Revista Jornalismo e Cidadania Ed. 32

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Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 1 Jornalismo Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade | PPGCOM/UFPE | ISSN 2526-2440 | e cidadania nº 32 | Setembro e Outubro de 2019

JORNALISMO E CIDADANIA

Expediente

Editor Geral | Heitor Rocha professor PPGCOM/UFPE

Editor Executivo | Ivo Henrique Dantas doutorando PPGCOM/UFPE

Editor Internacional | Marcos Costa Lima

Pós-Graduação em Ciência Política/UFPE

Revisão | Laís Ferreira / Bruno Marinho

Mestre em Comunicação / Mestrando em Comunica;áo

Articulistas |

PROSA REAL

Alexandre Zarate Maciel

Doutor em Comunicação

MÍDIA ALTERNATIVA

Xenya Bucchioni

Doutora PPGCOM/UFPE

NO BALANÇO DA REDE

Ivo Henrique Dantas

doutorando PPGCOM/UFPE

JORNALISMO E POLÍTICA

Laís Ferreira

Mestre em Comunicação

JORNALISMO AMBIENTAL

Robério Daniel da Silva Coutinho

Mestre em Comunicação UFPE

JORNALISMO INDEPENDENTE

Karolina Calado

Doutora PPGCOM/UFPE

MÍDIA FORA DO ARMÁRIO

Rui Caeiro

Doutorando em Comunicação

MUDE O CANAL

Ticianne Perdigão

Doutora PPGCOM/UFPE

COMUNICAÇÃO NA WEB

Ana Célia de Sá

Doutoranda em Comunicação UFPE

NA TELA DA TV

Mariana Banja

Mestre em Comunicação

Alunos Voluntários | Lucyanna Maria de Souza Melo

Nathália Carvalho Advíncula

Matheus Henrique dos Santos Ramos

Colaboradores |

Alfredo Vizeu Professor PPGCOM - UFPE

Túlio Velho Barreto Fundação Joaquim Nabuco

Gustavo Ferreira da Costa Lima Pós-Graduação em Sociologia/UFPB

Anabela Gradim Universidade da Beira Interior - Portugal

Ada Cristina Machado Silveira Professora da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM

Antonio Jucá Filho Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco – FUNDAJ

Auríbio Farias Conceição Professor do Departamento de Letras e Humanidades – DLH/ UEPB

Leonardo Souza Ramos

Professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC –Minas Gerais e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Potências Médias (GPPM)

Rubens Pinto Lyra

Professor do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas  da UFPB

Editorial

Prosa Real

Comunicação na Web

Opinião | Henrique Fernandes e Rafael Borges

Opinião | Pedro Bocayuva

Opinião | Heitor Scalambrini

Opinião | Luis Emmanuel

Opinião | Alexandre Gomes et al.

Opinião |Marcos Costa Lima

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Índice
Opinião
Opinião
Pinheiro | 3 | 4 | 6 | 8 | 10 | 12 | 14 | 16 | 18 | 20 | 22 | 24 Acesse: facebook.com/ Jornalismoecidadania | issuu.com/revistajornalismoecidadania
Opinião |Robério Coutinho
|Rubens Pinto Lyra
|Samuel

Editorial

Por Heitor Rocha

Otriste espetáculo que assistimos no Brasil com a incontinência verbal do presidente da República e seus filhos não consegue ocultar a omissão do governo quanto à tomada diligente de providências para conter o “pecado ecológico” do desmatamento e das queimadas na Amazônia e o vazamento de óleo nas praias do Nordeste, considerado o maior desastre ambiental na costa brasileira.

Pior, porém, do que as baixarias de pessoas com mentalidade de adolescentes mal-educados que se acham “o máximo” pela atenção da mídia por conta de seus cargos e dos desaforos com que tratam autoridades internacionais é o que passa ao largo de qualquer reflexão crítica das instituições jornalísticas com a perspectiva futura do país devido às tenebrosas consequências da reforma da previdência social aprovada e da reforma administrativa que vem sendo elaborada com requintes de perversidade para penalizar os trabalhadores a fim de compensar a desoneração dos custos dos empresários nacionais e multinacionais. Imaginar em quanto será reduzido o ultimo salário de quem se aposentar após a nova lei entrar em vigor com o cálculo de limitação em 60% da média de todos os salários recebidos pelo trabalhador já evidencia uma maldade considerável, mas que foi agravada com a informação, que a mídia só divulgou após a aprovação, que só receberá este percentual os contribuintes homens que atingirem 40 anos de trabalho e, no caso das mulheres, 35 anos. Portanto, a mídia jornalística deve à sociedade brasileira a informação de quanto será reduzida a aposentadoria em relação ao último salário do trabalhador na ativa.

O ódio demonstrado pelo receituário liberal em suas reformas contra os trabalhadores também é dirigido com grande alarde midiático, inclusive com o reforço do Banco Mundial, para desqualificar o funcionalismo público, de forma generalizada e sem contextualização, pelo seu custo às contas do Estado. Não se apura o aparelhamento que a ditadura militar realizou para se legitimar com a contratação, como prêmio por lealdade política, de funcionários sem concurso público, o que só veio a ser obrigatório para ingresso no serviço público depois da redemocratização com a Constituição de 1988.

Em nenhum momento, os ideólogos liberais e os comentaristas econômicos que exaltam o esforço de diminuição de gastos referem-se aos mais de qua-

trocentos bilhões de reais que as grandes empresas devem à previdência. Parece que a iniciativa privada não sonega impostos e não vive constantemente sendo perdoada de dívidas e recebendo “bondades” às custas do Estado. Não se encontra na mídia referência séria à dívida dos empresários, somente afirmações de que este é débito é “incobrável”, sem nenhuma preocupação em explicar por que o Estado não pode exigir legalmente o seu pagamento, ou em apontar os artifícios legais existentes para permitir esta sangria dos recursos públicos, ou ainda o que precisa ser reformado na legislação para corrigir este absurdo num país em que quase a metade da população sobrevive sem carteira assinada, sobretudo agora depois da reforma trabalhista.

Extraordinariamente, a 32ª edição da Revista Jornalismo e Cidadania está apresentando um artigo em que Samuel Pinheiro Guimarães, Secretário Geral do Itamaraty (2003-2009) e Ministro de Assuntos Estratégicos (2009-2010), descreve detalhadamente a política externa dos Estados Unidos para a América Latina, especialmente para o Brasil.

No seu relato, a história das estratégias colonizadoras dos EUA é reportada desde 1823, quando o presidente dos Estados Unidos, em mensagem ao Congresso, declara a América Latina como sua zona de influência exclusiva (Doutrina Monroe). Posteriormente, em 1904, com o Corolário Roosevelt, esta doutrina foi explicitada com a convicção histórica de direito dos Estados Unidos ao exercício de uma hegemonia natural sobre a América Latina.

No contexto de entrega da base militar de Alcântara aos EUA e das reservas de petróleo do pré-sal às empresas multinacionais, Samuel Pinheiro Guimarães observa como a operação lava-jato, com a sua prevaricação ao conspirar com a acusação para influir na eleição de 2018, se prestou à concretização dos objetivos estratégicos dos Estados Unidos.

Heitor Costa Lima da Rocha, Editor Geral da Revista Jornalismo e Cidadania, é professor do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.

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Prosa Real

Livro-reportagem, jornalismo e contexto

Temas variados de livros-reportagem levam a opções narrativas distintas

Os tipos de temas abordados em livros-reportagem exigiram posturas narrativas diferenciadas por parte de jornalistas escritores brasileiros entrevistados para esta coluna. Daniela Arbex, autora de livros de denúncia contundentes, como Holocausto brasileiro, a respeito do genocídio de pacientes do Hospital Colônia, em Barbacena; além de Todo dia a mesma noite, obra que traz a perspectiva dos familiares que perderam vítimas no incêndio da boate Kiss, em Santa Maria, Rio Grande do Sul, acredita que existe até mesmo um jeito feminino de narrar, que transparece na escolha dos temas, das abordagens, do olhar e na forma como os personagens aparecem no livro-reportagem: “tem coisas... por exemplo: no caso do Holocausto, o que mais me tocou? As mães que não puderam alimentar seus filhos. Porque eu estava amamentando o meu. E eu chegava em casa e ficava: ‘meu Deus, como se arranca isso de uma mãe?’” Ela tributa seu estilo de narrar à experiência do jornalismo, apostando bastante na descrição de ambientes e personagens, dando “rosto para os números”: “sempre quis mostrar para o leitor como aquela pessoa se sente, o sentimento daquela pessoa. Tem histórias que batem na veia, tem outras que não. Agora, qual é a mágica, se a gente soubesse a gente teria feito. Por que é uma mágica, entendeu?”

Por outro lado, como lidou com um tema árido, difícil de explicar em todas as minúcias em seu primeiro livro, Operação banqueiro, que trata do escândalo financeiro que envolveu o banqueiro Daniel Dantas, o jornalista Rubens Valente buscou exercitar a clareza. Para inserir o leitor naquela narrativa, segundo o autor, é preciso ser didático e paciente na explicação,

resistindo à tentação de transpor etapas. “Esse pulo de etapas pode ser tentador para o narrador que não quer se perder muito em detalhes, mas pode ser fatal para a compreensão do leitor, pode afastar o leitor definitivamente.” Ele destaca que tenta, a todo momento, não partir do princípio de que o leitor já sabe tudo sobre determinado assunto. Rubens Valente admite que a preocupação com a clareza, o que aproxima a narrativa de uma forma mais objetiva do que “literária”, pode tornar o texto mais “truncado”, ou “seco”. Entretanto, é preciso tomar cuidado, segundo ele, quando se está tratando de temas como “honra, intimidade, direito de presunção de inocência”, já que seriam questões que não permitiriam maiores arroubos criativos de linguagem. Uma interpretação mais adjetivada de algum fato que envolve o jornalismo sobre cri -

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Divulgação

mes de corrupção pode abrir brecha para uma penalização na Justiça.

Jornalistas escritores demonstram consciência da construção narrativa dos seus livros

Quando falam da construção narrativa dos seus livros, os jornalistas escritores entrevistados para esta coluna costumam argumentar longamente, e com consciência, sobre o “espírito”, a mensagem central que esperam ver compreendida por seus leitores. Com a missão de descrever o rio Amazonas desde a sua foz até onde desemboca no mar, com todos os elementos humanos e problemas ambientais que encontrou ao longo do seu caminho, Leonencio Nossa teve que fazer oito viagens, percorrendo um trecho a cada vez, e até retornando para alguns. Quem lê o livro O rio, no entanto, segue a viagem uma única vez, da nascente até o oceano Atlântico. O jornalista explica que a narrativa que tentou engendrar é “como se tivesse incorporado a fluência do Amazonas na escrita”. Leonencio procurou contestar uma “visão exótica da Amazônia” que aparece em tantas obras e mostrar uma região “em que o ribeirinho, o índio, pudessem ser descritos como personagens, com voz. Uma voz única, uma voz de poder por meio da cultura”.

Mais do que buscar uma definição fechada, como, por exemplo, a alcunha de jornalismo literário, na ótica da jornalista e escritora Adriana Carranca (Malala, a menina que queria ir para a escola) seria apropriado entender como os autores de livros pensam suas reportagens: “têm que ser bem-escritas, bem-apuradas, têm que ser corretas, têm que ser investigadas para você chegar naquela conclusão”. Assim, na narrativa, segundo Adriana Carranca, é possível, por exemplo, descrever melhor os ambientes e personagens, por isso certa comparação com os elementos da literatura. Mas há muitas diferenças de olhar entre o autor ficcional e o jornalista. “A casa onde o personagem mora: o autor de ficção cria aquela casa tudo arrumadinho. A gente faz o contrário, que é observar o personagem. Ele já está lá, criadinho para a gente.”

Livros de reconstituição histórica também exigem cuidado com a linguagem

Para o escritor Laurentino Gomes, o jornalista não pode cair na tentação de “preencher lacunas do conhecimento com ficção”. Na abertura do capítulo que trata da chegada de D. João VI ao Rio de Janeiro, no livro 1808, por exem -

plo, Laurentino Gomes diz que o céu estava azul, fazia calor e uma brisa soprava do mar do continente. Mas apoiou todas essas descrições nos relatos deixados por um cronista conhecido como padre Perereca: “tinha um sujeito lá, tinha um repórter, então eu sigo a narrativa dele. Agora... a maneira como eu descrevo não são as palavras dele. Daí eu uso ferramentas da literatura”. Laurentino conclui que, se o autor de livros de reconstituição histórica, como ele, “reproduzir mecanicamente as fontes originais, o texto fica chato”. Ao mesmo tempo, se partir para a “construção meramente literária, acaba fugindo da reportagem e entrando no território da ficção”, pisando no terreno do romance histórico.

Referências:

ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro: genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil. São Paulo: Geração Editorial, 2013.

_______, Daniela. Todo dia a mesma noite: a história não contada da boate Kiss. São Paulo: Insular, 2018.

CARRANCA, Adriana. Malala: a menina que queria ir para a escola. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2015.

GOMES, Laurentino. 1808. São Paulo: Planeta, 2007.

MACIEL, Alexandre Zarate. Narradores do contemporâneo: jornalistas escritores e o livroreportagem no Brasil. Recife, 2018. Tese (Doutorado em Comunicação)-Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Disponível em: https:// repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/29836/1/ TESE%20Alexandre%20Zarate%20Maciel.pdf

NOSSA, Leonencio. O rio: uma viagem pela alma do Amazonas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

VALENTE, Rubens. Operação banqueiro. São Paulo: Geração Editorial, 2014.

Elaborada pelo professor doutor do curso de Jornalismo da UFMA, campus de Imperatriz, Alexandre Zarate Maciel, a coluna Prosa Real traz, todos os meses, uma perspectiva dos estudos acadêmicos sobre a área do livro-reportagem e também um olhar sobre o mercado editorial para esse tipo de produto, os principais autores, títulos e a visão do leitor.

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Comunicação na Web

Jornalismo, Sociedade e Internet

de Sá

A robotização do jornalismo no cenário da convergência midiática

Arobotização do jornalismo tem avançado no cenário de convergência midiática na web. O uso de algoritmos, que definem uma sequência finita de ações executadas pelo computador para atingir objetivos preestabelecidos pelo ser humano, possibilita captar e selecionar dados, transformar esses materiais em notícias e difundir os conteúdos de modo rápido e automatizado. Na evolução do jornalismo algorítmico, Túñez-López, Toural-Bran e Nogueira (2019) ressaltam a função redacional dos softwares, permitindo a passagem do jornalismo de dados para o computacional, o qual funciona por meio da abstração de informações a fim de criar modelos computáveis.

Lindén (2018) ressalta que não há uma definição formal consensual dos algoritmos, mas que o termo se refere normalmente “[...] a um conjunto de operações autossuficientes a serem desempenhadas passo-a-passo, como cálculos, processamento de dados e raciocínio automatizado – um conjunto de regras que definem precisamente uma sequência de instruções que serão compreendidas por um computador” (LINDÉN, 2018, p. 8).

Desta forma, ações que costumavam ser realizadas por jornalistas ficam a cargo do computador. “A despeito das indefinições do jornalismo baseado em regras, a codificação do conhecimento jornalístico já acontece: formas específicas de trabalho jornalístico têm sido quebradas em partes que podem ser automatizadas” (LINDÉN, 2018, p. 10). A filtragem de dados e as análises estatísticas exemplificam essa automação, que traz maior precisão ao trabalho e livra o profissional de atividades repetitivas, cansativas e

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Pixabay

susceptíveis a erros.

Os algoritmos também servem para estruturar conteúdos jornalísticos na web. Renó e Flores (2018), por exemplo, defendem o uso do fluxograma algorítmico circular rizomático como modelo da reportagem transmídia. Outras funções dos algoritmos são a personalização de conteúdos para o público por meio de aplicativos e sistemas; o apoio para seleção de pautas mediante análise de “buzz” (os assuntos discutidos na internet); e o suporte para a atualização da agenda jornalística no contexto da cultura participativa na web.

Por outro lado, a desumanização do trabalho pode desvalorizar os princípios essenciais do bom jornalismo, como a interpretação, o pensamento crítico, a contextualização social dos fatos e a defesa da democracia. A mecanização também pode resultar na superficialidade textual normalmente atribuída à geração automática de notícias, pois os softwares costumam seguir padrões estruturais técnicos mais simplificados e sem um real contato e compreensão do contexto social.

O mau uso da tecnologia também pode ser apontado como um valor negativo do jornalismo algorítmico. Os robôs (ou “bots”) podem ser configurados por algoritmos para produção e disseminação em larga escala de notícias falsas (“fake news”) e/ou maliciosas, algo bastante observado nas plataformas de redes sociais, como Twitter e Facebook, e nos aplicativos de mensagens instantâneas, a exemplo do WhatsApp. Isso pode conduzir à desinformação e à manipulação para fins específicos na política, na economia ou em outras áreas, em um distanciamento do papel social do jornalismo e dos princípios democráticos.

A automatização do jornalismo ainda pode levar à diminuição do número de jornalistas nas redações, já que os softwares realizam parte do trabalho humano. Esta questão tem sido levantada desde a popularização da web como espaço de atuação jornalística, porém o aprimoramento das tecnologias digitais produtivas mantém este tema em discussão.

Conforme visto, a geração de notícias por softwares tem surtido efeitos positivos e negativos sobre as práticas jornalísticas. “Os jornalistas estão vivendo a transição de um mundo de exposição e reação a uma avalanche de informações amplamente não estruturadas para um ambiente de informações estruturadas, em que os acontecimentos podem ser antecipados em uma extensão maior que antes” (LINDÉN, 2018, p. 11). Por isso, é necessário atualizar antigas práticas e de -

senvolver novas competências, desde a formação universitária, para a potencialização da tecnologia digital, a renovação de postos de trabalho e a manutenção da relevância profissional.

Na sociedade convergente, a aproximação entre jornalismo e tecnologia digital soa natural, já que o primeiro mantém, ao longo da história, forte ligação com o contexto social em seus aspectos humanos, econômicos, políticos, culturais e tecnológicos. Desta forma, em seu processo evolutivo, o jornalismo precisa compreender a conjuntura na qual está inserido, agregar valores aos processos comunicacionais vigentes e potencializar os recursos digitais, sem determinismo tecnológico.

Referências:

LINDÉN, Carl-Gustav. Algoritmos para Jornalismo: o futuro da produção de notícias. Tradução de Guilherme Martins Batista e Stefania Ludescher Souza Ricciulli. Líbero, v. 21, n. 41, p. 5-27, 2018. Disponível em: <http://seer.casperlibero.edu.br/ index.php/libero/article/view/973/897>. Acesso em: 29 set. 2019.

RENÓ, Denis; FLORES, Jesús. Periodismo

Transmedia. Nueva edición actualizada. Aveiro: Ria Editorial, 2018. [e-book]. Disponível em: <https:// adobeindd.com/view/publications/5dabf7da-b24e48cf-b56f-cc7378b4b701/kemm/publication-webresources/pdf/Periodismo_Transmedia.pdf>. Acesso em: 08 set. 2019.

TÚÑEZ-LÓPEZ, Miguel; TOURAL-BRAN, Carlos; NOGUEIRA, Ana Gabriela. Criação das Notícias e Automação: Robotização na Era do Big Data. IN: TOURAL, Carlos; CORONEL, Gabriela; FERRARI, Pollyana (Orgs.). Big Data e Fake News na Sociedade do (Des)conhecimento. 1. ed. Aveiro: Ria Editorial, 2019. [e-book]. Disponível em: <https://adobeindd. com/view/publications/4254da4a-f972-4dea-aa67fa5e30e84bce/bra5/publication-web-resources/pdf/ Big_data_e_fake_news.pdf>. Acesso em: 28 set. 2019.

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Ana Célia de Sá é jornalista e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (PPGCOM-UFPE).

Opinião

Bolsonaro réu em Haia? O ecocídio já é um crime contra a humanidade

Por Henrique Fernandes de Magalhães e Rafael Borges Bias

Otermo land grabbing descreve o fato de comunidades perderem suas terras utilizadas no sustento próprio para fins como especulação, extração, controle de recursos ou mercantilização. A prática é associada à destruição do ambiente natural e é característica da dinâmica agrária do capitalismo contemporâneo, consequência da atuação do capital financeiro no mercado de terras, estabelecida por esquemas obtusos com a indústria agrícola, grileiros, tabeliões, políticos, juízes e a estrutura do Estado. Há grande interesse do agronegócio brasileiro em transformar seu capital latifundiário imobilizado em um ativo financeiro lucrativo, o que é feito mais pela expansão da área possuída do que pelo aumento da produtividade. Assim, os fundos de pensão investem no setor para se apropriarem da renda obtida pelo controle do solo, diversificando seus portfólios em ativos considerados seguros, como atividades agrícolas, especialmente após o boom das commodities dos anos 2000 e a crise de 2008. Nesse contexto, a dinâmica de acumulação de capital na Amazônia é ligada diretamente ao domínio de territórios e recursos naturais, o que se observa pela comparação da série histórica do desmatamento com a presença e atuação do Estado na região, como mediador do capital nacional e internacional na dominação do espaço amazônico.

Em um país onde o crime de grilagem acompanha o avanço do capitalismo agrário desde o início do século XX, a prática de incêndios criminosos com fins de desmatamento, como a do Dia do Fogo na Amazônia, realizado por ruralistas estimulados pelo Bolsonaro, é reflexo direto da irresponsabilidade dos capitalistas com a qualidade de vida e a vida em si. O que se agrava com a eleição de um programa político neoliberal na economia e fascista nos costumes, totalmente avesso a qualquer parâmetro de civilização e à estrutura democrática do Estado.

O desmonte da política ambiental brasileira pela direita - produzido pelo aparelhamento e militarização dos órgãos de fiscalização e proteção ambiental, negacionismo científico, revisão das unidades de conservação, corte no orçamento do IBAMA, visão dos índios e quilombolas e seus territórios como inimigos do desenvolvimento

nacional, saída do Acordo de Paris, agressão a ONGs preservacionistas e países que financiavam o Fundo Amazônia, abrandamento das punições por ilícitos ambientais e desvirtuamento de políticas de proteção – faz parte de um contexto de violação dos territórios de povos tradicionais e da população amazônica.

Essa conjuntura indica a ocorrência de Racismo Ambiental, pois reforça o estigma e marginalização de populações humanas mais periféricas e vulneráveis. Segundo a pesquisadora Tania Pacheco, esse tipo de racismo está, também, em ações que têm impacto “racial”, independe das suas origens, o que nos desafia a ampliar nossas visões de mundo. Com base nisso, é possível notar um quadro de apartheid social produzido pela estratégia neodesenvolvimentista, marcada por um capitalismo predatório que tende a exterminar muitas populações, seja por desnutrição, seja por outras doenças advindas da miséria absoluta. Isso quando elas não são expulsas de seus lares, a fim de que megaprojetos se estabeleçam, sob a barganha de empregos e em nome do progresso. Para os ocupantes originais dos territórios – povos indígenas, remanescentes de quilombos, agricultores familiares, ribeirinhos, pescadores artesanais, caiçaras, marisqueiras –, resta somente alguma forma de exílio: do confinamento em assentamentos ou em reservas cada vez menores, sem condições para garantir suas tradições culturais e sequer a subsistência, ao desterro e à migração para os centros urbanos, onde dificilmente conseguem algum espaço para viver com dignidade. Na maioria dos casos, acabam nas favelas, subúrbios ou no entorno de fábricas, poluídos pelos lixões e resíduos tóxicos. Em um cenário jurídico-político marcado por um “grande acordo nacional” entre os ocupantes dos altos cargos do Estado, destinado a entregar a soberania do povo brasileiro a quem compre melhor, resta o socorro de órgãos internacionais. Assim, há a possibilidade concreta de acionamento do Tribunal Penal Internacional (TPI) como meio para questionar e responsabilizar pela degradação ambiental. De acordo com o Estatuto de Roma, a Corte tem competência para julgar crimes graves que afetam a comunidade internacional, como é o caso dos crimes contra a

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humanidade (art. 1 e 5).

O art. 7º prevê como crime dessa estirpe o “ataque contra uma população civil”, que é a prática de violações enquanto política de um Estado ou de uma organização. É inegável que o Governo Bolsonaro se volta ao extermínio da população indígena, tanto pelas declarações dele, quanto pela conivência das instâncias de persecução penal com a invasão de terras demarcadas e a ineficiência de investigações sobre os assassinatos de povos tradicionais em conflitos agrários. Também, a omissão do Estado quanto à preservação ambiental e à integridade do território amazônico configura crime contra a humanidade por ser um ato que causa intencionalmente grande sofrimento ou afeta gravemente a saúde física ou mental de uma população, o que ocorre conforme os seguintes indicadores: o suicídio entre indígenas é três vezes maior que a média nacional, resultado da falta de demarcação de terra, do preconceito e da interculturalidade. Relatório do Conselho Indigenista Missionário sobre violência contra índios demonstra um aumento sistêmico e contínuo na quantidade de registros de suicídio (128), assassinato (110), mortalidade na infância (702) e das violações relacionadas ao direito à terra tradicional.

Diante disso, é permitida a intervenção do Tribunal de Haia, que exerce sua jurisdição após denúncia por Estado-Parte, pelo Conselho de Segurança da ONU ou por iniciativa do próprio procurador da Corte (art. 13). Vale ressaltar que, em 2016, o Escritório do Procurador do Tribunal estabeleceu a exploração ilegal de recursos naturais e destruição do meio ambiente como pontos estratégicos de atuação, inclusive aponta como critério de eleição de casos para julgamento o impacto dessas práticas. Antes mesmo desse relatório, em 2014, o Tribunal já admitiu um caso do Camboja, após a Federação Internacional para os Direitos Humanos comunicar ao Procurador despejos forçados generalizados e sistemáticos e o deslocamento da população civil decorrente da apropriação de terras pela elite local.

Longe de ser a solução última para o problema da política ambiental brasileira, o acionamento do TPI pode promover uma mudança cultural, além de medidas concretas, para que populações historicamente discriminadas e invisibilizadas possam exercer sua cidadania, ao defenderem seus direitos pela vida, que abrange o território, a saúde, os ecossistemas e a cultura. Nada obstante, reconhecemos que esses problemas e conflitos são complexos e exigem soluções de curto, médio e longo prazo, incluindo mudanças estruturais nos sistemas de produção e consumo

das sociedades capitalistas hodiernas, bem como nas políticas públicas e práticas das organizações. Em suma, a concepção de saúde – seja ela física ou psicossomática – e ambiente transcende as variáveis do saneamento básico, da contaminação ambiental por poluentes e das doenças e mortes decorrentes desses fatores. Ela está associada à noção de justiça ambiental e seus movimentos. Defender e promover a saúde implica, pois, a construção de uma sociedade mais igualitária e digna para todas e todos. Sob essa ótica, teóricos como Enrique Leff pontuam uma estreita relação entre sustentabilidade e democratização, uma vez que não haveria possibilidade de apreender a primeira sem deliberação pública. Isso coloca em questão os limites da democracia representativa na sua interface com a sustentabilidade.

Ademais, embora a ideia de sustentabilidade propagada pela ONU almeje compatibilizar o crescimento econômico com o desenvolvimento humano e a qualidade ambiental, ela não referenda um projeto de superação do capitalismo, por defender que o próprio sistema possua caminhos para alcançar patamares mais humanizados e ecológicos. A crítica marxista parte exatamente desse ponto, problematizando a alienação das relações produtivas capitalistas mediante a corrente do ecossocialismo, que se refere a um modelo de produção que integra e respeita a simbiose metabólica entre seres humanos e natureza. As sucessivas catástrofes ambientais e “climáticas” recentes, como as queimadas na Amazônia ou o rompimento da barragem de Brumadinho, permitem-nos inferir que estamos diante de uma crise estrutural não somente do capital, mas também da vida na Terra. Dessa forma, somos desafiados mais do que nunca a questionar e denunciar esse modelo produtivista no qual o lucro está acima de tudo e propormos modelos de sociedade que invertam essa lógica.

Henrique Fernandes de Magalhães é Doutorando em Etnobiologia e Conservação da Natureza (UFRPE), Biólogo e pesquisador do Laboratório de Ecologia e Evolução de Sistemas Socioecológicos (LEA/UFPE)

Rafael Borges Bias é Advogado, Mestrando em Direito (UFPE) e membro do Grupo de Estudos Direito do Trabalho e Teoria Crítica (PPGD – UFPE) e da Rede Nacional de Pesquisadores em Direito do Trabalho e Previdência Social (RENAPEDTS)

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Opinião

Brasil em agosto de 2019: a crueldade e a sedução da barbárie

Omês de agosto tem marcas dramáticas na nossa história. Nada como a literatura para imortalizar episódios dramáticos da história como o suicídio de Getúlio Vargas ou a renúncia de Jânio Quadros. Basta citar o livro de Rubem Fonseca, “Agosto”, que teve sua primeira edição em 1990, após a Constituinte, abrindo uma nova vertente do romance brasileiro, ao combinar cotidiano com personagens urbanos e a questão criminal. Neste livro, a morte de Getúlio tem um forte impacto e apelo que atinge o mais fundo da sensibilidade para o drama brasileiro, na figura mais paradoxal da nossa história.

No suicídio, na comoção das massas é levada ao paroxismo, no legalismo de figuras da estatura do Marechal Lott o golpe foi atrasado, de certa forma a morte do Vargas do período democrático forçou uma contenção do golpe, assim como a renúncia de Quadros acelerou a história na polarização e na ação golpista. O mês de agosto entra sempre neste registro de ser longo e dramático na memória histórica. Neste século XXI, o agosto de 2019 parece merecer o exame pelas rupturas que promove e pelo prenúncio de grandes desafios com bloqueios para o futuro. A aceleração da disputa pelo poder gerada desde a convergência problemática das forças de centro e de direita na direção do cesarismo de extrema direita na forma do “bolsomilicianismo”, acelera o catastrofismo e divide a nação.

O mês de agosto de 2019 pode ser visto como um tempo de explicitação da conjuntura do golpe através do tripé: ataque aos direitos sociais, ataque ao direito à informação e recrudescimento da chamada “guerra híbrida”. A dinâmica do processo golpista tenta contrabalançar os desgastes, ampliar o medo coletivo, liberar para as chacinas, insistindo no horizonte de concentração de poder pessoal, de uma relação direta entre o desejo de tirania e suas bases políticas e religiosas, mesmo que ao preço de queimar aliados e governar de maneira desabusada e personalista. A chamada para a formação de uma unidade do bolsonarismo, para uma espécie de camisas pardas, negras ou de “galinhas verdes” contra o STF, a firmação do direito ao nepotismo, a violência

na inversão de valores sobre a ditadura e a tortura, vem fazendo a destruição por cima, o que as chacinas nas periferias e presídios e governos como o do Rio de Janeiro fazem embaixo.

O reino de crueldade se afirma como tendência que rearticula as chaves da servidão, do encarceramento, da precarização e da injustiça seletiva com o aprofundamento da necropolítica. Apesar da verdade revelada pelo “The Intercept”, o governo criminaliza e revida em todas as linhas contra o que sente como ameaça, como sobre o jornalista Gleen Greenwald e sua família, como sobre Lula, tentando dar folego para Moro e buscando consolidar sua linha direta com Trump e a agenda de guerra hibrída global norte-americana. Vivemos uma sobreposição de lógicas que hibridizam a guerra contra os direitos civis, a guerra suja contra os pobres sob o pretexto do ataque a um suposto narco-terrorismo, a guerra comercial contra a China. Numa conjuntura que vem tensionando os regimes rebeldes e a Rússia.

Os EUA vêm rompendo acordos comerciais e de limitação da proliferação nuclear. Nosso alinhamento com Trump vem provocando nosso isolamento crescente na cena internacional, em especial na questão ambiental e nos direitos humanos. O que já produz efeitos e riscos para o multilateralismo pragmático e as relações Sul-Sul que davam ao Brasil, na era petista, algum destaque na cena global. Ao mesmo tempo, o atual governo libera sem compromisso real com ela para a agenda neoliberal. Mas devemos destacar a forma irresponsável com que o presidente e seu Ministério liberam a voz de um extremismo que se alinha com os porões da ditadura, ao ponto de causar espécie até mesmo nos que defendiam o antigo regime na chave da guerra fria em nome de valores ocidentais. Os valores dos direitos humanos e da democracia ocidental são recusados e atacados por este governo e congêneres estaduais, que pregam a morte e a violência em nome das suas cruzadas completamente oposta aos ensinamentos contidos no Novo Testamento.

Mais do que justificativa do passado, emergem forças obscuras e personagens que afirmam o direito de matar e mentem sobre as vítimas da ditadura. Desta forma, o negacionismo avança. O

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custo de superação da crise fica maior num país que nega a função da cultura, que desvaloriza a ciência e a tecnologia, que destrói a educação pública. O governo sonega e ataca a qualidade do monitoramento e da estatística que fundamenta a ação pública. Em todo canto o presidente sarcasticamente afirma seu personalismo narcisista que substitui a autoridade do cargo pelo bate boca, a vingança e a punição.

Existe uma combinação de objetivos e alinhamentos de forças que relacionam esta violência extrema e visível, esta pulsão da crueldade tão bem expressa no seu ataque a OAB, a Felipe Santa Cruz, a AP, a APMLe a toda a resistência de esquerda. Existe uma combinação entre alinhamento com os Estados Unidos e objetivos geopolíticos de submissão real (base de Alcântara) e simbólica (aliado externo da OTAN), privatização e destruição da proteção social. Existe uma combinação de objetivos ideológicos e de construção de base social, desgaste do poder legislativo, negociação direta com caminhoneiros, alinhamentos e distribuição de cargos entre membros das FFAAS e das distintas forças policiais. Existe um alinhamento na luta contra os direitos civis e o racismo institucional somando igrejas e a herança escravista. O governo se afina pela liberação e mobilização de governos, milícias, forças policiais e militares, bases de ativismo direto para atacar todas as expressões políticas, representações, lideranças e movimentos por igualdade e liberdade.

O governo desenvolve um discurso punitivo de uma criminologia do genocídio, pela afirmação do direito de matar. O que tem tido efeitos cada vez mais nefastos sobre as populações tradicionais, os negros, os nordestinos, os povos indígenas e a juventude periférica com consequências dramáticas de morte, sofrimento e dor. Vão se somando os efeitos das decisões relativas ao meio-ambiente, o impasse no pacote Mouro, o jogo de ações populistas e demagógicas sobre carteira de habilitação trânsito, terras indígenas, controle e falsificação da informação e ataques contra o direito de comunicação.

Agosto começou com a batalha da informação sobre a farsa judicial, com a segunda rodada contra a reforma da presidência, com o aprofundamento da guerra suja nas periferias, com a montagem e retomada das ações inconstitucionais de republicação de Decretos-Lei. O chefe de governo prefere atacar e depois fazer de conta que pode sempre retificar, sem pagar pela irresponsabilidade, usa os microfones e a internet como um pequeno Trump, mas cada vez fica mais evidente que ele governa numa direção

destrutiva e que as forças militares e as bases sociais que o sustentam ainda não abandonaram o barco, ainda se sentem vitoriosas. Está claro que a informação que mostra a impostura e a farsa da “Lava Jato” não furou ainda o moro da má consciência. As forças que sentem o desejo de matar, que preferem ficar cegas e de olhos fechados permanecem presas ao fanatismo.

O quadro ainda é de “Sedução da Barbárie e o marxismo na modernidade”, (Ideia que remete ao título de um ótimo livro de Nelson Brissac Peixoto, publicado em 1982 que tratava da cultura, do processo histórico e do pensamento crítico no contexto da República de Weimar na Alemanha pré-fascista e na virada para a revolução conservadora, racista, militarista e genocida do nazismo), da crise ligada ao excesso negativo que hoje chamamos simplesmente de crueldade.

Quando escrevia estas linhas o mês ainda não havia acabado. No dia 13 as forças democráticas, movimentos sociais e partidos de oposição se manifestaram. A extrema direita está tentando se unificar para canalizar o descontentamento contra o STF, embutindo todas as suas bandeiras sob o manto de dar mais poder a Bolsonaro. Certamente o desgaste ainda prevalece, de lado a lado o país continua dividido. A diferença é que as forças de resistência administram uma defensiva que de molecular precisa virar estratégica, e a direita se divide sob o ritmo, o comando e os modos de conviver com resíduos de uma institucionalidade, entre o desejo de uma semidemocracia restrita e expurgada e uma tirania. O Bolsonarismo representa in extremis o deseja passar ao ato, ao banho de sangue, sem poupar nenhuma das criaturas que povoam seus pesadelos. Assim, alimentando sua pulsão de morte para nos levar a um tempo longo de barbárie, de servidão voluntária com a fantasia simplificadora de que o mercado e o Império do Norte nos salvarão de nós mesmos culpados e devedores por desejarmos mais liberdade, justiça social e a ampliação da democracia.

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Pedro Cláudio Cunca Bocayuva é Coordenador do PPDH do Núcleo de Políticas Públicas em Direitos Humanos da UFRJ.

Opinião

Vendedores de ilusão: o caso da usina nuclear em Pernambuco

Por Heitor Scalambrini Costa

Uma forte ofensiva para a construção de novas usinas nucleares no país tomou fôlego no atual governo, principalmente pelo fato de quem está à frente do Ministério de Minas e Energia é um almirante da Marinha brasileira, atuante na área nuclear, tendo sido coordenador do programa Brasil e França para construção de submarinos, inclusive dois deles movidos a energia nuclear.

Além disso, outro fator não declarado abertamente contribuiu para esta ofensiva: o grande interesse de setores militares-civis para que o Brasil tenha sua bomba atômica. Tecnologia não falta ao país para construção deste artefato bélico. A questão atual para ainda não contar com a bomba tupiniquim é de origem econômica, pois seria necessário tornar competitiva a extração do urânio e de toda cadeia produtiva associada. Com as seis usinas nucleares previstas aumentaria assim a demanda desde a extração às diferentes industrias envolvidas no ciclo do combustível nuclear.

Pernambuco é a bola da vez para receber em seu território um complexo nuclear, composto por seis usinas, com uma potência instalada de 6.600 MW, a um custo total de 30 bilhões de dólares. O município “escolhido” foi o de Itacuruba, distante 470 km do Recife, na beira do Rio São Francisco, conhecido como rio da Integração Nacional, que banha sete Estados, beneficiando com suas águas mais de 500 municípios, com 20 milhões de nordestinos dependendo direta ou indiretamente deste grandioso rio e de sua bacia hidrográfica.

Em Pernambuco e em outros estados nordestinos as constituições estaduais vedam a instalação de usinas nucleares em seu território, o que seria um impeditivo legal para esta insanidade de nuclearizar o território brasileiro. Mas isto não parece ser problema para aqueles que se tornaram cristãos novos na defesa deste empreendimento, cujo conteúdo do discurso contém meias verdades e é capcioso, o que pode levar a população a

cometer erros de avaliação em seu processo de discernimento e de formação de opinião.

O recém convertido deputado estadual pernambucano Alberto Feitosa tem se destacado na defesa das usinas nucleares, inclusive propondo uma emenda à constituição estadual (Nº 000009/19 de 24/9/2019), para alterar seu artigo 216, que veda usinas nucleares no seu território. A redação proposta já induz a considerar a energia nuclear como uma fonte renovável, com suas vantagens intrínsecas. Má fé ou mesmo ignorância total? A energia nuclear (minérios radioativos) não é uma fonte renovável de energia.

Difícil entender esta posição, pois os argumentos utilizados levam a confundir e mesmo iludir as pessoas, e nada esclarecem e nem colaboram para o debate sério sobre o tema. Talvez a origem militar do nobre deputado tenha contribuído para este posicionamento de alinhamento automático aos setores pró-nuclear. Talvez? Porque realmente do tema conhece muito pouco, apesar de falar com toda retórica de um pseudo especialista, formado a “toque de caixa” para desempenhar a sua função, no intrincado jogo de interesses que envolvem os “negócios da indústria nuclear”.

Na justificativa para sua emenda constitucional, comete maledicências afirmando a competitividade da nucleoeletricidade, cujos custos para novos empreendimentos seria hoje de R$ 480,00/MWh (MegaWatt-hora), valor este já defasado, segundo o mais recente Relatório Anual da Industria Nuclear Mundial (WNISR), que aponta para os custos da energia nuclear entre US$ 112 e US$ 189 por MWh. Enquanto a energia eólica situa-se entre US$ 29 e US$ 56 por MWh, e a energia solar fotovoltáica entre US$ 33 a US$ 44 por MWh.

Na questão ambiental é uma verdadeira falácia dizer que a energia elétrica produzida pela usina nuclear não emite gases de efeito estufa (GEE). Não é dito ao cidadão que para fabricar o combustível de uma usi -

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na nuclear há uma série de processos, envolvendo várias indústrias: desde a mineração, beneficiamento, conversão, enriquecimento, fabricação das pastilhas de combustível, o descarte dos resíduos (reprocessamento e armazenamento). Além do processo de descomissionamento da usina depois de sua vida média de 50 anos. Todo este conjunto de atividades/processos emitem os chamados GEE, e que devem ser levados em conta neste falso debate que a energia nuclear é limpa.

Outro aspecto da soberba no discurso infundado dos prós é a tentativa de minimizar o máximo possível os riscos de acidentes em uma usina nuclear. Alguns mais fanáticos, mais irresponsáveis, chegam a afirmar a inexistência de risco de ocorrer um acidente, traduzido como vazamento de material radioativo para o ar, terra e água. Como verdadeiros “deuses” que tudo podem e tudo sabem, na ânsia de defenderem o indefensável; subliminarmente passam a ideia que podem controlar a natureza.

Um exemplo que serviu de alerta foi verificado em Fukushima. Lá a natureza disse a que veio. Um terremoto em alto mar, provocando ondas gigantescas (tsunamis), inundou e destruiu a casa de força do complexo nuclear, cortando a energia elétrica que movia as motobombas para circulação da água do oceano e, assim, deixando de refrigerar os reatores. O resultado provocado foi o derretimento de 3 reatores dos 6 existentes, seguido do vazamento de uma extraordinária quantidade de material radioativo para a natureza, com as consequentes mazelas que este tipo de acidente provoca.

As perguntas que não querem calar são:

“Por que então vamos correr este risco de um acidente nuclear com vazamento de radiação no rio São Francisco, se não precisamos dessas usinas para atender nossa demanda por energia elétrica, e que hoje o nuclear somente contribui com 1,1% de toda potencia elétrica instalada no país?”

“Por que recorrer a uma fonte de energia no minimo polêmica, com alto grau de periculosidade, se dispomos em abundância de outras fontes fornecidas pela natureza, como Sol, vento, água e matéria orgânica (biomassa)?”

“Por que recorrer a uma fonte que produz energia cara e que vai provocar mais ainda o aumento da fatura para o consumidor final?”

“Por que deixar para as gerações futuras o problema que ainda hoje é insolúvel: o que fazer com os resíduos criados nas usinas nucleares, com elementos químicos que podem continuar emitindo altas doses de radiação por milhares de anos; além das usinas gerarem artificialmente um isotopo do elemento químico plutônio, considerado o mais nocivo, o mais venenoso de tudo que existe no mundo?”

Se a energia nuclear é cara, perigosa e poluente, qual o motivo para instalar estas usinas em nosso país, no Nordeste brasileiro, ao lado do rio São Francisco?”

A não ser que acreditemos ainda num discurso vazio, já “cansado”, que é o do desenvolvimento (?) para a região, a geração de empregos, de renda, blá, blá, blá. Esta ladainha já não convence mais os homens e mulheres de bom senso, de boa vontade, que escutam essa mesma ladainha para justificar empreendimentos que só beneficiam alguns (os de sempre) e trazem sérios prejuízos para a maioria.

Precisamos impedir mais está insanidade. Dai a única força que impedirá mais este atentado a vida é a força do povo, o que significa a manifestação da maioria em dizer claramente: NÃO queremos, NÃO precisamos, e NÃO vamos aceitar a instalação de usinas nucleares no Brasil, no Nordeste, em Itacuruba.

Heitor Scalambrini Costa é Graduado em Física pela Universidade de Campinas (Unicamp/SP), Mestre em Ciências e Tecnologia Nuclear (DEN) pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Doutor em Energética (CEA) pela Université de Marseilhe/França.

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Opinião

A Normativa Jurídica para as Defensoras e Defensores de Direitos Humanos

ADeclaração Universal de Direitos Humanos de 1948 inaugura formalmente um novo horizonte na promoção a direitos fundamentais no pós Segunda Guerra Mundial. A partir de então, o Estado constitucional de finais do século XVIII e início do século XIX passa a ser reforçado em suas bases democráticas e da Dignidade humana com o sistema internacional de Direitos Humanos.

Nesse trabalho, focamos nossa atenção em três instrumentos normativos de natureza jurídica, que são desdobramentos qualitativos desse sistema normativo e, ao mesmo tempo, a percepção de riscos e perigos reais das pessoas que dedicam sua vida a reclamar a promoção e proteção de direitos de outras pessoas e grupos em condição de vulnerabilidade, insegurança e exclusão. Assim, o sistema internacional de Direitos Humanos, inaugurado em 1948, tem acrescido em sua legislação a Declaração das Nações Unidas sobre o Direito e a Responsabilidade dos Indivíduos, Grupos ou Órgãos da Sociedade de Promover e Proteger os Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais Universalmente Reconhecidos em 1998, a Declaração sobre Defensoras e Defensores de Direitos Humanos (Resolução 53/144 da Assembleia GeralDisponível em: https://www.ohchr.org/ Documents/Issues/Defenders/Declaration/declarationPortuguese.pdf).

Naquele tempo, o Estado brasileiro mantinha uma postura mais propositiva e comprometida com a legislação internacional e com o cumprimento das recomendações e decisões internacionais de Direitos Humanos. Evidentemente, esse contexto com muitas dificuldades, limitações administrativas, contraofensivas de blocos da má política e das corporações que sempre se mostraram reativos a mudanças relativas à transparência e accountability sobre direitos políticos,

sobre segurança cidadã, sobre universalização de acesso à Justiça, sobre orçamento público e direitos sociais. O Brasil nunca foi um “mar de rosas” em se tratando de respeito a direitos fundamentais, principalmente de grupos socialmente vulnerabilizados, que se lançavam a falar e exigir efetividade desses seus direitos. Porém, nenhum contexto desde a República é tão medonho em relação ao cumprimento de direitos como este iniciado em agosto de 2016. De fato, este contexto tem se mostrado como o maior desafio aos direitos fundamentais, aos Direitos Humanos, ao respeito irrestrito à Dignidade e à Democracia que o Brasil já experimentou em duzentos anos.

Essa atenção merece ser feita, mas não cabe aqui um aprofundamento maior. Voltemos, portanto, aos instrumentos de promoção e proteção às Defensoras e aos Defensores de Direitos Humanos. A adoção da Resolução 53/144 tem impacto imediato no Brasil, em especial no Estado de Pernambuco, cujo histórico de violência contra Defensoras e Defensores de Direitos Humanos sempre foi grande, com intimidações, ameaças, torturas e mortes de pessoas que se insurgissem contra autoridades policiais e pessoas de famílias políticas influentes, suspeitos de práticas criminosas e de violações de Direitos Humanos. Um caso emblemático é o da advogada Elma Novais, cujo filho Josenildo de Freitas Júnior, vítima de execução sumária supostamente cometida por grupos de policiais, chefiados por um capitão da Polícia Militar de Pernambuco, em 1999, na cidade de Caruaru, aproximadamente a 130km da capital Recife. O esforço de Elma Novais em fazer ir a julgamento esses policiais, a cobrança por investigação do crime, fez emergir a existência/ persistência de práticas investigativas da Polícia Militar, resquício da Dita -

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Militar, quando a polícia militar praticava investigação policial de forma autoritária, sem mandados, sem controle prévio e posterior. A tal chamada “segunda seção” ou “serviço de inteligência” vinha mantendo essas mesmas práticas esdrúxulas em pleno Estado de Direito. Por conta desse esforço, ela e sua família receberam muitas ameaças de morte. A inoperância da estrutura de segurança e justiça do Estado de Pernambuco em investigar e processar judicialmente a morte de Josenildo, bem como a inoperância em reagir às ameaças sofridas por Elma Novais e sua família, fizeram o caso ganhar repercussão internacional (Disponível em: https:// cidh.oas.org/annualrep/2009port/Brasil373.03port.htm) com o apoio do Movimento Nacional de Direitos Humanos – MNDH -, GAJOP e Anistia Internacional (Disponível em: https://www.amnesty.org/download/Documents/104000/ amr190012003pt.pdf).

A atuação da sociedade civil, nesse caso, foi muito importante porque houve uma articulação com o governo federal para a construção emergencial de uma proteção para Elma Novais e sua família. Essa articulação foi o projeto-piloto do Programa Nacional de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos, formalizado através do Decreto 6.044/2007 (Disponível em: http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/ Decreto/D6044.htm), que institui a nível federal as disposições gerais para a política e o plano de proteção a defensoras e defensores de Direitos Humanos.

Em nível estadual, a criação da lei 14.912/2012 (Disponível em: https:// www.amnesty.org/download/Documents/104000/amr190012003pt.pdf), com a previsão sobre a política e a forma de proteção a defensoras e defensores de Direitos Humanos em Pernambuco, foi e é algo a ser celebrado, porém não há, com isso, a abstenção à construção de críticas construtivas ao programa. Dois pontos de fragilidade ao programa estadual são estruturais; primeiro: a tendência da execução do programa em usar as mesmas estratégias de proteção a defensoras e defensores de Direitos Humanos do programa de proteção à testemunha (PROVITA). Essa sobreposição não

pode acontecer porque trata-se de objetivos diversos, apesar de haver o ponto comum da proteção. Sem dúvida, a falta de paradigma sobre proteção a defensoras e defensores de Direitos Humanos (o Brasil sai em vanguarda nesse ponto), ao mesmo tempo, de quase vinte anos de experiência na execução do PROVITA, razoável essa aproximação em primeiro momento, mas a insistência nisso é algo extremamente danoso à atuação pública das defensoras e defensores levados ao programa. Segundo, quanto à atuação do Conselho Deliberativo, a falta de uma previsão de ato procedimental transparente, um ato administrativo vinculado quanto à exclusão de defensoras e defensores de Direitos Humanos expõe o programa a discricionariedades de todo indesejadas e sem base qualquer de legalidade, de forma a poder gerar uma revitimização das defensoras e defensores postos à exclusão sem justificativas plausíveis, lançados de volta ao risco e ao perigo.

Dessa forma, percebe-se a existência de ganhos e dificuldades ainda a serem sanadas na legislação de proteção às defensoras e defensores de Direitos Humanos no Brasil. Esse é o mote do momento: fortalecer, aprimorar sem se deixar abater por tentativas de retrocesso.

Luis Emanuel Barbosa da Cunha é Doutorando em Direitos Humanos e Justiça na América Latina (PPGD-UFPE), advogado, professor universitário e consultor em direitos humanos junto à OEA e a ONU.

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dura

Opinião

Pacífico: “Um Oceano Chinês”

Por Alexandre José Gomes de Sá, Claudia Maria da Silva Cruz e Cláudio Pereira do Nascimento

Aprincípio, analisemos as informações de três relevantes intelectuais a respeito da China e do seu retorno ao “centro” da economia global. Ou seja, da possibilidade real de já estarmos inseridos num fabuloso e dinâmico processo de “Sinocentrismo” (A China é o centro econômico do mundo). Vejamos!

Conforme Padilha (2006, p.86), a China “desenvolveu-se sob bases tradicionais desde 221 a. C., ancoradas na atividade agrícola campesina e sob dinastias fechadas à modernidade ocidental”. Segundo Castro (2011, p. 1), “poucos questionam hoje, a ideia de que o centro de gravidade do crescimento econômico do mundo vem se deslocando para a China”. De acordo com Arrighi (2008, p. 393), “se essa reorientação conseguir reviver as tradições chinesas de desenvolvimento centrado em si mesmo, existe a possibilidade de contribuir decisivamente para o surgimento de uma comunidade de civilizações”.

Façamos a seguinte “digressão” no tempo, imaginando a seguinte situação: Somos - nós, os três autores desse texto, e vocês, os leitores e/ou leitoras do mesmo – pessoas do século XIV muito informadas a respeito da hegemonia que a China exercia sobre o Oceano Pacífico na época. Algo semelhante ao poder que os romanos antigos tiveram – guardadas as devidas proporções e motivações – sobre o Mar Mediterrâneo, chamando-o de “Mare Nostrum” (Mar Nosso). Pensamos, sem titubear, que houve um momento – correção: na verdade houve um muito longo período da história da humanidade em que os chineses,“provavelmente”, chamaram o Pacífico de algo similar ao que os romanos empregavam para definir o Mediterrâneo (Mar Nosso). Apenas para concluirmos essa digressão no tempo, cremos que no século XIV não existiam pessoas – por mais inteligentes ou viajadas que fossem – que,

de fato, tivessem “muito” conhecimento a respeito de que o mundo naquela época já era “Sinocêntrico”, ao menos o mundo banhado pelo Pacífico. Enfim, seria demais exigir que pessoas do século XIV não fossem limitadamente eurocêntricas (a visão de que a Europa cristã era o centro do mundo ou nem isso ainda, pois o conceito de eurocentrismo foi elaborado por séculos e séculos gradativamente).

Agora, sem digressões, e sem dúvidas, é pertinente afirmar que a China era na realidade o “centro” do mundo (há cinco ou seis séculos). Ou, empregando – longe de algum tom pedagógico – termos tecnicamente relacionados a geopolítica, a economia, a cultura, a tecnologia, entre outras variáveis. É correto dizer que a China chegara ao século XVIII como uma sociedade de perfil socioeconômico, político e identitário muito bem definidos. Aliás, em 2000 anos de história das civilizações até os dias atuais, ela foi “a maior potência” da Terra durante 1700 anos. Os outros 300 anos restantes (os séculos XVIII, XIX e XX) nós podemos dividir assim: 100 anos, (o século XVIII), “pertenceram” aos holandeses; mais 100 anos (o século XIX) a Inglaterra; e os últimos 100 anos (o século XX), ou um pouco mais que isso, já que estamos agora na segunda década do século XXI, “pertenceram” e ainda “pertencem” – até quando não sabemos – aos EUA.

Ora, dito tudo isso, cabe aqui um questionamento: se nós aqui no Brasil hodierno, bem “distantes” geograficamente de todas as três nações ricas supracitadas (Holanda, Inglaterra e EUA), e mais “distantes” ainda da República Popular da China (com essa nomenclatura desde de 1949, após a “Revolução Maoísta”), sabemos que esse país é hoje a segunda maior economia do mundo, atrás só dos EUA, imaginem o que os seus mais de 1.300.000.000 de habitantes liderados hoje pelo presidente Xi Jinping já

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sabem sobre sua relevância atual e sobre o seu passado glorioso (de 1700 anos de hegemonia mundial, ou, ao menos, de predominância no que tange ao Pacífico). Nos perdoem aqui, leitores e leitoras, mas incautos(as) são aqueles(as) que ainda creem que os chineses (não na sua totalidade, é óbvio, o que seria impossível, mas em sua maioria) não têm a consciência de que no passado houve um considerável período da história das civilizações, em que eles eram os “donos” do mundo. Como duvidar disso? Se no longínquo século XIV, portanto, quase 200 anos antes das tão decantadas em prosas e versos – “Grandes Navegações” -, empreendidas essencialmente pelos europeus – os chineses já dominavam a “arte” de navegar. Não uma navegação meramente de cabotagem, mas “transpacífica” e “transíndica”, e provavelmente transatlântica, de acordo com pesquisas mais recentes. Os chineses foram poderosos sem dúvidas, e já o são novamente, “e serão ainda mais”, podem aguardar.

Não fazemos nesse texto adivinhações, mas sim afirmações com base numa leitura do que tem acontecido (ou aconteceu) com a China nos últimos 41 anos. Desde que Deng Xiaoping chegou ao poder (em 1978, e nele ficou até 1997), promovendo as mudanças necessárias para que a grande nação (quinta maior do mundo em território e saudosa do seu passado de “hegemonia”) se torne a economia que mais cresceu e se desenvolveu na “Era da Globalização Econômica”, retirando mais de “600 milhões” de chineses da pobreza e gerando, por ano, “60 milhões” de empregos. Tendo, em um passado distante, contribuído para a humanidade com invenções como o papel, a pólvora, a escrita, um modelo de administração política (e de Estado), uma filosofia de vida, uma medicina, dentre várias outras dádivas de uma cultura milenar e cristalizada. No entanto, e concluindo, pensamos que o maior “presente” que a China está nos legando hoje é a possibilidade de testemunhar uma “mudança” de eixo na economia e na geopolítica do poder global. Essa “mudança”, merecidamente e de forma gradativa, recoloca a China no “centro” do mundo, mas não garante que ela voltará a ter o controle hegemônico

sobre o Pacífico. Porém, ao chegar ao “posto” de maior economia do planeta (e isso poucos duvidam que acontecerá em dez ou vinte anos), nos permite fazer dois últimos questionamentos: quem garante que os chineses não voltarão a tratar o Pacífico como os antigos romanos tratavam o Mediterrâneo (de Mar Nosso) ou seria mais correto dizer, no caso da China, de “Oceanum Nostrum” (Oceano Nosso). Por que não?

Referências

ARRIGHI, Giovanni. Adam Smith em Pequim: origens e fundamentos do século XXI. SãoPaulo: Boitempo, 2008.

CASTRO, Antônio Barros De. No espelho da China. Disponível em: <http://www.gr.unicamp.br/ceav/ content/pdf/pdf_textobrasilnoespelhodachina. pdf> Acesso em: 3 maio de 2019.

PADILHA, Maria Fernanda Freire Gatto. Experiências Contemporâneas de Desenvolvimento – Políticas Voltadas para Inserção Competitiva –Casos da China, Brasil e México.Disponível em: <http://www.bdtd.ufpe.br/bdtd/tedeSimplificado/ tde_busca/index.php. Acesso em: 2 maio de 2019.

Alexandre José Gomes de Sá é doutorando em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e Mestre em Economia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: alex40economia@gmail.com.

Claudia Maria da Silva Cruz é doutoranda em Ciências da Religião pela UNICAP e Mestre em Antropologia pela UFPE. E-mail: claucruz44@ outlook.com.

Cláudio Pereira do Nascimento é doutorando em Ciências da Religião pela UNICAP e Mestre em Economia pela UFPE. E-mail: phdclaudionascimento@ hotmail.com.

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Opinião

Graves Ameaças à Biodiversidade

“A esperança tem duas filhas lindas, a indignação e a coragem.

A indignação nos ensina a não aceitar as coisas como estão.

A coragem, a mudá-las”. Santo Agostino

Abrir este texto com palavras de Sigmund Freud, de seu livro O Mal estar na Civilização, me pareceu importante. Estamos vivendo um período político no Brasil de profundas aberrações: o governo Bolsonaro tem, reiteradamente, sinalizado para bestialidade, para a violência, para a destruição, falta de diálogo, desrespeito à alteridade, e sem nenhuma preocupação com a preservação da natureza, ou seja, se apresenta como alguém defensor da morte, seja humana ou não humana, em função do capital.

Freud (1996, p. 21) assim defendeu os princípios da civilização: “A substituição do poder do indivíduo pelo poder de uma comunidade constitui o passo decisivo da civilização. Sua essência reside no fato de os membros da comunidade se restringirem em suas possibilidades de satisfação, ao passo que o indivíduo desconhece tais restrições. A primeira exigência da civilização, portanto, é a da justiça, ou seja, a garantia de que uma lei, uma vez criada, não será violada em favor de um indivíduo” (1).

A constituição tem sido alterada ao sabor dos interesses das elites e de um presidente que se pretende acima da lei. Mas continua Freud: “A sublimação do instinto constitui um aspecto particularmente evidente do desenvolvimento cultural; é ela que torna possível às atividades psíquicas superiores, científicas, artísticas ou ideológicas, o desempenho de um papel tão importante na vida civilizada” (p.22). E acrescenta: “A questão fatídica para a espécie humana parece-me ser saber se, e até que ponto, seu desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação de sua vida comunal causada pelo instinto humano de agressão e autodestruição” (p. 49).

A compreensão mais ampliada desse autoritarismo explícito está evidenciada desde o processo eleitoral, quando abertamente passou a defender a tortura, a liberação da venda de armas, a quebra dos direitos dos trabalhadores, as ameaças aos movimentos sociais, defesa das milícias vinculadas ao crime, ódio aos homossexuais, chauvinismo, humilhação das mulheres,

dos nordestinos, racismo, desprezo pelo conhecimento humanista; perseguição às universidades públicas, enfim, um conjunto de valores que estão muito próximos ao fascismo, ou como diz o historiador português Manuel Loff, o “Bolsonarismo é o neofascismo adaptado ao Brasil do século XXI” (2).

Neste conjunto de violências se apresentam as ameaças que fez e faz às comunidades indígenas e quilombolas, ao pretender a destruição de toda a institucionalidade pregressa de órgãos como a FUNAI, a ANVISA, IBAMA, a INPI, que para o atual governo impedem ou atrapalham os interesses de grupos dominantes, a exemplo do agronegócio, dos mineradores, dos madeireiros, dos pecuaristas e da máfia dos grileiros. A cada dia acontece um assassinato de lideranças populares, como o cacique Waiapi, ou da líder rural Dilma Ferreira Silva, que atuava no Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), assassinada no Pará em março deste ano.

A devastação que está sendo feita sobre a Biodiversidade no Brasil é preocupante. São muitos os impactos e de diversas origens. Talvez o maior seja o aquecimento global decorrente da destruição de plantas e animais, moluscos, mangues, fungos e corais, mas também o desmatamento, o corte sistemático de árvores. Agora, como nos informa o The Economist (Morte para a Amazônia - Edição de 3 de Agosto), “secas, incêndios florestais e outras mudanças induzidas pelo homem estão aumentando os danos causados pelas motosserras. Nos trópicos, que contêm metade da biomassa florestal do mundo, a perda de cobertura florestal acelerou em dois terços desde 2015; se fosse um país, o encolhimento tornaria a floresta tropical o terceiro maior emissor de dióxido de carbono do mundo, depois da China e da América”.

A bacia Amazônica, que detém 40% das florestas tropicais da Terra e abriga de 10 a 15% das espécies terrestres do mundo, pode estar perigosamente próxima do ponto de inflexão, o que pode, para o transtorno das suas populações, mas também para o planeta como um todo, ser transformada pouco a pouco em algo próximo de uma estepe. O professor da PUC-RJ Liszt Vieira (3) relata que o nosso país é um dos dezessete países que, juntos, possuem 70% da biodiversidade do planeta. Segundo ele, o conjunto dos biomas terrestres (Mata Atlântica, Amazônia, Cerrado, Caatinga e Campos do Sul) abriga 20% das espécies do planeta,

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constituindo 20% da flora global. O Brasil, diz ele, tem mais de 55% de cobertura vegetal nativa e 15% da água doce do planeta.

Tamanha biodiversidade reforça a importância das políticas orientadas para a conservação e o uso sustentável dos biomas, já que 60% das espécies ameaçadas de extinção estão em territórios protegidos e aproximadamente 75% das áreas federais de conservação no Brasil abrigam tais populações. A perspectiva é a conservação e uso sustentável de biodiversidade e florestas frente às ameaças representadas pelos efeitos das mudanças climáticas e pela exploração excessiva dos recursos naturais. Mas o que fazer, quando um governo intrinsecamente autoritário diz que nada disso é verdade e estimula não apenas o avanço sobre terras indígenas, ao desmontar a atividade de controle exercida pela Funai? Mas também pelo INPI (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), que há poucos dias teve seu diretor demitido por Bolsonaro, ao anunciar que a devastação sobre a região tem aumentado vertiginosamente, uma ampliação do ritmo do desmatamento de 68% em comparação a julho de 2018.

Sabemos que 70% a 80% da extração madeireira na Amazônia é ilegal e que, dada a conjuntura, a destruição tem alcançado níveis recordes. Assim que assumiu, o ministro do Meio Ambiente extinguiu a Secretaria de Mudanças do Clima e Florestas e a substituiu pela Secretaria de Florestas e Desenvolvimento Sustentável. Essas mudanças vêm associadas ao “desmonte” dos setores públicos que cuidavam do meio ambiente, a exemplo de decreto de Bolsonaro, assinado no final de maio, que reduziu a composição do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) de quase 100 titulares para 21 membros, presididos pelo ministro do Meio Ambiente (4). Organizações ambientalistas e governos regionais foram as mais atingidas pelo corte. Para a surpresa mundial, o Brasil ainda desistiu de sediar a Conferência do Clima das Nações Unidas (COP-25) (5).

O Brasil, nas duas últimas décadas, buscou proteger a Amazônia, que sempre esteve no centro da política ambiental do país, o que fez com que se conseguisse desacelerar a taxa de desmatamento, tornando-se um exemplo internacional de conservação e de esforço para combater a mudança climática. Mas isso lamentavelmente acabou, justamente quando nunca foi tão importante combater o aquecimento global. Mas não é apenas a sorte da Amazônia e de suas populações que está em jogo: a região dos Cerrados está sendo dilapidada, grilada e vendida ao capital internacional. É o caso de Matopiba, onde avança a última fronteira agrícola do país, no coração do cerrado brasileiro, cujo nome vem do acrônimo das iniciais dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Essa nova região econômica, ainda desconhecida da maioria dos brasileiros, abrange um gigante território superior ao da

Alemanha, compreendendo 73 milhões de hectares, distribuídos em 337 municípios (6) . Ali vivem milhares de povos indígenas, quilombolas, agricultores familiares e populações rurais a manterem um modo de vida tradicional.

Há muito mais a dizer, mas não temos espaço aqui. Resta salientar outro fenômeno alarmante para a saúde dos brasileiros, que é o aumento descontrolado dos pesticidas, na sequência dos desmandos de Bolsonaro. Desde o início de seu governo, 290 substâncias foram liberadas para uso. Deste total, pelo menos 32% delas já são proibidos na União Europeia. Por isso, o Brasil é tido como o maior consumidor de agrotóxicos do mundo em números absolutos.

Notas:

1 - Freud, S. (1996). O mal-Estar na civilização (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 21). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1929).

2 - Ricardo Viel, Entrevista https://apublica. org/2019/07/o-bolsonarismo-e-o-neofacismoadaptado-ao-brasil-do-seculo-21/ in: Publica, 29 de julho de 2019.

3 - Vieira, List, “O rumo atual e a perda da biodiversidade no Brasil”, 15 setembro 2014, O ECO.

4 - O Conama é responsável por estabelecer critérios para o licenciamento de atividades poluidoras; determinar a perda ou restrição de benefícios fiscais concedidos pelo Poder Público; estabelecer normas, critérios e padrões relativos ao controle e à manutenção da qualidade do meio ambiente.

5 - As Unidades de Conservação (parques nacionais e estaduais) e as Terras Indígenas vêm sendo criticadas, principalmente pelo agronegócio, por serem protegidas e estarem fora do mercado. Existem cerca de 400 projetos no Congresso Nacional propondo a retirada de áreas importantes dessas terras protegidas. (Liszt Vieira.)

6 - Matopiba: o império do agronegócio nos limites do Cerrado brasileiro;in: Letras Ambientais, 26 de junho de 2018.Ver ainda: Costa Lima, Marcos e Oliveira, Eduardo (Orgs.), Estrangeirização de terras e Segurança Alimentar e Nutricional. Brasil e China em Perspectiva, Recife: Edi Fasa.

Marcos Costa Lima é professor do Programa de PósGraduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco.

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Jornalismo ambiental

Significação social das mudanças do clima no Sertão em risco

Aseca no semiárido brasileiro é um fenômeno natural, mas devido à mudança antrópica do clima, provocada pelo modelo capitalista e a sua “racionalidade” apartada das questões ambientais, a estiagem e temperatura no Bioma Caatinga estão aumentando mais. Apesar do cenário de grave risco para a vida humana e não-humana local e global, a cultura hegemônica do povo sertanejo continua sendo constituída e assinalada no imaginário social através da dimensão do sagrado, ou seja, pela questão de fé, religião e etc. Naturaliza-se assim, da mesma forma ou similar, a dimensão socioeconômica e político-ambiental da vida. A percepção social da realidade ligada ao clima e a sua problematização em busca de respostas reais e objetivas frente à crise climática planetária, por exemplo, enfrentam dificuldades. Com isso, enquanto não se supera tal “racionalidade”, secularmente materializada no imagético flagelo da seca sertaneja, mantêm-se e agrava-se a miséria por falta de perspectiva e inação.

Contudo, a mudança desse cenário subjetivo, intersubjetivo e ainda objetivo de imobilização individual e coletiva pode ocorrer dentro do bioma Caatinga. E ela é muito possível. Precisa, porém, constituí-la noutra perspectiva onde as características naturais desse ambiente devem ser potencializadas. É possível percebê-las e problematizá-las pelo paradigma da abundância através do clima semiárido e das riquezas do ecossistema, provenientes da abundante energia solar e potencialidades genéticas e bioeconômicas da flora, adaptadas à alta temperatura e pouca água, esta que carece de usos eficientes. Todavia, a mudança substancial precisa ocorrer primeiro no campo da subjetividade, superando a questão do imaginário para tal razão.

O desafio para a constituição de outra significação social para além da atual é amplo. E o é pela racionalidade desnaturalizada (homem e natureza separados) e pelo modelo de desenvolvimento político-econômico aplicado na região (desconsidera a característica natural de pouca água do semiárido ao apostar em culturas agrícolas que demandam muita, como o milho e feijão). E ainda pela complexidade de se expli -

car/assimilar o fenômeno da mudança do clima. Apesar disso, é necessário buscar a superação sobre tais sentidos.

A resposta pode e começa através da enunciação da palavra. Faz-se necessário falar mais sobre a questão. A enunciação pode até parecer pouca coisa, mas não o é. Transformações sociais passam primeiro pelas enunciações. A palavra é ideológica por excelência (BAHKTIN, 2006). Toda ideologia, presente em qualquer cultura, ora apreendida por seus símbolos (representação da realidade), opera no cotidiano das pessoas. Assim, como destaca Brait (2008), todo sujeito (como o sertanejo) compreende o mundo (o do flagelo da seca, ou do semiárido próspero, ou nada disso) pela interação das palavras em sua consciência com as palavras circulantes na realidade, portanto, entre o interno e o externamente ideológico.

Dentro desse contexto, a Ecolume (rede nacional de pesquisadores que atua na questão das mudanças climáticas no bioma Caatinga, ora abordada no artigo anterior) tem demonstrado a abundância do ecossistema através da ciência e de tecnologias sociais integradas nas áreas energética, hídrica e alimentar. Ela atua para a mitigação e na adaptação aos efeitos das mudanças do clima no Sertão.

Concomitantemente, atua estrategicamente na comunicação destas iniciativas através da enunciação do trinômio da abundância: água, bioma e sol. A constituição do sentido social sobre este trinômio é fundamental para que possa modular a representação da realidade em direção à mudança. Afinal, o sentido social fomenta a opinião e a vontade individual das pessoas para e sobre quaisquer assuntos. É constituída a partir de um poder circulante da palavra pelo mundo.

Contudo, como ressignificar algo tão caótico, mas simbolicamente já cristalizado, como é a seca e o calor dentro do Bioma Caatinga, secularmente naturalizado pela população e por seus governantes?

A enunciação sobre a questão é vital. Precisa mostrar o problema. Mas deve tensionar qualquer tipo de naturalização através de novas perspectivas. É crucial, portanto, contextualizá-lo a

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partir de outros problemas oriundos dos efeitos da mudança do clima sobre a vida (COUTINHO, 2014). O autor corrobora com Carvalho (2011, p.44), quando a pesquisadora coloca que para o problema socioambiental alcançar visibilidade pública e política na sociedade de modo em geral é preciso também “(...) falarem sobre o seu significado”.

E, no caso para a vida dos sertanejos, significa seca ainda maior que a conhecida e muito mais calor. Isso quer dizer água ainda mais escassa e mortes de animais e de culturas agrícolas já insustentáveis. Além da mortandade de parte da biodiversidade, a formação de desertos, a volta do êxodo rural e o fim do modelo de vida atual de moradores, bem como até a morte de pessoas.

Portanto, se nada for feito para a mitigação e adaptação aos efeitos deste complexo fenômeno climático, o dano para vida no semiárido é significativo. E essa significação tem sido ecoada pelo Ecolume a gestores públicos, estudantes, docentes, políticos, a agricultores e etc. O diferencial é que tem sido dotado de sentido pela narrativa da “abundância”, ou seja, das oportunidades que também vêm com a mudança climática. Tem sido ilustrada por novas tecnologias sociais em desenvolvimento na região, como o 1º sistema agrovoltaico do Brasil, em instalação no semiárido do NE (JC, 2018). O experimento é um protótipo e será a prova de conceito do ‘semiárido próspero’ a partir do paradigma e progresso pelo trinômio água, bioma e clima.

O Ecolume não apresenta só os desafios objetivos e contextuais da mudança do clima para vida na Caatinga, mas os enunciam e lança à esfera pública certos estímulos de modo que possa ter mudanças factíveis a partir da percepção da população e dos gestores sobre tal questão, bem como as problematizações e ações consequentes.

Dentro desse contexto, a visibilidade pública/ política das mudanças climáticas é uma condição sine qua non para a viabilização das ações de mitigação e estratégias de adaptação aos efeitos do fenômeno do clima para a vida na Terra, a exemplo das populações do semiárido brasileiro e da biodiversidade da Caatinga. E essa visibilidade só ocorre quando percebida por boa parte da sociedade.

Até chegar a tal processo, primeiro é preciso atingir a subjetividade das pessoas. É necessário contribuir na sua ressignificação social de modo a conectá-las com a dimensão humana como natureza. Ou seja, o clima é natural e o homem o mudou. E agora o homem precisa mudar para evitar as ameaças para si e sobre a vida não-humana na Terra. E para estimular essa percep -

ção socialmente, Coutinho (2014) aponta para necessidade de primeiro se representar simbolicamente as mudanças do clima, um problema complexo, a partir de setores socioeconômicos e biofísicos do planeta afetados. E pela conexão temporal do fenômeno (sua causa, consequências, vulnerabilidades e as suas oportunidades) e sua vinculação com o modelo de desenvolvimento socioeconômico. E é nesta perspectiva que o conceito ecolumiano da “abundância” tem sido enunciado.

Desse modo, iniciativas em divulgação e popularização da ciência sobre o “Semiárido Próspero” são relevantes para a contribuição da ressignificação social frente ao novo comportamento do clima, suas ameaças, oportunidades e os desafios para o processo civilizatório regional. Assim, a comunicação da mudança climática antrópica é tão necessária quanto são as pesquisas científicas e as tecnologias criadas, estas que precisam de visibilidades pública e política para o desenvolvimento e a implantação das transformações sobre a vida.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 12 ed. Pinheiros: Hucitec, 2006. CARVALHO, Anabela. As alterações climáticas, os media e os cidadãos. Coimbra: Gracio Editor, 2011.

COUTINHO, R.D.S. Jornalismo e Mudanças Climáticas: desafios para uma adequada representação noticiosa. Recife: Editora UFPE, 2014.

JORNAL DO COMMERCIO. Projeto inovador leva energia, água e comida ao Sertão. Recife. 7 de ago. 2018.

Esta coluna apresenta abordagens críticas e interdisciplinares mensais relativas à produção da representação jornalística da realidade social sobre as temáticas socioambientais e a sua influência na constituição do sentido social sobre a questão. É escrita pelo jornalista Robério Coutinho, Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e autor de livros sobre a temática.

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Opinião

Novos Caminhos, Novas Formas De Militância

Mudanças mais profundas na sociedade têm, sempre, relação direta com um maior grau de consciência e de mobilização dos seus integrantes. Em condições favoráveis, elas impulsionam atores políticos e institucionais para a preservação de determinadas conquistas ou para galgar novos patamares de renovação política.

No Brasil, com o avanço das forças obscurantistas, o caminho a ser trilhado é, indubitavelmente, o de criar condições para o fortalecimento, a mobilização e a articulação desses atores com vistas à manutenção e ao aprimoramento do que se construiu até hoje de mais justo, mais moderno e mais democrático.

Ocorre, porém, que a desmobilização prevalece no cenário onde a desarticulação e as desavenças, no plano político, no seio das esquerdas, torna premente a necessidade do protagonismo da sociedade civil. Esta começa a despertar, como provam as manifestações em todo o país contra o corte de investimentos nas universidades e a greve geral de 14 de junho de 2019. Não obstante, o seu potencial ainda não se fez sentir além do âmbito dos sindicatos e dos movimentos sociais.

É imperioso que setores profissionais, sociedades científicas, OAB, instituições jurídicas, igrejas, entidades representativas da área artística e da cultural - a exemplo do que ocorreu no processo constituinte, em 1988 - se mobilizem, externando seu posicionamento face às políticas do governo. Esse universo, contudo, também permanece apático, a despeito de as políticas já implementadas, ou as que virão a sê-lo nas áreas da educação, ciência e tecnologia, arte e cultura, meio ambiente, direitos humanos e relações exteriores significarem grave retrocesso.

Face ao autoritarismo praticado pelo governo de extrema direita, impõe-se o seu contrário: o aprofundamento da democracia nos domínios da sociedade civil. Para aprofundá-la existem propostas, como as que asseguram a renovação das direções de entidades da sociedade mediante a proibição de um segundo mandato consecutivo para seus diretores e pela democratização da sua eleição, com a participação da sociedade

em instituições tão diversas como universidades públicas e academias de letras.

Deve-se, igualmente, valorizar as ações que buscam melhorar a qualidade do serviço público, dominado por um burocratismo anestesiante, com a introdução e o aperfeiçoamento de órgãos de participação cidadã na esfera pública, especialmente as ouvidorias, garantida a sua plena autonomia perante o Estado.

Outra iniciativa que merece destaque diz respeito à mobilização pela ampliação da leitura - “Mais leituras, menos armas” -, consequentemente mais espaço para a reflexão e para o desenvolvimento do espírito crítico. Leitura como ato de resistência, antídoto à distopia que se delineia como ameaça às conquistas democráticas.

Essas novas formas de militância são capazes de conferir mais força a aspectos essenciais da vida social e política, repercutindo positivamente na luta pela preservação da democracia, do Estado de Direito e das conquistas sociais.

Não se trata de negar a importância do papel a ser desempenhado pelas corporações sindicais e entidades da sociedade civil, diuturnamente envolvidas nas lutas por políticas públicas centradas na democracia e na justiça social, e sim de compreender as demais formas de mudar a realidade vigente e agir em consequência.

Com efeito, o sindicalismo vem perdendo vigor. As transformações no mundo do trabalho revelam seu caráter crescentemente heterogêneo, com a progressiva perda da influência das classes trabalhadoras tradicionais, já minoritárias em relação ao conjunto dos que vendem sua força de trabalho ao capital. Nesse contexto, uma novidade que merece destaque é o crescimento exponencial do trabalho individual, realizado fora de casa, até mesmo em outros países, consequência da evolução tecnológica em curso, concorrendo para fragmentar e diversificar o status do trabalhador moderno.

Exemplo eloquente dessa nova realidade são os “coletes amarelos”, na França, movimento social cuja capacidade de mobilização e posições críticas em relação ao governo conservador do Presidente Emmanoel Macron vem ofuscando o

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leadership dos sindicatos e partidos de oposição.

Esses fatores contribuem para que ganhem relevância entidades e pessoas das áreas profissional e educacional, como também as representativas do mundo da cultura, da arte e da tecnologia. E, juntamente com elas, espaços de protagonismo da cidadania que não têm relação direta com a luta pela democracia e justiça social, mas que para elas concorrem na medida que têm um escopo melhor para capacitá-lo para a vida em uma sociedade plural, justa e democrática. Assim, resiste-se não somente através de mobilizações organizadas por sindicatos e partidos, por fundamentais que sejam, mas também no dia a dia do cidadão que quer transformar o país. Estamos num tempo e num país que exige a militância de todos – seja individual ou coletiva - que votaram pela democracia - seja individual ou coletiva, mas também dos que escolheram o “mito” para presidente e se arrependeram.

Entenda-se como comportamento militante, genericamente, todas as atividades abordadas nesse artigo e, especificamente, toda ação praticada no sentido de conscientizar os brasileiros a respeito da natureza do poder político que se instalou com Bolsonaro; do autoritarismo embutido nas instituições e das clamorosas desigualdades sociais que nos afligem. Essa militância deve ser exercida por todos os instrumentos disponibilizados pelo quotidiano: na sala de aula, no púlpito, no mundo jurídico, nos meios de comunicação, na família, entre amigos, parentes e aderentes, convidando-os a refletir sobre os riscos que corre democracia no Brasil e os meios de enfrentá-los.

Mas seu alcance extrapola o âmbito das organizações da sociedade civil, como sindicatos e associações e, até mesmo, movimentos sociais estruturados e aguerridos. Na conjuntura atípica em que vivemos, devem ser especialmente valorizadas manifestações populares, como os protestos de rua, organizados por setores sociais discriminados, que se opõem à vigência ou a ascensão de concepções e práticas conservadoras. Fora do Brasil, merecem registro as gigantescas manifestações ocorridas em todo o Chile, em março de 2019 e reprisadas no mês de junho, organizadas pelas mulheres, defendendo como principais reivindicações a igualdade de gênero e a educação não sexista. Mas elas também incorporaram palavras de ordem mais abrangentes, críticas ao “sistema”, como a de “estudantes, migrantes, trabalhadoras: precarizadas somos todos nós”, em contraste com a anestesia que domina os sindicatos chilenos.

A 23ª Parada Gay, realizada em São Paulo, a maior do mundo, realizada no dia 22 de junho de 2019 e que reuniu três milhões de pessoas, também configurou um poderoso ato de resistência, servindo de contraponto às concepções homofóbicas do governo Bolsonaro e seu ódio à comunidade LGTB. Não que as paradas e passeatas, de per se, constituam novidades, mas elas adquiriram maior importância ante o enfraquecimento de lutas meramente classistas. Mas a relevância da manifestação sob análise se torna maior na conjuntura política atual já que o candidato à Presidência da República, Jair Bolsonaro, se elegeu “com um discurso baseado no conservadorismo, antagônico ao discurso focado nas agendas igualitárias e da diversidade, até então hegemônicas”.

Até o Carnaval pode ser palco de injustiças e de cobranças pela reparação. Desde os escravos, os seus senhores sempre procuraram colocar limites a essa festa popular. Gil e Caetano compreenderam o alcance do “tríduo momesco” ao exaltar, em uma de suas composições, “o samba, pai do prazer, filho da dor, o grande poder transformador”. Disso é exemplo o samba enredo da Mangueira, campeã do carnaval carioca de 2019: prestando homenagem a Marielle, sua letra lembra que “tem sangue retinto pisado atrás do retrato emoldurado”. Trata-se de uma magnífica demonstração de contra-hegemonia, traduzida na íntima relação entre protesto, carnaval e democracia.

À guisa de conclusão, vale lembrar as palavras do grande John Dewey:

A ameaça mais grave à nossa democracia é a existência, em nossas atitudes pessoais e em nossas instituições, das condições em que países totalitários asseguraram a vitória da autoridade externa, no cultivo da disciplina, uniformidade e dependência do chefe. O campo de batalha, portanto, também se acha aqui – dentro de nós mesmos e de nossas instituições”.

Rubens Pinto Lyra é Doutor em Direito Público e Ciência Política e Professor Emérito da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: rubelyra@uol. com.br

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Opinião

A Lava Jato e os objetivos dos EUA para a América Latina e o Brasil

Os objetivos estratégicos dos Estados Unidos para a América Latina e, em especial para o Brasil, são importantes para compreender a política externa e interna brasileira, inclusive a Operação Lava Jato. A América Latina foi declarada zona de influência exclusiva de fato americana pela Doutrina Monroe, em mensagem do presidente dos Estados Unidos ao congresso americano, em 02/12/1823. Esta doutrina corresponde a uma visão e convicção históricas, nos Estados Unidos, de direito ao exercício de uma hegemonia natural sobre a América Latina, como o Corolário Roosevelt, de 1904, viria a explicitar.

A partir da Guerra de Independência (17751783) e depois da formação da União em 17871789, os Estados Unidos passam a procurar excluir as potências europeias de seu território continental (Louisiana – 1803, Florida – 1819, Oregon – 1845, Alaska -1867) e a absorver esses territórios na União Americana.

A expulsão pelos americanos dos povos indígenas de seus territórios originais se realiza com intensidade após a revogação da Proclamation Line, de 1763, em decorrência do Tratado de Paz de Paris (1783) entre a Grã-Bretanha e a Confederação, que separava o território das Treze Colônias das terras indígenas além dos Apalaches, até o Mississipi.

A influência econômica, política e militar americana sobre a América Central e os países do Caribe foi e é avassaladora, com intervenções e ocupações militares, por vezes longas, e o patrocínio de ditaduras, sanguinárias. A Guerra contra o México (1848) levou à anexação de metade do território mexicano e, com a chegada ao Pacífico, permitiu a consolidação do território continental dos Estados Unidos do Atlântico ao Pacífico. A Guerra contra a Espanha (1898) levou à ocupação de Cuba, à anexação de Porto Rico, das Filipinas e de Guam e afirmou os Estados Unidos como potência asiática. A “criação” do Estado do Panamá e da Zona do Canal, que foi território americano até 2000, permitiu a ligação marítima rápida entre a Costa Leste e a região do Golfo com a Costa Oeste da América do Norte, tanto comercial como militar, através do Canal concluído em 1914, e administrado soberanamente pelos EUA. Pelas características de sua localização geográfica, a zona estratégica mais importante para

os Estados Unidos é o Caribe, a América Central e o norte da América do Sul.

Os objetivos estratégicos permanentes dos Estados Unidos para a América Latina são: 1. impedir que Estado ou aliança de Estados possa reduzir a influência americana na região; 2. ampliar sua influência cultural/ideológica sobre os sistemas de comunicação de cada Estado; 3. incorporar todas as economias da região à economia americana; 4. desarmar os Estados da região; 5. manter o sistema regional de coordenação e alinhamento político; 6. impedir a presença, em especial militar, de potências adversárias na região; 7. punir os Estados que contrariam os princípios da liderança hegemônica americana; 8. impedir o desenvolvimento de indústrias autônomas em áreas avançadas; 9. enfraquecer os Estados da região; 10. eleger líderes políticos favoráveis aos objetivos americanos.

O principal Estado da região pelas dimensões de território, de recursos naturais, de população, de localização geográfica é, sem dúvida, o Brasil. Principal também pelos desafios que apresenta devido à possibilidade de graves turbulências futuras, sociais, econômicas e políticas. Devido a este caráter principal, os objetivos dos Estados Unidos são objetivos para a América Latina em geral, porém se aplicam em especial ao Brasil.

O primeiro objetivo estratégico americano é impedir a emergência e fortalecimento de qualquer Estado ou aliança de Estados que possam se opor à presença ou afetar a influência política, econômica e militar americana na região. Para alcançar este objetivo, tratam os Estados Unidos de aguçar e reacender eventuais rivalidades (históricas ou recentes) entre os maiores Estados da região, isto é, entre o Brasil e a Argentina, não estimular o conhecimento de suas histórias e culturas, estimuladas as rivalidades através da ação de lideranças locais que buscam obter tratamento privilegiado para seus países junto aos Estados Unidos (Carlos Menem e Jair Bolsonaro são exemplos desse comportamento).

O segundo objetivo americano é manter e ampliar sua presença cultural/ideológica nos sistemas de comunicação de cada Estado da região como instrumento para sua maior influência política, econômica, militar e cultural. Essa presença aumenta sua capacidade de obter melhores condições legais

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(fiscais e regulatórias) para a ação de suas megaempresas (petroleiras, por exemplo); para obter contratos de venda de equipamentos militares; para lograr alinhamento e apoio às iniciativas americanas em nível mundial; para promover a “simpatia” pelos Estados Unidos na sociedade local; para obter o apoio da sociedade e dos governos para seus objetivos estratégicos.

Este objetivo tem como instrumentos a defesa da mais ampla liberdade de imprensa e de Internet e para a livre ação das ONGS “internacionais” e “altruístas”; dos programas de formação de pessoal, desde os institutos de língua aos intercâmbios; às bolsas de estudo; ao recrutamento de talentos; à aquisição de editoras para publicações de livros americanos; a hegemonia na programação de cinema e de TV; os programas de formação de oficiais militares e lideranças políticas; e recentemente a aquisição de instituições de ensino, em todos os níveis.

O terceiro objetivo dos Estados Unidos é incorporar todas as economias dos Estados da região à economia norte-americana, de forma neocolonial, no papel de exportadores de matérias primas e importadores de produtos industriais.

Após o fracasso do projeto regional “multilateral” da ALCA, lançado em 1994 e encerrado em 2005 na reunião em Mar del Plata, os Estados Unidos passaram a promover a negociação de acordos bilaterais com cada Estado latino-americano com dispositivos semelhantes aos da ALCA e até mais favoráveis aos EUA. Verdade seja dita que o acordo de livre comércio com o Chile fora assinado em 1994 e com o México e o Canadá em 1994. O instrumento para alcançar este objetivo são os acordos bilaterais de livre comércio que levam à eliminação das tarifas aduaneiras e à abertura dos mercados dos Estados subdesenvolvidos nas áreas de investimentos; de compras governamentais; de propriedade intelectual; de serviços; de crédito e, às vezes, incluem cláusulas investidor-Estado.

Por sua vez, os Estados subdesenvolvidos da América Latina que atingiram certo grau de industrialização não ganham acesso adicional aos mercados de produtos industriais, pois as tarifas americanas são baixas, existe a escalada tarifária e as medidas de defesa comercial, e o acesso a mercados agrícolas é restringido pela legislação agrícola americana de subsídios e de proteção.

O acordo Mercosul/União Europeia será instrumental para a abertura de mercados para os Estados Unidos sem ônus político pois, após sua entrada em vigor, estarão criadas as condições para os Estados Unidos reivindicarem ao Brasil e ao Mercosul igualdade de tratamento. Outros países altamente industrializados como o Japão, a Coréia do

Sul, o Canadá e a China farão o mesmo e o Brasil não terá mais a tarifa como instrumento de política industrial. O Mercosul desaparecerá.

O quarto objetivo estratégico dos Estados Unidos é desarmar os Estados da região. Os instrumentos para atingir este objetivo são a promoção da assinatura do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) e de outros tratados na área química e biológica, e mesmo sobre armas convencionais; a venda de equipamentos militares defasados a preços mais baixos e o “estrangulamento” de eventuais indústrias bélicas locais; os acordos de associação à OTAN; a transformação das Forças Armadas nacionais em forças de caráter policial, voltadas para o combate ao narcotráfico e a crimes transnacionais e, portanto, necessitando apenas de equipamento leve.

O quinto objetivo estratégico americano é manter o sistema de segurança regional, a Organização dos Estados Americanos, reconhecido pela Carta da ONU, onde tradicionalmente os Estados Unidos podem exercer sua influência, contam com o auxílio do Canadá e de países da América Central e assim podem tratar das questões regionais sem ir ao Conselho de Segurança das Nações Unidas. Outro instrumento para alcançar este objetivo é promover a dissolução da UNASUL, como foro de solução de controvérsias concorrente da OEA e como organização de cooperação em defesa, da qual os Estados Unidos não participam.

O sexto objetivo dos Estados Unidos na América do Sul consiste em impedir a presença de Estados adversários de sua hegemonia, e como tal nomeados pelos próprios EUA, quais sejam a Rússia e a China, na região latino-americana, em uma versão atual da Doutrina Monroe. Segundo documentos oficiais americanos recentes, a “China é um poder revisionista” e a Rússia é um “Ator Maligno Revitalizado” (Indo-Pacific Strategic Report, do Pentágono). A presença russa e chinesa é especialmente temida na área militar, inclusive por ameaçar a Costa Sul do território americano e os acessos ao Canal do Panamá, via comercial e militar estratégica.

Um sétimo objetivo americano, importante para demonstrar sua determinação de exercício de hegemonia na América Latina, é punir, dentro ou fora do sistema da OEA, com ou sem o apoio de outros Estados da região, aqueles governos que contrariarem, em maior ou menor medida, os princípios da liderança mundial americana: ter economia capitalista, aberta ao capital estrangeiro, com intervenção mínima do Estado; dar tratamento igual às empresas de capital nacional e estrangeiro; não exercer controle sobre os meios de comunicação de massa (TV, etc); ter regime político de pluralidade partidária e eleições periódicas; não celebrar acordos

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militares com os Estados Adversários, quais sejam a Rússia e a China; apoiar as iniciativas dos Estados Unidos.

A campanha política/econômica/midiática para promover a mudança de regime (regime change) de um Estado da região, isto é, para promover um golpe de Estado para derrubar um Governo que os Estados Unidos consideram hostil, inclusive com o financiamento de grupos de oposição, se desenvolve em várias etapas (que depois se superpõem) de denúncia do Governo “hostil” pela grande mídia regional e pela mídia mundial, com o auxílio da Academia, como sendo: autoritário; corrupto; traficante ou leniente com o tráfico de drogas; perseguidor de inimigos políticos; violador da liberdade de imprensa; ineficiente; opressor da população; ameaça aos vizinhos; ameaça à segurança americana.

Um oitavo objetivo estratégico americano é impedir o desenvolvimento de indústrias autônomas nas áreas nuclear, espacial e de tecnologia de informação avançada na América Latina, e em especial no Brasil, país com as melhores condições para desenvolver tais indústrias.

Um nono objetivo estratégico americano é enfraquecer política e economicamente os Estados da região. Os instrumentos são estimular direta ou indiretamente (pela mídia) a redução do poder regulatório em defesa dos consumidores, da população em geral e dos trabalhadores, dos organismos do Estado, em especial aqueles que limitam ou disciplinam a ação das megacorporações multinacionais, entre as quais prevalecem as americanas. Outro instrumento para alcançar este objetivo é a campanha contra o Estado central como ineficiente e mais corrupto e autoritário, e a defesa da descentralização regulatória e de auto regulação dos setores pelas próprias empresas privadas.

Um objetivo americano importante é enfraquecer a Chancelaria, o único organismo do Estado (brasileiro) que enfrenta, todos os dias, os interesses dos demais Estados nacionais, em especial os interesses dos Estados Unidos, de seus adversários, Rússia e China, e das chamadas Grandes Potências, como Inglaterra, França, Alemanha e Japão, nas negociações para aprovar normas internacionais que atendam seus interesses (e lucros). Os instrumentos para atingir este fim são denunciar a ineficiência; o corporativismo; o exclusivismo; o “globalismo”; a partidarização; a visão ideológica “esquerdista” da Chancelaria.

O décimo objetivo estratégico dos Estados Unidos da América, e talvez o principal objetivo, é impedir a eleição de líderes políticos em cada Estado que manifestem restrições a seus objetivos estratégicos e promover a eleição de líderes que a eles sejam favoráveis. E aí entra o papel da Operação

Lava Jato na defesa direta ou indireta dos interesses americanos.

A partir da eleição, em 2003, do presidente Lula, a política interna e externa brasileira se contrapôs, ainda que não de forma sistemática, desafiadora ou revolucionária, a alguns dos objetivos estratégicos americanos: a) ao não apoiar a invasão do Iraque de 2003; b) ao estabelecer o entendimento político e econômico estreito com a Argentina; c) ao promover a coordenação com a Argentina, a Venezuela, o Uruguai, o Equador, a Bolívia e o Paraguai para a formação da UNASUL, em substituição à OEA; d) ao resistir à ALCA e ao fortalecer o Mercosul; e) ao fortalecer os instrumentos financeiros do Estado, como o BNDES, e ao utilizá-los na política externa; f) ao fortalecer o programa nuclear; g) ao exercer operações de aproximação autônoma com os países africanos e árabes; h) ao promover a criação do BRICS, com a China e a Rússia; i) ao fortalecer a Petrobrás e ao estabelecer o regime de parceria para exploração do pré-sal; j) ao estabelecer a política de “conteúdo nacional” na indústria; k) ao promover a indústria de defesa brasileira; l) ao defender a regulamentação da mídia; m) ao negociar, com a Turquia, um acordo nuclear com o Irã; n) ao exercer o equilíbrio em suas relações com Israel e Palestina. A partir dessa nova situação nas relações Brasil – Estados Unidos e da crescente popularidade do presidente Lula, que terminaria em 2010 seu mandato com 87% de aprovação, a estratégia americana foi: mobilizar os meios de comunicação de massa no Brasil contra as políticas do Governo e condenar sua ação através do Instituto Millenium, fundado em 2005, para dar amplo apoio à Operação Mensalão, que não conseguiu atingir o presidente Lula, mas que veio a atingir José Dirceu, chefe da Casa Civil, e provável sucessor de Lula; a partir do acordo de cooperação judiciária Brasil-Estados Unidos, iniciar a Operação Lava Jato que viria a facilitar o alcance dos objetivos estratégicos americanos em especial 2, 8, 9 e 10, listados no parágrafo 11 acima; iniciar o processo político de preparação do impeachment da presidenta Dilma Rousseff; financiar direta e indiretamente a formação dos grupos MBL e Vem para a Rua.

O principal objetivo da Operação Lava Jato não era a luta contra a corrupção, mas sim impedir a eleição do presidente Lula em 2018. Sua ação partia das seguintes premissas: a grande maioria da população, devido a sua precária situação econômica e cultural, está sujeita a ser manipulada por indivíduos populistas, socialistas, comunistas etc. que fazem aos eleitores promessas irrealizáveis para conquistar e explorar o poder; a sociedade brasileira é intrinsecamente corrupta; todos os políticos e partidos são corruptos; os governos se sustentam atra -

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vés da corrupção e da compra de votos; a violação de direitos constitucionais e legais por membros do Judiciário e do Ministério Público se justifica para combater a corrupção.

O juiz Sérgio Fernando Moro descreveu em seu artigo intitulado Mani Pulite, publicado em 2004 na Revista CEJ – Justiça Federal N°26, a sua decisão de violar a lei para combater a corrupção, em uma interpretação de que “os fins justificam os meios”. A

“corrupção” foi enfrentada pela Operação Lava Jato, comandada por Sérgio Moro, Juiz de primeira instância que contou com a conivência e mesmo a cooperação de membros dos Tribunais Superiores e da grande imprensa, para uma condução processual altamente heterodoxa e ilegal. A divulgação quotidiana e seletiva de ações da Lava Jato através da imprensa, em especial da televisão, foi essencial para criar a convicção de que a Lava Jato teria “revelado” que o partido que teria promovido e se beneficiado da corrupção no sistema político teria sido o PT, conduzido por Luiz Inácio Lula da Silva.

Formou-se um amplo movimento anti-petista e anti-Lula, e tornou-se, assim, um objetivo não só político, mas ético e moral, para combater a corrupção, apresentada como o principal mal da sociedade brasileira, impedir por todos os meios que o ex-Presidente Lula pudesse se candidatar e, iludindo o povo ingênuo, ser eleito e reimplantar os mecanismos de corrupção. Assim, foi Lula condenado, sem provas, em primeira instância por Sérgio Moro e em segunda instância por uma turma de três desembargadores do TRF-4 (não pelo Tribunal pleno), desembargadores que gozam de grande familiaridade e amizade com Sérgio Moro, que condenaram Lula à prisão em regime fechado, para não poder exercer qualquer atividade política, e assim não poder nem competir nem influir nas eleições de 2018. A decisão arbitrária do TRF-4 correspondeu à cassação dos direitos políticos de Lula e do povo brasileiro que não pôde votar em Lula, o candidato à frente em todas as pesquisas de opinião.

A nomeação do juiz Sérgio Moro como Ministro da Justiça por Jair Bolsonaro e a declaração de Bolsonaro de que devia muito de sua eleição a Moro indicam o alto grau de ilegalidade do comportamento de Sérgio Moro e de Jair Bolsonaro e sua ação política. A primeira etapa para atingir o Objetivo estratégico 10 era promover o impedimento da presidente Dilma Rousseff, o que foi conseguido em 16/04/2016. O vice-presidente Michel Temer assumiu com um programa econômico intitulado “Ponte para o Futuro”, elaborado por economistas liberais e perfeitamente compatível com os objetivos estratégicos dos EUA, e que vem sendo aplicado de forma ainda mais radical por Paulo Guedes.

A publicação pela grande imprensa dos diálogos

entre Sérgio Moro, o procurador Deltan Dallagnol e entre os procuradores e três, até agora, ministros do Supremo Tribunal Federal - Luiz Fux, Edison Fachin e Luiz Eduardo Barroso - pode acarretar a nulidade de todos os processos da Operação Lava Jato devido a demonstrar: a parcialidade e a íntima cooperação do juiz Sérgio Moro com os procuradores, isto é, com a acusação; as delações extraídas sob pressão; as conduções coercitivas ilegais; a escuta ilegal de comunicações; a divulgação seletiva de trechos de delações à imprensa para obter efeitos no processo eleitoral em 2018; a violação de direitos individuais, enumerados no Artigo 5° da Constituição (III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas; XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas; XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular; e, em especial, LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória).

Os Estados Unidos da América atingiram seu principal objetivo estratégico aquele de número 10 do parágrafo 11 acima: eleger líderes políticos favoráveis aos objetivos americanos. E com o Governo Temer e agora com o Governo de Jair Bolsonaro estão alcançando todos os demais objetivos listados no parágrafo onze acima.

Samuel Pinheiro Guimarães foi secretário geral do Itamaraty (2003-2009) e ministro de Assuntos Estratégicos (2009-2010).

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