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Renato Massari

Renato Massari Rio de Janeiro/RJ

Os Gênios

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Andando pela grande avenida, Pavel maldizia o vento e a chuva. Podia ter chamado um carro por aplicativo, mas o medo de se contaminar com o novo vírus não lhe saía da cabeça. Frederico desdenhava: não era otário para ficar se deslocando a pé por toda a cidade. Dizia que o número de mortes anunciadas pelos noticiários de TV não o assustava e, para provar sua convicção, citava o amigo do amigo de um conhecido, vítima de um piripaque qualquer, que o médico pusera na conta da terrível doença. Por sorte, Suellen não o levava muito a sério. “Fred é genioso. Nem tudo o que diz se escreve”, ponderava quando havia discussões mais acaloradas entre Pavel e o irmão dela. Ainda não eram 7h, as lojas estavam fechadas, e gente sem lar se abrigava como podia embaixo das marquises, providenciais num dia de tanta chuva. Em meio aos raios e trovões que engoliam o céu, choviam também pedidos de ajuda.

Pavel apalpou os bolsos da bermuda – há certo tempo aposentara a carteira – na esperança de encontrar algum dinheiro miúdo. Lamentou-se. Não tinha moedas que pudesse dar aos pedintes. Foi então que, fechando os olhos, se deixou tomar por uma fantasia de infância. Viu-se num mercado cheio de coisas bonitas que queria comprar, mas só tinha nas mãos as pedrinhas que catara pelo caminho. Nisso, um gênio bem jovem, com alegria de criança, apareceu e lhe adivinhou os pensamentos, transformando as pedras em moedas de ouro. Quanta felicidade! Se pudesse, não tornaria a abrir os olhos, ficaria para sempre no reino mágico que com gosto aprendera a chamar de mundo seu. Mundo sem medos, sem vírus, sem pobreza e sem Fred, onde o sonho era lei.

Balançando levemente a cabeça, riu em silêncio, afinal os gênios, moços ou velhos, não costumavam zanzar pelas ruas, ainda mais em dias chuvosos. Distraído, vez por outra pisava de mau jeito, encharcando os tênis brancos em alguma poça d’água bem suja.

“Tá comendo besteira demais. Quando vai no doutor Laranjeira? Tem que checar esse colesterol”. Suellen falou com voz de aconselhamento e cara de mando. Era o jeito dela e, aos 61 anos, Pavel não achava prudente ignorar nem a

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voz mansa nem o olhar marcial da mulher. Assim, mesmo não querendo, foi ao cardiologista, que lhe cobrou a longa ausência e prescreveu o exame de sangue. Por isso, estava em jejum na rua tão cedo. Quando parou numa esquina movimentada, as buzinas dos carros emprestavam à manhã um nervosismo que não o tocava nem o surpreendia, tão familiar lhe era a agitação daquele cruzamento. Depois de passar por ele, continuou em frente até que ouviu quase uma súplica: “por favor, me paga um amburgue”. Pavel deteve o passo. Olhando ao redor, não viu criança alguma. O pedido viera de um homem mais velho do que ele. Não era alto nem baixo, estampava uma magreza cadavérica no rosto e somente trapos encardidos lhe cobriam o corpo. Por que pedira um hambúrguer, perguntou-se, ao invés de um prato de comida? Não lhe cabia responder, não era Suellen, mas à sua esquerda a logomarca de uma grande cadeia de fast food ardia em brilhos como o sol que as nuvens de chumbo escondiam naquela manhã de verão. Sem pensar, tirou da bermuda todo o dinheiro que tinha, uma cédula amassada com a qual poderia comprar uns dez hambúrgueres, e a ofereceu ao homem. Sem caber na própria incredulidade, este abriu parcialmente os lábios trêmulos, como se quisesse se lembrar da última vez que sorrira. Com um gesto rápido, apanhou a nota antes que seu gênio protetor pudesse mudar de ideia e sumiu dali quase que por encanto.

A chuva apertou. Andando mais rápido, Pavel avistou o edifício cinzento que ao lado de outros brincava de arranhar o céu. Já no saguão do laboratório, duas moças gentis o receberam com sorrisos delivery. A de cabelos curtos e traços asiáticos lhe pediu o cartão do plano de saúde; a outra, de olhos cor de mel e bronzeado exuberante, prontamente lhe tirou o guarda-chuva molhado das mãos. Na saleta de paredes brancas e persianas azuis, um quadro chamou de imediato sua atenção. Era a foto de uma lâmpada dourada, no estilo das de Aladim, acima da qual estava escrito com letras bem desenhadas: “liberte o gênio que há em você”. Soltou então o braço esquerdo, mas sua veia muito fina deu certo trabalho ao rapazola franzino da coleta de sangue antes de ser achada. O garoto, de pouco mais de 20 anos, lhe passou em seguida um papelote e cuspiu palavras solícitas, dizendo que o resultado do exame ficava pronto em três dias.

De volta à avenida – a chuva propusera uma trégua –, ficou a pensar se valia a pena contar à mulher que por um hambúrguer acabara pagando o preço de dez. Se estivesse em dia de gênio ruim, Suellen, cujas caras e bocas conhecia há mais de trinta anos, fatalmente lhe perguntaria se achara alguma lâmpada maravilhosa na rua. Por certo, não se recordaria de que há

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pouco tempo quase caiu num conto do vigário. Se dependesse do Fred, teria acreditado no prêmio milionário que um e.mail avisou que ganhara. Sem dar a ela explicações mais detalhadas, Pavel disse apenas que, como sempre, muitos gênios malignos usavam seus dotes demiúrgicos para prejudicar a vida alheia. Sem demonstrar maior estranheza – o marido às vezes tinha predileção por termos difíceis –, Suellen apagou a mensagem e beijou Pavel na boca como há muito não fazia.

Quando já se aproximava de casa, ele percebeu que deixara o guardachuva no laboratório. Coçou devagar a cabeça calva e resolveu buscá-lo. O que o mesmo percurso, feito uma hora e meia atrás, traria de diferente para o seu olhar? Já não podia atender a outros pedintes, quisessem eles hambúrgueres ou não. Com passos pequenos, isentos de pressa, constatou que não estavam mais nas portas das lojas. Muitos deles, pés descalços na calçada imunda, perambulavam à sua frente. Para onde iam, levando alguns suas crianças, outros seus cachorros e cada qual os poucos pertences que a vida lhes permitia juntar?

Como o mundo da infância mais uma vez lhe acenasse, Pavel cerrou as pálpebras e desejou ardentemente que um gênio bem maduro, com sabedoria de governante, transformasse as gotas da chuva, que voltavam a cair com força, em chuveiros, comida, cuidados e roupas limpas que pudesse dar aos pedintes. Mas, segundos depois, ao se deparar novamente com a claridade úmida do dia, duvidou que tal gênio chegasse à avenida com disposição de fazer aquilo.

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