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Ficção e documentário na construção narrativa do filme O quarto de Jack
from Palau vol.3 n.1
by revistapalau
FICÇÃO E DOCUMENTÁRIO NA CONSTRUÇÃO NARRATIVA DO FILME O quarto de Jack (2015)
por João Eduardo Hidalgo
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FICCION AND DOCUMENTARY ON THE NARRATIVE CONSTRUCCION OF THE ROOM (2015) O fator técnico fundamental a ser considerado dentro do ato fotográfico (e cinematográfico) é a supra realidade que um processo fotográfico pressupõe. A câmera, que tem uma manipulação humana, capta quimicamente ou em pixels uma realidade muito mais complexa do que o olho e a mente humana podem perceber a principio. Ela apresenta traços de um real muitas vezes não percebido de imediato pelo espectador. Esta é a razão dela ser sempre um registro do real e uma porta para a ficção. O grande escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984) escreveu um conto em 1958 ‘Las babas del diablo’ , onde parte da ação de um fotógrafo ao registrar um instantâneo em um ilha no rio Sena, no centro de Paris, e acompanha todo o processo de compreensão e análise de tudo o que foi capturado nela.
“Ergui a câmera, fingi estudar um ângulo que não os incluía, e fiquei na espreita, certo de que enfim os apanharia no gesto revelador, a expressão que resume tudo, a vida que o movimento mede com um compasso, mas que uma imagem mas que uma imagem rígida destrói ao seccionar o tempo, se não escolhemos a imperceptível fração
essencial. Não precisei esperar muito. A mulher avançava em sua tarefa de atar suavemente o garoto, de atirar-lhe sua teia e roubar seus últimos instantes de liberdade, em uma lentíssima deliciosa tortura. Imaginei os possíveis finais (agora aparece uma pequena nuvem espumosa, quase sozinha no céu), previ a chegada a casa (um andar térreo provavelmente, que ela atulharia de almofadas e gatos) e imaginei a aflição do garoto e sua decisão desesperada de disfarçá-la e deixar-se levar fingindo que para ele não se tratava de nada novo. Fechando os olhos, se é que os fechei, pus a cena em ordem, os beijos brincalhões, a mulher rejeitando com doçura as mãos que pretendiam despi-la como nos romances, numa cama que teria um edredom lilás, e obrigando-o, em vez disso, a deixar que ela tirasse a roupa dele, verdadeiramente mãe e filho debaixo de uma luz amarela de opalina, e tudo acabaria como sempre, talvez, mas talvez tudo ocorresse de outro modo, e a iniciação do adolescente não passasse, não deixariam que passasse, de um longo preâmbulo onde a falta de jeito, as carícias exasperantes, a corrida das mãos se resolvesse sabe-se lá em que, num prazer por separado e solitário, uma petulante negativa misturada com a arte de fatigar e desconcertar tanta inocência ferida. ”
A partir da análise e de ampliações da fotografia feita o personagem-narrador acaba por perceber uma situação dramática, que a principio não havia entendido, e como a sua presença e ação (de tirar a fotografia) interferiu nela.
Usando este conto como base o cineasta italiano Michelangelo Antonioni (19122007) realizou em 1966 o filme Blow-up, mostrando um fotógrafo londrino, que por puro tédio dentro de sua agitada vida, vai dar um passeio em um parque da periferia de Londres e começa a tirar fotografias aleatoriamente. Um casal se abraça no parque, de repente a mulher corre atrás do fotógrafo e exige o filme, dando início ao conflito central da obra.
O título do filme é um termo técnico que se refere a ‘ampliação’ , que interessa pelo significado que carrega. O procedimento nos lança no terreno da construção de significados, se alguém recorta um detalhe da realidade e dá destaque a ele, a relação parte/todo está quebrada. Novos significados e interpretações são acrescentados. No conto de Cortázar o escritor faz um jogo com as possibilidades de se contar uma história, em primeira pessoa do singular, terceira, primeira do plural e Antonioni leva este jogo para o filme. Quando vemos Thomas fotografando a famosa modelo alemã Veruschka, ela fazendo o papel de si mesma (atentar para o detalhe), visualizamos uma cena orgiástica e também criativa, pois vemos a partir da lente do diretor, fotógrafo vendo a modelo pela lente de sua câmera. O recurso não é gratuito, ele fala da própria essência da trama do filme e do conto em que está baseado.
No início do filme Thomas aparece no meio de vagabundos saindo de um centro de acolhimento de pobres em Londres, para fotografar este grupo ele se disfarça como para fotografar este grupo ele se disfarça como um deles. Na primeira cena do filme vemos um grupo de mímicos passeando pelo centro de Londres, provocando as pessoas e pedindo contribuição para seu espetáculo. Na última sequência eles voltam e instalam-se numa quadra de tênis, no parque onde Thomas fotografou o casal, e começam a jogar organicamente sem raquete e sem bola. Um dos mímicos/jogadores, num golpe, atira a bola para fora da quadra, todos se voltam para Thomas e ele entra no jogo e corre para buscar a inexistente bola e a atira para os jogadores. Neste momento Antonioni faz um primeiro plano do ator, que devolve a bola e não vemos mais os mímicos, mas ouvimos os barulhos e vemos que a principio Thomas entra na brincadeira, mas depois baixando os olhos volta para o seu conflito e abandona o parque na cena final do filme. No conto de Cortázar não temos um desfecho convencional, o garoto que fugiu das teias da mulher madura pode voltar para a praça no outro dia e ser enredado por ela novamente; no filme de Antonioni o final é aberto; quem foi morto, por quem, onde está o corpo e a mulher vai procurar o fotógrafo novamente? Nada disto interessa a ficção criada por eles já se basta em si.
Esta obra prima do cinema foi aqui apresentada, pois ela contém o jogo primordial que constitui ontologicamente o cinema. A narrativa tem como tema central uma obra de ficção, vinda da literatura e como ela usa um dispositivo técnico e seus procedimentos para criar uma realidade (documental) que é mais real que a própria existência física, pois é expandida, ampliada. É aqui se revela o eixo central da classificação dos gêneros cinematográficos a intenção criativa de seu autor, pois todo obra cinematográfica tem um índice de irrealidade na sua constituição. Quem decide se a obra se desenvolverá como documentário ou ficção é seu autor, independentemente do assunto abordado ou do letreiro inicial que diga ‘baseado em uma história real’ . Rogério Luz fala da narrativa de ficção cinematográfica e sua ligação indissociável com a literatura e seus elementos constitutivos:
“O cinema parte de tradições narrativas importantes. Do ponto de vista do estilo- e o estilo é a maneira estética de pensar o mundo , é o naturalismo, uma escritura da visibilidade, que recolhe os signos, por ele tornados visíveis, de uma sociedade em desagregação. Signos exaltados, e não pacificadores, arrastam o todo social em direção à obscuridade, à cegueira e à destruição. Do ponto de vista de como operar com esse estilo, a referência é o folhetim do século XIX: sequências em sucessão, que admitem o corte ou a suspensão da ação culminante, assim como a multiplicação de cenários, ambientes e personalidades sociais envolvidas no fluxo dos sentimentos. Portanto, narrativa naturalista e melodramática. ”
Para exemplificar as manipulações possíveis no índice do real de uma imagem fotográfica fiz duas imagens reais a partir de uma inspiração documental, mas que tem uma manipulação intencionalmente ficcional que chamei de ‘foto-criação’ . A primeira dialoga com o documentário e com o personagem Nanook e a segunda com uma imagem famosa de Robert Capa (1913-1954), da Guerra Civil Espanhola (19361937). O termo ‘documentário’ foi cunhado por John Grierson (1898-1972), documentarista inglês do General Poste Office Unit Film, numa resenha crítica sobre o filme Moana de Robert Flaherty (1884-1951), para o jornal New York Sun, em fevereiro de 1926. Avaliese, 31 anos depois de seu nascimento o cinema ainda não tinha um termo para classificar este tipo de filme.
“Documentário é uma abrangente definição, mas deixemos como está. Os franceses que usaram o termo pela primeira vez só queriam referir-se a filmes de viagens. Isto lhes da uma sonora desculpa para os trejeitos (e outras falácias) exóticas do Vieux-Colombier. Enquanto isto o documentário foi trilhando seu caminho. De obras provocativamente exóticas ele desenvolveu-se para incluir filmes mais dramáticos como Moana, Earth e Turksib. Em tempo, o documentário ainda inclui outros tipos tão diferentes na forma e na intenção como Moana é de Voyage au congo.
Ultimamente nós temos pensado que todos os filmes feitos a partir de material natural fazem parte desta categoria. O uso de material natural tem sido considerado como a distinção vital. (...)
Mas fundamental é a posição que a câmera (autor) toma frente ao que é filmado. (...) Berlim sinfonia da grande cidade deu início a nova moda de buscar material documental na porta de casa: em eventos que não tem a novidade do desconhecido, ou o romance de um nobre selvagem numa exótica paisagem para recomendálos. Isto representa a fuga do mundo do romance para a realidade cotidiana.
A obra Moana de Flaherty que provocou a criação do termo documentário é um registro etnográfico documental, na maior parte, dos seus 85 minutos. Flaherty e sua mulher viveram nas ilhas da Polinésia, especificamente na de Samoa durante dois anos para conhecer as lendas ancestrais e rituais deste grupo de Samoanos. A personagem principal é chamada de Moana, que na língua nativa significa ‘mar profundo’ . O seu jovem par romântico foi obrigado por Flaherty a participar de um ritual de passagem, onde foi feita uma tatuagem no seu corpo, o costume já estava em desuso na época, mas Flaherty fez questão de colocá-lo no filme, por esta razão teve que pagar para o rapaz fazê-la. Algumas destas atitudes fazem com que alguns críticos considerem que o filme tem muito de ficção e que inclusive o rotulem de docudrama. Mas temos que levar em conta que Flaherty não criou a história da sua imaginação, ele viveu no ambiente Samoano e dentro dele selecionou situações dramáticas que interessavam para a sua obra. Prevalece a intenção documental. Voltando ao primeiro trabalho de Flaherty, obra prima fundamental, que entrou para a história do cinema, como um
dos primeiros a utilizar o documentário, registro factual da realidade, Nanook of the north (Nanook, o esquimó), de 1922, merece ser redescoberto. Rodado na Bahia de Hudson, no extremo norte do Canadá, o documentário capta o dia a dia de uma família de esquimós, do grupo dos Itimuvit Inuit. O filme é realizado em preto e branco, sem som, usa intertítulos, e é um longametragem (duração 86 minutos). A luz do polo norte é bastante forte para registrar, sem a necessidade de nenhum artifício de iluminação, imagens de contornos nítidos, impressionantes até hoje. Por mostrar a vida de um grupo de Esquimós, enfrentando as adversidades do ambiente, com os nativos do local, ele introduz uma relação de registro “verdadeiro” do cotidiano, opondo-se às interpretações marcadas e ensaiadas dos filmes dos grandes estúdios. Como contraponto às imagens que já faziam parte do imaginário ocidental, como Le Voyage à travers l’impossible (França) de Georges Méliès, de 1904; Cabíria (Itália), de Giovanni Pastrone, de 1914, Les Vampires (França), de Louis Feuillade, de 1915; Intolerância (EUA), de Griffith, de 1916, a denominação ‘documentário’ fez-se necessária. Já os limites e usos da ficção e não ficção seguiriam como desafios de definição de gênero no audiovisual. Na abertura do filme, há uma introdução de Flaherty inferindo que, depois de várias viagens de pesquisa na área, pois seu pai era minerador, ele já tinha um vasto material: mapas, desenhos, descrições dos habitantes. Entre 1910 e 1916, registrou em película a vida do grupo de esquimós, mas um acidente inutilizou os negativos. Financiado por empresários e amigos, ele
voltou em 1920 e refilmou as imagens entre os nativos. Este dado é sempre muito lembrado pelos críticos, quando discutem o filme. O que é real? E o que é ficção, encenação para a câmera? Nanook e a família estavam repetindo ações rotineiras, mas especialmente para a câmera que registrava as imagens. O primeiro plano do filme mostra lobos no pé de uma pequena geleira, enquanto somos informados da difícil vida da família de Esquimós, que vamos conhecer. O segundo plano é um longo close do rosto de Nanook; com sua face expressiva ele fixa a câmera, seus olhos passeiam para os lados, provavelmente para o diretor e o operador de câmera e sorri ligeiramente. Depois conhecemos Nyla, sua sorridente mulher, os filhos Allee, Cunayou e Comock e os cachorros, importante força para a locomoção em um ambiente tão inóspito. As imagens registram a luta de Nanook para conseguir alimento, pescar no gelo, comercializar as peles das caças, construir e manter sua casa. Mostrando em detalhes a vida de um grupo exótico, Flaherty retoma concepções do início do cinema, quando os rmãos Lumière enviavam correspondentes a lugares exóticos e distantes, para realizarem ‘vistas’ (panorâmicas), para uma plateia encantada com o novo milagre científico, a imagem em movimento.
Nanook é um herói épico, que luta diariamente contra as forças da natureza, como um Aquiles moderno, tenta dominar o mar e seus caminhos, e como herói trágico morre em uma caçada, surpreendido pelo clima e pela fome. Flaherty sintetiza na frase destacada no início deste trabalho, que ‘o homem existe em sua oposição/interação com o meio
ambiente em que vive’ , seu método de trabalho e de construção poética. O grande acolhimento que a obra recebeu impulsionou a carreira de Flaherty, e tornou-a paradigma para o surgimento de outras realizações fundamentais como, Cinema-verdade, de 1922 e Um homem com uma câmera, de 1929, ambos de Dziga Vertov (1895-1954). Também alimentou uma escola chamada de documentário antropológico ou antropologia visual, que tem em Jean Rouch (1917-2004) seu principal representante, com obras como Au pays de mages noirs (1949), Les Maîtres Fous (1954) e Chronique d’un été (1961). A importância de Flaherty é tão grande que, além de inaugurar o documentário, ele também recebe o crédito pela fusão dos gêneros de ficção e documentário, com seu filme Moana de 1926, classificado como ‘docudrama’ ou ‘docuficção’ , e às vezes denominado também como ‘cinema-poesia’ .
Nanook é tão inovador que incita realizadores de várias partes do mundo a produzirem visões particulares de seus grupos. Um dos diálogos estabelecidos é do documentário de Luis Buñuel (19001983), Las Hurdes (tierra sin pan), lançado em 1932, que mostra a vida miserável de alguns povoados da região de Salamanca, na Espanha, que vivem isolados, sem saúde, comida e assistência governamental. E como registro do ‘verdadeiro’ cotidiano dos nativos, que só comem carne quando um cabrito montês cai acidentalmente das montanhas, ele nos mostra o fato. Analisando-se cuidadosamente a imagem, vemos a fumaça da pólvora de um rifle (que está fora de campo) sendo disparado, quando se registra a ‘queda’ de um animal. A questão da representação e da naturalidade da ação é muito discutida em Nanook, já que o próprio diretor afirma que tinha imagens anteriores, que se perderam, e que ele refilmou, tendo então a oportunidade de melhorar o que desejava. Quando Nanook pesca a foca, vemos que os planos se sucedem na montagem, e que algumas focas já estão bem congeladas, não tendo sido pescadas naquele dia ou momento. Quando Nanook constrói seu Iglu, também o faz maior do que o normal, a pedido de Flaherty, e com um lado somente, para possibilitar a luz necessária para a filmagem. Pode-se justificar que Nanook e sua família estão representando a sua estória cotidiana e estão conscientes da câmera e atuam para ela o tempo todo.
Foto-criação: Guerra Civil em Damasco, 2012 (J.E.H.). Robert Capa, Guerra Civil espanhola, 1936.
Enquanto o cinema aprimorava sua técnica, com grandes cenários, atuações muito pensadas e uma busca pelas inovações tecnológicas, como a introdução de som (ainda não sincronizado com a imagem e em suporte diferente), Flaherty inova na linguagem. Os esquimós são seus próprios personagens, a luz é a natural e a história é a mais próxima da realidade possível. Ele antecipa uma ruptura que surgiria no cinema em meados dos anos quarenta, com o neorrealismo cinematográfico italiano; que trabalha com atores não profissionais, com filmagens em ambientes naturais e história de um cotidiano de guerra.
O documentário de Flahery, Man of Aran, (O homem e o mar) de 1934, mostra pescadores numa ilha irlandesa, em titânica luta com o mar. Em 1948, Luchino Visconti (1906-1976) realizaria um dos marcos do neorrealismo, La terra trema –Episodio del mare (A terra treme), mostrando o miserável cotidiano de um grupo de pescadores da Sicília, protagonizado pelos próprios, e falado em seu dialeto. Impossível não estabelecer ligações entre as duas obras. Flaherty é uma figura de grande importância dentro da história do audiovisual, ele inaugurou o gênero documentário e anos depois ainda criou, novamente intuitivamente, o docudrama.
Como já foi dito, a definição ‘documentário’ foi usada pela primeira vez em 1926 em uma crítica feita a Moana de Flaherty. O prestigiado American Film Institute define documentário como:
“Documentário é um filme de não ficção que descreve alguns elementos da condição humana. Durante toda a sua existência este gênero tem procurado desde persuadir a audiência até a oferecer um ponto de vista objetivo de um evento. O formato começou a ser utilizado nos Estados Unidos e na França no início do século XX, como informativos noticiosos, que mostravam fatos contemporâneos ou os reconstruía para serem exibidos. Um grande número de documentários apareceu durante os anos 1910 na Inglaterra e nos Estados Unidos, com os filmes de propaganda dominando o gênero durante a Primeira Guerra Mundial. Durante os anos 1920 vários diretores internacionais desenvolveram o gênero agora com uma visão artística. Nos Estados Unidos, apareceu Robert Flaherty com Nanook of the north (1922); Marc Allégret na Franca com Finnis tarrae (1929); e Sergei Eisenstein na União Soviética com October (1928). O termo ‘documentário’ foi criado em uma crítica sobre Moana de Flaherty. Durante os anos 1930 e 1940, o documentário desenvolveuse como um eficiente instrumento de propaganda, em filmes como Triumph des Willens de Leni Riefenstahl (1935), na Alemanha e In which we serve dirigido por David Lean e Noël Coward, em 1942 na Inglaterra. O gênero foi renovado depois da Segunda Guerra Mundial refletindo a influência da televisão e o desenvolvimento dos equipamentos de filmagem. Títulos notáveis realizados nas décadas posteriores a guerra incluem The endless summer (1966) e Harlan county (1976). O documentário continua florescendo como um gênero receptivo para novos diretores independentes espalhados pelo mundo e aberto a explorar assuntos controvertidos. Obras representativas: The durbar at delhi (1911, UK); The life of Villa (1914); Thirty leagues under the sea (1914); How life begins (1916); Nanook of the north (1922); Cinema eye (1924,USSR); Grass (1925)/ Moana (1926); Berlin – Symphony of a big city (1927, Germany); Voyage au Congo (1927, France); October (1928, USSR); Drifters (1929,UK); Finnis Terrae (1929, France); Man with a movie camera (1929, USSR); Las hurdes (1932); Coal face (1935); Triumph of the will (1935, Germany); The plow that broke the plains (1936); The Spanish earth (1937); The city (1939); The 400 million (1939); Valley town (1940); In which we serve (19242, UK); Desert victory (1943, UK); Prelude to war (1943 ;
The memphis belle (1944); Victory in the Ukraine (1945,USSR); Louisiana story (1948); The living desert (1953); Nuit et brouillard (1955, France); The silent world (1956); For days in November (1964); The Eleanor Roosevelt story (1965); The endless summer (1966); Why man creates (1968); Le chagrin e la pitié (1971, Switzerland); The hellstrom chronicle (1971); Hearts and minds (1974); Brother can you spare a dime? (1975); Harlan county, (1976, USA); The children of theatre street (1977); Let’s get lost (1988); Roger and me (1989); The thin blue line (1989); Paris is burning (1990); Hoop dreams (1994); When we were kings (1996); Endurance; shackleton’s legendary Antarctic expedition (2000, UK/US). ”
Coal face, direção de Alberto Cavalcanti, 1935.
Na lista acima temos representantes de vários países do mundo especialmente da França, da Inglaterra e dos Estados Unidos, onde o gênero documentário apareceu e se desenvolveu. Nanook o esquimó é o destaque óbvio, mas também são apontadas obras fundamentais como Triunfo da vontade de Leni Riefenstahl; Las hurdes, tierra sin pan de Luís Buñuel; Coal face do brasileiro Alberto Cavalcanti (realizado na Inglaterra); Homem com uma câmera de Dziga Vertov; In which we serve de David Lean; The thin blue line de Errol Morris; Nuit et brouillard de Alain Resnais e Hearts and minds de Peter Davis entre outros. A importância de Flaherty é indiscutível, ele aparece com três obras na lista: Nanook, o esquimó, Moana e Louisiana story. O filme irlandês/canadense Room (O quarto de Jack, 2015) foi uma das grandes surpresas do Oscar deste ano, falando de um tema trágico que estranhamente assola majoritariamente o norte da Europa e os Estados Unidos, o rapto e abuso sexual de menores e jovens, cativou crítica e público. Sendo um filme de ficção, ele trouxe para o tema mais atenção e discussão que os casos reais, que são muitos, nos quais se inspirou. O roteiro do filme foi feito pela escritora irlandesa Emma Donoghue, que escreveu o livro em 2010. Muitas foram as ocorrências de desaparecimento e abuso sexual de menores no período, mas uma ficou particularmente conhecida, o de Natascha Kampusch, menina seqüestrada na periferia de Viena, em 1998, aos 10 anos e que conseguiu escapar em 2006, já com 18 anos. Neste mesmo ano foi lançado na Inglaterra o livro de Allan Hall e Michael Leidig Girl in the Cellar: The Natascha Kampusch Story e o canal britânico Channel 5 criou um documentário com uma longa entrevista com Natascha e com imagens minuciosas de seu cativeiro em cinco metros quadrados. O caso teve uma imensa repercussão na Europa e enfaticamente no Reino Unido, onde vive Emma Donoghue. O livro de Emma Donoghue Room – a novel, é uma ficção, como o próprio título esclarece; o de Natascha Kampusch 3096 tage é um relato real em primeira pessoa. Para o cinema temos as bases de um drama e a de um documentário, mas a própria origem do cinema o liga a uma narrativa visual e sonora que é sempre uma recriação da realidade, seja ela ficção ou registro do real.
Os dois gêneros têm a marca da reprodução e da artificialidade, seja ela uma excessiva ficção ou uma suposta realidade objetivamente reencenada; a realidade ‘verdadeira’ (documentário) parece mais difícil de transmitir que a artificial (ficção). Este é meu ponto de vista nesta comparação de Room e 3096 tage. Kampusch exagera nos detalhes e nos dados e não consegue nunca atingir a contundência que a experiência necessita, ela informa e não emociona ou modifica a nossa experiência sobre o fato. Totalmente oposto é o resultado de Room (2015), o enredo e o cenário mínimo desdobram-se em imagens e situações inusitadas e aparentemente sempre novas. Já nas primeiras imagens vemos fragmentos de objetos que identificaremos depois, como o abajur, a pia, a mesa. No enquadramento vemos primeiros planos e closes do rosto de Jack e de sua Ma (mãe), quando eles se falam a câmera, que parece estar pousada no ombro da mãe, gira de sua face para a de Jack. A mãe estimula Jack a ter aptidão física e principalmente nenhuma limitação mental. Room começa com uma narração em off (quando o personagem não aparece) de Jack que diz: era uma vez... Já no livro ele nos informa em primeira pessoa que ‘hoje tenho cinco anos’ . Está data é marcada por um bolo de aniversário e pelo início do esclarecimento de dados que até agora Jack entende como sendo todos de um mesmo universo, o do quarto. Com trinta minutos de filme Ma esclarece que está neste ambiente porque foi ajudar um homem que disse que tinha um cachorro doente, quando ela tinha 17 anos, e sete se passaram desde o rapto. Depois de muito pensar Ma decide que Jack vai fingir-se de morto e ela o colocará dentro do velho tapete, Old Nick não terá outra alternativa a não ser levá-lo para longe e enterrar o corpo. A armadilha funciona e Jack consegue fugir do interior do tapete e mesmo alucinado pelo azul do céu, pela grama, pelo espaço consegue gritar e pedir ajuda, a libertação da mãe vem em seguida. O livro e o filme Room tem a qualidade de representar uma multiplicidade de vozes, dos que foram vítimas deste crime incompreensível e desumano e como são uma representação desta realidade podem transcendê-la, por serem maior que a síntese ou simples registro das mesmas. Quando Jack volta com sua mãe para visitar o quarto onde nasceu e ficou preso cinco anos sintetiza: ‘ele é tão pequeno’ . Concordo, grande é a capacidade humana de tecer, a partir da realidade, uma narrativa que a espelhe de uma maneira tão completa, que uma fração deste real nunca encontrara correspondência dentro da complexa teia que ela ontologicamente contém; como um ponto já conteve toda a matéria do universo, antes do big bang. O quarto de Jack é este ponto cientificamente ficcional e ilimitado. Um drama ou documentário no cinema passam pelo mesmo fator criativo, a capacidade humana de fabular.
Referências
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