José Mujica - A Grande Entrevista Que Não Saiu

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A GRANDE ENTREVISTA QUE NÃO SAIU Marcelo Sousa @ Revista OOH! Novembro 12th 2013 Não sei se isso é sorte ou azar: conseguimos entrevista por email (e depois um breve colóquio em Rincón del Cerro) com o presidente José Mujica, do Uruguai. Enviamos quinze perguntas, na expectativa de receber ao menos dez respostas. Recebemos todas. Ótimo! Passamos por dois assessores e meia duzia de aspones, e conseguimos sobreviver com bom resultado. Mas aí, ao revisar o conteúdo pra fechar a matéria, o desconforto... Era tudo muito interessante, as respostas muito bem articuladas e sinceras como esperávamos, mas aquela sensação de 'déja vu' não me deixava prosseguir. Então fui ao oráculo, digo, ao Google. Pesquisei uma dezena de entrevistas de Mujica em vários idiomas, e para o meu desespero todas as perguntas e respostas são muito parecidas. Mujica é um homem simples, sábio, reservado, mas bonachão, que comanda o Uruguai como quem toca um negócio de família. E isso é muito bom, acreditem! Esse é o segredo do sucesso das primeiras entrevistas, e o fracasso de todas as posteriores. José Alberto Mujica Cordano, ou Pepe Mujica, não é um esquerdista típico. Exguerrilheiro tupamaro, está longe de ser autoritário, defende a meritocracia, a economia de

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mercado, odeia assistencialismos – mas os usa por achar que ainda são necessários - e não olvida as questões sociais, engajando grandes esforços para solucioná-las. O presidente não é unanimidade em seu país, mas parece ser fora dele. O Uruguai é pequeno, mas não é uma republiqueta. Longe disso. Lá vive-se bem, com um conceito diferente do viver bem que temos por aqui. Há ricos e pobres, mas essa diferença nos pareceu menos pungente, para o bem e para o mal. O presidente, um velhinho de boina, fala mansa e olhos meio chorosos, não acredita em polêmicas e factóides, não alimenta sonhos utópicos, não promete colocar seu país no G8 ou no G20, e aparentemente em nenhum outro grupo, pois prioriza o bem-estar social real em detrimento da mera "sensação de melhoria" que muitos aplaudem por aqui; e acha exagerado que a imprensa vizinha o veja como um sujeito 'sui generis' por suas posições políticas, sociais, econômicas, e até religiosas. Mujica tem batalhado contra a indústria tabagista, e instou o presidente americano Barack Obama a fazer o mesmo, rebatendo as críticas quanto a sua política de controle da venda e do consumo de maconha. Ele realmente acredita que organizar o acesso pode resolver o problema do tráfico e da violência. Sobre isso, apenas o tempo poderá dizer. Mas as frases de Pepe Mujica se tornaram “trending topic” no mundo. Muitas delas inventadas, outras parecendo que foram... “Esta velha é pior que o caolho”. A insólita frase foi disparada pelo presidente uruguaio em alusão à presidente argentina Cristina Kirchner e seu marido, morto em 2010, o ex-presidente Néstor Kirchner, que tinha o estrabismo (e não era propriamente “caolho”) como uma de suas mais famosas marcas físicas. Mujica, conhecido por seus comentários sinceros – geralmente fora de protocolo – fez estas declarações durante uma reunião com o prefeito da cidade uruguaia de Florida e outros políticos em 2013. Mas, não percebeu que os microfones estavam ligados e que a imprensa reunida no lugar ouviu suas observações sobre a dificuldade nas relações do Uruguai com a Argentina. “O caolho era mais político…esta velha é mais teimosa”, acrescentou Mujica em relação ao casal Kirchner. O presidente uruguaio também indicou que sempre que precisa resolver algo com a Argentina precisa pedir ajuda ao Brasil. “Não vou dar bola nem percorrer o mundo esclarecendo coisa alguma”, disse Mujica aos jornalistas minutos depois, quando soube que sua frase havia sido ouvida.

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Mujica adora um bom vinho, mas bebe pouco, quase nada. Vive como sempre viveu, e lembra sem mágoa (mas com pesar) dos anos em que esteve preso, tendo como único amigo um rato de esgoto e algumas formigas. São suas palavras: “Se você fica sozinho por muito tempo, e recebe a visita de qualquer criatura ínfima, você vai saber valorizar essa vida. Se você passa muito tempo em silêncio, ouvindo, percebendo, auscultando, vai perceber que até as formigas tem algo a dizer... e nós precisamos ouvir, pra não enlouquecer.”

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Pepe é fã de churrasco, e de vez em quando fuma um cigarrinho feito com palha que ele mesmo prepara. Palha mesmo. Diz estar velho demais para as drogas. Mora numa casa simples, mas confortável, com alguns cães e gatos, uma pequena lavoura, um trator, uma lambretta e um fusca azul. Gosta de passear pela internet, mas odeia responder o correio eletrônico: única "mordomia" que se deixou ter, um secretário para esse tipo de coisas... José Mujica, conhecido em seu país simplesmente como “Pepe”, defendeu a descriminalização da maconha em seu país, mas diz que para tudo há ordem, e há lei. Tudo muito interessante pra nós, mas tão batido para ele (e para o resto dos uruguaios) que as respostas acabam sendo as mesmas, como um pai acaba respondendo ao filho mil vezes a perguntas como 'de onde vêm os bebês' ou coisa parecida. As primeiras respostas são desconcertantes, maravilhosas, mas após responder tantas vezes às mesmas questões com palavras diferentes, corre-se o risco de ter respostas medianas, ou enfadadas, pra não dizer enfadonhas.

Não crê no conformismo crônico de que reformando o capitalismo a sociedade tenha muito futuro. Propõe caminhar no sentido de construir outra coisa, evitando-se, no entanto, a colisão "porque o choque é sacrifício humano". Deixa claro: não é possível substituir as forças produtivas de um dia para o outro, "nem em 10 anos". "Ao mesmo tempo que lutamos para transformar o futuro, há que se fazer andar o velho porque o povo tem de viver". Não crê que o mais importante, no processo de mudanças, sejam as relações de propriedade. "O fundamental são as transformações culturais, e estas levam muitíssimo tempo". Um claro acento gramsciano, assimilado nos seus 15 anos de cárcere, 78 anos de vida.

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"Aqueles que como nós não podemos comungar filosoficamente com o capitalismo estamos arrodeados de capitalismo em todos os usos e costumes de nossas vidas, de nossas sociedades" - constata Mujica. Ensina aos pares de esquerda: "O pensamento de esquerda está se refugiando na América Latina. Só não cremos que podemos tocar o céu com as mãos, nem que construir uma sociedade mais justa e mais livre seja coisa de uma só geração. O desafio é bravo. Há quem ainda siga com aquilo que dizíamos nos anos 50 do século passado. Não assimilaram o que se passou no mundo e por que se passou". Resta a amplitude da política, a paciência da política, transformar o mundo trincheira por trincheira. A mídia sugou o velho Pepe Mujica o máximo que podia, deixando o homem simples e tranquilo sem ter mais novidades a contar. Mil desculpas, presidente! Vamos guardar a matéria para a posteridade, nos nossos arquivos não publicados. Mujica, o mestre, saberá nos perdoar, aliás, algo me diz que até responderia assim, se fosse menos cortês: - Presidente, podes conceder uma entrevista a uma revista brasileira? - Filho, o que quiseres saber, procure no Google. Eu assino embaixo.

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