5 minute read

Opinião | Pedro de Souza

Opinião

A nossa guerra Por Pedro de Souza

Advertisement

Recentemente, 152 bispos brasileiros assinaram uma “Carta ao povo de Deus”, de quatro páginas, acessível na internet (1), que tem recebido o apoio crescente da sociedade brasileira. Nessa carta, os bispos fazem uma lúcida defesa da saúde pública e da democracia no Brasil e criticam severamente o atual governo pelo descaso criminoso, ou proposital, usando uma técnica genocida que não diz o nome, mas que um dia talvez seja julgada em Haia. Descaso que manifesta em relação à vida e aos direitos dos brasileiros, nomeadamente os mais pobres e os indígenas, que morrem às dezenas de milhares.

Finalmente a Igreja Católica brasileira parece ter saído da ausência conivente em que a mergulhou o Papa João Paulo II, ao silenciar os católicos, eclesiásticos ou não, comprometidos com a Teologia da Libertação, de que o Bispo D. Pedro Casaldáliga permanece como símbolo de integridade.

A Igreja brasileira parece ter acordado para o fato de se estar vivendo no mundo de hoje uma guerra cultural apoiada e impulsionada pelas franquias de “igrejas evangélicas”, na realida

de verdadeiras seitas mafiosas atuando através dos métodos de propaganda de massa das emissoras de rádio e televisão, que adquirem com o dinheiro do dízimo dos pobres que exploram. E atuando ainda por via das “redes de ódio” internacionais, serviços na web sustentados, entre outros, por milionários americanos. Conforme os países, elas se aliam ainda a entidades que defendem, por exemplo, a distribuição de armas à população — a exemplo dos EUA, onde a National Rifle Association (NRA) acaba de ter, por feitos de corrupção, a sua dissolução solicitada pelo Procurador-Geral de Nova York (2) — ou se associam a partidos e entidades racistas ou nazis, como nos Países Baixos, e em alguns estados da Alemanha, e na Hungria e na Polônia ex-comunistas, que caminham por vias tortas para a democracia.

Em Portugal, a influência do 25 de Abril tem- -nos posto ao abrigo de manisfestações mais graves dessas ideologias, porém é certo que, num país de baixo nível cultural e de experiência democrática superficial (haja vista a percentagem de abstenção nas eleições), há espaço para que

essas ideologias do ódio se expandam, como se viu há pouco com uma manifestação se declarando a Ku Klux Klan em Lisboa, em frente de uma associação antirracista. Suspeita-se que a polícia esteja infiltrada por membros de extrema-direita e que o governo socialista prefira não dar muita atenção a esses delitos para não insuflar mais fortemente essa doença na vida portuguesa. Política arriscada...

Também já temos um candidato de extrema- -direita à próxima eleição presidencial de janeiro de 2021, na pessoa de um deputado, o mal nomado Ventura.

Há vários meios para combater essa verdadeira dissolução mental e cultural, sobretudo a educação da população, e a repressão fiscal e policial desses falsos religiosos. Urge também fortalecer, na cultura popular, os traços da natural solidariedade entre povos de origens diversas, se integrando mutuamente; sobretudo se as autoridades municipais não patrocinarem a constituição de guetos de pobres, como é infelizmente ainda, muitos vezes, o caso. Os bairros populares devem ser cuidados como um bem precioso de uma cidade, pois é neles que se dá o convívio, onde se desenvolve a compreensão entre os povos. Não é nos bairros dos golden visa.

Hoje observamos que essa ideologia repugnante já chegou ao Conselho Europeu e carece de uma oposição mais cerrada e clara. Pois, para quem vem observando o crescimento da extrema-direita na Europa desde o século passado, sobretudo na França, fica claro que, se ela apresenta traços de ideologias defuntas, o terreno que a faz vigorar é o do liberalismo econômico, com o seu desemprego sistêmico, entre outras características que conhecemos desde o século XIX, e a série de guerras que promoveu.

Hoje a forma que esse fenômeno toma na Europa é a de uma Europa protestante, que sentirá certas afinidades com essa ideologia evangélica, que, para tentar combater os seus extremos, acaba assumindo a sua índole, e que acusa de devassidão de costumes e gestão a Europa latina e católica, em termos que lembram os das guerras de religião. Guerra, no entanto, de um só lado, pois, se excluirmos a venerada figura do Papa Francisco, o silêncio da Igreja Católica europeia é ensurdecedor.

Estaria a Igreja Católica europeia impedida, com a questão da pedofilia? A verdade é que, salvo nas salas de aula das escolas que dirige, em algumas instituições de caridade e em alguns santuários, pouco se ouve a Igreja Católica. Em Portugal, não vamos pedir ao Senhor Cardeal Patriarca de Lisboa que saia a cavalo contra os infiéis, coberto pelo baldaquim do Senhor dos Passos, como acontece todos os anos ao descer a pé o Chiado. Mas que não se engane de guerra. Ele, que se diz monárquico, sabe certamente que o inimigo hoje não é o republicano, mas são esses pastores nórdicos, esses ministros de igrejas nuas e os pastores catódicos.

A Igreja Católica não tem do que enrubescer da civilização latina, da cultura e arte que magnificam os seus templos, em que se glorifica o esplendor da criação e onde os próprios artistas desses países nórdicos vieram beber a inspiração e a cultura, que rareavam nos seus bosques desolados.

Quando um negro é abatido na rua por um tresloucado, seria bom ouvir o pároco ou o bispo. Seria bom que a Igreja se fizesse ouvir nos bairros populares, enaltecendo os valores da convivência intercultural, e também quando, no Conselho Europeu, certos países votam ao desprezo àqueles de onde tudo lhes veio. Porque não foi só a cultura que eles vieram procurar no sul da Europa. Para citar apenas os Países Baixos, vimo-los lançando menos anátemas quando se assenhorearam pela força de muitas possessões portuguesas, por ocasião da união das Coroas espanhola e portuguesa, no Brasil, na Índia e no Ceilão, onde continuaram fazendo uso da língua franca de origem portuguesa para se comunicar com aqueles que, explorados, forneceram a base da riqueza nacional.

A guerra cultural não terá, talvez, vencedores, mas não devemos entrar nela como vencidos.

Notas

1 - https://www.cendhec.org.br/single- -post/2020/07/30/Carta-ao-Povo-de-Deus 2 - https://www.theguardian.com/us- -news/2020/aug/06/nra-accused-corruption- -wayne-lapierre-wilson-phillips-joshua-powell- -john-frazer

Pedro de Souza é editor, pesquisador e exsuperintendente executivo do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento.

This article is from: