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Elvira Gastrite

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Valéria Barbosa

Valéria Barbosa

Elvira Gastrite

Cheguei

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— Olá, querida Elvira Gastrite – disse a Morte carregando uma prancheta e de posse de óculos. — Morte? O que você faz aqui? - pigarreei alto devido à sinusite. — Sua hora chegou – disse a Morte enquanto os óculos de haste vermelha lhe caíam na face esquelética. — Quem disse? — Eu sou a morte, baby- a morte deu uma risada debochada. — Eu não quero ir, Morte. Não é a minha hora. Tenho muito a fazer: sou jovem, ambiciosa, cheia de sonhos, não tive filhos ainda, mas pretendo ter um dia quando encontrar a pessoa certa… - a Morte interrompeu-me. — Não há amor para você, amada. É essa sua hora de ir. Tudo o que tinha a fazer, já fizeste. Não é agora que você vai fazer o que deixou para depois. Ou como vocês humanos sempre dizem? Ah, sim, “amanhã eu faço”. Aquele “amanhã” que nunca chega. Aí acontece alguma coisa, a Morte vem buscar, e vocês de repente lembram que precisam viver! Mas ontem mesmo enquanto tinham tempo, nada fizeram. Eu lembro até da senhorita reclamando da vida, falando que queria morrer. Ué, cheguei. Você não fez pedido? Agora é por pedido, logo faço um aplicativo. Inclusive fui eu que inventei o serviço delivery. — Entendi o seu ponto. Obrigada por me ensinar que tenho que viver o agora, como sempre ouvi as pessoas falando por aí, mas olha, dona Morte, com todo o respeito, não é o momento. Tenho apenas 26 anos, que são os novos 16, é tudo tão novo… Além do mais, o que levaria uma jovem de 26 anos no meio da noite? Se eu fosse idosa, até teria alguma justificativa, mas sou jovem. E a quarentena ainda nem acabou! Quem sabe você volte a me visitar quando eu já estiver com tudo bem estabelecido?! - fiquei um pouco sem voz devido à sinusite. — A juventude não é garantia de vida eterna. A morte leva quando bem entende. Não existe mérito! Eu levo quem eu tenho vontade de levar. É meu trabalho desocupar a Terra um pouco, mexer as peças, assistir o que a morte de algumas pessoas faz à História, etc. Além do mais, se você já não tinha “tudo

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estabelecido” antes da quarentena, por que acha que depois dela conseguirá? Se eu deixo você ficar mais um pouco, você certamente desperdiçará o seu tempo dormindo, comendo e assistindo filmes e séries. Isso não é estabelecer sua vida, nem viver. — Ótimo, aprendi muita coisa, nossa, que interessante, sem méritos. Linda filosofia, dona Morte, mas tenho muito a fazer, então retire-se do meu quarto. Tenho muitos planos para depois da quarentena. Vá logo, dona Morte, tenho certeza que há outras pessoas lá fora que desejam que as leve. — Sei que sou desejada, mas agora é a sua vez, seu momento de brilhar, de virar poeira estelar e fazer parte de outros corpos, outras vidas, conhecer outros universos. Não é lindo? — Mas dona Morte, e a quarentena? Eu tenho muito a fazer depois da quarentena. — Faça no céu, no inferno, no limbo, seja lá para onde você vai. — Eu acredito que quando uma pessoa morre, não há céu nem inferno. Tudo acaba. — Poupe-me de suas crenças. Vamos logo. — E do que eu morri? — Covid-19. — É só sinusite. Já estou usando medicação para sinusite – meu nariz escorria enquanto dizia isso e minha voz estava meio pastosa, quase desaparecendo. — Você que pensa. Morreu de covid-19. Ficou se automedicando, não foi ao médico, fim eminente. Vamos. — Mas você não entende que… - a morte interrompeu-me e sem mais delongas, me puxou pelos braços com enorme força – deixou alguns arranhões –, pôs sua mão direita em minha boca e me cobriu com seu manto frio e fétido. Pelos rasgos no manto pude ver o meu corpo sem nenhum sinal de respiração, vagarosamente ficando para trás, dissociando-se, aos poucos, de minha alma.

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