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Nuno Maria

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Nuno Maria São Paulo/SP

Q ua r to de Pe n s ã o

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Ele era úmido. As paredes frias refletiam os sonhos despedaçados de uma vida melhor num lugar distante. O mofo esverdeado é o retrato pintado pelo tempo da minha vida naquele espaço. Os móveis velhos, mais pela história que pelo uso, são os únicos cúmplices dos momentos de angústia misturada ao desespero da solidão perpétua. O chão refletia as marcas dos passos dados em vão a lugar algum. Aqui, só se tem duas coisas para pensar: no passado distante e no futuro mais longe ainda. O presente é doloroso e solitário, corrói o pouco de vida que resta: a esperança da fuga.

Dizem que eu me chamo Pedro, Leandro, Caetano, Roberto, Francisca... Todos me chamam assim. Na verdade, eu já nem sei quem sou. Respondo por simples cortesia, porque aprendi a não responder mal às pessoas. Aprendi a sempre dizer sim. Se dizem, eu sou. — Pedro? Ó Pedro? Vamos sair um pouco? — Estou desanimado! Fica para outro dia.

Eu pouco saía do quarto. Antes não era assim. Acho que perdi a vontade de ver o mundo lá fora, de ver as pessoas. Quando não estava dormindo, ficava olhando o teto. Não sei por que, mas as coisas inertes são fascinantes!

Tinha a impressão de que o povo da pensão me achava estranho. Talvez eu fosse. Mas quem não era? Aqui, todos são de um jeito, cada um tem a sua estranheza.

Mário é o dono da pensão. Quase sempre fazia mais barulho que os próprios inquilinos, mesmo exigindo de nós um silêncio fúnebre. Eu não reclamava não! Apesar de barulhento, era ele quem me fazia perceber que havia vida lá fora. Uma vida meio doida, mal educada, barulhenta; mas vida.

Tinha também os meninos da ala dois. Na pensão existem duas alas mais a casa de cima, onde morava dona Francisca. Esta falava muito comigo logo que aluguei o quarto. Certo dia ela sumiu, sem dizer adeus. Chorei muito. Depois de um tempo me calei. Aqui as coisas são assim mesmo, deixam de existir do nada. Elas somem sem sentido algum. Também acho estranho.

Não sei muito sobre os inquilinos da ala dois, pois nos falávamos pouco enquanto eu morei na pensão; no máximo um bom dia entre as idas e vindas do banheiro ou da cozinha. Algumas vezes nos esbarrávamos na porta que dá acesso à rua.

Leandro era meu vizinho. O quarto dele é maior do que o meu era. Eu duvidava da sua honestidade. Além disso, sentia asco de comer ao lado dele. Evitava-o sempre que

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podia, mas Leandro vinha puxar conversa toda vez que me via. Já cheguei a acreditar que ele se parece comigo, mas evitava demonstrar isso quando estávamos entre os outros. Eu acredito que ficar quieto quanto a isso foi a melhor forma que ele encontrou para continuar existindo. Enquanto isso, eu permaneço na penumbra da sua sombra.

Quando me mudei para a pensão, a porta do meu quarto ficava quase sempre aberta. Depois que percebi que as pessoas nunca eram as mesmas, elas vinham e iam quase todos os meses, tranquei e nunca mais a deixei aberta, a não ser para sair vez ou outra, quando ficava insuportável manter-me preso.

As outras pessoas se mantiveram trancadas todo o tempo que vivi na pensão. Às vezes apareciam na penumbra do quarto, para logo voltarem-se e esconderem-se novamente. Penso que se assustavam quando me viam. Não entendo! Na verdade, poucas vezes me viam! Leandro era o mais próximo. Penso que eu o criei, pois, assim como Francisca, ele sumiu.

Certa vez tomei coragem e decidi sair do quarto. Não podia mais aceitar aquela vida solitária, uma meia vida. Não queria ter como companhia as paredes frias, cheirando a mofo, daquele quarto escuro. Foi o que eu pensei.Provavelmente eu tenha imaginado além da conta.

Nem sei bem. Talvez tudo isso não tenha passado de um sonho de uma vida feliz na qual eu pudesse sorrir sem ser Pedro, Felipe, Francisca ou Leandro, ou qualquer um que dissessem que eu era. Uma vida de vida mesmo. Sabe? Daquelas que nem tudo é rosa, mas também não é só espinho! Daquelas que a chuva aparece no inverno, mas o sol promete brilhar no verão. Uma vida de brisa leve, de sonhos reais. Uma vida com cheiro de existência.

A tentativa foi em vão. Conclui que não consigo mais sair daqui; a porta está trancada. Como deixei que chegasse a esse ponto? Como pude sufocar a mim mesmo? Será que ficarei aqui para sempre? Vão continuar usurpando a minha existência?

Antes eu era rebelde. A porta do quarto ficava sempre escancarada, como disse; até conversava com os outros inquilinos. Confesso que eram uma, duas no máximo três frases curtas. Agora? Agora não consigo sequer abrir a porta, pois ela está fechada. Eles não deixam que eu saia. Ou será que sou eu quem não quero sair?

Tive a ilusão de achar que eles pouco saíam, quando na verdade era eu quem ficava aqui, preso neste quarto de pensão.

Passo o dia trancado. O cheiro de mofo está insuportável! É escuro! Faz frio! Não tem cama aqui, nem mesmo um pedaço de trapo velho para que eu possa descansar. Sair? Não dá! Os outros inquilinos me dão medo. Já cheguei a cogitar que eles fecharam a porta de propósito para me manter

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aqui. Passaram a me ignorar. Fingem que eu não existo. Também riem de mim.

Todos eles já beijaram, namoraram, tiveram noites de amor. Eu nunca tive isto. Só sei porque... Tenho até vergonha de dizer... Fico espiando daqui do quarto. Não tenho culpa não! Eles parecem não se importar com a minha presença. Tenho a impressão que até gostam de me ver espiando, observando tudo. A distância é tão curta que eu chego até sentir o que eles sentem naquele momento. Mas sei que não sou eu.

Além de tudo, o barulho está demais aqui dentro. As vozes penetram minha cabeça a ponto de eu não conseguir mais distinguir o que é meu pensamento e o que eles dizem. Não se importam mais comigo. Desprezam-me. Se eu fosse embora da pensão pouca diferença faria na vida deles. Talvez até festa fizessem. Bem, é o que eu penso.

Escrevo tudo isso enquanto os outros dormem. Só assim posso ser eu sem ser Luiz, Karina, Pedro, ou outro qualquer. O sono deles é pesado. Já o meu? Eu nem posso dormir… o sono só vem quando se vive plenamente, ele não aparece na escuridão de um quarto de pensão.

Nem sempre foi assim. Eu já… Não importa muito agora.

Jundiaí - SP, pensão da Dona Maria, maio de 2019.

Conto publicado pela Amazon no formato digital Título do livro: “PRIMEIROS CONTOS”

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