Revista Jornalismo e Cidadania Nº 6/2016

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Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 1

ANO I | Nº. 6

Jornalismo e cidadania

Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade | PPGCOM/UFPE

Opinião

Crônica de um golpe anunciado

Jornalismo Independente

Mídia, narrativa e poder

E mais...


JORNALISMO E CIDADANIA | 2

Expediente Editor Geral | Heitor Rocha professor PPGCOM/UFPE Editoração Gráfica | Ivo Henrique Dantas doutorando PPGCOM/UFPE Articulistas | PROSA REAL Alexandre Zarate Maciel doutorando PPGCOM/UFPE MÍDIA ALTERNATIVA Xenya Bucchioni doutoranda PPGCOM/UFPE NO BALANÇO DA REDE Ivo Henrique Dantas doutorando PPGCOM/UFPE JORNALISMO E POLÍTICA Laís Ferreira mestranda PPGCOM/UFPE JORNALISMO AMBIENTAL Robério Daniel da Silva Coutinho mestre em Comunicação UFPE

Arte da Capa: Designed by Freepik.com

Colaboradores | Marcos Costa Lima Pós-Graduação em Ciência Política/UFPE Túlio Velho Barreto Fundação Joaquim Nabuco Gustavo Ferreira da Costa Lima Pós-Graduação em Sociologia/UFPB Luiz Lorenzo Núcleo de Rádios e TV Universitárias/UFPE Bolsista e Aluno Voluntário | Lucyanna Maria de Souza Melo Yago de Oliveira Mendes Graduandos de Jornalismo UFPE

Índice Editorial

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Prosa Real

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Opinião | Auríbio Farias Conceição

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Mídia Alternativa

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Jornalismo Ambiental

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Opinião | Gustavo F. da Costa Lima

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Comunicação Pública

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JORNALISMO INDEPENDENTE Karolina Calado doutoranda PPGCOM/UFPE

No Balanço da Rede

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Mídia Fora do Armário

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MÍDIA FORA DO ARMÁRIO Rui Caeiro mestre em Comunicação UFPE

Opinião | Mariana Vazquez

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Jornalismo Independente

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Cidadania em Rede

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Poder Plural

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Opinião | Mariana Yante

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PODER PLURAL Rakel de Castro doutoranda PPGCOM/UFPE e UBI CIDADANIA EM REDE Nataly Queiroz doutoranda PPGCOM/UFPE COMUNICAÇÃO PÚBLICA Ana Paula Lucena doutoranda PPGCOM/UFPE

MUDE O CANAL Ticianne Perdigão doutoranda PPGCOM/UFPE RÁDIO E CIDADANIA Karoline Fernandes mestre em Comunicação UFPE NA TELA DA TV Mariana Banja mestranda em Comunicação UFPE

Edição Nº 6 Recife-Pernambuco, Dezembro 2016 Acesse: facebook.com/ Jornalismoecidadania issuu.com/revistajornalismoecidadania


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Editorial

A desfaçatez retórica e o menosprezo pela opinião pública

Quadro: Rodolfo Mesquita

Por Heitor Rocha

C

om a Revista Jornalismo e Cidadania nº 6, o Projeto de Extensão SIGPROJ Nº 233851.1237.85283.25042016 conclui o seu primeiro ano de atividades de observatório da mídia noticiosa, especialmente contemplando questões que dizem respeito aos movimentos sociais populares, normalmente criminalizados e estigmatizados, quando não excluídos completamente da discussão pública, e outros setores da periferia da estrutura de poder, como intelectuais, artistas, professores, estudantes, etc., que têm uma posição contra-hegemônica e de resistência aos mecanismos de dominação e violência simbólica impostos pelas oligarquias que submetem os representantes políticos com as suas fantásticas contribuições de campanha. Comenta-se que os congressistas se tornam despachantes de luxo das grandes corporações do mercado que “investem” algo em torno de dez vezes o que estes representantes políticos vão receber de salários durante o mandato. Autoridades do setor financeiro da Suíça estimaram recentemente que estes grandes corruptores brasileiros (assumidamente donos do dinheiro e disfarçadamente também do poder), lucram quatro vezes o que gastam com estes seus “empregados”. Assim, os “pobres diabos” dos representantes políticos ficam expostos a papéis execráveis perante a opinião pública, a qual menosprezam como algo completamente impotente diante da postura usurpadora dos Poderes da República, como o presidente Temer se gabando que suas iniciativas (ou seja, suas não,

mas sim de seus patrões que comandam o projeto neoliberal) têm 88% de êxito no Congresso Nacional. Neste mesmo tom de chiste, tenta inverter um resultado negativo acachapante nas pesquisas (o seu governo é considerado ruim ou péssimo por mais de 70 por cento da população) numa conotação positiva ao considerar que a sua impopularidade lhe ajuda a defender as reformas “necessárias” para os seus patrões do Grande Capital. Portanto, neste final de ano, quando as pessoas conseguem parar um pouco a despeito da extraordinária maquinaria publicitária de estimulação do consumismo através do fetichismo de mercadorias de luxo - para pensar em seus projetos e no sentido que querem conferir às suas vidas, esperamos que a opinião pública pondere, inspirada na mensagem cristã e não na ambição insana do culto ao bezerro de ouro, sobre as consequências cruéis destas medidas neoliberais para vincular as despesas à inflação e não à arrecadação, impondo perversas limitações aos investimentos sociais nas áreas de saúde, educação, ciência e tecnologia de ponta, segurança, geração de emprego e renda, entre outras – questões imprescindíveis para aquecimento do mercado interno e para construção de um futuro razoável para o País. Toda essa “austeridade”, enfim, somente para garantir, de forma impatriótica, as taxas de lucro e acumulação do Grande Capital. Diante de todos os enfrentamentos que se anunciam para o ano de 2017, sobretudo quanto às ameaças do atual governo à seguridade social através de sua proposta de reforma da previdência, vamos em frente com a expectativa de contribuir para o fortalecimento do sentido de nosso mundo da vida e combater o colonialismo obscurantista do sistema com seus meios de controle baseados no poder do aparelho de Estado e no dinheiro das grandes corporações do mercado. A luta continua! Heitor Costa Lima da Rocha, Editor Geral da Revista Jornalismo e Cidadania, é professor do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.


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Prosa Real

Livro-reportagem, jornalismo e contexto Por Alexandre Zarate Maciel

Prêmios ajudam a consolidar as biografias e livros-reportagem

A

s entidades que premiam livros-reportagem e biografias ainda são poucas, mas o reconhecimento que os jornalistas-autores vêm encontrando em prêmios consagrados como o Jabuti e o da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) coroa seus trabalhos e confere mais visibilidade para suas obras. Em termos internacionais, o campo da não-ficção em livro comemorou o prêmio Nobel de Literatura de 2015, concedido, pela primeira vez, a uma autora de livros-reportagem, a escritora e jornalista bielorussa Svetlana Alexiévitch, que concebeu, entre outras obras, “Vozes de Tchernóbil: a história oral de um desastre nuclear” e “A guerra não tem rosto de mulher”, lançados este ano no Brasil. O prêmio Jabuti é o mais prestigiado do país, sendo que alguns livros-reportagem superaram as categorias específicas e arremataram, também, o prêmio de melhor livro de não ficção do ano. Foi o caso, por exemplo, de “Estrela solitária”, de Ruy Castro, em 1996, “Corações sujos”, de Fernando Morais, em 2001, “Abusado”, de Caco Barcellos, em 2004, “Carmem, uma biografia”, de Ruy Castro, em 2006 e do bi-campeão nessa categoria máxima, Laurentino Gomes, com “1808” e “1822”, respectivamente em 2008 e 2011. O Prêmio Vladimir Herzog, que agraciava livros com temas mais sociais, políticos e engajados, infelizmente abandonou a categoria de livro-reportagem em 2010. Já a APCA ainda premia anualmente livros desse gênero nas amplas categorias de Ensaio/teoria e Crítica literária/reportagem, além de Biografia/Autobiografia/Memória. Um sinal de reconhecimento do gênero no campo literário e no mercado editorial.

Autor do mês: Ruy Castro

Q

uem mergulha na obra de Ruy Castro (1948) encontra um manancial da cultura brasileira do século XX e também contemporânea. Mineiro de Caratinga, radicado no Rio de Janeiro, estreou a carreira jornalística em 1967, no “Correio da Manhã”, emendando, em seguida, uma longa carreira jornalística em “Manchete”, “Seleções”, “Playboy”, “IstoÉ”, “Veja’, “Folha de S. Paulo” e “Jornal do Brasil”. Hoje, além de escritor regular, ainda man-

tém uma coluna no jornal “Folha de S. Paulo”. Em 1988 surpreendeu o mundo editorial com a sua estreia no campo dos livros de reconstituição histórica e biografias, “Chega de Saudade”, trazendo os bastidores da Bossa Nova e de todos os seus personagens principais, como Tom Jobim e João Gilberto. Em seguida, em 1992, foi a vez de biografar Nelson Rodrigues e todas as suas facetas de teatrólogo, escritor, jornalista, cronista, em “O Anjo Pornográfico”. Enfrentou problemas judiciais com “Estrela solitária: um brasileiro chamado Garrincha” (1995), mas conseguiu superá-los, inclusive vencendo o prêmio Jabuti, do qual ele coleciona mais três condecorações. Em alguns dos seus livros, como “Saudades do Século XX” (1994), trazendo perfis biográficos de estrelas de Hollywood e brasileiras; “Ela é carioca” (1999), que elenca verbetes originais sobre personalidades que transitaram por Ipanema; “A onda que se ergueu do mar” (2001), com mais detalhes sobre a expansão da Bossa Nova; “Carnaval no fogo” (2003), que detalha todos os aspectos históricos da cultura carioca e “Flamengo: o vermelho e o negro” (2004), com a trajetória do time e suas histórias de amor e paixão, Ruy Castro esmiúça o seu lado de cronista, sempre com fino humor e ironia. O Rio de Janeiro de ontem e de hoje é sempre um pano de fundo constante e afetivo. Seus dois trabalhos de fôlego mais recentes são “Carmem: uma biografia” (2005) e “A noite do meu bem: a história e as histórias do samba-canção” (2015). O leitor sai dessas obras informado sobre todo um panorama cultural que marcou não só a vida da cantora Carmem Miranda, no caso do primeiro livro, quanto, no segundo, os bastidores políticos e econômicos de um Rio de Janeiro em transformação, na era das famosas e luxuosas boates de Copacabana nos anos 1950. Pesquisador obsessivo, atento aos detalhes, Ruy Castro maneja o texto dos seus livros com leveza. O escritor está trabalhando com dois projetos principais de futuros livros em paralelo. Um deles será uma obra em que explica o fazer biográfico e seus segredos de biógrafo. Outro, a longo prazo, tratará da história do Rio de Janeiro dos anos 1920. sonalidade mítica do lí-


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der religioso, revelando as complexas e muitas vezes contraditórias relações de poder que sempre fizeram parte do seu universo. Mas a maior empreitada biográfica, que consagrou Lira Neto entre os grandes escritores de livros-reportagens da atualidade seria publicada em três volumes: “Getúlio”. Fruto de uma pesquisa hercúlea em fontes documentais das mais variadas, como o famoso diário deixado por Getúlio Vargas, além de cartas, registros oficiais, matérias de jornal e mesmo outras biografias em geral laudatórias, Lira Neto dá uma aula de como mergulhar na vida de um personagem tão controverso e tão comentado, transcendendo as aparências. No momento Lira Neto está envolvido com outro projeto de grande monta: biografar a história do samba. O primeiro volume será publicado até o final de 2016 e o segundo no final do ano que vem. Ler as biografias de Lira Neto é comungar com ele de um olhar único sobre a história do Brasil, suas revelações e contradições.

Iluminando conceitos: Jornalismo e literatura nas análises de Marcelo Bulhões

Em um tempo de extrema mecanização do ofício jornalístico, em uma fase em que o repórter parece ficar cada vez mais estático, amarrado à sala de redação, sem contato direto com a seiva do cotidiano, tal tendência de um jornalismo de livros soa como um caminho que afirma atributos essenciais da vivência jornalística, ao mesmo tempo que não esconde o tributo que deve à literatura”. A conclusão do professor do curso de pós-graduação em Comunicação Social da Unesp-Bauru, Marcelo Bulhões (2006, p.202), consta no seu livro “Jornalismo e literatura em convergência”, uma obra importante para entender as aproximações e distanciamentos entre esses dois campos, particularmente nos livros-reportagem. O autor cursou o doutorado em Literatura Brasileira e mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP). Bulhões (2006, p.196), tratando das obras “Rota 66” e “Abusado”, de Caco Barcellos, “Olga” e “Chatô, o rei do Brasil”, de Fernando Morais, “O anjo pornográfico” e “Carmem”, de Ruy Castro, além de romances-reportagem de José Louzeiro, como “Lúcio Flávio, o passageiro da agonia”, avalia que estes e outros livros aliam-se a “paradigmas de composição da fluência narrativa da literatura, na confecção de aspectos fabulativos”. Ou seja, bebendo das fórmulas da literatura, mas apegados às concepções jornalísticas de narração do real, esses livros “comportam o andamento deleitável da prosa de ficção”, sendo que os seus jornalistas-autores constroem seus textos com a finalidade de “provocar fascínio e curiosidade no leitor, convidando-o a percorrer páginas de uma longa

narrativa factual como quem percorre as de um romance”. Outro destaque da obra é o panorama histórico que Marcelo Bulhões oferece, mencionando jornalistas pioneiros na produção de livros, como Euclides da Cunha e João do Rio, além de romancistas que “namoraram” o real, como João Antônio. O livro de Bulhões indica que o campo das Letras vê com interesse a incursão do jornalismo em um território de mais criatividade.

Referências: ALEXIÉVITCH , Svetlana. Vozes de Tchernóbil. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. _________ ____, Svetlana. A guerra não tem rosto de mulher. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. BARCELLOS, Caco. Abusado. São Paulo: Record, 2003. ___________, Caco. Rota 66. São Paulo, Record, 1992. BULHÕES, Marcelo. Jornalismo e literatura em convergência. São Paulo: Ática, 2007. CASTRO, Ruy. Estrela solitária. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. _________, Ruy. Carmem. São Paulo, Companhia das Letras, 2005. _________, Ruy. Chega de saudade. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. _________, Ruy. O anjo pornográfico. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. ________, Ruy. Saudades do século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. ________, Ruy. Ela é carioca. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. ________, Ruy. A onda que se ergueu do mar. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. ________, Ruy. Carnaval no fogo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. ________, Ruy. Flamengo: o vermelho e o negro. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. ________, Ruy. A noite do meu bem. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. GOMES, Laurentino. 1808. São Paulo: Planeta, 2007. GOMES, Laurentino. 1822. São Paulo: Nova Fronteira, 2010. LOUZEIRO, José. Lúcio Flávio: o passageiro da agonia. São Paulo: editora Abril, 1982. MORAIS, Fernando. Corações sujos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. ________, Fernando. Olga. São Paulo: Alfa-Omega, 1985. ________, Fernando. Chatô. São Paulo, Companhia das Letras, 1994.

Elaborada pelo professor do curso de Jornalismo da UFMA, campus de Imperatriz, Alexandre Zarate Maciel, que está cursando o doutorado em Comunicação na UFPE, a coluna Prosa Real traz, todos os meses, uma perspectiva dos estudos acadêmicos sobre a área do livro-reportagem e também um olhar sobre o mercado editorial para esse tipo de produto, os principais autores, títulos e a visão do leitor.


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Opinião

Formas Curtas e a Urgência Contemporânea Por Auríbio Farias Conceição

MONÓLOGO COM A SOMBRA - Não adianta me seguir. Estou tão perdido quanto você” (AUGUSTO, 2004). Ler um texto como este pode levar um leitor desavisado a não se dar conta de que está diante de um conto. O exemplo citado é de autoria de Rogério Augusto e faz parte de Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século (2004), organizado por Marcelino Freire e prefaciado por Ítalo Moriconi. Na verdade, é um microprefácio: “é no lance do estalo que a cena toda se cria”. O interesse crescente nos últimos tempos pelo conto curto ou curtíssimo em novos escritores constitui uma evidência daquilo que a crítica literária Beatriz Resende (2008) reconhece como forte preocupação com o presente. Essa tendência dos escritores da literatura brasileira do século XXI, esse voltar-se com tamanha veemência para o presente ela chama de presentificação, ou seja, há verdadeira obsessão por uma presentificação radical, percebida pela ausência de preocupação com o futuro e de ausência também de valorização do passado. Há uma urgência nos textos de lidar com o aqui e agora, porém também em atitudes, como o surgimento de novas cenas literárias, escritores que habitam a periferia ou mesmo os detentos que eliminaram intermediários para contar suas histórias e assumir suas próprias vozes, contribuindo assim com novos temas, novas visões de vida e de mundo. A recusa à mediação não está só no campo do fazer artístico, mas também na edição e distribuição de suas obras. Resende (2008, p. 28) arremata dizendo que, nessa preocupação com a presentificação, “o que interessa, sobretudo, são o tempo e o espaço presentes, apresentados com a urgência que acompanha a convivência com o intolerável”. Esse formato tem também atraído a atenção do crítico literário Schollhammer (2009). Ele destaca que, para o escritor brasileiro, surge o questionamento de como falar de uma realidade brasileira, que está aí exposta; todos a veem e todos dela falam e a comentam na imprensa, nas redes sociais, enfim, em todos os espaços midiáticos. E como falar de uma forma diferente, de modo que a linguagem literária faça diferença? Essa busca por um efeito literário ou estético, que também possa interferir e transformar o mundo contemporâneo, leva os escritores a colocar a realidade na ordem do dia. No entanto, prossegue Schollhammer (2009, p.57),

“essa procura por um novo tipo de realismo na literatura é movida, hoje, pelo desejo de realizar o aspecto performático e transformador da linguagem e da expressão artística, privilegiando o efeito afetivo e sensível em detrimento da questão representativa”. Assim, a literatura busca mudar a forma de atingir o leitor, já que concorre com todo o aparelho midiático. A literatura busca expressar a realidade não de forma representativa, mas escolher formas inovadoras de expressão e de escrita, afirma Schollhammer, citando Marcelino Freire como um exemplo dessa postura. Prossegue afirmando que Marcelino Freire se distancia da crônica para trabalhar a poesia, e ainda inclui a oralidade. No uso do discurso direto, ele tende à concisão, para evitar extravagâncias, movido por uma motivação “musical de criar contos como cantos” (SCHOLLHAMMER, 2009, p. 68). Ainda de acordo com Schollhammer (2009, p. 10), em suas reflexões sobre a ficção brasileira contemporânea, o escritor brasileiro contemporâneo tem urgência e o próprio Marcelino Freire, de acordo com ele, confessa essa pressa. No entanto, essa pressa não seria apenas alvoroço, mas uma intenção de atingir a realidade. Schollhammer entende essa urgência como a dificuldade do escritor de lidar com o mais atual e se sentir anacrônico em relação ao presente. Disso decorre uma ansiedade de intervenção na realidade, no processo criativo que aponta para uma comunicação o mais rápido possível. Percebe-se pouco aquela produção da qual se poderia dizer que o tempo e o trabalho dispensados a decifrá-la seriam recompensados com o prazer de penetrar em regiões às quais só uma alta literatura dá acesso. A comunicação e o prazer seriam mais imediatos. Dito de outra forma, diante da impossibilidade que tem o escritor da atualidade de captar a realidade histórica em seu presente, ele tem uma urgência de se relacionar com ela, e isso inclui um público. Ambos os críticos reconhecem como evidentes, em vários autores contemporâneos, a preocupação com o presente e a necessidade urgente de se comunicar com este. Do ponto de vista de Resende, a urgência é plenamente justificada pela “convivência com o intolerável”. Do ponto de vista de Schollhammer, a urgência pode ser justificada pelo perigo de estabelecer uma anacronia com o presente. Obser-


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va-se na literatura do presente, a partir das obras e desses críticos, a oralidade como uma forma de comunicação urgente. Nesse sentido, a arte está buscando intervir na realidade e realimentá-la uma vez que da realidade também se alimenta. Com propósito semelhante de intervenção, diversos grupos sociais em contextos desfavoráveis, em protestos por garantias de direitos individuais e coletivos, têm também usado formas mnemônicas do modo como as utilizam alguns autores contemporâneos. A convivência com o intolerável nestes tempos sombrios que vivemos, nos quais se perdeu a confiança nas instituições legislativas e jurídicas, nos quais a ruptura democrática prenuncia retrocesso econômico e social, intima os grupos que se sentem atingidos a soltar um grito, a agir, a ocupar o lugar que é deles de direito, a não permitir que algum direito conquistado se perca. Desse modo o grito das ruas visita a literatura e a literatura visita o grito das ruas. É possível enxergar também que outras narrativas, algumas divergentes das veiculadas pelas grandes mídias, vão sendo contadas, por meio de palavras de ordem, faixas e cartazes. Essas narrativas desconstroem mitos de que o que se escuta nas ruas não tem credibilidade. Ao contrário, as ruas estão trazendo à tona o que temos de sublime e de podre. Exemplo disso, o machismo nosso de cada dia que entende ser natural levar faixas à avenida xingando a então presidenta Dilma de vaca, puta, e frases do tipo “Balança que essa quenga cai”, quando os xingamentos ao ex-presidente Lula, no máximo chegaram a “cachaceiro”. Aqui talvez caiba uma questão: que termos se poderiam atribuir a Lula, com equivalência de peso e medida aos atribuídos a Dilma? Ainda a rua expõe nossa ignorância, resultado de 500 anos de descaso com a educação, na faixa utilizada por manifestantes com os seguintes dizeres: “Chega de doutrinação marxista, basta de Paulo Freire”. Mas a rua expõe também a nossa capacidade de ser cúmplice, como se viu em cartazes de manifestantes propondo hashtags como “#maisdilmamenosmachismo”, ou mensagens de sensibilização do tipo “O amor vencerá o ódio”. Em um desses protestos contra a ruptura democrática, jovens vislumbrando uma perspectiva não favorável para os próximos anos, apresentavam cartazes convidando os demais à luta, e num deles lia-se: “Eles venceram e o sinal está fechado pra nós que somos jovens”. E como fazia sentido os versos de Belchior na canção Como nossos pais, ali na avenida. Viver tempos sombrios na convivência com o intolerável requer urgência comunicativa: frases curtas, contos curtos, cantos curtos, poemas curtos, versos secos como o de Miró da Muribeca: “Merece um tiro quem inventou a bala”, ou palavras de ordem como as dos jovens nas ocupações das

escolas e universidades: “pode chover, o céu cair, o nosso lema é ocupar e resistir”; “a nossa luta é todo dia, educação não é mercadoria”; “Pula sai do chão, quem defende a educação”. As rimas, as aliterações e assonâncias, a alternância de sílabas fortes e fracas, constituem essa pulsação sonora, musical, que pode ser levada a qualquer lugar. São armas das quais se dispõe. Todos podem ouvir, repetir, memorizar, e ir para o combate, na rua ou dentro da escola. Há grande relevância nessa prática, nessas vozes numerosas a reforçar o entendimento e a compreensão do que se passa no país, pois além de informar, esclarecer, desmente acusações mentirosas e informações infames veiculadas na grande mídia. É uma grande oportunidade de escutar esses discursos orais nas ruas nos quais esse coro de vozes repleto de musicalidade e ritmo sinaliza a possibilidade de superar binarismos, maniqueísmos e extremismos assépticos, por meio da reunião das diversidades convergentes, para, com gana, centrar esforços no presente mais urgente. O presente que vivenciamos exige ir adiante apesar das aporias. A literatura de frases musicalizadas, as faixas, cartazes e hashtags, e as palavras de ordem dos jovens ansiosos por democracia, trabalho e educação, são armas mobilizadoras que podem tirar muitos das zonas de conforto e têm ensinado muito sobre cidadania, em um país de pobres pouco familiarizados com direitos. As formas curtas estão em alta a ocupar espaços sociais e urbanos com a densidade de seus conteúdos intelectual e emocionalmente profundos e com a urgência contida em suas compactações.

Referências: AUGUSTO, Rogério. Monólogo com a sombra. In: FREIRE, Marcelino (Org.). Os cem menores contos brasileiros do século. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004. RESENDE, Beatriz. Contemporâneos: expressões da literatura brasileira do século XXI. Rio de Janeiro: Casa da Palavra/Biblioteca Nacional, 2008. SCHOLLHAMMER, Karl Eric. Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

Auríbio Farias Conceição é Doutor em Literatura e Interculturalidade pela Universidade Estadual da Paraíba EPB e Professor do Departamento de Letras e Humanidades – DLH/UEPB.


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Mídia Alternativa Jornalismo de oposição e resistência Por Xenya Bucchioni

Etnojornalismo e a voz dos índios na internet

Mas índio que usa internet não é índio”. Essa é uma frase comum quando o assunto é a presença indígena na rede. Para muitos, a ideia do índio vivendo na floresta permanece. E com ela a noção, nem sempre consciente, de uma autenticidade baseada em identidades fixas e imutáveis, que reservam aos povos indígenas uma posição de “congelamento” diante das transformações pelas quais o mundo atravessa. Para subverter essa ideia, há cerca nove anos a Rede Índios Online atua para a inclusão digital de sete etnias: Kiriri, Tupinambá, Pataxó-Hãhãhãe e Tumbalalá da Bahia, os Xucuru-Kariri e Kariri-Xocó de Alagoas, e os Pankararu de Pernambuco. Seu objeto principal é promover e fomentar uma rede de diálogo intercultural na qual os integrantes são estimulados a apresentar “os índios na visão dos índios”. Por isso mesmo, esses indígenas passam a se identificar como “etnojornalistas”. E o que significa ser um “etnojornalista”? Nada mais é do que tornar-se protagonista sobre sua própria cultura e elaborar um relato a partir de sua própria visão de mundo. Nesse sentido, o etnojornalismo tal qual o jornalismo que conhecemos também consiste em coletar, redigir, editar e publicar informações. Mas, diferentemente do modelo tradicional, a seleção e organização do conteúdo produzido são feitas a partir do componente étnico. Ou seja, ao construírem suas próprias narrativas, os etnojornalistas operam uma transformação de representatividade que lhes permite explorar outras formas possíveis de presença midiática, rompendo com a subordinação à qual estão normalmente relegados na cobertura do jornalismo tradicional. Na Rede Índios Online, essa possibilidade de gerar novos conhecimentos vem acompanhada do resgate da cultura e da cidadania indígena em frentes variadas, sendo o audiovisual muito popular entre os jovens. Afinal, é nessa faixa etária onde se dá o conflito maior entre índios e não-índios. É também sob este aspecto que o estímulo à inserção digital ganha força, pois, ao atrair a juventude indígena, reforça sua conexão com as origens, ressignificando histórias e tradi-

ções em novas lentes e linguagens. Atenta a essas questões, no ano passado a Rede deu um passo a mais e lançou outro canal próprio de comunicação com a sociedade – dessa vez, com foco nas mulheres indígenas: a Comunidade Colaborativa de Aprendizado Pelas Mulheres Indígenas (http://www. mulheresindigenas.org/). Com caráter multiétnico, a iniciativa fomenta os relatos sobre a vida, os sonhos e a realidade das mulheres indígenas, integrando um conjunto de ações online e off-line de formação sobre seus direito. As histórias contadas valem-se de textos, vídeos e fotografias produzidos pelas próprias indígenas, seguindo a linha do etnojornalismo. No site, também está disponível para download o livro “Pelas Mulheres Indígenas”, que reúne boa parte da produção dessas mulheres. Para os pesquisadores, o conjunto desses materiais é um prato cheio já que a iniciativa torna-se um dos poucos – talvez, até mesmo, único – registro histórico sistematizado da voz dessas mulheres na internet.

Três mulheres indígenas para acompanhar nas redes Muitas mulheres indígenas estão na linha de frente na luta pelos direitos dos seus povos. Na internet, elas expõem sua opiniões e visões de mundo, além dos problemas vividos em suas comunidades. Confira a lista com os nomes de algumas dessas lideranças que vale a pena seguir pelo Facebook: Sônia Guajajara - Coordenadora-executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Sônia é uma das principais vozes do movimento indígena nacional. Integrante do povo Guajajara, do Maranhão, formou-se em letras e enfermagem e já representou indígenas brasileiros em vários eventos internacionais, como a Conferência do Clima em Paris, em 2015. No mesmo ano, foi premiada com a Ordem do Mérito Cultural, do Ministério da Cultura. Daiara Tukano - Militante feminista, artista plástica e correspondente em Brasília da Rádio Yandê (primeira rádio online indígena do Brasil), participou da construção da Marcha das Vadias no Distrito Federal e da Marcha Mundial das Mulheres, levando a pauta


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indígena a esses espaços. Daiara é integrante do povo Tukano (localizado entre o Amazonas, partes da Colômbia e da Venezuela) e mestranda na Universidade de Brasília (UnB), onde pesquisa a inclusão do conteúdo indígena no ensino no Brasil. Renata Tupinambá - Formada em jornalismo, Renata, 26 anos, é roteirista, poeta e produtora. Atua com etnojornalismo e ciberativismo indígena desde 2008 e foi uma das idealizadoras da Rádio Yandê, a primeira rádio online indígena do Brasil. Integrante do povo Tupinambá, da Bahia, participou ainda do Projeto Índio Educa, voltado a alunos e professores dos ensinos médio e fundamental. Hoje divide o tempo entre sua casa no Rio de Janeiro e uma aldeia em Mato Grosso do Sul. Fonte: Geledés – Instituto da Mulher Negra.

Filme do mês: Indígenas Digitais

Feito em formato de curta-metragem, o documentário Indígenas Digitais retrata os usos e apropriações que diferentes etnias indígenas têm feito da tecnologia. São elas: a Tupinambá (BA), a Pataxó Hahahãe (BA), Kariri-Xocó (AL), a Pankararu (PE), Potiguara (PB), Makuxi (RR) e Bakairi (MT). Celulares, câmeras fotográficas, filmadoras, computadores e, principalmente, a internet são postos em perspectiva para mostrar como os dispositivos transformaram-se em ferramentas importantes na luta por melhorias para as comunidades indígenas e nas relações destas com o mundo globalizado. No centro do debate em questão, está a subversão da ideia de que índio é aquele que vive entocado na floresta. Em Índigenas Digitais, eles assumem o papel inverso – o de protagonistas. Vistos em ação, lançando seus olhares sob sua própria realidade por meio das inovações tecnológicas, eles desafiam as regras de um mundo que insiste em querer mantê-los à margem. Com 26 minutos, o curta foi gravado em áreas dos Pontos de Cultura Indígenas na Bahia e Pernambuco e conta com a direção de Sebastián Gerlic.

Escrita pela jornalista Xenya Bucchioni, doutoranda em Comunicação na UFPE e fundadora do Mezclador, estúdio de cultura contemporânea desenhado para realizar projetos de impacto social, a coluna Mídia Alternativa aborda a produção jornalística feita à margem dos veículos tradicionais. Mensalmente, o espaço apresentará um raio-x das publicações alternativas marcantes na história do jornalismo e do país, além de entrevistas e debates.


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Jornalismo Ambiental Sociedade, natureza e mudanças climáticas Por Robério Daniel da Silva Coutinho

Desastre da Barragem de Mariana (MG) é considerado maior da história do Brasil

Lei do Licenciamento Ambiental em risco

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lgum ser humano em sã consciência ética e democrática já pensou em aprovar uma lei ambiental, ou melhor, mudar a atual lei de licenciamento ambiental brasileira, sem um amplo debate nacional, com o objetivo de promover a ausência de prevenção, mitigação e compensação de impactos decorrentes de empreendimentos, reiterar violação de direitos das populações atingidas, ampliar conflitos sociais e socioambientais e produzir uma absoluta insegurança jurídica aos empreendedores e ao Poder Público? Infelizmente, isto está em curso no Brasil, através da parceria de setores do governo central do Brasil e de grande parte do Congresso Nacional.

Com o aval positivo da Casa Civil da Presidência da República e grande apoio dos deputados ligados ao agronegócio e aos interesses da indústria, base de sustentação do governo Michel Temer, um substitutivo a um Projeto de Lei sobre o Licenciamento Ambiental (3.729/04), de autoria do deputado federal Mauro Pereira (PMDB/RS), apresenta um significativo retrocesso socioambiental e jurídico sobre esta questão. Este projeto com o referido substitutivo pode ser aprovado pelo plenário da Câmara Federal ainda este ano. E pasmem! Tudo isso sem nenhum debate, audiência pública, sessão deliberativa ou outra forma de apreciação e aprofundamento, seja por parte dos Deputados, seja por parte da sociedade nacional. Se aprovado, infelizmente, dramas humanos e problemas ambientais como os observados em Mariana (MG), considerado o maior desastre ambiental do Brasil, podem ser comuns, bem como uma


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gama de outras injustiças socioambientais que não ganham visibilidade midiática. Dentre os itens do projeto de lei sem debate, está a dispensa de licenciamento para atividades poluidoras específicas e a criação de um licenciamento autodeclaratório (só a declaração do responsável pelo empreendimento de que não causará impacto). Propõe ainda a permissão aos Estados e Municípios para flexibilizar exigências ambientais sem qualquer critério, a possibilidade de autorizações tácitas por vencimento de prazos e de suspensão de condicionantes ambientais por decisão unilateral do empreendedor e findarfaz-se necessária a responsabilidade socioambiental de instituições financeiras por atividades por elas apoiadas, dentre outras mazelas. A Coluna Jornalismo Ambiental da Revista Jornalismo e Cidadania, do Programa de Pós Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco, bem como todos integrantes da própria Revista repudiam esta tentativa de agressão à democracia sem debater um temerário projeto de lei para flexibilizar de forma ampla a lei de licenciamento ambiental, deixando assim ainda mais desprotegida toda a sociedade e o meio ambiente. Neste sentido, acreditamos que se faz necessária a mobilização de todas as pessoas conscientes da importância da preservação do meio ambiente para se associar e legitimar a atual nota de repúdio de um coletivo de importantes organizações da sociedade civil contra qualquer tentativa de aprovação do substitutivo ao Projeto de Lei n.º 3.729/2004, principalmente sem que sejam realizados debates amplos, mediante audiências públicas, com a participação dos mais diversos especialistas de diferentes setores da sociedade em relação aos complexos temas envolvidos na matéria.

Moção de repúdio da sociedade civil

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m resposta a este temerário ataque à lei de licenciamento ambiental e sem nenhum debate, um grande coletivo de importantes organizações da sociedade civil publicaram uma carta de repúdio à tamanha tentativa de retrocesso democrático e agressão à justiça socioambiental. Segue abaixo grande trecho da carta de repúdio: O Projeto de Lei n.º 3.729/2004 pretende estabelecer a nova Lei Geral do Licenciamento Ambiental, tema altamente complexo e com destacada relevância para a sociedade brasileira. Apresentado

em 15.09.2016, o substitutivo do Deputado Federal Mauro Pereira (PMDB/RS) não foi objeto de nenhum debate, audiência pública, sessão deliberativa ou qualquer outra forma de apreciação e aprofundamento. Considerando-se a recente divulgação de escândalos de corrupção para privilegiar interesses privados em detrimento de interesses públicos; a notória importância do licenciamento ambiental para todos os setores da sociedade, incluindo o papel do Poder Público no âmbito do desenvolvimento nacional; e a complexidade e profundidade dos temas envolvidos, além das diversas lições apreendidas a partir da experiência acumulada em casos práticos, é preciso que a Câmara dos Deputados esteja adequadamente apropriada das diversas facetas que a matéria apresenta, para que possa, ao final, tomar decisões acertadas, ao encontro do interesse público e do atendimento à Constituição Federal. É fundamental que haja um amplo debate nacional sobre o tema. O substitutivo apresentado pelo Deputado Federal Mauro Pereira figura, entre os textos em tramitação, como aquele que pretende impor os mais graves retrocessos à legislação atualmente em vigor, além do notável baixo nível de técnica legislativa, o que prejudica a interpretação dos dispositivos, podendo gerar insegurança jurídica e ampliação de ações judiciais. Eventual aprovação da referida proposta, ainda mais sem os imprescindíveis debates públicos, geraria inúmeras consequências negativas, como o significativo aumento de risco de ocorrência de desastres socioambientais, como o verificado em decorrência do rompimento da barragem de rejeitos em Mariana (MG), a ausência de prevenção, mitigação e compensação de impactos decorrentes de empreendimentos, a reiterada violação de direitos das populações atingidas, a ampliação dos conflitos sociais e socioambientais e a absoluta insegurança jurídica aos empreendedores e ao Poder Público.

Este espaço apresenta abordagens críticas e interdisciplinares relativas à produção da representação noticiosa da realidade social (jornalismo) sobre as mudanças climáticas e a sua influência na constituição do sentido social sobre a questão. É escrito pelo jornalista Robério Coutinho, mestre em Comunicação pela UFPE, com formação básica em Meteorologia pelo INPE/CPTEC, exassessor de imprensa do Laboratório de Meteorologia de PE, bolsista pesquisador da Rede Brasileira de Mudança Climática e autor de livros sobre o temática.


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Opinião

O Antropoceno e o Eclipse da Razão

Fonte: Photos for Class

Por Gustavo F. da Costa Lima

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s pesquisas e o debate ambiental recente têm revelado hipóteses e constatações preocupantes sobre o comportamento humano no planeta terra que ameaçam a qualidade e a perpetuação da vida como a conhecemos. A racionalidade do sistema capitalista atual em busca de produtividade e rentabilidade máximas tem imposto ao ambiente e às sociedades, em especial aos contingentes mais vulneráveis, sacrifícios crescentes que, em última instância, apontam para a insustentabilidade do modelo praticado. Para Rockstrom et. Al. (2009), os impactos ambientais da expansão econômica vêm ameaçando e, em alguns casos, ultrapassando os limites seguros do desenvolvimento humano no sistema terrestre. Os autores identificam nove fronteiras planetárias, ou limites biofísicos, das quais sete são passíveis de quantificação: mudança climática, acidificação dos oceanos; ozônio; ciclo biogeoquímico do nitrogênio e fósforo; uso de água doce; mudanças no uso da terra; biodiversidade; poluição química e concentração de aerossóis na atmosfera. Segundo os pesquisadores, desses nove limites, três já teriam sido ultrapassados que são o ciclo do nitrogênio, o referente a mudanças climáticas e às perdas em biodiversidade. Ou seja, a humanidade já entrou em uma zona de risco que ameaça a estabilidade dos ecossistemas indispensável à sobrevivência e desenvolvimento humano (ROCKSTROM, 2009; ABRAMOVAY, 2012). Em direção semelhante o especialista em química atmosférica holandês, Paul Crutzen (2002), tem

sustentado a hipótese de que o Planeta Terra, desde a Revolução Industrial, transitou gradualmente do Holoceno para a “Era do Antropoceno” dada a magnitude, escala e velocidade dos efeitos da ação humana sobre a biosfera. Ou seja, a profundidade do impacto humano sobre os ecossistemas terrestres, alterando ciclos biogeoquímicos, a composição do carbono na atmosfera, o clima global, a impermeabilização dos solos, a paisagem urbana, o leito dos rios, o estado dos oceanos e das geleiras, até então relativamente estáveis, tem resultado em consequências não apenas localizadas e reversíveis, mas sistêmicas e de longa duração no planeta Terra. Para Crutzen e pesquisadores associados, essa escalada iniciada com a Revolução Industrial, deu um novo salto significativo a partir de 1945, a chamada Era de Ouro do capitalismo, marco da expansão quantitativa mundial da produção, do consumo de massa, do consumo global de energia, em especial a matriz fóssil, da vida urbana, do comércio global, da extração de recursos naturais e da emissão de gases do efeito estufa (CRUTZEN, 2011; PÀDUA, 2015). Em 1984, a Comissão Brundtland das Nações Unidas construiu a proposta de Desenvolvimento Sustentável - DS com a intenção de substituir as promessas de Desenvolvimento Econômico, então em crise, e de responder às demandas da nova crise ambiental que o mundo começava a reconhecer. Os grandes acidentes ambientais verificados, dos quais o derramamento de mercúrio na baía de Minamata no Japão, em 1954, o acidente químico em Bhopal, na Índia, em uma fábrica da Union Carbide, em


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1984, os acidentes em usinas nucleares em Three Miles Island nos Estados Unidos, em 1979, e em Tchernobyl, em 1986, e o derramento de petróleo do navio Exxon Valdez na costa do Alasca, em 1989, são alguns casos famosos, entre tantos outros, as pressões do emergente movimento ambientalista mundial e os debates sobre os limites do crescimento, gradualmente, deslocaram as demandas ambientais para o centro da agenda política global. As experiências de Desenvolvimento econômico ao redor do mundo, desde o pós II Guerra resultaram, por um lado, em um aumento da concentração da riqueza e das desigualdades sociais e, por outro lado, numa crise ambiental de grandes proporções. Mas a proposta de DS nasceu sob o signo da conciliação e da ambiguidade porque expressava um discurso “ecologicamente correto”, sem dizer como viabilizá-lo em uma sociedade capitalista ambientalmente predatória, socialmente injusta e economicamente concentradora. A crítica à retórica do DS, então indagava: O que sustentar? A economia, o ambiente ou a democracia? Por que sustentar? Para reproduzir ou transformar o sistema vigente? Para quem sustentar? Para alguns ou para todos? E, finalmente, como sustentar? Por via autoritária ou democrática? Através do Mercado, do Estado ou da Sociedade civil? O DS também era criticado porque se apoiava, fundamentalmente em respostas econômicas e tecnológicas dentro da ordem e desprezava as dimensões ético-culturais e políticas das crises em questão (LIMA, 2003). O modelo de desenvolvimento neoliberal, que se tornou hegemônico mundialmente desde a década de 1980, produziu efeitos degradantes na relação dos humanos consigo mesmos, na relação dos humanos entre si e na relação com o ambiente. Ou seja, impactou-se, em nome de uma razão de dominação, orientada pela acumulação do capital, a saúde e integridade dos indivíduos, a expressão da solidariedade entre cidadãos numa convivência democrática e a base biofísica da sobrevivência humana. Nesse contexto de crises plurais, o que fazer? Que recursos mobilizar? Como transitar para uma sustentabilidade democrática? Ao que parece as saídas apontam, por um lado, para os movimentos de renovação da sociedade civil, já que a racionalidade do mercado não inclui o cuidado com a biosfera, com o bem estar social e com o longo prazo. O Estado, por sua vez, tem um caráter ambíguo e só atua em defesa da sociedade quando impulsionado por movimentos de transformação. Por outro lado, restam sempre os recursos à educação transformadora, à reinserção da ética nas relações sociais e à política como espaço e ação de garantia da vida e da liberdade (ARENDT, 1998). Daí a importância de acrescentar ao tradicional tripé da sustentabilidade – econômico, social e ambiental – as dimensões políticas e culturais.

Isso porque o campo da sustentabilidade, por um lado, é permeado por conflitos que tornam o recurso à política inevitável e, por outro lado, as mudança valorativas e éticas implicadas nos debates ambientais como o papel do consumo na vida contemporânea, o sentido da felicidade, o cuidado com as gerações futuras, o direito dos mais pobres ao consumo e ao espaço carbono, a simplicidade voluntária e as possibilidades do decrescimento, todas e outras mais, envolvem a dimensão cultural da sustentabilidade (NASCIMENTO, 2012) . Nesse sentido, as crises contemporâneas parecem evocar um duplo e simultâneo desafio de reconstrução nos planos micro e macro. No plano micro, trata-se de promover a reeducação dos seres humanos como seres terrestres, partes inerentes e interdependentes de seu ambiente e nesse processo restaurar o cuidado humano com o mundo social e natural. No plano macro, reflexamente, trata-se de mobilizar a luta política e cultural em defesa da vida e da vida para todos. É evidente que nessa transição vai ser necessário combinar realismo, para responder aos desafios do presente e utopia e invenção para ultrapassar os limites do instituído que já se mostram obsoletos.

Referências: ABRAMOVAY, R. Desigualdades e limites deveriam estar no centro da Rio+20. Estudos Avançados, v. 26, n. n.74, p. 21-34, 2012. ARENDT, H. O que é política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. CRUTZEN, P. J. et al, “The Anthropocene: Conceptual and Historical Perspectives”, Philosophical Transactions of the Royal Society, nº. 369, p. 847-856,  2011. CRUTZEN, P. J. Geology of mankind: the Anthropocene. Nature, v. 415, p. 23, 2002. LIMA, G. F. da C. “O discurso da sustentabilidade e suas implicações para a educação”. Ambiente & Sociedade, NEPAM/UNICAMP, Campinas, vol. 6, nº 2, jul-dez, 2003. NASCIMENTO, E. P. Trajetória da sustentabilidade: do ambiental ao social, do social ao econômico. Estudos Avançados, 26, (74), USP, 2012. Rio de Janeiro: Garamond, 2012. PÁDUA, J. A.Vivendo no antropoceno: incertezas, riscos e oportunidades. In: Oliveira, L. A. Museu do amanhã. Rio de Janeiro : Edições de Janeiro, 2015. ROCKSTRÖM, J. et al. Planetary boundaries: Exploring the safe operating space for humanity. Ecology and Society, v. 14, n. 2, 2009.

Gustavo F. da Costa Lima é professor do Departamento de Ciências Sociais e do PRODEMA, ambos da UFPB. E-mail: gust3lima@uol.com.br


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Comunicação Pública Informação, diálogo e participação Por Ana Paula Lucena

Entrevista com Marco Zero Conteúdo Marco Zero Conteúdo, um coletivo de jornalismo investigativo, luta por uma sociedade mais justa, na defesa de um Estado Democrático de Direito, e fomenta debate sobre o futuro e as melhores práticas do jornalismo. Seu trabalho jornalístico está centrado em três aspectos principais: semiárido nordestino, urbanismo e relações de poder. Integrantes do coletivo compartilharam mais detalhes referentes à prática do jornalismo independente. JeC: Quais foram as inquietações que motivaram a criação do coletivo Marco Zero Conteúdo? Marco Zero: A Marco Zero foi fundada por sete jornalistas. Todos experientes e com passagens importantes por diversos veículos da mídia corporativa ou tradicional. Além dos motivos e projetos pessoais, pelo menos dois pontos serviram como base comum para a construção de um projeto coletivo. O primeiro deles foi a crença de que o jornalismo tem um papel fundamental na luta por uma sociedade mais justa e na defesa de um Estado Democrático de Direito. Ou seja, nós continuávamos e continuamos - acreditando no jornalismo. O segundo ponto foi a convicção de que o jornalismo - como acreditamos e julgamos necessário para a sociedade - não acontece mais dentro da mídia tradicional. De que o caminho para esse jornalismo passa por fora do que chamamos de grande imprensa. Esses dois pontos, se pudermos simplificar todo o processo de criação da Marco Zero, nos levaram a acreditar que era possível (e necessário) criar novas formas de se fazer um jornalismo sustentável, independente e de qualidade. JeC: Qual é a contribuição do jornalismo independente para o fortalecimento da democracia? Marco Zero: O jornalismo fortalece a democracia quando cumpre a função social de chamar a atenção para as injustiças, cobrar dos políticos e empresas as promessas e obrigações assumidas, expor a corrupção, informar cidadãos e consumidores, dar informações relevantes para organizar a opinião pública, elucidar temas complexos e esclarecer divergências. A Marco Zero Conteúdo acredita que o jornalismo só pode cumprir sua função social quando é exercido com independência política e finan-

ceira. Para afirmar esse compromisso de independência, criamos um modelo de negócio sem fins lucrativos e que não aceita patrocínio de governos ou empresas privadas. Num país marcado pela concentração da propriedade dos meios de comunicação, o jornalismo independente oferece pluralidade de opiniões e quebra o discurso hegemônico da grande mídia, que se retroalimenta. Qualificar o debate público, tirar atores importantes da sociedade da invisibilidade e fazer uma cobertura efetiva do Poder têm marcado no Brasil e no mundo a atuação do jornalismo independente. JeC: O Marco Zero tem o compromisso de colaborar com o desenvolvimento do Ecossistema da Informação. O que significa essa expressão? Marco Zero: A chamada indústria jornalística vem passando por uma profunda crise. São problemas complexos, que afetam decisivamente o modelo de negócio baseado na produção de conteúdo, comercialização de publicidade, venda de assinaturas e, principalmente, na distribuição do produto. O monopólio, que pertencia a essa indústria jornalística, deixou de existir. Muito disso aconteceu por conta do barateamento da produção e distribuição de conteúdo pela Internet, que colocou em xeque a fórmula tradicional da indústria de comunicação. O modelo de negócio do jornalismo industrial pode ter morrido. Mas o jornalismo não. O espaço que era da “grande mídia” começa a ser ocupado por novos “jogadores” que atuam em um novo ambiente e com uma nova dinâmica. É esse novo ambiente, por falta de um termo melhor, que nós da Marco Zero chamamos de “ecossistema da informação”. Embora já comece a funcionar como uma rede colaborativa, esse novo ecossistema é marcado pela diversidade de abordagens editoriais, de estilos, de estruturas e de modelos de negócio. Mas traz também algumas características em comum entre seus participantes. Além de serem praticamente todos “nativos” da internet, de nascerem de projetos coletivos e manterem a independência em relação ao poder econômico e político, todas as iniciativas se apresentam como alternativa à grande mídia. Não apenas como contraponto ao conteúdo gerado pela mídia tradicional, mas como produtoras de novos conteúdos. São inovadoras. JeC: Quais tem sido os obstáculos enfrentados para por em prática o jornalismo essencialmente cidadão e comprometido com a melhoria direta de vida da população?


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Marco Zero: O maior desafio é criar e administrar um modelo de negócio que, sem comprometer a independência editorial, garanta o crescimento sustentável do “empreendimento”. É fundamental que iniciativas de jornalismo independente se profissionalizem e se institucionalizem para que possam produzir conteúdo de qualidade e também sejam mais do que meros projetos pessoais. O engajamento do público é fundamental para dar sustentabilidade financeira a esses novos projetos por meio de crowfounding ou pagamento de assinaturas virtuais. Pretendemos, agora em 2017, produzir campanhas permanentes que incentivem nosso público-leitor a apoiar financeiramente a Marco Zero Conteúdo. Se, por um lado, não temos no Brasil essa cultura da doação, por outro, isso começa a mudar rapidamente. Já são várias as iniciativas de produção de conteúdo bancadas pelos internautas. Outro obstáculo é a reação de quem é beneficiado, direta ou indiretamente, pelo modelo de jornalismo praticado pela mídia corporativa. Estamos falando de politicos, setores da burocracia estatal, grandes empresas privadas. Ou seja, as fontes acostumadas às mesmas abordagens viciadas e acríticas da grande mídia. Essa reação pode se dar em vários níveis. O primeiro nível, geralmente no início do processo, é a tentativa de “invisibilização” dos novos meios de comunicação. É quando, por exemplo, a fonte ou instituição não responde aos questionamentos da reportagem ou não convida para entrevistas, não credencia para eventos oficiais etc. A ideia aqui é matar a mídia independente por inanição. Já o segundo nível é o da desconstrução. Acontece quando não dá mais para a parte envolvida ignorar quem produz o jornalismo independente porque ele já alcançou um público cativo e ela começa a falar mal, difamar, alegar vinculações políticas etc. O intuito é ferir a credibilidade desses novos veículos. No terceiro nível começa a batalha financeira. É quando a parte envolvida, por exemplo, tenta pressionar patrocinadores a não anunciarem ou entra na Justiça exigindo indenizações milionárias com o objetivo de inviabilizar a iniciativa que pratica o jornalismo independente. Já há vários casos desses tipos ocorrendo no Brasil. Mas eles não vão conseguir silenciar o jornalismo independente. Esse é um caminho sem volta. JeC: Diante de inúmeras diferenças entre o jornalismo praticado pela grande mídia e o desenvolvido por coletivos de jornalismo independente, quais são os aspectos menos percebidos pela população e que mais ferem os direitos humanos? Marco Zero: Além de tudo que já falamos anteriormente, existe um aspecto da grande mídia muito nocivo para a sociedade e, ao mesmo tempo, pouco percebido pela maioria das pessoas: nossos jornais são, de maneira geral, feitos para uma classe média formada por pessoas eli-

tistas, excludentes, preconceituosas, superficiais, racistas e machistas. O resultado disso é que as reportagens não dão visibilidade às minorias e valorizam apenas quem tem poder econômico. Isso se reflete desde a escolha das fotos da capa ou dos entrevistados (“gente feia não entra”) até manchetes do tipo “Menor mata adolescente”, quando se refere a um menino pobre que assassinou um jovem rico. Coisas desse tipo, repetidas exaustivamente todos os dias, causa um mal imensurável. Como reflexo dessa cobertura enviesada, há a invisibilização ou a criminalização de setores importantes da sociedade por essa grande mídia, como ocorre com os movimentos sociais. Podemos dar como exemplo recente, a criminalização das ocupações estudantis em todo o país contra a PEC 55 que congela por 20 anos os gastos com saúde e educação. Há quase que um processo de “novelização” do jornalismo, separando os atores da vida nacional entre mocinhos e bandidos, terreno ideal para toda sorte de manipulações: abordagem superficial de temas complexos, satanização da política, fortalecimento de estereótipos e interdição de debates que questionem o poder hegemônico, como por exemplo o monopólio dos meios de comunicação exercido pela grande mídia e que fere o direito à informação de qualidade a amplos setores da sociedade brasileira. JeC: O Coletivo abre espaço para narrativas denominada “histórias bem contadas”. Qual foi a que mais impressionou e por que? Marco Zero: Usamos a expressão “histórias bem contadas” para ressaltar a importância da qualidade na construção de uma narrativa jornalística. Isso, claro, passa por um bom texto. E um bom texto implica no uso correto do idioma, no estilo atraente, na apuração precisa das informações, na verdade dos fatos narrados e também na qualidade da apresentação das reportagens. Dentro deste contexto, a Marco Zero contou boas histórias nestes quase 18 meses de existência. Simbolicamente, seria importante destacar a nossa primeira reportagem “O Recife tem dono?”. O texto que explicita a influência do mercado imobiliário no planejamento da cidade, além de bem apurado e construído, foi um sinal claro da linha editorial que seguiríamos. Outro exemplo foi a série de reportagens sobre a pressão do governo militar para evitar que Dom Hélder recebesse o Prêmio Nobel da Paz no início dos anos 1970. Nestas reportagens, relatamos a troca de cartas entre diplomatas brasileiros que revelavam as estratégias da ditadura para manchar a reputação internacional do então Arcebispo de Olinda e Recife, principal denunciador das torturas e arbitrariedades do regime de exceção instalado no Brasil. JeC: Recentemente, o Marco Zero trabalhou 76 dias na equipe Truco Eleições 2016 checando as declarações dos candidatos a prefeito do Recife com o intuito de verifi-


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car sua veracidade. Como as descobertas contribuiriam para qualificar o debate político e formar juízo de valor? Marco Zero: A Marco Zero Conteúdo foi convidada a participar desse projeto pela Agência Pública, de São Paulo. Um dos mais antigos e bem sucedidos grupos de jornalismo independente do país. Ao todo, cinco estados se integraram ao fact-checking das falas dos candidatos: São Paulo, Rio de Janeiro, Belém, Belo Horizonte e Recife. No Recife, nós da Marco Zero fizemos 72 checagens de 56 temas distintos, entre mobilidade urbana, meio ambiente, saúde, educação, habitação, legislação eleitoral e tantos outros. Assim como no jogo que deu nome ao projeto, classificamos as declarações dos candidatos em “blefe” (quando a informação era totalmente falsa) até o “zap” (quando ela era verdadeira). Entre as duas os candidatos também podiam receber as cartas “Tá certo, mas peraí” (quando faltava contexto à fala) ou “Não é bem assim” (nos casos de exagero e distorção dos fatos). O projeto contou com a participação de duas estudantes na equipe, numa parceria da Marco Zero Conteúdo com o Departamento de Comunicação Social da UFPE, integradas ao Projeto de Extensão Jornalismo e Cidadania. A experiência foi fundamental para verificarmos na prática o que já intuíamos: a preponderância do jornalismo declaratório na mídia pernambucana. Como os políticos falam o que querem e os jornalistas publicam automaticamente suas falas sem a checagem das informações. Esse jornalismo imediatista e superficial desqualifica o debate público e eleitoral, fornecendo ao leitor/eleitor informações imprecisas e até falsas que, no fundo, vão mais prejudicar do que auxiliar seu julgamento politico. Foi justamente aí que o projeto Truco Eleições 2016 teve uma participação diferenciada no quadro do jornalismo politico local: checando minuciosamente os dados das declarações dos candidatos e expondo suas contradições, erros e acertos. Percebemos, inclusive, que muitos deles, depois das checagens, retiraram informações incorretas dos seus sites, dos programas eleitorais e fizeram adaptações nos seus discursos. Todos, à exceção do candidato à reeleição Geraldo Julio, responderam a nossos questionamentos quando pedimos mais esclarecimentos sobre propostas de campanhas que nos pareceram mal explicadas e incompletas. O trabalho de checagem de informações e do jornalismo de precisão veio para ficar no Brasil. Já há várias experiências do tipo sendo produzidas em vários estados. Está é talvez, hoje, uma das contribuições mais visíveis do jornalismo independente à qualificação do debate público no país. JeC: Olhando dez anos para frente, o que o jornalismo não mais poderá negligenciar? Marco Zero: O jornalismo passa por um processo de transformação profunda, veloz e intensa. Olhar para um horizonte de 10 anos parece muito distante. Mas com

certeza, daqui a uma década ou daqui a um ano o jornalismo não poderá negligenciar o que, a bem da verdade, jamais deveria ter negligenciado: produzir reportagens aprofundadas, independentes e de interesse público. JeC: As escolas, sejam elas públicas ou privadas, podem ensinar os estudantes a fazerem uma leitura crítica da mídia? O que o Marco Zero Conteúdo pensa a respeito? Marco Zero: Sem dúvida. A escola deve ser um ambiente de fomentação do pensamento e de análises críticas. Isso é fundamental para formarmos cidadãos e não meros consumidores. A leitura crítica da mídia se insere neste contexto. Num mundo onde a cada dia somos submetidos a uma infinidade de informações das mais diversas fontes, ter a capacidade de avaliar contextualização, embasamento e o nível de credibilidade das notícias é essencial para o exercício pleno da cidadania. Esse é um aprendizado que deve começar na escola e ser contínuo. E mais do que isso: os jovens devem ser estimulados não só a “ler criticamente a mídia”, mas também a produzir sua própria mídia, refletindo a realidade social e política que vivenciam no seu dia a dia. Aprender a apurar uma informação, checar e cruzar dados e a transmiti-los de uma forma compreensível e atraente. Não como um incentivo a que sigam a profissão de jornalista no futuro, mas porque é preciso que aprendam desde cedo a serem responsáveis pelas informações que farão circular em suas páginas no facebook, twitter e outras redes sociais. Repetimos, estamos falando em formar cidadãos e não meros consumidores de produtos e reprodutores acríticos de ideias alheias. Temos que admitir que essa não é uma tarefa fácil porque ela fere os interesses de controle da opinião pública forjados pela grande mídia e o grande capital. Mas, essa discussão precisa ser enfrentada. Quando defendem uma escola sem partido estão defendendo de fato uma escola sem pensamento crítico, que vai gerar um leitor/eleitor conformado e pouco contestador. JeC: Como o cidadão pode apoiar o jornalismo independente, investigativo e de interesse público? Marco Zero: Interagindo e ajudando a financiar as iniciativas que promovam este tipo de jornalismo.

Ana Paula Lucena é professora da Faculdade Senac Pernambuco, membro do Fórum Pernambucano de Comunicação (FOPECOM) e doutoranda do PPGCOM/UFPE. A coluna é um espaço que aborda questões relativas a como órgãos públicos e entidades de movimentos sociais vêm se comunicando com a sociedade.


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No Balanço da Rede Jornalismo em tempos conectados

Fonte: Divulgação JDM 2016

Por Ivo Henrique Dantas

Jornalismo: Entre o presente e o futuro

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Universidade da Beira Interior, em Portugal, recebeu, no último mês de novembro, a terceira edição do Congresso Internacional de Jornalismo e Dispositivos Móveis (JDM 2016). Ao longo de dois dias, jornalistas, pesquisadores e estudantes tiveram a oportunidade de discutir o cenário atual do jornalismo online e suas perspectivas futuras. Em pauta, as mudanças estruturais pelas quais o jornalismo vem passando ao longo das últimas décadas. A partir do acesso através de dispositivos móveis, a navegação na rede passa a ser possível a partir de praticamente de qualquer lugar. Tablets e smartphones possibilitam um desprendimento cada vez maior dos limites impostos por tecnologias centradas em grandes equipamentos e cabos de telefonia, como era comum ao longo da Web 1.0 e início da Web 2.0. Tais mudanças foram discutidas em artigo apresentado pelos pesquisadores Ivo Henrique Dantas (autor desta coluna) e Heitor Rocha (editor da JeC),

tendo como pano de fundo o portal NE10, do Sistema Jornal do Commercio de Comunicação (SJCC). A abertura do evento contou ainda com uma palestra do professor espanhol Ramon Salaverría, que levantou questionamentos e propôs reflexões acerca das mudanças que as novas tecnologias, como smartwatches e smartcars, irão ocasionar no jornalismo. “Como lidar com o futuro, quando os jornalistas parecem ainda não entender sequer o presente” me parece ser a pergunta a ser respondida ao longo dos próximos debates. A batalha pelo papel do jornalismo dentro das democracias ocidentais parece estar longe do fim. E as mudanças tecnológicas apenas servirão para aumentar a necessidade de respostas para esses questionamentos. Escrita pelo jornalista Ivo Henrique Dantas, doutorando em Comunicação na UFPE, a coluna No Balanço da Rede aborda o cenário das mídias digitais, com foco no debate acerca dos impactos na produção jornalística voltada para o meio online e o papel do webjornalismo na construção social da realidade.


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Mídia Fora do Armário Jornalismo e construções identitárias Por Rui Caeiro

Entrevista com Soraya Barreto: “Há um claro silenciamento sobre os movimentos e uma escolha de lados. A mídia parece ignorar o que está acontecendo” Publicitária, professora e pesquisadora do Departamento de Comunicação da UFPE, Soraya Barreto tem como temas de trabalho os Estudos de Gênero, Feminismos, Masculinidades, Futebol, Publicidade e Mídia. Com isso em mente, a JeC convidou a também coordenadora do GT Comunicação e Gênero da Redor (Rede Feminista Norte e Nordeste de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher e Relações Gênero) e do OBMIDIA UFPE para falar sobre os cruzamentos entre capitalismo, colonialismo e patriarcalismo, bem como para pensar caminhos de resistência na/para a mídia. JeC: Vários trabalhos de investigação (por exemplo, de Boaventura de Sousa Santos) apontam a necessidade de percebermos as sociedades atuais como sendo trespassadas pelo capitalismo, colonialismo e patriarcalismo. Como podemos perceber as relações e atuações entre esses três sistemas no Brasil? Soraya Barreto: Temos que entender o colonialismo como um fenômeno e conjunto de atitudes que culminam na dominação política, econômica, cultural e territorial de um país estrangeiro sobre outro povo durante um prolongado espaço de tempo. É possível afirmar que o colonialismo enquanto fenômeno antecede o capitalismo enquanto sistema econômico mundial, entretanto esses fenômenos “se acompanham” enquanto processo político em suas diferentes fases de desenvolvimento. O processo de acumulação primitiva e as relações de produção fizeram com que o capitalismo fosse possível

enquanto modo de produção durante o período da expansão europeia no século XVI e, portanto, o colonialismo seria o seu componente central. Nesse âmbito, o capitalismo ampliou sua estrutura penetrando nas relações coloniais e nas formas de sociabilidade e cultura, no estilo de vida, relações comerciais, num intenso processo de naturalização na história das diferentes sociedades. Já o patriarcado enquanto fenômeno de construção de uma organização social que beneficia o homem, admite a dominação e exploração das mulheres. Para algumas autoras, como Heleieth Saffioti, não existe separação entre dominação patriarcal e exploração capitalista, esses sistemas perpassam a estrutura social, no qual ocorrem todas as relações sociais e de poder. A estrutura de poder patriarcal foi absorvida pela sociedade de forma geral, seja na religião, em casa, pelo estado, no trabalho e pela cultura e é aqui que o colonialismo se mistura com o patriarcado e o capitalismo. Com base nessa estrutura, toda a esfera social é perpassada pela oposição binária entre homens e mulheres, pelos processos de dominação, hierarquização e de poder, igualmente influenciados pelos processos de dominância colonialistas. Eunice Durhan em seu trabalho sobre a família e reprodução humana advoga que a industrialização e o surgimento do capitalismo separaram de forma radical a “produção” da “reprodução”, em duas esferas distintas e hierarquizadas. A esfera da “reprodução” naturalizou o isolamento feminino no espaço doméstico (privado). No espaço de “produção”, e portanto, público, a mulher foi silenciada e excluída por muito tempo, depois explorada com mais horas de trabalho que valiam (e ainda vale) muito menos do que a dos homens e após o processo de conquistas por direitos e emancipação, o próprio capitalismo inclui a mulher, no entanto num processo de desigualdade e opressão propiciado pelo patriarcado e por uma cultura colonialista que, em geral, é igualmente engendrada pelo patriarcalismo. A mídia começou a agendar no Brasil o golpe institucional desde que a direita perdeu a eleição para Dilma. O golpe foi jurídico e misógino, especialmente reforçado pelo seu caráter midiático quando as empresas de comunicação, especialmen-


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te a Rede Globo, se aproveitaram da perda de privilégios de alguns que estabeleceram um levante e instauraram um sentimento de que o Brasil tinha “acordado para as injustiças sociais e a corrupção”, crimes de corrupção atribuídos ao governo do Partido dos Trabalhadores. JeC:Atualmente, será difícil conceber ‘a grande mídia’ brasileira como resistente às formações capitalistas+colonialistas+patriarcais que moldam as relações sociais, concorda? Como/porque isso acontece? SB: No caso da grande mídia brasileira esses modelos modernos de dominação são constantemente reiterados e reproduzidos e, por isso, sim, concordo que não há resistência a esses modelos. Pelo contrário, ao meu ver, há um reforço. Há um claro silenciamento sobre os movimentos e uma escolha de lados. A mídia parece ignorar o que está acontecendo (de cunho ideológico). Isso acontece porque os conteúdos produzidos pelos meios de comunicação de massa são veiculados para a população com o objetivo de formar a chamada “opinião pública”. A construção dessa opinião está de acordo com os interesses econômicos e políticos de um grupo social muito específico e de empresas de comunicação que dominam a mídia no Brasil. Basta pensar nas horas de transmissão ao vivo da “condução coercitiva do Lula” e toda espetacularização da mídia e o silenciamento das ocupações até a chegada do ENEM. JeC: Apesar das novas formas de socialização e obtenção de informação, possibilitadas pelos avanços tecnológicos, a mídia ainda ocupa um papel central nos diversos sistemas políticos ao redor do globo. Qual o caminho para uma mídia mais democrática (não apenas do ponto de vista legislativo, mas da identidade da profissão)? SB: Diante do comportamento e estratégias de manipulação da grande mídia, que evidencia a ausência de um debate plural e efetivamente democrático nos diferentes espaços de formação da opinião pública, se tornou imperativa a necessidade de um novo marco regulatório para o setor da comunicação. A saída para uma mídia mais equânime e plural é a regulamentação da mídia. A mídia tem um caráter pedagógico segundo Guacari Lopes Louro, nesse sentido o processo de formação dos futuros profissionais e do espectador será efetivamente mais democrático com uma mídia plural. Quando o tema é regulamentação da mídia, se faz necessário primeiramente lembrar que os

meios de comunicação, especialmente de radiodifusão, são um serviço de concessão pública, como em muitos casos o de saúde, educação, transporte, segurança, entre outros. A ideia de um conjunto de regras no uso dessa concessão pública se mostra fundamental em função do impacto social que os discursos e ações dos meios de comunicação de massa possuem e, ainda, tendo em vista sua centralidade na veiculação de informações, difusão de culturas, formação de valores e da opinião pública. Trata-se de direito previsto na Constituição Federal de 1988. Diferente dos demais sistemas de concessão, vários pontos do texto constitucional ainda não foram regulamentados, o que dificulta a execução e fiscalização desse serviço pela sociedade civil e órgãos cabíveis. É pertinente salientar que a regulação não configura censura, mas a percepção de que uma concessão pública tem que comunicar com responsabilidade e respeito aos direitos humanos. A ideia de regulamentação perpassa a ideia de uma construção coletiva de um conjunto de regras que ressaltam os deveres da mídia em relação a democracia e aos direitos humanos. Outro processo importante é a formação mais ética e humana de comunicólogos (as), jornalistas, radialistas e publicitários(as). Uma formação que ensine o(a) aluno(a) a pensar criticamente nas questões dos direitos humanos, no respeito à diversidade e a pluralidade de gênero, raça/etnia, culturas, individualidades etc. Vivenciamos uma construção extremamente tecnicista e mercadológica em vários cursos de comunicação no Brasil, com disciplinas que só visam o mercado de massa. No entanto, o nome do curso de comunicação no Brasil é “Comunicação Social” e, portanto, visa um processo de ensino/aprendizagem que vise uma comunicação que dialogue com a sociedade, com a cultura e não apenas com o mercado e o capital. A inclusão de mais propostas das Ciências Sociais e Humanas nas disciplinas com o intuito de construir uma educação mais crítica e fundamentada em detrimento de conhecimento técnico e de ferramentas que mudam com cada nova tecnologia que surge e que se aprende praticando.

Assinada pelo jornalista Rui Caeiro, mestre em Comunicação pela UFPE, a coluna ambiciona instigar reflexões que se debrucem sobre as relações que se estabelecem entre produção midiática/jornalística e a construção e vivência de identidades consideradas abjetas em nossa sociedade. O foco será em sexualidade e gênero.


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Opinião

Crônica de um Golpe Anunciado Por Mariana Vazquez

O

s governos da Argentina, Paraguai, Uruguai e de fato do Brasil anunciaram sua decisão de estabelecer em relação com a Venezuela “a cessação do exercício dos direitos inerentes à sua condição de Estado Parte (...) até que os Estados Partes signatários do Tratado de Assunção (os assinantes) convencionem com a República Bolivariana da Venezuela as condições para restabelecer o exercício de seus direitos como Estado Parte”. Esta decisão, motivada na intolerância política destes quatro países a partir de suas diferenças com a Venezuela sobre os objetivos do projeto de integração e suas políticas, está sendo levada adiante violando de maneira flagrante e sistematicamente o direito do bloco, gerando um grave precedente na região em vários aspectos caros a nossa história política. Para uma maior compreensão das motivações profundas desta decisão que, dado o princípio do consenso, que rege a definição das políticas e a aprovação das normas do Mercosul, a Venezuela é hoje o único obstáculo de peso, interno ao bloco, ao projeto de restauração conservadora e neoliberal protagonizado pelos governos da Argentina e Paraguai, e de fato do Brasil. O novo consenso hegemônico também é compartilhado pelo Uruguai que busca converter o Mercosul num esquema de integração “flexível”, estruturado em torno do livre comércio, a partir do desmantelamento dos mecanismos que, na última década, buscaram promover a integração produtiva, a criação de emprego regional e a inclusão social, e inclusive aqueles estabelecidos pelo Tratado de Assunção que deu origem ao bloco, como a tarifa externa comum ou a política comercial comum. O Uruguai apresentou este ano uma proposta de flexibilização do Mercosul que, se aprovada, terminaria com a obrigação de negociar conjuntamente com terceiros países e blocos. Vários governos têm expressado o desejo de desafiar a Aliança do Pacífico e têm colocado ênfase numa inserção comercial baseada na assinatura de acordos de livre comércio bilaterais, com países inclusive como os Estados Unidos e a China, com os quais a assimetria de desenvolvimento é tão evidente como devastadoras as consequências destes acordos nos termos em que se negociam. Sim, como demonstram a experiência histórica de nossa região e alguns casos atuais, as consequências de um projeto deste tipo não podem ser nada

mais do que um maior subdesenvolvimento e exclusão; agrava profundamente a situação o fato de que a pretendida suspenção da Venezuela, que deixaria via livre para que o Mercosul tome este caminho, seja levada adiante violando o coração do direito do bloco. Caminho sinuoso As tentativas de suspender a Venezuela do Mercosul e, assim, anular seu poder de veto nas decisões do bloco não começaram em 2 de dezembro de 2016. As primeiras declarações nesse sentido foram feitas pelo presidente argentino Mauricio Macri, na última Cúpula de Chefes de Estado. Em maio deste ano, o governo do Paraguai convocou uma reunião extraordinária para avaliar a situação da Venezuela com vistas a aplicar o Protocolo de Ushuaia sobre o Compromisso Democrático a este país, buscando sua suspenção. O paradoxo desta convocação é que o Paraguai não ratificou o Protocolo de Montevidéu (Ushuaia II), que reforça o espírito daquele, e que tem sido ratificado pela República Bolivariana de Venezuela. Esta convocação vai em linha com a também frustrada estratégia de invocar no caso da Venezuela a Carta Democrática Interamericana. No contexto de crescente intolerância política se negou a Venezuela “de fato” a condição de Estado Parte e o legítimo direito ao exercício da presidência pro tempore do bloco, a partir da finalização do exercício da mesma por parte do Uruguai, em julho. As declarações públicas dos chanceleres do Brasil e Paraguai, baseadas inicialmente no questionamento à “qualidade moral” da Venezuela e de seu governo para estar a cargo no Mercosul, evidentemente, não tem nenhuma validez jurídica. A partir daquele momento, os governos da Argentina e Paraguai, e de fato do Brasil, começaram a declarar que existia uma vacância na presidência pro tempore do Mercosul, vacância que eles mesmos buscaram criar. Esta paralisia do bloco motivou inclusive uma declaração unânime do plenário do Parlamento do Mercosul, quer dizer, de todas as forças políticas ali representadas, inclusive as hoje oficialistas, solicitando aos governos “(...) normalizar de maneira imediata o funcionamento do Mercosul, em estrito cumprimento à normativa correspondente.” A decisão de 2 de dezembro de suspender a Ve-


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nezuela tem como antecedente a “Declaração Conjunta relativa ao funcionamento do Mercosul e ao Protocolo de Adesão da República Bolivariana da Venezuela”, assinada pelos chanceleres da Argentina,Brasil, Paraguai e Uruguai em setembro. Se trata, novamente, de uma declaração que coloca uma camada a mais de maquiagem jurídica a uma decisão já tomada. Nela, estes países, “verificado o incumprimento por parte da República Bolivariana da Venezuela do acordado no Protocolo de Adesão quanto à adoção do acervo normativo vigente do Mercosul” e em função de que entendem “necessário assegurar o funcionamento do Mercosul”, estabelecem uma implícita condução colegiada das questões que consideram essenciais, isto é, das questões comerciais com especial ênfase nas negociações para o livre comércio com a União Européia, e dando um prazo até 1º de dezembro a Venezuela para, no caso de verificar-se o “incumprimento”, proceder, então, o fim dos direitos. Duplo padrão A Venezuela incorporou, em quatro anos, 90 por cento da normativa derivada do Mercosul vigente em 2012, quando se deu a sua incorporação. A média de notificação de incorporação normativa deste país supera de fato à do resto dos Estados Partes do Mercosul nos 25 anos que tem o processo de integração. Como exemplo, o Brasil demorou 5 anos para internalizar o Protocolo de Assunção sobre o compromisso com a Proteção e Promoção dos Direitos Humanos do Mercosul, e ainda não internalizou a norma que cria o Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos do bloco, aprovada em 2009. A não aprovação destes instrumentos, tão caros para a garantia e promoção de direitos, foi de responsabilidade da oposição no Congresso aos governos Lula da Silva e Dilma Rousseff, comprometidos com eles, oposição que hoje se encontra governando de maneira ilegal e ilegítima o país e busca suspender a Venezuela com o argumento da “não incorporação”. É preciso assinalar novamente que a Declaração mencionada não tem validade jurídica e sua implementação na pretendida suspenção, viola o direito do Mercosul em vários aspectos. Em primeiro lugar, a Venezuela é Estado Parte desde a entrada em vigor do Protocolo de Adesão. O dito protocolo e os demais instrumentos jurídicos do bloco não estabelecem a possibilidade de aplicar nenhuma sanção ante o suposto incumprimento dos requisitos de adesão, nem condicionam o gozo de direitos e menos ainda o estatuto de Estado Parte. Em segundo lugar, se viola a norma do consenso estabelecida no Tratado de Assunção e no Protocolo de Ouro Preto, parte do direito originário do bloco.

O adotado na dita declaração, então, não é mais que um conjunto de afirmações de quatro governos (se bem que o Uruguai se absteve, não obstaculizou o denominado consenso) e não conta com o consenso em que disse fundar-se, porque a Venezuela não estava presente tampouco, nem votou. O protocolo de Adesão estabelece que tal processo se desenvolverá de forma progressiva sob os princípios de graduação, flexibilidade e equilíbrio, assim como que as diferenças acerca da interpretação do mesmo e em relação com a questão de adequação normativa serão dirimidas entre as partes e que estas se comprometem a realizar as modificações à normativa do Mercosul necessárias para a aplicação do Protocolo. Por trás destes acordos está o princípio da boa fé, manifestado na incorporação recorde da normativa do bloco por parte da Venezuela e na notificação recente do governo deste país acerca de estar em condições de internalizar o Acordo de Complementação Econômica Nº 18, instrumento importante para o esquema de integração. Estes princípios não têm sido respeitados pelos autodenominados “Estados signatários”, categoria que não existe no direito do Mercosul, cuja definição e ações têm impedido qualquer possibilidade de diálogo no espaço comum. O mesmo plenário do Parlamento do Mercosul, na declaração unânime mencionada, insta aos governos a “canalizar suas diferenças e controvérsias através dos mecanismos institucionais previstos na normativa”. Tem havido manifestações de atores relevantes, como a Coordenadora de Centrais Sindicais do Cone Sul ou os movimentos sociais em geral, em prol de uma volta atrás nesta definição, que implica uma balcanização que debilita a nossa região num mundo em que a acumulação política e econômica se dá sem dúvida em espaços ampliados, assim como um retrocesso sem precedentes em termos da integração, da democracia e da consolidação do espaço sul-americano como uma zona de diálogo e paz. Este artigo foi originalmente publicado no periódico argentino Página 12, em 11 de dezembro de 2016. Mariana Vazquez é professora da Universidade de Buenos Aires – UBA e cientista política. Foi coordenadora da Unidad de Apoyo a la Participación Social del MERCOSUR até 2016 e coordenadora geral da Casa Patria Grande “Presidente Néstor Carlos Kirchner” - Secretaría General de la Presidencia de la Nación Argentina (2011-2012). E fez parte do Gabinete da Subsecretaría de Integración Económica Latinoamericana y MERCOSUR - Ministerio de Relaciones Exteriores (2012-2013).


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Jornalismo Independente Jornalismo e financiamento coletivo

Fonte: Antonio Augusto/ Câmara dos Deputados

Por Karolina Calado

Mídia, narrativa e poder: algumas considerações

N

o Brasil, 2016 fecha com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff e a aprovação em segundo turno do Projeto de Emenda Constitucional (PEC 55) que reza sobre o teto dos gastos públicos (propondo o congelamento dos gastos em saúde e educação por um período de 20 anos) e, ainda, uma forte articulação para aprovação da PEC 287/16 que trata da reforma da previdência. Portanto, um saldo político exacerbadamente negativo. O impeachment se concretizou graças ao apoio da grande mídia. A PEC 55 e a PEC 287 estão a ponto de se consolidarem graças, novamente, à forcinha da mídia hegemônica. Inúmeras são as reportagens sobre a necessidade da limitação dos gastos e reforma da previdência em prol do bem da economia do país. Já vídeos como o da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip), https://www.youtube.com/ watch?v=cz6xBUkujD0, que denunciam a farsa do “rombo” da previdência devido aos gastos com aposentadorias, têm pouco ou quase nenhuma repercussão na grande mídia. Nesse vídeo citado, há a afirmação de que o rombo não está na previdência e, sim, nos bilhões que deixam de ser arrecadados todos os anos por conta de política de incentivo às empresas (anualmente, 69,7 bilhões deixam de ser pagos). O buraco no orçamento também aumenta devido aos desvios de recursos para pagamento da divina pública (63 bilhões). A previdência, a saúde e a assistência social fazem

parte da Seguridade Social. Esta, por sua vez, não possui recursos de caridade, mas de diversas fontes de financiamentos, segundo o Artigo 195 da Constituição Federal: “a seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”. Ao tentar mostrar que o vídeo da Anfip possui um conteúdo duvidoso, o site Uol desenvolve uma matéria tendenciosa cujo título é “Vídeo nas redes diz que rombo na Previdência é farsa; será mesmo?” http:// economia.uol.com.br/noticias/redacao/2016/12/08/ video-nas-redes-diz-que-rombo-na-previdencia-e-farsa-sera-mesmo.htm. As distorções midiáticas não foram diferentes em todo o processo que culminou no impeachment da presidente Dilma Rousseff. Na grande narrativa construída, a corrupção tinha nome e formato de pessoa, era preciso derrubar o governo da corrupção para que a honestidade voltasse a habitar na política brasileira. Posicionamento contrário ao da grande mídia podemos observar nas reportagens da mídia independente. Em prol dos trabalhadores e dos apelos das demandas sociais, os veículos independentes procuram humanizar suas reportagens ao retratar as histórias pessoais do povo, é o caso dos veículos: Jornalistas Livres (https://jornalistaslivres.org/), a Ponte Jornalismo (http://ponte.cartacapital.com.br/) e Aos Fatos (https:// aosfatos.org/). O Aos Fatos, por sua vez, busca checar as falas das personagens envolvidas para identificar as mentiras, as verdades ou os exageros, prestando, assim, um grande serviço à população por indicar a aproxi-


Fonte: Rovena Rosa / Agência Brasil

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mação da veracidade dos fatos. As propostas da Ponte Jornalismo e Jornalistas Livres são voltadas aos temas dos direitos sociais. O texto “A PEC 55 é uma burrice”, https://jornalistaslivres.org/2016/12/pec-55-e/, no site Jornalistas Livres, esclarece como essa PEC é excludente, antidemocrática, desumana, entre outros aspectos negativos, buscando ressaltar os malefícios sociais que tal aprovação significa para o povo brasileiro. “A possibilidade de nos aproximarmos dos países mais desenvolvidos diminui consideravelmente com o congelamento dos gastos públicos. Essa emenda destrói nossas esperanças em um país mais justo, que tenha sua força econômica derivada do consumo interno. Os direitos à saúde, à educação, à assistência social ficam instantaneamente reduzidos e, com eles, o próprio desenvolvimento econômico. É uma traição aos interesses da nossa nação retardar, deliberadamente, seu avanço” (JORNALISTAS LIVRES, 2016). Textos com essa abordagem são comuns nos espaços midiáticos independentes, no entanto, seu poder de influência ainda não se consolidou, pois não há um contínuo de abrangência e visibilidade de seus conteúdos em relação a conteúdos de veículos como Globo e Veja. Em decorrência da prevalência da ideia de jornalismo como espelho da verdade e as pessoas terem nesses meios massivos o referencial de credibilidade e verdade, nossos direitos correm sérios riscos. Sabemos, ainda, que as narrativas na grande mídia são construídas com o discurso de objetividade e imparcialidade, sendo esse discurso uma camuflagem que esconde a real política da omissão e da mentira, tornando-se,

portanto, um perigo para a democracia e para a garantia dos direitos fundamentais. Mas qual a saída se a mídia seria a instituição que mais poderia questionar os conteúdos que são de interesse público, podendo tematizar assuntos de modo a influenciar mudança de leis pelos governantes ou criação de políticas públicas? A regulamentação dos meios seria um bom começo. Projetos disciplinares em escolas de Ensino Fundamental e Médio por parte de estudantes de jornalismo poderiam surtir um bom efeito também. Falo em um projeto que pudesse esclarecer sobre as ideologias midiáticas. Munindo os alunos de capacidade para fazer uma leitura discursiva dos conteúdos jornalísticos, a partir do momento em que se tem a clareza de que há parcialidade e diversos interesses em jogo nas narrativas contadas. E, enfim, acredito que a criação de observatórios nas universidades seja um importante canal para o debate entre os alunos e sua extensão para a comunidade em geral. Esses observatórios de mídia podem criticar a perspectiva que os veículos tradicionais optam ao abordar determinados assuntos e renderiam discussão e problematização aos temas caros à sociedade. Karolina Calado é doutorando do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. Nesta coluna, proponho uma discussão acerca das questões que envolvem a economia política dos meios de comunicação, especialmente a partir da internet e dos modelos de financiamento coletivo.


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Cidadania em Rede Redes sociais virtuais e esfera pública ampliada Por Nataly Queiroz

“A representação da mulher negra na mídia ainda é uma nãorepresentação”

Entre os dias 23 e 24 de outubro, o Museu da Abolição, no Recife, sediou o 1º Encontrão de Blogueiras Negras. O evento, organizado pelo Coletivo Blogueiras Negras, reuniu mais de 100 mulheres produtoras de conteúdo para internet, artistas e ativistas. A iniciativa teve como objetivo fortalecer as capacidades de produção de conteúdos destas mulheres, bem como discutir estratégias para enfrentar a violência doméstica contra a mulher, o racismo e a misoginia dentro e fora da internet. Todas compartilhavam do mesmo entendimento: a comunicação é estratégica para a transformação das relações sociais existentes.


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Ao longo dos dois dias, foram ofertadas oficinas sobre segurança na rede, escrita criativa, rap e poesia, audiovisual, criação de blog e fanzine, entre outros temas. Larissa Santiago, publicitária, integrante do Coletivo e da comissão organizadora do Encontrão, conversou conosco sobre a iniciativa e os desdobramentos esperados. JeC: Por que realizar um encontrão de blogueiras negras? Larissa Santiago: Há tempos organizamos, de forma independente, Encontrinhos de Blogueiras Negras: em 2013 fizemos em São Paulo e Belo Horizonte; em 2014, foi em Salvador. Trataram-se de encontros para falar sobre nós, trocar conhecimento e amor. Dai surgiu o edital do Fundo Elas e tivemos a ideia de fazer um Encontrão, onde reuniríamos mais mulheres, com recursos. E aconteceu. Esse formato que estruturamos visa informar, capacitar e fortalecer o posicionamento das mulheres negras quanto ao combate ao racismo, opressão de gênero com ênfase na violência doméstica, promovendo a palavra como meio de luta através de diferentes ferramentas de comunicação e as novas mídias. JeC: Você pode fazer um balanço do encontro no Recife? Larissa Santiago: Foi avassalador! Não temos palavras para descrever o que foi ver 105 mulheres negras reunidas conversando, comendo, celebrando. Foram dois dias de troca, de realização, de abraços e de fortalecimento. Motivador e a realização de um sonho. Saímos de lá com vontade e instigadas para o próximo que será em São Paulo, em dezembro, assim como para continuarmos a nos encontrar mais por aqui. JeC: Qual a importância de ampliar os conhecimentos das mulheres negras acerca da produção simbólica e cultural? Larissa Santiago: A nós, mulheres negras, é negado todo acesso: à educação, à saúde, a bens culturais. Muitas de nós ainda não sabe ler nem escrever, não têm acesso à internet, a saneamento básico. Por isso, um encontro como aquele, onde o objetivo é aprender, trocar conhecimento, falar sobre violências e experiências é por demais importante. Traz dignidade, esperança a nós todas. Participar desse processo, fez com que a gente descobrisse a força dos recursos que temos. É indescritível o sentimento ao ver casos como o de Dona Severina que produziu um zine sem saber ler nem escrever. JeC: Como você analisa a representação das mulheres negras na mídia?

Larissa Santiago: A representação da mulher negra na mídia ainda é uma “não-representação”. Se analisarmos os produtos midiáticos (novelas, propagandas, jornais), nós ainda não estamos lá. Aí você vai me dizer que consegue ver mulheres negras nas novelas e propagandas, mas eu te pergunto: de que jeito estamos lá? quais são os nossos papéis e lugares ali? quantas somos? Somos mais da metade da população. Somos mais que empregadas domésticas, temos, inclusive, mais de uma profissão, mas isso não está sendo dito. Então, sim, o nosso lugar é um “não-lugar”. JeC: A internet tem se apresentado como um espaço privilegiado para que as mulheres negras se expressem e possam ser representadas de forma digna e cidadã? Larissa Santiago: A internet tem sido uma alternativa, mas ainda falta mais. Apenas 40% da população tem acesso a internet, mas isso não significa que esse percentual consegue e tem recursos para produzir conteúdo ou consegue ter senso crítico sobre o que vê na internet. Nós ainda estamos engatinhando, construindo nossos discursos e tentando fazer desse ambiente também um lugar nosso, mas não é fácil. Sobreviver e pagar internet, comprar um celular e aprender a fazer hangout... Ainda não temos o que comer, mas produzimos como nunca e esse é ainda nosso dilema... JeC: Ainda teremos mais um encontro de blogueiras negras. O que vocês esperam alcançar ao final do projeto? Quais são as perspectivas de continuidade/ ampliação desta ação? Larissa Santiago: Ainda teremos em São Paulo, no final do ano. Com muita dificuldade, porque estamos internamente passando por processos bastante delicados. Nós esperamos conseguir concluir as etapas do projeto alcançando um número maior e de diferentes mulheres negras. Desejamos emocionar e trazer forças e esperamos, ano que vem, poder retomar os encontrinhos, ampliando o número de cidades e de mulheres. Formar, aprender e trocar cuidados - acredito que é isso.

Escrita pela jornalista Nataly Queiroz, professora universitária e doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco. A coluna Cidadania em Rede aborda temas relacionados à atuação política e cidadã na rede mundial de computadores, bem como as apropriações das novas tecnologias de informação e comunicação por parte da sociedade civil para a incidência em prol da democracia e da cidadania.


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Poder Plural

Política contemporânea e Internet Por Rakel de Castro

A quem interessa informar sobre o acidente da Chapecoense e calar sobre a votação da PEC 55?

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016 não foi um ano de fácil entendimento e possível consenso para a política brasileira: o país não conseguiu mais suportar a crise financeira internacional, instaurada em boa parte dos países desde 2008, e sucumbiu a ela; a dívida pública interna mostrou a faceta de calamidade dos Estados federados, do pagamento de juros para grandes bancos e para empresas do capital privado e do processo de privatização do patrimônio nacional em curso. A Presidenta da República foi retirada do cargo através de um processo de impeachment que, longe de ser consenso, foi considerado inconstitucional, um golpe para “estancar a sangria, num pacto nacional, com o Supremo, com tudo”. O então Presidente da Câmara dos Deputados e outros parlamentares também sofreram impeachment em processos que se desenrolaram em manobras, longe de serem consenso, inconstitucionais. A maioria do Congresso e o Vice-Presidente que agora exerce o cargo de Presidente pós-impeachment envolvidos na Operação de investigação Lava Jato e nas inúmeras delações de esquemas de corrupção feitas à justiça. O Presidente do Senado é afastado do cargo, num processo longe também de ser consenso frente a opinião pública, por ordem do Supremo Tribunal Federal – STF e descumpre a decisão. Um Ministro do STF (Gilmar Mendes) sugere impeachment de outro ministro do STF (Marco Aurélio). O papel dos meios de comunicação também não tem sido fácil. Pelo menos aparentemente, saber lidar com todo esse jogo, levando em considerações valores-notícias éticos, de interesse público e atualidade tem sido bastante complexo, com muitas demonstrações de manipulação em favor do projeto neoliberal que vem sendo imposto pelo novo governo com o apoio do Congresso Nacional, do STF, das grandes corporações do mercado e entidades classistas patronais como a FIESP. Só neste mês de dezembro, a PEC 55 (Proposta de Emenda Constitucional), que estabelece um teto para

os gastos públicos para os próximos 20 anos, foi aprovada já em segundo turno do Senado; além da controversa Reforma Previdenciária apresentada pelo Governo Temer e da delação de Cláudio Filho, da Odebrecht, para a Operação Lava Jato, trazendo às claras os nomes e eventos do sistema de corrupção e patrimonialismo institucionalizado no país. A única certeza que se consegue ter, ao fim deste ano, é que, de fato, há uma crise ética, de autonomia institucional e constitucional no Brasil. E a imprensa parece ser um agente bem ativo na tecelagem dessa história toda. Quando Noelle-Neumann (1973), há mais de 30 anos, estudando o contexto alemão, dizia que a mídia constrói a realidade não só pelo que ela agenda e pauta, mas também pelo que ela omite, pela não provocação da fala, pelo silêncio sobre determinados assuntos, dando corpo e forma ao que chamaria do “espiral de silêncio”, provavelmente não imaginaria que contornos práticos isso poderia tomar também na sociedade brasileira dos dias atuais. Essa teoria parte de uma ideia central: os agentes sociais tendem a evitar o isolamento. Associam-se, assim, às opiniões dominantes. Quando esta associação não é viável por representar um custo social muito elevado, aqueles que sustentam um ponto de vista minoritário teriam maior tendência a calar-se sobre o tema em pauta. É aqui em que a progressividade do entrelaçamento entre a opinião minoritária na representação simbólica do jornalismo (pois, mesmo que seja majoritária na sociedade, quando não encontra espaço na mídia noticiosa, passa despercebida pela maioria do público) e a tendência ao silêncio se torna cada vez mais transparente e, consequentemente, também direciona a agenda midiática para os grupos econômicos interessados em produzir o seu próprio sentido sobre a realidade dos fatos. Isso pode muito facilmente ser relacionado à hipótese de que quase sempre a imprensa brasileira toma nitidamente partido sobre o que e como falar e sobre o que calar. Parece irônico dizer que a imprensa tem partido nesse processo todo em que a democracia brasileira passou durante o ano 2016, quando, segundo a ideologia profissional do jornalismo, se deve prezar pela busca da objetividade e imparcialidade dos fatos. Sem querer idealizar isso, essas duas características tão importantes e basilares para um jornalismo ético deveriam se constituir como metas, como algo a ser buscado


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constantemente, mesmo que a realidade ofereça tons mais problemáticos. Vale ressaltar que o profissional jornalista não é assim percebido como um sujeito totalmente livre para construir as notícias, mas também não é apenas um empregado a cumprir ordens. As fronteiras entre a Teoria do Gatekeeper e da Teoria Organizacional de Warren Breed precisam se borrarem para que o processo da produção social da notícia seja melhor entendido, de acordo como previu Castro e Rocha (2016). Para os autores (2016), a teoria do Gatekeeper pressupõe que as notícias são como são porque os jornalistas assim as determinam em situação de liberdade absoluta (TRAQUINA, 2005). O processo de produção da informação seria um processo de escolhas arbitrárias e subjetivas, no qual o fluxo de notícias tem que passar por diversos “gates” (portões) até a sua publicação. Diante de um grande número de acontecimentos, só virariam notícias aqueles que passassem por uma cancela ou portão, e quem decidiria isso seria um selecionador, que é o próprio jornalista. Ele seria o responsável pela progressão da notícia ou por sua morte caso não a deixe ser publicada. Entretanto essa teoria não contempla a notícia a partir também dos seus receptores, nem admite que existam normas profissionais, estrutura burocrática e organizacional que interfiram nesse processo. Já a Teoria Organizacional, lançada por Warren Breed (1999), em vez do poder individual exclusivo do jornalista, este é sobrepujado e constrangido a se conformar nos limites da política editorial imposta pela empresa jornalística. Dessa forma, o jornalismo faria parte de um negócio empresarial e que, portanto, visaria ao lucro. Era, portanto, coagido a seguir uma linha editorial de uma corporação de lógica privada, mas sempre de uma maneira sutil e às vezes não expressa, através de recompensas e punições (CASTRO & ROCHA, 2016). Não é difícil de imaginar qual ordem editorial a imprensa brasileira vem se alinhar ao falar ou a calar quando o assunto envolve política, diante de uma conjuntura regulada pela concentração dos meios, possibilitada pela propriedade cruzada. Um exemplo das consequências de toda essa concentração da mídia no Brasil, transposta, inclusive, para as plataformas digitais e online e de como isso se relaciona com o partidarismo e o espiral do silêncio, pode ser observado nas notícias veiculadas sobre o primeiro turno da votação da PEC 55, sobre a qual existia uma forte contestação dos movimentos sociais em oposição ao setor empresarial-político. Todo o noticiário a respeito da votação e das inúmeras manifestações (contidas, até mesmo, com a força coercitiva e violenta do Estado) foi silenciado e induzido a um interstício coadjuvante (mesmo diante de todos esses fervorosos acontecimentos políticos narrados anteriormente), cedendo espaço à espetacularização do acidente aéreo com a Associação

Chapecoense de Futebol, no dia 29 de novembro. Ainda assim, ocorre a necessidade de se pensar um jornalismo para além dos limites impostos por essas teorias. O jornalista é submetido a uma lógica editorial e empresarial de mercado, mas também tem certas liberdades na construção noticiosa, como já ressalvava e chamava atenção Warren Breed. A produção da notícia, de acordo com a descrição da teoria do agendamento, é resultado da negociação entre a agência da estrutura de poder (promotores da notícia), da agência dos próprios jornalistas e da agenda pública; neste caso ela se desenvolve em todo o processo de produção jornalística, no qual uma multiplicidade de critérios acaba se relacionando com a noticiabilidade dos próprios fatos. Assim seria essencial à ética do jornalismo e saudável para a democracia que a imprensa expusesse claramente qual a sua linha editorial e não posar de arauto da imparcialidade e da objetividade, como fez durante todas as notícias sobre política e corrupção neste ano e disse que “assim o continuará fazendo”. Explicar para o leitor / receptor qual a linha editorial e ideológica adotada pelo o meio de comunicação já é um passo importante para que esse mesmo leitor tenha minimamente a autonomia cidadã de continuar consumindo / lendo aquele meio ou não. Esse seria um passo importante (mesmo que não seja suficiente) para desenraizar o patrimonialismo existente na política e transposta para os meios de comunicação. Mas a quem interessa informar com tamanha espetacularização sobre o acidente da Chapecoense e calar sobre a votação da PEC 55? Referências: NOELLE-NEUMANN, Elisabeth. Return to the Concept of Powerful Mass Media. Comunicação apresentada no XXth. International Congress of Psychology, Tóquio, agosto de 1972. Publicado posteriormente em Studies of Broadcasting, 9 (1973). CASTRO, Rakel de; ROCHA, H. C. L. Junho de 2013 no Brasil: O jornalismo e a ideologia. p. 141 – 159. In: ROCHA, H. C. L.; CASTRO, Rakel de; VIZEU, Alfredo (Orgs.). Comunicação e Ideologia. 2ª Ed. Recife: PROEXTUFPE & Ed. Universitária da UFPE, 2016.

Escrita pela jornalista Rakel de Castro, doutoranda em Comunicação pela UFPE e em Ciências da Comunicação pela Universidade da Beira Interior (UBI) / Portugal, a coluna Poder Plural aborda a análise política e sua relação com a internet feita à margem dos veículos tradicionais. Mensalmente, o espaço apresentará um Raio-X de temas debatidos no Brasil e/ou no mundo que se coadunem as questões de Participação política em sociedades democráticas e as novas formatações políticas no Brasil e no mundo.


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Opinião

Os Primeiros Trumpismos para a China

Quadro: Rodolfo Mesquita

Por Mariana Yante, de Wuhan/China

A

penas um dia após o resultado oficial das eleições presidenciais nos Estados Unidos, um senhor chinês solenemente me interceptou no corredor do supermercado com um envelope perfeitamente endereçado à Casa Branca. Ele pediu para que lesse o documento, verificando a clareza e a correição da carta dirigida ao presidente eleito, Donald Trump, com entusiásticas palavras de admiração e votos de um bom governo. Embora as discussões locais em torno da política dos Estados Unidos quanto à China estivessem até recentemente centradas na insatisfação chinesa sobre a posição dos yankees no Mar da China Meridional, as eleições norte-americanas diversificaram as pautas. Apesar de existirem posições diversas sobre os efeitos da eleição de Donald Trump para a China, é certo que os resultados eleitorais surpreenderam a mídia e a academia locais. Ao mesmo tempo em que Trump não hesitou em criticar a República Popular no curso da sua campanha, assegurando medidas

protetivas a serem adotadas quanto às importações chinesas, parte da agenda prometida pelo novo presidente norte-americano representa, na verdade, alvíssaras para a China no cenário internacional. Quando, aceitando sua nomeação para presidenciável pelo Partido Republicano, deixou claras as linhas do que seria sua agenda de campanha, ao anunciar que o “americanismo”, e não o “globalismo”, seria o seu credo, Trump antecipou seu posicionamento sobre alguns projetos regionais e megarregionais nos quais os Estados Unidos estão inseridos. Entre muitas das declarações, o presidente eleito fez várias considerações sobre os prejuízos que o País tinha em relação ao Tratado de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA, por sua sigla em inglês), em razão dos produtos mexicanos que reingressavam em território nacional e competiam de forma desigual com a indústria doméstica, gerando um déficit comercial – o que certamente gerará discussões em torno de sua renegociação.


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Além disso, Donald Trump fez promessas relativas ao Acordo Transpacífico (TPP, por sua sigla em inglês), que se concretizaram no pacote anunciado sobre seus cem primeiros dias de governo, que se inicia no dia 21 de janeiro, confirmando a retirada dos Estados Unidos. A parceria, assinada desde 2015, que abarcava doze países e excluía a China, era vista – juntamente com o arranjo de cooperação em negociação com a União Europeia, o Acordo Transatlântico de Comércio e Investimento (TTIP, por sua sigla em inglês) – como um novo modelo de governança interregional proposto pelo Norte Global. É importante lembrar, porém, que ainda é precipitado avaliar como os acordos megarregionais de comércio e investimento vão impactar o futuro próximo – mesmo porque a China também vem se articulando por meio de sua política do One belt, one road (a qual discutiremos em outra contribuição) e do Regional Comprehensive Economic Partnership (RCEP), que, todavia, exclui as Américas. Embora a então candidata do Partido Democrata Hillary Clinton tenha prometido rever alguns termos do TPP para proporcionar condições mais favoráveis às(aos) americanas(os), é importante lembrar que ela mesma teve um papel crítico na negociação do NAFTA como Secretária de Estado, bem como que o governo Barak Obama o ostentava como um dos trunfos para reafirmar a posição dos EUA no cenário multilateral, limitando a influência chinesa. Não é à toa que o Presidente Xi Jinping e sua delegação, na reunião de cúpula da Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (APEC) no Peru, no final de novembro, não hesitaram em afirmar que a China tomará uma posição dianteira no comércio internacional caso Washington adote uma política protecionista, assinalando que a República Popular “assegurará que os frutos do desenvolvimento sejam partilhados”. Existem, também, rumores de que a China pela primeira vez participará do Foro Econômico Mundial, em Davos, no próximo mês de janeiro, apesar de a informação ainda não haver sido oficialmente confirmada pelo Ministério das Relações Exteriores chinês. Por outro lado, após sua eleição, Trump vem adotando algumas posturas bastante controversas quanto à relação China-Estados Unidos. Na semana passada, o ex-candidato Republicano utilizou o Twitter para criticar a política monetária e comercial chinesa, e, na mesma publicação, ainda atacou a construção de um complexo militar em torno do Mar da China Meridional pelo país asiático. Nos últimos dias, a imprensa chinesa tem dado muito destaque à ligação telefônica entre Donald Trump e a presidenta de Taiwan, Tsai Ing-wen, eleita pelo Partido Progressivo Democrático (Democratic Progressive Party-DPP), em janeiro deste ano. O

partido taiwanês, que também obteve sua primeira maioria legislativa na história política de Taiwan, derrotou o Kuomintang (KMT), e é conhecido por sua agenda independentista. O deslinde político das relações entre a China continental e Taiwan ainda remanesce incerto, a despeito do pronunciamento, logo após as eleições nesta, do governo central no sentido de que as relações não mudariam, pois seguiriam baseadas na premissa do Consenso de 1992 (por meio do qual se reconheceu a unidade chinesa) e contrárias à independência de Taiwan. No entanto, a comunicação entre Tsai Ing-wen e Donald Trump, em um contexto de tensões independentistas latentes e de um histórico de importações massivas de armamentos norte-americanos por Taiwan, foi vista como quebra do protocolo diplomático e inexperiência do presidente eleito. O episódio parece haver tido um desfecho conveniente para o governo Xi Jinping e para as relações sino-estadunidenses, considerando que, em sua defesa, Trump alegou que foi ele quem recebeu uma ligação da presidenta taiwanesa – o que se seguiu de um pronunciamento do ministro das relações exteriores chinês no sentido de que o episódio foi uma “brincadeira insignificante de Taiwan”. No curso desta semana, algumas indicações feitas por Trump para seu gabinete voltaram a apaziguar os ânimos. Os rumores de que o embaixador norte-americano na China seria o atual governador de Iowa, Terry Branstad, foram seguidos por uma declaração do porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Lu Kang, que na última quarta-feira assinalou que Terry é um “velho amigo” da China, enfatizando, porém, que o país cooperaria com qualquer nome indicado por Washington. Além disso, Trump indicou Elaine Chao – a primeira estadunidense de ascendência asiática a ser apontada para um cargo em gabinete presidencial – para a secretaria dos transportes. Chao, que possui raízes na China continental e goza de boas relações com Taiwan, parece ter sido mais uma resposta diplomática aos deslizes cometidos por Trump nos últimos dias. Diante de um governo sequer iniciado, podemos ver que a eleição de Donald Trump e as incertezas que traz para a governança mundial e para o papel da China nesse contexto já são notáveis. Esperemos pelo conteúdo da próxima carta a ser escrita pela população chinesa ao mais novo presidente estadunidense.

Mariana Yante é doutoranda de Relações Internacionais na Universidade de Wuhan/China


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