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Rodrigo Duhau

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Rodrigo Duhau Brasília/DF

O Ve l h o e a Pi s to l a

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Era uma manhã de sábado. O velho estava sentado na poltrona e balançava as pernas, para cima e para baixo, sem tirar os pés do chão. Ele segurava os óculos e mordia uma das hastes. Vestia uma camisa branca amassada e velha com alguns furos e uma bermuda de um pijama também surrado, que trazia uma mancha de comida. Havia escovado os dentes preguiçosamente. Não se preocupou em pentear os cabelos esbranquiçados.

Ele estava na sala, onde havia uma mesa de centro com alguns livros, um jarro com uma planta artificial e uma pistola. O velho fitava há algum tempo a arma, que estava carregada. De poucos sorrisos e de piscar acelerado, ele morava sozinho desde que um câncer no fígado vencera sua esposa.

Além da mesa de centro, na sala havia também uma de jantar, que depois que ele ficou viúvo nunca mais fez as refeições lá. Preferia a poltrona. Comia assistindo à televisão sem prestar atenção no que estava passando.

O velho ainda não aceitava a morte da velha, que havia sido sua companheira por algumas décadas. Quando deitava, demorava a pegar no sono. Às vezes, não se continha e esticava o braço para tocar o lado da cama no qual a esposa costumava dormir, mas o gesto lhe causava mais tristeza e decepção por sentir apenas o lençol gelado. – Maldito! – ofendia o câncer, colocando as duas mãos na cabeça e, em seguida, procurava na mesa-decabeceira um comprimido, que ele tomava sem água, quando percebia que não pegaria no sono. ...

Quando se descobriu a doença, nada mais podia ser feito para salvar a vida da velha. O médico deu-lhe alta para morrer em casa ao lado do marido. – Mas doutor... – Infelizmente não podemos fazer nada. Eu sinto muito.

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– Deve haver alguma maneira...algum tratamento. A medicina, a medicina, doutor, evoluiu tanto, num é verdade? – Sim, mas nesse caso...eu sinto muito. – Meu bem, tá tudo bem. O doutor disse que não tem jeito. Vamos pra casa – disse a velha, levantando-se e beijando a testa do marido, que não tinha forças para sair do consultório.

Tudo foi muito rápido. O câncer a definhou de maneira avassaladora. Pareceu fogo queimando rastilho de pólvora. E o velho nunca achou que havia se despedido da esposa como deveria.

Depois que a esposa se foi, o velho se lembrava todos os dias de um pedido dela pouco tempo antes de perder a lucidez: – Não faça nenhuma besteira quando eu morrer. – Mas... – Mas nada. Apenas me prometa... – Tá bem. Não vou fazer nenhuma besteira – prometeu, beijando-a em seus lábios.

...

Na sala, havia também uma estante com porta-retratos. Os olhos do velho saíram da pistola e pousaram nas fotos. Ele colocou os óculos, se levantou da poltrona e se aproximou dos porta-retratos. Nas fotos, algumas recordações dos vários momentos que o casal passou juntos. Ele, então, começou a conversar com os porta-retratos, segurando um por um. – Essa viagem foi inesquecível... – E olha essa aqui...foi do nosso aniversário de casamento. Bodas de pérola. A gente usou as roupas do casamento. Nossa filha fez uma homenagem pra gente. – Maldito, desgraçado. Com um tom de voz baixo, o velho ofendeu o câncer enquanto devolvia o último porta-retrato para a estante.

Ele se virou e caminhou de volta para a poltrona. Sentou-se e tirou os óculos, esticando-se para colocá-los na mesa de centro. Olhou novamente a pistola, esticou o braço para pegála, mas parou por um instante. Depois continuou o movimento, alcançando a arma. Certificou-se mais uma vez de que a pistola estava carregada. Retornou as costas para a poltrona e começou a dar batidinhas

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com o cano da arma na cabeça, olhando mais uma vez os porta-retratos.

“Não faça nenhuma besteira quando eu morrer.”

“Não vou fazer nenhuma besteira.”

“Não faça nenhuma besteira quando eu morrer.”

“Mas...”.

“Me promete...”.

“Não vou fazer nenhuma besteira.”

Continuava a dar batidinhas na cabeça com a arma. – Desgraçado!

Parou de bater a arma na cabeça para olhar o relógio de pulso, o último presente que a velha lhe dera. Suspirou e recomeçou a balançar as pernas de novo. Dessa vez, com a pistola no colo. Houve um momento em que a arma caiu no chão, mas não disparou. Curvou-se para pegá-la e, quando já tinha a pistola na mão, escutou a campainha.

Sobressaltado, levantou-se da poltrona e segurou mais forte a arma, já com o dedo no gatilho. Passos largos e apressados o levaram até a porta. Um filete de suor apareceu-lhe na testa. Viu pelo olho mágico quem estava ali. Girou a chave devagar, tentando fazer o mínimo barulho. Suspirou profundamente, colocou a mão na maçaneta e a pressionou para baixo. Assim que abriu a porta, apontou a pistola e apertou o gatilho duas vezes. Gabriel, de seis anos, foi atingido na testa e no peito. Olhando aquele corpo franzino no chão, o velho, sem pestanejar, apontou a arma e disparou inúmeras vezes a queima roupa, causando na criança gostosas gargalhadas. – Pai, já tá bom. Ele tá todo molhado. Vai ficar gripado –repreendeu a mãe do menino, sorrindo de Gabriel no chão, que falava “mais, vovô, mais, vovô”. E o velho continuava a atirar. E o menino ria tanto, tanto, que parecia que perderia o fôlego. Gabriel percebeu que não havia mais munição, se levantou e correu para abraçar o avô, que o segurou no colo. – Vovô, posso te pintar? – pediu o menino, com um sorriso largo e esfregando as mãos. – Claro que pode. Já tô vestido pra isso. – Pega aqui as tintas, Gabriel –falou a mãe, tirando três potinhos da bolsa. – E depois vamos jogar memória!

Gabriel não continha a euforia.

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– Claro...podemos jogar lá na mesa do escritório – confirmou o velho com enorme satisfação.

Entraram e Gabriel e o avô foram direto para poltrona.

Sentado no colo do avô, Gabriel melecava os dedos nas tintas e passava suas pequeninas mãos naquele rosto atulhado de rugas que lhe servia de tela. Verde, vermelho, azul...A ponta da língua do menino, para fora da boca, ia para um lado e para o outro e evidenciava uma exagerada concentração para a realização daquela bagunça colorida. O avô olhava para o neto com imenso orgulho. “Ainda bem que não fiz nenhuma besteira”, pensava. A expressão carrancuda que lhe era peculiar na maior parte do tempo se esvaía ao ver aqueles olhinhos brilhando com a pintura. – Pronto! – anunciou o menino.

A filha tirou um espelho de maquiagem da bolsa e o avô pôde se ver. Parecia um palhaço que havia se pintado durante um terremoto de alta magnitude. E o velho que pouco sorria, sorriu.

Enquanto estava sendo pintado, o velho lembrou-se com carinho de dona Fátima e das brincadeiras que ela também fazia com Gabriel. O fim de semana com a filha e o neto foi maravilhoso. Eles foram embora no domingo à noite, mas retornariam em alguns dias. O velho não via a hora de encher de água a pistola e atirar novamente, sem pestanejar, em Gabriel.

Acompanhado de novo de sua solidão, o velho se deitou na cama e esticou o braço para o lado onde dona Fátima costumava dormir. Dessa vez, o lençol estava ligeiramente aquecido. O velho, então, dormiu sem precisar de comprimido. Ele voltou a xingar o câncer apenas no dia seguinte, sentado na poltrona, olhando para os porta-retratos.

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