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Ruan Mattos
Ruan Mattos São Paulo/SP
Abismo
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O baile do colégio tinha muitas pessoas. Esses eventos sociais, na adolescência, trazem aos jovens tamanha admiração. É fato que a adolescência é uma grande mentira. O pátio estava enfeitado com bandeiras coloridas. No meio, havia uma extensa mesa com pano branco. Em cima da mesa, uma enorme tigela com frutas. Ao lado desta, bebidas das variadas formas. Refrigerante, sucos… Muitos aperitivos. A comida não era o principal da festa. A música altíssima anunciava o que, de fato, seria memorável: a dança.
O rapaz chegou tímido. Não queria, na verdade, ir para aquela festa. Obrigações sociais são, realmente, os condutores da sociedade. A calça jeans e a camisa bem passada. Foi caminhando até a mesa. Pegou um pouco de suco de laranja. Aproximou-se dos colegas da classe. Conversavam sobre suas digníssimas acompanhantes. O jovem foi recebido com palmadas amigáveis nas costas. Depois, continuaram a conversa como se ele não existisse: – Como eu estava dizendo rapaziada… – disse o mais alto – a minha parceira é uma gata! Se hoje não sairmos daqui namorando, eu não saio…
Os demais rapazes concordavam com “risadas sociais”. Não riam por acharem graça, mas, por terem de rir. Risadas breves e que logo se dispersam no ar. O tímido rapaz também riu, porém, sua risada foi mais breve e mais grave. Logo disfarçou essa falsa risada com um gole no suco. Ele não tinha par. À menina que pretendia convidar adoentou-se, de modo que não pode ir ao baile. Estava preocupado com o ano que viria. A faculdade lhe seria período penoso. Trabalharia à tarde e, de manhã, iria estudar. Absorto em seus muitos pensamentos. Mexeram-lhe o braço e disseram: – Qual sua parceira?! Está surdo? – Ah sim… Bom… – quase como um susto respondeu, – A minha parceira é aquela morena ali na frente.
O jovem apontou para o meio de um grupo de meninas. Passava repentinamente a mão sobre a boca, a tapa-la. Queria esconder aquelas frases. – Aquela ali? – perguntou o mais alto apontando para mesma menina que ele.
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– Exatamente! – sentiu que os garotos estavam acreditando na mentira.
Ficou um momento de silêncio. As mãos trêmulas do rapaz se escondiam nos bolsos. Balançava continuamente o pé. Os meninos continuaram a conversa esquecendo a presença dele. Sentia aguda angústia. Quando menino imaginou que teria uma namorada no Ensino Médio. Sentiu vertigem. O projeto de si estava tão longe. Aquele era seu verdadeiro eu: rapaz feio, sozinho, e pior, mentiroso. A festa era momento conflitante.
Com um grito, o diretor anunciou o início da dança. As meninas caminharam eufóricas até seus pares. Por sorte, ninguém percebeu que ele estava sozinho. Caminhou até o meio do pátio. A água o afogava. Pessoas são água. Água que mata. – Rapaziada, vamos dançar juntos. Todos ali no meio – o jovem alto dava ordens com seu par nos braços. Todos concordaram com o que ele dizia.
O jovem, sem saber o que fazer, andou juntos com os demais. Os meninos estavam atentos demais a seus pares. Seria um momento mágico. Não se importaram com a mentira. Seguiu-os por um tempo. Cabeça baixa. Quando o diretor começou o discurso, deixou-os. Arrastavam os garotos pelo pátio. Sorrisos intensos. Passadas calmas – ou póstumas – até a saída. Olhos sujos de uma culpa vermelha. Seus pensamentos costuraram na alma do rapaz em dor. Dor em brasa. A expectativa que lhe tinha, para aquele dia, eram as melhores possíveis. Pensou nas belas e doces danças. Não houve dança. Uma dor aguda lhe atingia no estômago. O que havia naquela noite era abismo. O maior pecado cometido pelo ser humano: criar expectativas sobre as coisas.
A noite iluminada parecia usá-lo para o próprio prazer. A cabeça era pressionada por um “não ser” fulminante. O que queria? A idealização dói. Ou melhor, a falsa idealização é, tão somente, vaidade. O que o rapaz sentia era vaidade inflamando. Seus passos em cor púrpura. A Lua seguia-o com sorriso malicioso.
“Que bobagem! Triste por não ter um par? Rirei disso no futuro…”, consolavase em esperança pobre. A bobagem é dura. Dureza tão ínfima tal qual a mordida de uma formiga.
Pensou em ir para casa. A mãe carrega em seu olhar um dizer fraterno… A fraternidade também traz culpa. Doeria, sem dúvidas. A culpa vem dos primórdios da humanidade. Mas, por algum motivo, a culpa não lhe doía tanto. Havia beleza no que ele sentia. Talvez porque, sem qualquer congratulação, seu sentimento ultrapassava o limite do “bem” e do “mal”. Sua culpa não lhe
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nomeava “culpado”. Não havia julgamentos. Atuação é a condição para estar em sociedade. Naquele instante, não atuava. Ele não queria participar daquilo.
“A verdade é essa: minha ética é instável”, pensou. O pensamento é só, assim como a verdade. A verdade escandaliza o pensamento. Ele não estava só na rua. Algumas pessoas sentadas diante de pequenas mesas redondas. A faixa luminosa anunciava: tratava-se de um restaurante. Aquelas pessoas pareciam felizes. Sentiu raiva. Mastigava-o com gosto incerto de sangue. A raiva tem gosto de sangue. Sangue ferroso e rubro.
“Vai para casa, fracassado!”, gritou em silêncio para si mesmo. Na boca, cacos de vidro. A vida é vidro. Por isso, “eu-vidro” despedaçado juntou-se. Caído em abismo tão fosco, foi para casa. Ali tornou-se adulto.