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William Fontana

William Fontana Rio de Janeiro/RJ

Globalia dos Espíritos

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"Globalia é um governo global glorioso", assim dizia o anúncio. Os três 'G' da campanha eram expressivos à mania de grandeza enganosa de seus perpetradores pelo triunfo de séculos de conluio como apogeu de toda hipocrisia. Era a ditadura do sorriso, como práxis de fazer o maior mal recebendo o maior bem possível, sem nunca responder pelos próprios atos. A maior tirania que pode existir era aquela que lhe obrigava a dizer que não existe tirania, pois a prerrogativa dos tiranos no poder é que eles combatiam a tirania.

Os sorrisos eram vistos e os choros escondidos, choros as goteiras da tristeza da alma, pois ante todos tudo era prazer, mas no oculto tudo era dor. Mas a ilusão é um artifício que ambiciona é ocultar a verdadeira natureza da realidade, sendo ela boa ou má, mas a benefício de poucos sobre alheios. Somente se excluindo e ocultando a verdade um poder insidioso dele se potencializa ao deter essa verdade em injustiça.

Aquela sociedade amava sobretudo o futebol onde as grandes decisões em vez de serem tomadas por votos ou políticos eleitos eram decididas em partidas de futebol onde uma torcida entorpecida pela efervescência de seu clamor estava cega ante sua própria paixão como um vício no ópio.

Porém, aos muitos embotados na labuta cotidiana embebida na ignorância como força motriz da ilusão viviam suas vidas sem saberem dos sofrimentos individuais no coletivo. Era de um a um que se fazia o conjunto, mas Lorena disso não sabia até ter sua vida mudada naquele dia. Seus olhos que nunca vislumbraram a luz do dia agora veriam mesmo as trevas da noite sem fim que sobrevinha de modo disforme sobre seus cidadãos.

A operação de seus olhos haviam sido um aparente sucesso. Utilizando-se de tecnologia revolucionária era um híbrido sintético entre orgânico e tecnológico sendo capaz de enxergar inúmeros espectros de luz, mesmo aqueles imperceptíveis aos olhos humanos naturais.

Coube a ela em seu primeiro vislumbre ver o que não se via com seus biônicos olhos que cobriam amplo espectro de luz e mais de 16 milhões de cores pelo padrão da informática ao adaptar seu cérebro a interpretá-las. Mas a visão do que nunca fora visto aos mortais orgânicos saíra de controle naquela operação pioneira.

Reservada como era, inicialmente não saberia como descrever o que nunca fora visto, mas acreditando ser visto pelos demais ela se indagou o que seriam vultos disformes que se avolumavam por detrás das pessoas da rua. Era como sombras que tinham vida, possuíam cores invisíveis aos olhos humanos em tons indescritíveis. Mas ao contrário das sombras que refletiam o movimento dos objetos, de alguma forma aqueles vultos influíam no movimento e comportamento de seus objetos, os cidadãos de globalia.

Impossibilitada de descrever como aquilo seria, a mentalidade orgânica do ser humano comum inicialmente ela explicava se tratar de 'sombras vivas' que agiam por detrás dos seres humanos como ventríloquos, relés trapos de carnes que vestiam a ilusão soberba do oculto.

Mesmo que ela desafiasse o pensamento mediante a racionalidade a fim de atingir essa verdade, não havia modos mensuráveis de quantificar aquelas presenças perturbadoras que com o tempo passaram a perceber que eram percebidas.

E assim o comportamento das pessoas se modificavam a medida com que aqueles espectros coloridos percebiam isso. As pessoas davam início assim a uma sequência de atitudes suspeitas e sem sentido lançando lhes insinuações indiretas repletas de ameaças e humilhações em seu âmago. Como a única ponte possível para aquelas criaturas espectrais se comunicarem com o mundo usavam os invólucros de carne como seus avatares, meros veículos de interação com a realidade tangível.

O medo era uma constante crescente para Lorena, que ficava então sabendo de acontecimentos atípicos as pessoas comuns, como brigas, traições e atos moralmente duvidosos aos cidadãos de globalia. Muitos pareciam sofrer ante aqueles desmandos ocultos intrínsecos a um mal que visava manipular a verdade por meio das engrenagens de segredos.

Caminhando certa vez nas ruas, ela sentia-se gradualmente sufocada num estupor que parecia paralisá-la de modo crescente. Tentou alertar alguns, mas fora chamada de louca.

Um zumbido crescente parecia acompanhar os efeitos visíveis de tais seres, o que o doutor afirmou ser um efeito colateral das leituras cerebrais de novos espectros de luz. O homem fora o primeiro a dar crédito as visões de Lorena. Ainda que inicialmente acreditasse se tratar de 'fantasmas' por defasagem espectral como nas antigas televisões analógicas, a mulher era veemente em suas afirmações ao dizer que haviam padrões comportamentais o qual o precursor eram os espectros.

Lei algum poderia prever aquilo, mas numa demonstração prática, Lorena, demonstrou nas ruas como algumas pessoas iriam se comportar antes mesmo que estas o fizessem o que deixou o doutor perplexo. As pessoas eram sombras do que as controlavam.

Também explicou ela como os espectros agiam fazendo gestos humanoides por detrás dos humanos fantoches, gestos que eram seguidos pela repetição dos mesmos mediante aparentes sussurros inaudíveis aos ouvidos, mas transmitindo sensações e pensamentos diretamente as mentes dos controlados.

O bom doutor então fez uma leitura de seus novos olhos por encriptação por seu sofisticado computador, a fim de tentar decifrar as imagens imperceptíveis a olhos nus. Porém, era virtualmente impossível descobrir qual espectro de luz em questão tornava tais seres visíveis que sendo feitos de algum tipo de matéria impossível de se apalpar não havia meios conhecidos de se adquirir amostras.

Fora então que ela percebendo que os seres pareciam cada vez mais agressivos com ela que notou que o crescente desinteresse do doutor era gestado por um desses espectros. Ela sentia-se isolada e sozinha ante tudo e todos, ao saber de verdades que agora não sabia com quem compartilhada.

Razão alguma parecia concordar com ela pois era manipulada a não chegar a qualquer pensamento concordante. Assim sem saber o que fazer e temendo ser tratada como uma louca num delírio dissociativo da realidade passou a escrever num diário aquilo, mas que sobretudo agora uma dessas entidades parecia rodeá-la mesmo em casa, numa busca por esquadrinhar meios de adentrar sua mente e subjugá-la.

Aí fora quando coisas impensáveis começaram a acontecer.

Um ruído incomum como de uma sinestesia parecia acompanhar os efeitos luminosos de cores da entidade de acordo com que se modificava aparentemente com cada movimento e intenção. Assim ela fora capaz de estabelecer parâmetros e padrões de uma aparente linguagem involuntária daquele ser insidioso o qual ficava âmbar quando se irritava.

Demasiadamente preocupada, ela agora passou a sentir fortes dores de cabeça que latejavam ao serem acompanhadas de sensações o qual o precursor estava na entidade. Como se sentisse o que o ser sentia, quando este ordenava a fazer determinado momento ou falar determinada coisa ela sentia dentro de si a vontade daquilo como um sussurro diretamente a seu cérebro ao transpassar sorrateiro o labirinto de seu ouvido por frequências sonoras inaudíveis.

Então, numa luta com a entidade a mulher sem ter a quem recorrer se pegou sonhando com sonhos impostos onde entidades aparentemente demoníacas que usa os humanos para corrompê-los e destruí-los lutavam para assimilar sua mente ao escrutínio daquele poder que controlava a sociedade de Globalia.

Sabendo que não tinha para onde correr, a mulher ainda assim correu. As ruas ela percorreu em prantos até que não suportando o peso daquela entidade vociferou irrompendo o silêncio noturno. — Socorro, ele quer controlar-me e ditar tudo que sinto e quero!

As poucas pessoas que estavam próximas pararam na rua quando a entidade de uma mando-a rir e a de outro fazer sinal de loucura girando o dedo em torno da orelha. A mulher caiu de joelhos no chão em desespero, nada poderia fazer até que sua resistência cedeu e a vontade do ser se tornou sua vontade. Como um robô levantou-se e sorriu pedindo desculpas pelo ocorrido, era apenas um engano, nada estava acontecendo.

Justamente quando ela fora subjugada e sua mente dominada percebeu que mesmo os jogos de futebol onde decisões eram tomadas serviam a uma ilusão, um ópio que os manipulam a crer na espontaneidade de jogos vendidos as grandes corporações e controlados por essas entidades, da menor falta no jogo ao melhor gol. O povo torcia pela vitória de seu time, sem saber que mesmo a torcida de sua vontade não era sua própria vontade.

Mas num último fiapo de resistência ela pensou em seu último pensamento espontâneo de vontade: haviam muitas possibilidades para ela, mas nada do que fizesse impedirá o sol de nascer amanhã, apenas se ele não nascer será uma possibilidade.

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