Revista Jornalismo e Cidadania 30

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Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 1 Jornalismo Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade | PPGCOM/UFPE | ISSN 2526-2440 | e cidadania nº 30| Maio/Junho de 2019

JORNALISMO E CIDADANIA

Expediente

Editor Geral | Heitor Rocha professor PPGCOM/UFPE

Editor Executivo | Ivo Henrique Dantas doutorando PPGCOM/UFPE

Editor Internacional | Marcos Costa Lima

Pós-Graduação em Ciência Política/UFPE

Revisão | Laís Ferreira / Bruno Marinho

Mestre em Comunicação / Mestrando em Comunica;áo

Articulistas |

PROSA REAL

Alexandre Zarate Maciel

Doutor em Comunicação

MÍDIA ALTERNATIVA

Xenya Bucchioni

Doutora PPGCOM/UFPE

NO BALANÇO DA REDE

Ivo Henrique Dantas doutorando PPGCOM/UFPE

JORNALISMO E POLÍTICA

Laís Ferreira

Mestre em Comunicação

JORNALISMO AMBIENTAL

Robério Daniel da Silva Coutinho mestre em Comunicação UFPE

JORNALISMO INDEPENDENTE

Karolina Calado doutoranda PPGCOM/UFPE

MÍDIA FORA DO ARMÁRIO

Rui Caeiro

Doutorando em Comunicação

MUDE O CANAL

Ticianne Perdigão doutoranda PPGCOM/UFPE

COMUNICAÇÃO NA WEB

Ana Célia de Sá

Doutoranda em Comunicação UFPE

NA TELA DA TV

Mariana Banja

Mestre em Comunicação

Alunos Voluntários | Lucyanna Maria de Souza Melo

Nathália Carvalho Advíncula

Matheus Henrique dos Santos Ramos

Colaboradores |

Alfredo Vizeu Professor PPGCOM - UFPE

Túlio Velho Barreto Fundação Joaquim Nabuco

Gustavo Ferreira da Costa Lima Pós-Graduação em Sociologia/UFPB

Anabela Gradim Universidade da Beira Interior - Portugal

Ada Cristina Machado Silveira Professora da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM

Antonio Jucá Filho Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco – FUNDAJ

Auríbio Farias Conceição Professor do Departamento de Letras e Humanidades – DLH/ UEPB

Leonardo Souza Ramos

Professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC –Minas Gerais e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Potências Médias (GPPM)

Rubens Pinto Lyra

Professor do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas  da UFPB

Editorial

Prosa Real

Comunicação na Web

Opinião | Pedro de Souza

Opinião | Pedro Bocayuva

Opinião | Berta Marson Opinião | Arturo Guillén

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Índice
Opinião | Joyce Helena da Silva Opinião |Marcos Costa Lima Opinião |Robério Coutinho Opinião |Rubens Pinto Lyra Opinião |Samuel Pinheiro | 3 | 4 | 6 | 8 | 10 | 12 | 14 | 16 | 18 | 20 | 22 | 24 Acesse: facebook.com/ Jornalismoecidadania | issuu.com/revistajornalismoecidadania

Editorial

Por Heitor Rocha

Com a confirmação, pelo próprio Sérgio Moro, da autenticidade da conversa eletrônica registrada entre o então juiz a quem estava atribuído o julgamento do ex-presidente Lula no caso do triplex do Guarujá e os procuradores encarregados da acusação, a questão do vazamento do material não pode ser comparada com o confesso crime de prevaricação que mudou completamente o cenário da campanha eleitoral de 2018, fraudando a vontade popular ao construir as condições estratégicas para a exclusão do pleito presidencial do candidato com maioria esmagadora das intenções de voto.

Assim, não se pode deixar de considerar o conluio do magistrado comandando a organização criminosa junto à acusação dos procuradores da Lava Jato, inclusive, instruindo a articulação com o ministro Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF), e a cobertura da Rede Globo, não como uma simples irregularidade, conforme o depoimento do atual ministro da Justiça no Congresso Nacional, mas como um gravíssimo crime cometido contra a vontade popular eleitoral, que compromete a condição da República do Brasil como Estado de Direito Democrático.

Uma evidência contundente da prevaricação de Sérgio Moro foi apresentada pelo ex-advogado da Odebrecht Rodrigo Taclan Durán, ao acusar advogados amigos do ministro da Justiça de pedirem dinheiro em troca de benefícios na Operação Lava Jato. Durán anunciou que irá ingressar com uma ação judicial contra o ex-juiz pelo seu depoimento no Senado considerando a sua denúncia fantasiosa e o acusando de ser um “lavador profissional de dinheiro”.

Para contradizer as alegações de Sérgio Moro, o advogado Sebastian Suarez garantiu que documentos bancários encaminhados ao Ministério Público da Suíça comprovam que, no dia 14 de julho de 2016, Tacla Durán realizou um pagamento de US$ 612 mil — feito por meio de um banco em Genebra — para a conta do advogado Marlus Arn, em uma conta do Banco Paulista.

Diante de tamanho comprometimento do conceito da magistratura, um grupo de 30 juízes federais pediu a expulsão do ex-juiz Sérgio Moro da Associação dos Juízes Federais do Brasil, por entender que as suas condutas “são totalmente contrárias aos princípios éticos e às regras jurídicas que devem reger a atuação de um magistrado, pois, quando um juiz atua de forma parcial, chegando ao ponto de confundir sua atuação com a do órgão acusador, a credibilidade do Poder Judiciário é posta em xeque”.

Para a filósofa húngara Ágnes Heller, o processo que vem se desenrolando no Brasil, propiciado pela prevaricação da investigação da Lava Jato e pela manipulação midi-

ática de algoritmos e fake news, é parte de um movimento que expressa “uma nova forma de tirania que se espalha hoje pelo mundo, onde um tirano é eleito, depois reeleito e novamente reeleito”. O fenômeno de eleição e reeleição de líderes autoritários — adverte Ágnes Heller — está levando a uma “refeudalização” progressiva dos estados. “Falar sobre esses regimes como se falava do nazismo ou do stalinismo é não perceber o que está acontecendo, nem compreender os seus perigos”. Segundo a filósofa, nesse novo regime, “o poder transforma em renda o que dependia anteriormente do lucro redistribuído pelo capitalismo, e cria sua própria oligarquia”.

Na contramão dos avanços da extrema direita e do agravamento das desigualdades sociais promovidas pela economia capitalista, o Papa Francisco, em recente reunião da Cúpula de Juízes Pan-Americanos sobre Direitos Sociais e Doutrinas Franciscanas, lamentou a “injustiça social naturalizada”, algo considerado natural e, portanto, invisível, apenas lembrado quando se faz “algum barulho nas ruas”, protestos rapidamente identificados como perigosos.

“Um sistema de política econômica, para o desenvolvimento saudável, precisa garantir que a democracia não é apenas nominal, mas pode ser incorporada em ações concretas para garantir a dignidade de todos os seus habitantes sob a lógica do bem comum, em um apelo à solidariedade e uma opção preferencial pelos pobres. Isso requer esforços das mais altas autoridades, e certamente do Judiciário, para reduzir a distância entre o reconhecimento legal e a prática. Não há democracia com fome, nem desenvolvimento com pobreza, nem justiça na desigualdade. Quantas vezes a igualdade nominal de muitas de nossas afirmações e ações não faz nada além de ocultar e reproduzir uma desigualdade real e subjacente e revela que essa é uma possível ordem fictícia. A economia dos jornais, o adjetivo democracia e a multimídia concentrada geram uma bolha que condiciona todos os olhos e opções do nascer ao pôr do sol”, disse o Papa Francisco em seu discurso.

Heitor Costa Lima da Rocha, Editor Geral da Revista Jornalismo e Cidadania, é professor do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.

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Prosa Real

Livro-reportagem, jornalismo e contexto

A voz dos autores: a importância e o dilema dos temas dos livrosreportagem

Jornalistas escritores de livros-reportagem entrevistados pelo autor desta coluna (MACIEL, 2018) trataram da questão crucial dos temas dos livros-reportagem. Mesmo concordando que a escolha do assunto central é fator essencial para o jornalista conseguir tanto um contrato com uma editora quanto uma boa repercussão junto ao público, Lira Neto, biógrafo de Getúlio Vargas e padre Cícero, entre outros, pondera que esse foco apresenta os seus perigos. “Tem personagens e histórias maravilhosas que talvez, por não serem tão conhecidas, ficam condenadas a continuarem desconhecidas, no limbo.” Ele cita um exemplo que, em sua opinião, renderia um ótimo livro, mas que pode ser visto com desconfiança comercial por parte de uma editora: o episódio do Caldeirão do Santa Cruz do Deserto, no Crato, Ceará, nos anos 1930. Trata-se de “uma segunda Canudos”, com a destruição total pelo Exército de uma comunidade que tinha a perspectiva da propriedade coletiva da terra. “O tema faz diferença para o bem e para o mal”, pondera o escritor. Já Laurentino Gomes, jornalista escritor de sucesso com os seus livros de divulgação da história, como 1808, pondera que o mercado editorial está dominado pela espiritualidade, mas há saídas. “Tem de tudo. E a história é um segmento no qual o jornalista leva vantagem, porque é o historiador do dia a dia, já está habituado a trabalhar com esta área.” Para o publisher da Companhia das Letras, Otávio Costa, a aposta das editoras em livros-reportagem com assuntos ou personagens biografados de interesse mais amplo tem boa aceitação do mercado. “E, em momentos de crise, também desperta interesse tanto pelo presente como pela história. Acho que desperta um interesse pelo real, pelo que se passa, pelo concreto.” Na sua ótica, os li -

vros-reportagem “ajudam as pessoas a tentar entender por que chegamos aqui” quando as crises políticas, econômicas e sociais embaçam o sentido de nação. “Momentos de crise geram boas histórias, além de interesse do público por essas histórias”, ressalta o editor.

O autor e os seus livros: Caco Barcellos e os processos judiciais de Rota 66

A partir desta edição da coluna, traremos relatos específicos de jornalistas escritores de livros-reportagem contando, a cada mês, bastidores de algum livro clássico de sua autoria. Todos os depoimentos são provenientes de entrevistas em profundidade realizadas para a tese desenvolvida por este colunista (MACIEL, 2018). A his -

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Divulgação

tória de hoje é a relação do jornalista e escritor Caco Barcellos com as consequências da publicação do livro Rota 66. Como foi acordado antes com a editora Record, Caco Barcellos teve que se defender sozinho, arcando com todos os custos de 18 ações judiciais movidas por policiais supostamente assassinos contra as denúncias contidas no seu livro. O juiz propôs acordos entre as partes em processos que chegaram a pedir um milhão de reais de ação indenizatória, mas Caco foi irredutível. “‘Excelência, se propuser acordo de cinquenta centavos eu não pago!’ Imagine, eles podem pegar o meu dinheiro, um real que seja, e comprar mais munição para continuar matando. Eu fiz esse livro com a esperança de que eles deixem de matar.” Diante dessa decisão, Caco Barcellos gastou bastante com advogados, mas, em compensação, o livro também vendeu muito. O escritor conta que tinha guardado uma reserva para comprar uma casa de praia, um sonho do seu pai. No entanto, teve de utilizar todas as economias para custear os processos. “Mas o livro continua vendendo. Fiz questão de comprar a casa da praia quando o dinheiro voltou. Eu pensei: ‘Caramba, se eu não tivesse feito o Rota e tivesse feito casa na praia, ela seria um prédio cheio de tijolo e as prateleiras da biblioteca vazias.”’ Caco Barcellos concorda que, muitas vezes, devido à força do tema, a repercussão vai além das estratégias de divulgação criadas para o livro. “Rota 66 vende até hoje, muito mais. É adotado em várias escolas de periferia. E também adotado por escolas de Polícia Militar em aulas de Direitos Humanos.”

Falando com o leitor: Lira Neto e a importância dos colaboradores

Nesta edição da coluna, estreamos uma seção para revelar como os jornalistas escritores de livros-reportagem se dirigem aos seus leitores em espaços específicos do próprio livro, como os agradecimentos finais, prólogos e epílogos. Para começar, o assunto é a importância dos colaboradores nos livros-reportagem. Embora possa parecer, escrever uma obra desse gênero não é um trabalho tão solitário. Tomemos, por exemplo, a produção da biografia em três volumes Getúlio, de Lira Neto. No posfácio da primeira edição, intitulado “Este livro”, o jornalista afirma que “uma biografia como esta é, essencialmente, uma obra coletiva” (NETO, 2012, p. 530). Ele informa, em seguida, que contou com a “cooperação e o trabalho árduo de pesquisadores e colegas jornalistas”, que teriam auxiliado na descoberta de novas fontes e tido “paciência

quase beneditina de remexer em papéis empoeirados e nos fundos dos arquivos”. No posfácio, Lira Neto (2012, p. 529) agradece à Companhia das Letras por ter aceitado o desafio de que a obra Getúlio fosse repartida em três volumes, o que envolve uma logística maior de publicidade para cada edição, e dá pistas sobre como conseguiu aporte financeiro para a empreitada: “A editora cuidou para que eu usufruísse condições objetivas para me dedicar a esse trabalho em regime de dedicação exclusiva”. Ele conta que a produtora RT Features adquiriu previamente os direitos de adaptação para a TV e o cinema de “uma obra que, até aquele momento, existia apenas na minha intenção e no meu compromisso com o projeto anunciado”. Lira Neto (2012, p. 531) demonstra gratidão, ainda, à atenção de dois “amigos-irmãos” a quem “venho atazanando a paciência, exigindo que leiam cada linha do que escrevo antes de liberar os originais à editora”. Ou seja, sua obra não existiria sem uma série de colaboradores e acordos.

Referências:

BARCELLOS, Caco. Rota 66: a história da polícia que mata. São Paulo: Globo, 1997.

GOMES, Laurentino. 1808: como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil. São Paulo: Planeta, 2007.

MACIEL, Alexandre Zarate. Narradores do contemporâneo: jornalistas escritores e o livro-reportagem no Brasil. Recife, 2018. Tese (Doutorado em Comunicação)-Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Disponível em: https:// repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/29836/1/ TESE%20Alexandre%20Zarate%20Maciel.pdf

NETO, Getúlio (1882-1930): dos anos de formação à conquista do poder. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Elaborada pelo professor doutor do curso de Jornalismo da UFMA, campus de Imperatriz, Alexandre Zarate Maciel, a coluna Prosa Real traz, todos os meses, uma perspectiva dos estudos acadêmicos sobre a área do livro-reportagem e também um olhar sobre o mercado editorial para esse tipo de produto, os principais autores, títulos e a visão do leitor.

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Comunicação na Web

Jornalismo, Sociedade e Internet

Multimidialidade no jornalismo on-line: questões técnicas e humanas

Amultimidialidade é um dos principais atributos da produção noticiosa na web. Embora não seja uma criação da WWW, a multimidialidade ganhou novo fôlego com o desenvolvimento dessa tecnologia. “O recurso ao hipertexto foi potenciado, ao mesmo tempo que se simplificou precisamente a apresentação simultânea de vários tipos de elementos multimédia. Face às limitações de multimedialidade dos meios analógicos anteriores, a Web oferece uma plataforma de enorme versatilidade para a integração de formatos textuais, gráficos e audiovisuais. Não é, portanto, de estranhar que após a irrupção da internet o conceito de jornalismo multimédia tenha alcançado especial

protagonismo. De facto, graças à Web multiplicaram-se as possibilidades para o crescimento da narrativa multimédia. Não obstante, esta constatação não nos deve conduzir ao equívoco de considerarmos a multimedialidade como património exclusivo da internet” (SALAVERRÍA, 2014, p. 32).

Potencializada pela digitalização e pela convergência midiática, a combinação de plataformas e linguagens remete à construção de produtos jornalísticos mais aprofundados e qualificados; à renovação de rotinas de trabalho nas redações, atreladas à instantaneidade e ao uso de tecnologias digitais conectadas; e à remodelação do próprio profissional, tornado polivalente e multitarefa. Para aproveitar todas as possibilidades na composição da narrativa multimídia, o comunicador tem à disposição atualmente oito elementos distintos, segundo Salaverría (2014): 1) texto; 2) fotografia; 3) gráficos, iconografia e ilustrações estáticas; 4) vídeo; 5) animação digital; 6) discurso oral; 7) música e efeitos sonoros;

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Pixabay

8) vibração (item aplicado particularmente a dispositivos móveis, como os smartphones, que literalmente vibram para emissão de avisos). Cada um deles responde a demandas comunicativas diversas, e, quando harmonizados, eles são capazes de promover uma comunicação efetiva entre os partícipes.

O uso articulado dos elementos é primordial para o êxito da informação multimídia. A interligação entre eles torna o conteúdo atrativo e inteligível. “Ora, a sintaxe multimédia permite, justamente, desenvolver um critério para sabermos quais os ingredientes comunicativos que são compatíveis entre si. Neste sentido, talvez seja conveniente indicar os critérios que facilitam a correta coordenação de elementos multimédia na composição de uma informação: 1) compatibilidade, 2) complementaridade, 3) ausência de redundância, 4) hierarquização, 5) ponderação e 6) adaptação” (SALAVERRÍA, 2014, p. 40).

Por compatibilidade entende-se o uso de elementos cujo acompanhamento simultâneo seja feito sem esforços pelo público. Na complementaridade, os elementos devem ser compatíveis e se enriquecerem mutuamente. Já a ausência de redundância evita a repetição excessiva, que aborrece o público. A hierarquização atribui o protagonismo a algum elemento (sem necessariamente eliminar os demais), determinando a opção mais adequada à difusão de um conteúdo. Quanto à ponderação, cabe ao autor do produto multimídia conscientizar-se sobre as limitações dos utilizadores ligadas a fatores como tempo, espaço, qualidade de conexão e uso de aplicações para visualização dos elementos. Por fim, a adaptação significa o respeito aos parâmetros do meio digital determinados pela arquitetura hipertextual da publicação, garantindo uma melhor recepção por parte dos utilizadores.

Percebe-se, assim, que a composição do produto multimidiático requer planejamento, desde a concepção até a finalização, para a construção de materiais inovadores, que valorizem as peculiaridades da Web, como a dilatação espacial, a cultura do tempo real, a não linearidade viabilizada pelo hiperlink, a produção colaborativa e o conhecimento coletivo. Para isso, é indispensável enxergar o potencial de cada recurso e evitar a justaposição básica, que apenas apresenta materiais de plataformas diferentes nos mesmos tempo e espaço, ou, ainda, a sobreposição, que desarticula o roteiro informativo, dificultando a fruição.

Para atingir os níveis máximos da produção multimídia, no entanto, é preciso ir além da técnica, já que o jornalismo é, em sua essência, uma

atividade social. Por isso, a formação profissional, a estrutura das empresas de comunicação, o enxugamento da mão de obra nas redações e a consequente sobrecarga de atividades, a aceleração do ritmo produtivo em busca da instantaneidade e a dinâmica de difusão noticiosa em fluxo contínuo são fatores que interferem na qualidade da produção jornalística cotidiana, numa condução à superficialidade.

Cabe uma reflexão sobre a prática do webjornalismo multimídia no cenário atual. A multimidialidade on-line renova os processos comunicativos, tornando-os mais dinâmicos, multifacetados, interativos e participativos, motivos pelos quais deve ser estimulada a sua aplicação. Além disso, são observados ganhos qualitativos para a notícia em si, traduzidos na possibilidade de aprofundamento e contextualização dos fatos por meio da distribuição informativa em camadas hipermidiáticas com formatos diversos, como textos escritos de diferentes gêneros, fotografias, vídeos, infográficos, entre outros elementos.

Porém, a sua viabilidade deve acolher questões não apenas de ordem técnica, mas também humana, uma vez que um sistema midiático e comunicacional compreende a combinação das duas facetas. É sempre importante fugir do determinismo tecnológico e ressaltar que a tecnologia viabiliza a ação do homem, mas é o homem quem guia os avanços tecnológicos segundo as suas necessidades e a forma de uso das ferramentas criadas.

Referências:

SALAVERRÍA, Ramón. Multimedialidade: informar para cinco sentidos. Tradução de Hélder Prior.

IN: CANAVILHAS, João (Org.). Webjornalismo: 7 carater í sticas que marcam a diferença. Covilhã: LabCom, 2014. [e-book]. Disponível em: <http:// www.labcom-ifp.ubi.pt/ficheiros/20141204-201404_ webjornalismo_jcanavilhas.pdf>. Acesso em: 25 dez. 2017.

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Célia de Sá é jornalista e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (PPGCOM-UFPE).
Ana

Opinião

Alternativas ao desenvolvimento e políticas públicas na América do Sul

Por Pedro de Souza

“Os índios não podem impedir a passagem do progresso (...) dentro de 10 a 20 anos, não haverá mais índios no Brasil.” – Maurício Rangel Reis, ministro do Interior do governo Geisel, janeiro de 1976 (apud Relatório da Comissão Nacional da Verdade, vol. II, pág. 251).

Nestes tempos de chumbo, em que até as palavras são traiçoeiras, é importante a publicação e a crítica de obras como “Descolonizar o Imaginário – Debates sobre o pós-extrativismo e alternativas ao desenvolvimento”, da Fundação Rosa Luxemburgo, publicada pela editora Elefante. Rosa Luxemburgo (19711919), é bom lembrar, foi assassinada, abatida à bala depois de torturada, por milicianos ao serviço do governo alemão, 100 anos atrás, em Berlim. Tinha 47 anos e deixou uma obra importante, até hoje estudada e venerada por intelectuais marxistas.

“Descolonizar o Imaginário” pretende estabelecer um patamar crítico em relação ao passado recente das lutas pela autonomia dos povos da América do Sul, na sua maioria povos indígenas ou originários, numa perspectiva pós-extrativista, ou seja, em que o extrativismo (desmatamento, criação de gado, mineração, retenção ou desvio de cursos de água, poluição) esteja controlado e não continue vitimando as populações mais frágeis, que devem passar a ser o sujeito do seu futuro.

Os primeiros dez artigos discutem questões setoriais e também teóricas sobre a situação das lutas sociais na região andina, de forma pertinente e informada, com aquela dose de utopia sem a qual o pensamento gira sobre si mesmo, sem condições de esclarecer as situações contraditórias que essas lutas sempre defrontam. Os três artigos finais são inéditos. O primeiro, de Verena Glass, dá um panorama sobre os abusos da política “desenvolvimentista” no Brasil, que, segundo a Comissão Nacional da Verdade, entre 1946 e 1988, vitimou comprovadamente 8.350 indígenas “em decorrência apenas da ação direta de agentes governamentais ou da sua

omissão”. Número que atingiria talvez as dezenas ou centenas de milhares, se fosse possível apurar todos os casos em que as populações indígenas foram abandonadas ou deslocadas sem nenhuma espécie de apoio alimentar ou sanitário, ou vítimas de genocídio.

O artigo seguinte — “A Natureza como sujeito de direitos – A proteção do Rio Xingu em face da construção de Belo Monte” — debruça-se especialmente sobre a barragem de Belo Monte, e é assinado pelo procurador Felício de Araújo Pontes Júnior e pelo professor Lucivaldo Vasconcelos Barros, ambos do Pará e veteranos na luta contra a construção de Belo Monte. O terceiro artigo inédito fecha a reflexão sobre a mudança de paradigma do desenvolvimento para as alternativas de autonomia.

Miriam Lang esclarece na sua introdução: “Portanto, não se trata de apostar em ‘desenvolvimentos’ alternativos, e sim de construir alternativas ao desenvolvimento, rechaçando, como ponto de partida, o rótulo de ‘subdesenvolvidos’; e reconhecendo, recuperando os próprios saberes e as múltiplas cosmovisões que existem. Trata-se de reconhecer e reconstruir uma diversidade de modos de vida — no campo e nas cidades — diante da expansão do modo de vida imperial.”.

Na ressaca dos recentes governos de esquerda “progressista” na América do Sul, que cedo abandonaram as anunciadas intenções pós-extrativistas do “bem viver” para continuar praticando um desenvolvimentismo brutal, a obra parte do abandono do conceito de desenvolvimentismo, para procurar “alternativas de desenvolvimento”. Em tese, podemos concordar com essa orientação, mas há que distinguir claramente situações diversas no tempo e no espaço, com o que os autores certamente concordariam.

Enquanto, em muitos países andinos, temos uma situação cindida entre uma população mais ou menos próspera, descendente de colonizadores, urbana, e

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algumas poucas etnias autóctones formando a massa da população explorada, no Brasil a situação é outra. Estamos em face de um país de dimensões continentais onde, de um lado, temos uma maioria de população urbana socialmente muito diversificada, com um sério problema de racismo, e, do outro, uma minoria rural com mais de 300 etnias muito fragilizadas, de populações ribeirinhas, assentamentos de agricultura de subsistência, quilombos etc. Ou seja, a grande massa dos explorados está nas zonas urbanas, e não no interior, e a minoria que vive no campo é também muito diversificada. Por outro lado, é necessário levar em conta a evolução dos conceitos no tempo. Limitando-nos às situações recentes, a ação de um ministro do interior como Rangel Reis, um desenvolvimentista da ditadura militar, que profere uma frase como a que foi citada em epígrafe, qualquer que seja o seu contexto, não pode ser comparada com as práticas do período da democracia, sobretudo dos governos Lula, quando se criaram inúmeras reservas e a situação das populações indígenas e pobres melhorou de forma substancial. É claro que, nos governos Lula, houve problemas, e graves ambiguidades que se traduziram, por exemplo, na manutenção de dois ministérios, um da Agricultura e outro do Desenvolvimento Rural, que não levou avante uma verdadeira reforma agrária. É claro que muitas dessas conquistas se revelaram frágeis e foram aniquiladas depois do golpe que depôs Dilma Rousseff, ou mesmo antes. Mas não podemos confundir o desenvolvimentismo dos governos democráticos, respeitando uma Constituição onde constam avanços significativos dos direitos humanos, com o desenvolvimentismo da ditadura, ou do atual governo pós-democrático, cujas políticas são de caráter colonial muito acentuado, desrespeitando qualquer instituição ou interesse que não lhe sirva.

Na realidade, dada a fragilidade dessas populações minoritárias indígenas, quilombolas e outras, não vemos como elas possam prescindir, a médio prazo, de políticas públicas visando a defesa dos seus direitos. Ora, a intervenção do Estado na economia, mas também na saúde, na educação, em todo o leque da ação social, é parte integrante do desenvolvimentismo, a que se opõe o pretenso liberalismo, com as suas políticas de livre mercado, a serviço do

mundo da finança e das minorias rentistas. Por outro lado, se a situação nas zonas rurais pode eventualmente permitir a eclosão de culturas alternativas, nas zonas urbanas, onde se concentra hoje a maioria da população brasileira, uma dose mínima de realismo nos leva a considerar que a questão se põe de forma muito diversa, que não podemos detalhar aqui, mas que nos obrigaria a concluir que aí o que é preciso é mais, não menos, Estado. E, sobretudo melhor, outro Estado (ver pág. 354 do interessante artigo 10 “O Estado como instrumento, o Estado como impedimento”), de modo que se possa sair do círculo vicioso entre igrejas, milícias, polícia, crime e tráfico. Como aconteceu no Rio de Janeiro, com graves incidências na política federal. Essas observações não retiram interesse à obra. É fundamental discutir os caminhos que tomaremos. Daí depende o futuro das populações indígenas, e desvalidas de um modo geral, mas também o das zonas urbanas; na realidade, o futuro do planeta — no contexto do aquecimento global. Não será a sombra de meia dúzia de personagens sinistros que alterará essa realidade.

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Pedro de Souza é Editor, pesquisador e exsuperintendente executivo do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento.

Opinião

Por que a extrema direita ataca a Universidade Pública? (2)

No Brasil, a crítica aos padrões de desenvolvimento excludente e ao processo de modernização autoritária colocou, historicamente, o ensino básico de qualidade como a principal ferramenta para alavancar a sociedade democrática e a qualidade de vida a partir do processo constituinte. A nossa transição democrática foi sendo atravessada por forças de retrocesso que defendem a violência, o sofrimento e a dor como formas de controle para a manutenção do desenvolvimento desigual e da acumulação primitiva permanente.

Como está sendo operado esse processo? Como tem sido possível produzir um cenário em que o discurso do poder expressa uma vontade marcada pelo embrutecimento e o apelo para ações de truculência, crueldade e bestialidade, com a criminalização do protesto social? Como chegamos a um quadro em que se defende a tortura como uma tecnologia necessária para a garantia da lei e da ordem? O genocídio da juventude negra e das periferias acaba sendo o resultado das ações de segregação, de desigualdade, de opressão e da seleção darwinista que define quem pode viver e quem deve morrer.

O discurso dos movimentos de direita se constrói como narrativa de ódio. A narrativa dominante é entendida como um instrumento e um modo de produção da pós-verdade, ou de mensagens e ações capazes de romper com todos os vínculos entre a consciência, os valores, as práticas sociais presentes na reprodução social, tendo por centro uma vontade de destruição do que possa representar o valor da cultura. Os aparelhos produtores de mensagens que fortalecem sentimentos rebaixados, paixões perversas, ganham as Igrejas, as mídias empresariais, os funcionários de aparatos judiciais e policiais, as classes médias e parcelas do povo mobilizadas pelo desejo que se alimenta do recalque e do ressentimento contra os que supostamente “custam caro, não produzem, são indolentes e roubam”.

O movimento de valorização da violência punitiva, do direito de matar, a apologia ao autoritarismo, a afinidade com o fascismo e o uso do nome de Deus fazem do aparato de governo um instrumento de seleção dos funcionários mais subservientes, dos homens e mulheres mais agressivos, das personalidades autoritárias que se pensam salvadoras da pátria. Desse modo, preparam suas cruzadas judiciais e policiais. O autoritarismo ganha os contornos de uma saída para a qual não pode existir alternativa, só existe uma verdade, um caminho, o uno contra o múltiplo, o totalitário contra a totalidade. Mas, para

que não haja alternativa, é preciso desenhar um modo de ação, que longe de ser neutro, apolítico e sem ideologia, é a forma mais radical, dogmática e forçada de construção de uma estratégia ideológica, tendo por base um discurso que coloca como centro do embate as políticas voltadas para a afirmação de valores, atacando a diversidade, os movimentos sociais e a universidade.

A forma jurídica do modelo “lava a jato”, as tropas de choque de igrejas e milícias, a organização de bases em aparelhos com poder de ação policial-militar e jurídico-punitiva, são as forças sociais do movimento que se organiza através do discurso que criminaliza e justifica as ações de exceção, as operações de guerra, as chacinas e as perseguições pessoais de todo tipo. Esse quadro de fascistização social é liderado pelo movimento que parte diretamente da liderança que definiu a forma, o estilo e a mensagem direta que rompeu com os velamentos da tolerância de tipo liberal. A convocação para uma guerra sem trégua, usando a agressividade física e simbólica nas instituições educativas e na relação com as manifestações e produções artísticas e culturais, se apoia na justificativa que nasce da montagem ficcional do discurso da guerra interna. A partir da articulação de uma transversalidade do discurso autoritário e do individualismo, apoiando-se na ligação entre os discursos capitalista, religioso, sexista, racista e punitivo, unificados nos dispositivos e nas redes de comunicação das corporações. Os grupos e movimentos de extrema direita se identificam com a lógica e a vontade desse poder possessivo e seletivo, afirmando a necessidade do primado da força, da necropolítica, do “abate” e da tortura. No Brasil, foi afirmado e reafirmado o papel de torturadores e golpistas como modo de purificar e salvar a “pátria” ameaçada pelo movimento das reformas sociais de base, ao longo da história. A cada ciclo de vitória dessas forças, o país se torna mais desigual e violento, sem completar as tarefas de democratização.

O atual governo nasceu de um movimento que combinou formas distintas de exceção, dentro do que hoje se denomina guerra híbrida. No centro desse processo, está o reforço do discurso sobre o uso da força, a lógica possessiva e proprietária, e o direito de impor a vontade através da violência intensificada por regimes de visibilidade, que defendem os banhos de sangue sem máscaras. As novas intensidades rompem com as políticas que apoiavam, nos últimos anos, o processo do pensamento autônomo, do reforço da produção de saberes, o movimento de descolonização e transformação das trajetórias de ciência e

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tecnologia apoiando visões mais marcadamente emancipatórias, como veio ocorrendo no Brasil. Processo de invenção de direitos e criação de políticas apoiadas nas lutas dos trabalhadores, nas reivindicações das mulheres, dos jovens, da população negra, dos LGBTs, das populações e comunidades tradicionais a partir de novas interrogações e plataformas das ecologias ambiental, social e mental que projetam uma nova plataforma de desenvolvimento com justiça social.

Mobilidade social e guerra híbrida. Como a mobilidade social no Brasil ganhou forma e veio gerando efeitos em cadeia que ameaçaram as forças da elite do atraso? Onde a reflexão e a disputa promoveram mudanças quantitativas e qualitativas que afetam os sistemas e subsistemas de dominação, seleção, classificação e distinção que articulam classe, status e habitus? Onde a forma e o conteúdo das políticas mudaram drasticamente a composição social, étnica e de gênero? O que fez avançar uma experimentação de novos direitos, relações e combinações capazes de afetar o conjunto dos modos de reprodução da vida social, a vida cotidiana, a representação e os saberes, afetando as hierarquias e segregações tradicionais com a quebra do monopólio sobre um espaço estratégico? Acho que podemos afirmar que foi nas políticas de cultura, nos territórios periféricos e nas políticas de expansão de vagas e cursos no ensino superior, por força da enorme expansão da rede de universidades públicas, em especial das Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes).

Nesse quadro, a ação estratégica da extrema direita no poder passa pela desconstrução ou destruição de direitos. O seu objetivo explícito visa direcionar as ferramentas e os dispositivos da guerra híbrida, passando ao ato em matéria de perseguição e intervenção e combinando perseguição, medo, abuso de poder judiciário e policial, ações midiáticas e corte de recursos contra as universidades públicas e para atingir a população que teve acesso ao ensino superior. Dessa forma, deslocam a posição e a classificação dos professores, cientistas e pesquisadores, mulheres e homens concursados, tentando lançar a visão da “peste comunista” sobre as categorias de funcionários e servidores da educação, como se estes fossem os responsáveis pelos erros das escolhas realizadas pelas mesmas elites que a extrema direita apoia. Elites que continuam a nos governar só que, agora, tendo de lidar com a fachada do “lavajatismo”, do militarismo e do “olavismo”. Mas essa força de destruição tende a atingir todas as instituições e forças sociais que abriram espaços para a verdadeira revolução ético-moral da educação, destruindo a obra, que várias vezes ensaiamos e depois retrocedemos, de fortalecimento da educação básica. Mas, principalmente, de abrir a universidade, enquanto instrumento de geração de igualdade, de liberdade e de renda. As universidades são referências estratégicas de autonomia e soberania, espaços decisivos na construção do projeto democrático de sociedade sustentado no acesso ao conhecimento e na produção da cultura enquanto bases para um novo desen-

volvimento com justiça social.

A guerra contra a cultura e pela escola sem partido são os pretextos para destruir a mobilidade social pela educação como fator de transformação que teve na quebra do apartheid, dos muros e das cercas de acesso ao ensino superior, o instrumento mais radical de democratização. Basta ver a força e o efeito de sucesso obtido pelas classes populares nas periferias quando o ensino das humanidades e das ciências promovem efeitos de potência para a centralidade social e periférica. O processo educativo aparecia como o caminho pelo qual poderíamos inverter as prioridades e preparar o país para o século XXI. Agora vivemos o retorno a um cenário de destruição e trevas que revela a verdadeira face da crueldade, que, em vez de resgatar e melhorar as políticas públicas visa destruir as Ifes, como um dia destruíram a Universidade de Brasília e os Centros Integrados de Educação Pública (Cieps). Os ideais de Paulo Freire, Darcy Ribeiro, Milton Santos, Celso Furtado, Florestan Fernandes, Lélia Gonzalez, Regina Leite Garcia, Ana Clara Torres Ribeiro e Carmem Portinho não serão destruídos. Resistência e inovação estão juntas nas novas forças que mudaram a cara e a cor da nossa universidade fazendo avançar a unidade na diversidade que deve ser o modo de animar a vida política e cultural no Brasil.

Os grupos com função intelectual e na cultura se tornam alvos diretos, e a tomada do poder direto nas escolas, nos centros de pesquisa e nas universidades segue protocolos e repete o mesmo ódio que faz das ditaduras momentos de satisfação e elogio da pobreza intelectual e moral e da destruição. Ao final desses regimes, tudo que devemos valorizar em matéria de conquista de dignidade humana precisa ser reconstruído e a injustiça reparada, a memória restaurada e o direito de acesso ao saber resgatado como uma das mais belas conquistas das distintas formações históricas todas as vezes que a autonomia e a responsabilidade humana se tornaram um valor, em alguma forma de “Paideia”. O partido da democratização do acesso e da socialização se inscreve dentro do movimento mais radical de democratização que marca o ideário pelo qual lutaram todos e todas que consideram a universidade uma ferramenta-chave para mudar a sociedade e realizar as grandes aspirações dos povos e das nações.

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Pedro Cláudio Cunca Bocayuva é Coordenador do PPDH do Núcleo de Políticas Públicas em Direitos Humanos da UFRJ.

Opinião

Jimmy McRea: O silenciamento de uma luta territorial do povo Rama

Jimmy McRea (1968-2012) foi morto na selva que cobre o território do povo Rama, da Nicarágua. Ele foi assassinado em 20 de abril de 2012 e sepultado pela sua família e comunidade. Naquela época, Jimmy era o vice-presidente da comunidade de Bangkukuk Taik, localizada na costa caribe sul do país. Até hoje, sua morte não foi esclarecida, investigada ou divulgada na mídia nacional e internacional, de forma que enfatize o assassinato desse líder indígena que lutou pelo território de seu povo.

Depois de um dia de trabalho na floresta, quando ia encontrar sua família, foi interceptado por sete homens com facões. Antes do assassinato, o líder procurou os invasores para conversar sobre a sua presença no território. Um de seus irmãos lembra que a polícia chegou em Bangkukuk e forçou os parentes de Jimmy a denunciar o crime, mas, logo após o rápido registro dos fatos, desapareceram e nunca mais se pronunciaram sobre o assassinato do líder.

Sua família o descreve como um homem alegre, respeitoso e comprometido com as causas de seu povo. Por várias décadas, o povo Rama tem sido invadido pelo que chamam de espanhóis ou colonos oriundos das áreas rurais do Pacífico da Nicarágua, região do país conquistada pela Espanha. Os colonos invadem, com agressividade e violência, territórios indígenas nicaraguenses, gerando desmatamento e caça massiva de animais das florestas e dos rios. Se, por um lado, essas populações fogem da pobreza do Pacífico em busca de terras para a agricultura; por outro, elas se apropriam do território das populações indígenas de forma violenta, com assassinatos que ficam impunes, como o de Jimmy McRea.

A invasão de colonos armados deixou um saldo de assassinatos de muitos homens e mulheres de diferentes povos indígenas ao longo da Costa Caribe Norte e Sul da Nicarágua.. Ao contrário dos povos indígenas dessa região do país, os colonos realizam atividades que geram desmatamento nas áreas de selva para realizar atividades como agricultura e pecuária, além de uma prática de pesca massiva nos rios dos territórios originários que gera impactos devastadores nas comunidades e na segurança alimentar desses povos.

Desde que os colonos chegaram aqui, 15 anos atrás, ou provavelmente 16 ou 17 anos atrás, eles vieram cortando toda a madeira, derrubando a floresta e matando todas as espécies de animais selvagens. Hoje, estão invadindo todas nossas terras. Nosso povo já não tem mais terra onde trabalhar. Tem muitas crianças nascendo, e, como eu disse, o que é que essas crianças vão fazer? Essas crianças sequer conhecem as distintas espécies de animais que existiam aqui antes dos colonos chegarem. Como os anciãos falavam, nós éramos ricos porque tínhamos muitos animais sel-

vagens na floresta e hoje as crianças, às vezes, não conseguem ver nem um peixe porque os espanhóis estão matando os peixes e os animais. Eles colocam veneno nos rios para pegar os peixes. (Homem Rama, 2019. Tradução nossa)

Assim como o caso de Jimmy McRea do povo Rama, também se documenta a morte do líder da Nação Mayagna Elías Charles Taylor, assassinado na Reserva da Biosfera de Bosawas enquanto tentava evitar o desmatamento causado por invasores. A Aliança de Povos Indígenas e Afrodescendentes da Nicarágua (Apian) relata agressões físicas contra indígenas Rama de TikTik Kaanu e a queima de casas em Sumukaat, sem que as autoridades tenham tomado nenhuma providência contra essas violências (APIAN, 2017).

O povo Rama da Nicarágua pertence à matriz cultural Chibcha. Há uma divisão cultural no país entre os povos indígenas pertencentes a essa matriz, que inclui a região caribenha nicaraguense, e os mesoamericanos, localizados na região do Pacífico. Esse povo habita territórios com distintas características geográficas e existem seis centros populacionais Rama — Tiktik Kaanu, Indian River, Rama Cay, Sumukaat, Wiring Cay e Bangkukuk Taik —, que, juntamente com três territórios crioulos (descendentes de africanos) — Monkey Point, Graytown e Corn River —conformam o Governo Territorial Rama e Kriol (GTRK).

As separações geográficas e culturais levaram a uma divisão interna na Nicarágua e centralizaram o país tanto nas áreas urbanas do Pacífico quanto na sua capital, Manágua. A antropóloga Florence Babb (2001) dedica um capítulo a essa centralização em seu livro After the Revolution. No capítulo Managua is Nicaragua, Babb discute essa centralização perigosa, enquanto a geógrafa Doreen Massey (1987), em seu livro Nicaragua, também discute as consequências dessa centralização na compreensão da complexidade do território nacional.

A Nicarágua não é somente mestiça, pois nesse país estão os Ulwas, Sumu-Mayagna, Ramas, Chorotega-Nahua-Mangue, Cacaopera, Nahoa, Ocanxiu-Xiu-Sutiaba, Miskitu, Garifunas, Crioulos, entre outros povos que habitam territórios ancestrais e que hoje, estão em perigo (APIAN, 2017). O perigo do imaginário da não-existência e o mito da Nicarágua mestiça colocam essas populações à margem do silenciamento, tanto da violência secular como a que ocorre hoje em dia, voltada para a usurpação de seus territórios.

Na América Latina e no mundo, os povos indígenas, as suas mortes e seus territórios, pertencem a uma escala de valores que María Lugones coloca como não humano. O conceito da não humanidade habita as sociedades coloniais que hoje ocupam os espaços das áreas urbanas vestidas de “moderni-

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dade”, “progresso” e “desenvolvimento”. Como coloca Lugones:

Só os colonizadores eram homens e mulheres. Os povos indígenas das Américas e os africanos escravizados se classificavam como não humanos na sua espécie – como animais, incontrolavelmente sexuais e selvagens. O homem moderno, europeu, burguês, colonial se tornou sujeito/agente, apto para governar, para a vida pública, um ser civilizado, heterossexual, cristão, um ser de mente e de razão. A mulher europeia burguesa não era entendida como seu complemento, senão como alguém que reproduzia a raça e o capital mediante a sua pureza sexual, sua passividade e seu vínculo ao lar a serviço do homem branco europeu burguês (LUGONES 2011, p. 106, tradução nossa).

Nesse sentido, o território da floresta, entendido pelo urbano como “primitivo”, é o lugar onde vivem alguns povos silenciados, ou o imaginário do não habitado. Isso pode ser observado na ausência do povo Rama dos mapas políticos da Nicarágua, onde uma grande massa verde de floresta é mostrada sugerindo um vasto território desabitado.

O território possui um valor dentro de uma escala social. Esse valor pode ser transferido para as pessoas que habitam determinados espaços onde é permitido e até normalizado realizar ações nos territórios que recebem um valor inferior. Dentro dessa hierarquia, existem territórios que carecem de valor onde a vida, ou a morte, passa despercebida pelas grandes massas nas esferas local, nacional e internacional, gerando uma perversa corrente de indiferença, silêncio e esquecimento. Os assassinatos e as violações de direitos humanos a homens e mulheres nas áreas de selva, principalmente aqueles perpetrados contra os defensores e defensoras do território, são ações que são permitidas e ignoradas devido à leitura simbólica que é realizada sobre esses espaços.

A comunidade de Bangkukuk Taik, onde Jimmy McRea foi vice-presidente, apresenta uma distância geográfica dos aparatos legais para relatar uma morte devido ao seu difícil acesso. Da mesma forma, há uma distância política em termos de acesso a recursos e formas de reclamação disponíveis para esse e outros povos. Como poderíamos denunciar uma morte em lugares onde o imaginário e o próprio colonialismo interno reconhecem como desabitado? Para o geógrafo brasileiro Milton Santos, “Estar na periferia significa dispor de menos meios efetivos para atingir as fontes e os agentes do poder, dos quais se está mal ou insuficientemente informado” (SANTOS, 2011, p. 173). A morte de Jimmy McRea dá à sociedade nicaraguense uma ferramenta profunda de reflexão sobre a fragmentação territorial e cultural que deveria ser reconhecida quando se decide pensar em um país tão ferido por ditaduras e guerras.

Na atualidade, a Nicarágua atravessa uma profunda crise política que deixou centenas de mortes em várias regiões do país, e muitas pessoas presas em busca de seu direito legítimo de protestar. Mortes e abusos podem ser vistos em diferentes camadas sociais, onde pessoas com menos recursos sofrem as consequências mais trágicas do abuso de poder e da violência. No entanto, essa crise entre os setores da sociedade civil nicaraguense e o atual governo não começou em abril de 2018, uma vez que tanto o atual governo quanto os governos anteriores agiram com violência e repressão nos territórios originários do

país.

Este é um momento importante para realizar um processo de reflexão para que a impunidade de mortes não seja permitida na Nicarágua, para que não caiam no abismo da inexistência. Os distintos povos e nações indígenas do país estiveram, durante séculos, na indiferença e negligência das populações do Pacífico, anteriormente ameaçados pelos processos de colonização, hoje vítimas de empresas extrativistas e colonos. Hoje, o povo Rama de Bangkukuk Taik habita cerca de 10% de seu território ancestral, e 90% está sob a ocupação de colonos que criam um perigoso desmatamento da floresta tropical nacional.

Há uma maneira diferente de viver e ocupar o espaço dessas comunidades daqueles colocados como os modelos espaciais e urbanos que pertencem à leitura do “civilizado”, mas que destroem os territórios de floresta e colocam o planeta e seus recursos em sério risco. Esses modelos, próprios de áreas urbanas e mesmo dos setores rurais, têm destruído recursos naturais e a biodiversidade da terra. Seria a observação e o respeito à relação desses povos com a natureza uma lição a ser aprendida diante dos modelos que levaram a uma grave crise ambiental global. A resistência do povo Rama é pacífica, pois eles e elas não utilizam a violência dentro de sua luta territorial; no entanto, eles e elas persistem no direito de preservar sua cultura e sua relação com a natureza. Diante da indiferença da vida dos povos indígenas da Nicarágua, nos juntamos ao clamor dos povos brasileiros que clamam: do sangue indígena, nenhuma gota a mais.

Referências:

APIAN. Alianza de Pueblos Indígenas y Afrodescendientes de Nicaragua. Informe sobre la Situación de los Derechos Territoriales de los Pueblos Indígenas y Afrodescendientes de Nicaragua. Diciembre, 2017.

BABB, Florence. After the revolution: mapping gender and cultural politics in neoliberal Nicaragua. University of Texas Press, 2001.

LUGONES, Maria. Hacia un feminismo descolonial. Revista Hipathya, Vol. 25, n. 4. Otoño, 2010.

MASSEY, Doreen. Nicaragua: some urban and regional issues in a society in transition. –Contemporary Issues in social sciences. Open University Press, 1987.

SANTOS, Milton. O espaço da cidadania e outras reflexões / Milton Santos; organizado por Elisiane da Silva; Gervásio Rodrigo Neves; Liana Bach Martins. – Porto Alegre: Fundação Ulysses Guimarães, 2011.

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Opinião

La Politica Macroeconómica Del Gobierno De Lopez Obrador

Por Arturo Guillén

1Introducción. Está por cumplirse un año del triunfo arrollador – una verdadera insurgencia popular pacífica - de Manuel López Obrador (AMLO) en las elecciones presidenciales y seis meses desde su arribo al gobierno. Los cambios introducidos por su administración han sido múltiples y trascendentes, tanto en el terreno de la estrategia económica como en los de la política social, la estrategia de seguridad pública y la lucha en contra de la corrupción y la impunidad. La velocidad de los cambios se ha visto favorecida por el hecho de que el partido Morena y sus aliados cuentan con mayoría absoluta en el Congreso, lo que ha permitido realizar reformas constitucionales, como la creación de la Guardia Nacional, y la abrogación de la reforma educativa neoliberal del gobierno de Enrique Peña Nieto.

No es posible aún, en tan corto tiempo de ejercicio gubernamental, efectuar un balance riguroso de las acciones emprendidas por el nuevo gobierno. Por supuesto, como sucede en toda transformación verdadera, existen claroscuros, contradicciones y errores, estos últimos magnificados por sus adversarios, tanto de la derecha como de la izquierda radical anticapitalista. En esta breve nota me concentraré en analizar solamente y de manera somera la política macroeconómica del nuevo gobierno y sus alcances, comenzando por referirme, primero, al difícil contexto interno e internacional en que se desenvuelve el nuevo gobierno.

2. El contexto. En el marco internacional destaca la incertidumbre radical que existe sobre el curso de la economía mundial. La crisis económico-financiera global de 2007 está lejos de haber sido resuelta. Las economías de todo el mundo se están desacelerando, unas más (varias en recesión) y otras menos, pero la tendencia general en las tasas de crecimiento es a la baja. Asimismo, persisten las tendencias deflacionarias, con las tasas de interés en su nivel más bajo desde la Gran Recesión de 2008-2009, y en muchos casos en terreno negativo. La política monetaria que fue casi el única arma empleada para combatir la crisis y restablecer el magro crecimiento logrado durante los últimos, da signos visibles de agotamiento. La financiarización de la economía, con su cauda acrecentada de especulación, continúa sin pausa en búsqueda de tasas de retorno para los capitales excedentes cada vez más difíciles de conseguir. A ello hay que adicio-

nar la aguda guerra comercial - expresión de la pugna política por la hegemonía - entre Estados Unidos y China y de los síntomas de desintegración del mundo y del “orden institucional” construido durante la globalización neoliberal (Vgr, el Brexit, la inoperancia de la OMC, entre otros).

El segundo elemento a considerar es la correlación de fuerzas cada vez más negativa que existe para los regímenes progresistas en América Latina. El gobierno de AMLO tendrá que bregar con esa adversa realidad. Con la excepción de Venezuela (que enfrenta una aguda crisis económica y social provocada, en buena medida, por la agresión imperialista de Estados Unidos y la acción subversiva de la ultraderecha), de Bolivia y de Uruguay, la región ha enfrentado un proceso de regresión neoliberal por la vía electoral en Argentina y Ecuador, y mediante un golpe de estado instrumentado desde el poder judicial en Brasil.

El tercer elemento, y quizás el obstáculo más importante que enfrenta la 4T, es la incesante “guerra política” declarada por segmentos importantes de la oligarquía, la fracción hegemónica” del poder. La supuesta “luna de miel” entre el gobierno y el gran empresariado es más un mito que una realidad. Aunque el capital tiene la necesidad imperiosa de continuar la reproducción de sus capitales, y si bien algunos grandes empresarios han ofrecido mantener sus inversiones y hasta colaborar en proyectos detonados por el gobierno, el núcleo duro de la oligarquía difícilmente aceptará pasivamente renunciar a los privilegios conseguidos durante los treinta años del periodo neoliberal, si, sobretodo, el gobierno de AMLO mantiene su intención, reiterada desde la campaña presidencial y refrendada en su plan de gobierno, de separar el poder político del poder económico. La guerra de desgaste del nuevo gobierno está soportada por el “periodismo de guerra” practicado por los principales medios hegemónicos de comunicación: TV, radio y prensa escrita, en los cuales los comentaristas objetivos y realmente independientes se cuentan con los dedos de las manos. Más que amainar la guerra de posiciones, tiende a arreciar.

3. El programa económico de la 4T y las políticas macroeconómicas. Uno de los objetivos de la nueva administración es recuperar el crecimiento de la economía nacional. El Plan Nacional de Desarrollo (PND) plantea un crecimiento promedio de 4% du-

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el sexenio y cerrar en 2024 con un crecimiento del 6%. AMLO ha señalado en diversas oportunidades, que su gobierno involucra un cambio de régimen y significa el fin del neoliberalismo. En el PND, se afirma que “tenemos ante el mundo la responsabilidad de construir una propuesta posneoliberal y de convertirla en un modelo viable de desarrollo económico, ordenamiento político y convivencia entre los sectores sociales (2019)”. Varias de las políticas del gobierno apuntan en esa dirección como son el fin de las privatizaciones; el restablecimiento de la rectoría económica del Estado y la intención de elevar la inversión pública; la recuperación de Petróleos Mexicanos (PEMEX) y de la Comisión Federal de Electricidad (CFE) para aspirar a la autosuficiencia energética; la reorientación del modelo de desarrollo hacia el mercado interno y a la disminución de las desigualdades regionales y sociales; la elevación de los salarios por encima de la inflación; la recuperación de la autosuficiencia alimentaria; y dejar de recurrir al endeudamiento externo como mecanismo de financiamiento.

Dichas acciones significan, sin duda, un alejamiento de las políticas neoliberales del Consenso de Washington. Se impulsa un nuevo estilo de desarrollo, una nueva estrategia, pero dichos cambios aunque muy importantes no involucran el fin del modelo neoliberal. Y ello porque la base fundamental de este modelo es la globalización financiera y las políticas macroeconómicas (monetaria, fiscal y cambiaria) asociadas con su funcionamiento. Tasas de interés positivas y altas, moneda sobrevaluada y equilibrio fiscal responden en lo fundamental a la necesidad de atraer flujos de capital externos y evitar la fuga de capitales. Esos mecanismos son el “núcleo duro” del neoliberalismo y son los causantes principales del “estancamiento estabilizador” que rige en México desde el gobierno de Salinas de Gortari. La experiencia brasileña durante los gobiernos de Lula y D. Roussef es reveladora respecto de los peligros de no tocar las políticas macroeconómicas determinadas por la globalización financiera. Cunado en su segundo periodo cuando Roussef intentó aplicar políticas macro más amigables al crecimiento, la inflación devoró sus intenciones y la acción política de la derecha condujo a su impeachment, lo que fue calificado como un golpe de estado instrumentado desde un corrupto sistema judicial.

En el terreno de las políticas macroeconómicas, el gobierno de AMLO mantiene el mismo paquete de políticas que los gobiernos neoliberales anteriores. En el PND (2019: 48-49) se postula que “se respetará la autonomía del Banco de México”, “no se gastará más de lo que ingrese en la hacienda pública”, ni “habrá incrementos de impuestos en términos reales”. En otras palabras, se mantendrá una política monetaria restrictiva, se buscará el equilibrio fiscal y se tolerará

la apreciación cambiaria. Es comprensible que el gobierno de AMLO opte por una política macroeconómica conservadora, si se toma en consideración el entorno de hostilidad política por parte de un segmento importante de la oligarquía y de la derecha, y ante la incertidumbre sobre el curso de la economía mundial.

Para detonar el crecimiento económico e instrumentar nuevas políticas de desarrollo se apuesta a la lucha en contra la corrupción y la impunidad como principal mecanismo de financiamiento de la inversión pública y de los programas sociales. La erradicación de ambas lacras tiene, sin duda alguna, un alto simbolismo político en una sociedad harta de la desigualdad, así como del saqueo y el despojo de la riqueza nacional. La llamada “austeridad republicana” puede contribuir igualmente de manera favorable a la reactivación económica en el corto plazo, si los recursos ahorrados estimulan la demanda y se trasladan a la inversión. Pero pronto, sino es que ya está mostrando sus insuficiencias.

En el mediano plazo, la necesaria expansión de la alicaída inversión publica tendrá que descansar en la puesta en marcha de una reforma fiscal redistributiva que grave a los sectores concentrados del capital. México es uno de los países con menor carga fiscal de América Latina. Según datos de la CEPAL, en 2017 los ingresos tributarios representaron apenas el 16% del PIB, prácticamente la mitad de lo gravado en Argentina (30.3%) y en Brasil (30.3%). Solo con una reforma fiscal progresiva podríamos comenzar a superar de manera efectiva el estancamiento que nos agobia, el cual se acentuaría seriamente y hasta podría desembocar en una recesión si el gobierno de Trump cumple la amenaza de elevar los aranceles a las exportaciones mexicanas al mercado estadounidense.

Referências

Plan Nacional de Desarrollo 2018-2024 (2109). México, Presidencia de la República. https://lopezobrador.org.mx/ wp-content/uploads/2019/05/PLAN-NACIONAL-DEDESARROLLO-2019-2024.pdf

Arturo Guillén é Professor – Investigador Titular do Departamento de Economía de la Universidad Autónoma Metropolitana Iztapalapa e membro do Sistema Nacional de Investigadores (SIN), nivel III. E-mail: artguillenrom@hotmail.com .

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Opinião

Superexploração Do Trabalho: Resgatando Marini

Desfeitas as ilusões de um neodesenvolvimentismo incapaz de oferecer um processo de acumulação de capital sustentável — especialmente, nas condições da periferia —, as contradições capital-trabalho, antes mistificadas pela formação de uma suposta nova classe média, se expõem de modo mais nítido. Nessa dinâmica, mais do que nunca, a teoria da dependência se apresenta como um arcabouço capaz de explicar as debilidades e insuficiências da economia brasileira atual.

Enquanto estava em vigor o projeto petista, ancorado em uma política de valorização — bastante insuficiente — do salário, pareciam resolvidas as contradições entre o processo de produção de mercadorias e a composição de um mercado consumidor doméstico pujante no Brasil. Ou seja, na sua aparência, a contradição entre produção e realização das mercadorias aparecia como amenizada, enquanto sua essência se reproduzia na estrutura, aguardando a falência do modelo para emergir de modo escandaloso.

Explico. Está em curso no país um processo de superexploração do trabalho, conforme indicado por Ruy Mauro Marini, como sendo a essência da dependência das economias latino-americanas. Esse processo de superexploração teria como base um tripé formado por (i) intensificação da jornada, (ii) prolongação da jornada e (iii) expropriação de parte do trabalho necessário para a reprodução da força de trabalho (MARINI, 2005).

As políticas tidas como neodesenvolvimentistas prometem “melhorias” no sistema capitalista sem desarticular problemas estruturais fundamentados nas relações de classe. No caso brasileiro, o que se viu nesta etapa histórica foi uma ampliação gigantesca da dívida pública (artifício atrelado aos fundamentos macroeconômicos do Plano Real, reproduzidos de modo sacrossanto pelos governos Lula e Dilma); uma incapacidade de manter crescimento econômico sustentado (pela imposição sucessiva de superávits indiscriminados sobre o conjunto dos gastos públicos e pelo atrelamento da dívida pública a um instrumento

de política monetária – a Taxa Selic) e uma moeda sobrevalorizada, resultado da atração de capitais externos via política de juros altos para estabilidade de preços.

Quando o sistema demonstra, implacavelmente, sua fragilidade, o capital necessita amplificar seus ganhos pela via da superexploração do trabalho, o que tem sido observado pela ampliação dos movimentos de precarização, uberização, pejotização, quaisquer que sejam os nomes adotados. O resultado é o rápido empobrecimento da antiga “classe C”, associado a um gigantesco endividamento das famílias.

Com sua base produtiva destroçada pelo processo de reprimarização da pauta exportadora, o país se reinsere — após chegar a ter mais de 50% de sua pauta baseada em manufaturas, nos anos 1980 — como uma economia exportadora de alimentos. Essa relação indica que o Brasil se encampa, mais uma vez, de sua função histórica na divisão internacional do trabalho, a saber, de barateador dos parâmetros de subsistência das classes trabalhadoras nos países produtores de manufaturas, notadamente a China.

De modo inverso, no mercado doméstico — dado o caráter oligopolista de uma produção exportadora latifundiária — o que circula é a produção oriunda da estrangulada agricultura familiar, o que eleva os preços dos gêneros de primeira necessidade internamente. O trabalhador da economia dependente é, portanto, duas vezes pressionado: pelo baixo nível dos salários e pelos elevados preços dos alimentos.

Como argumentado por Marini (2005), nos países especializados em produtos manufaturados, onde o progresso técnico expande a possibilidade de ampliação da mais-valia relativa (não automaticamente, mas permitindo a apropriação de parte do tempo de trabalho necessário para a reprodução da força de trabalho), o barateamento dos gêneros de primeira necessidade apresenta-se como uma das alternativas para manutenção de baixos salários ou, ainda, da redução da necessidade de sua ampliação sistemática. Essa dinâmica representa um ganho para os trabalhadores do centro, em comparação aos seus pares da periferia, consi -

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derando que garante um padrão de consumo mais elevado. Tendo em vista que os países periféricos, como o Brasil, encontram-se deveras atrasados em relação a esses avanços tecnológicos na produção, o que se observa é que os capitalistas locais, pressionados pelas perdas em relação ao capitalismo mundial, lançam mão da ampliação da mais-valia absoluta. Nas palavras de Marini (Op. cit., p. 153):

O que aparece claramente, portanto, é que as nações desfavorecidas pela troca desigual não buscam tanto corrigir o desequilíbrio entre os preços e o valor de suas mercadorias exportadas (o que implicaria um esforço redobrado para aumentar a capacidade produtiva do trabalho), mas procuram compensar a perda de renda gerada pelo comércio internacional por meio do recurso de uma maior exploração do trabalhador.

Nesse sentido, as flexibilizações jurídicas dos contratos de trabalho, a partir da reforma trabalhista, permitem não apenas a formação de um gigantesco exército industrial de reserva, mas também são responsáveis por uma flexibilização para baixo do nível de salários no mercado de trabalho, como imaginado pelos economistas clássicos. Tal rebaixamento dos rendimentos da classe trabalhadora encontra respaldo no esgarçamento das leis trabalhistas via uma proclamada “modernização”, que desarticula, fragmenta e desnorteia as lutas.

Dado esse contexto de ampliação da superexploração, o que se percebe é que o mercado interno volta a perder fôlego. Isso porque a contradição inerente ao sistema capitalista, qual seja, a desarticulação entre produção e realização das mercadorias, é um traço mais profundo nas economias latino-americanas. Em outros termos, no capitalismo periférico, o papel do trabalhador como consumidor é bastante reduzido e, de modo geral, esse fator não é percebido pelas classes dominantes como um problema: “é assim como o sacrifício do consumo individual dos trabalhadores em favor da exportação para o mercado mundial deprime os níveis de demanda interna e erige o mercado mundial como única saída para a produção” (MARINI, p. 164-165).

Diante desse quadro, enquanto roupagem mistificada, através de um uso simbólico de palavras que escondem a verdadeira precarização da classe trabalhadora brasileira, como “empreendedorismo”, o que se observa, em concreto, é que, em um momento de crise aguda do capital, os ganhos auferidos pelas classes dominantes advêm da miséria comple -

ta dos trabalhadores. Ainda que o capitalismo central também esteja sucumbindo diante da fragmentação do capitalismo em sua configuração financeira, as condições na periferia são ainda mais adversas, indicando que a superexploração do trabalho será um mecanismo ainda mais brutal de manutenção dos favorecimentos ao poder econômico.

De nada vale a propagação de ideais tidos como “progressistas”, cujo limite da ação esbarra na manutenção de uma estrutura agrária fortemente concentrada; da abismal expansão da fronteira agrícola exportadora, que desmata e destitui de terra índios e quilombolas; do fortalecimento do setor bancário-financeiro e da destruição do nosso ativo industrial. A dependência brasileira nunca foi interrompida e, agora, quando o elástico da máscara neodesenvolvimentista se rompe, ficam expostas nossas mazelas que sempre estiveram ali. O momento atual não é de saudosismo em relação a antigas práticas, mas de divórcio completo com os elementos mantenedores da dependência brasileira e seu alicerce, a superexploração. Nesse caminho, a leitura de autores como Ruy Mauro Marini é indispensável na construção de um verdadeiro pensamento crítico e emancipador.

Referências

MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: STEDILE, João Pedro; TRASPADINI, Roberta (org.). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo, Expressão Popular, 2005.

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Joyce Helena Ferreira da Silva é Professora Universitária com Graduação em Economia e Mestrado e Doutorado em Ciência Política.

Opinião

O colapso ambiental que se pronuncia

As principais lideranças políticas falharam em reconhecer que o impacto humano sobre o meio ambiente atingiu um estágio crítico, que erode a estabilidade socioeconômica dos lugares. Impactos humanos negativos sobre o meio ambiente vão “além” da mudança climática para abranger a maioria dos outros sistemas naturais, gerando um dinâmico e complexo processo de desestabilização ambiental, que atingiu níveis críticos. Essa desestabilização está ocorrendo a velocidades jamais vistas na história humana. Mudanças ambientais em uma escala e ritmo sem precedentes revelam que as possibilidades de evitar resultados catastróficos ao redor do mundo estão se esgotando. A desconsideração histórica dos fenômenos ambientais pode ter efeitos colossais (IPCC, 2018), que incluem instabilidade econômica, migração involuntária em larga escala, conflitos, fome e o potencial colapso dos sistemas sociais e econômicos.

Os sistemas naturais globais estão sofrendo desestabilizações a uma escala sem precedentes: os 20 anos mais quentes desde que os recordes começaram, em 1850, ocorreram nos últimos 22 anos, com os últimos quatro anos atingindo as maiores temperaturas registradas; a população de vertebrados foi reduzida a uma média de 60% desde a década de 1970; mais de 75% dos solos da Terra estão degradados.

A desestabilização dos sistemas naturais está ocorrendo numa velocidade inaudita: desde 1950, o número de enchentes no mundo cresceu 15 vezes; os casos de temperaturas extremas aumentaram 20 vezes, e os incêndios florestais, sete vezes; o solo superficial está sendo perdido de 10 a 40 vezes mais rápido do que sendo reposto por processos naturais; desde a metade do século 20, 30% das terras aráveis se tornaram improdutivas devido a erosões, e 95% dos solos da Terra podem se tornar degradados por volta de 2050.

Entramos numa nova era de rápida mudança ambiental, que os especialistas têm definido como a “era do colapso ambiental”. Uma forma de sinalizar a severidade da escala, do ritmo e das implicações da desestabilização resultante da atividade humana agregada. O processo está a caminho, e, à medida que os sistemas naturais complexos se tornam mais desestabilizados, as consequências dessa desestabilização — do calor extremado à infertilidade do solo, bem como o aumento populacional e a escassez de água —

e os impactos sobre os sistemas humanos, sejam eles locais ou globais, interagindo com as tendências econômicas e sociais, como a desigualdade, tendem a ser dramáticos.

Se os riscos são ampliados, nada garante que as sociedades estejam preparadas para enfrentá-los. Os autores de estudo do Instituto de Pesquisa de Políticas Públicas (IPPR) chegam a dizer que os níveis de complexidade envolvidos talvez perfaçam o mais grave desafio que os humanos jamais enfrentaram em toda sua história (Laybourn-Langton et al, 2019).

Uma resposta se faz necessária. O Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC), em outubro de 2018, alertava que as emissões dos gases de efeito estufa global deveriam ser reduzidas em 45% até 2030, de forma que o aquecimento ficasse abaixo 1,5 °C, acima do qual se tornaria crescentemente perigoso e ingovernável (IPCC, 2018). O alerta surgiu assim que a temperatura excedeu 1 °C acima dos níveis pré-industriais, ondas de calor ultrapassando recordes e cientistas indicando um colapso climático descontrolado sobre a Terra, na qual “graves perturbações aos ecossistemas, sociedade e economias” poderiam ocorrer (Steffen et al, 2018).

Os sistemas naturais são interdependentes. As mudanças no uso da terra, o desmatamento e a desertificação de solos, resultantes do uso continuado e excessivo das agroindústrias e da mineração, são as causas primeiras da extinção das espécies (IPBES, 2018). Os muitos danos que ocorrem em uma determinada área podem vir a perturbar outros sistemas, desencadeando mudanças ambientais em larga escala. O IPCC alertou que o aquecimento de 2 °C poderia vir a transformar os ecossistemas acima de 13% das áreas da Terra, aumentando o risco de extinção para muitos insetos, abelhas, plantas e animais (IPCC, 2018).

Como afirma Michel Löwy (2019), “a civilização capitalista contemporânea está em crise. A acumulação ilimitada de capital, a mercantilização de tudo, a exploração impiedosa do trabalho e da natureza e uma brutal competição solapam as bases de um futuro sustentável e, portanto, põem em risco a própria sobrevivência da espécie humana”. Aliás, uma afirmação também presente em Great Transformation, de Karl Polanyi, desde 1944. Mas Löwy nos fala da necessidade de uma Grande Transição para enfrentarmos o colapso, que, para ele, se consubstancia no ecossocialismo.

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O ecossocialismo propõe uma crítica tanto da “ecologia de mercado”, que não desafia o sistema capitalista, como do “socialismo produtivista”, que ignora os limites da natureza. Para Löwy, o núcleo da ideia é o conceito do planejamento democrático ecológico, no qual a própria população, e não “o mercado” ou o comitê central do partido comunista, toma as decisões sobre a economia e coloca as necessidades humanas e do planeta em primeiro plano e acima de tudo.

As desigualdades econômicas vêm sendo ampliadas. No início da Revolução Industrial, as diferenças de renda per capita entre a Europa Ocidental e a periferia não ultrapassavam 30 %. Já em 1820, já atingia três vezes mais; em 1870, sete vezes; em 1913, 11 vezes; em 1960, 30 vezes. Em 1997, 1/5 da população mundial rica era 74 vezes mais rica que o 1/5 da população mais pobre (Bairoch, 1981, 1993). O crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) mundial de 2010-2016 foi de 3,1%, muito abaixo da taxa projetada por instituições globais. Os indicadores para 2017 foram revistos com uma persistente incerteza sobre a economia global.

Esses números geraram preocupações sobre se a economia mundial teria capacidade de: i) ter um número de empregos suficiente; ii) melhorar a qualidade dos empregos para aqueles empregados; e iii) assegurar que os ganhos do crescimento sejam distribuídos de forma inclusiva (ILO, 2017). Entretanto, o problema maior não está em crescer mais, mas em como encontrar um modelo equilibrado e pró-natureza. Em 2017, 42% dos trabalhadores, ou 1,4 bilhões no mundo, viviam formas vulneráveis de emprego. As projeções sugerem que a tendência não será revertida, e o número de pessoas em trabalho vulnerável aumentará 17 milhões por ano, em 2018 e 2019. (ILO, 2018).

Randall Collins (2013) nos diz que, em 1980-1990, a mecanização deslocou o trabalho manual. Na última onda tecnológica, houve queda do trabalho administrativo, o downsizing da classe média. A tecnologia da informação e das comunicações reduziu o trabalho especializado. À ampliação das desigualdades e do desemprego, vem se somar o colapso ambiental para os sistemas humanos e naturais.

É urgente alterar os padrões de consumo vigentes no capitalismo, de energia, de uso do solo, de madeira, de uso da água. São grandes desafios. A educação e o esclarecimento apontam que não é acumulando bens que saíremos desse desafio civilizatório. É urgente caminharmos na direção de um processo histórico de mudança cultural criativo, com respeito aos seres humanos e à natureza.

Referências

Bairoch, Paul (1993), Economics and World History. Myths and Paradoxes. Chicago: University of Chicago Press.

Bairoch, Paul e Maurice Lévy-Leboyer, eds. (1981), Disparities in Economic Development Since the Industrial Revolution Palgrave: Macmillan, 1981. New York: St. Martin’s Press.

Collins, R. (2013). The End of Middle-Class Work: No More Escapes. In G. Derleugian (Ed.), Does Capitalism Have a Future (pp. 37-70)? New York: Oxford University Press., P. 39

Hickel J (2018). “Is it possible to achieve a good life for all within planetary boundaries?” Third World Quarterly, 1-17. https://www.academia.edu

ILO (2017), World Employment and Social Outlook: Trends. Geneva: Ilo.

ILO (2018), World Employment and Social Outlook: Trends. Geneva: Ilo.

Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC) (2018), “Summary for Policymakers”, in: Global warming of 1.5 °C. An IPCC Special Report on the impacts of global warming of 1.5 °C above pre-industrial levels and related global greenhouse gas emissions patways, in the context of strengthening the global response to the threat of climate change, sustainable development, and efforts to eradicate poverty, Masson-Delmont V et al (eds). https:// ipcc.ch/site/assets/uploads/sites/2/2018/07/SR15_SPM_ High_Res.pdf Acessado em 18/02/2019.

Intergovernment Science Policy Platform on Biodiversity and Ecosystem Services (IPBES) (2018), “Summary for policymakers of the assesment report on land degradationa and restoration of the intergovernmental science-Policy Platform on Biodiversity and Ecosystem services”, Scholes R et al (eds). Acessado em 18/02/2019. https://www.ipbes.net/system/tdf/spm_3bl_idr_digital. pdf?file-1&type-node&Id-28335

Laybourn-Langton L., Rankin L and Baxter D (2019), “This is a Crisis: facing up to the age of environment breakdow”, IPPR. http://www.ippr.org/research/ publications/age-of-environmental-breakdoow

Löwy, Michel (2019). “Great Transition”. In. Outra Política. Dia Acessado em 01/02/2019.

Steffen W et al (2018), “Planet at risk of heading towards ‘Hothouse Earth’ State”, Stockholm Resilience Centre. https://www.stockholmresillience.org/researc/researchnews/2018-08-06-planet-at-risk-ofheadingtowards-hothouse-earth-state.html. London. Acessado em 20/02/2019.

Marcos Costa Lima é professor do Programa de PósGraduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco.

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Jornalismo ambiental

Crise climática pressiona a racionalidade humana desnaturalizada

Nos últimos séculos, a raça humana, em busca de seu “crescimento”, foi capaz de provocar mudanças significativas para si e no planeta. A tecnologia evoluiu graças à humanidade. Já o seu processo civilizatório nem tanto. Basta constatar as guerras mundiais e os conflitos bélicos pelo mundo, motivados sobremaneira por poder e riquezas materiais.

Mesmo a raça humana produzindo muito mais diante do conhecimento científico e das novas tecnologias, a desigualdade e a pobreza entre humanos e a degradação ambiental só cresceram e acentuam a face antissolidária da espécie dos homo sapiens, que agem como imortais e pensam que os “recursos” naturais são infinitos e somente para seu uso.

Enquanto o planeta levou 5 mil anos para aquecer naturalmente a sua temperatura global do ar em 5 ºC, o modelo capitalista humano fez isso só em 200 anos. E a consequência é dramática. A produção e o consumo da humanidade foram capazes de mudar a compo -

sição biofísica-química da atmosfera e oceanos, alterando o clima planetário. Criou um precedente imaginável de riscos para todos os humanos, principalmente sobre as populações mais pobres economicamente, e para a vida não-humana.

A humanidade é masoquista? Somos todos assim, ou só os mais ricos? Qual razão para tudo isso? A natureza humana é desnaturalizada? Em certa medida, sim! Mas não tem a ver com a natureza humana, e sim com a sua cultura civilizatória. Em especial a construída pela porção ocidental do planeta ao longo do seu processo histórico. E secularizada na cognição em relação à dimensão com o sagrado. Deus único, ou vários deuses, mitos e oráculos limitaram e ainda restringem a humanidade de uma racionalidade antropocêntrica. A partir do sagrado, homens e mulheres, dos pobres aos mais abastados, reconhecem-se como “imortais”, mesmo diante da sua efemeridade no plano terrestre, por acreditarem numa existência em outra dimensão após a

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morte. Por essa crença, o planeta é subjugado só para servir a humanidade. E a abundância ou a escassez da oferta dos “recursos” naturais é também condicionada ao sagrado. Foi Deus (deuses ou mitos) quem quis! Foi castigo ou benção!

Assim, a racionalidade humana esvazia de sentido o humano enquanto a sua esfera natural. Valida como natural só fauna, flora, rios, oceanos, ecossistemas, clima e etc. Não se vê enquanto parte do planeta nem como tudo está interconectado por integrar essa dimensão. Com isso, esvazia a consciência em perceber que se autodestrói junto com as condições naturais do planeta que garantem a existência da humanidade.

Nesse aspecto, a razão humana formada majoritariamente pela cultura com a questão do sagrado limita inconscientemente o seu agir de modo sustentável. Não à toa, apesar do avanço tecnológico na era capitalista, que gerou o descontrole no sistema climático da Terra e uma gama de impactos e desafios para a vida humana e não-humana, a humanidade ainda não reconhece isso. E não se sente responsável pelo que causou nos últimos 200 anos. Não avança em ações de mitigação e adaptação aos efeitos da mudança do clima nos segmentos socioeconômicos das populações tampouco nas dimensões biofísicas do planeta.

Enquanto isso, agrava-se o derretimento das geleiras e a redução do gelo marinho. E aí amplia-se a absorção da radiação solar pelo planeta e o aumento da temperatura do ar. Assim, eleva-se a crise ambiental. E uma das ameaças centrais à vida humana, cada dia mais comum e grave, é o aumento da frequência e da incidência de eventos extremos do clima (secas e inundações) e todas suas catástrofes sobre a vida no planeta.

Ainda assim, os setores políticos conversadores voltaram a intensificar a visão científica dos negacionistas das mudanças do clima antrópicas, mesmo tal posição sendo residual dentro das ciências do clima e afins. E pode ser constatado a partir dos EUA. Governado por Trump, o país saiu do acordo global e climático de Paris (de combate aos efeitos da crise climática). O negacionismo também ganha força no Brasil de Bolsonaro.

Em todo o contexto, a humanidade ainda abstrai ou marginaliza sua responsabilidade frente à crise do clima. A maioria sequer consegue perceber a questão ou problematizá-la em sua vida e da comunidade, mesmo estando

a natureza diretamente interligada, sabendo disso ou não.

Nessa perspectiva de não aprendizagem em relação à crise ambiental, a qual demanda mudanças de paradigmas nas ações socioeconômicas da humanidade para a mitigação desses problemas, a mídia voltou a dar visibilidade pública e política, neste ano, para o tema depois de mais uma grande catástrofe no País, já considerada como sendo o maior desastre ambiental e com vítimas humanas fatais no Brasil. “Não aprendemos” era a manchete da capa do Jornal do Commercio no dia 26 de janeiro de 2019. Dizia: “Três anos depois da tragédia de Mariana, o Brasil volta a viver um desastre ambiental e humano de proporções ainda inimagináveis: o estouro da barragem de rejeitos controlada pela Vale em Brumadinho”.

O quanto Brumadinho, Mariana e a maioria das catástrofes ditas ambientais no Brasil e no mundo (se não todas) derivam do interesse econômico de poucos a partir do modelo de produção e consumo capitalista? Seria a mais-valia, ou seja, a acumulação de riqueza material pelo homem a qualquer custo o sentido social da racionalidade humana que não leva em conta as questões da natureza e sua conexão com o homem? Será, então, que a crise climática terá potencial material para pressionar esse tipo de razão desnaturalizada em direção a uma outra bioeconômica?

Esta coluna apresenta abordagens críticas e interdisciplinares mensais relativas à produção da representação jornalística da realidade social sobre as temáticas socioambientais e a sua influência na constituição do sentido social sobre a questão. É escrita pelo jornalista Robério Coutinho, Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e autor de livros sobre a temática.

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Opinião

Liberdade acadêmica, normatividade jurídica e variáveis políticas

AConstituição de 1988, dando ênfase à liberdade de expressão, notadamente em sede acadêmica; o entendimento do Ministério Público Federal (MPF) considerando inconstitucional a violação à autonomia da gestão democrática da universidade; o Supremo Tribunal Federal (STF) tutelando-a contra qualquer tipo de interferência, em acórdão da relatoria do ministro Luiz Roberto Barroso, reconhecem ser a liberdade de expressão tão importante que deve preferi-la às demais liberdades (OPERAÇÕES, 2018).

Finalmente, a posição unânime da doutrina, ressaltando que só o professor é juiz da verdade sobre o que ensina, já não dá margem a interpretações díspares sobre as amplas garantias constitucionais conferidas ao exercício da docência, lastreado na plenitude de sua autonomia pedagógica e de pensamento (SILVA, 2017, p. 258). Sublinhe-se que essas garantias não são restritas às universidades: elas alcançam a atividade docente em todos os níveis de ensino.

Importa, contudo, enfatizar que a sua efetividade depende da correlação de forças existentes na sociedade e na política, favorável aos que defendem a liberdade de expressão, em face dos seus opositores: segmentos expressivos dos evangélicos, políticos que os representam e demais forças conservadoras.

E, também, do peso que tenham essas forças no âmbito da magistratura e do Ministério Público. Se assim não fosse, como explicar que, apesar de tão sólidos fundamentos jurídico-constitucionais, as universidades tenham sido abaladas, no ano de 2018, por sucessivas e esdrúxulas medidas judiciais que tolheram sua autonomia e a liberdade de expressão dos seus docentes? E a Lei da Mordaça? Esse projeto, que emite uma mensagem de certeza e de suposição de ideias neutras, esconde, na verdade, forte teor de persecução, impondo graves restrições à conduta pedagógica dos docentes. Mas sua flagrante inconstitucionalidade não impediu sua aprovação no Estado de Alagoas nem a existência de sustentação parlamentar para garanti-la em vários estados, e, possivelmente, no Congresso Nacional.

Da mesma forma, continuam em tramitação oito projetos de lei inspirados no modelo de ante -

projeto definido pela organização Escola sem Partido, propondo alterações em pontos fundamentais da legislação e do planejamento educacional, com vedação à abordagem de temas em livros didáticos. E, também, a tipificação de crimes relacionados ao que fundamentalistas entendem ser doutrinação, dentre várias outras proibições. Há mais aberrações: a proposta de revisão “progressiva” dos livros escolares, notadamente em relação ao golpe de 1964; a proliferação de escolas militares; a anunciada censura prévia ao Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e a tentativa de enquadramento das escolas em comportamentos supostamente patrióticos, como a obrigação de cantar o hino nacional, constituem iniciativas que visam, por vias oblíquas, burlar a Constituição e submeter as instituições educacionais à mordaça, à ideologia ufanista e a um ensino destituído de visão crítica.

O enfrentamento do obscurantismo somente terá êxito à medida que uma correlação de forças, favorável à democracia, se imponha às diferentes instâncias do Poder Judiciário, sujeitando-as ao respeito à lei, do qual, em parte, se afastaram, desde seu aval ao “golpe branco” de 2016 e sua atitude leniente para com as arbitrariedades perpetradas pelos “justiceiros” e “salvadores da pátria vestidos de toga”.

Impõe-se erradicar a promíscua convivência entre uma ordem constitucional alicerçada no Estado de Direito e o embrião de um Estado de Exceção que se infiltrou, de forma solerte, em setores expressivos do Poder Judiciário e do Ministério Público, ideologicamente ultraconservadores. E, juridicamente, partidários de uma Justiça sujeita à influência da força, muitas vezes instrumentalizada, vinda do “clamor das ruas”, da qual as sentenças emergem maculadas por condicionamentos alheios à normatividade jurídica.

Mas essa evolução auspiciosa somente se confirmará à medida que fracassarem as tentativas de aprovação de leis como a da Mordaça. Do contrário, o arbítrio, já presente na Justiça brasileira, com a edição de atos normativos e, em certa práxis, conflitante com a Lei Maior, atingirá princípios constitucionais de cuja vigência depende a própria democracia (RAMOS, 2017, p. 76).

A atual conjuntura brasileira representa um de -

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safio para a universidade tendo em vista a existência de um governo de extrema-direita interessado em restringir, ao máximo, sua autonomia e a liberdade de expressão. Daí a necessidade, na ótica de setores democráticos cada vez mais amplos, de congregar as forças vivas da sociedade civil em defesa do Estado de Direito e das liberdades democráticas, especialmente em sede acadêmica.

Na outra ponta, o comportamento dos partidos de oposição pesará de forma determinante em face das ameaças constantes e reiteradas ao pluralismo, às práticas democráticas e aos ataques frenéticos desfechados contra as esquerdas. Esses ataques alcançaram o seu ápice com as declarações do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, pretendendo impregnar o nazifacismo com ingredientes de esquerda (ARAUJO, 2019) e as do ministro da Educação, Abraham Weintraub, com a inacreditável afirmação de que “os comunistas estão no topo do país” e “no topo das organizações financeiras, dos jornais e das grandes empresas” (WEINTRAUB, 2018).

Essa teoria conspiratória, em que pese o seu caráter surreal, está na origem das investidas ideológicas do governo Bolsonaro, que tem, entre outros objetivos, o de impor limites à autonomia universitária e à liberdade de expressão em sede acadêmica, visto que, para ele e seu staff, a universidade se assemelha a um covil de comunistas.

São discípulos da estirpe intelectual do mentor ideológico dos Bolsonaro, Olavo de Carvalho, cujo inimaginável grau de intolerância pode se resumir na sua proposta de expulsar os comunistas de sua escola, de sua igreja, da sua sociedade de bairro, de seu clube. Isto não depende de grandes mobilizações, depende só da coragem e da iniciativa de cada um. Denuncie cada um deles, recuse-lhe amizade, tolerância ou respeito. Esses canalhas vivem da generosidade de suas vítimas (CARVALHO, 2018).

Desatento ao alcance e significado da ideologia protofascista inspiradora do governo Bolsonaro, o chamado “campo democrático” tem se deleitado, a nível parlamentar, com ataques recíprocos entre seus componentes, deixando de lado a urgente contribuição que precisa dar à luta pela hegemonia, mormente no campo ideológico e cultural, dos valores republicanos e libertários. Permanece ele silente, passivo e dilacerado por contradições menores que lhe corroem a credibilidade. Parece não perceber que a busca da desmoralização ideológica e do aniquilamento político das posições de esquerda constitui a motivação maior da troupe bolsonarista.

Há, portanto, necessidade de discussão das concepções e estratégias do governo de extrema-direi -

ta na condução de temas sensíveis, como educação, cultura, direitos humanos e democracia, em busca de alternativas para as políticas vigentes. Mas a viabilização dessa estratégia tem como pré-requisito a formação de um sólido bloco oposicionista de esquerda, no Parlamento e no âmbito da sociedade. Como estamos longe disso, resta aos cidadãos compreenderem a gravidade ímpar do atual período histórico, pressionando movimentos, sindicatos, partidos de esquerda e democratas para a celebração de pactos de unidade, cimentados com base em compromisso efetivo com a defesa da democracia. Mas isso depende de os brasileiros conscientes abandonarem um comportamento até agora marcado pela passividade e se dispuserem a uma verdadeira militância pela reconstrução do Estado de Direito no Brasil.

Referências

ARAÚJO, Ernesto. In: NEHER, Clarissa. Ernesto Araújo diz a canal de Youtube que nazismo foi movimento de esquerda. São Paulo, Folha de S.Paulo, 28 mar. 2019.

CARVALHO, Olavo. In: Souza, Bertone. Olavo de Carvalho faz apologia ao crime e à intervenção militar na internet. Disponível em: Blog de Bertone Sousa. Acesso em: 4 abr. 2019.

OPERAÇÕES em universidades federais feriram liberdade de manifestação, afirma STF. Folha de S.Paulo, São Paulo, 31 out. 2018.

RAMOS, Marize. Sem Escola “sem” Partido: a criminalização do trabalho pedagógico. In: Frigotto,Gaudêncio (org.). Escola “sem” Partido. Rio de Janeiro: LPP/UERJ, 2017.

SILVA, José Afonso. Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 2017.

WEINTRTRAUB, Abraham. In: Azevedo, Reinaldo. Com Weintraub na Educação, Bolsonaro só dobra a dose do remédio errado. Folha de S.Paulo, São Paulo, 8 abr. 2019.

Rubens

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Pinto Lyra é Doutor em Direito Público e Ciência Política e Professor Emérito da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: rubelyra@uol. com.br

Opinião

A Política Externa Brasileira e os primeiros cem dias de Bolsonaro (1)

Ogoverno do presidente Jair Bolsonaro; de seu mentor espiritual e político, o professor Olavo de Carvalho; de seu ministro do Exterior, Ernesto Araújo; do superministro Paulo Guedes, economista ultraneoliberal; de sua Eminência Parda, o deputado Eduardo Bolsonaro, está determinado a reorientar radicalmente toda a política externa (e interna) brasileira. Essa reorientação se daria pelo alinhamento de toda a política externa brasileira à política do Governo de Donald Trump, a começar pelo apoio a Israel.

Segundo esses protagonistas, a política dos governos brasileiros anteriores teria sido ideológica e privilegiado as relações com governos de “esquerda”, não democráticos; negligenciado e hostilizado os países desenvolvidos, em especial os Estados Unidos; envolvido o Brasil em temas nos quais não teria interesse direto nem poder para influir; dado pouca atenção aos interesses comerciais e econômicos do Brasil; contrariado e afrontado interesses americanos na América do Sul; criado um ambiente hostil aos capitais multinacionais.

A política exterior de Jair Bolsonaro, com excessos verbais, atitudes subservientes e “interpretações” inéditas da História, retoma a política de certos governos anteriores que, entre si, se diferenciam devido às circunstâncias de cada período, mas que tinham a mesma orientação geral de alinhamento com a política exterior norte-americana.

Com o presidente Bolsonaro, o Brasil passou a ter não apenas uma política exterior, mas uma política geral de governo que procura atender antecipadamente e, sem qualquer reciprocidade, às reivindicações históricas dos Estados Unidos: redução da União ao mínimo, em termos de funcionários e organismos; transferência de competências da União para estados e municípios; privatização geral; desregulamentação geral e autofiscalização pelas empresas; abertura radical da economia e do setor financeiro; redução da Petrobras, maior empresa brasileira, a uma pequena empresa, não integrada, de petróleo; privatização de todos os bancos estatais; autonomia do Banco Central; concessão de base militar em Alcântara; destruição dos programas estratégicos, em especial do programa do submarino nuclear; enfraquecimento da Chancelaria brasileira, pela quebra de hierarquia e pela inexperiência.

Devido às características do Brasil e às suas vulnerabilidades, as ações concretas de política externa deveriam sempre procurar: manter as melhores e imparciais relações com todos os Estados da América do Sul; criar e fortalecer um sistema de segurança político-militar na América do Sul e

no Atlântico Sul; criar e fortalecer um sistema dissuasório de defesa nacional; estabelecer programas de cooperação com grandes Estados, como os Estados Unidos, a China, a Rússia, a Índia, a França e a Alemanha; contribuir, ativa, discreta e imparcialmente, para a solução de crises; participar ativamente de conferências sobre temas universais, como meio ambiente, pobreza, raça, gênero, etc.; cooperar com países subdesenvolvidos em projetos de desenvolvimento, sem impor “condicionalidades”; diversificar, quanto a produtos, destinos e origens, seu comércio internacional; abrir novos mercados para a ação das empresas brasileiras; promover a revisão dos sistemas de decisão dos organismos internacionais para obter condições de melhor participação do Brasil; conquistar um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas.

O governo de Jair Bolsonaro tem contrariado frontalmente e feito o inverso das ações concretas sugeridas acima. O Brasil participa da Aliança do Pacífico e do Grupo de Lima contra a Venezuela, infringindo os princípios de autodeterminação e de não intervenção, com ameaças militares, gerando ressentimentos, no esforço de agradar aos Estados Unidos em sua campanha para derrubar o governo da Venezuela. O Brasil está promovendo o Fórum para o Progresso da América do Sul (Prosul), que articula governos de direita, e o fim da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e passou a privilegiar a Organização dos Estados Americanos (OEA), organização em que a influência americana é tradicional.

Bolsonaro tem reduzido os recursos para os programas estratégicos militares (cibernética, espacial, nuclear), além de promover a exploração de urânio por empresas estrangeiras, a venda da Embraer à Boeing, assistir ao esvaziamento do Centro de Estudos de Defesa da Unasul, em Quito. O Brasil tem participado de forma discreta de reuniões e conferências mundiais, com perfil baixo e sem apresentar propostas importantes, e considera as Nações Unidas um instrumento nefasto do que chama “globalismo” e de interferência externa nos assuntos nacionais, através da ação do que chamam de “marxismo cultural”.

O Mercosul tem sido desprestigiado e advogada sua transformação (dissolução) em uma Zona de Livre Comércio para poder o Brasil negociar acordos bilaterais com os EUA e outros países desenvolvidos. O Brasil não se interessa em fortalecer a cooperação com a Argentina, nem mesmo quando seu governo é simpático ao Brasil, nem com a África. O Brasil tem se afastado deliberadamente de qualquer política de cooperação com os Estados subdesenvolvidos,

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do que chamam Cooperação Sul-Sul, que, a seu juízo, nenhum benefício trouxe ao Brasil.

Na gestão Guedes/Bolsonaro/Araújo, não há nenhuma preocupação com a perda de participação das manufaturas no total das exportações, com o acentuado processo de desindustrialização, resultado de uma política cambial de valorização do real e controle da inflação, nem com a diversificação do comércio exterior. O apoio à internacionalização das empresas de capital brasileiro, em competição com megaempresas multinacionais, não somente na África e América Latina, mas inclusive nos Estados Unidos e na Europa, tem sido considerado como “criminoso”. O governo tem permitido a desorganização e destruição de grandes empresas brasileiras, o que não ocorreu em outros países, onde os empresários culpados por corrupção foram punidos e as empresas preservadas.

A luta pela redistribuição de quotas e de poder de voto no Fundo Monetário Internacional (FMI) e no Banco Mundial foi abandonada devido à oposição americana e ao desejo de Bolsonaro de alinhamento incondicional com os interesses americanos. Nem o presidente Bolsonaro nem o chanceler Araújo atribuem importância ao objetivo histórico da política exterior brasileira e são até contrários ao Brasil vir a ocupar um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas e à coordenação com o Japão, a Alemanha e a Índia, para atingir esse objetivo.

Ao contrário da “política” externa de Bolsonaro/Araújo, que parece se fundar em visões religiosas de luta entre o Bem e o Mal, entre o Ocidente e o Oriente, entre valores cristãos e de outras (religiões?) e onde Trump é o Salvador do Ocidente, uma política externa realista para o Brasil deve levar em conta sua localização geográfica suas características como sociedade, economia e Estado, suas vulnerabilidades e seu potencial. O Brasil se encontra na América do Sul e em frente ao Atlântico Sul e a 23 Estados da África Ocidental. Essa é a sua localização, e não qualquer outra que seria utópica. Por essa razão, o centro principal de sua política externa deve ser a América do Sul, o Atlântico e a África Ocidental, mas a essas áreas não devem se limitar, de forma alguma, seus interesses e suas ações de política externa.

É objetivo estratégico permanente americano evitar, de forma ativa e enfática, a emergência, em qualquer região do mundo, de um Estado, ou associação de Estados, que desafie sua hegemonia e sua influência política, militar e econômica. Essa prioridade americana é ainda mais aguda e sensível em relação ao Caribe, à América Central e ao norte da América do Sul, como revelam as declarações americanas sobre a presença russa na área.

A política brasileira na América do Sul (e ainda mais na América Central e no Caribe) deve ser, em consequência, prudente, mas firme e ativa sem se deixar envolver e sem se alinhar com os interesses hegemônicos dos Estados Unidos, centro do Império Americano.

O Brasil apresenta enorme disparidade de território, de população, de recursos e de potencial em relação a seus dez vizinhos de fronteira, cujo desenvolvimento, prosperidade,

estabilidade e cooperação são, todavia, de extremo interesse para os objetivos nacionais brasileiros. As dificuldades de natureza econômica nos vizinhos podem se transformar em instabilidade social e esta em instabilidade política, com eventual transbordamento para o Brasil, sob a forma de migração ou de atividade inclusive militar de grupos irregulares.

Os objetivos nacionais brasileiros, isto é, da enorme maioria do povo brasileiro, não necessariamente das classes hegemônicas e das elites dirigentes que governam em seu nome, são: aperfeiçoar a democracia; promover o desenvolvimento econômico; reduzir as injustiças sociais e defender a soberania.

A democracia brasileira é frágil e a participação popular, declarada soberana pela Constituição de 1988, é articulada (manipulada) em seus procedimentos pelos interesses das classes hegemônicas econômicas e políticas, através de seus instrumentos de ação e da elite dirigente (ministros, altos funcionários, políticos etc.) que trabalha em seu nome. A influência dos interesses políticos e econômicos dos impérios e de potências sobre esses processos políticos, exercida através dos tempos, foi e é notável, realizada muitas vezes através de agentes internos e de seus vínculos com as classes hegemônicas do Império Americano.

O número de vizinhos e a disparidade de dimensões são de tal ordem, assim como os ressentimentos históricos do processo de formação do território brasileiro, e entre os Estados vizinhos, que afloram no presente e fazem com que o Brasil nunca deva interferir nos processos políticos dos Estados vizinhos. Cada Estado vizinho teve uma evolução política, econômica e social própria, decorrente das inter-relações de forças internas e externas, e não cabe ao Brasil julgar os seus méritos nem tomar partido, sob pena de criar ressentimentos desnecessários e de difícil superação.

O Brasil (suas elites dirigentes e suas classes hegemônicas) se ressentiria profundamente de qualquer interferência dos Estados vizinhos em sua política interna. Aliás, o “espantalho” de interferência (cubana, venezuelana, chinesa) é agitado periodicamente por certos grupos para advogar ações de política externa. É verdade que as classes hegemônicas brasileiras (e sua elite dirigente) não se ressentem de interferência do Império Americano na política e economia brasileira até por serem muitas vezes aliados. Cabe à política externa estar atenta a qualquer iniciativa de interferência externa (que são permanentes) em seus processos políticos internos e de iniciativas “multilaterais” nesse sentido para contra-arrestá-las.

Samuel Pinheiro Guimarães foi secretário geral do Itamaraty (2003-2009) e ministro de Assuntos Estratégicos (2009-2010).

Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 25

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