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Rosa Acassia Luizari

Rosa Acassia Luizari Rio Claro/SP

Solidão coletiva

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Todas as noites eu chorava. Meus pensamentos organizados em um corpo estático, frio. As inúmeras leituras de teses e antíteses não foram suficientes para resolver os problemas com os quais eu me deparei ao longo da complexa jornada que durou muito tempo, mas acabou. Meu algoz, invisível, tornou mais difícil a mudança daquela situação de perdas em diferentes nuances, mas eu insistia em sobreviver. Tomei medidas emergenciais para enfrentar as dificuldades cotidianas. Mesmo assim, quando eu menos esperava, minha vida mudou. Fiquei quase sozinha. Meus sonhos foram forçosamente adulterados. Sentia-me em um processo de solidão coletiva. Ela chegou aos poucos. Veio com ares de liberdade exacerbada e tomou de empréstimo a voz regada ao vinho seco há muito guardado em um dos incômodos da minha casa e comprado na estabilidade a mim concedida pelo sistema de produção de trabalho no qual me encaixo quase que perfeitamente. Minha voz foi calada e ficou em completo isolamento. A experiência a que me vi forçada a cumprir levou-me a pensar no outro, imperativo ético adormecido em meus livros de filosofia acumulados na estante.

O algoz ocupou todos os espaços da minha mente e da folha de papel. Intimidou o desejo de exonerar cada superficialidade do imprevisível fato a revestir os meus dias. Agora que o pior passou e a morte afastouse temporariamente de meu eu-sujeito, arrisco-me a afirmar que é chegado o tempo de dizer não a análises superficiais do outro, da página do texto e de considerar a subhumanidade a dominar o homem em tempos que parecem exigir profunda transformação ética, sociopolítica e científica. Em dias desafiadores como os que enfrentei, percebi a importância de haver mais autenticidade nas relações humanas e no modo como se configura a ideia de Deus. Importa não só a ideia, mas a decisão de como direcionar a fé sem amarras a qualquer tipo de religiosidade mal assimilada. Vejo-me como um sujeito pensante cuja alma está profundamente imbricada com minha materialidade e isso implica assumir a existência de Deus em meu processo de construção mental e material. Confesso que a situação deveras complexa com que me deparei à época da pandemia do coronavírus levou-me a pensar que recorremos a Deus ora como antídoto a todo mal ora para desencargo de consciência quanto à autorresponsabilidade de contribuir para aniquilar o inimigo comum. Ao pensar na pandemia do coronavírus como subprojeto das ações humanas, fui escrevendo meu diário, e nele discorria a respeito da importância de Deus em nossas vidas e da minha fé Nele para superar toda a complexidade daquela situação que afetou o mundo inteiro. Em meio ao caos instalado no

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planeta, tive a certeza inabalável de que apenas Ele para me ajudar a superar os males trazidos pela Covid-19. Convenci-me de que a adequação do coletivo a uma nova era e o respeito pelo próximo são premissas essenciais ao estabelecimento de uma ordem mundial avessa ao materialismo exagerado. Acredito que seja este o momento de pensar em um Deus propulsor da paz mundial e alicerce da reorganização das sociedades atuais. Deus auxiliou-me a operacionalizar um mundo novo, diferente deste no qual vivi até antes da pandemia responsável por prejuízos materiais e pela perda de tantas vidas. Sei que meu diário será lido também por ateus e deixo aqui registrado meu profundo respeito pelo direito deles em manter a não-crença em uma Força Maior a guiar o universo nesse espaço de tempo tão imediatista que me cerca. Não quero convencer meu leitor a assumir posicionamento semelhante ao meu. Quero apenas deixar registrada aqui minha certeza da existência de Deus e minha fé em Sua palavra consoladora.

Durante minha solidão coletiva, fiz o exercício de estar junto ao outro nas folhas de meu diário. Esse estar junto permitiu-me reforçar minha fé em um Deus que sempre esteve comigo, mesmo quando eu não percebia e praticava a recusa Dele em espaços variados de meu próprio ser. Ao compreender a existência Dele, modifiquei minha rotina de vida. Comecei a pensar no outro como uma extensão de mim mesma e faço orações nunca aprendidas em uma infância fechada em questionamentos científicos, os quais meu pai fazia questão de reforçar. Eu nada dizia, pois o lugar de fala dele não garantia a prevalência da verdade. A pandemia do coronavírus foi minha oportunidade de rever conceitos e o reconhecimento do outro permitiu-me salutar estranhamento. Renunciei a um poder ao qual nunca pretendi ter. A Verdade a que muitos querem chegar e compreender suscitaram os registros em meu diário. Agora que a pandemia foi extinta, novas vozes serão escritas e sou apenas mais uma entre as muitas a buscar o tom exato da palavra solidão.

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