Revista Jornalismo e Cidadania nº 9/2017

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Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 1

| ISSN 2526-2440 | nº 9 | Ano 2017

Jornalismo e cidadania

Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade | PPGCOM/UFPE

Camilo Soares

A guerra perdida da comunicação

Jornalismo Ambiental

Rio São Francisco

E mais...


JORNALISMO E CIDADANIA | 2

Expediente

Arte da Capa: Designed by Freepik.com

Colaboradores |

Editor Geral | Heitor Rocha professor PPGCOM/UFPE

Marcos Costa Lima Pós-Graduação em Ciência Política/UFPE

Editoração Gráfica | Ivo Henrique Dantas doutorando PPGCOM/UFPE

Túlio Velho Barreto Fundação Joaquim Nabuco

Articulistas |

Gustavo Ferreira da Costa Lima Pós-Graduação em Sociologia/UFPB

PROSA REAL Alexandre Zarate Maciel doutorando PPGCOM/UFPE

Luiz Lorenzo Núcleo de Rádios e TV Universitárias/UFPE

MÍDIA ALTERNATIVA Xenya Bucchioni doutoranda PPGCOM/UFPE

Ada Cristina Machado Silveira Professora da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM

NO BALANÇO DA REDE Ivo Henrique Dantas doutorando PPGCOM/UFPE

Antonio Jucá Filho Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco – FUNDAJ Auríbio Farias Conceição Professor do Departamento de Letras e Humanidades – DLH/ UEPB

JORNALISMO E POLÍTICA Laís Ferreira mestranda PPGCOM/UFPE

Leonardo Souza Ramos Professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC –Minas Gerais e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Potências Médias (GPPM)

JORNALISMO AMBIENTAL Robério Daniel da Silva Coutinho mestre em Comunicação UFPE

Rubens Pinto Lyra Professor do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas da UFPB

PODER PLURAL Rakel de Castro doutoranda PPGCOM/UFPE e UBI CIDADANIA EM REDE Nataly Queiroz doutoranda PPGCOM/UFPE

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Prosa Real

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Opinião | Camilo Soares

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Rádio e Cidadania

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Comunicação na Web

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Jornalismo Ambiental

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Opinião | Roberto Ramos Santos

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MUDE O CANAL Ticianne Perdigão doutoranda PPGCOM/UFPE

Opinião | Pedro de Souza

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Opinião | Lincoln Macário

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RÁDIO E CIDADANIA Karoline Fernandes mestre em Comunicação UFPE

Opinião | Rubens Pinto Lyra

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Mídia Fora do Armário

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No Balanço da Rede

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JORNALISMO INDEPENDENTE Karolina Calado doutoranda PPGCOM/UFPE MÍDIA FORA DO ARMÁRIO Rui Caeiro mestre em Comunicação UFPE

NA TELA DA TV Mariana Banja mestranda em Comunicação UFPE

Índice

Editorial

COMUNICAÇÃO PÚBLICA Ana Paula Lucena doutoranda PPGCOM/UFPE

Bolsista e Aluno Voluntário | Lucyanna Maria de Souza Melo Yago de Oliveira Mendes Graduandos de Jornalismo UFPE

Acesse: facebook.com/ Jornalismoecidadania | issuu.com/revistajornalismoecidadania


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Editorial Fonte: Mídia Ninja

Por Heitor Rocha

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á 53 anos o Brasil sofreu um golpe civil-militar que implantou uma ditadura em nome da defesa da democracia. Agora em 2016, o golpe implementado pelos empregados das grandes corporações no Congresso Nacional, com o apoio da grande mídia, destituiu uma Presidente sob pretexto de prática de pedaladas - o que só foi considerado crime até uma semana depois da destituição -, ou seja, alegando combate à corrupção, quando na verdade pretendia “estancar a sangria da LavaJato”, como confessou o senador Romero Jucá. Nos episódios de 1954 – quando o esforço de modernização do Brasil empreendido pelo nacional-desenvolvimentismo foi ameaçado pela UDN liderada por Calos Lacerda e os militares inspirados na doutrina da segurança nacional elaborada pela Escola Superior de Guerra Norte-Americana para enfrentar a guerra fria, que efetivamente lograram êxito dez anos depois -, no golpe de 1964 e agora no golpe parlamentar/midiático em 2016 pode ser identificada a sanha do projeto neoliberal de comprometer o desenvolvimento dos povos a qualquer custo para garantir o lucro máximo do grande capital. E é exatamente esta característica de barbárie do capitalismo que vem gerando as disfunções dos bolsões de pobreza nas grandes cidades do primeiro mundo, levando a miséria antes restrita ao terceiro mundo para dentro de seus paraísos sonhados como ilhas de fausto e luxo, mas que podem se tornar em reais pesadelos de conflito e violência. O determinismo automático que o ceticismo de direita e de esquerda acredita impossível de ser superado de forma disfuncional na base de apoio às “reformas” do projeto neoliberal, para cortar gastos sociais, desregular a legislação de proteção ao trabalho e desmontar

a seguridade social, pode também vir a ser contrariado por uma necessidade de sobrevivência dos seus vassalos/parlamentares. A lealdade dos ‘capitães do mato’ do Congresso Nacional à elite do dinheiro pode se transformar numa busca desesperada para renovar os mandatos em 2018. Afinal, pode se repetir a aparentemente contraditória posição dos congressistas de rejeitar a PEC 37, que pretendia impedir o Ministério de Investigar, por eles mesmos criada com o intuito de evitar a apuração de seus crimes, mas que veio a ter a sua rejeição imposta pela mobilização do povo nas ruas nos protestos de 2013. Evidentemente, que estes ‘senhores’ tão orgulhosos de suas tenebrosas transações no trato da coisa pública não se converteram ao caminho do bem. Claro que tomaram esta decisão com medo de não se elegerem em 2014. Afinal, a autoridade de um público que forma opinião consistente e consegue sensibilizar a solidariedade das massas na rua como poder comunicativo, se revestindo, assim, de uma natureza material, é capaz de fazer com que pessoas que normalmente não se importam com o sentido de suas ações para a sociedade passem a levar em conta o significado que elas terão para os eleitores que decidirão a sua sorte nas urnas. Portanto, as deserções que começam a acontecer na base de apoio do governo golpista na Câmara dos Deputados e no Senado Federal poderão mudar o rumo previsto pela impatriótica conspiração neoliberal. Heitor Costa Lima da Rocha, Editor Geral da Revista Jornalismo e Cidadania, é professor do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.


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Prosa Real

Livro-reportagem, jornalismo e contexto Por Alexandre Zarate Maciel

O leitor imaginado de livro-reportagem: uma incógnita?

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epois de todas as dúvidas que assaltam o jornalista-autor durante o período de captação, seleção e escrita dos livros-reportagem, chega a hora de encará-lo como produto de sua autoria, exposto à análise dos pares e, acima de tudo, do público. Perguntado pelo autor desta coluna se imagina previamente um perfil comum de leitor de suas obras, o jornalista e escritor Ruy Castro (biógrafo, entre outros personagens, de Carmem Miranda, Nelson Rodrigues e Garrincha) respondeu que sim, esse leitor seria ele mesmo: “Um leitor muito chato, muito exigente, que ao ler quer entender o que está lendo. Não quer buraco na informação. Não só quer ler, quer aprender, quer rever as coisas de uma maneira clara e objetiva e simples e direta”. Zuenir Ventura, de 1968, o ano que não terminou, por sua vez, acredita que ao escrever o livro não está agindo sozinho no campo da interpretação da realidade. “O leitor tem a liberdade de ler aquilo à sua maneira. Da mesma maneira que você lê um quadro de uma maneira diferente. Então é muito difícil de saber”. Nem sempre o jornalista está pensando em facilitar a vida do seu leitor, tornando tudo prazeroso e claro. É o que confessa Leonencio Nossa, que entre outras obras, publicou uma interpretação da Guerrilha do Araguaia no livro Mata!: “Às vezes eu penso, querendo sacanear o leitor: vou sacanear ele agora. Vou botar ele mais confuso. Ele vai se lascar com essa narrativa agora e ele não vai topar, ele não vai aceitar”. No entanto, é muito prazeroso, segundo a jornalista e escritora Daniela Arbex, autora de Holocausto brasileiro, quando o leitor relata as sensações que teve ao ler seus livros: “Muitas pessoas que lêem o Holocausto falam: nossa, cheguei a sentir o cheiro”. A jornalista destaca que o poder da palavra é tão intenso quanto o das imagens, já que, pela força da narrativa, o leitor “tem que entrar naquele lugar que você entrou, tem que ver pelos olhos que você viu”.


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Autor do mês: Rubens Valente

Bourdieu e uma possível relação com o livroreportagem

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streante no campo do livro-reportagem, Rubens Valente Soares (Paraná, 1970) começou a sua carreira em jornais do Mato Grosso do Sul e Mato Grosso e partiu, em seguida, para uma carreira nacional com passagens pelo Jornal do Brasil, O Globo e Veja antes de ingressar na Folha de S.Paulo, onde trabalha até hoje. Sua especialização em reportagens investigativas calcadas na pesquisa minuciosa de documentos, o ajudou a elaborar a trama do seu primeiro livro, Operação banqueiro (2014), que trata da história do banqueiro Daniel Dantas. O personagem, apesar de todas as acusações de ter cometido vários crimes de corrupção, amplamente documentados pela imprensa na época, acabou sendo libertado por ordem do então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, que garantiu dois habeas corpus em seu favor, mesmo com provas contundentes do envolvimento de Daniel Dantas em atividades econômicas escusas. O livro custou dois processos judiciais, um de Gilmar e outro de Dantas, que ainda estão em andamento, sendo que Rubens Valente já venceu, em primeira instância, o ministro do STF. A editora Companhia das Letras acaba de lançar o segundo livro de Rubens Valente, Os fuzis e as flechas, resultado de uma ampla investigação sobre a realidade dos indígenas brasileiros durante a ditadura militar. Rubens Valente mergulhou fundo nos arquivos da Fundação Nacional do Índio (Funai) e entrevistou sertanistas e indígenas para relatar uma realidade de extermínio e abandono. Chegou a descobrir, em primeira mão, que alguns sertanistas foram impedidos de registrar em documentos os detalhes de grandes marchas migratórias indígenas, forçadas pela ditadura militar e marcadas por sofrimento e morte. Entre outros projetos futuros de Rubens Valente em livro está o relato da situação de violência policial na fronteira do Brasil com o Paraguai.

ara afirmação no mercado, o jornalista, segundo Bourdieu (1997, p.103), enfrenta alguns princípios de legitimação, sendo um deles o “reconhecimento pelos pares”, prêmio para os profissionais que “reconhecem mais completamente os ‘valores’ ou princípios internos”, ou seja, a linha editorial. E o “reconhecimento pela maioria”, este “materializado no número de receitas, de leitores”, sendo a “sanção do plebiscito inseparavelmente um veredicto de mercado”. Transpondo essas reflexões para o campo específico do jornalista produtor de livros-reportagem, pode-se afirmar que o reconhecimento pelos pares se dá por mecanismos de outra natureza. O jornalista-autor não está mais diluído na instituição jornal, nem inserido em uma rotina produtiva diária, seguindo linhas editoriais específicas ou pressões comerciais da concorrência, que afetam diretamente o seu trabalho. A quase totalidade dos autores de livros-reportagem de sucesso no Brasil é proveniente, ou ainda atua, em órgãos midiáticos de referência, notadamente os impressos. Muitos já tinham atingido o status de repórteres especiais, editores e até de diretores de redação em diversos periódicos de renome, angariando um capital simbólico valioso entre os seus pares. Esse vínculo prévio com a imprensa diária de referência auxilia na aproximação com o mundo editorial e, em outra instância, com os seus potenciais leitores. E é nesse sentido, e não uma necessária subordinação às hierarquias ou lógicas político-editoriais, que pode ser entendido o “reconhecimento pelos pares”. Outra questão é que a necessidade do “reconhecimento pela maioria” parece bem mais presente quando o jornalista passa a atuar no campo mais individualizado e autoral do livro-reportagem. Estes escritores podem não seguir mais o plebiscito aprisionador da chancela do público, via vendagem de jornais e revistas. Mas, se não escolherem personagens interessantes e de certa projeção (Olga, Assis Chateaubriand e Paulo Coelho, no caso de Fernando Morais e Garrincha, Nelson Rodrigues e Carmem Miranda, biografados por Ruy Castro), enfrentarão dificuldades de inserção em um mercado que também apresenta as suas sanções: o de editores de livros. Elaborada pelo professor do curso de Jornalismo da UFMA, campus de Imperatriz, Alexandre Zarate Maciel, que está cursando o doutorado em Comunicação na UFPE, a coluna Prosa Real traz, todos os meses, uma perspectiva dos estudos acadêmicos sobre a área do livro-reportagem e também um olhar sobre o mercado editorial para esse tipo de produto, os principais autores, títulos e a visão do leitor.


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Opinião

A representação do ninguém Por Camilo Soares

A guerra perdida da comunicação durante greves e ocupações de 2016

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ladimir Safatle, em seu livreto Quando as ruas queimam : manifesto pela emergência, lembra que, durante as manifestações em 2013 no Brasil, um jornalista perguntou o nome de um insurgente que respondeu prontamente: “Anota aí, eu sou ninguém”. Para o filósofo, o aparente paradoxo é revelador de novas formas políticas: “[...] quem controla o modo de visibilidade e nomeação, controla o que irá aparecer e como se construirão circuito de afetos. Por isso, a negatividade [como a de ser ninguém] sempre foi uma astúcia daqueles que compreendem que a liberdade passa pela capacidade de destituir o Outro da força de enunciação dos regimes de visibilidade possíveis : ‘Eu sou ninguém’ é, na verdade, a forma contraída de : ‘Eu sou o que você não nomeia e não consegue representar’.” (SAFATLER, 2016, p. 6) Safatler complementa que, para existir, é necessário fazer a linguagem encontrar seu ponto de colapso. Nesse sentido, o embate de ideias políticas e da ocupação física dos corpos revoltados não pode ser desvinculado dessa procura de colapso de linguagem. Exemplo disso foi a cobertura jornalística em fins de 2016 sobre as manifestações e ocupações contra (sobretudo) a PEC 55 (ex-241) que demonstrou descaradamente o papel que nomeação e representação desempenham na disputa de lugares; lugares não apenas em sua forma concreta, mas também subjetiva e identitária. Apesar de uma roupagem imparcial, textos e imagens se revelam tendenciosos e pouco elucidativos quanto às razões da revolta. A pauta é voltada comumente apenas

para os transtornos do cidadão comum, ônibus lotados e bloqueados por vias interditadas ou calendário escolar atrasados, cultivando incompreensão e ódio em vez de uma reflexão sobre os fatos. Matéria do Jornal do Commercio (12 de novembro de 2016, caderno Cidades, p. 11) sobre a greve de professores e ocupações detém, por exemplo, como título “Ano letivo vai atrasar” e sua matéria vinculada chama atenção para “Protesto atinge pacientes do HC”. Mesmo que haja fotos com declarações dos visões opostas sobre a greve, o tom crítico ao movimento é evidente desde a chamada. Na Folha de Pernambuco (12 de novembro de 2016, caderno Cotidiano, p.1), isso é até mais evidente: “Protestam uns, pareceu todo mundo” é o título acompanhado pela fotografia de um engarrafamento que destaca uma ambulância do Samu: a mensagem é clara. Evidentemente, o problema não é de se criticar algum fenômeno social, mas de contornar uma análise profunda dos fatos por técnicas de direcionamento de informações. Pouco se falou, por exemplo que tais “transtornos” representaram também muitas vezes a superação de uma imagem esclerosada puramente funcional desses espaços ocupados, sobretudo escolas e universidades, adentrando na possibilidade de reconstrução afetiva e sensível desses lugares. Tal ocupação ultrapassa até mesmo as críticas (hoje já datadas) sobre PECs e MPs específicas, levando o debate a esferas mais amplas ao tanger, por exemplo, a ligação intrínseca entre identidade de corpo e terra (espaço), cuja a separação é, segundo Eduardo Viveiro de Castro (2016, p. ?), uma operação estatal para criar populações administradas. O etnólogo não fala apenas dos índios, mas de uma radical despossessão corporal, à qual ele atribui também ao movimento LGBT, separado de sua sexualidade, aos negros, separados da cor de sua pele e de seu passado de escravidão, às mulheres, separadas de sua autonomia reprodutiva. No entanto, apesar do surgimento de uma consciência das conotações políticas dessa despossessão corporal, a discussão tornou-se mais interior ao movimento do que uma dis-


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cussão aberta com a sociedade, e em tempos de mídias sociais isso é imperdoável: parte dessa guerra foi talvez perdida justamente pois se buscou mais um colapso físico do que um colapso linguístico, como no caso de uma indefensável depredação de bens públicos para os quais se está lutando. Mas do que bens, perdeu-se aqui a guerra linguística da representação. O perigo é, voltando a Safatle, que tais práticas políticas acabem por se reduzir ao bloqueio de espaços físicos, ao fechamento da circulação, à paralisação, que são manifestações brutas da indignação de quem se sente lesado e esquecido, de quem se sente ninguém. A grande mídia, como vimos, sabe usar bem essa imagem. O filósofo lembra ainda que política não é apenas exposição de indignação, mas é, “no seu sentido mais profundo, conquista da opinião pública, produção de aglutinações através da emergência de um sujeito dotado de imaginação politica capaz de implicar qualquer um” (SAFATLE, 2016, p. 22). Ele lembra que o que mais destruiu certa esquerda foi seu dirigismo, seja “explícito através de decisões opacas de cúpula de suas instâncias dirigentes, seja implícito através de práticas assembleísticas que apenas geram o esvaziamento produzido como estratégia de hegemonia” (SAFATLE, 2016, p. 17-18). Sua conclusão é simples e direta: “Não precisamos de nada disso mas uma vez.” Diante do exercício e aprendizagem da política, esse movimento erguido, sobretudo por minorias jovens, descobriu sua força, mas talvez perdeu sua juventude em velhas práticas. Pior, fechou-se para dentro e deixou a opinião pública ser ganha por uma mídia tendenciosa. Há muito, a esfera política e toda a estrutura social é estruturada pelo paradigma da representação (o que levou Guy Debord chamar o capitalismo tardio de “sociedade do espetáculo”, na qual a redução de experiências individuais são compensadas pelo consumo de imagens); em tempos de mídias sociais esse vacilo é pouco aceitável. Tal falha de comunicação pode fazer surgir o interessante ninguém das manifestações, como ruído de uma formulação dominante, mas também pode gerar desconforto e incompreensão de parte da população, acoada por uma suposta perda de parâmetros de valores hegemônicos. O historiador Gabriel Zacarias identifica tal homem ressentido à perda de potência de que tanto falava Nietzsche. Em termos de comunicação e convencimento político, isso pode significar que o tiro poderá sair pela culatra, fortalecendo o campo ideológico simetricamente oposto. O não-debate vira

não-política, que é um forte instrumento político para alguns. Zacarias (2016) aponta que o grande perigo é quando tal “ressentimento da população (os espectadores) contra políticos – os atores a quem delegamos nossa potencia” – finda “manifestando uma ruptura na relação de identificação”, podendo haver “a identificação com uma figura política que represente o ressentimento, isto é, que fortaleça o sentimento negativo e a culpabilização de alvos expiatórios”, que é a genealogia do fascismo e a radicalização da extrema direita em figuras como Donald Trump, Le Pen e Berlusconi, onda preocupantemente representada no Brasil pela popularização de um Jair Bolsonaro. Nesse âmbito, essa nova esquerda representada por jovens que ocuparam escolas e universidades precisam doravante de uma atitude mais consciente da representação desse movimento, para não se afundarem com uma velha esquerda à deriva ao afastar o debate de novos processos e estigmatizar parte desses insatisfeitos que não se identificam com hegemonias políticas atuais ou recentes. Nesse contexto, canais de divulgação de conteúdo escrito e audiovisual aparecem aqui como importante instrumento de exercício político, devido à facilidade de difusão em redes sociais e canais online e ao incontestável potencial de se contrapor ao discurso da grande mídia. O audiovisual, notadamente, (que pode estar vinculado com outras linguagens, como teatro, dança, poesia, etc.) pode ser uma arma de esclarecimento, abertura, concepção de novos circuitos de afetos, de atração e convencimento (como ocorreu no Ocupe Estelita, por exemplo), podendo transformar simples espectadores em sujeitos de suas representações; amplificando suas experiências sociais e políticas. Referências: CASTRO, Eduardo Viveiro de. Os involuntários da Pátria. Aula pública durante o ato Abril indígena. Cinelândia, Rio de Janeiro: N1 edições, 20 de abril de 2016. SAFATLE, Vladimir. Quando as ruas queimam : manifesto pela emergência. Rio de Janeiro: N1 Edições, 2016. ZACARIAS,Gabriel. “Simpatia pelo ódio”, O Estado de S. Paulo, Aliás.

Camilo Soares é doutor pela Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne e professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco.


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Rádio e Cidadania Comunicação e resistência nas ondas do rádio Por Karoline Fernandes

A ideologia do “flash” e o jornalismo investigativo no rádio

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mbora toda prática jornalística envolva alguma investigação, essa terminologia (o jornalismo investigativo) se diferencia dos demais gêneros jornalísticos por envolver procedimentos e métodos diferenciados, desde a apuração e edição à construção e veiculação da notícia. Vejamos então as contribuições de pesquisadores do campo da comunicação para um melhor entendimento do jornalismo investigativo e sua aplicabilidade para o meio radiofônico. De acordo com Hugo de Burgh (2008), costuma-se dizer que o jornalismo “é o primeiro rascunho da história”. Em contraste, o jornalismo investigativo é “o primeiro rascunho da legislação”. O autor analisa que isso se dá porque é justamente essa categoria que chama a atenção da sociedade para as falhas no sistema e para as formas como esse sistema pode ser logrado pelos ricos, poderosos e corruptos. Neste sentido, o jornalismo investigativo, enquanto gênero, é construído de maneira oposta à notícia convencional (hard news), cuja estética prima pela lógica do lead e da “pirâmide invertida”, lançando mão principalmente da objetividade e imparcialidade – ainda que este seja um ideal utópico, na visão de muitos críticos. O que é jornalismo investigativo? Pesquisador do campo dos gêneros jornalísticos, José Marques de Melo (2006) enquadra o jornalismo investigativo como uma das variantes do jornalismo interpretativo, cujo principal produto é “uma grande reportagem”. Nesta mesma linha de pensamento, Nilson Lage (2001) classifica o gênero jornalístico investigativo como “uma forma extremada de reportagem, em que o profissional dedica tempo e esforço no levantamento de um tema”. Já Hugo de Burgh (2008) dirá que um “jornalista investigativo é um indivíduo cuja profissão é descobrir a verdade que está ocultada”. A partir do entendimento dos

autores supracitados, volta-se à questão inicial: não seria a categoria “jornalismo investigativo” apenas uma forma pomposa de descrever uma boa reportagem? Entre os que defendem essa linha de pensamento está o escritor e jornalista colombiano Gabriel García Márquez: “a investigação não é uma especialidade do ofício, já que todo jornalismo tem que ser investigativo por definição”. No entanto, é necessário distinguir dentre os vários produtos informativos, os gêneros “notícia” e “reportagem”. Sequeira (2005) descreve que o jornalismo investigativo requer “olhar além do que é convencionalmente aceitável, por trás das interpretações dos fatos que nos são fornecidos pelas autoridades e pelo autoritarismo, e apelar para o senso de justiça, ou, ao menos, o espírito das nossas leis”. Um jornalista investigativo é um indivíduo cuja profissão é descobrir a verdade e identificar lapsos em qualquer mídia disponível. Isso difere do trabalho aparentemente similar realizado pela polícia, advogados, auditores e instituições regulatórias, uma vez que não se limita ao público-alvo, não possui fundamentos legais e é estreitamente vinculado à publicidade. (SEQUEIRA, 2005, p. 9) Em contraste ao sentindo de notícia (cuja reflexo é o relato breve e objetivo), a reportagem compre principalmente o papel de estimular o senso crítico do público consumidor para aquele problema ou realidade construída através da mídia. No entanto, para que esse produto seja bem fundamentado, é necessário informação, fatos confiáveis e pontos de vista contrastantes. Assim sendo, essa é a contribuição que o jornalismo investigativo pode trazer para a formação de uma esfera pública da qual todos possam participar, tendo acesso a informações da melhor qualidade possível. O jornalismo investigativo e a linguagem radiofônica O noticiário tem uma ampla e articulada série de valores que estabelecem o caráter de “noticiabilidade”, ou seja, quais fatos são adequados para serem notícia, seja por sua proximidade, relevância, urgência, dramaticidade e assim por diante. E quais os critérios de notícia no radiojornalismo? Estudo produzido por esta autora em 2014 aplicou as teorias do jornalismo para compreender


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o que é notícia na rádio Jornal (principal veículo radiofônico de Pernambuco). Além da prestação de serviço (informações sobre o trânsito, clima e etc), categorias como: esportes, polícia e cidades predominam. A referida pesquisa também analisa o quanto o gênero reportagem é desvalorizado na programação radiojornalística diária, razão pela qual, aos espectadores, resta a imposição da “ideologia do flash”, conforme analisa Marcondes Filho (2009): Opta-se por essa forma também porque ela permite mais facilmente encurtar uma matéria ou porque supõe-se que o leitor não vá chegar até o fim; logo, não é preciso se preocupar com a concatenação de argumentos. Por fim, faz-se essa escolha porque ela segue a lógica da própria digitalização do conhecimento, a redução do saber a blocos sintéticos de informação. Neste caso assiste-se à imposição da ideologia do flash, da desmontagem dos saberes organizados como uma estrutura do pensamento, da informação à la carte. (...) os jornais escolhem deliberadamente esse procedimento para evitar a “intelectualização” da notícia, por desconhecer ou menosprezar as capacidades do leitor, em suma, por apostar (em geral, baseada em preconceitos) numa informação de menos qualidade. (MARCONDES FILHO, 2009, p. 50) Pelas próprias características do meio radiofônico (condições e rotinas produtivas da redação), de uma maneira geral, os fatos não são checados e contextualizados como deveriam ser. O jornalismo diário lida rapidamente com as informações recebidas, em geral, aceitando o que as autoridades (ministros, polícia, bombeiros, universidades, porta-vozes institucionais) determinam como fatos apropriados para serem transformados em notícia. A reportagem noticiosa é descritiva, objetiva, enquanto o jornalismo analítico, o qual está inserido o gênero investigativo, busca disponibilizar dados e reconfigurá-los, ajudando-nos a questionar situações ou declarações ou a ter uma visão diferente. O jornalismo investigativo seleciona suas informações e prioridades de diferentes modos. Para potencializar o papel social do radiojornalismo, a produção deveria investir mais no jornalismo investigativo. A linguagem das reportagens poderia assumir narrativa mais descritiva e ocupar maior espaço na programação, utilizando maior pluralidade de fontes, com o objetivo de munir o ouvinte de um maior número de referências sobre um mesmo acontecimento. Entre os fatores limitantes, originados da estrutura e rotina produtiva do radiojornalismo, estão: equipe reduzida e a pressão do tempo, que impactam principalmente na construção da notícia sob a ótica da reportagem, já que este gênero é o único identificado em

que se é necessário lançar mão de mais fontes e de uma narrativa mais detalhada e que exige maior rigor jornalístico. Na construção da notícia do radiojornalismo diário supõe-se que “não é preciso se preocupar com a concatenação de argumentos”. Esta é, pois, a lógica da própria digitalização do conhecimento, em que o saber acaba reduzido a “blocos sintéticos de informação”. Por falta de conhecimento ou mesmo pelo menosprezo das capacidades do ouvinte, assiste-se à imposição da ideologia do flash, baseada na “desmontagem dos saberes organizados como uma estrutura do pensamento”. Ao final, aposta-se em uma informação de menor qualidade. O comprometimento da investigação aprofundada sobre o fato também atua como fator limitante. A fragmentação do discurso potencializa a objetividade, no sentido em que restringe a variedade e pluralidade de posições (ALSINA, 2009). O efeito de verdade desta “não verdade” gerada pela mídia é bem forte, já que se encontra encoberta a maioria dos mecanismos de produção.

Referências: ALSINA, Miquel Rodrigo. A Construção da Notícia. Petrópolis. RJ, Vozes, 2009. BURGH, Hugo de. Jornalismo Investigativo: contexto e prática. São Paulo – Rocca, 2008. FERNANDES, Karoline; ROCHA, Heitor. A reportagem no radiojornalismo: o modelo da Rádio Jornal do Commercio do Recife. Santa Maria, RS. FACOS/UFSM. Revista Rádio-leituras. Disponível em: https://radioleituras.files.wordpress. com/2014/07/artigo2.pdf. LAGE, Nilson. A reportagem: teoria e técnica de entrevista e pesquisa jornalística. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2001. MARCONDES FILHO, Ciro. O desafio das tecnologias e o fim das ilusões. São Paulo: Paulus, 2009. MELO, José Marques de. Teorias do Jornalismo: identidades brasileiras. São Paulo: Paulus, 2006. SEQUEIRA, de. C. M. Jornalismo Investigativo – o fato por trás da notícia. São Paulo: Summus, 2005.

Karoline Fernandes é jornalista, mestre em comunicação pela UFPE, repórter da Rede TV! e apresentadora do podcast O Grito FM. Assina a seção Rádio Antena (pode ser esse nome?), que discute os novos formatos e gêneros radiofônicos na contemporaneidade.


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Comunicação na Web Jornalismo, Sociedade e Internet Por Ana Célia de Sá

Reconfigurações do jornalismo em tempos de internet A internet tem se firmado como um ambiente robusto de atuação do jornalismo. Isso se dá, especialmente, a partir do final de 1999 e início do ano 2000, quando o estouro da bolha digital nas bolsas de valores mundiais marcou o início da chamada web 2.0 (termo cunhado por Tim O’Reilly), a qual rompeu o polo de emissão de conteúdos, criou canais de informação e conversação independentes de fontes formais e impulsionou a personalização, a articulação coletiva e a interatividade entre produtor e usuário (BORGES; BUZALAF, 2011). Nesta fase, ganhou força a cooperação por meio de redes sociais, blogs, conhecimento coletivo e jornalismo participativo. O discurso fluido e a instantaneidade do tempo real articularam novas formas do fazer jornalístico amparadas pela organização em redes de informação e pela distribuição de conteúdo em fluxo contínuo, traçando novos caminhos para a notícia embasados na multimidialidade, na multiplicidade informativa e no reposicionamento do público. As reconfigurações técnicas e sociais do jornalismo, ainda em curso, trouxeram consequências na elaboração, na apresentação e na propagação do produto informativo. Palco das transformações digitais, a internet proporciona a circulação multidirecional de produtos baseada em interatividade, coletividade e dinamismo, com uma performance conjunta de velhas e novas mídias voltada mais à interação do que à substituição. Jenkins observa que a “[...] cultura da convergência está sendo moldada pelo crescente contato e colaboração entre as instituições de mídia consagradas e as emergentes, pela expansão do número de agentes produzindo e circulando mídia, e o fluxo de conteúdo pelas múltiplas plataformas e redes” (JENKINS, 2009, p. 347-348). Intrincado a este contexto, o consumo midi-

ático associa-se a conceitos de narrativas múltiplas, fragmentação narrativa, personificação, tempo real, expansão narrativa e produção colaborativa, num estímulo ao posicionamento ativo do internauta e ao modelo de circulação horizontal. O hiperlink assume papel de guia no mosaico informativo digital, articulando as lexias em um roteiro lógico, embora não linear. Antigos formatos de apresentação da informação passam por adaptações diante das possibilidades tecnológicas estimuladas pela arquitetura virtual do ciberespaço. A linguagem do webjornalismo, conforme explica Canavilhas (2007), passa a condicionar-se por três características da rede de computadores: hipertextualidade, capacidade de fazer conexões por links; multimidialidade, união articulada de plataformas como texto, vídeo e áudio; e interatividade, entendida pela capacidade de o usuário interatuar com o conteúdo. Essas propriedades possibilitam ao internauta realizar uma leitura pessoal da informação disponível, numa navegação por nós informativos que permite a personalização. Isso situa a web como um meio de comunicação de massa e também pós-massivo, ou seja, apto a promover uma fruição individual e de natureza privada. Ao enfocar as redes sociais on-line, em particular o Facebook, é também possível perceber, nos perfis jornalísticos, as características supracitadas. A formatação de conteúdos e os espaços de interação com os internautas vão de encontro à perspectiva da notícia como produto finalizado e unilateral. Este ambiente abre espaço para a integração de plataformas, inclusive com transmissões audiovisuais ao vivo; a qualificação espacial mediante o uso de hiperlinks, usufruídos de modo não linear; e uma dinâmica mais participativa com o público via comentários, reações e compartilhamentos, embora com diferentes graus de interferência articulados por relações de poder ainda presentes nas redes sociais. Sobre o último aspecto elencado, cabe a alusão aos três modelos deliberativos de Habermas (1997) na perspectiva da democracia:


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modelo de acesso interno, com iniciativa das autoridades políticas ou da elite; modelo de mobilização, também parte do sistema político, mas com ativação da esfera pública; e modelo de iniciativa externa, em que a ação orientadora dos fluxos comunicativos pertence às forças que estão fora do sistema político, as quais tentam inserir demandas na agenda formal de discussão social com o uso da opinião pública mobilizada. No Facebook, podem ganhar força os modelos de mobilização e de iniciativa externa a partir do fortalecimento da autoridade do público, em um reconhecimento das potencialidades cognitivas dos atores sociais. É certo afirmar que existam distintas capacidades individuais de participação na cadeia produtiva dos meios de comunicação, exemplificadas na disponibilidade de tempo, no conhecimento dos temas e na imersão no contexto social (HABERMAS, 1997). Porém a autoridade do público não pode ser desconsiderada, especialmente no ambiente on-line, cuja natureza está diretamente vinculada a ideais de liberdade e participação. Ao tentar quebrar o fluxo oficial da informação midiática, por exemplo, o internauta apresenta-se como sujeito ativo na construção de conteúdos digitais, enfrentando o discurso hegemônico elitizado e fortalecendo o exercício da cidadania. A partir da visão construtivista, a notícia acompanha este quadro, uma vez que compõe esta realidade, a qual produz e é produzida pelo ser humano, protagonista da organização social (BERGER; LUCKMANN, 2004). Orientada por aspectos sociais, profissionais e tecnológicos, a notícia apresenta versões concentradas, dramatizadas e sugestivas da realidade interpretada pelo jornalista. Este ato decifra a realidade do mundo e assume o sentido e alcance dos fatos transmitidos pelos meios de comunicação, conforme defende Gomis (1991). Constrói-se, assim, um tempo presente social que ultrapassa as vivências imediatas e amplia o alcance numa escala global, com duração variável, de acordo com a permanência dos fatos na agenda social. Vale reafirmar que o presente social apresentado pelos meios de comunicação não é um espelho da sociedade, e sim uma interpretação mediada da realidade socialmente constituída. Na internet, a realidade social edifica-se no ciberespaço, que une tecnologia e pessoas em um ambiente virtualizado, que transcende a geografia. O tempo presente equivale ao “agora”, numa busca constante pela instantaneidade amparada pelo compartilhamento da informa-

ção em fluxo contínuo, de modo simultâneo e multidirecional. Esta esfera social torna-se palco do webjornalismo, o qual absorve este cenário e aprimora suas técnicas profissionais. A união entre jornalismo e internet parece inevitável à manutenção do primeiro na conjuntura da sociedade digital. Esta parceria ultrapassa, no entanto, a adaptação técnica e cumpre o papel social que qualifica o jornalismo numa proposta de reinvenção que tenta acompanhar a narrativa da própria vida cotidiana: múltipla, fluida, sem espaços físicos nem horários edificados, personalizada, ativa, expansiva. A compreensão desta dinâmica passa pelo estudo do webjornalismo, das potencialidades narrativas configuradas nas redes sociais e do exercício profissional como atividade socialmente construída.

Referências: BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A Construção Social da Realidade: tratado de sociologia do conhecimento. Tradução de Floriano de Souza Fernandes. 24 ed. Petrópolis: Vozes, 2004. BORGES, Rosane da Silva; BUZALAF, Márcia Neme. Espaço e design do jornalismo impresso na contemporaneidade: confluências com o jornalismo digital na web 3.0. IN: Anais do I Congresso Mundial de Comunicação Ibero-Americana – Confibercom. ST 08 – Jornalismo. São Paulo: USP, 2011. Disponível em: <http://confibercom.org/anais2011/pdf/317. pdf>. Acesso em: 02 out. 2013. CANAVILHAS, João. Webnoticia: Propuesta de modelo periodístico para la WWW. Covilhã: LabCom, 2007. [e-book]. Disponível em: <http:// www.livroslabcom.ubi.pt/pdfs/20110823canavilhas_ webnoticia_final.pdf>. Acesso em: 27 jun. 2012. (Série: Estudos em Comunicação) GOMIS, Lorenzo. Teoría del Periodismo: cómo se forma el presente. Guanajuato: Paidós, 1991. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. V. 2. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. Tradução de Susana Alexandria. 2. ed. São Paulo: Aleph, 2009.

Ana Célia Sá Leitão é doutoranda no Programa de PósGraduação da Universidade Federal de Pernambuco PPGCOM/UFPE.


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Jornalismo Ambiental Sociedade, natureza e mudanças climáticas Por Robério Daniel da Silva Coutinho

Rio São Francisco: água é indissociável do novo clima

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pesar dos recordes anuais consecutivos das elevações da temperatura do ar no planeta, condição que interfere no comportamento do clima, há ainda uma baixa percepção pública e política de que este cenário tende a elevar a frequência e a intensidade das estiagens em regiões onde os especialistas classificam como as mais vulneráveis aos efeitos do aquecimento global e da mudança climática (IPCC, 2008). A região Nordeste do Brasil é uma delas. Nela, ampliar-se-á problemas para as populações, fauna/flora e aos setores produtivos diante das secas mais intensas e frequentes que se acentuam. O NE convive com a maior seca dos últimos 100 anos. É oportuno salientar que 2016 bateu um novo recorde global de temperatura. Aliás, o século 21 já registrou 16 dos 17 anos mais quentes desde que no final do século 19 iniciaram os registros de temperatura no mundo. Todavia, a percepção dos brasileiros sobre o risco das mudanças climáticas é reduzida (ISER, 2008). Há uma baixa visibilidade social e grande marginalização e silenciamento da representação noticiosa (jornalismo) sobre os riscos do fenômeno do clima de forma contextualizada por setores socioeconômicos e biofísicos - condição comunicativa esta, que, se considerado que o jornalismo tem o papel central/estratégico para dar visibilidade social de uma agenda para o público, a sociedade continuará problematizando marginalmente até a questão da água dentro deste novo contexto de irreversível mudança antrópica do clima. Dada a conclusão de parte da transposição do rio São Francisco, a Revista Exame aproveitou este ‘gancho jornalístico’ para tratar desta questão. A reportagem abordou a importância da obra e introduziu no debate a situação do clima, sem, com isso, ancorar-se sob a ótica do quadro de seca instalado no NE por seis anos. O fez problematizando o novo comportamento climático. Foi abordado os múltiplos usos da água no sertão do NE e a seca neste contexto dos novos efeitos e sobre impactos do aquecimento global e expôs uma certa preocupação com a mudança do clima. Foi então problematizado a questão da eficiência da referida transposição.

A publicação, apoiada em fontes especializadas em hidrologia e climatologia, contextualiza e problematiza a eficiência da obra se a mentalidade de gestores insistirem em paradigmas emergenciais em tempo de seca que abstraem novos paradigmas das ciências em relação aos comportamentos passado, presente e futuro do clima em sinergia à mudança climática: se a transposição do rio São Francisco virar realidade para milhões de nordestinos, seus esperados benefícios dependerão de que esse raciocínio seja posto em prática (EXAME, 2017).

Mudanças climáticas no Nordeste já é uma realidade Apesar da marginalização das notícias jornalísticas sobre os riscos das mudanças climáticas e a da baixa percepção/problematização pública/política sobre a questão no NE brasileiro, há pesquisas científicas que demonstram que a alteração antrópica do clima já é uma realidade e grave. Vários comportamentos históricos e prognósticos futuros de variáveis da atmosfera já comprovam essa situação. Destacam-se a correlação do aumento da temperatura e a redução da chuva. Vale frisar que a “precipitação e a temperatura estão entre variáveis meteorológicas mais importantes para os estudos das mudanças climáticas, uma vez que sua variabilidade espacial e temporal são características marcantes do clima no NE e PE” (LACERDA, 2015). Estudos já mostram este novo padrão climático em locais do semiárido. Este cenário recebeu certa visibilidade na reportagem da Revista Exame. “Na região de Araripina, em Pernambuco, a temperatura média vem aumentando em 1ºC grau a cada dez anos, ritmo dez vezes maior do que a média. Ao mesmo tempo, a taxa de chuva tem diminuído cerca de 1,5% a cada ano, e a tendência, sobretudo com o aquecimento global, é de piora desse cenário” (EXAME, 2017). Os dados postos são do doutorado em Recursos Hídricos da meteorologista de Francis Lacerda (2015). A sua tese identifica sinais de processos de aridificação no semiárido derivados do comportamento da mudança do clima, que indicaram tendências de aumento das temperaturas máximas e redução da pluviosidade média anual nos postos em localidades do Sertão e do Agreste. O comportamento está se asse-


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melhando cada vez mais ao de uma região de deserto. Já nos cenários de mudança climática para o período futuro até 2050, o estudo indicou um aumento mais rápido da atual temperatura máxima diária no NE se comparada às simulações para o futuro. A pesquisa analisou como está e ficará o balanço hídrico. Suas projeções indicaram uma diminuição da disponibilidade de água no solo e precipitação total e aumento das taxas de evapotranspiração potencial ao longo dos anos em praticamente todas as áreas. As projeções do balanço hídrico não entraram na reportagem da Exame, mas este problema foi posto quando centrou na problematização da gestão das águas do rio diante deste contexto da transposição associado-o aos necessários novos paradigmas perante a análise e o uso das informações sobre o novo comportamento do clima. Não foi por alarmismo que o título desta reportagem especial foi intitulada Transposição do rio São Francisco pode virar elefante branco. A Exame problematizou a eficácia do novo equipamento estrutural diante do novo comportamento climático. “Mais do que apenas infraestrutura, o que o NE precisa hoje é de governantes capazes de usar informações relevantes para geri-la (a água/clima)”. E aprofunda: “basear a gestão de crises de seca em registros passados não parece uma estratégia muito sensata...(é preciso estar atento ao)...estágio da seca de acordo com sua localização e as chances de progressão no curto, médio e longo prazo” (Vale introduzir aqui o raciocínio atrelado ao novo comportamento do clima). Amplia-se, portanto, a necessidade e uso das pesquisas científicas sobre a mudança climática para ajudar nesta transformação dos paradigmas na gestão das águas. Contudo, a efetiva ação desta ou de outra ação político-econômica e socioambiental diante deste novo comportamento do clima (ainda pouco percebido socialmente) carece de ampla visibilidade pública/política das mudanças climáticas e suas ameaças atreladas às vulnerabilidade, efeitos e aos impactos nos setores socioeconômicos (agricultura, por exemplo) e biofísicos (estiagem, por exemplo). A mídia, por sua vez, pode e tem papel social relevante na alteração das formas de trabalhar com as representações simbólicas da mudança do clima, a fim de contribuir na transformação da visão popular sobre a complexidade e os desafios objetivo e real do fenômeno do clima no cotidiano das pessoas (LARCERDA, 2014). Porém, a cientista avalia que, no geral, a questão dessas representações ainda têm sido marginalizadas nas notícias. Contudo, é pertinente frisar que as demandas do povo ganham legitimidade suficiente na esfera pública, quando há ampla capacidade comunicativa, podendo, assim, influir no funcionamento da administração do aparelho de Estado, em favor destes pleitos reverberados. (HABERMAS,

1997). Portanto, dentro de todo o exposto, além de pesquisas científicas sobre a mudança do clima, é indispensável que elas ganhem a notoriedade pública contextualizando-as diante da necessidade e desafios da sociedade perante as suas vulnerabilidades, efeitos e impactos do novo comportamento do clima. Em síntese, demanda-se uma comunicação próxima da realidade e do cotidiano das pessoas. Urge, assim, que a questão receba visibilidade na representação noticiosa da realidade social - condições estas fundamentais para ajudar na percepção/problematização do público e assim subsidiar maior pressão social por políticas de mitigação do problema e estratégias de adaptação às mudanças climáticas, fenômeno do qual é indissociável a gestão da água com o novo comportamento do clima, seja no Semiárido, Agreste, Zona da Mata, Litoral ou outras áreas.

Referências: EXAME. Transposição do rio São Francisco pode virar elefante branco. São Paulo. 03 de mar. 2017; IPCC - INTERGOVERNMENTAL PANEL ON CLIMATE CHANGE. Climate Change 2007. Cambridge University Press, Reino Unido: Cambridge, 2007; ISER - INSTITUTO DE ESTUDOS DA RELIGIÃO. O que as lideranças brasileiras pensam sobre mudanças climáticas e o engajamento do Brasil. Relatório final, 2008; HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre facticidade e validade. Volume 2. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997; LACERDA, Francis Larcerda. Tendências de temperatura e precipitação e cenários de mudanças climáticas de longo prazo no Nordeste do Brasil e em ilhas oceânicas. Tese (Doutorado) - UFPE, Recife, 2015; ______ Visão popular da mudança climática. In Jornalismo e mudanças climáticas: desafios para uma adequada representação noticiosa. Recife: Editora UFPE, 2014.

Este espaço apresenta abordagens críticas e interdisciplinares relativas à produção da representação noticiosa da realidade social (jornalismo) sobre as mudanças climáticas e a sua influência na constituição do sentido social sobre a questão. É escrito pelo jornalista Robério Coutinho, mestre em Comunicação pela UFPE, com formação básica em Meteorologia pelo INPE/CPTEC, exassessor de imprensa do Laboratório de Meteorologia de PE, bolsista pesquisador da Rede Brasileira de Mudança Climática e autor de livros sobre o temática.


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Opinião

A Questão Social na Amazônia Brasileira Por Roberto Ramos Santos

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o longo da sua história, o Brasil tem relacionado seu crescimento econômico a um regime de exclusão social e desigualdade regional com vulnerabilidade de setores expressivos da população. Nesses mais de quinhentos anos, o fato de o País não ter conseguido desenvolver políticas públicas satisfatórias de redução da pobreza e da erradicação da fome tornou mais complexa a magnitude dos seus problemas sociais e econômicos. A ausência de serviços sociais básicos, de responsabilidade pública, vinculados à saúde, educação e geração de renda – que pudessem contribuir para consolidar a cidadania –, fez que uma parte considerável de sua população não desfrutasse os padrões sociais mínimos de subsistência no que se

refere às condições e à qualidade de vida, principalmente em regiões que apresentem menor desenvolvimento, como é o caso da Amazônia. Pelo “vazio” demográfico dessa região, há quem diga que seus maiores problemas referem-se, unicamente, à questão ambiental e fundiária, com destaque para o risco no processo de internacionalização, os desmatamentos da floresta sem controle do Estado e o uso indevido e não sustentável dos recursos hídricos e minerais. São negligenciados os demais problemas da região, que se traduzem na desigualdade social, por exemplo, o surgimento de subcidadãos, que nunca terão direito aos benefícios do crescimento econômico. Um retrato dessa triste realidade está no número de brasileiros, por região do país, vivendo em


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condições de pobreza e vulnerabilidade. Os dados do Programa Brasil sem Miséria, divulgados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea, 2016), mostram que o Norte brasileiro – correspondente a 77% da Amazônia Legal, além dos estados do Norte (a Amazônia Legal brasileira é composta por Mato Grosso e parte do Maranhão), e população censitária de 16.983.485 habitantes – registrou, em 2014, conjuntamente, taxas de pobreza absoluta (rendimento médio domiciliar per capita de até meio salário mínimo mensal) e vulnerável (renda domiciliar per capita maior que meio salário e menor que um salário mínimo) de 72,9%. O percentual da região só não foi maior do que as taxas registradas no Nordeste de 77,1%. Outro aspecto que marca o atraso social dessa região refere-se à educação. Os dados do Censo 2010 (IBGE, 2011) apresentam a região Norte do país como o local de maior percentual de pessoas que nunca frequentaram a escola (14,1%); cerca de quatro pontos percentuais acima da média nacional de 9,8%. O Nordeste registrou 12,6%; Centro-Oeste 10,3%; Sudeste 7,7%; e Sul 7,6%. Na análise da porcentagem de pessoas de 7 a 14 anos de idade, que estão fora da sala de aula por Unidade Federativa, destacam-se as últimas posições para os estados amazônicos do Pará com 5,9%, Acre com 7,5%, Roraima com 7,7% e Amazonas com 8,5%. Além do problema da exclusão escolar que restringe oportunidades educacionais, afetando diretamente a expansão do campo da cidadania, os estados da Amazônia mostram dificuldades para ultrapassar a média Brasil IDEB de avaliação do desempenho da educação básica. Em 2015, para as últimas séries do ensino fundamental, nenhum dos estados do Norte conseguiu ultrapassar a média Brasil de 4,5 pontos. No ensino médio, com exceção do Amazonas, que conseguiu equivalência à média nacional, com nota de 3,7, os demais estados obtiveram, em 2015, índices inferiores nessa área crucial para a formação humana e ingresso no mundo do trabalho. Na área da Saúde, no que diz respeito ao saneamento básico, a região Norte, em relação ao tratamento de esgoto, é o mais atrasado, o que acarreta impacto ambiental e social com a transmissão de doenças por meio de água poluída como esquistossomose, leptospirose, diarreia, dermatite e hepatite A principalmente em crianças menores. Os dados de 2015 do Instituto Trata Brasil (2016) mostram que essa região tem somente 16,42% de esgoto tratado, no Nordeste 32,11%; no Sul 41,43%; no Sudeste 47,39%; e no Centro-Oeste 50,22%. Dados esses que contribuem para manter

elevada a mortalidade infantil e uma baixa expectativa de vida que, em 2016, teve média de 73,85 (IBGE, 2016). Embora os dados do Ministério da Saúde registrem, nas duas últimas décadas, uma tendência geral de queda no número de óbitos em menores de 1 ano de idade – a cada mil crianças nascidas vivas, a taxa de mortalidade infantil da região Norte (18,1%), no Censo 2010, foi superior ao percentual brasileiro de 15,6%. O Nordeste ficou em primeiro lugar, com 18,5%, e o Centro-Oeste em terceiro, com 14,2%. As regiões Sul e Sudeste foram as que apresentaram, no censo, os mais baixos percentuais de mortalidade infantil com respectivos 12,6% e 13,1%. Diante do exposto, é urgente e necessário combatermos, coletivamente, a exclusão social e econômica que tem afetado nossa população, trabalhando para que a questão social, independentemente de ideologias político-partidárias, faça parte das ações contínuas do Estado brasileiro, como integrante e estratégica, na luta pela superação da pobreza e das injustiças em nosso país. Referências: IBGE. Censo demográfico 2010: características da população e dos domicílios: resultados do universo. Rio de Janeiro, 2011. Disponível em: <http://biblioteca.ibge.gov. br/visualizacao/periodicos/93/cd_2010_caracteristicas_ populacao_domicilios.pdf>. Acesso em: 4 fev. 2014. ____. DPE. Coordenação da população e indicadores sociais. Grandes regiões e unidades da federação: esperança de vida ao nascer segundo projeção populacional 1980, 1991-2030. [2016]. Disponível em: <http://www.ibge.gov. br/home/presidencia/ noticias/imprensa/ppts/0000000243.pdf>. Acesso em: 26 out. 2016. INSTITUTO TRATA BRASIL. Situação saneamento no Brasil. [2016]. Disponível em: <http://www.tratabrasil.org. br/saneamento-no-brasil>. Acesso em: 19 abr. 2016. IPEA. Retrato das desigualdades de gênero e raça. Indicadores: pobreza, distribuição e desigualdade de renda: tabelas. Brasília: Ipea, [2016]. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/retrato/indicadores_pobreza_ distribuicao_desigualdade_renda.html >. Acesso em: 19 abr. 2016.

Roberto Ramos Santos é doutor em Ciência Política pela USP, professor no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional da Amazônia da UFRR e pesquisador no Núcleo de Pesquisas Eleitorais e Políticas da Amazônia (Nupepa). E-mail: roberto. ramos@ufrr.br.


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Opinião

Escassez e abundância na União Europeia Por Pedro de Souza

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m 1966 o General De Gaulle, o herói da Segunda Guerra Mundial depois eleito Presidente da França, declarou numa conferência de imprensa: “A política da França não se faz na corbeille”. Ou seja, na Bolsa. A corbeille era um recinto, no centro da sala de mercado da Bolsa de Paris, à volta do qual os corretores apregoavam as transações. Em 1987 a corbeille foi substituída por sistemas digitalizados. Passados 50 anos a política da França continua não se fazendo na bolsa, mas os “mercados” tomaram o seu lugar na União Europeia (UE). Duas das três mais importantes instituições europeias, o Banco Central Europeu (BCE) e o Banco de Inglaterra são dirigidos por antigos dirigentes do banco Goldman Sachs. O ex-presidente da Comissão Europeia, o português Durão Barroso, se tornou presidente não executivo do Goldman Sachs International. O Eurogrupo, a reunião dos Ministros das Finanças dos países que adotaram o euro, presidido por um socialdemocrata holandês, aplica a política de austeridade do BCE, dos “mercados”, e do governo alemão. A política econômica da União Europeia não se faz na bolsa, mas é refém dos mer-

cados financeiros. Dos mercados globalizados, ou seja, da especulação. A relação entre as finanças e a economia mudou radicalmente desde os anos 60. A função primordial da bolsa, o investimento produtivo, representa hoje uma parcela ínfima das suas atividades. As pontes entre a finança internacional e a economia real são a concentração da renda e da propriedade na mão de um número cada vez mais reduzido de indivíduos, de bancos e de fundos de pensão. Essas entidades recebem os fundos dos bancos centrais “independentes” para investir na economia real, mas na realidade acabam “investindo” de preferência na especulação e, em caso de problema, se forem suficientemente “sistêmicas”, são resgatadas pelos bancos centrais. Os lucros são privados, os prejuízos suportados pelos contribuintes, pela população em geral. Salvam-se os bancos e os especuladores, mas arrestam-se os bens daqueles que não podem honrar os compromissos que contraíram com esses mesmos bancos. A abundância de alguns é a escassez de muitos. Na Europa os governos se veem desarmados diante de uma multidão de desempregados, e da


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precarização do trabalho. Ou seja, diante da criação de bolsões de atraso nos seus países, que até aos anos 1980 eram socialmente mais homogêneos. Esta precarização do trabalho é hoje agravada pelos avanços da tecnologia, com a robotização da indústria e a digitalização do setor de serviços. Ou seja, não só a riqueza se concentra, mas sobretudo trabalho também escasseia, deixando à margem uma parte da população. Perdendo o trabalho ou, seguindo a cartilha liberal, emendando um trabalho precário atrás do outro, a famosa “flexibilidade”, o trabalhador não perde apenas o sustento, mas sobretudo o valor-trabalho, a sua dignidade, num processo ilustrado por aquilo a que se vem chamando de “uberização”. Com a precarização do trabalho são também os sindicatos e os partidos da esquerda tradicional que sofrem, como o partido socialdemocrata holandês que estava coligado com a direita no governo e foi o grande derrotado das últimas eleições, perdendo 3/4 dos deputados. A população empobrecida, sem esperança de ascensão social - e também a mais idosa e franjas da classe média que não acompanham a fragmentação da sociedade em minorias aguerridas - é a que se revolta contra os imigrantes, cujo estilo de vida acirra os seus reflexos identitários. É a que se revolta contra os movimentos de população dentro da própria UE, quando se vê suplantada pelos trabalhadores dos países do ex-bloco soviético, melhor formados, dispostos a trabalhar por salários vis. É a população da escassez que se sente alheada da modernidade e abundância dos jovens afluentes. É a população das redes sociais, que exercem a função do rádio nos anos 20, fonte de todas as manipulações. Essa é também a população que não vota, ou votava à esquerda, e hoje quando vota escolhe crescentemente os partidos anti-UE. A população que votou o Brexit e que vai votar por Marine Le Pen, a candidata de extrema direita à presidência da França, mesmo que esses partidos se revelem incapazes de propor qualquer alternativa além da violência, do caos, do ressentimento e da nostalgia de um passado que nunca existiu. Para essa população a UE surge como o bode expiatório ideal. É verdade que a UE é uma entidade complicada, pela dificuldade em tomar decisões a 28, e deficitária em matéria de democracia. É verdade também que dado o seu peso econômico a Alemanha surge hoje como o líder da União e impõe uma rigorosa política de austeridade que lhe é vantajosa. Se cristalizaram então vários desses partidos abertamente anti-UE, que espalham uma cultura “popular”, onde ecoam reminiscências fascistas. Para eles o regresso à soberania nacional se-

ria a solução. E arriscam tomar o poder em alguns países europeus, ou já tomaram, como na Polónia e Hungria. O Reino Unido, numa operação calamitosa do partido conservador, decidiu abandonar a Europa. Na península ibérica o sentimento anti-UE tende pelo contrário a se exprimir na extrema-esquerda, em razão do passado recente desses países, submetidos a ferozes ditaduras. O ano de 2017, com as eleições na França e Alemanha, além das negociações sobre o Brexit, será decisivo. É pouco provável que a extrema-direita consiga chegar ao governo em qualquer desses países, e na Europa Ocidental em geral. O problema é saber até que ponto os partidos de direita saberão resgatar a UE do meio dos escombros da onda populista insuflada por Donald Trump. Para que a UE volte a ganhar protagonismo é necessário que a Alemanha abandone a política de austeridade. É necessário que a população entenda que as receitas de austeridade, que podem se justificar na economia doméstica, não funcionam ao nível das economias nacionais. Quando você economiza em casa, o seu orçamento melhora, mas o seu emprego não some por causa disso, que é o que acontece se a austeridade se generalizar a toda a economia. Diante de questões como a do clima, da saúde pública, da revolução tecnológica e do trabalho, transnacionais por excelência, não há respostas nacionais à altura. O remédio para a Europa é mais união, mais democracia, mais controle público sobre a economia, melhor distribuição de renda e mais autonomia das políticas imperiais russa e americana. É possível no entanto que essa opção pela fusão consentida se faça apenas entre alguns dos 27 países da UE. O que pode significar uma UE a “várias velocidades”, como apregoam agora os governos alemão e francês. Mas já não se trata de uma questão apenas de política econômica, mas de uma questão cultural e política estratégica. Porque uma UE a “várias velocidades” pode também significar uma Europa desfeita em rivalidades pró-Rússia e pró-EUA, o mais curto caminho para o regresso de uma lógica de confronto de blocos, semelhante à que precedeu a Primeira Guerra mundial, a primeira de todas as que devastaram a Europa ao longo do século XX, até à guerra da Iugoslávia (1991-2001), cujas valas comuns ainda mal estão cobertas.

Pedro de Souza é pesquisador, editor e exSuperintendente Executivo do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento. E-mail: pdrdesouza@gmail.com.


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Opinião

Combater a desigualdade na informação é um desafio da comunicação pública Por Lincoln Macário

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omunicação é um direito humano. Esse conceito foi consolidado no relatório “Um mundo e muitas vozes”, publicado pela Unesco em 1980. O documento também ficou conhecido pelo nome do presidente da comissão que o elaborou, o irlandês prêmio Nobel da Paz pela defesa dos direitos humanos Seán MacBride. Passados 37 anos, a contundência do “Relatório MacBride” – que fez EUA e Grã-Bretanha se retirarem temporariamente na Unesco – não se converteu em uma comunicação mais democrática, em informação mais acessível. Não foi assim no mundo, não foi assim no Brasil, apesar das melhorias pontuais. O relatório denunciava a exacerbada comercialização da informação e o consequente acesso desigual do cidadão a ela, ambos resultados em parte de uma excessiva concentração dos meios de comunicação em grupos privados ou, mesmo quando públicos ou estatais, fortemente influenciados por interesses privados. É nesse contexto que se começa a usar de maneira mais intensa a expressão Comunicação Pública, para se contrapor àquela, dominada pela esfera privada. Mas a Comunicação Pública passou a ser invariavelmente associada à comunicação organizacional ou jornalismo feitos por órgãos públicos. Porém, o caráter público ou estatal do emissor nunca foi garantia de que a comunicação de fato estaria focada nos interesses e necessidades do cidadão. As

ditaduras militares latino-americanas foram pródigas em exemplos de que um emissor estatal pode na verdade se tornar um entrave à fruição do direito a Comunicação. Compreender que não é o caráter do emissor que garante uma comunicação pública é parte da sua conceituação, mas pelo viés da negação. A conceituação positiva da comunicação pública é um desafio constante, uma construção. Mas o maior desafio ainda é a prática. Como fazer a comunicação de forma que o cidadão seja o centro do processo, como receptor, mas também como protagonista. As novas tecnologias, aceleradoras dos processos de interatividade, vêm ampliar os horizontes da Comunicação Pública, mas vêm também aumentar seu caráter desafiador. É esse instigante desafio, essa missão, que faz surgir a Associação Brasileira de Comunicação Pública - ABCPÚBLICA. Formada por profissionais que atuam e que estudam o tema, a associação se propõe a ser um fórum para a formulação e, especialmente, disseminação de conhecimento em torno dele. Se a comunicação deve ser uma construção coletiva, horizontalizada, uma associação que a defenda, não pode ser obra de poucos, e verticalizada. Por isso a fundação da associação é, essencialmente, um convite, de um pequeno grupo de pessoas, para o coletivo de trabalhadores da comunicação, estejam eles atuando ou não nesse seguimento es-


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pecífico. O crescimento das iniciativas de comunicação pública e o ocaso de alguns veículos privados tradicionais sinalizam com um horizonte amplo e convidativo para o desenvolvimento de habilidades e conceitos nessa seara. Infelizmente, ainda é grande o desconhecimento e, consequentemente, algum preconceito com a chamada Comunicação Pública. É fato que ela nasce para se contrapor a excessiva privatização dos fluxos de informação. Mas isso não significa que a comunicação pública tenha que ser estatal. Mas o fato dela não ser estatal não significa dizer que ela prescinda totalmente do poder estatal. As principais iniciativas de Comunicação Pública no mundo nascem estatais e permanecem tendo aportes estatais – BBC, Deutsche Welle, TV France, RAI, NHK – e não há quem ouse hoje dizer que essas são emissoras estatais e não públicas. Também não é verdade que não se possa ter comunicação estatal de caráter público. Quando focada na prestação de serviço ao cidadão, a comunicação estatal é pública. Em resumo, o campo é tomado de sobreposições e divisores tênues, que exigem uma reflexão bem mais profunda sobre o seu fazer, seus potenciais e suas limitações. As reflexões sobre o caráter público da comunicação têm sido mais eloquentes na área do jornalismo. A própria deontologia da profissão assim exige. Jornalismo enviesado não é jornalismo. Mas já não é dogma em nenhuma redação que a isenção total é algo inalcançável. É meta a ser perseguida. E é por isso que um outro conceito se torna fundamental: pluralidade. Se se abster por completo das visões de mundo é impossível, é preciso garantir que o maior número de visões seja representado; é caminho para o equilíbrio necessário ao conteúdo jornalístico. Porém, como garantir isso? Quem guarda os guardiões? Um instrumento cada vez mais em voga são os conselhos editoriais ou curadores, necessariamente plurais. Mas eles funcionam? Como fazê-lo? Essas são reflexões urgentes que propomos ao campo. Mas um grande desafio do campo público é ampliar o debate para além da área do jornalismo. A publicidade de caráter público é uma área de enorme potencial a ser explorada. Uma das discussões necessárias, e que começa a ganhar corpo na publicidade, é o seu papel de combater e não perpetuar estereótipos, como historicamente se processou nesse mercado. Mesmo no setor privado já se tem inúmeras iniciativas no sentido de fazer das peças publicitárias estopins para a reflexão. No último 8 de março pode se ver uma profusão de campanhas que buscavam combater a objetificação da mulher, particularmente nos anúncios de cervejas. Ainda são iniciativas isoladas e temporalmente pontuais,

mas que sinalizam com o potencial que a publicidade pode ter nesse processo de reinvenção. No campo do audiovisual há também muitos desafios. Um dos maiores é o da inclusão. Já existe uma legislação que obriga uma quantidade considerável de conteúdo acessível à deficientes visuais e auditivos, mas a execução dessa política pública vem enfrentando barreiras a sua efetividade: as obras audiovisuais não têm sido pensadas e produzidas de forma que a audiodescrição, por exemplo, encontre espaços para a introdução dos textos. Isso significa dizer que mesmo que uma emissora cumpra as seis horas diárias de conteúdo com audiodescrição, a sua qualidade, a sua eficiência, deixam muito a desejar. É também comum que as decisões sobre quais conteúdos serão audiodescritos se dê mais por critérios de viabilidade do que de interesse público, quando esse último é o que deveria realmente pautar tais decisões. É urgente, portanto, sensibilizar profissionais das mais diversas áreas para a compreensão de que mudanças, muitas vezes mínimas, em suas rotinas de trabalho, podem ter um enorme impacto na democratização do acesso a conteúdos audiovisuais. Quem estudou minimamente o tema sabe que não se quer abrir espaços gigantescos dentro das obras audiovisuais para a introdução de textos de audiodescrição, mas apenas mudanças pontuais, com pouquíssimo impacto para quem não é deficiente, mas que fazem uma gigantesca diferença para quem precisa de tais recursos. Os exemplos acima, no jornalismo, na publicidade, no audiovisual, são só pequenas ilustrações de como há um enorme campo de reflexões a serem desenvolvidas para que o caráter democratizador das comunicações seja mais efetivamente alcançado. Porém, há outras áreas, como a relações públicas, a editoração, esperando por serem também mais debatidas. Então, reiteramos o convite: vamos refletir, diagnosticar, inovar, avançar rumo a uma comunicação que mereça o epíteto de pública.

Lincoln Macário é Presidente da ABCPública e jornalista concursado da Câmara dos Deputados, atuando como âncora na Rádio Câmara e TV Câmara. Anteriormente, ocupou cargos de editor e apresentador na TV Brasil; repórter de política da Rádio CBN; editor-chefe e apresentador na TV Band Brasília; repórter e produtor na RedeTV; editor, repórter e produtor na extinta Radiobrás. Bacharel em Comunicação (UnB), especialista e mestre em Ciência Política (Câmara dos Deputados e UnB). Foi presidente do Sindicato dos Jornalistas do DF de 20102013.


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Opinião

A crítica marxista de Kautsky ao bolchevismo Por Rubens Pinto Lyra

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existência, durante mais de sessenta anos, de regimes que se autoproclamavam socialistas, ou comunistas, nos países do Leste europeu, gerou um quiproquó de dimensões que a história jamais havia produzido anteriormente: a confusão entre aqueles regimes e o socialismo tal como concebido por Marx. Confusão algo parecida só aconteceu com o cristianismo, no período da Inquisição, quando a Igreja foi comandada por Papas, como Alexandre VI, e países como a Espanha, por monarcas, como os Reis Católicos. O primeiro praticava, em nome da defesa da Fé, traições, complots e assassinatos como instrumento quotidiano de governo. E, tanto o primeiro quanto os segundos, tortura e violência sistemática, voltadas, sobretudo, contra quem fosse considerado herege, bastando a suspeita de ser infiel para correr o risco de ser condenado à fogueira. Contudo, nem a teoria de Marx nem a doutrina

cristã podem ser confundidas com práticas ou regimes neles supostamente inspirados. Não obstante, é o que continua ocorrendo com o marxismo. A queda do Muro de Berlim, em 1989, que detonou o suposto comunismo na Europa, pode ser considerada o contrassenso coletivo mais extraordinário que a história conheceu: a morte dos regimes coletivistas burocráticos - anti-capitalistas, mas não socialistas - foi percebida, transmitida e, finalmente, interiorizada, como sendo também a falência do marxismo. Não apenas o homem comum, mas também a intelligentsia e os próprios socialistas alimentaram esse quiproquó: o de que as concepções leninistas consistiam na aplicação da teses de Marx e que tudo mais seria, como pretendia Lênin, “grosseira deformação do marxismo”. Por isso, as críticas à suposta ditadura do proletariado instalada na Rússia – na verdade, ditadura de um partido sobre o povo, que assumiu viés totalitário sob Stalin - feitas por Karl Kautsky desde os primeiros meses da Revolução Russa, foram desconsideradas, face ao enorme prestígio que desfrutava o “país dos soviets”. Lênin, que via em Kautsky o maior teórico marxista de seu tempo, passou a considerá-lo “renegado”, pelo fato daquele pensador alemão discordar do caráter socialista que ele atribuiu à Revolução de Outubro de 1917. Com efeito, para Kautsky, uma revolução socialista seria incompatível com o estágio semi-feudal da economia russa, portanto, com classe trabalhadora pouco numerosa, sem substância social para assegurar, democraticamente, no plano político, a sua hegemonia. Em magistral síntese, Máximo Salvadori mostra como, na ótica kautskiana, o stalinismo teria sido, não uma ruptura com o bolchevismo, mas “a sua culminação necessária”: Fora Lênin quem destruíra a possibilidade de desenvolvimento democrático aberta na Rússia em fevereiro de 1917 e forçara as condições econômico-sociais, não maduras para o socialismo. O preço desse forçamento fora a ditadura armada da minoria, que inutilmente o chefe da revolução russa buscara conciliar com a democracia soviética, impossível em si. Fora Stalin quem eliminara


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definitivamente essa contradição, tornando-se, assim, ao mesmo tempo, herdeiro de Lênin e aquele depurara a sua obra da insustentável contradição entre ditadura do partido e democracia soviética. Diferentemente de Lênin, Kautsky entendia como Marx - que revolução em país de capitalismo incipiente estava fadada ao fracasso, já que o socialismo está geneticamente associado à existência de forças produtivas desenvolvidas. Consequentemente, ao protagonismo de uma classe operária plenamente constituída, impulsionadora do processo de aprofundamento da igualdade social e da ampliação contínua da democracia. Ainda no remoto ano de 1931, quando o regime soviético se encontrava no auge, o “renegado” Kautsky antevia que: Essa louca experiência vai terminar em estrondoso fracasso. Nem mesmo o maior dos gênios poderá evitá-la. Ele se deve naturalmente ao caráter irrealizável da empreitada, nas condições dadas, com os meios utilizados. Quanto maior o projeto, maior a violência para obter êxito, que só poderia provir de uma lâmpada mágica, como a de Aladin. Kautsty desvelou a natureza do suposto comunismo soviético: um coletivismo burocrático que violentou o marxismo, na medida em que submeteu a economia à camisa-de-força do estatismo. Isto porque, não contando a Rússia com uma classe trabalhadora desenvolvida, a substituiu pela nomenklatura: burocracia repressora, comandada pelo partido único e ciosa de seus privilégios, liquidando assim as chances da democracia. Durante os longos anos de glória do lenino-stalinismo, Kautsky foi uma voz isolada entre os marxistas – e mesmo entre os socialistas em geral - a se colocar em posição de eqüidistância entre o bolchevismo e o capitalismo, preconizando uma Terceira Via, efetivamente socialista e democrática. Com efeito, naquele período, marcado pelo mais acendrado maniqueísmo, existiam apenas duas “verdades”: a dos comunistas, que consideravam o regime soviético a primeira etapa de um paraíso terrestre em construção, e a dos adeptos do liberalismo que concebiam o “mundo livre”, liderado pelos Estados Unidos, como a expressão inquestionável e vanguardista do progresso econômico e da liberdade humana. A esmagadora influência do leninismo impediu que os socialistas compreendessem aquele que foi o leitmotiv das obras do principal teórico da II Internacional e por cuja efetivação consagrou o melhor de suas energias: não há socialismo sem democracia, democracia e socialismo são indissociáveis. Com efeito, a incompletude – para usar um eufemismo – da crítica de marxistas de diferentes matizes em relação ao comunismo soviético tal-

vez esteja no fato de que não se desvencilharam da premissa legitimadora do leninismo, a saber: quem exprimia os interesses da classe operária na Revolução Russa eram os bolcheviques. Portanto, essa vanguarda podia acertar ou errar, mas era ela quem tinha legitimidade para conduzir a revolução, e somente ela. Daí porque as críticas feitas pelos socialistas influenciados pelo leninismo jamais focalizaram os mecanismos internos do sistema falido, seus princípios fundadores, o desdobramento de sua lógica. Têm razão os que afirmam que a dissociação entre marxismo e leninismo permanece uma conditio sine qua non para a revitalização dos ideais socialistas, sem a qual o próprio Ocidente corre o risco, como demonstra a crise profunda que o abala, de conhecer uma profunda regressão. Porém, para que o contrassenso coletivo, acima mencionado, não perdure, impõe-se que a esquerda assuma autocrítica, até hoje não feita, por ter admitido – e agido – como o socialismo pudesse existir sem democracia. Conforme ensina Robin Blackburn: para qualquer doutrina, a capacidade de auto-correção integral é tão importante quanto o seu ponto de partida. Este seria o pré-requisito para a plena recuperação da credibilidade das teses de Marx: mostrar disposição para enfrentar a história e assumir, de uma vez por todas, um debate amplo, sem exclusões, sobre os regimes lenino-stalinistas, de índole burocrático-estatista, muito distantes do socialismo, tal como o concebia o extraordinário teórico alemão. É também, condição para que estratégias de mudança possam ser construídas, nelas abrigando os ingredientes que permitirão, a médio e a longo prazo, o seu êxito. Entre estes não pode faltar a democracia institucional e as regras de jogo em que se assenta. Porém, associada ao aprofundamento da democracia participativa, com vistas à desconstituição pacífica da ordem jurídica, interagindo com o poder estatal e contribuindo para o seu efetivo controle. A gestão do Estado, com a participação ativa da sociedade, não é apenas uma idéia, e (ou) um ideal socialista, mas objetivo tão inseparável da realização de uma sociedade emancipada como a própria democracia. Rubens Pinto Lyra é Doutor em Direito Público e Ciência Política (Université de Nancy, França) e Professor do Programa de Pós-Graduação Direitos Humanos, Políticas Públicas e Cidadania da UFPB. Email: rubelyra@uol.com.br


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Mídia Fora do Armário Jornalismo e construções identitárias Por Rui Caeiro

Poderá o jornalismo ir além?

E

m 1972, preocupados em investigar qual a influência que os meios de comunicação desempenhavam nos debates públicos, Maxwell McCombs e Donald Shaw propuseram-se a investigar a campanha eleitoral para a Presidência dos Estados Unidos de 1968. Dentre outras conclusões, os dados coletados permitiram inferir a existência de uma marcada relação entre os temas mais colocados em pauta pela mídia e o grau de atenção dado pela audiência às diferentes questões em debate na campanha. De lá para cá, a preocupação em perceber qual o papel da mídia na definição do que é discutido, e em que termos, não cessou, sendo mesmo, na atualidade, um dos pontos em torno do qual gira o debate sobre a credibilidade do jornalismo. Afinal, investigar o que a mídia coloca em pauta, e de que forma, possibilita – principalmente

desde que as redes sociais tornaram possível uma divulgação de informação mais descentralizada e contraditória –, eventualmente, colocar em destaque as exclusões que estão subjacentes a tais seleções. Sendo necessário salientar que a agenda midiática não é autônoma, mas ela mesma constítuida pelos consensos e dissensos culturais hegemonicamente aceites, pelo poder de influência de atores diversos (portanto com capacidade de influência desigual) e pela produção discursiva de diversas instituições – ou seja, colocar como central não apenas a constituição da agenda pública pela mídia, mas da agenda midiática pela sociedade, e, principalmente, pelas instituições e sujeitos com maior poder para tal –, é inegável que a (grande) mídia continua, ainda, a ter grande autoridade na definição dos temas sobre os quais, e como, pensamos. Quando as notícias versam sobre multidões (e não ‘minorias’) historicamente marginalizadas (sexualizadas, racializadas, generificadas, enfim, classificadas), não raras vezes é possível perceber


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um tratamento jornalístico que, através da individualização, ignorando, ou tornando superficial, o contexto político do acontecimento – ou seja, os caminhos por que são construídas e mantidas estruturas de violência –, coloca-se a favor do sistema que nega dignidade e direitos iguais para todas/os. Como exemplo disso podemos pensar a notícia publicada pelo The Huffington Post, intitulada “«Vai ter branca de turbante, sim»: Jovem com câncer retruca advertência de ativista negra”. Publicado no passado fevereiro, o material, que gerou bastantes discussões nas redes sociais, reproduziu o relato publicado no facebook por uma jovem branca, com câncer, supostamente abordada por uma mulher negra que se sentiu incomodada pelo uso de turbante por uma não-negra. Iniciado com uma breve contextualização sobre apropriação cultural – conceito pouco conhecido e debatido pela população brasileira em geral –, o artigo logo coloca que “o que pode parecer apropriação cultural à primeira vista pode ser também um instrumento de empoderamento”, assim remetendo a discussão para o uso individual de determinado objeto – para quem poderia ou não fazê-lo e para quem teria autoridade ou não para o legitimar (estarão as mulheres brancas a sofrer algum tipo de racismo na atualidade, cometido por mulheres negras, que em bloco impedem o uso de tal objeto?). Apesar dos vários textos que insistentemente salientaram o desvirtuamento de um debate complexo e necessariamente profundo, que remete para a intersecção entre capitalismo e racismo, portanto, sistêmico – exemplo disso é o texto do The Intercept Brasil “Na polêmica sobre turbantes, é a branquitude que não quer assumir seu racismo”, assinado por Ana maria Gonçalves, ou o publicado pela CartaCapital “O uso de turbantes por pessoas brancas é apropriação cultural?”, por Tory Oliveira –, o mote já estava dado: “Muita gente aplaudiu a atitude de Thauane. Outros estão criticando. Qual é a sua opinião? Deixe nos comentários”. Para além das possíveis críticas à notícia (como a inexistente checagem de fatos e simples reprodução de um post de facebook), importa refletir sobre os objetivos e efeitos da mesma, levando em conta esse seleção, que sempre é necessária, de maneira a definir os limites da estória relatada, mas que não é arbitrária. É precisamente esse processo, em que determinados aspectos são salientados, de maneira a promover determinada interpretação e avaliação moral, que é necessário ter em atenção, tentando perceber porque e como se constitui. Tendo em conta que os enquadramentos midiáticos são, em maior ou menor escala, representativos da cultura em que são forjados, as notícias devem ser percebidas na sua relação mais profunda com a socieda-

de, os acontecimentos não vistos, exclusivamente, como o fruto do confronto entre diferentes sujeitos (individuais, ahistóricos), mas como o resultado de uma construção social mais duradoura e estável – não inabalável –, produtora de consensos e infrações moralmente valorados (pensamos aqui sobre notícias que se reportem às ‘multidões’ já referidas, mas esta reflexão deseja-se mais abrangente). Escreve Antonio Hohlfeldt (2013, p.200) que o “agendamento por parte da mídia depende, efetivamente, do grau de exposição a que o receptor esteja exposto, mas, mais do que isso, do tipo de mídia, do grau de relevância e interesse que este receptor venha a emprestar ao tema, a saliência que ele lhe reconhecer, sua necessidade de orientação ou sua falta de informação, ou, ainda, seu grau de incerteza, além dos diferentes níveis de comunicação interpessoal que desenvolver”. No Brasil, país em que os níveis de racismo e outros crimes de ódio (nem sempre assim reconhecidos) são alarmantes e em que, em função disso, a ceifa ou diminuição de vidas se tornou quase banal, é urgente debater a responsabilidade (e responsabilização) da mídia na produção dos seus materiais, principalmente quando os temas, e perspectivas, que coloca em circulação incidem sobre direitos humanos (muitas vezes não tratados dentro desse enquadramento). Enquanto tais produções (portanto, sujeitos e instituições) não colocarem como central o contexto político das normas que, não arbitrárias, definem moralidades e diferenças (diferenças definidas e valoradas de acordo com moralidade herdada do projeto colonialista europeu), legitimadoras de exclusões (inclusive de falas tornadas, ou não, públicas), não existe alteridade possível que cancele o adiamento eterno de um jornalismo comprometido com uma projeto de sociedade mais justo.

Referências: HOHLFELDT, Antonio. Hipóteses contemporâneas de pesquisa em comunicação. In HOHLFELDT, Antonio; MARTINO, Luiz C.; FRANÇA, Vera Veiga (Orgs). Teorias da Comunicação: conceitos, escolas e tendências. Petrópolis: Vozes, 2013. p.187-240.

Assinada pelo jornalista Rui Caeiro, mestre em Comunicação pela UFPE, a coluna ambiciona instigar reflexões que se debrucem sobre as relações que se estabelecem entre produção midiática/jornalística e a construção e vivência de identidades consideradas abjetas em nossa sociedade. O foco será em sexualidade e gênero.


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No Balanço da Rede Jornalismo em tempos conectados Por Ivo Henrique Dantas

Livro discute novas tecnologias móveis e jornalismo

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ruto do 3º Congresso de Jornalismo em Dispositivos Móveis (JDM 2016), o Labcom publicou este mês o livro Jornalismo Móvel - Linguagem, gêneros e modelos de negócio, organizado pelos pesquisadores João Canavilhas e Catarina Rodrigues. A publicação é a terceira criada a partir de discussões sobre os impactos das tecnologias móveis sobre o fazer jornalístico. Anteriormente, já tinham sido publicados os livros “Notícias e Mobilidade: O jornalismo na era dos dispositivos móveis”, de 2013, e “Jornalismo para Dispositivos Móveis: Produção, distribuição e consumo”, de 2015. “E se insistimos na temática é porque neste período de quatro anos se continuou a verificar um

crescimento nas vendas de dispositivos móveis com o consequente aumento no número de acessos a conteúdos online. Esperava-se que o consumo massificado de notícias online tivesse repercussões nas receitas dos meios de comunicação e no surgimento de novos formatos e linguagens adaptadas a uma receção tecnologicamente avançada, mas nada disso aconteceu. Continua a ocorrer uma divergência crescente entre o potencial dos dispositivos de receção e a qualidade dos conteúdos produzidos pelos meios de comunicação, o que frustra as expectativas dos consumidores e limita a geração de receitas. Face a este cenário, a investigação científica tem a obrigação de discutir o problema e este livro é mais contributo para essa discussão”, explicam os organizadores. Dividida em quatro partes, a obra conta com artigo assinado por membros da Revista Jornalismo e Cidadania. Ivo Henrique Dantas e Heitor Rocha discutem os impactos das tecnologias na produção da notícia do portal pernambucano NE10, mostrando as mudanças na rotina jornalística e discutindo o lugar relegado ao público em meio ao crescimento da cultura participativa e convergência. A publicação do Labcom conta ainda com artigos que discutem o papel do Facebook no processo de consumo da notícia, o modelo do The New York Times, a interação, através do WhatsApp, de jornais com o público e as fases do jornalismo ubíquo. O download é gratuito e pode ser realizado através do link abaixo: http://www.labcom-ifp.ubi.pt/livro/289 Escrita pelo jornalista Ivo Henrique Dantas, doutorando em Comunicação na UFPE, a coluna No Balanço da Rede aborda o cenário das mídias digitais, com foco no debate acerca dos impactos na produção jornalística voltada para o meio online e o papel do webjornalismo na construção social da realidade.


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