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Opinião | Rubens Pinto Lyra
JORNALISMO E CIDADANIA | 12 Opinião
“Caneladas” Ou Protofascismo? Por Rubens Pinto Lyra
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1- BOLSONARO FLERTA COM ESCRAVISMO E COM A CENSURA “Em tempos de terror, escolhemos monstros para nos proteger”, Mia Couto.
Tratar-se-ia apenas de meras “caneladas”, ou de arroubos retóricos do capitão reformado e de seus acólitos, como ainda pretendem muitos que nele votaram e certa imprensa condescendente? Não há como concebê-los apenas como golpes desferidos a esmo, praticados por impulsos, sem predeterminação, tampouco de declarações impensadas. Estamos em presença de uma estratégia deliberadamente disruptiva, agressiva, que visa manter a imagem de alguém fora do “sistema”, sincero, portador de uma radicalidade necessária à construção de uma nova ordem política, escoimada do comportamento ‘tradicional” dos políticos, supostamente incapaz de assumir posições mudancistas.
Agressiva não apenas na forma, mas também no conteúdo, o que propicia uma espécie de catarse àqueles que sentem necessidade de um novo estilo, pretensamente contraposto à “velha política”. De quebra, essa estratégia põe em segundo plano a percepção de conteúdos eivados de autoritarismo, em favor do barulho resultante do rancor e do destempero, absolutamente inéditos em autoridades de primeiro escalão de uma República democrática.
A inacreditável declaração de Bolsonaro sobre a escolha do seu candidato à Vice-Presidente, nas recentes eleições presidenciais, ilustra exemplarmente o que destacamos acima. Nela, o capitão reformado afirma que se arrependeu de ter escolhido “esse Mourão aí”, e não o “príncipe” Deputado Luiz Phillipe de Orleans e Bragança, em relação a quem se derramou em elogios. Essa declaração é reveladora de uma estratégia de quem alimenta, diuturnamente, dissensões internas, posição crescentemente subalterna dos militares no seu governo, cada dia mais personalista E também da absoluta falta de ética na forma humilhante como é tratado o Vice-Presidente Mourão, general de Exército e segunda autoridade da República.
Mais inquietante ainda, porém, é o fato de que nem a mídia, nem os partidos, tampouco entidades da sociedade civil tenham ressaltado o mais grave: a identificação ideológica e política de Bolsonaro com um monarquista – o “príncipe” acima referido ligada à própria natureza humana! Temos aqui o mais inquestionável exemplo de ultra-conser vadorismo e de concepção retrógrada sobre a sociedade e a escravidão. Por contraste, existe praticamente uma unanimidade nas ciências sociais – e mesmo na percepção do “senso comum” atual – de que a escravidão nada tem de natural, sendo, ao contrário, produto das relações sociais.
Não poderia haver maior justificativa para a extrema desigualdade social do que a formulada pelo “príncipe” – com toda probabilidade, compartilhada pelo seu mais insigne admirador (e também escravista?): Bolsonaro. Outra incrível manifestação do extremismo presidencial foi a negativa de assinar o diploma referente ao maior reconhecimento literário da língua portuguesa, instituído pelos governos brasileiro e português: o Prêmio Luís de Camões, conferido à figura ímpar do escritor e compositor Chico Buarque de Hollanda. Comportamento totalmente diverso do adotado pelos presidentes Lula e Temer que, anteriormente, avalizaram o diploma em questão, a despeito dos escritores contemplados serem notórios críticos de seus governos 2 - A DIPLOMATIA DO INSULTO “Tem gente que só compreende a brasa quando ela entranha nas profundezas da carne”
A recusa da concessão do prêmio Camões a Chico Buarque representa algo inédito em matéria de intolerância à diversidade de pontos de vista, mas é muito expressiva da forma totalitária com que Bolsonaro encara as manifestações culturais e artísticas. Quem não compartilha de suas concepções, sintetizadas nos motes Pátria amada, Brasil e O Brasil acima de tudo, Deus acima de todos, notoriamente afins com os dos fascistas, é conside-
rado cidadão de segunda categoria, quando não inimigo da pátria. Apesar disso, a atitude do militar reformado foi pouco divulgada na mídia, não ensejando o categórico repúdio que lhe devia ter sido dado pela sociedade e, especialmente, pelos meios artísticos e culturais.
Um último exemplo de sua estratégia desagregadora diz respeito às declarações insultuosas dirigidas ao Presidente e Vice-Presidente eleitos da Argentina, Alberto Fernandez e Cristina Kirchner, quando ainda candidatos, tachando-os de “bandidos de esquerda”. Nunca antes, em qualquer país civilizado, líderes políticos reconhecidos – máxime de uma nação amiga - foram tratados como marginais, tão somente em virtude de discrepâncias ideológicas. Usa, desta forma, o arrogante Chefe de Estado brasileiro de critérios manifestamente nocivos ao interesse nacional.
O resultado da estratégia bolsonarista revelou-se negativa para o seu artífice, ao gerar um sub-produto inesperado: quem vai representar, de facto, para os argentinos, o Brasil na posse de seu Presidente e Vice-Presidente eleitos - por eles convidados - é ninguém menos do que Luiz Inácio Lula da Silva!
Orientado pelos mesmos critérios ideológicos - alheios às práticas diplomáticas consagradas - apostou todas as fichas em um governante objeto de processo de impeachment – Donald Trump - deixando o Brasil em situação delicada, caso o próximo presidente dos EUA seja um democrata. Mas qual o sentido dessas considerações, se o temperamento incontrolável do capitão reformado e sua combinação com o ultra-conser vadorismo já é de todos conhecida? Conhecida, mas superficialmente, e, também, minimizada pelos que nele votaram, além de parcialmente oculta, ou filtrada pelo monopólio midiático.
Esse é, precisamente, o desafio que temos a enfrentar: buscar contrapor-se com argumentos racionais ao irracionalismo imperante. Essa é a única forma de fornecer à militância - que precisa abarcar todos os democratas - as ferramentas de que necessitam para se opor às tonitruantes e desagregadoras manifestações do ex-militar.
3 - NO PASÁRAN? Parafraseando Brecht “A incompreensão do presente nasce, fatalmente, da ignorância do passado”. Marc Bloch em Apologie pour l’histoire.
Lembremos o que disse Dolores Ibárruri Gómez, mais conhecida como La Pasionaria. Instigando, na Guerra Civil Espanhola, as hostes republicanas contra o Generalíssimo Franco (também protofacista), Dolores pronunciou a célebre frase: para vivir de rodillas (de joelhos) es mejor morir de pie. No pasarán”.
Palavras de ordem, como essa, são atuais e encorajadoras, mas não suficientes. É preciso lutar. No caso do Brasil, não com armas, mas buscando a hegemonia na batalha de ideias. Nesses tempos sombrios em que vivemos, é necessário ter sempre presente o bordão de Santayana: os que não se lembram do passado são condenados a revivê-lo. Precisamos nunca deixá-lo cair no esquecimento, impedindo, assim, com a reedição de Atos Institucionais, a sua volta. Não duvidemos: o protofascismo, de matriz tupiniquim, incorporando aspectos essenciais do fascismo, está batendo às nossas portas. É preciso reagir agora, quando sentimos o calor da brasa, antes que ela se aprofunde nas entranhas de nossa carne.
Vale parafrasear as advertências de Bertholt Brecht, e de outros mestres da sua época:
Primeiro, levaram os “comunistas” e os petistas, mas, como não sou nem petista nem comunista, fiquei na minha, apenas torcendo para que os libertem. Depois, prenderam manifestantes, considerados “terroristas”. Achei excessivo, mas preferi silenciar. Em seguida, perseguiram os homossexuais, e outros adeptos da “ideologia de gênero”. Discordei, mas, como não compartilho dessa ideologia, nada fiz. Voltam-se agora contra a liberdade de expressão intelectual e artística, censurando espetáculos, vigiando professores nas salas de aula e extinguindo órgãos de Estado, promotores da arte e da cultura. Achei lamentável, mas não tive coragem de protestar. Por último, hoje fui preso por participar, para garantia do meu emprego e do meu salário, de greve considerada ilegal. Mas o pior está para acontecer: a TV Globo acaba de anunciar a decretação de Ato Institucional (A.I), parecido com o A.I-5. Precisaria ter reagido, mas agora é tarde, não há mais leis, nem ninguém para defender-me.
Rubens Pinto Lyra é Doutor em Direito Público e Ciência Política e Professor Emérito da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: rubelyra@uol. com.br