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Teófilo Lemos A. Filho
Teófilo Lemos A. Filho
Por que a lua segue as crianças?
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O sol do crepúsculo me bate nas vistas e me faz por um momento repugnar a subida na escada, sou logo cutucado na altura de uma costela pela baioneta daquele soldado incumbido de conduzir-me. Subo as escadas, vejo de cima do meu palanque, o povo vaiandome e mirando frutas podres em minha pessoa, mas por quê? Por que odeiamme? Estou certo que minha morte vale a pena! A corda é posta no meu pescoço, como pinica! Ela também está muito apertada, não consigo puxá-la um pouco mais para ajustá-la ao meu pescoço, minhas mãos estão atadas às costas. O padre faz a extremulsão, não sei a razão já que, como dito, não tenho arrependimentos, estou convicto de minha cruzada pelas crianças. Há uma criança bem à frente do palanque, eu a reconheço de antes, ela atira-me uma pedra que bate no meio da minha testa. Sorrio. Ela não sabe, mas salvei-a! As gotas de sangue escorrem pela face e cobrem um de meus olhos, cegando-o bem dizer para sempre, nunca mais veria por ele. O carrasco, sem dizer nada, aproxima-se de mim e, com um pontapé desalmado, retira a cadeira que me sustentava ao solo…
O meu café está chegando, termino de ler a coluna do jornal municipal antes de adoçá-lo. Está excepcional, como sempre, Dona Maria se puxou! Enquanto aprecio essa maravilha líquida, meia amarga e meia doce, observo as pessoas que passam pela rua. Coisa prazerosa, mesmo que todo dia a faça. Vejo passar uma ou outra criança nos seus uniformezinhos escolares e com os sapatos de couro pendurados pelos cadarços no ombro para não sujar. Uma vem de lá correndo ao lado de um guapequinha, um cachorro de pelos dourados e emaranhados, os dois brincam e pulam um com o outro em brincadeira tão doce. Que doçura é essa que percorre pelas veias dessas crianças? Onde foi que eu mesmo perdi minha criança? Onde morreu o Zezinho e onde nasceu o
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José? Penso em minhas memórias antigas, todas meio borradas, mas não o suficiente para privar-me da indignação. Lembro quando vi meu pai, vestido de Papai Noel, fumando um cigarro e pagando uma das senhoras da noite, instantes antes de entrar na nossa casa, com um mirrado saco vermelho cheio de bonecas de pano, bilboquês, fundas e coisas desse tipo, para dar para mim e meus irmãos e irmãs. Lembro quando vi um policial bater num vizinho meu, o Seu Altamir, por estar indo para casa de noite. Não, por ser um homem negro indo para casa de noite. Lembro da vez que tinha apenas oito anos e, já não crendo na polícia, no Papai Noel e quiçá no meu pai, vi matarem meu galo, o Leleco, para jantarmos de noite. Jantei, chorando e culpando meu estômago por ter fome. Lembro-me do dia que meu pai saiu de casa e não voltou nunca mais e de ver minha mãe, neste mesmo dia, chorar desolada no quarto com os olhos roxos e abraçada numa santa que nunca a defendeu! Em meio a essas memórias, eu deixo que uma lágrima corra na minha bochecha, teimosa, ignorando o fungar que diz “Pare, pare imediatamente!”. Meu café é agora só amargo. O sol some por detrás das montanhas distantes e a negrura da noite toma conta das ruas, eu ainda estou sentado. Uma chuva de estrelas finas começa a salpicar o céu escuro, trazendo a luz às ruas. As crianças ainda passam. Alheias a tudo, alheias ao mundo. Neste ponto de minha melancolia vejo passar uma menina uniformizada de mãos dadas ao pai. Ela deve ter uns seis anos. Seu cabelo é negro e as bchechas coradas, exibe um sorriso sincero e vai vagarozamente andando enquanto olha para as estrelas e para a lua, lua prateada que proteje os poetas em seus sonhos. “Papai, por que a lua me segue?” “A lua?” Diz ele olhando para o céu. Ele abre um sorriso de canto de boca e ajoelha-se pondo uma mão sobre o ombro da garota. Nesse momento meu sangue ferve, sei o que se dará. Um assassinato! O assassinato de um sonho inocente, de uma criança que vai deixar suas fantasias e encarar esse mundo cruel face a face! Não posso permitir, não posso! Tenho de intervir, mas como? Ele já abre a boca e exibe os poucos dentes para lacerar a esperança de uma criança que sonha ser especial suficiente para
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a própria lua parar o que faz e acompanhá-la! Quando me dou por mim já estou em cima do homem, esmurrando-lhe a face e tirando os poucos dentes que ainda restam! Agora já não tem volta, sinto um chute nas costelas e caio para o lado. Cerca de três homens me socam, chutam e cospem. A menina chora e sai correndo, sua casa não deve ser longe. O pai da menina falece ali mesmo, afogado no próprio sangue, não queria ter chegado a tanto, mas não podia permitir que cometesse aquele forte pecado! Simplesmente era meu dever como um ex-sonhador intervir na situação.
Já quase sem conseguir andar, sou pego por um camburão e conduzido a um célere julgamento, cinco ou dez minutos no máximo. Forca. Esse é o destino de um herói?! No dia seguinte, com o sol das 18h e pouco, sou conduzido, sem qualquer cerimônia, ao meu derradeiro destino, minha recompensa. Saberia que o paraíso me espera se sequer acreditasse nele, mas onde está Deus velando pelas crianças que perdem seus sonhos e onde estava Deus por mim, minha mãe, por Leleco? Onde? Enquanto agonizo, depois do pontapé do carrasco, vejo surgir diante de mim aquela lua prateada, encarandome, e me pergunto por um instante: “Por que ela me segue?”