Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 1
golpes de 1964 e 2016
Velho Barreto Jornalismo e Economia da Atenção NO BALANÇO DA REDE E mais... Jornalismo e cidadania ANO I | Nº. 4
Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade | PPGCOM/UFPE
Os
Túlio
Revista
Expediente
Editor Geral | Heitor Rocha professor PPGCOM/UFPE
Editoração Gráfica | Ivo Henrique Dantas doutorando PPGCOM/UFPE
Articulistas |
PROSA REAL
Alexandre Zarate Maciel doutorando PPGCOM/UFPE
MÍDIA ALTERNATIVA
Xenya Bucchioni doutoranda PPGCOM/UFPE
NO BALANÇO DA REDE
Ivo Henrique Dantas doutorando PPGCOM/UFPE
JORNALISMO E POLÍTICA
Laís Ferreira mestranda PPGCOM/UFPE
JORNALISMO AMBIENTAL
Robério Daniel da Silva Coutinho mestre em Comunicação UFPE
PODER PLURAL
Rakel de Castro doutoranda PPGCOM/UFPE e UBI
CIDADANIA EM REDE
Nataly Queiroz doutoranda PPGCOM/UFPE
COMUNICAÇÃO PÚBLICA
Ana Paula Lucena doutoranda PPGCOM/UFPE
JORNALISMO INDEPENDENTE
Karolina Calado doutoranda PPGCOM/UFPE
MÍDIA FORA DO ARMÁRIO
Rui Caeiro
mestre em Comunicação UFPE
MUDE O CANAL
Ticianne Perdigão doutoranda PPGCOM/UFPE
RÁDIO E CIDADANIA
Karoline
em Comunicação UFPE
Colaboradores | Marcos Costa Lima Pós-Graduação em Ciência Política/UFPE
Túlio Velho Barreto Fundação Joaquim Nabuco
Gustavo Ferreira da Costa Lima Pós-Graduação em Sociologia/UFPB
Luiz Lorenzo Núcleo de Rádios e TV Universitárias/UFPE
JORNALISMO E CIDADANIA | 2
Fernandes mestre
NA TELA DA TV Mariana Banja mestranda em Comunicação UFPE Bolsista e Aluno Voluntário | Lucyanna Maria de Souza Melo Yago de Oliveira Mendes Graduandos de Jornalismo UFPE Índice Editorial Prosa Real Mídia Alternativa
Jornalismo Ambiental Comunicação Pública Mídia Fora do Armário Opinião | Ana Veloso et. al Opinião | Maria de Jesus Mude o Canal Opinião | Túlio Velho Barreto Opinião | Marcos Costa Lima | 3 | 4 | 6 | 8 | 10 | 12 | 14 | 16 | 18 | 20 | 22 | 24 Edição Nº 4 Recife-Pernambuco, Outubro 2016 Arte da Capa: Designed by Freepik.com
No Balanço da Rede
Editorial
A responsabilidade da representação política e sua transgressão
Por Heitor Rocha
Caso houvesse uma adequada apuração, contextualização e interpretação por parte da mídia noticiosa de revelações de mandatários que expõem a sua indignidade e falta de legitimidade, talvez, tivéssemos casos de impedimentos realmente baseados em crime de responsabilidade.
Na década de 90, Fernando Henrique Cardoso declarou com empáfia que não tinha o que fazer com metade da população brasileira porque estes cidadãos não preenchiam os requisito necessários para ocupar postos de trabalho dentro da nova configuração de absorção de mão-de-obra exigida pela globalização: saber inglês e se utilizar de computador.
Com esta afirmação, o então presidente da República evidenciava que não governava nem se sentia responsável por esta enorme parcela da população brasileira, incidindo em claro desrespeito à representação política que recebeu da sociedade para exercer o cargo máximo da administração pública em benefício do conjunto de seus representados, relegando à própria sorte o grande contingente de excluídos brasileiros.
Um exemplo deste descaso com a população mais humilde, além da “privataria” que entregou em condições suspeitas boa parte dos setores mais rentáveis da estrutura pública do País, é o desvio de recursos das universidades públicas para fazer a fortuna dos proprietários do ensino superior privado. Certamente por isso, depois dos oito anos como seu Ministro da Educação, Paulo Renato passou a ser sócio de onze universidades particulares.
Agora, com ironia, Michel Temer, em reunião com empresários, tripudia e desautoriza as manifestações de protesto dos trabalhadores contra as medidas de desregulamentação das leis trabalhistas. Na ocasião, em tom de piada - daquelas que certamente os senhores de engenho escravocratas reunidos na casa grande faziam com os da senzala -, sugeriu que os empresários oferecessem empregos aos trabalhadores. “Quem sabe – brincou Temer com os empresários – quando os senhores saírem, convidam aqueles que estão lá fora. Se não têm emprego, quem sabe arruma emprego” (Diario de Pernambuco, A4, 28/10/2016). A grande habilidade dos golpista de inverter o significado dos fatos públicos, no caso o protesto de centrais sindi -
cais contra a flexibilização dos direitos trabalhistas, também ficou patente na seguinte afirmação: “Neste auditório, ouvimos palavras de incentivo e aplausos entusiasmados. E eu verifico que, lá fora, aqueles que não puderam entrar, para comemorar esse grande ato do governo, com suas vuvuzelas também aplaudem este grande momento” (Diario de Pernambuco, A4, 28/10/2016).
Com esta maneira de ridicularizar aqueles que foram “barrados no baile” das oligarquias brasileiras, o senhor que exerce a presidência da República demonstra que, ao contrário dos que acreditam na máxima da barbárie do “manda quem pode, obedece quem tem juízo”, o cinismo não é mais do que o elogio que o vício faz à virtude, pois a necessidade desta encenação comprova que a maioria da população, a despeito do desapossamento da cidadania pela representação da qual é vítima, não aceita o exercício da força bruta sem alguma prestidigitação para enganar a sua precária estrutura cognitiva.
Este fato explica o intenso empenho das elites em precarizar a educação. Historicamente, entre os horrores de todas as experiências de escravidão, consta a punição com penas severíssimas àquele que ousasse alfabetizar escravos. Assim, não deve causar espanto o posicionamento da revista Veja e os cartazes de manifestantes contra o governo Dilma dizendo textualmente “Fora Marx e Fora Paulo Freire”. Outro não pode ser o entendimento do ódio que nosso grande educador ainda desperta nos novos escravocratas, que, paradoxalmente, tão zelosamente se autoproclamam de “modernos”.
Nesta Revista Jornalismo e Cidadania Nº 4 podem ser vistos artigos sobre o impeachment de Miguel Arraes, o problema da ameaça ambiental, a mídia e os direitos das crianças e adolescentes, entrevista com Patrick Torquato, diretor da Rádio Frei Caneca, o Instituto Futuro da UFPE, entre outros temas relevantes da nossa realidade.
Heitor Costa Lima da Rocha, Editor Geral da Revista Jornalismo e Cidadania, é professor do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.
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Prosa Real
Livro-reportagem, jornalismo e contexto
Por Alexandre Zarate Maciel
Produção de livrosreportagem: um trabalho hercúleo
No mínimo dois anos para realizar pesquisas aprofundadas, envolvendo tanto entrevistas orais quanto o mergulho em fontes documentais, muitas vezes raríssimas. Prazos “dos sonhos”, de seis meses a um ano, para a redação final. Parece bastante tempo, mas o jornalista que se aventura no campo do livro-reportagem enfrenta um volume de trabalho hercúleo. É o que eles mesmos relatam nos textos de apresentação dos seus livros, comungando com os leitores as principais dificuldades para investigar, coletar, interpretar e organizar o vasto volume de informações que chega pronto e acabado editorialmente nas livrarias. “Ao fim do volume, por volta de 2580 notas indicam escrupulosamente a origem das informações mais relevantes”, alerta, por exemplo, o jornalista Mario Magalhães em “Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo”. Já o jornalista Caco Barcellos mergulhou em nada menos que oito mil edições do jornal “Notícias Populares” para criar um arquivo de notícias sobre mais de 3.200 tiroteios
envolvendo pessoas suspeitas e policiais militares. A descoberta de que nenhum civil havia sobrevivido em 3.188 tiroteios levou o autor a cruzar uma série de outras informações e depoimentos que resultaram na denúncia contundente do livro “Rota 66: a história da polícia que mata”. Jornalistas como Ruy Castro trabalham com a meta de, no mínimo, cem entrevistas para compor biografias como “Carmem” ou “Chega de Saudade”. Com um detalhe: é muito comum retornar às mesmas fontes para nova rodada de entrevistas, o que duplica o trabalho. O resultado de tanta dedicação são livros-reportagem que apresentam toda complexidade de determinado personagem ou período histórico, transcendendo os limites da simples notícia.
Autora do mês: Adriana Carranca
Fonte: Reprodução/namu.com.br
Quando era criança, a escritora e jornalista Adriana Carranca não tinha dinheiro para sair do Brasil. O avô dele propunha um jogo à menina, perguntando para onde ela gostaria de viajar naquele dia, exercício de pura imaginação. “Quando eu cresci, quis conhecer os lugares que ‘visitava’ na infância com meu pai e meu avô, e como eles, quis contar histórias reais sobre o mundo. Por isso resolvi ser jornalista”. Na condição de correspondente internacional, o currículo de Adriana Carranca atualmente estampa coberturas nas
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guerras do Afeganistão e Paquistão, além de reportagens sobre conflitos, intolerância religiosa, direitos humanos e condição da mulher em países muitas vezes inóspitos, como Irã, Egito, Indonésia e nos territórios palestinos. As histórias comoventes de vida que ela tem encontrado foram transformadas em reportagens especiais para jornais como “O Estado de S. Paulo” e publicações internacionais. E ganharam mais perenidade na forma de três obras, inclusive uma primeira experiência brasileira no campo do livro-reportagem infantil: “Malala, a menina que queria ir para a escola”. Neste livro, lançado em 2015, Carranca narra a história da mais jovem prêmio Nobel da Paz, Malala Yosafzai, uma menina que morava no vale do Swat, no Paquistão e quase foi assassinada pelas forças do grupo extremista Talibã simplesmente por reivindicar o direito de ir à escola, proibido pelos invasores. A jornalista aproveita o mote e a força da personagem, que era criança como os seus leitores, para tecer uma narrativa poética, quase uma fábula real, sobre a importância da tolerância, da educação, da coragem e da luta pelos direitos humanos. Em “O Irã sob o Chador”, de 2010, escrito em parceria com a jornalista Marcia Camargos, Adriana Carranca já revelava um olhar atento à realidade cotidiana de um país de costumes morais rígidos, porém com muita vontade de mudança. A escritora chegou a entrevistar transexuais iranianos, que, surpreendentemente, podem trocar de sexo, por lei, no Irã, o que não os impede de viverem uma realidade opressora. Já em “O Afeganistão depois do Talibã”, de 2011, Carranca escolheu onze histórias que compõem um mosaico complexo de uma sociedade enigmática. Assim, ficamos conhecendo a jovem boxeadora Sadaf, o talibã Mulá Abdul, a médica Massouda Jalal que foi candidata à presidente, entre outros curiosos personagens. Para o ano que vem, ela prepara um novo projeto de livro-reportagem infantil, desta vez desvendando o universo de crianças sírias refugiadas na Europa. Adriana Carranca busca demonstrar aos leitores que o jornalismo é uma profissão de descobertas, tolerância e entendimento do outro, mesmo que ele esteja a quilômetros de distância, inserido em realidades exóticas.
Iluminando conceitos: A questão dos livrosreportagem best-sellers na tese de Catalão
“Jornalismo Best-seller: o livro-reportagem no Brasil contemporâneo” é uma tese de doutorado defendida em 2010, no campo de Letras, na Unesp. O professor Antônio Heriberto Catalão Jr. procedeu a análise dos discursos dos 18 livros-reportagem nacionais e estrangeiros mais vendidos no período de 1966 a 2004. Na definição de Catalão (2010, p.128), o livro-repor-
tagem seria um gênero de discurso produzido em forma de reportagem e difundido nesse formato, por um “repórter-autor”, que assume o “trabalho de planejamento, coleta e elaboração das informações” (CATALÃO, 2010, p.128). Catalão analisou livros-reportagens de expressiva vendagem, como “Olga” e “Chatô”, de Fernando Morais, “1968: o ano que não terminou”, de Zuenir Ventura, “A ditadura Envergonhada” e “A Ditadura Escancarada”, de Élio Gaspari, “Rota 66” e “Abusado”, de Caco Barcellos, entre outros, estabelecendo uma visão crítica sobre essas obras e suas características. Catalão alerta para o “tom de segurança e de certeza do autor”, já que raramente “se encontram dúvidas, indefinições ou inquietações, seja quanto aos acontecimentos relatados, às teses defendidas ou às informações que as sustentam e ao processo por meio do qual elas foram obtidas” (CATALÃO, 2010, p.235). Mesmo assim, o professor Catalão (2010, p. 160) acredita que o livro-reportagem pode ser um avanço no sentido de uma “nova posição dialógica do repórter na cadeia da comunicação cultural contemporânea”, em contato com os seus leitores. Dessa forma, os jornalistas-autores não devem, na ótica de Catalão, pautar essa relação de ordem mais profunda no campo do jornalismo apenas na escolha de personagens e temas de fácil atração do público. Ou mesmo se aprisionar a textos acessíveis e facilmente inteligíveis apenas por uma relação puramente comercial, devendo, opinião na opinião dela, arriscar transcender essa lógica.
Referências:
CATALÃO JR., Antônio Heriberto. Jornalismo Best-seller: o livro-reportagem no Brasil contemporâneo. 2010. Tese doutorado – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Araraquara.
CARRANCA, Adriana. Malala: a menina que queria ir para a escola. São Paulo, Companhia das Letrinhas, 2015.
____________, Adriana. O Afeganistão depois do Talibã. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
____________, Adriana; CAMARGOS, Marcia. O Irã sob o Chador: duas brasileiras no país dos aitolás. São Paulo: Globo, 2010.
Elaborada pelo professor do curso de Jornalismo da UFMA, campus de Imperatriz, Alexandre Zarate Maciel, que está cursando o doutorado em Comunicação na UFPE, a coluna Prosa Real traz, todos os meses, uma perspectiva dos estudos acadêmicos sobre a área do livro-reportagem e também um olhar sobre o mercado editorial para esse tipo de produto, os principais autores, títulos e a visão do leitor.
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Mídia Alternativa
Jornalismo de oposição e resistência
Por Xenya Bucchioni
O fotojornalismo independente e as agências de fotografia: uma entrevista com Rosa Gauditano
Com uma caixa debaixo do braço, Rosa Gauditano chegava à sede do jornal Nós Mulheres. Sem fazer ideia de quem a atenderia, explicou ao cara barbudo que abriu-lhe a porta o motivo da visita. A esta altura, além da porta, abria-se também um pequeno tesouro entre ambos: um conjunto de imagens, em formato 18 cm X 24 cm, que a faria voltar ali muitas outras vezes. Como planejado, ela havia conseguido espaço em uma publicação alternativa. Ao contrário do que imaginara, no jornal Versus.
“Quem me atendeu foi o Marcão [Marcos Faerman]. Ele começou a olhar as fotos, me apresentou o Versus e me con-
vidou para a próxima reunião de pauta”, conta Rosa enquanto gargalha ao lembrar-se de que, à época, aceitara o convite sem ter ideia do que era uma reunião de pauta.
Decidida a embarcar na proposta, emplacou um ensaio sobre as prostitutas da Avenida São João, em pleno auge da repressão e censura do regime militar, e nunca mais parou. Atravessou a década de 70 fotografando os movimentos sociais contrários à ditadura, registrou o processo de redemocratização nos 80 e, ao lado de outros fotojornalistas independentes, participou da articulação para formação das primeiras agências de fotógrafos do país, integrando o time fundador da Agência Fotograma junto aos fotógrafos Emídio Luisi e Ed Viggiani, em 1986.
Atualmente, Rosa é uma das vozes mais ativas na documentação das tradições indígenas. É também fundadora da ONG Nossa Tribo.
JeC: Seu trabalho como fotógrafa profissional se inicia na década de 70, no Versus, onde você se torna editora de fotografia. Antes dessa estreia, como foi seu contato com a fotografia?
Rosa: Na época, em 1975, eu morava sozinha. Entrei na faculdade de jornalismo na Alcântara Machado com 17 anos, mas na verdade queria fazer cinema só que o curso só existia na USP e era muito difícil entrar. Meu barato era imagem, fotografia. Minha mãe trabalhava e me deu uma máquina Asahi PENTAX SP II, que era super legal. Comecei a fotografar sozinha, viajava e fazia fotos com o filme Tri-X preto e branco. Depois, montei um laboratório para revelação no banheiro da minha casa e, então, resolvi fazer um curso livre de fotografia na Faap [Fundação Armando Álvares Penteado]. Também fiz na Enfoco, que era um das únicas escolas de fotografia daqui de São Paulo. No fim, acabei sendo contratada para trabalhar lá, ganhei uma bolsa de estudos e, nesse ínterim, larguei a faculdade de jornalismo. Meu pai queria me matar, né? Eu poderia ter feito as duas coisas juntas, mas enfim larguei a faculdade.
JeC: E como se deu a chegada em Versus?
Rosa: Eu soube do jornal Nós Mulheres, que ficava
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na casa onde funcionava o Versus. Cheguei lá e não tinha ninguém, mas o Marcão [fundador do Versus] me atendeu. Eu disse que era fotógrafa e que tinha ido lá para mostrar meu trabalho sobre as mulheres. E aí ele me convidou para a reunião de pauta, que eu não tinha a menor ideia do que era e foi, assim, que eu comecei a entender um pouco o que era aquilo ali. Saí de lá com alguns jornais para ler e achei super legal.
JeC: Gostaria que você contasse um pouco sobre o processo de elaboração da pauta.
Rosa: Nas reuniões de pauta, a gente levantava as principais coisas a serem feitas. Eram uma ou duas pautas por mês, o jornal era mensal e eu mesma me pautava. Comprava alguns jornais e via: “vai ter manifestação na Sé sobre o aumento do custo de vida”, “vai ter greve do ABC no estádio da Vila Euclides”, “Greve na Ford”. Eu pegava o ônibus e ia. Comecei a descobrir outros jornais, o Movimento e o Em Tempo, comecei a conhecer pessoas de outros jornais, às vezes eles se interessavam por algumas fotos que eram publicadas no Versus. Eu era freelancer. Vendia foto para eles, mas meu xodó era o Versus, que não me pagava nada e, mesmo assim, eu fazia. E a gente, no Versus, era tipo uma trupe. Todo aquele povo me ensinava coisas que eu não tinha ideia. Ali foi a minha formação.
JeC: E esse processo de vender as fotos, como acontecia? Você vendia para a grande imprensa também?
Rosa: Eu vendia para o Movimento e o Em Tempo e publicava no Versus. Eu vivia com muito pouco, nem sei como fazia. Eu não tinha contato na grande imprensa. A primeira vez que eles me procuraram, foi quando fiz a foto de um balão escrito “abaixo à censura” e saiu no Movimento. A Veja ligou para lá querendo saber quem era o autor. Essa foi a primeira vez que fui numa redação da grande imprensa. Não me lembro direito se eles compraram uma ou duas fotos, sei que publicaram. Aos poucos, comecei a fazer freelancer para outros lugares, para o Sindicato dos Engenheiros, que era um sindicato de esquerda e, também, para o Sindicato dos Bancários.
JeC: Na segunda metade da década de 70, os fotógrafos começam a se organizar e a profissão passa por algumas mudanças. Você se recorda desse movimento?
Rosa: Os fotógrafos se reuniam no Sindicato dos Jornalistas, mas era sempre aquela coisa: os caras de jornalismo e os fotógrafos. Nós éramos sempre abaixo. Aí começamos a formar um grupo fora do sindicato, formado por pessoas que sempre se encontravam nesses movimentos, que eram o Juca Martins, a Nair Benedito, o Delfim Martins, o Mauricio Simonetti e outros fotógrafos freelancers. E aí, fundamos a União dos Fotógrafos. A gente se conhecia porque se encontrava na rua fotografando os movimentos sociais. Éramos todos classe média porque para ter máquina de fotografia tinha que ser classe média, mé-
dia alta, porque custava caro. Alguns tinham mais equipamentos, outros menos. Na União dos fotógrafos, fizemos a primeira tabela de preço dos fotógrafos. Chamamos o Vieira Manso, advogado que havia feito todos os contratos [de direitos autorais] da Editora Abril, para saber o que fazer para termos os nossos direitos autorais preservados. Ele nos ensinou quais eram os nossos direitos enquanto autores porque, em um trabalho criativo, o autor é o dono do trabalho. Esse é um direito inalienável mesmo que você ceda ou venda os direitos. Eles [o contratante] sempre vão ter que dar crédito, dizer o nome do autor. Então, desse grupo de fotógrafos mais politizados acabaram saindo as agência de fotografia. A Nair e o Juca fundaram a F4, eu, o Emídio Luisi, o Ed Viggiani fundamos a Fotograma, a Cristina Villares e outros a Agência Angular. Nós éramos todos contemporâneos, todos amigos. Fundamos as agências baseados nas agências de fotografia francesa, que até hoje são muito organizadas. E aí combinamos de usar um modelo de contrato. Nós éramos uma turma de uns 20 fotógrafos e fazíamos freelancer para várias revistas da época, Isto É, Veja.
JeC: E essas revistas não tinham muitos fotógrafos na época? Porque hoje o cenário é bem reduzido.
Rosa: Elas tinham. Tinham muitos fotógrafos fulltime, mas mesmo assim precisavam de freelancer. E precisavam de bons fotógrafos. Quem eram os bons fotógrafos? Nós, os independentes. E aí combinamos o seguinte: a partir de agora todo mundo vai usar contrato de concessão de direitos. O que quer dizer esse contrato? É um contrato que você cede seus direitos para aquele número da revista, daquele mês , daquele ano e você vai ser pago “x” reais pela publicação daquela foto. Você não cede seus direitos para a revista doar, vender e fazer o que quiser como as editoras faziam as pessoas fazerem antes. Começamos a bater nessa tecla de só fazer trabalho com contrato de concessão de direito autoral. Isso foi uma revolução. Então, por exemplo, a Isto É tinha lá um staff de 10 fotógrafos, aí acontecia alguma coisa, eles precisavam de um fotógrafo correndo e ligavam na Fotograma. Eles já sabiam que a gente só fazia se assinasse. Aí, eles diziam que não queriam e ligavam lá para o pessoal da F4 e o Juca também falava do contrato. Fizemos essa pressão no corpo a corpo para as redações e acabamos sendo respeitados. E foi assim que, criamos, organizamos e conservamos nossos arquivos.
Escrita pela jornalista Xenya Bucchioni, doutoranda em Comunicação na UFPE e fundadora do Mezclador, estúdio de cultura contemporânea desenhado para realizar projetos de impacto social, a coluna Mídia Alternativa aborda a produção jornalística feita à margem dos veículos tradicionais. Mensalmente, o espaço apresentará um raio-x das publicações alternativas marcantes na história do jornalismo e do país, além de entrevistas e debates.
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No Balanço da Rede
Jornalismo em tempos conectados
Por Ivo Henrique Dantas
O
webjornalismo
na era da economia da atenção
Em uma economia marcada pela atenção (Breitenstein, 2007) dividir a atenção significa dividir os lucros. Enquanto no mercado tradicional existem poucos concorrentes, no mercado online todo usuário pode ser considerado, além de audiência e possibilidade de aumentar o alcance das notícias, um concorrente. Apesar de não possuir uma definição fechada, a chamada economia da atenção “é um modelo para discutir as dinâmicas do imediato da comunicação atual entre as pessoas e a mídia e entre elas” (BREITENSTEIN, 2007, p. 2). A lógica é simples: o tempo e nossa atenção são limitados e precisamos decidir o que fazer com eles. Assim, a atenção é uma força em constante mudança. Uma pessoa comum “puxa” informação e “empurra” opiniões.
Com a Web 2.0, a emissão de informações na rede, antes quase monopolizada pelos grandes portais, passa a ser repartida com o público, que publica blogs e posts em redes sociais. Ainda continua a existir uma certa “vantagem” dos veículos em relação às pessoas, pois muitos trazem sua legitimação de outros meios (jornais que migraram para a web) ou construíram ao longo do tempo uma audiência online. “Quanto mais atenção você tiver no passado e no presente, mais atenção você conseguirá no futuro. O valor da atenção é construído na mente dos consumidores” (BREITENSTEIN, 2007, p. 5). Assim, diante dessa nova realidade, o mercado publicitário passou a enxergar outras formas de anúncios, que não apenas os veículos tradicionais. Ao anunciarem nas redes sociais,
como Facebook, as empresas acabaram por redirecionar verbas, antes destinadas para os veículos. Assim, apesar do constante crescimento de anúncios na internet, o bolo continua mais dividido do que costumava ser nos meios de massa. “Enquanto os jornais vendiam espaço e a TV e rádio vendiam tempo, anunciantes não querem nenhum dos dois. Eles querem audiência” (DOCTOR, 2010, p. 88).
Todas essas modificações no ambiente em que se encontra a empresa jornalística acarretam modificações na gestão financeira dos recursos disponíveis para as redações dos jornais online. Se por um lado, o webjornalismo “acarreta custos praticamente nulos do lado da distribuição, não é menos certo que os custos aumentaram consideravelmente do lado da produção” (SERRA, 2003, p. 47), na medida em que, para utilizar as potencialidades da internet, é preciso investir em capital humano e no desenvolvimento de materiais multimídia e interativos.
O grande problema do financiamento do jornalismo, na verdade, encontra-se no fato de que, ao contrário de outros negócios, ele não funciona segundo a simples lógica da demanda. Na maioria dos casos, o consumidor deseja um produto, paga por ele. No jornalismo, ao contrário, as formas de pagar pelo produto sempre foram majoritariamente indiretas, com a venda de publicidade (QUINN; KAYE, 2010).
Segundo Cardoso (2007), existem cinco formatos, sendo o primeiro a assinatura para acessar o conteúdo disponibilizado pelo site. Nesse caso, são cobradas taxas mensais ou anuais, de forma a permitir que o usuário tenha livre trânsito dentro do jornal em questão. Alguns veículos, todavia, oferecem esse acesso de forma gratuita. O segundo modo diz respeito à cobrança por conteúdos individualizados, ou seja, dependendo do que for acessado.
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O mais utilizado, todavia, é o terceiro formato, o aproveitamento de receitas publicitárias. É preciso atentar para o fato de que, nesse caso, a dispersão da audiência pelos diversos endereços disponíveis na internet acaba por prejudicar a receita final, visto que a contagem para o cálculo do preço do espaço leva em consideração diversas variáveis, como a relação entre o número de visitantes, o tempo de permanência no site e os cliques efetivos na publicidade.
Do lado da indústria da propaganda, continua a busca pelos formatos ideais para chamar a atenção dos usuários, haja vista a mudança de paradigma de push para pull. Soma-se a isso, ainda, o fato de que as redes sociais têm atraído a atenção do público, que passa cada vez mais tempo conectado a elas, e se informando através delas, concorrendo com os sites de jornais, como apontado anteriormente.
Já o quarto formato se refere à venda de espaço para anúncios classificados. No meio online, entretanto, esse tipo de propaganda não encontra, como nos jornais impressos, um espaço exclusivo para a sua veiculação, pouco se diferenciando do caso anterior.
A quinta forma de financiamento se refere a iniciativas que possuem o acesso como um dos serviços oferecidos. Trata-se da venda de acesso à web, normalmente encontrada em portais. “As receitas dos jornais online virão cada vez menos da publicidade e serão cada vez mais a soma de várias fontes, por isso, as iniciativas noticiosas online deverão se ver cada vez mais como fornecedoras de conteúdos e menos como simples jornais” (CARDOSO, 2007, p. 205).
Ao observar os modelos de financiamento apresentados por Cardoso (2007) é possível identificar a presença da Freeconomics, ou seja, a economia do grátis. Para o jornalista britânico Chris Anderson (2006), o futuro dos preços é grátis. A partir da análise de uma série de modelos econômicos utilizados por empresas na internet, e a história do grátis da sociedade ocidental, ele define que o futuro é pagarmos cada vez menos por produtos online.
Apesar de apontar diversos modelos, dois chamam a atenção para o estudo do negócio jornalístico, o freemium e o pagamento via anunciantes. No primeiro modo, grande parte dos conteúdos são de livre acesso, mas, ao tentar entrar em certos links, e assistir alguns vídeos, o usuário é cobrado. No Brasil, a ideia é adotada por alguns portais, como o Globo.com, que reserva conteúdo especializado para seus assinantes – conteúdo Premium –, daí o nome freemium, ou jornais que disponibilizam o acesso digital da versão impressa apenas para assinantes, mas liberam o conteúdo gerado pela redação online.
Com a possibilidade de ser utilizada junto ao modelo freemium, a receita vinda por anunciantes já está presente no estudo de Cardoso (2007), mas ganha um novo elemento importante para entender a economia do grátis, o fato de que, na verdade, é o anunciante quem paga pelo conteúdo. Na nova economia do grátis, não quer dizer que
não exista lucro, o que muda é quem paga pelo conteúdo. Trata-se de uma relação de troca. A empresa anunciante garante o acesso gratuito e, em troca, ganha visibilidade da sua marca e produtos.
Mas, se por um lado o futuro é ser grátis, diversas empresas jornalísticas acreditam no contrário. Para elas, o internauta não paga pelo conteúdo online porque assim foi acostumado. Ao se lançarem na rede, os jornais passaram a disponibilizar as notícias de forma gratuita, diferentemente do que acontecia na versão impressa, em que o preço de venda convive com os anúncios. A saída para muitos, como o The New York Times, tem sido apostar em um novo modelo freemium, baseado na condição de acesso dos usuários.
Caso o internauta seja um leitor casual, com a leitura de até vinte notícias/dia, o acesso continua gratuito. Porém, para ler além disso, o jornal passou a cobrar uma taxa de assinatura. Já os acessos através de redes sociais continuam sem limites.
Ainda na tentativa de rentabilizar os negócios online, baseado no crescimento das redes sociais, surge um novo modo de financiamento para projetos jornalísticos, o crowdfunding (ver Coluna Jornalismo Independente). O modelo funciona através de doações coletivas. Nesses casos, a empresa, ou o jornalista no caso de blogs, apresentam projetos de matérias para o público, que, por sua vez, avalia o interesse no assunto. Caso o material desperte o interesse da audiência, são realizadas micro doações online para viabilizar o projeto.
Referências:
ANDERSON, Chris. A Cauda Longa: do mercado de massa para o mercado de nicho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006.
BREITENSTEIN, Mikel. Push and Pull in the attention economy. Milwaukee, 2007.
CARDOSO, Gustavo. A mídia na sociedade em rede. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.
DOCTOR, Ken. Newsonomics. Nova Iorque: St. Martin’s Press, 2010.
SERRA, Paulo. A transmissão da informação e os novos mediadores. In: ______; Fidalgo, António. Jornalismo Online. Covilhã: Universidade Beira Interior, 2003.
Escrita pelo jornalista Ivo Henrique Dantas, doutorando em Comunicação na UFPE, a coluna No Balanço da Rede aborda o cenário das mídias digitais, com foco no debate acerca dos impactos na produção jornalística voltada para o meio online e o papel do webjornalismo na construção social da realidade.
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Jornalismo Ambiental
Sociedade, natureza e mudanças climáticas
Por Robério Daniel da Silva Coutinho
Racismo Ambiental...E isso existe?
Existe sim! É mais presente no cotidiano do que muitos possam imaginar. Porém, existe um processo comunicacional de “invisibilização” pública das pessoas e populações que sofrem com este mal. O racismo ambiental tem relação direta com a problemática ambiental e também com a discriminação étnico-racial. Nesta missão, contamos com a contribuição de dois especialistas no tema: Alexandre L’omi, sacerdote juremeiro e mestrando em Ciências das Religiões; e Rodrigo Lima, professor de Geográfica e de Direitos Humanos e mestre em Gestão do Desenvolvimento Local Sustentável, os quais participam, inclusive, do Programa Jornalismo e Cidadania na Rádio Universitária FM em novembro, mês da consciência negra.
Vale salientar que qualquer debate para um futuro melhor para a vida humana e não humana no planeta demanda uma atenção pública e política especial para as populações empobrecidas, haja vista que essas são as que mais sofrem com os impactos ambientais negativos (PNUD 2011), e com as desigualdades sociais. O relatório do PNUD ilustra esta perversa relação para os pobres do mundo. Descreve que 350 milhões de pessoas – a imensa maioria empobrecida – vive em florestas ou em suas proximidades, dependendo inteiramente delas para subsistência e rendimento. Discorre ainda sobre casos em que áreas mais pobres em cidades são escolhidas para acolherem indústrias com um alto potencial poluidor.
Diante dessa problemática pouco analisada mundialmente, o movimento sindical e ambiental nos EUA na década de 1970 foi pioneiro em estudar e denunciar tal questão, demonstrando pública e politicamente a perversa combinação. A partir daí, em 1982, criam o Movimento por Justiça Ambiental, na Carolina do Norte. O movimento questionava a iniquidade ambiental, fazendo com que a justiça ambiental entrasse na pauta do movimento ambientalista. Não demorou muito tempo para surgirem novas pesquisas, constatando que o fator racial era um componente relevante para ser observado nas escolhas de áreas para empreendimentos de risco socioambiental. Surge então pela primeira vez a expressão
“Racismo Ambiental”, criada por Benjamin Chavis, para designar “a imposição desproporcional – intencional ou não – de rejeitos perigosos às comunidades de cor” (ACSELRAD ET AL, 2009).
A expressão Racismo Ambiental logo chega ao Brasil através da Rede Brasileira de Justiça Ambiental onde seus seguidores o define como as “injustiças sociais e ambientais que recaem de forma implacável sobre grupos étnicos vulnerabilizados e sobre outras comunidades, discriminadas por sua ‘raça’, origem ou cor” (ACSELRAD ET AL, 2009). Povos tradicionais são os que mais sofrem desse tipo de racismo atrelado às desigualdades sociais e degradação ambiental. São eles: indígenas, quilombolas, povos de terreiro, pescadores artesanais etc. Ou seja: todos que tem o meio ambiente como fator essencial para a manutenção do seu modo de vida e por várias vezes têm suas comunidades em risco por empreendimento privado/público.
Racismo ambiental x religiões afroindígenas
Como os mais afetados no Brasil pelo Racismo Ambiental são os povos tradicionais, um em especial sofre para manter seu modo de vida, sua religiosidade, seus cultos, haja vista que têm plena ligação com a natureza. Na verdade, a presença da natureza como elemento sagrado é fundamental nas tradições religiosas afro-brasileiras e indígenas, sendo a preservação ambiental algo essencial para a manutenção destas religiões.
Em Pernambuco, destaca-se a nação africana nagô a qual tem seu culto voltada para os orixás, que são representados e estão presentes nos vários elementos da natureza como o mar, rio, florestas, rochas etc. É importante salientar que “os Nagôs tiveram nas associações (egbé), espaços de resistência à toda dominação, e também como forma de preservar e repassar a sua cultura, o que levou a origem nas áreas urbanas dos terreiros ou roças” (THEODORO, 2008).
Existem cerca de 1.261 terreiros de culto afroindígenas na Região Metropolitana do Recife (SEPPIR/ PE, 2011). A pesquisa ainda revelou que 70% dos terreiros possuem o culto à Jurema Sagrada - é uma das religiões afro-indígenas brasileiras. “Ela tem suas
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raízes a partir das tradições indígenas, especificamente os índios que habitam o nordeste brasileiro, também é denominado como catimbó, termo que primeiro apareceu nas pesquisas desenvolvidas por Mario de Andrade e em seguida por Câmara Cascudo” (L’ODO, 2014).
A imprensa e o plantio da 1ª Jurema numa escola pública
Oculto religioso da Jurema tem na árvore da jurema (Mimosa hostilis) o seu sagrado. Nela e através dela se manifesta rituais das suas divindades e seus devotos. Da planta da Jurema faz-se uma bebida que é ingerida durante o ritual, a qual deixa os adeptos em estado de transe. O plantio de uma Jurema na Escola de Referência em Ensino Médio Professor Cândido Duarte, no Recife, considerada como a primeira plantada numa escola no País, ganhou notoriedade pública este ano através da veiculação no jornais DiárioPE e na FolhaPE. A visibilidade foi vital para chamar a atenção da sociedade para esta tradição dos povos de terreno no Estado.
O plantio foi idealizado pelo professor Rodrigo Lima e com atuação do sacerdote juremeiro Alexandre L’omi. Ocorreu tudo certo. Porém, como descreve Lima (2016), a visibilidade da ação através dos jornais, horas antes deste plantio, repercutiu fortemente, oportunizando por uma lado que pessoas visitassem a escola durante o plantio; por outro, reacendeu o fenômeno social do racismo institucional - aquele desencadeado quando estruturas e instituições, públicas e/ou privadas de um país atuam de forma diferenciada em relação a determinados grupos em função de suas características físicas ou culturais.
No seu relato, o docente diz que houve por parte da SEDUC o estranhamento na proposta desta atividade pedagógica do plantio da Jurema. Momentos antes da ação, ele foi questionado diversas vezes sobre o que iria ocorrer, apesar de já está descrito previamente em um texto passado, analisado e aprovado pela SEDUC, gestão escolar e os alunos. Entretanto, o professor diz ter sido obrigado a assinar um documento descrevendo que não fugiria do combinado, isso depois de receber novos questionamentos de membros da Gerência Regional da SEDUC que rapidamente chegaram até a escola antes da atividade.
É curioso que, mesmo sabendo que em outras instituições de ensino públicas ocorrem atividades que levam ao proselitismo religioso voltado ao cristianismo, principalmente o protestantismo, a SEDUC – PE não faça tanto alarde, como foi feito ao plantio da jurema, planta sagrada para a Religião Jurema Sagrada” (LIMA, 2016).
Todavia, o episódio só acentua a necessidade de se manter e ampliar mais atividades que buscam desfazer
as injustiças sociais e ambientais que recaem de forma implacável sobre os grupos étnicos vulnerabilizados. A atividade pedagógica do plantio da jurema na escola pode, ainda através da noticiabilidade jornalística dada, demonstrar a indispensável contribuição pública conferida pela visibilidade midiática para a percepção e problematizarão da questão. Ações pedagógicas e jornalísticas do tipo podem contribuir no combate ao racismo ambiental e ao institucional, uma vez que inclui no bojo do debate ambiental, dessa construção de uma sociedade sustentável, as diferenças culturais, religiosas e étnicas, que devem ser respeitadas, pois a alteridade é fundamental para se alcançar uma sociedade mais justa com conquistas socioambientais.
Referências:
ACSELRAD, Henri. MELLO, Cecília Campello do A. BEZERRA, Gustavo das Neves. O que é justiça ambiental? Rio de janeiro: Garamond, 2009;
LIMA, Rodrigo Correia de. Sofri racismo institucional. 2016. 1p. Localizado em: Escola de Referência em Ensino Médio Professor Cândido Duarte, Recife;
L’ODO, Alexandre L’omi. Teologia da Jurema. Existe Alguma? In: Anais do V Colóquio de História – Perspectivas Históricas: historiografia, pesquisa e patrimônio. Unicap –Recife PE, 2011. Disponível em: . Acesso em: 29 de jan. 2014;
PNUD – PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA
O DESENVOLVIMENTO. Relatório de Desenvolvimento Humano 2011: Sustentabilidade e equidade: um futuro melhor para todos. UM Plaza, New York: PNUD, 2011;
SEPPIR/PE. Orientações para práticas religiosas de Matriz Africana e Afrobrasileira em Pernambuco. Plano Estadual de Promoção da Igualdade Étnico racial. Programa Pernambuco Quilombola. Projeto Turismo Étnico – PE. Olinda – PE, 2011;
THEODORO, Helena. Religiões afro-brasileiras. In: NASCIMENTO, Elisa Larkin. (org.). Guerreiras de natureza: mulher negra, religiosidade e ambiente. São Paulo: Selo Negro, 2008.
Este espaço apresenta abordagens críticas e interdisciplinares relativas à produção da representação noticiosa da realidade social (jornalismo) sobre as mudanças climáticas e a sua influência na constituição do sentido social sobre a questão. É escrito pelo jornalista Robério Coutinho, mestre em Comunicação pela UFPE, com formação básica em Meteorologia pelo INPE/CPTEC, exassessor de imprensa do Laboratório de Meteorologia de PE, bolsista pesquisador da Rede Brasileira de Mudança Climática e autor de livros sobre o temática.
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Comunicação Pública
Informação, diálogo e participação
Por Ana Paula Lucena
Entrevista com Patrick Torquato, diretor da Rádio Frei Caneca FM
Criada há 56 anos, a Rádio Frei Caneca FM está no ar em caráter experimental, desde o dia 30 de junho de 2016. É considerada a primeira emissora pública do Brasil a entrar no ar com participação popular e diálogo, garantindo a transparência e o caráter público da rádio. O radialista e diretor da emissora, Patrick Torquato, conversou com a revista Jornalismo e Cidadania sobre o andamento e a proposta de trabalho da Rádio Frei Caneca.
JeC: O que é a Rádio Frei Caneca e qual a sua trajetória histórica?
Patrick Torquato: A Frei Caneca FM é uma rádio da cidade do Recife, concebida pelo vereador Liberato Costa Jr, em 1960, como projeto de emissora educativa municipal, que conduzimos no sentido de torná-la uma rádio pública, construindo junto com a sociedade civil os parâmetros de gestão, financiamento e programação através de consultas públicas e propostas práticas desenvolvidas com a participação popular, fortalecendo os mecanismos que possam garantir o caráter público da emissora.
JeC: Como foi construir com a sociedade a primeira emissora pública da história do Brasil a entrar no ar com participação popular e diálogo?
Patrick Torquato: Foi uma longa gestação, muito esforço de gestores em vários ciclos diferentes ao longo destes 56 anos e sobretudo esforços da socie-
dade civil, principalmente nas últimas décadas, com a finalidade de trazer este projeto à realidade. Todo o processo de participação popular foi muito intenso, a qualificação do debate com seminários e profundas discussões sobre as experiências de outros países demonstraram uma profunda maturidade nos representantes da sociedade civil, isso pode ser percebido na qualidade das Propostas da Sociedade civil para a Frei Caneca FM. Hoje temos um canal no ar, operando no 101,5 do FM, mas isso ainda é uma pequena conquista, o processo para garantir o caráter público da emissora ainda passa pela construção de um conselho em conjunto com a sociedade, a constituição de uma ouvidoria, concursos para pessoal e editais de produção de conteúdo para a sociedade poder fazer propostas. Estes elementos são fundamentais para a emissora ser de fato a primeira rádio pública brasileira.
JeC: O cidadão recifense compreende o significado e os impactos sociais de uma emissora pública de comunicação para o município? O que fazer para sair do desconhecido?
Patrick Torquato: Acredito que seria leviano dizer que não, na verdade seria uma falta de respeito com a inteligência das pessoas, mas acredito que elas de uma forma geral não conseguem associar questões sérias de nossa sociedade, como machismo, racismo, violência de gênero, com as possibilidades que a comunicação pública oferece para prevenir e solucionar. Uma sociedade plenamente democrática necessita de acesso a informações qualificadas tanto noticiosas quanto de entretenimento. Não acredito em democracia sem comunicação pública, a comunicação é um direito humano e pode garantir qualidade de vida, sanidade mental e estabilidade social. Acredito que de maneira
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geral nós comunicadores pecamos em não ampliar o debate para a sociedade. Entendo que um de nossos compromissos como emissora pública seja furar esta bolha e trazer a sociedade como um todo em suas diferentes dimensões de representatividade para se apropriar dos temas da comunicação e entender ela tanto como um direito humano como uma ferramenta para a consolidar a democracia.
JeC: Depois de 56 anos, a Rádio começou a funcionar em caráter experimental em 30 de junho deste ano. Ao longo de todo esse tempo, quais têm sido os principais desafios para colocá-la no ar?
Patrick Torquato: Toda emissora tanto rádio quando TV ao entrar no ar precisa enfrentar este período de testes até seu sinal ficar estável e poder começar a incluir os seus programas e consolidar a sua grade. Acredito que muitos interesses econômicos e políticos tenham interferido ao longo destas décadas para que a emissora não viesse a sair do papel. Outra questão ainda seria o fato de não haver uma outra experiência bem sucedida de rádio educativa, o que naturalmente pressionaria ainda mais a inauguração da Frei Caneca FM. Outras questões são também técnicas, Recife é uma cidade que tem o dial radiofônico muito congestionado, o que gera interferências no sinal, os blocos de prédios concentrados em regiões especificas geram outra barreira que atrapalha a expansão de nossa frequência modulada o que exige dos engenheiros um jogo de cintura para destravar estes obstáculos e garantir a melhor qualidade da transmissão.
JeC: Quais estratégias a rádio municipal pretende desenvolver para se tornar exemplo de prática democrática?
Patrick Torquato: Entendo que a criação do Conselho, ter uma Ouvidoria e os editais de ocupação da grade pela sociedade sejam as principais ferramentas democráticas. Mostram que independente da gestão que esteja no poder a sociedade tem garantias de acesso ao veículo para debater questões fundamentais, propor óticas diferenciadas sobre problemas sociais que naturalmente fortalecem a cultura local com a promoção da diversidade de ideias.
JeC: Como planejam a grade de programação de maneira a produzir conteúdo das áreas de Educação, Cultura, Cidadania e Direitos Humanos?
Patrick Torquato: Estamos desenhando nossa grade baseada nas 54 Propostas desenvolvidas pela sociedade civil. Estas propostas orientam muitas ações que garantem boa parte deste universo de Educação, Cultura, cidadania e Diretos Humanos. Já prevemos revistas semanais LGBTs, programas de cultura negra desde a tradicional à contemporânea, um programa realizado e direcionado para mulheres e suas pautas.
A seleção musical que atualmente está no ar já traz preocupação em fortalecer a igualdade de gênero, o combate ao machismo e a promoção de conteúdos de matriz africana. Programetes curtos e programas especiais com perfil documentário e jornalístico abordando temas de nossa história, geografia, filosofia, poetas e das mais diversas expressões artísticas também estão sendo planejados.
JeC: Qual a previsão para a transmissão em caráter oficial e como o cidadão/cidadã pode participar da Rádio Frei Caneca FM?
Patrick Torquato: Acredito que ainda antes do fim deste ano conseguiremos colocar no ar os primeiros programas e deixaremos a fase experimental, e no mesmo momento que isso acontecer anunciaremos o nosso edital de ocupação da grade para que a sociedade possa propor programas, programetes e outros conteúdos.
*Patrick Torquato, radialista, é um dos principais Djs e produtor musical do Brasil. Baiano de nascimento, ele passou boa parte da vida girando pelo norte e nordeste brasileiro onde viu, ouviu e absorveu influências da música popular produzida e consumida nestes lugares. Atualmente é diretor da Frei Caneca FM, já esteve à frente da Aperipê FM (2007), de Sergipe, e da Cultura FM (2009), do Pará.
Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 13 Ana Paula Lucena é professora da Faculdade Senac Pernambuco, membro do FOPECOM, e doutoranda do PPGCOM|UFPE. A coluna é um espaço que aborda questões relativas a como os órgãos públicos vêm se comunicando com a sociedade.
Mídia Fora do Armário
Jornalismo e construções identitárias
Por Rui Caeiro
Júlia Mendes Pereira - e terá sido um dos nomes em torno do qual muitas das conversas sobre as últimas eleições legislativas para a Assembleia da República em Portugal gravitaram. O interesse midiático que gerou ficou a dever-se, mais do que às propostas políticas que representava, à sua identidade: mulher transexual. Por esse prisma; foram trabalhados muitos dos materiais jornalísticos que a apresentavam – “Júlia, a primeira transexual dirigente de um partido português” ou “Júlia Pereira pode vir a ser a primeira deputada transexual na Assembleia” são alguns dos títulos possíveis de encontrar. Não sendo fácil, talvez sequer possível, compreender propostas políticas apartadas da identidade dos sujeitos que as postulam, é importante refletir sobre o foco que é dado aos diferentes sujeitos e ações, ora quase-invisibilizando suas identidades, ora quase-resumindo suas vidas a suas identidades. Sendo o direito à auto-determinação de gênero uma luta que Júlia abraçou há bastante tempo, sua vida não se resume a tal – essa é uma das falas que a mesma deixa patente na entrevista que concedeu à Jornalismo e Cidadania, onde, para além de falar de ativismos trans no país luso, aborda também a visibilidade midiática que conquistou.
JeC: Que leitura faz do ativismo LGB, e principalmente T, em Portugal, tendo em conta a sua concentração nos grandes centros urbanos?
JMP: Em Portugal, ainda é muito difícil falar em ativismo trans, de forma geral. Fora dos grandes centros urbanos de Lisboa e Porto, é impossível. Ainda estamos numa fase muito embrionária. As organizações (sejam associações, grupos, programas) dedicadas às questões trans, que sejam lideradas por pessoas trans são ainda muito escassas. É uma ilusão querer desenvolver um movimento de pessoas sem que esse movimento parta delas e seja liderada por elas. Por melhores que as intenções possam ser, valem zero. Neste caso falamos de movimento trans, mas aplica-se a qualquer movimento. Agora, não podemos cair no erro de achar que não existe um movimento em Portugal, só porque as pessoas trans ativistas e visíveis são poucas. O movimento existe e já tem vários anos de história. Desde as travestis que deslumbravam o Bairro Alto em Lisboa nos anos 80, às primeiras pessoas que enfrentaram os tribunais para mudar o nome e marcador de gênero nos documentos. Desde as primeiras tentativas de organização nos anos 90 às primeiras conquistas já no século XXI. Temos história, e acredito que estamos numa fase em que é neces-
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Fonte: Márcia Belloti
sário afirmá-la – passando, sobretudo, por contar as histórias das e dos ativistas trans, sem sobrevalorizar o papel de supostos aliados. Mas pegando na questão regional: não existe de facto qualquer tipo de organização liderada por pessoas trans fora de Lisboa ou Porto. Organicamente lideradas por pessoas que se autorepresentam, apenas conheço a Ação Pela Identidade - API, que integro e está sedeada em Lisboa (embora ja esteja a tentar ter representação no Porto) e o Grupo Trans Portugal, que atua a partir de Almada. Depois existem organizações que incluem a questão trans nas suas reinvindicações e ativismo - mas nenhuma presta apoio a esta população de forma integrada e competente. Nenhuma.
JeC: Se, como escreve, “é uma ilusão querer desenvolver um movimento de pessoas sem que esse movimento parta delas e seja liderada por elas”, como podemos pensar esse movimento em regiões carenciadas dessas discussões?
JMP: O único lugar onde as pessoas trans em Portugal encontram alguma forma de apoio, obviamente cheia de limitações, é nos serviços de saúde. E aqui há, de facto, uma grande centralização, visto que só existem serviços receptivos a esta população em Coimbra, Porto e Lisboa. Serviços cheios de lacunas, médicas, mas também éticas. É necessário investir na proteção social. A maioria das pessoas trans tem de migrar para estes centros urbanos para poderem estar perto destes serviços de saúde, assim como para conseguir acesso ao trabalho, à educação e até mesmo à habitação. O essencial é que existam respostas que permitam às pessoas trans viverem confortavelmente de acordo com a sua identidade de gênero. Só a partir daí é que podemos começar a criar discussões que vão de encontro à realidade, e não apenas a teorias.
JeC: Falando sobre a sua presença nos media portugueses por ocasião das eleições legislativas: a maioria dos materiais produzidos colocavam em destaque o ineditismo de uma mulher transexual estar nessas disputas. Como analisa a cobertura midiática sobre você (e do fato de ser transexual)?
JMP: A minha experiência enquanto pessoa trans nunca foi dissociável do meu trabalho político. Ser visível enquanto mulher trans e participar na política, fazer ativismo, faz parte das escolhas que fiz para a minha vida. Por vezes, irrita-me que as pessoas pensem que só estou capacitada para falar sobre questões trans - e atuem como se eu não fosse valorável para mais nada. Mas a verdade é que, enquanto ativista trans, desenvolvi aptidões completamente transversais - porque não basta pensar o que é ser trans, o que é identidade de género, etc. É necessário compreender todo o sistema em que vivemos, e como ele está vedado ou altamente limitado a um segmento da população.
Ser ativista pelos direitos das pessoas trans significa conhecer o sistema de saúde, segurança social, apoios sociais, educação, trabalho, etc. Só conhecendo os direitos sociais no seu todo é possível reclamá-los para diferentes segmentos populacionais. É imprescindível que um movimento consiga a atenção dos mass media para existir. Isto continua a ser verdade, mesmo com o crescimento dos novos media - e é especialmente verdade em Portugal, onde a política e o debate sobre a “coisa pública” continua de fora das redes sociais, etc. Conquistar a audiência que conquistei com a minha candidatura foi uma vitória para o movimento trans. Espero que o meu esforço tenha servido, pelo menos, para mostrar que as ativistas trans em Portugal são politizadas - e que sabemos colocar o debate sobre os nossos direitos dentro do quadro político mais geral do país. O período eleitoral pode, e deve ser, de facto, o momento para debater os direitos e as condições de vida das populações mais marginalizadas, das chamadas “minorias”. E é disso que me orgulho mais. Os media portugueses começaram a dar-me destaque de uma forma completamente sensacionalista. O primeiro jornalista que me entrevistou, para um telejornal no horário nobre, começou por perguntar sobre as minhas cirurgias, o meu corpo, a minha intimidade - e desmentiu-se a ele próprio, depois de chamado à atenção. Gosto de partilhar as minhas experiências, as minhas historias. Mas estava ali para falar de política. E deixar claro que direitos humanos, direitos sociais, são política. São grande política. Não questões menores. E depois das minhas primeiras entrevistas começaram de facto a aparecer artigos e matérias que procuravam compreender se as listas dos diferentes partidos em eleições eram representativas da diversidade da população portuguesa. Se haviam pessoas negras, imigrantes, dos diferentes grupos étnicos. Foi dado o devido destaque ao Partido Socialista ter como cabeça-de-lista no Porto, um cientista assumidamente gay, Alexandre Quintanilha, ou ter uma mulher cega na sua lista em Lisboa, Ana Sofia Antunes, hoje secretária de estado para a inclusão de pessoas com deficiência. Isto é importante. Não me posso queixar por as pessoas notarem que eu sou trans, quando até foi escolha minha ser aberta sobre isso - e é fundamental que outras pessoas trans vejam e compreendam que é possível. Uma pessoa trans pode muito bem ser deputada, ou até mesmo Presidente da República.
Assinada pelo jornalista Rui Caeiro, mestre em Comunicação pela UFPE, a coluna ambiciona instigar reflexões que se debrucem sobre as relações que se estabelecem entre produção midiática/jornalística e a construção e vivência de identidades consideradas abjetas em nossa sociedade. O foco será em sexualidade e gênero.
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Opinião
A mídia e a defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes
Por Ana Maria da Conceição Veloso*, Matheus Fábio da Silva** e Selassié de Andrade Silva Júnior***
ECA
Estatuto da Criança e do Adolescente
AComissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados decidiu aprovar, em uma sessão realizada em outubro, o Projeto de Lei (PL) 7.553/2014, que tem como objetivo alterar o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e possibilitar a divulgação de imagens de criança e adolescente a quem seja atribuído um ato infracional. De acordo com a defesa do relator da proposta, o deputado Claudio Cajado (DEM/BAHIA), a exposição das imagens (inclusive de suspeitos) poderá facilitar a “detenção e punição do menor infrator”. O parlamentar também acredita que a medida vai garantir maior segurança à comunidade em geral.
Trata-se de mais um ataque aos direitos de meninos e meninas brasileiros. O que a comissão também parece ignorar é que a lei preconiza prioridade absoluta para todas as crianças e adolescentes, e que todos os cidadãos devem ter direito à presunção da sua inocência e à inviolabilidade de sua imagem. O ECA prevê, ainda, que a superexposição da população infanto-juvenil é uma infração administrativa e que os responsáveis por tal violação devem ser culpabilizados.
Os meios de comunicação, portanto, não podem exibir total ou parcialmente a imagem (fotografia) de crianças e jovens em conflito com a Lei, ou mesmo, suspeitos de ter cometido algum ato infracional. Dessa maneira, a decisão da comissão, se for aprovada, em plenário da Câmara Federal, poderá provocar mais um atentado ao ECA, uma vez que a identificação dessa população, sobretudo pela mídia de cunho policial, se constitui em grave infração aos direitos humanos.
Uma pesquisa realizada pelo projeto Violações de Direitos na Mídia Brasileira, da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI), Procuradoria Federal dos Direitos dos Cidadãos (PFDC), o Intervozes e a Artigo 19, revela que, durante 30 dias de análise, narrativas de rádio e TV promoveram 4.500 violações de direitos, cometeram 15.761 infrações a leis brasileiras e multilaterais e desrespeitaram 1.962 vezes normas autorregulatórias, como o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros.
O conteúdo de tais produções possibilita diversas formas de identificação e exposição indevida de pessoas, além da espetacularização midiática dos fatos. De acordo com a ANDI, a pesquisa, que é fruto do Programa de Monitoramento de violações de direitos na mídia
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brasileira, “identificou um volume significativo de violações e infrações, evidenciando o caráter não circunstancial das práticas anti-humanistas e antidemocráticas desse modelo de comunicação em franca expansão no Brasil”.
De acordo com os dados do estudo, realizado nas cidades de Belém (PA), Belo Horizonte (MG), Brasília (DF), Campo Grande (MS), Curitiba (PR), Fortaleza (CE), Recife (PE), Rio de Janeiro (RJ), Salvador (BA) e São Paulo (SP): “os programas produzidos em São Paulo foram os que registraram o maior número de narrativas com violações (26,6%), seguidos pelos do Distrito Federal, com 17%, e pelos do Recife, com 16,2%. Entre todos os programas, o que mais se destaca é o ‘Cidade Alerta’, de São Paulo, com o maior número de registros: 18% de todas as narrativas com violações de direitos”.
Segundo Davi Mamblona Romão, em seu Jornalismo cultural: indústria cultural e violência (2013), os programas policiais possuem três características principais: o sensacionalismo, a construção da verdade e a visão de mundo de jornalismo policial. O sensacionalismo, o mais facilmente reconhecido, é o exagero e a ênfase para alguns aspectos da informação transmitida, ao utilizar de diferentes expressões orais e gestuais para chamar a atenção. “O sensacionalismo é um dos elementos mais fortes do Jornalismo Policial. Por meio dele os programas conseguem captar a atenção de seus telespectadores, mantendo-os emocionalmente envolvidos e, ao mesmo tempo, acríticos” (ROMÃO, 2013, p.42).
A construção da credibilidade é o reconhecimento do programa como representante dos interesses populares. Essa questão ocorre devido à tentativa da produção de identificar o produto como jornalístico. A confiabilidade no repasse da informação “garante”, ao público, a seriedade do conteúdo. Dessa maneira, a visão de mundo propagada tende a reforçar a visão dos policiais, ao tentar “vender” que a imagem da violência está fora de controle e de que “a nossa realidade social é extremamente insegura, criando uma atmosfera de medo e ameaça constante” (ROMÃO, 2013, p.45). Deste modo, a exibição de uma violência “sem limites” e do sensacionalismo, tentam conquistar a aderência junto ao público.
Venício Lima na obra “Liberdade de Expressão X Liberdade de Imprensa” coloca as liberdades em situações dialógicas. Desse modo, os grupos de mídia usam o selo da “liberdade de expressão”, um direito fundamental de comunicação - conceitual, histórico e ético - de cada indivíduo para justificar sua “liberdade de imprensa”. Apesar das empresas serem livres para a exposição de seu conteúdo é preciso que atentem para os princípios éticos.
Percebemos, portanto, o quanto a sociedade brasileira ainda vai precisar se mobilizar para evitar amargar mais um retrocesso na defesa dos direitos humanos no país. Projetos como o que foi aprovado pela CCTCI da Câmara dos Deputados devem ser veementemente con-
testados pela sociedade brasileira. Eles podem permitir que emissoras de rádio e televisão continuem promovendo o linchamento público de crianças e adolescentes suspeitos de estar em conflito com a lei.
A mídia deve atuar com parceira da sociedade e do Estado em ações promotoras do debate público acerca da importância da proteção dos meninos e meninas e de ações educativas voltadas à promoção do seu bem-estar, como também preconiza a campanha Mídia Sem Violações, uma ação que visa denunciar programas policiais que atentam contra os direitos humanos. Mais informações pelo http://www.midiasemviolacoes.com. br/. O problema ganha maior destaque quando tratamos de crianças e adolescentes, que ainda estão em fase de educação e socialização, e precisam tanto do apoio do Estado quanto das instituições sociais de base – como Escola e Família – para que sejam “educadas” e possam viver em sociedade.
Referências:
LIMA, Venício A. Liberdade de Expressão x Liberdade da Imprensa – Direito à Comunicação e Democracia; 2ª. edição, Publisher Brasil, 2012a.
ROMÃO, Davi Mamblona Marques. Jornalismo cultural: indústria cultural e violência. São Paulo, 2013. Mestrado. Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).
SILVA JÚNIOR, Selassié de A. O Bronca Pesada e o desrespeito aos direitos fundamentais de crianças e adolescentes. 2015. 124f. Trabalho de Conclusão de Curso. Centro de Artes e Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2015.
VARJÃO, Suzana. Violações de direitos na mídia brasileira: ferramenta prática para identificar violações de direitos no campo da comunicação de massa. Brasília, DF: ANDI, 2015a. 80 p.; (Guia de monitoramento de violações de direitos; v.3)
*Doutora em comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), professora do Departamento de Comunicação da UFPE e integrante do Observatório de Mídia/UFPE: Gênero, Democracia e Direitos Humanos. E-mail: anavelosoufpe@gmail.com.
**Graduando de Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
***Recém-graduado em Comunicação –Jornalismo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e pesquisador do Observatório de Mídias (ObMídia). E-mail: selassiejunior@gmail.com.
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Opinião
Sobre o instituto de estudos avancados da ufpe: O Instituto Futuro
Por Maria de Jesus de Britto Leite
Em 2014, a UFPE criou seu Instituto de Estudos Avançados e o denominou de Instituto Futuro. Esses tipos de institutos ainda são pouco usuais nas universidade brasileiras e mesmo fora do País. Em tempos de especialização, criar um espaço para o pensamento inter, multi e transdisciplinar não é comum. No País, mesmo o CNPq e a CAPES aparentemente apoiando essa compreensão de interlocução entre a ciência e as humanidades, fato é que as pesquisas que bordejam várias áreas de conhecimento são pouco reconhecidas e o seu espaço é reduzido no cenário nacional.
Entretanto, essa é uma visão que estreita o conhecimento. Como buscar o conhecer se nos encasularmos em disciplinas fechadas, que mirem somente o interior de seus fundamentos? Como nos distanciarmos da riqueza que os estudos de fronteira possibilitam? E ainda mais se nos afastarmos do conhecimento que vem da experiência no mundo, esta que é multidisciplinar por natureza?
Em meados do Século XX; uma ciência nova foi criada - a Neurociência - fruto de um grupo de cientistas que entenderam que o conhecimento do funcionamento humano não avançaria se as ciências continuassem fechadas em suas caixas, a neurologia, a biologia, a psicologia, etc. Depois desse grande ato de coragem, que é entendermos as fragilidades dos nossos conhecimentos e a percepção de que não há a possibilidade de existir um meta-conhecimento, um conhecimento único que absorva todos, mas que, ao contrário, os conhecimentos são complementares; quanto, dos anos 70 para cá, se descobriu a respeito do cérebro humano? Quanto se pôde entender melhor a alma humana pela via neurofisiológica? Quantas hipóteses arquivadas estão podendo ser confrontadas? De lá para cá, en -
contros importantíssimos que geraram diálogos reveladores entre filósofos e cientistas puderam ser publicados, conhecidos por todos. De lá para cá, surgiu uma outra nova ciência, a neuroestética que vem buscando desvendar as tramas do cérebro artista. Quanto cresceu a pesquisa científica!
Justamente, é essa a busca por um percurso transversal nos mais diversos conhecimentos, desde o erudito ao popular; é este o princípio que norteia o Instituto Futuro. Ter um instituto inteiramente dedicado a este propósito parece-nos fundamental para o crescimento da importância, mas principalmente, da responsabilidade que uma universidade precisa ter para com a sociedade e com o ambiente no qual vivemos todos, humanos e demais seres vivos. E a UFPE, certamente, deu um passo largo adiante, ao abrir esta porta ao entendimento do mundo.
No primeiro biênio 2014-2015, o Instituto se dedicou aos estudos de conhecimentos que interagem com o conceito “Cidade” e agora, neste biênio 2016-2017, a escolha foi por um percurso com foco na Ética. A Ética perpassando os diversos conhecimentos humanos. Denominamos este percurso de “O Futuro da Técnica e do Planeta”, ancorados em dois pensadores - um italiano e um brasileiro - cujas características coincidentes é interligar via Ética, via respeito humano, variados conhecimentos, e tecerem considerações sobre o mundo, sobre a vida. Uma condição para refletirmos sobre as possibilidades de vida justa, frente às dificuldades que estamos vivenciado hoje e frente ao risco de estarmos perdendo a oportunidade de sermos partícipes da construção de um futuro digno não só para os seres humanos, mas para todos os seres vivos e para o ambiente no qual vivemos.
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Porque estamos presenciando um mundo que se distancia dos compromissos com a ética foi que escolhemos o tema do biênio, baseando-nos no pensador italiano Umberto Galimberti e no pensador brasileiro Laymert Garcia. Os dois foram escolhidos para serem espécies de “curadores” das atividades do Biênio 2016-2017 porque eles apontam para uma incapacidade humana atual de lidarmos com a “Técnica”, entendida não como simples tecnologia, mas como “vontade de poder”, como artifícios criados para facilitar a vida. Galimberti nos apresenta duas técnicas: uma Técnica funcional, que teria sido uma necessidade humana, um caminho para a superação das perdas de instinto acontecidas no Curso da Evolução, e outra técnica que se apropria daquela funcional para garantir “poder”. Os nossos curadores, portanto, “cuidam” em nos mostrar que vimos transformando a técnica e dotando-a de um tipo de poder tal que nos faz hoje termos nos tornado espécies de “funcionários” dessa técnica, ou da Tecnosfera, como gosta de denominar Laymer Garcia.
Esse percurso ético estamos fazendo-o nos mais diversos campos de conhecimento e buscando sempre uma compreensão de fronteira, ou seja, compreensões inter, multi e transdisciplinares.
Os encontros públicos promovidos pelo Instituto Futuro foram denominados de “Prospecta |Recife”, com a idéia (como está registrado no documento de fundação do Instituto), de fazer prospecções cientificas, humanísticas e culturais, desde o Recife. Mas não apenas porque estamos sediados no Campus Recife da UFPE, mas porque precisamos conhecer bem e mais o nosso lugar e a partir desse “mergulho”, cotejando-o sempre com o Mundo, conhecer as dinâmicas que estão sendo praticadas aqui e lá e refletir sobre outras possibilidades para nós e para o Mundo.
Win Wenders, em artigo para a série fronteiras do pensamento fala sobre a importância de experienciarmos o “sentido de lugar”, pois esse “de um lugar” permite que cresçamos e adquiramos um conhecimento que não é só local, mas que também é global (WENDERS, 2013, p. 61-63). Esperamos partilhar esse conhecer ao mesmo tempo muito bem do Recife, onde estamos ancorados, e muito bem o que se passa no mundo.
Desde maio, vimos montando encontros que nos permitam olhares diversos sobre questões da atualidade, que nos permita refletir sobre os nossos comportamentos diante da vida, sobre a Ética, enfim. Já “prospectamos”:
1 - “O Futuro do Entendimento de Fronteira e da relação entre os povos”, com foco nos aspectos sócias e culturais de três regiões que estão sendo aprofundadas na UFPE pelos institutos Ásia, África
e América Latina. Nesse primeiro Prospecta Recife tivemos o apoio da conferência (em vídeo) do Escritor Mia Couto, cujo título é “Repensar o pensamento”. Nesta conferência, o escritor moçambicano nos convidou a repensar o entendimento de fronteira a partir de reflexões sobre valor, humanidade, cultura, ambiente, diferenças e semelhanças entre os animais, entre outros aspectos.
2 - “O Futuro da Educação”, com ênfase no universo brasileiro”. Nesse encontro, tivemos como conferencista-luz, o biólogo e pensador chileno Humberto Maturama com a conferência (em vídeo) intitulada “Educação, Ética e Democracia”. Ele nos levou a refletirmos sobre essa tripla relação, fazendo um percurso em torno da pergunta “o que é o ser humano?”
3 - “O Futuro da Comunicação”, detendo-nos na comunicação que vem sendo praticada pela Mídia. Neste Encontro, o pensador britânico Nick Couldry foi o nosso terceiro conferencista-luz, com a conferência intitulada “Voiceblind”. Ele se refere aos tempos atuais como um tempo de crise da voz, porque ao mesmo tempo em que o vivemos o tempo da interatividade facilitada pela internet, os meios de comunicação oficiais a cerceia, ou só permite que se diga o que lhes interessa.
4 - No mês de setembro prospectamos “A cidade no Futuro, ou a potência do Espaço Público”, refletindo sobre meios de entrelaçar cidadania e espaço urbano, de buscar uma concepção de cidade, de espaço público, de cidadania, que mantenha as comunidades alertas para a importância de seus próprios conhecimentos vivenciais e para seus direitos coletivos.
Ainda “prospectaremos” em 2016, “o Futuro do Ambiente” e “o Futuro da Ciência”, e começaremos 2017 prospectando “o Futuro da Arte”.
Esta iniciativa da UFPE, a criação do Instituto Futuro, descortina paisagens próximas e paisagens distantes do conhecimento e queremos partilhá-la com todos. O Instituto Futuro é um espaço da sociedade e não só da comunidade acadêmica. Queremos muito receber as interrogações, os questionamentos da sociedade a qual servimos, como fontes para perseguirmos um futuro digno para todos.
Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 19 Maria de Jesus de Britto Leite é arquiteta e professora do Curso de Graduação em Arquitetura e Urbanismo e do programa de pós-graduação em Desenvolvimento Urbano da UFPE e coordenadora do Instituto Futuro.
Mude o Canal
Sensacionalismo e exploração de acontecimentos
Por Ticianne Perdigão
O Brasil e os programas de auditório
Os programas de auditório no Brasil são quase uma instituição pública. Seus apresentadores, à exemplo de Silvio Santos, Fausto Silva e Ratinho, são considerados ícones e estão há décadas apresentando semanalmente as atrações. Diante deste cenário, você já se perguntou porque no Brasil se transmite tantos programas de auditório? Em uma tarde de domingo, caso não tenha televisão a cabo, é quase impossível fugir deles.
A resposta pode ser tateada pela tradição cultural do rádio. Diferente de outras programações televisivas do mundo, como a europeia, que teve forte influência do teatro, ou a dos Estados Unidos, onde a inspiração estava no cinema, a TV brasileira teve a sua principal influência no rádio. Para Leal, a televisão brasileira é herdeira do rádio em todos os sentidos, pois “dele vieram a mão-de-obra pioneira, as fórmulas dos programas e o modelo institucional adotado” (LEAL, 2000, p.58). Os programas de auditório e as novelas são as referências legítimas dessa influência e se consolidaram de tal forma que até hoje dominam, juntamente com o telejornalismo, a grade de programação das emissoras do país. Segundo Aronchi de Souza (2004, p. 93), “os primeiros programas de televisão brasileira reconhecidos pela popularidade e pelo sucesso foram de auditório. Transportados do rádio para a TV, alguns programas tiveram apenas o acréscimo da imagem”.
Em análise, Muniz Sodré e Raquel Paiva (2002, p.111) indicam que a televisão traduziu para seu espaço o ethos festivo da praça pública já presente nos progra-
mas de auditório radiofônicos. Para os autores, a televisão aberta e massiva
Caracteriza-se desde o início por uma atmosfera sensorial de “praça pública”, no sentido trabalhado por Bakhtin, isto é, a praça como feira livre de expressões diversificadas da cultura popular (melodramas, festas do largo, danças, circo, etc) ou como lugar de manifestação do espírito dos bairros da cidade, com suas pequenas alegrias e violências, grosseiros e ditos sarcásticos, onde a exibição de altos ícones da cultura nacional confronta-se com o que diz respeito ao vulgar ou “baixo”; os costumes e gostos, as vezes exasperados do populacho. (PAIVA; SODRÉ, 2002, p.111).
Os autores analisam tal questão incluindo nesta “transmissão da praça pública” o que denominam de ótica do “encadeamento da cultura popular com a indústria cultural” (PAIVA; SODRÉ, 2002, p.111). Para eles, a televisão se apropria da espontaneidade popular transformando-a em produto industrial a fim de captar mais audiência.
As expressões simbólicas das classes economicamente subalternas, ao mesmo tempo em que vão perdendo o seu enraizamento dinâmico nos lugares diversificados da cidade, são retrabalhadas pelos diferentes dispositivos de comunicação massiva, em especial a televisão. E o programa de auditório é um bom modelo disso a que se tem chamado de popularesco. (PAIVA; SODRÉ ,2002, p.111)
Até então essas “praças televisionadas” parecem uma boa opção de entretenimento dominical para a população. A questão sai da linha quando em alguns deles, em busca de audiência, o apresentador explora os acontecimentos ou cria situações que constrangem os
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participantes ferindo, muitas vezes, a dignidade humana. O exemplo clássico de situações vexatórias utilizadas como pautas é o Programa do Ratinho. Sua última polêmica, realizada em abril deste ano, foi chutar sua assistente de palco quando a mesma estava “escondida” aos olhos de todos em uma caixa. O apresentador continuou constrangendo e assediando a assistente que acabou abandonando o programa. Diante da repercussão, produção e a assistente divulgaram que tudo não passou de uma brincadeira.
Dono de um carisma que o aproxima das classes populares, Ratinho começou como Radialista e em 1997 estreou seu programa na emissora Record denominado “Ratinho livre”. Diante da rápida ascensão, o apresentador ficou conhecido como irreverente e com grande capacidade de improviso, além de quebrar cenários. A academia não demorou a estudar o seu perfil. Em um dos trabalhos relacionados ao apresentador, o Procurador Sérgio Suiama coloca como título do artigo o nome do programa seguido de interrogação “Ratinho Livre?” O tema faz referência à violação de direitos veiculada livremente em seu programa. Como conclusão, Suiama (1998) defende que em situações excepcionais o Judiciário pode “impedir a circulação de determinada ideia ou notícia, com fundamento nos princípios constitucionais da proporcionalidade e da proteção à dignidade humana” (SUIAMA, 1998, p. 31).
Veja que não se trata aqui de restringir a liberdade de expressão e de imprensa em nome da “segurança nacional” ou dos “bons costumes”, prática costumeira dos regimes autoritários. O problema que nos deparamos é o de como impedir a afronta cotidiana, pelos meios de comunicação (sobretudo a TV), de direitos essenciais para a realização da dignidade humana, como são o direito à privacidade, a proteção contra a discriminação e o princípio da presunção de inocência. (SUIAMA, 1998, p. 1)
Entre a praça pública, o circo e a feira, Muniz Sodré (1992) resgata a estética do grotesco como uma das características dos programas televisivos. Desprezado pelas elites e pertencente à cultura popular, o grotesco é mostrado como a soma de vários elementos populares pitorescos e bizarros. Seria uma estética que choca pela diferença dos padrões de beleza clássicos constituídos. “O grotesco é o belo de cabeça para baixo - a catástrofe do gosto clássico” (SODRÉ, 1992, p.96). Para os autores, os programas de televisão se utilizam da ótica do grotesco como estratégia agressiva para conseguir audiência e testar seus limites.
O grotesco chocante permite encenar o povo e, ao mesmo tempo mantê-lo à distância. Dão-se voz a imagem a energúmenos, ignorantes, ridículos, patéticos, violentados, disformes, aberrantes, para mostrar a crua realidade popular, sem que o choque daí advindo chegue às causas sociais, mas permaneça na superfície irrisória dos efeitos. (SODRÉ, 1992, p.133)
De fato, localiza-se o grotesco principalmente
nas emissoras e programas voltados para ao público C e D. O dado preocupa ainda mais se analisado sob uma perspectiva de futuro. Sabe-se que com a entrada das “teles” no mercado de TV de acesso condicionado, a concorrência diminui o preço dos pacotes aumentando consideravelmente o público consumidor principalmente da classe B. As televisões abertas, chamadas generalistas, buscam no público de classe C e D a audiência perdida se utilizando da estética do grotesco como estratégia. Esta alteração do mercado está apenas começando. Ou seja, a perspectiva do grotesco e da baixaria na televisão aberta ainda tem um longo caminho pela frente.
Paiva e Sodré (2002) dizem que a exploração da miséria na televisão brasileira vem desde a década de 60 e exemplificam: “Silvio Santos, em rainha por um dia, promovia o desfile de miseráveis, que contavam suas penas. Cabia ao auditório escolher a história mais triste. A mais desgraçada, a mais infeliz, era eleita ‘rainha por um dia” (PAIVA; SODRÉ, 2002, p. 13).
Emerge daí a constatação de que a exibição de grupos marginalizados na televisão por si não garante a igual liberdade de expressão nestes espaços. Poucas são as vozes que ganham espaço na esfera pública. Em resumo, a pluralidade de vozes no ambiente das comunicações passa necessariamente pela pluralidade na propriedade destes meios (CANELA, 2008, p. 156).
Referências:
ARONCHI DE SOUZA, José Carlos. Gêneros e formatos na televisão brasileira. São Paulo: Summus, 2004.
CANELA, Guilherme. Regulação das Comunicações: porquês, particularidades e caminhos. PIERANTI, Octavio Penna et al.(orgs.). Democracia e regulação dos meios de comunicação de massa. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008.
LEAL. Laurindo. A TV Pública. Bucci, Eugêncio. A TV aos 50. São Paulo: Fundação Perseu Abramo. 2000.
PAIVA, Raquel. SODRÉ, Muniz. O império do Grotesco. Rio de Janeiro: Ed. Mauad, 2002.
SODRÉ, Muniz. A comunicação do Grotesco. 1972, Vozes.
SUIAMA, Sérgio Gardenghi. Ratinho livre? Censura, liberdade de expressão e colisão de direitos fundamentais na Constituição de 88. Anais do XXIV Congresso Nacional de Procuradores do Estado, São Paulo, Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, 1998.
Ticianne Perdigão é formada em Direito e em Jornalismo. Tem mestrado em Direito mas agora curso Doutorado em Comunicação Social. Essa ambiguidade acadêmica fez com que temas como Liberdade de Expressão e Regulação da Mídia fossem seu foco de estudo.
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Opinião
1964, 2016: golpe de Estado ou impeachment à brasileira?
Por Túlio Velho Barreto
Diante dos últimos acontecimentos políticos e das efemérides em torno do centenário do ex-governador pernambucano Miguel Arraes, uma reflexão acerca do episódio de seu afastamento involuntário do cargo – resultado da ação dos que comandaram o Golpe Civil-Militar de 1964 – nos ensina como as narrativas históricas podem cambiar com o passar do tempo. Em especial quando novos fatos emergem e possibilitam a elaboração de interpretações diferentes daquelas até então hegemônicas e/ou recorrentes. Isso pode acontecer, por exemplo, em função de conjunturas políticas mais favoráveis ao (r)estabelecimento – digamos –da verdade. Ou seja: nem sempre os fatos ocorreram exatamente da forma como nos querem fazer crer. Então, se assim é, façamos um breve esforço e voltemos 52 anos no tempo, quando da interrupção do primeiro governo de Miguel Arraes e do afastamento do presidente João Goulart.
Na madrugada do dia 1º de abril de 1964, tropas militares comandadas pelo general Olímpio Mourão deixaram Minas Gerais em direção ao então estado da Guanabara, onde se encontrava o presidente João Goulart. “Jango”, como era popularmente chamado, chegara ao cargo após a renúncia do presidente eleito Jânio Quadros, ainda em 1961, e desde sempre teve o seu governo reformista ameaçado. Portanto, o objetivo de Mourão e companhia era tido como altamente patriótico: afastar o presidente definitivamente do cargo, prendê-lo, cassar os seus diretitos políticos e bani-lo da vida pública. E, assim, pôr fim à corrupção, restaurar a ordem social e garantir a democracia, afastando a iminente ameaça de se estabelecer, entre nós, uma República Soviética ou Sindicalista. Algo que nos parece bem contemporâneo.
Pelo menos essa era a narrativa então defendida pelas entidades patronais e setores mobilizados das classes médias, das igrejas, do Poder Judiciário e das Forças Armadas, e a grande maioria dos meios de comunicação do País. Essa versão resistiu até o início dos anos 1980 também nos livros das disciplinas de Educação Moral e Cívica, Organização Social e Política do Brasil e Estudos de Problemas Brasileiros, ministradas, respectivamente, no 1º Grau (Educação Fundamental), 2º Grau (Ensino Médio) e 3º Grau (Ensino Universitário). E, até mais tarde, no discurso de políticos que se beneficiaram com o Golpe Civil-Militar, aliás, a Revolução de 1964, então filiados à
governista Aliança Nacional Renovadora (Arena) e, após a abertura política, aos partidos que a sucederam, como PDS, PFL, DEM etc., mas também a outras legendas.
No caso de João Goulart, coube ao presidente do Senado, o paulista Auro de Moura Andrade, declarar vago o cargo de presidente da República, sob os apupos e gritos de “golpista” e “canalha” da oposição, e dar a grande contribuição civil ao Golpe, aliás, à Revolução em curso. Em relação ao governador de Pernambuco Miguel Arraes, a colaboração decisiva dos civis viria da maioria dos deputados estaduais que, na calada da noite de 1º de abril, em sessão fechada, não hesitaram em aprovar o seu... impeachment. Sim, impeachment. Bem, você pode estar se perguntando: “Como assim, se há anos nos reportamos sempre à deposição de Miguel Arraes?” Ora, basta que revisitemos a cobertura jornalística de então para verificar o papel que a grande imprensa costuma adotar, majoritariamente, quando o Estado Democrático de Direito está ameaçado, e como agem os políticos adeptos da “nova ordem”.
No dia 2 de abril, por exemplo, o jornal Estado de S. Paulo já estampava em sua capa: “Aprovado o ‘impeachment’ de Arraes”. A notícia vinha ao lado de sua principal manchete: “Vitorioso o movimento democrático”, que saudava os afastamentos do presidente João Goulart e do governador Miguel Arraes e a tão aguardada assunção dos militares ao poder, apoiado, é claro, por vários líderes e ativistas políticos, empresariais, religiosos e de outros segmentos. O mesmo ocorria em relação ao O Globo, que trazia em sua primeira página duas manchetes na mesma direção: “Fugiu Goulart e a Democracia está sendo Restabelecida” e “A Assembleia de Pernambuco votou o ‘impeachment’ de Arraes”.
Já o Diario de Pernambuco informava que, após “intensos debates”, a Assembleia Legislativa aprovara o “Projeto da Comissão Executiva” que determinava o impeachment de Arraes “por 45 votos contra 16 e um voto em branco”. E seguia informando, sob a manchete “Paulo Guerra toma posse”, que “o governador Paulo Guerra, depois de reconhecido o impedimento do sr. Miguel Arraes, chegou ao recinto da Assembleia Legislativa exatamente às 23,30”. Continua, então, esclarecendo que, concluída a votação, foi formada uma comissão de deputados “para comunicar ao sr. Paulo Guerra a decisão do impedimento do
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ex-governador” e conduzi-lo à mesa, o que ocorreu “sob aplausos”, a fim de tomar posse no cargo, declarado vago após a votação do impeachment do seu titular. Lembremos que Paulo Guerra, um dos líderes do PSD pernambucano, fora eleito vice-governador junto com Miguel Arraes. Novamente, vê-se algo que nos parece bem contemporâneo.
Já no final da reportagem, o Diario reproduz a Resolução da Assembleia Legislativa Nº 671, aprovada naquela noite, em uma evidente prova da celeridade e objetividade com que agiram os representantes do povo na Casa de Joaquim Nabuco para votar do impeachment do governador eleito. Em se tratando de um documento histórico, vale a pena reproduzi-lo:
“EMENTA: Considera vago o cargo de Governador de Estado.
A ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DE PERNAMBUCO RESOLVE:
Art. 1º - Considerar vago o cargo de governador de Estado.
Art. 2º - Determinar que a sucessão se proceda na forma do art. 58 da Constituição do Estado.
ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DE PERNAMBUCO, EM 1º DE ABRIL DE 1964
as.) Walfredo Paulino de Siqueira, Presidente; Fábio Correia, 1º Secretário; Mario Monteiro, 2º Secretário”.
No dia seguinte, o mesmo ocorreria ao prefeito do Recife Pelópidas Silveira, aliado de Miguel Arraes, apesar do que informara o Diario no dia 1º de abril: “Pelópidas diz que não fugiu: cogita-se de seu ‘impeachment’”. E de ter anunciado, em sua edição do dia 2 de abril, que, diante da manifestação formal do prefeito, “alguns vereadores se pronunciaram contrários ao ‘impeachment’”. Tal fato não impediria a brusca mudança de opinião dos vereadores da base de apoio do chefe do executivo municipal, o que levou apenas algumas horas para ocorrer. Assim, no dia 3 de abril, finalmente, o jornal estamparia: “Câmara impediu Pelópidas com votação surpreendente: 20 x 1”.
Nesse mesmo dia, os afastamentos do presidente João Goulart e do governador Miguel Arraes seriam duramente denunciados pelo então deputado federal Oswaldo Lima Filho, do PTB pernambucano, em discurso que se encontra reproduzido em seu livro de memórias Política Brasileira, 1945-1990: uma visão nacionalista (Editora Paz e Terra). Como se verá, o discurso parece igualmente dirigido aos dias atuais. Senão, vejamos.
Em relação à declaração de vacância do cargo de presidente, o ex-ministro da Agricultura de Jango escancara o papel que os presidentes da Câmara e
do Senado cumpriram no episódio: “Volto à tribuna, sem dúvida a mais alta do País, com a triste e desoladora impressão de quem voltasse a um templo conspurcado, degradado pelos próprios sacerdotes incumbidos de sua guarda. A posição do presidente do Congresso Nacional e do Exmo. Sr. presidente efetivo desta Casa, srs. Auro Moura Andrade e Ranieri Mazzilli, representa uma afronta aos mais legítimos ideais democráticos e, sobretudo, uma afronta à dignidade dos seus pares. O que se praticou aqui foi uma página de infâmia que degrada o Parlamento brasileiro e que, por muito tempo, permanecerá à face da Nação como uma mancha irremovível”.
Na sequência, o parlamentar pernambucano, que seria cassado em 1969, após a edição do Ato Institucional Nº 5 (AI-5), aponta as motivações de Andrade e Mazzilli para declarar a vacância do cargo de presidente da República: “O que se fez agora foi qualquer coisa de inominável. A Mesa do Congresso, pelo seu presidente, o ilustre aristocrata de Andradina, e o senhor presidente perpétuo, Ranieri Mazzilli, mancomunados pelo ódio, pela vingança [contra o presidente], espezinhou a vontade dos brasileiros livremente revelada nas urnas nas últimas eleições”. Com relação ao afastamento de Miguel Arraes do cargo, Lima Filho travaria intenso e duro debate na tribuna com o também deputado pernambucano Arruda Câmara, representante da ala mais conservadora do estado, que faz a defesa intransigente da decisão da Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco de aprovar o impeachment do governador. Esses trechos do discurso parecem ainda ecoar nos plenários do Congresso Nacional em 2016.
Como se vê, embora nem todos concordem que o impeachment de Miguel Arraes foi uma farsa e que, de fato, ele, assim como o prefeito Pelópidas Silveira, foi deposto, e também Jango, essa é a versão histórica hoje aceita e, portanto, reproduzida nos livros de história. Mas, e isso é evidente, toda a encenação em torno do impeachment de Miguel Arraes serviria apenas para dar um verniz institucional ao que realmente ocorrera, um Golpe de Estado. Portanto, revisitar tais fatos, exatamente no ano do centenário do ex-governador de Pernambuco, cargo que ocupou por três mandatos, nos faz pensar: como o mais recente ‘impeachment à brasileira’ será visto daqui a 50 anos?
Túlio Velho Barreto é cientista político e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e um dos organizadores e autores dos livros Na Trilha do Golpe – 1964 Revisitado (Editora Massangana), 1964 – O Golpe Passado a Limpo (Editora Massangana) e A Nova República –Visões da Redemocratização (Editora Cepe).
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Opinião
A crise ambiental contemporânea
Por Marcos Costa Lima
Grandes alterações na estrutura e função dos Sistemas naturais da Terra representam uma ameaça crescente para saúde humana e para a vida em geral em nosso planeta (Safeguarding human health in the Anthropocene epoch: report of The Rockefeller Foundation–Lancet Commission on planetary health). Através de uma insustentável exploração de recursos naturais e humanos a civilização floresceu, mas agora corre o risco substancial, pelos efeitos da degradação, de não garantir o apoio da natureza à vida, no médio e longo prazo. Os efeitos nocivos para a saúde humana por conta das mudanças no ambiente são muitas e graves: as mudanças climáticas, a acidificação dos oceanos, a degradação dos solos, a escassez de água, a sobreexploração da pesca e da perda de biodiversidade, o acúmulo de lixo tóxico inclusive resíduos nucleares, a redução das florestas e a po -
luição dos rios, as secas mais longas em várias partes do mundo, representam um sério desafio para a humanidade.
Segundo especialistas, estas tendências, que são de grande impacto, têm ocorrido sobretudo, pelo paradigma estabelecido no capitalismo dominante, com a cristalização de um padrão de consumo, e de utilização de recursos naturais, altamente predatórios, com o agravante de uma população em crescimento, que deve atingir os 8,3 bilhões de habitantes. O Brasil terá 223 milhões de habitantes no mesmo período.
A Comissão Lancet sobre a saúde do planeta identificou três categorias de desafios que têm de ser enfrentadas se se quiser manter e mesmo melhorar a saúde humana, em face das tendências ambientais cada vez mais danosas, são elas: 1, a tendência em se confiar excessivamente no cres -
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cimento do produto interno bruto como medida de progresso humano e o fracasso em explicar os futuros danos, sob o aparente manto de ganhos nos dias de hoje, além do efeito desproporcional destes danos sobre as populações pobres e as nações em desenvolvimento, que não têm capacidade de se preparar para futuras catástrofes; 2. Falhas de conhecimento (de pesquisa e de informações fidedignas), uma histórica ausência de transdiciplinaridade no entendimento do problema, juntamente com uma falta de vontade ou incapacidade de lidar com a incerteza por parte dos governos na hora da tomada de decisões. 3. falhas de implementação (desafios da governança), tais como o modo operandi de governos e instituições que retardam o reconhecimento e as respostas às ameaças, especialmente quando confrontado com incertezas, falta ou mesmo preterimento de recursos, considerando a questão ambiental não prioritária, além das defasagens entre o agir e seus efeitos.
As políticas deveriam buscar um equilíbrio entre progresso social (bem-estar), sustentabilidade ambiental e economia. Aí se encontra o grande dilema, uma vez que, sejam os governos, sejam as grandes corporações estabelecem como prioridade a situação da economia, com um viés estreito, onde mais vale o funcionamento dos grandes conglomerados, bancos e multinacionais, e não o bem-estar geral.
Para abrigar uma população mundial que ultrapassa os 8 bilhões de pessoas será necessário alterar o sistema agrícola, privilegiando a pequena e média agricultura e não o agribusiness, a estrutura agrária mundial precisa de alterações rápidas e constantes, no sentido de redução dos latifúndios, só assim os sistemas agrícolas podem enfrentar a desnutrição e mesmo a supernutrição, hoje ocorrendo não apenas nos países ricos, em função de uma alimentação processada em excesso. A agricultura é também um setor capaz de criar empregos e compensar o desemprego tecnológico. Reduzir o desperdício, diversificar dietas, sobretudo diminuindo o consumo de carne bovina e minimizar os danos ambientais. Mas há que se cuidar também da educação, que dá maior condição aos mais pobres de entenderem o que está em jogo, e de lutarem por seus direitos. Os ganhos em alimentação saudável e orgânica se refletirão em ganhos em saúde, mas não dispensando os investimentos em médicos e hospitais, sobretudo numa visão preventiva.
A Comissão Lancet é otimista no tocante aos avanços na saúde humana ao considerar que hoje os dados que coletaram são melhores do que em qualquer outro tempo da história. A expectativa de vida elevou-se dos 47 anos em 1950–1955, para 69 anos entre 2005–2010. A taxa de mortalidade em crianças menores que cinco anos, decresceu substancialmente em escala mundial de 214 por mil
nascimentos em 1950–1955 para 59 em 2005–2010. O número total de pessoas vivendo em extrema pobreza caiu de 0·7 bilhões nos últimos 30 anos, em que pese o crescimento no total da população nos países pobres de cerca de 2 bilhões. O relatório diz ainda que “esta redução da pobreza tem sido acompanhada por avanços sem precedentes na saúde pública, cuidados de saúde, educação, legislação de direitos humanos, e desenvolvimento tecnológico, que trouxe grandes benefícios, ainda que de forma desigual, à humanidade” (Lancet Comission, 2014). Mas o Relatório não contempla os aumentos das desigualdades, em escala planetária, tanto nos países do centro quanto naqueles da periferia. São muitos os estudos recentes que vêm chamando a atenção do problema, sobretudo desde os anos 1980, quando instalou-se mundialmente as prerrogativas do neoliberalismo e do Consenso de Washington. O próprio PNUD (Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas, Human Development Report 1999, p.3) já anunciava em estudo que já por mais de 200 anos as desigualdades econômicas globais têm aumentado. No início da revolução industrial, as diferenças de renda per capita entre a Europa Ocidental e a periferia não ultrapassava 30 por cento (Bairoch, 1981, pp. 3-17). Em 1820, a renda per capita dos países mais ricos era 3 vezes maior do que os mais pobres. Em 1870, foi 7 vezes; em 1913 era 11 vezes maior e em 1960, 30 vezes mais. Em 1997, um quinto da população mundial que vive nos países mais ricos era 74 vezes mais ricos que o um quinto da população nos países mais pobres. Segundo o Global Wealth Report 2014, realizado pelo banco Credit Suisse, a parcela de 1% da população adulta mais privilegiada detém praticamente metade da riqueza global. Portanto, a desigualdade no mundo está aumentando e isso representa um estímulo à recessão, muito embora a riqueza global das famílias no mundo tenha aumentado 8,3% em um ano, atingindo um novo recorde: US$ 263 trilhões em 2013, mais do que o dobro da riqueza registrada no ano de 2000, que era de US$ 117 trilhões. Os números são chocantes, quando sabemos que 8,7% das pessoas adultas concentram 82,1% da Riqueza Mundial, ao passo que 91,3% das pessoas adultas dividem apenas 17,9% da riqueza mundial.
Em Paris, dezembro de 2015, ocorreu a XXI Conferência Internacional sobre a Mudança Climática (COP 21). Muito se especulou sobre os possíveis resultados, que vão do maior pessimismo a um otimismo que não tem muita justificativa. José Ramos Horta, prêmio Nobel da paz em 1996 e ex-presidente do Timor Oriental, chama a atenção para a gravidade do problema, quando um novo informe baseado nos estudos de 413 cientistas de 58 países, a Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (NOAA) (State of the climate in 2014) dos Estados
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Unidos concluiu que 2014 foi o ano mais quente da história (HORTA, 2015).
O contundente informe evidencia as tendências e as mudanças do sistema climático mundial, a exemplo dos vários tipos de gases de efeito estufa, das temperaturas na atmosfera, nos oceanos e na terra, no nível do mar, a redução na extensão do gelo marinho entre outros fenômenos graves. Muitos cientistas já consideram a mudança climática irreversível.
São muitos os problemas e questões a serem enfrentadas na COP21, como a reafirmação do multilateralismo, enquanto espaço coletivo de tomada de decisões; sobre qual será o novo instrumento jurídico vinculante, que sob a Convenção deverá ser aplicável a todos os signatários. Qual será o conteúdo do novo acordo do Clima a entrar em vigor em 2020? O que cada país será responsável a implementar até 2020?
O documento elaborado em Lima, na COP 21, muito criticado, reafirmou o princípio das responsabilidades comuns, mas diferenciadas. Ainda o texto base que deverá ser assinado, inclui temas operacionais decisivos como mitigação, adaptação, financiamento, transferência de tecnologia, capacitação e transparência para ações e para o apoio (Santos, Maureen, 2015). Outra questão preocupante é a compensação das emissões, que implica que o mundo (leia-se, os países ricos) possa continuar emitindo gases de efeito estufa desde que exista uma forma de os “compensar”. O que torna iníqua as medidas concretas de redução das emissões. O Fundo Verde do Clima, que foi aprovado desde 2010, com um fundo que seria de US$ 100 bilhões anuais de 2013 a 2020, e que ficou sem efeito e só em 2014 passou a receber recursos muito aquém do estabelecido, num valor de US$ 10 bilhões, aportados por 29 países, desenvolvidos e em desenvolvimento.
Ainda questões graves como o Uso da terra; a Agricultura climaticamente inteligente; a Cúpula dos Povos; as Mobilizações da Sociedade civil global para o enfrentamento do problema. Todas estas graves questões estarão em pauta.
Em tempos de Crise estrutural como a que vivemos, a responsabilidade sobre as condições de vida na terra cabe a todos nós, mas sobretudo aos países ricos e seus governos, suas grandes corporações, que não apenas são os maiores predadores dos ecossistemas globais, mas que têm de fato as condições objetivas para enfrentar a tragédia. Karl Polanyi nos ensinou que “permitir que o mecanismo de mercado seja o único dirigente do destino dos seres humanos e do seu ambiente natural (...) resultaria no desmoronamento da sociedade” (Polanyi, 2000, p.79).
O estado do planeta em que vivemos está ameaçado. Já é tempo de medidas que não sejam apenas paliativos, já é tempo de virar a página de um paradigma obsoleto.
Referências:
BAIROCH P. (1981) The main trends in natio¬nal economic disparities since the Industrial Revolution. In: Bairoch P & Lévy-Leboyer M. (eds) Disparities in Economic Development since the Industrial Revolution. Londres: Macmillan, 3-17.
COMISSÃO LANCET (2014), “Levels and trends in child mortality.” You D, Hug L, Chen Y, Wardlaw T, Newby H. New York: United Nations Inter-agency Group for Child Mortality Estimation, p.2.
GLOBAL WEALTH REPORT 2014 (2014), Geneve: Credit Suisse: 26.
HORTA, José Ramos. Cambio Climático: En París, será necesario un compromiso auténtico de los industrializados, 2015, julho, in: Other news, espanol@other-news.info
OLINTO P, BEEGLE K, SOBRADO C, UEMATSU H. (2013), The state of the poor: where are the poor, where is extreme poverty harder to end, and what is the current profile of the world’s poor? “Washington, DC: The World Bank, 2013.
PNUD [Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas] Human Development Report 1999, p.3. Nova York e Oxford: Oxford University Press.
POLANYI, Karl (2000), A Grande Transformação, Rio de Janeiro: Campus.
POPULATION DIVISION OF THE DEPARTMENT OF ECONOMIC AND SOCIAL AFFAIRS. (2013), World population prospects: the 2012 revision. New York: United Nations.
SANTOS, Maureen (2015), “Entenda a COP 21 e as disputas em jogo”. Carta Capital, 09/04/.
STATE OF THE CLIMATE IN 2014. (2015), Special Supplement to the Bulletin of the American Meteorological Society Vol. 96, No. 7, July http://ametsoc.org/SOC-2014.pdf
THE ROCKEFELLER FOUNDATION–LANCET COMMISSION ON PLANETARY HEALTH (2014), Safeguarding human health in the Anthropocene epoch: report of www.thelancet.com Published online July 16, 2014 http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(15)60901-1. acessado em 1 de agosto de 2015.
Marcos Costa Lima é professor do Departamento de Ciência Política da UFPE, pós-doutorado na Université Paris XIII. Atualmente coordena o Instituto de Instituto de estudos da Ásia/UFPE.
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