LiteraLivre Vl. 6 - nº 31 –Jan./Fev. de 2022
David Leite
A Aparição O motivo do insólito desafio havia se perdido no lembrar da agora nebulosa reunião com seus amigos. Como prova de valentia para seus iguais, o rapazote foi reptado a entrar na infame casa assombrada daquela vila. Uma construção ruinosa, que antes havia visto o garbo colonial, e hoje apenas reservava histórias e contos apavorantes. Dizia-se que a família havia sido assassinada por um dos herdeiros, que se suicidara em seguida. Dizia-se que rituais às sombrias entidades eram realizados ali. Dizia-se que fora construída sobre um cemitério de escravos. A lista de execrandas historíolas se somava a cada novo locutor, todas contribuindo com a mística sórdida que pairava quase fisicamente sobre a castigada construção. Ali, naquela noite de peculiar luar, o garoto contempla extasiado o monumento do passado. O silêncio sem fim naquele ermo subúrbio apenas tornava a declinante residência mais intimidadora. O olhar do garoto escrutiniza a fronte de madeira, que com suas janelas, porta e caibros rompidos se assemelhavam a uma exausta e anosa face, com o lenho
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entortado, à pecha de rugas trazidas pela decrepitude. O garoto, temerário, volta-se para si, cabisbaixo, vasculhando em seu interior a força necessária para mover as pernas e, finalmente entrar. O degrau range com seu primeiro passo, fazendo-o vacilar mais um instante. O próximo degrau se desmancha sob seus pés, fazendo-o tropeçar e cair. Ali, com as mãos no chão, o garoto olha mais uma vez para o tétrico domicílio, agora inda mais imponente, parecido com um ente orgulhoso, com ele colocado de joelhos tal como em submissão servil àquela assoladora presença. O garoto se levanta apreensivo, e torna seu caminho para dentro. O interior da casa jazia em lástima ainda maior. Os móveis de estofado puído onde uma espessa camada de poeira repousava eram iluminados apenas pela filigrana de luz da lua ao atravessar sofregamente pelas frestas do madeiro fendido das paredes. O escrínio caído no chão destruído derramava seus amarelados papéis e livros. A sala era a epítome do abandono, como se não houvesse outro lugar mais descuidado em toda a cidade, quiçá no mundo.