu n c a c or re s p on d e m a o s f at o s q u e e nv o l v e m e s s a m a n i f e s t a ç ã o ( e , qu a n d o e nv o l v e m , n ã o p a s s a m d e c a s o s i s o l a d o s f a c i l m e nt e e x p l i c áv e i s e qu e n ã o c omprom e t e m ou n ã o d e v e r i a m c omprom e t e r o t o d o ) ”

( W Y L LYS , J. O re t or n o d o s m on s t ro s , 2 0 1 9 . D i s p on í v e l e m < http s : / / j e a nw y l l y s . b l o g o s f e r a . u o l . c om . br > . Ac e s s o e m : 1 1 / 0 3 / 2 0 1 9 ) . A l é m d e c on s t itu i r u m at a q u e à s l i b e rd a d e s i n d i v i du a i s , e s s a s s i mp l i f i c a ç õ e s d e i nt e rpre t a ç ã o s ã o, p a r a Wy l l y s , u m a e s t r at é g i a p a r a d e s m or a l i z a r c r ít i c a s a e l e e , a g or a , a o s e u g ov e r n o. O ut ro e x e mp l o re c e nt e , t a mb é m n o c a r n av a l , u m v í d e o d e c e lu l a r v i r a l i z a d o n a s re d e s f oi f e it o à s e s c on d i d a s e m u m c a r ro d e on d e u m h om e m f i l m a e c om e n t a c om du a s mu l h e re s a p a s s a g e m d o b l o c o f e m i n i s t a Va c a P rof a n a e m O l i n d a , n o qu a l a l g u m a s d a s i nt e g r a nt e s f a z e m t op l e s s . A c ont r a d i ç ã o e nt re o s c om e nt á r i o s s a rc á s t i c o s d e re prov a ç ã o m or a l d o g r up o e o f at o d e f i l m a re m e d i v u l g a re m o q u e e l e s c on s i d e r a m u m e s p e t á c u l o re pr i m í v e l é out ro e x e mp l o c l a ro d e m or a l p or n , p oi s d e pre c i a u m g r up o a o p a s s o q u e pro du z , t r a f i c a e c on s om e s u a i m a g e m s e m c on s e nt i m e nt o, v i o l e nt a n d o s e u s d i re it o s e d i s s e m i n a n d o pre c on c e it o s . As c r ít i c a s a a l g u n s s e i o s f e it a s t a mb é m p e l a s mu l h e re s at r á s d a c â m e r a ( “E s s a p a re c e u m a v a c a l e it e i r a”, d i s s e u m a d e l a s e m c e r t o m om e nt o ) p a re c e m d i z e r q u e a l g u m a s n ã o t e r i a m o d i re it o d e m o s t r a r o c or p o, p oi s n ã o s e r i a m b on it a s o s u f i c i e nt e p a r a s e re m v i s t a s , o qu e l e m br a a t e n e bro s a re s p o s t a d e B o l s on a ro à e x - m i n i s t r a ( e d e put a d a f e d e r a l d e s d e 2 0 0 3 ) Ma r i a d o R o s á r i o nu m d i s c u r s o e m q u e d i s s e : “Nã o t e e s tupro p orq u e v o c ê n ã o m e re c e”. As s i m c om o h á u m a v it i m i z a ç ã o e s t e re ot ip a d a at r av é s d a p ov e r t y p or n , n e g a n d o re t r at a r u m g r up o c om d i g n i d a d e e re s p e i t o, a m or a l p or n t a mb é m atu a n e s s a l i n h a , m a s p a r a prop e n s a m e nt e d e f e n d e r v a l ore s m or a i s h e g e m ôn i c o s . E m a mb o s o s c a s o s , h á u m d e s v i o c l a ro e nt re a j u s t i f i c at i v a d a a ç ã o e a f or m a a m or a l c om a q u a l a i m a g e m d e out re m é t r at a d a . No c a s o d o hu m a n it á r i o, c om o d i z Je n n i f e r L e nt f e r, d i re t or a d e c omu n i c a ç ã o d a or g a n i z a ç ã o i nt e r n a c i on a l T h ou s a n d Cu r re nt s , p a r a o Gu a rd i a n , a s c a mp a n h a s d e c a r i d a d e s d e v e r i a m t e r a re s -


Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 15

p on s a bi l i d a d e d e d e s t r u i r c l i c h ê s d a n o s o s , c om o a i m a g e m d o p o bre e s p e r a n d o o br a n c o s a l v a d or : “Ni n g u é m g o s t a d e s e s e nt i r d e s a mp a r a d o, i n c ap a z ou d e s e s p e r a d o, e e l e s c e r t a m e nt e n ã o qu e re m s e r re t r at a d o s a s s i m e m re l at ór i o s e c a mp a n h a s d e c a r i d a d e” ( L E N T F E R , J. Ye s , c h a r it i e s w a nt t o t a k e a n i mp a c t , but p ov e r t y p or n i s n ot t h e w ay t o d o it , 2 0 1 8 . D i s p on í v e l e m : ht tp s : / / w w w. t h e g u a r d i a n . c o m / v o l u n t a r y - s e c t o r -network/2018/jan/12/charities-stop-pov e r t y - p or n - f u n d r a i s i n g - e d - s h e e r a n - c om i c - re l i e f . Ac e s s o e m 1 1 / 0 3 / 2 0 1 9 ) . Pa r a e s s a s p at r u l h a s m or a i s , t ã o e m v o g a n o B r a s i l atu a l , é c omu m at a c a r, c om pr i n c ípi o s t ã o i n f a nt i s c om o “m e n i n o d e a z u l e m e n i n a d e ro s a”, q u a l q u e r lut a f e m i n i s t a ou b a n d e i r a d a c omu n i d a d e L G BT, n e g a n d o - l h e s pr i n c ípi o s b á s i c o s d e i g u a l d a d e e d i g n i d a d e . Ta l v e z a qu e s t ã o qu e l i g a m a i s a s p or n o g r a f i a s d a p o bre z a e d a m or a l s e r i a o e nv o l v i m e nt o d e u m e s t r a n h o e p e r n i c i o s o v oy e u r i s m o a s s o c i a d o a u m qu ê d e s a d i s m o. E s s e s e s t r a n h o s pr a z e re s i n f e l i z m e nt e s ã o e f i c a z e s , p oi s , s i mp l i f i c a n d o o b e m e o m a l , v a r re m p a r a d e b a i x o d o t ap e t e q u a l q u e r f or m a d e c on s t r a n g i m e nt o e , pi or, d e p o s s i bi l i d a d e d e e n c a r a r d e f re nt e s e u s pró pr i o s pre c on c e it o s . Ta i s e s t r at é g i a s f or m a i s c or ro e m a l i v re i nt e r pre t a ç ã o d e s s a s i m a g e n s , e s c on d e n d o c ont e x t o s , m a s t a mb é m d i s f a rç a n d o i d e o l o g i a s g rot e s c a s e at r a s a d a s p or t r á s d e u m b om - m o c i s m o d e tu r p a d o. A i m or a l i d a d e m a i or n ã o e s t á n o qu e a s i m a g e n s e m s i re pre s e nt a m , m a s n o re g o z i j o re s s e nt i d o e i n c on f e s s o qu e t a i s a r t i c u l a ç õ e s t r a b a l h a m . Um jú bi l o s u bm e r s o a d v i n d o d e p o s s í v e i s c a s t r a ç õ e s , m a s t a mb é m u m g o z o d e aut o a f i r m a ç ã o d e u m a s up o s t a s up e r i or i d a d e i mp o s t a p e l a opre s s ã o v e l a d a s o bre o out ro, a qu e m a i d e nt i d a d e é n e g a d a p or re pre s e nt a ç õ e s d i s c r i m i n a d or a s . O q u e a i d e nt i d a d e t e m a v e r c om tal modalidade de uso dessas imagens? Tu d o, q u a n d o p e n s a m o s qu e re pre s e nt a ç ã o e i d e nt i d a d e s ã o a r t i c u l a d a s at r av é s d o re c on h e c i m e nt o, c uj o u m d o s pr i n c ípi o s - b a s e é a d i g n i d a d e . A i d e nt i d a d e é , e m p a rt e , f or m a d a , s e g u n d o C h a r l e s Tay l or, p e l o re c on h e c i m e nt o e p e l a au s ê n c i a d e l e . Pa r a e l e , o f a l s o re c on h e c i m e nt o p or p a r t e d o s out ro s p o d e c au s a r a u m i n d i v í du o ou u m g r up o u m pre ju í z o re a l , a o proj e t a r n e l e u m a i m a g e m re dut or a d e s i m e s m o. S e g u n d o o p e n s a d or c a n a d e n s e , t a l f e n ôm e n o p o d e s e r u m a f or m a d e opre s s ã o, c om o

u m a pr i s ã o e m u m a re pre s e nt a ç ã o f a l s a d e s i m e s m o : “Ne s s a p e r s p e c t i v a , n ã o re c o n h e c i m e nt o n ã o s i g n i f i c a ap e n a s au s ê n c i a d o d e v i d o re s p e it o. E l e p o d e i n f l i g i r f e r i d a s g r av e s a a l g u é m , at i n g i n d o a s s u a s v í t i m a s c om u m a mut i l a d or a aut oi m a g e m d e pre c i at i v a” ( 1 9 9 4 , p. 2 5 - 2 6 , apu d S O U Z A , J. , 2 0 1 8 , p. 7 0 ) . O m or a l p or n é , a s s i m c om o o p o v e r t y p or n , u m a p e r i g o s a a b e r r a ç ã o a s e r c omb at i d a . A re pre s e nt a ç ã o d o out ro d e m a n e i r a d i m i nut i v a , s e j a l á p a r a q u e f i n s , é u m a f or m a d e s u bj u l g á - l o at r av é s d e pre c on c e it o s . Pa r a t r at a r d i f e re n ç a s , u m a s o c i e d a d e d e v e pr i m e i ro apre n d e r a t r at á - l a s c om re s p e it o, a d m it i r e t o l e r a r p e r s p e c t i v a s d i f e re nt e s e g a r a nt i r a p o s s i bi l i d a d e d e u m a aut or re pre s e nt a c ã o l i v re d e e s t i g m a s . C om o d i z Tay l or : “O re c on h e c i m e nt o d e v i d o n ã o é ap e n a s u m a c or t e s i a q u e d e v e m o s à s p e s s o a s . É u m a n e c e s s i d a d e hu m a n a v i t a l” ( TAY L O R , l o c . c it ) .

Camilo Soares e Doutor pela Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne e Professor de Cinema e Audiovisual da UFPE


Opinião

JORNALISMO E CIDADANIA | 16

O Jornalismo E Eu

Por Emerson Xavier da Silva

1

997. O jornalista quebequense Pierre Duchesne contratou-me como intérprete durante dez dias. Ele investigava na ocasião os conflitos fundiários no Pará e a persistência do trabalho escravo. Cheguei a Marabá cinco dias antes de nosso encontro marcado. Havia decidido colher o máximo de informações sobre as ocupações de terra e sobre as ameaças que os acampados vinham sofrendo. Não agi assim por simples espírito de colaboração. Antes o fiz por desconfiança. Eu não conhecia ainda aquele jornalista, nada sabia de seu compromisso com a verdade e seu amor à justiça. Minha intenção fora colocá-lo diante do fato consumado, expor-lhe uma realidade que ele não pudesse ignorar. Nunca havia confiado muito em jornalistas. Não tinha razões históricas para tal. Para minha grata surpresa, Pierre Duchesne acolheu com interesse tudo o que eu havia levantado e confiou-me ainda outras missões. Tínhamos na Comissão Pastoral da Terra (CPT) um aliado. Graças à CPT, pudemos entrevistar testemunhas fundamentais. Um líder sindical fora assassinado uma semana antes da chegada de Pierre. Na tarde do primeiro dia, entrevistamos a viúva daquele mártir. A vítima estava com a família e amigos quando um motoqueiro se aproximou e deferiu-lhe seis balas. A viúva segurava um dos projéteis e o batia contra a mesa, ritmando seus clamores por justiça. Pierre capturava cada som já pensando na montagem que faria com aquelas fitas K-7. Quarenta minutos depois daquele encontro, fomos entrevistar o principal suspeito de ter sido o mandante do crime, um dublê de médico e pecuarista. Sendo um trabalho para a rádio, tive de modular minha voz para interpretar diferentes emoções: passar da dor de quem perdera o marido pelas balas de um assassino ao desprezo de um rico proprietário pelos pobres, que, segundo ele, “têm mais é de morrer assassinados”. Procurei inicialmente manter uma linguagem “neutra”, “objetiva”, até que o próprio Pierre se fez totalmente claro: “não é difícil entender de que lado joga o demônio nessa história”. A tensão só aumentava, e, por isso, nos cercávamos de cuidados para proteger nosso material e nós mesmos. Depois de muitas conversas preparatórias, fomos até um bosque onde estavam acampadas algumas famílias

ocupantes. Ficamos particularmente impressionados por dois testemunhos de militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST): Fusquinha e Doutor. De repente, uma presença inesperada encheu-nos de apreensão. Um capataz do latifundiário viera ameaçar aquelas famílias. Antes que ele se fosse, Pierre Duchesne perguntou-lhe: “Seu pai patrão vai aceitar decisões da Justiça ou apelar para a violência?”. O capataz respondeu: “Ele não tem muita paciência. Vai resolver logo, do jeito dele”. “Vai correr sangue”, vaticinou Pierre. No dia seguinte, fomos a Imperatriz do Maranhão. Tínhamos pistas sobre a organização de leilões de meninas virgens por membros da elite local. Logo percebemos o quão difícil seria, no tempo disponível, produzir uma reportagem profunda sobre crime tão monstruoso. Certa noite, entrevistávamos uma testemunha quando vozes com um sotaque familiar desviaram nossa atenção. A maldita televisão transmitia um noticiário. As imagens que desfilavam na telinha também me eram familiares. Aquela trilha percorrida, na reportagem, por uma tremulante câmera, eu também a havia percorrido. Ela levava à clareira onde havíamos entrevistado os militantes Doutor e Fusquinha, cujas mortes estavam sendo noticiadas naquele momento. Pegamos um aviãozinho para Marabá. Não chegamos a tempo para cobrir o enterro dos mártires, mas ouvimos testemunhas, advogados, policiais e companheiros de luta. Com jovens jornalistas de mídias-empresa do Sudeste, conversamos sobre a impossibilidade de dizer a verdade do que se passava. Eles diziam que seus informes eram brutalmente transformados nas salas de redação. Havia palavras proibidas (ocupação) e outras consagradas (invasão). Indaguei-me qual seria o nível máximo suportável de desconforto para aqueles jornalistas. E também me perguntei a partir de quando a participação na grande engrenagem de desinformação se torna uma forma de cumplicidade criminosa. Possivelmente todos ali tínhamos as mesmas indagações, inclusive aquele jornalista que emprestava seu carro funcional para transportar pessoas e materiais para uma reocupação de fazenda, talvez como forma de compensar o terrível limite de não poder comunicar verdades no famoso pasquim para o qual traba-


lhava.

Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 17

1998. Recebo um telefonema do jornalista e já amigo Pierre Duchesne. Nossa reportagem acabara de levar o prestigioso Grande Prêmio da Comunidade de Rádios Públicas de Língua Francesa (França, Canadá, Suíça e Bélgica) graças ao voto direto de ouvintes de cada país. Tão generoso quanto honesto, Pierre Duchesne disse ainda: “Divido com você as honras desse prêmio. Você foi mais que um intérprete. Quanto ao dinheiro, quer que o envie ao Brasil?”. Ao que respondi: “Não. Vou buscá-lo”. Muitos colegas jornalistas perguntaram a Pierre Duchesne como ele havia feito para conseguir vários intérpretes em plena Amazônia. E ficavam surpresos ao descobrir que só um intérprete havia sido mobilizado. Depois da premiação, outras equipes de jornalistas canadenses vieram ao Brasil e me contrataram na produção de reportagens para a imprensa escrita, para a rádio e para a televisão. Em 1999, tomei o rumo do Canadá com o objetivo de lá ficar seis meses e aprender finalmente o inglês. Lá chegando, no entanto, percebi que tinha portas abertas para continuar a trabalhar com jornalismo. No final de 2002, o mundo tinha os olhos voltados para a Venezuela, onde, segundo todas as mídias-empresa, havia uma “greve geral contra Chávez”. Ora, eu bem sabia que havia, na verdade, uma paralisação patronal dobrada da sabotagem de instalações petroleiras. Quis a fortuna que eu entrasse em contato com Gabriela Chávez, a filha do então presidente Hugo Chávez. Disse a ela que eu conhecia um importante jornalista que certamente diria a verdade sobre o que estava ocorrendo no país. Gabriela logo me respondeu. O presidente Hugo Chávez estava disposto a nos receber. Em Montréal, Pierre Duchesne tentou em vão que lhe confiassem a missão venezuelana, com direito a uma entrevista exclusiva com Hugo Chávez. Sua hierarquia o vetou, alegando que “o tema não interessaria ao grande público”. Inconformado com o boicote evidentemente político que sofrera, Duchesne me pediu que, em seu lugar, fosse enviado alguém que ele julgava confiável. Respondi que tudo o que queria era que se dissesse a verdade. O jornalista que finalmente veio não parecia compartilhar a mesma preocupação. Ele sempre se referencia à “greve geral contra Chávez”, embora eu insistisse em corrigi-lo: não havia greve alguma no país, menos ainda “contra Chávez”. Convidei-o várias vezes a visitar o metrô entre 6h e 7h para que constatasse como milhares de trabalhadores se apinhavam nas estações. O jornalista em questão preferia ler os jornais dos Estados Unidos e da Europa para “se informar” sobre o que se passava na cidade em que ele estava. O único jornal que realmente lhe chamou a atenção em Caracas foi um pasquim inex-

pressivo que ousava dizer em primeira página que as reservas cambiais do país estavam reduzidas a 10 milhões de dólares. Tal afirmação era tão estapafúrdia e ridícula que mesmo alguém sem conhecimentos mínimos de economia seria capaz de entender que se tratava de pura guerra desinformativa. Mas nosso gênio do jornalismo gritava “eureka!”. “Li hoje de manhã que Chávez aceita se submeter a um referendo revogatório. Ele mudou de opinião porque as reservas cambiais estão reduzidas!” O gênio continuava a me surpreender. O que Chávez dizia era que a oposição deveria cumprir a Constituição, esperar que o presidente chegasse à metade de seu mandato para então recolher assinaturas com vistas a um referendo revogatório. Mas nosso gênio do jornalismo insistia em sua tese delirante. Convidei-o reiteradas vezes a encontrar a Associação das Vítimas da IV República, quando governava a atual oposição venezuelana. Nesse período, mais de 10 mil pessoas foram presas, torturadas e mortas por razões políticas, militantes sociais foram drogados e jogados ao mar, aldeias indígenas e camponesas foram bombardeadas por aviões militares, adolescentes foram fuzilados, mais de 3 mil pessoas foram mortas nas ruas em apenas dois dias em 1989. A lista de massacres cometidos pela oposição venezuelana quando esta era governo daria inveja a Pinochet. Ao final da entrevista com o presidente Chávez, nosso grande gênio do jornalismo lançou aquela que ele mesmo considerava a mais contundente de suas perguntas: “Presidente, não seria a contradição entre o senhor e a oposição apenas uma questão de prioridades, com o senhor priorizando a satisfação das necessidades básicas da população e sua oposição priorizando as liberdades?”. Como dizia o jornalista Milor Fernandes: “livre pensar é só pensar”.

Emerson Xavier da Silva é tradutor de diversas línguas (francês, inglês, espanhol e italiano). E-mail: emersonxavierster@gmail.com


JORNALISMO E CIDADANIA | 18

Opinião

Como produzir mais alimentos reduzindo os impactos ambientais? Por Marcos Costa Lima

R

esiliência é, no sentido ecológico, a capacidade de um ecossistema de responder a uma perturbação ou perturbações, resistindo a danos para recuperar-se rapidamente. Tais perturbações podem incluir eventos estocásticos, como incêndios, inundações, tempestades de vento, explosões populacionais de insetos e atividades humanas, como desmatamento, fracionamento do solo para extração de petróleo, armazenamento de rejeitos em mineradoras, pesticidas pulverizados no solo e a introdução de espécies exóticas de plantas ou animais. Todos eles, a cada dia mais intensos, são distúrbios de magnitude ou duração suficiente que podem afetar profundamente um ecossistema e forçá-lo a atingir um limiar além do qual predomina um regime diferente de processos e estruturas. Rockström, professor da Swedish University of Agricultural Sciences e da Stockholm University e diretor executivo do Stockholm Resilience Centre, na Stockholm University, é um especialista em como a resiliência pode ser construída em terras com pouca água e buscar a sustentabilidade global. Mas lida também com questões como redução da biodiversidade, exploração dos recursos naturais, poluição e uso do solo, frequentemente para condições mais adversas e degradadas de mudança antropogênica do clima, que têm causado alterações de regimes nos ecossistemas. O discurso interdisciplinar sobre resiliência hoje inclui considerações sobre as interações entre os seres humanos e ecossistemas via sistemas socioecológicos e a necessidade de uma mudança para um outro paradigma, sustentável ao máximo, onde a gestão alternativa possa construir resiliência ecológica, através de práticas alternativas e uma governança adaptativa. Rockström é internacionalmente reconhecido como alguém que domina os processos de sustentabilidade global. Em 2009, dirigiu uma equipe que desenvolveu o Projeto Fronteiras Planetárias, uma estrutura capaz de estabelecer as pré-condições para facilitar o desenvolvimento humano num tempo em que o planeta está passando por rápidas mudanças. Em reconhecimento ao seu trabalho, recebeu vários e importantes prêmios com relação ao meio ambiente. Sempre trabalhando com grandes equipes multidisciplinares, compostas por biólogos do Ártico, geógrafos, cientistas ambientais, ecólogos aquáticos, historiadores da ciência, evolucio-

nistas humanos e de mudanças sociais. Pois bem, dada a tão dramática questão que vivemos, ele reflete sobre a necessária mudança de paradigma na forma de produzir alimentos. Rockström et al (2017) conclamam nada menos que uma revolução global dos alimentos, que considera urgente. Sem essa mudança, diz ele, não conseguiremos atingir os objetivos gêmeos de alimentar a humanidade e viver nas fronteiras dos processos biofísicos que definam um espaço seguro de manobra de um sistema Terra estável e resiliente. Como diz, a sustentabilidade global tem sido cada vez mais considerada como um pré-requisito para se alcançar o desenvolvimento humano em todas as suas escalas, desde as comunidades rurais às cidades, às nações e ao mundo. A razão disso é que nós teríamos entrado em uma nova época geológica, o Antropoceno, onde as pressões humanas estão causando e fazendo crescer os riscos ambientais e que, pela primeira vez, costituem o maior condutor de mudança planetária. A esse respeito, prefiro a argumentação de Jason Moore (2016), que adota o termo Capitaloceno, que não tenho espaço de aqui desenvolver. A agricultura está no coração dessa mudança e é o maior causador individual da mudança climática global. É um argumento poderoso, que não tem sido compreendido por muita gente no mundo, mas também governos, a exemplo do brasileiro, entre outros, que estimula todo um complexo de produção de alimentos baseado no latifúndio, nos pesticidas (Costa Lima, 2018), no desmatamento e na deterioração dos solos. Para as Nações Unidas, o setor agrícola é a chave para a erradicação da fome, bem como para garantir a segurança alimentar para uma população que cresce e que atingirá entre 9 e 10 bilhões de pessoas por volta de 2050. Isso acarretará um aumento global na produção de alimentos entre 60% e 110%. O setor congrega também a subsistência direta de 2,5 bilhões de pequenos agricultores e a resiliência desses meios de subsistência a choques e tensões crescentes, que têm sido pouco abordados. Sabemos hoje que a agricultura para exportação e articulada por grandes corporações transnacionais vem expulsando pequenos camponeses, que acabam indo engrossar as fileiras dos trabalhadores urbanos. Para o pesquisador sueco e sua equipe, a hu-


Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 19

manidade se defronta com um imperativo, que é o seguinte: como transformar os modelos atuais de produção capitalista para alimentar o mundo, erradicar a pobreza e contribuir para um planeta estável e saudável? Rockström argumenta que os ganhos em produtividade para atingir as necessidades alimentares e permitir o sistema terrestre de operar dentro de padrões e limites planetários são a única estratégia viável. Mas aqui muito deve ser discutido, a exemplo da quantidade de produção de carne, que cresce sistematicamente e não apenas é danosa à saúde, pelos excessos de hormônios, mas também pelo espaço necessário que termina por destruir florestas, como é o caso do Brasil. E fica a pergunta: como aumentar a produtividade agrícola ao mesmo tempo em que se reduzem os impactos ambientais? Hoje, aproximadamente 40% da superfície terrestre foram transformadas para receber a agricultura — sistemas de produção agrícola, fibra, biocombustível e pecuária. A terra apropriada para a produção de alimentos é um recurso finito, e a futura expansão compromete, no contexto da Terra, o seu espaço de segurança. Sabe-se que em torno de 25% das emissões antrópicas de gases de efeito estufa são sequestradas da terra, as quais ocorrem em ecossistemas terrestres não cultivados. Buscando alternativas A agroecologia tem aparecido como uma alternativa extremamente válida, mas vai depender da alteração do modelo capitalista de alto nível de predação, humano e ambiental. Segundo Paulo Petersen (apud Fachin, 2018), coordenador executivo da AS-PTA e membro do Núcleo Executivo da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), “um dos principais objetivos da agroecologia é construir sistemas agroalimentares localizados, aproximando a produção do consumo. Isso só é possível quando os atores dos territórios se articulam em redes para retomar a autonomia sobre os processos de produção, transformação, comercialização e consumo”. A transição de um modelo agrícola industrial para um modelo baseado na agroecologia depende do estímulo do Estado a partir de políticas públicas adequadas. Petersen diz categoricamente que o modelo agrícola industrial e o agroecológico são incompatíveis. Não podem conviver no espaço e no tempo. “Existe um discurso de que o Brasil é muito grande, que tem espaço para todo mundo e para todos os modelos. Mas o que temos avaliado, com a sistematização dessas redes de agroecologia, é que essa convivência é impraticável (...) um modelo que se baseia na valorização e na conservação dos recursos naturais, na biodiversidade, na construção de mercados locais e na valorização da cultura alimentar local não pode ser compatibilizado

com outro que depende de se expandir territorialmente para manter as taxas de lucratividade de suas monoculturas” (apud Fachin) que se utiliza de tecnologias como os agrotóxicos e os transgênicos. O modelo do agronegócio inviabiliza as possibilidades de expansão da agroecologia, razão de crescentes conflitos territoriais no Brasil e no mundo. Mas, para Petersen, ainda é possível buscar alternativas técnicas e econômicas já existentes e comprovadas. Outro estudioso da agroecologia nos diz que é urgente “recolocar o processo de coevolução socioecológica nos seus trilhos da sustentabilidade”. Para o professor Caporal, não é tarefa apenas indivi¬dual ou de pequenos grupos comunitários de produtores e consumidores, mas depende de maiorias sociais, de força política. Sem elas, não será possível avançar na direção da sustentabilidade da agricultura e dos siste¬mas agroalimentares, mesmo contando com um vasto acervo técnico e metodológico adequado (Caporal, 2018).

Notas Caporal, Francisco (2018). “Agroecologia política: imperativo para o século XXI”. Jornalismo e Cidadania, nº 27, p. 18-20. Costa Lima (2018). “Os pesticidas: poderosa cadeia mundial de venenos”. Jornalismo e Cidadania, nº 27, p. 22-23. Fachin, Patricia (2018). “Agroecologia como uma alternativa à agricultura industrial”. IHU On-Line, 30 maio 2018. Moore, Jason (Ed) (2016). “Anthropocene or Capitalocene? Nature, History, and the Crisis of Capitalism”; Michigan: MPM Press. Rockström, Johan et al (2017). “Sustainable intensification of agriculture for human prosperity and global sustainability”. In: Ambio, Feb 46(1): 4:17.

Marcos Costa Lima é professor do Programa de PósGraduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco.


JORNALISMO E CIDADANIA | 20

Opinião

O fantasma das migrações e a estratégia da extrema direita europeia Por Pedro de Souza

2

019 s e apres ent a c omo um ano d e mu d anç a. F ina l mente p o demos d ize r qu e ac ab ou o p ó s-guer r a, c ara c ter i za do, na Europ a, p el a a l i anç a en t re cr ist ãos - d e mo c r at as, mais ou meno s ao c e nt ro- d i re it a, e s o ci ais-demo c r at as, mais ou me nos ao cent ro-es querd a, resp ons áveis p el a const r uç ão europ ei a, s eus g r and es su c ess os , d e qu e p oucos fa l am , s enão p ara d e ne g r i - los, e o s s eus f r ac ass o s, que v i rou mo d a subli n har com t int as fosfores centes . E nt re a re g u l ament aç ão pl etór ic a pro du zi d a p el a Eu rop a ao l ongo dos s eus 62 anos , s e es cond e m muit as inc ong r uênci as inúteis , e p ara a lg u ns i r r it antes (c omo a unifor mi za ç ão d as mat r í c u l as do s c ar ros, p or exempl o ) , e mu it as p ol ít ic as mais que dis c ut íveis , c omo a p olít i c a ag r íc ol a que t r ansfer iu p ara a Franç a b o a p ar te dos f undos c omunit ár i os ( mas t amb é m p ar a c er t as fazend as d a famí l i a re a l br it ân i c a), enqu anto ar r as av a a ag r i c u ltu ra d e p aís es mais f r ágeis, como a p ortu g u e s a. Mas s e es condem t amb ém suc ess os i nd is c ut íve is , b ast ando c it ar o prog r ama Erasmus , de i nterc âmbio de estud antes ; a p ol ít i c a d o me dic amento ; e atu a l mente a leg isl aç ã o f is c a l e m rel aç ão às mu lt inacionais d a i n for maç ã o, obr igad as a p agar os imp osto s onde re a li zam s eus negó c ios, e não ond e b em l he s ap e te c e, etc. Pou co a p ou co o p es o d a buro cr aci a europ e i a foi, p orém, s e tor nando dif íci l d e sup or t ar, s obre tudo p ar a o s p aís es que ad er i ram ao e u ro, 19 do s 28 est ado s-membro d a Un i ão Eu rop ei a (UE ), que del egar am à UE b o a p ar te d a su a s ob er ani a, e ao Acord o de S che nge n (15 do s 28 adot ar am o v isto S che nge n ) . Ass i m, ao l ongo dest as du as pr imei ras dé c ad as do s é c u l o X X , muitos foram o s p olít i cos qu e c ome ç ar am a exig ir a s aí d a d a Eu rop a , s e m g r andes resu lt ados. Até que, e m 2016, chamado s p el o pr imeiro-minist ro C ame ron a s e pronunc i ar s obre iss o p or refe rendo ( nu ma d as de c is õ es p ol ít ic as mais d e s ast rad as d os ú lt imo s temp o s), os br it ân i c os de ci di ram , p or c ur t a maior i a, s ai r. As ne go ci açõ e s vêm s e ar r ast ando há mes es

s em que s e chegue a um acord o s obre a necess i d ad e d e remont ar uma f rontei r a e nt re a Irl and a d o Nor te ( br it ân i c a) e a R e públ i c a d a Irl and a, o que d es ag rad a a to d o s, d a d a à con f us ão que cr i ar i a numa reg i ão mu ito próxi ma e urb an i z ad a, ou a quest ão d a E s có ci a, c uj os naturais vot aram em mass a p el a p er manênci a na U E . O u s ej a, a Ing l ate r r a s ai r i a t a lve z amput ad a d e p ar te d o s e u te r r itór i o e, s obretud o, com a f i r me op os i ç ã o d a C it y, o mai or cent ro f i nancei ro europ e u, qu e est á s end o prejud i c ad o p el a t rans ferê nc i a d e muitos b ancos que, na dúv i d a, prefe re m s e i nst a l ar d es d e j á em Fran k f ur t ou Par is. O v í r us ant i europ eu foi t amb ém s e e sp al hand o rapi d amente p el a Europ a d o L e ste, esp e ci a lmente na Hung r i a e na Polôni a , e m nome d a s ob eran i a naci ona l, s obretu d o e m rel aç ão à quest ão d a emi g raç ão. C omo s e s ab e, o p ovo húngaro, que f a l a uma l í ng u a não i nd o- europ ei a, como as rest ante s l í ngu as d o cont i nente, foi o ú lt i mo a s e i nst a l ar nas margens d o l ago B a l aton , no ce nt ro d a Europ a, e, como s empre, os ú lt i mos a che g ar s ão os mais ci os os d as su as c arac te r íst i c as naci onais , a li ás hoj e p ouco v is íveis a ol ho nu. E ss es p ovos d o leste que v iveram d é c ad as s ob o d omí n i o d a U RS S acre d it am qu e p ossuem uma a lma europ ei a mais pu r a qu e a d a Europ a O ci d ent a l — nos ol ho s d el e s, vend i d a ao consumis mo. E ss es re cei os , um p ouco i n f ant is , p o d er i am d es ap are cer ao f i m d e a lgumas ge r a çõ es , mas a verd ad e é que, no momento, e st á aconte cend o o i nvers o. Os p ar t i d os qu e e x ploram ess as i d ei as , na mai or i a os chamad os p opu list as , ou f as cist as , vêm gan hand o ap oi o ent re a p opu l aç ão e p ar t i cip am hoj e em coli gaçõ es em qu as e to d os ess es p aís e s, cr i and o uma d i nâmi c a negat iva ent re v i z in hos . Ass i m, p or exemplo, ao re c us ar p art i cip ar na p olít i c a d e acol hi mento d o s re f ug i ad os p olít i cos e e conômi cos qu e vê m p e d i nd o as i lo na Europ a, provo c am u m a c ú mu lo d ess es ref ug i ad os nos p aís es mais e xp ostos e que mais s e têm d e d i c ad o a s a lv ar ess a gente d os nauf rág i os no Me d iter r âne o, a


Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 21

Gré c i a e a It á li a . Iss o, p or su a ve z, l e v a muito s natu rais de ss es p aís es a ap oi arem p ar t i d o s xe nófob os. A It á l i a j á c aiu nas mãos d a L eg a, u m p ar t i do que inici a l mente quer i a a i nd ep e nd ê nci a do do nor te do p aís. Na E s p an ha , su rg iu u ma de zena de deput ado s d e e x t rema d i re it a no p arl amento reg iona l and a luz, p el a pr i meir a ve z des de a que d a d e Franco. A And a luzi a é a reg i ão esp an hol a mais e x p ost a à em ig r aç ão d a Áf r ic a. Poré m, mais re centemente, a at itude d es s es p ar t i d os ( que s e deter minam mais p or re c e it as i d e ológ ic as pr imár i as do que p or i ntere ss e s e conôm icos e s o c i ais a l ongo prazo ) mu d ou. D ado o sucess o que têm t i d o nas ur nas, ele s p ens am agor a, em ve z de s ai r d a Eu rop a ( o que, no c as o br it ânic o, tem s e re vel a do s e r i next r ic ável d ad a a inter p ene t r a ç ão de le is e p ol ít ic as), tomar o p o d er, p el o me nos no Parl amento Europ eu, c uj as el e i ç õ e s , qu e s e re a l izam a c ad a cinco anos , s erã o e m me ad os de 2019. Nã o s ó o Parl amento Europ eu não goz a d e to d as as at r ibuiçõ es de um p arl ame nto na c iona l, te ndo, s obretudo, mas não s ó, uma f u nç ão consu lt iv a, como é p ouco prov ável qu e e ss e s p ar t idos s omados consigam a mai or i a. Mas p o dem fazer um b om est rago. C omo o p ovo não vê g r ande ut i l id ade ness a i nst itu i ç ão, ess as el eiçõ es ac ab am s end o habitu a lme nte us ad as p ar a b ater no p ar t id o no p o de r no própr io p aís. Foi assim que Mar ine L e Pe n , d a ext rema direit a f r anc es a, c ons e g u iu ve ncer as ú lt imas el eiçõ es p ara o Parl ame nto Eu rop eu na Fr anç a. O mes mo p o d e o cor re r e ste ano, eng ross ando ar t i f ic i a l me nte o nú mero de nac iona l ist as xenófob os. Po de m fa ze r um b om est r ago s e c ons e g u i re m, com o auxí l io dos s eus gover nos , ou s e j a, do C ons el ho e d a C om iss ão europ e i as , i n f le c t i r as p ol ít ic as em v ár i as áreas , e ab andoná -l as em muit as out r as. E ss a i n f l exão d as p ol ít ic as europ ei as ag r ad ar i a s obre mane i ra t anto a Tr ump como a Put i n , amb os qu e re ndo s e l ib er t ar dos p aís es que, b em ou ma l, s ã o o s inventores d a demo cra c i a lib e ra l, e l hes p o dem fazer s ombr a nos negó ci os . O Brasi l e o s eu p e c u l i ar chancel er p o de r i am t amb ém encont r ar mais a li a d o s no Parl ame nto Europ eu, p ar a tent ar esp arg i r os s e us p onto s de v ist a c om aquele p e r f u me de Ma c ar t hismo dos anos 50, que t anto os e mo ci ona. A p olít i c a dess es p ar t ido s p o der i a s er, p or t anto, não mais s air d a Europ a, mas d es-

t r uí - l a d o i nter i or, tor nand o o Brex it u ma excent r i ci d ad e. Não é c ar t a fora d o b ar a l ho, p orém não s erá f áci l. O ap ego às inst itu iç õ es d emo crát i c as é muito mais ar r ai g a d o na Europ a O ci d ent a l d o que p are ce à pr imei ra v ist a, e encont ra um g rand e a l i a d o no mund o d os negó ci os . Mas não há dúv i d a d e que, à forç a d e e vo c ar o p er i go d e uma U E d e ext re ma -d i reit a, c ad a p aís come ç a a p ens ar em out r as op çõ es , nos chamad os pl anos d e cont i ngê nci a, que, no mí n i mo, p ara lis am a const r u ç ã o europ ei a, que pre cis a d e mais , e não me no s, d emo craci a, eng lob and o, cl aro, os em i g r an tes . Pois , em rel aç ão a estes , nunc a é d e mais i ns ist i r que o homem v i rou homem qu and o come ç ou a c ami n har ; não s e emi g ra ap e nas p or ne cess i d ad e f ís i c a, mas i ntele c tu a l, p ar a con he cer o mund o e o out ro. E mi g rar é u ma ne cess i d ad e espi r itu a l. A li ás , j á que e st á na mo d a cit ar a Bíbli a a tor to e a d i reito, o qu e é a Bíbli a s enão a histór i a d e uma mig r a ç ã o ? Não há p aís ond e s ej a mais f áci l compre e n d er iss o que o Bras i l.

Pedro de Souza é pesquisador, editor e exsuperintendente executivo do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento.


JORNALISMO E CIDADANIA | 22

Opinião

A Venezuela, o Socialismo e a Democracia Por Rubens Pinto Lyra

1

- Socialismo e democracia

Kautsky, a despeito de ser tratado por Lênin e pelos comunistas como “o renegado”, foi considerado o maior teórico marxista do último quartel do século XIX e do primeiro do século XX, depois de Marx e Engels. Deste, aliás, foi executor testamentário e principal colaborador. Suas previsões sobre a inevitável débâcle do “comunismo” soviético, também chamado de socialismo real, feitas reiteradas vezes, nunca foram aceitas, devido à influência determinante de Lênin e da Revolução Russa na esquerda mundial. Esta jamais imaginou que um dia esse regime viesse a desaparecer, ainda menos por exaustão e nas condições e proporções avassaladoras em que ocorreu, varrido do mapa da Europa por manifestações populares que o colocaram na lata do lixo da história. Dura realidade que essa mesma esquerda até hoje não assimilou, atribuindo a extinção do suposto comunismo a “deformações burocráticas” e à “falta de democracia”. Portanto, há erros na construção do socialismo, derivados do stalinismo, que não foi senão um sub-produto do leninismo. Com efeito, Lênin apostou, de forma temerária, na possibilidade de empreender a sua edificação em um país de economia semifeudal, pré-capitalista e com um proletariado numericamente inexpressivo, como foi o caso da Rússia tsarista. Não foi por outra razão que Kautsky, em 1918 — portanto, há cem anos, ainda nos primeiros meses da Revolução Russa — fez esta advertência profética: Os bolcheviques estão condenados à sina de aprendizes de feiticeiro: voltados à realização de um objetivo impossível, eles se virão acuados a permanecer no poder, mas terão, para isso, que renegar o seu programa ou se tornarem agentes de um processo histórico radicalmente estranho às ideias socialistas. (KAUTSKY, 1919, p. 210, Tradução livre do autor) Isso porque, do ponto de vista da concepção marxiana, o capitalismo desenvolvido, que produz uma classe trabalhadora numerosa, é condição sine qua non para que o processo revo-

lucionário socialista possa, com características democráticas, se efetivar. Ora, esses dois agentes, objetivamente indispensáveis ao seu êxito, inexistiam na Rússia tzarista. “O socialismo”, já dizia Marx no Manifesto Comunista, “é o movimento de uma imensa maioria”, e não apenas para uma imensa maioria. O “substituísmo”, levado a cabo por Lênin, tornando o partido agente e condutor da mudança, retira um dos requisitos fundamentais do socialismo, pelo menos do de Marx. Este sempre o concebeu como produto da organização e luta do conjunto da classe trabalhadora, únicos fatores susceptíveis de lhe conferir caráter democrático. Há 90 anos, em 1931, avaliando o regime stalinista, Kautsky (1982, p. 210, Tradução livre do autor) já antevia o que se consumou 60 anos depois com a queda do Muro de Berlim: Esta louca experiência vai terminar em um estrondoso fracasso. Nem mesmo o maior dos gênios poderá evitá-lo. Ele resulta naturalmente do caráter irrealizável da empreitada, nas condições dadas, com os meios utilizados. Quanto maior é o projeto, maior a violência para obter resultados, que só poderiam provir de uma lâmpada mágica, como a de Aladim. É esse desconhecimento da impossibilidade histórica de se construir o socialismo através de vanguardas iluminadas, hoje encarnadas em líderes portadores de um duvidoso populismo, muitas vezes atentando contra a vontade dos próprios trabalhadores, que explica o apoio dado por certa esquerda ao regime de Nicolas Maduro. Não compreenderam que, para Marx, a democracia aparece, ao mesmo tempo, como ponto de partida, a forma constante e o objetivo último do socialismo. Ela não pode ser definida como uma simples exigência do socialismo. Deve ser considerada sua própria essência.

2 - Nem Maduro nem Guiadó

Se as teses do fundador do materialismo histórico ganharam ampla aceitação junto às massas exploradas, também suscitaram forte hostilidade das classes dominantes. Estas, auxiliadas pela


Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 23

mais crassa ignorância a respeito do marxismo, conseguiram associá-lo à ditadura, à opressão e ao atraso econômico, social e político. Quer dizer, precisamente ao oposto do que ele representa. Para isso, contaram — e contam ainda — com a colaboração ativa de setores ponderáveis da esquerda, que apostaram e perderam na identificação do socialismo marxiano com o mal denominado socialismo real, soterrado pela sua intrínseca obsolescência e pela insurreição vitoriosa dos que viviam sob seu jugo. Em contraste com esse regime — uma combinação pouco virtuosa de economia estatizada com o poder político exercido por um partido identificado com os interesses da casta dirigente, a nomenklatura —, Marx anunciava, desde a publicação do Manifesto Comunista, uma sociedade na qual, abolida a propriedade privada dos grandes meios de produção, seriam eles geridos pelos próprios trabalhadores. Nunca por uma burocracia nem por um partido único, tal como ocorreu na extinta União Soviética, conformando um sistema em tudo oposto aos interesses do proletariado, com os trabalhadores explorados economicamente e privados dos direitos de reivindicar pela ditadura de um partido. Pior do que nas democracias liberais capitalistas, pois, nestas, sob a égide das garantias constitucionais, o trabalhador pode lutar por melhorias. As influências das concepções leninistas, justificadoras do partido de vanguarda, e das restrições às liberdades democráticas, que moldaram o finado socialismo real, ainda que declinantes, mostram o seu vigor, à medida que regimes como o da Venezuela, que degeneraram em uma ditadura bonapartista e militarista, continuam a merecer sustentação da maioria das lideranças e dos partidos de esquerda. De há muito opino que a cumplicidade ativa de partidos como o PT com o governo de Maduro é prenhe de consequências funestas. No plano econômico, à medida que dá fôlego a uma economia condenada à falência, como confirma a sua recente evolução. No plano político, por desacreditar a esquerda com seu endosso a regime ditatorial que se volta contra o seu próprio povo para se manter no poder. Em artigo escrito sobre Kautsky, em junho de 2017, registrei, criticamente, exemplar posicionamento a esse respeito, da lavra de Rui Falcão, então presidente do PT. Este se solidarizou com o regime de Maduro, “que enfrenta com coragem as tentativas golpistas, em nome de dois milhões de filiados ao PT” (SETTI, 2017).

Na esteira desse pronunciamento, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, compareceu, em 10 de janeiro de 2019, à posse de Nicolás Maduro, fazendo questão de reconhecer a legitimidade de sua eleição (SEABRA, 2019). Em contraponto a essa estratégia suicida, existem socialistas de indiscutível respeitabilidade, como o ex-presidente do Uruguai, José Mojica, e Catarina Martins, líder do Bloco de Esquerda, em Portugal, que, já há algum tempo, denunciam “a deriva autoritária” de Maduro (ESQUERDA. NET, 1919). E como Jean Wyllis, no Brasil, para quem “apoiar Maduro é erro de avaliação da esquerda”. Não adianta apenas alegar que o “imperialismo americano” quer derrubar Maduro. Isso não anula a necessidade de se reconhecer o esgarçamento da democracia venezuelana, buscando-se, simultaneamente, costurar um entendimento nacional que evite a guerra civil na Venezuela. Nem Maduro nem Guaidó!

Notas ESQUERDA.NET. Bloco não acompanha nem Maduro nem Guaidó. Acesso 6 fev. 2019. KAUTSKY, Karl. Terrorisme et communisme. Paris: Ed. Jacques Povolovsky, 1919. ________ Le bolchevisme dans l’impasse. Paris: Presses Universitaires de France, 2ª Ed., 1982. SEABRA, Catia. Gleisi diz que eleição de Maduro é legítima e constitucional. Folha de S.Paulo, São Paulo, 10.1.2019. SETTI, Ricardo. Presidente do PT diz, na Venezuela, que o povo brasileiro apoia o regime bolivariano. Site Jusbrasil. Acesso em: 11 jun. 2017. WYLLS, Jean. Apoiar Mauro é erro de avaliação da esquerda, diz Wylls. Site Brasil. Acesso em: 16 fev. 2019.

Rubens Pinto Lyra é Professor Emérito da UFPB. Doutor em Direito Público e Ciência Política (Universidade de Nancy, França). rubelyra@uol.com. br


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.