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Opinião | Pedro de Souza
JORNALISMO E CIDADANIA | 8 Opinião
O Brasil de Bolsonaro na liderança mundial Por Pedro de Souza
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Otítulo deste artigo é claramente uma provocação. Como um governo composto por personalidades analfabetas e moralmente abjectas, se aplicando em destruir as conquistas sociais de duas décadas de democracia, pode ser contado entre a liderança mundial? A resposta é obviamente negativa. E, no entanto, …
Se atentarmos para algumas das tendências da política e economia internacionais não podemos deixar de apontar muitas coincidências com aquilo que o Brasil está vivendo. Uma das principais características do capitalismo global de hoje (incluindo nisso os países ex-socialistas, em especial a Rússia e a China, independentemente dos seus aspectos positivos), consiste na concentração do poder numa elite muito reduzida, diante de uma massa amorfa de trabalhadores. Ora o Brasil de Bolsonaro caminha com maior ou menor acerto para essa situação.
Por isso temos, num país pouco desenvolvido como o Brasil, um governo “político” que espelha e trabalha para a “descultura” e “dessocialização” da população, e um governo econômico que trabalha para a concentração da renda e a sua internacionalização.
Hoje a omnipresença da informática no mundo, nos sistemas que gerem a agricultura, a indústria e os serviços, avançando sobre as profissões que exigiam mais qualificação, como a educação ou a saúde, arrasa empenas inteiras da cultura e da sociedade, e a própria ideia de progresso que era a coluna vertebral do pensamento de “esquerda”. A crise climática, por seu turno, pondo em risco a própria existência da civilização no nosso planeta, de alguma forma concorre igualmente para esse triunfo reacionário. Doravante, já que é impossível que toda a população do planeta goze do mesmo nível de consumo, o progresso teria de servir apenas uma minoria, devendo a maioria se contentar com o que for viável para respeitar a sobrevivência da biodiversidade e do clima no planeta. Ou seja, não há que mudar fundamentalmente nada no “desenvolvimento”, bastará desvincular o progresso técnico do progresso social.
Nesse sentido, o Brasil de Bolsonaro estaria conquistando o seu lugar no concerto das nações, como fornecedor de matérias primas e de mão de obra barata para os países onde ela falta, devido ao declínio demográfico.
Nos países onde o sistema capitalista está mais avançado, os trabalhadores tendem a ter cada vez menos tempo para a vida familiar, ou mesmo pessoal. Eles têm de estar à disposição dos seus empregadores praticamente 24 horas por dia, podem se ver obrigados a mudar de residência a qualquer momento para responder ao mercado de trabalho, e em consequência não há “clima” para ter filhos, e esses países sofrem um declínio demográfico acentuado, sendo obrigados a importar mão de obra. Se é verdade que os imigrantes pobres normalmente apresentam menor produtividade, por outro lado, como estão menos integrados e gozam de menos estabilidade que os cidadãos locais, podem ser explorados e aculturados mais facilmente. Empresas como a Amazon, cujo proprietário é o homem mais rico do mundo, e, portanto, um exemplo para todos nós, empregam métodos de gestão do pessoal segundo alguns inspirados nas práticas nazis. Charles Chaplin, no seu filme “O Grande Ditador” (1940), já tinha vislumbrado o que esperava o homem: a escolher entre um bicho e uma máquina.
Em consequência teríamos de admitir que não haveria nada de irracional no Brasil de Bolsonaro. Por essa razão nos países centrais não houve qualquer oposição ao golpe que elites locais aliadas aos EUA patrocinaram no Brasil, através da instrumentalização da justiça e das forças armadas. Quem lê os jornais europeus ou americanos pode comprovar que a maioria esmagadora do noticiário sobre o Brasil consiste apenas na “galhofa” em relação aos aspectos mais caricatos do governo “político”, da ignorância de Bolsonaro e de muitos dos seus ministros.
A maioria dos comentaristas ainda não entendeu que na expressão dessas opiniões absurdas a verdade é secundária. O Bolsonaro não precisa acreditar que a Terra é chata - para ele tanto faz que seja chata ou não -, basta que uma maioria crescente de brasileiros acredite nisso. O objetivo é, como ele aliás declarou, destruir. Destruir as conquistas sociais até onde for possível, e, sobretudo, destruir a cultura do progresso para todos, destruir a ideia que a educação e solidariedade possam servir à justiça social. Para eles, a história, como queria o outro, acabou; o mundo pode viver no presente perpétuo do mercado. Obviamente nunca, salvo nas exceções conhecidas, na imprensa nacional ou internacional se critica a política econômica, por razões óbvias.
Diante desta situação, a esquerda brasileira, e tam-
bém a esquerda mundial, se vê num beco sem saída. Como vender a ideia de progresso político e social, se o desenvolvimento para todos não será mais possível? Não há dúvida que se trata de uma encruzilhada da história difícil de atravessar. Como em todas as situações dessa natureza, a primeira medida deve tender a estabelecer um diagnóstico, para depois procurar uma saída. É claro que tem de haver uma revisão das ideias que sustentaram as lutas sociais até os anos 70, quando o liberalismo tomou as rédeas da política, da economia e agora da cultura mundiais.
A primeira dessas conversões parece-me se relacionar com a ideia mesmo de progresso. Pelo menos desde o começo do século XIX a ideia de progresso aliou três vertentes: a técnico-científica, hoje inseparável do consumo, a política, social e econômica, e a nacional. Tradicionalmente essas três ideias foram tratadas e vendidas em conjunto. Agora precisamos concluir que na realidade são coisas distintas e que talvez se tenham tornado até contraditórias.
Comecemos pela última, a nacional. A ideia de nação traduz um sentimento de pertença que é positivo, na medida em que tece elos entre pessoas que eventualmente têm ideias e interesses discordantes, criando comunidades coesas. Porém essa ideia não só tem servido para os piores fins (basta pensar na Primeira Guerra Mundial, quando morreram milhões de inocentes), como ela escamoteava na realidade a ideia colonial. Hoje, diante do que tem sido revelado sobre a realidade das práticas coloniais – muitas das quais ainda de pé sob a controle das novas elites nacionais -, ninguém pode mais acreditar que os brancos estavam em África, ou onde quer que fosse, para desenvolver as regiões ocupadas. A riqueza das democracias mais desenvolvidas proveio da sua cultura e história, mas também do saque das colônias.
É claro que houve muitas nações sem colônias, mas ou se tratavam de nações sob o domínio alheio, copiando a organização e ideologia alheias, ou, e talvez seja o caso do Brasil, de países que replicaram o colonialismo internamente. O relacionamento da cidade de São Paulo com a Amazônia, por exemplo, no que respeita a água e a energia, talvez possa ser lido usando os instrumentos que analisam as situações coloniais. O mesmo se poderá dizer da situação da maioria da população negra na sociedade brasileira. Muito sintomaticamente o golpe surgiu quando as universidades começaram formando negros, até hoje ausentes ou apenas em posições subalternas na justiça, forças armadas e profissões liberais. Nesse sentido, como falar de nação brasileira?
No que respeita a técnica, já vimos quando falámos da produtividade, como ela pode ser usada apenas para efeito de obter vantagens nos mercados, com consequências trágicas para os direitos e a vida dos trabalhadores. Da mesma forma, o seu desenvolvimento tem consequências altamente negativas sobre o ambiente. Como se sabe, a extração de “terras raras”, usadas no fabrico de muitos dos artefatos de consumo atuais, se revela muito mais danosa para o meio ambiente do que a própria extração do petróleo, já que a sua “raridade” envolve a produção de muitos mais dejetos, com as consequências que o Brasil bem conhece, devido à conduta irresponsável das empresas de mineração.
Finalmente a extensão da técnica para áreas de consumo de onde antes estava ausente, como a educação e a cultura (vide o consumo de “conteúdos” pelas crianças e adultos através dos celulares, destruindo as relações familiares, ou o ensino à distância eliminando a relação aluno-professor), só pode levar a uma profunda reavaliação da sua relação com o “progresso”. É claro que a técnica, sempre que responde a objetivos científicos e a imperativos humanos e sociais, como no caso da medicina, é incontestavelmente uma conquista da civilização.
Concluimos que as ideias de nação e técnica devem ser associadas à ideia e práticas progressistas apenas na medida em que não contrariem aquilo que é fundamental no progresso, ou seja, o desenvolvimento humano. Não há que desvincular o progresso das conquistas sociais, e sim de repensar as suas relações com os conceitos de nação, de técnica e de consumo. O que deve ser revisto não é o alcance do progresso para todos, mas sim o seu aprofundamento social e político, e o lugar da técnica e do consumo que lhe foram artificialmente atrelados.
Não temos a pretensão de saber conjugar as observações atrás expostas num conjunto coerente, mas acreditamos que não podem ser jogadas para debaixo do tapete, na busca de falsas conciliações que só podem levar ao desastre.
Nada do passado merece ser conservado que não tenha como objetivo a justiça e a solidariedade; não há progresso que mereça esse nome que passe pelo sacrifício ou alienação da sociedade, que cada vez se confunde mais com a humanidade como um todo. A luta pela justiça se mantém como o verdadeiro sentido do progresso, aliviada de tudo aquilo que lhe foi imposto por ideologias e interesses parasitas.
Pedro de Souza é editor, pesquisador e exsuperintendente executivo do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento.