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N o i t a da d e S ex t a

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“É HOJE!”

O brado potente de Mourão, o Pensador do Boteco, ecoou pelo escritório, como em toda noite de sextafeira, acompanhado do igualmente habitual murro na mesa.

Era o sinal, aguardado pelos colegas do banco, de que o expediente já deveria encerrar-se e liberá-los para mais uma noitada descontraída de batepapo no bar-restaurante preferido de seu guru.

Como de hábito, os discípulos mais fiéis do Pensador foram os primeiros a guardar seus papeis, desligar computadores, fechar mesas e postar-se na porta de saída, em atendimento à convocatória. Anísio, Chicão e Mônica formavam o estado-maior de Mourão, companheiros até debaixo d’água, perdão, da cerveja, para o que desse e viesse.

Naquela noite, a equipe foi reforçada a campo, para alegria do Geraldo, então dono do bar-restaurante, e dos garçons Osvaldo e Teodoro, que sentiram o cheiro da gorjeta polpuda no ar. Foi preciso juntar cinco mesas para acomodar a turma do Pensador. Além dos bancários, três outros frequentadores do local incorporaram-se ao time.

Sabiamente, Mourão cuidou para que um desses três, o Esquerdinha, sentasse longe do seu colega Magalhães, da seção de gerência de capitais. Se os dois ficassem próximos, iriam logo iniciar mais um “round” da eterna (e inconclusiva) disputa entre o socialismo e o capitalismo. Muito “ismo” em mesa de bar acaba por azedar o ambiente e os comes e bebes, conforme já detectara e sentenciara o grande Pensador.

Havia assuntos melhores. Comida, por exemplo. Ao provar as almôndegas, Mourão chamou Geraldo e, como antes o fizera com os predecessores, sugeriu-lhe orientasse o cozinheiro a agregar miolo de pão à carne moída. “Vai ver como ficam mais macias e ganham um toque especial no sabor”. Acrescentou o grande entendido em aperitivos que as hamburguesas também melhoravam com a mistura do miolo de pão. Geraldo agradeceu a dica e quis saber onde o Pensador aprendera a receita, ao que ele explicou haver tido essa ideia casualmente muito tempo atrás (embora viesse a descobrir, bem depois, tratar-se de prática conhecida de várias culinárias).

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Receita vai, receita vem, D. Marocas, da seção de câmbio, exibiu seus amplos conhecimentos de doceira e explicou à Mônica e ao Chicão segredos para acentuar o gosto das frutas em calda. Os dois grandes apreciadores de doces tomavam nota de todas as recomendações nos guardanapos de papel e até nas bolachas dos chopes. Percebendo o entusiasmo de ambos, Mourão não resistiu a formular mais de um de seus trocadilhos: “é, todas essas receitas de frutas constituem um doce deleite”. Em sinal de que aprendia com seu mestre, Chicão imediatamente afirmou que, por esses e outros “achados”, muito desfrutava da companhia do Pensador. Para não ceder à tentação das réplicas e tréplicas, Mourão cuidou de mudar a agenda da mesa e perguntou quantos ali já tinham assistido à última aventura do agente 00 e meio.

Quase todos haviam visto e começaram a comentar o filme, em especial as cenas inacreditáveis. Atento a tudo o que se falava e ao que se passava, Mourão percebeu que Anísio logo se afastou da mesa e sumiu por bom tempo. Quando ele regressou, a conversa já havia enveredado por outros temas. O Pensador aproximou-se do velho amigo e discretamente quis saber a razão da prolongada ausência. Achou muita graça quando Anísio explicou que ia justamente ver o filme com sua senhora no fim de semana, só que, entre os convivas na mesa, estava a chata da Lucy. Ela tinha a mania de contar toda a história, com riqueza de pormenores, estragando o prazer de quem ainda não assistira à película. Mourão prometeu jamais voltar a falar de cinema quando aquela colega estivesse presente.

A noitada ficou ainda mais animada com várias porções de manjubinhas fritas trazidas pelo Osvaldo. Inacreditável, filosofou com seus botões o Pensador, como peixinhos tão miúdos podem incentivar o Ananias e o Heraldo a decantar seus autoproclamados dotes de pescadores em uma sucessão de casos de grandes espécimes por eles fisgados. Ainda que nutrisse alguma dúvida quanto à veracidade de tantas capturas fantásticas, Mourão reconhecia que deveria ser uma sensação das mais gratificantes pegar um peixe avantajado. Ele mesmo gostava de pescar, na companhia do filho, durante as férias, mas somente apanhavam lambaris e outros peixes pequenos no rio que passava na propriedade da cunhada, no interior do estado do Rio de Janeiro. Raramente tentavam a sorte na beira da praia, em Arraial do Cabo, Cabo Frio, ou no canal de Marapendi, ali mesmo na Cidade Maravilhosa. O resultado, de toda forma, era sempre o mesmo: peixes de pequeno porte. Nem por isso deixava de encontrar prazer nessas incursões pesqueiras, que lhe permitiam usufruir da companhia do filho querido.

Após tantas histórias de pescador, a rede dos “barnautas”

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encheu-se de bolas de futebol. Botafogo pra lá, Vasco pra cá, e em ambiente cosmopolita, como o carioca, até os Santos ajudam a animar a disputa esportiva. O Pensador do Boteco atuava como moderador dos debates, como era do seu feitio, e evitava falar do seu Fluminense. Não tanto por modéstia, mas por precaução. O maior clube do Rio (e do mundo) estava a dois passos de conquistar o campeonato brasileiro, após haver-se sagrado campeão carioca naquele mesmo ano. Mourão não queria atrair mau-olhado. Afinal de contas, como ele costumava dizer, superstição é bobagem, mas não custa respeitar.

Pouco a pouco, e sem qualquer desmerecimento para a boa noitada, a turma começou a retirar-se, deixando sua contribuição para o rateio geral ou pendurando para segunda-feira no banco, como era a notória especialidade do Pacheco. Mourão e seu estado-maior foram os últimos a deixar o recinto, após acertarem as contas com Osvaldo e Teodoro. Sorrisos fartos, almas bem lavadas de chope.

Sem a necessidade de murros na mesa, já “era hoje”. Era? Nada disso. Será novamente. Sexta e sempre.

Abril 2019 Sequência de “O Pensador do Boteco”, edição especial 2020 desta Revista.

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