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David Leite

David Leite

A Aparição

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O motivo do insólito desafio havia se perdido no lembrar da agora nebulosa reunião com seus amigos. Como prova de valentia para seus iguais, o rapazote foi reptado a entrar na infame casa assombrada daquela vila. Uma construção ruinosa, que antes havia visto o garbo colonial, e hoje apenas reservava histórias e contos apavorantes. Dizia-se que a família havia sido assassinada por um dos herdeiros, que se suicidara em seguida. Dizia-se que rituais às sombrias entidades eram realizados ali. Dizia-se que fora construída sobre um cemitério de escravos. A lista de execrandas historíolas se somava a cada novo locutor, todas contribuindo com a mística sórdida que pairava quase fisicamente sobre a castigada construção. Ali, naquela noite de peculiar luar, o garoto contempla extasiado o monumento do passado. O silêncio sem fim naquele ermo subúrbio apenas tornava a declinante residência mais intimidadora. O olhar do garoto escrutiniza a fronte de madeira, que com suas janelas, porta e caibros rompidos se assemelhavam a uma exausta e anosa face, com o lenho entortado, à pecha de rugas trazidas pela decrepitude. O garoto, temerário, volta-se para si, cabisbaixo, vasculhando em seu interior a força necessária para mover as pernas e, finalmente entrar. O degrau range com seu primeiro passo, fazendo-o vacilar mais um instante. O próximo degrau se desmancha sob seus pés, fazendo-o tropeçar e cair. Ali, com as mãos no chão, o garoto olha mais uma vez para o tétrico domicílio, agora inda mais imponente, parecido com um ente orgulhoso, com ele colocado de joelhos tal como em submissão servil àquela assoladora presença. O garoto se levanta apreensivo, e torna seu caminho para dentro. O interior da casa jazia em lástima ainda maior. Os móveis de estofado puído onde uma espessa camada de poeira repousava eram iluminados apenas pela filigrana de luz da lua ao atravessar sofregamente pelas frestas do madeiro fendido das paredes. O escrínio caído no chão destruído derramava seus amarelados papéis e livros. A sala era a epítome do abandono, como se não houvesse outro lugar mais descuidado em toda a cidade, quiçá no mundo.

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O menino, silente, pactuava com a mudez de tudo em torno. Capturando o inarticulado segredo das coisas, numa confusão de imaginações espontâneas, tenta rememorar o motivo de estar ali. O espólio almejado. O elixir que traria na volta da jornada. No entanto, carecia nomear tal coisa. Olha para o chão, vasculhando pelo troféu. Livros, penas de escrita e toda sorte de camafeu e porcelanas trincadas que talvez lhe servisse de prova de seiva diante dos camaradas. O menino se agacha, escolhendo o que lhe aprazia como estivesse diante da vitrina da padaria numa manhã de domingo. Mas seu exame foi interrompido por qualquer som distinto. De algum canto da úmida penumbra da sala, o garoto percebe uma presença entrecortada nas sombras. Assustado, com os medos já antes dilatados pela quantidade de histórias daquele lugar, o garoto se apressa em se erguer e, em passos hesitantes, se afasta da direção da suposta avantesma que presenciou. “Fantasma”, leu no silêncio da própria boca. A silhueta bizarra também recebe a presença do menino. Se encolhe à medida que o menino se afasta, ou temendo, ou pretendendo alavancar-se de assalto. O menino e a sombra em silêncio, na casta intimidade da sala. Distingue dois pontos luminosos na aparição, e, pelos seus olhos e a lua, cinco pontos brilhavam entre si, tendo todas as coisas opacas por testemunha. O menino trama uma escapatória, enquanto a sombra permanecia vigilante, no seu íntimo compromisso de astúcia. O menino, encontrando novamente a coragem que lhe valeu antes, desmancha qualquer anseio de fuga. Com sua fantasia em desvario, inventa uma tentativa de aliança e amizade. Aproxima-se do canto impenetrável onde a figura se resguardava e, em um gesto de conciliação, tenta tocá-la. Então salta da esquina escura para a luz do luar o antes profundo contorno que divisava nas sombras, e inda mais profunda impressão causa ao menino, que volta a testar o chão atrás de si. O esquálido homem, em andrajos e feições famélicas lança o olhar para o garoto. Tal qual bicho, vivia entre os detritos, na imundície daquele recinto. O menino, apavorado, se afasta o quanto pode, enquanto o homem avança, com os olhos marejados. O menino chega até a porta, ainda atento àquela figura. Pensa em se lançar na invariável noite afora, de volta ao seu lar. No entanto, no momento do ensaio do menino de qualquer tentativa, o abjeto homem para. Seu semblante é da profunda aflição. O homem aponta para a boca, num sinal de se alimentar. O menino, então, ao entender o aceno, percebe sua agonia. Aquilo, meu Deus, não era o bicho que ele imaginou ser. Acossado pela fome,

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era o homem fora do homem, o homem que perdeu tudo o que fazia dele homem. Beirando a morte, a ausência de homem no homem, sendo apenas coisa entre as coisas. Nenhum medo suportaria aquela fome e nenhuma paciência poderia esgotá-la. As crenças e superstições e princípios que o menino trouxe seriam apenas palha no vento diante daquilo. O intransponível muro entre os dois então começa a ceder. O menino e seu impenetrável mundo, afastado de tudo que não era o menino, se racha. Ele entende qual seria realmente a nobre coragem com qual comungaria. Aproxima-se do homem e docilmente o pega pela mão. Ele iria levá-lo dali e alimentá-lo. Lá fora, no inatingível céu azul, brilhava a lua. Embaixo, quatro olhos luminosos seguiam lado a lado, tendo tudo o que era opaco por testemunha.

Fim

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