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Maria Pia Monda
Maria Pia Monda Belo Horizonte/MG
E s t á c h ove n do h á m e s e s
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Os pensamentos ultrapassem a poça de café que suja a pia e, rápidos, atingem a parede e sobem até o peitoril da janela, que, além da cortina, tem vista no jardim. Um olho muito atencioso evitaria a luz com um piscar de pálpebras, satisfeito pelo aparecimento de um dia ensolarado, mas o olho dela percebe também o detalhe de um voo de urubus num fundo de nuvens negras que, se estivessem mais próximas, estariam esputando chuva. É a hora do dia que Marta mais odeia, fora da cama, mas não completamente acordada; o momento em que geralmente decide se será um bom dia ou um dia ruim. Um ruído de passos adiciona-se ao tique-taque do relógio e ao sussurro do vento. Ele também deve ter acordado. Chama rapidamente de volta os pensamentos, que obedientes, do vidro para o qual haviam-se colados, refazem o caminho reverter, até a mesa e depois até o café. Apenas um escapa do grupo, mas ela, no começo, nem percebe. Tenta ficar assim, imóvel, uma xícara numa mão e um cigarro na outra, os pensamentos todos calados e empilhados em ordem na cabeça, como as calcinhas na gaveta. O som de passos torna-se uma presença que Marta decide ignorar. Uma mão acaricie-lhe o cabelo. Não se volta e tenta, em vez, de capturar ou, apenas, eliminar o pensamento rebelde, o único, aquele que agora percebeu e que, pulando de um canto ao outro da cozinha, faz-lhe cócega aos canais lacrimais. A mão dele cai sobre o ombro e se aproxima do rosto, nos lábios, como a pedirlhe o beijo que ela não vai lhe dar. — Bom dia – diz ele. Marta nem responde. Move a cadeira, se levanta, faz alguns passos, muda de ideia e volta a se sentar. — O que você acha, vai chover?- ele lhe pergunta. Está de pé, perto da janela, um canto da cortina levantado para olhar para fora. Marta o alcança com o olhar, inspira profundamente e, por sua vez, lhe pergunta: — Está chovendo há meses. Você não percebeu?