Armenio guedes

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O marxismo político de Armênio Guedes


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O marxismo político de Armênio Guedes Seleção dos textos e introdução de Raimundo Santos

Brasília-DF, 2012


© by Fundação Astrojildo Pereira e Contraponto, 2012 Vedada, nos termos da lei, a reprodução total ou parcial deste livro, por quaisquer meios, sem a autorização da fundação.

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Tiragem: 2.000 exemplares Distribuição FUNDAÇÃO ASTROJILDO PEREIRA

Ficha Catalográfica S237m

O marxismo político de Armênio Guedes / Raimundo Santos, organizador. Brasília : Fundação Astrojildo Pereira (FAP), 2012. 208p. 23 cm. ISBN 978-85-89216-40-1 1. Teoria política. Ideologia. 2. Comunismo. I. Título. II. Organizador. CDU 320.5


Agradecimentos Akiko Santos Ana Lúcia da Costa Silveira Aline Borghoff À equipe dos funcionários da Biblioteca “Rodolfo Garcia” (Academia Brasileira de Letras) Aos servidores da biblioteca do Ibemec (subsede do centro do Rio de Janeiro) Dora Vasconcellos Juliana de Oliveira Teresa Maia



Dedicatória A Francisco Inácio de Almeida, um dos últimos militantes



In memoriam Carlos Nelson Coutinho



Sumário PREFÁCIO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 Nota prévia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17 I.

INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19

II.

TEXTOS DE ARMÊNIO GUEDES

1

O pecebismo contemporâneo Algumas ideias sobre frente única no Brasil . . . . . . . . . . . 73 Uma ação positiva das forças nacionalistas. . . . . . . . . . . . 78

2

A resistência política ao regime de 1964

Resolução Política do Comitê Estadual da Guanabara do PCB (março 1970) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83

Apresentação à Resolução Política do Comitê Estadual da Guanabara, do PCB (março de 1970). . . . . . 105

3

A transição democrática

Construir uma saída para a crise, eis a tarefa atual para as forças democráticas. . . . . . . . . . . 109

O PCB encara a democracia – a luta pela democracia e a luta pelo socialismo. . . . . . . . . . . . . . . . . . 116

Dirigente do PCB diverge de Prestes sobre a luta armada. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127

O impasse político e a saída democrática. . . . . . . . . . . . . . 133

4

O socialismo

A crise do socialismo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139

Entrevista de Armênio Guedes a José Fucs . . . . . . . . . . . 147

Entrevista de Armênio Guedes à revista Socialismo e Democracia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155


5

A nova formação política

PMDB: As novas tarefas do partido da transição democrática. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169

APÊNDICE Declaração sobre a política do Partido Comunista Brasileiro (março de 1958) . . . . . . . . . . . . . . . . 181 Sobre o organizador . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207


Prefácio Caetano Pereira de Araujo*

É

com enorme satisfação que a Fundação Astrojildo Pereira lança O marxismo político de Armênio Guedes, coletânea de textos do veterano dirigente do Partido Comunista Brasi­leiro, acompanhada do esclarecedor estudo introdutório de Raimundo Santos, organizador do volume. Satisfação motivada pela convicção de que a presente publicação vem preencher uma lacuna antiga nos estudos de história política brasileira da segunda metade do século XX, em particular nos estudos de história da esquerda brasileira nesse período. O livro traz documentos, artigos e entrevistas publicados na imprensa partidária, desde a década de 1950, e em revistas acadêmicas e políticas, assim como em revistas e em jornais comerciais de grande circulação, a partir do retorno do autor ao Brasil, com a anistia. São documentos de polêmica, importantes para compreender as disputas intestinas do PCB e as divergências desse partido com as correntes dele dissidentes em torno das grandes questões que ocupavam o campo da esquerda depois do golpe militar de 1964: Quais as razões da derrota? Qual a natureza do regime? Qual a estratégia correta para enfrentá-lo e derrotá-lo? As razões dos demais partidos e correntes que participaram dos acontecimentos estão bem documentadas, em diferentes publicações que se seguiram a partir da década de 1980. A voz do PCB, partido de esquerda de maior significação em 1964, cuja política teve impacto maior no processo de redemocratização, foi menos divulgada.

* Sociólogo, professor da Universidade de Brasília, consultor legislativo do Senado Federal. Presidente da Fundação Astrojildo Pereira. 13


Esperemos que a presente publicação marque um ponto de renovação do interesse na formulação e atuação políticas do PCB na resistência democrática e inicie um debate fecundo sobre ela. A coerência marca a trajetória de Armênio Guedes. As mesmas ideias centrais estão presentes nos escritos de crítica à política sectária do Partido Comunista após a ilegalidade de 1947 e as cassações de mandatos de 1948, política expressa no Manifesto de Agosto de 1950; na Resolução de Março de 1958; na avaliação do caráter do golpe militar de 1964; na estratégia de luta contra a ditadura e nas tarefas da redemocratização do país. A importância da democracia, vista como complementar ao socialismo e numa relação de continuidade com ele. Direitos, manifestos em leis, abrigados numa Constituição não são ilusões, mas conquistas dos trabalhadores, que expressam a relação de forças do momento. A importância, em consequência, da política de frentes, reunindo atores diferentes em torno de objetivos comuns. A importância, por fim, da política propositiva, e não simplesmente crítica ou “denuncista”, indispensável para iniciar a discussão em torno dos programas capazes de aglutinar os atores que integrarão a frente. Uma política voltada para a situação concreta, não para a doutrina; para a aglutinação de forças, não para marcar as posições puras; para a construção de objetivos comuns, não para a imposição dos próprios. O oposto exato, portanto, da política do PCB anterior ao suicídio de Vargas, que pregava a derrubada pura e simples do governo de “traição nacional”, a partir de uma aplicação mecânica do marxismo à realidade brasileira. O fato é que, com percalços, todas essas características terminaram incorporadas à política do PCB e construíram historicamente sua especificidade, sua identidade singular, de acordo com críticos e admiradores, tanto no campo da esquerda brasileira quanto no campo do movimento comunista internacional. Um momento do livro é particularmente feliz ao ilustrar a diferença entre uma opção democrática, frentista e propositiva profunda e seu acolhimento tático, apenas como caminho para a luta contra a ditadura. No início dos anos 1980, Armênio Guedes torna pública sua divergência com Luiz Carlos Prestes sobre os rumos da revolução brasileira, 14

Raimundo Santos (Org.)


divergência acumulada há longa data. No momento em que Prestes defendia a possibilidade da via insurrecional da revolução brasileira, na esteira do exemplo nicaraguense, Armênio reafirmava a democracia como caminho possível, desejável e necessário para o socialismo. Falavam do Brasil, mas falavam também da União Soviética e do Leste europeu, que já viviam, de modo ainda subterrâneo, o processo de ruptura que explodiria poucos anos depois. A leitura dos textos de Armênio Guedes é atual. Diz do passado, mas diz muito também dos dilemas ainda não superados de uma esquerda em processo de reconstrução.

O marxismo político de Armênio Guedes

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Nota prévia A primeira parte deste livro traz uma recensão de alguns textos de Armênio Guedes de autoria de Raimundo Santos. Outros estudos da sua vida e pensamento surgirão à medida que seu nome ganhe relevo como militante político de orientação democrática. As ideias políticas de Guedes não constituem patrimônio exclusivo do PCB. São uma referência de grande importância, inclusive nestes anos de confusão ideológica e partidária. Os textos de Armênio Guedes que compõem a segunda parte deste volume foram escolhidos por ilustrarem momentos da sua trajetória político-elaborativa. São de épocas diversas, vêm de meados dos anos 1950, do tempo da resistência ao regime de 1964 e da vitória do movimento democrático brasileiro, consumada com a eleição de Tancredo-Sarney e da transição política na década de 1980. Fundação Astrojildo Pereira



I. INTRODUÇÃO



O marxismo político de Armênio Guedes Raimundo Santos*

E

stas notas introdutórias procuram desenvolver a proposição de que a identidade do PCB se refunda quando os pecebistas passam a valorizar a política a partir do suicídio de Getúlio Vargas, em 24 de agosto de 1954 e, sobretudo, no tempo subsequente ao relatório sobre a Era Stalin, apresentado por Nikita Kruschev ao XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), no começo de 1956.1 A feição de “esquerda positiva” (expressão cunhada por Santiago Dantas, no imediato pré-64), com que os comunistas irão ser vistos, vai se apoiar em uma elaboração que surge naqueles anos de instabilidade e crise profunda do movimento comunista internacional. As novas ideias despontam no PCB, através de textos publicados na imprensa pecebista, por vários militantes envolvidos na controvérsia sobre o stalinismo, dentre eles Armênio Guedes, “a figura que mais influiu na orientação política do partido durante várias décadas”, como diz o veterano comunista Marco Antônio Coelho (COELHO, 2010). A renovação desses anos, que levará o PCB cada vez mais à atuação pública sem reservas e a exercer função nacional, começa após o * Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Autor, entre outros de Agraristas políticos brasileiros. FAP/Nead, 2007. 1 Os Partidos Comunistas (PCs) foram abalados pelo informe de Kruschev. Por essa ocasião, alguns deles, como é o caso do Partido Comunista Italiano (PCI), se afastaram do marxismo-leninismo da URSS e passaram a tomar como referência de suas estratégias as circunstâncias nacionais. No Brasil, em 6 de outubro de 1956, os debates eclodiram nos jornais comunistas à revelia da direção partidária. Nos dias seguintes, vários intelectuais (Dalcídio Jurandir, Jorge Amado, Isaac Akcelrud, Moacir Werneck de Castro e outros) publicaram cartas exigindo a abertura da discussão. Na controvérsia, se defrontaram dois campos: os “abridistas” (do debate) ou renovadores e os “fechadistas”, temerosos de que o revisionismo da discussão descaracterizasse o PCB (SANTOS, 1988). 21


24 de agosto de 1954, quando os comunistas viram desmoronar sua “tática radical” e “sectária” (usando termos de época) do Manifesto de Agosto de 1950. Essa tática tinha por objetivo a derrubada do “governo de traição nacional”, palavra de ordem dirigida a Dutra e ainda repetida em 1954 contra Getúlio, cujo governo, sob cerrada oposição de direita, o próprio presidente pôs término com o ato extremo do suicídio. Então, levado pelos fatos, o PCB muda de rumo alinhando-se à reação antigolpista.2 Na eleição de 3 de outubro de 1955, os comunistas apoiam a coligação PSD-PTB e vivem o movimento do general Teixeira Lott, de 11 de novembro, que assegurou a posse de Juscelino, no início de 1956. Esse tipo de experiência abre ao PCB o caminho para uma prática de responsabilidade política, como certa vez a chamou Hélio Jaguaribe, reclamando, no entanto, do contraste entre a postura construtiva dos pecebistas e sua doutrina (o isebiano certamente aludia ao marxismo-leninismo) que não lhe era homóloga (JAGUARIBE, 1977, apud MARÇAL BRANDÃO, 1992). Referindo-se à militância comunista no Brasil entre as décadas 1950-1970, o próprio Armênio Guedes registra outra dimensão da longa presença do seu partido na vida nacional: “Pode-se agora avaliar, com muita clareza, o papel desempenhado por ela na educação e na formação de uma boa parte dos quadros que estão hoje ocupando postos de direção na vida política do país” (GUEDES, 2000). Esse é o partido que o país guarda na memória, hoje valorizado como fonte do pensamento democrático do campo marxista brasileiro e de uma cultura política ainda levada muito em conta por vários ambientes de esquerda. O realismo político que emerge no PCB dos anos 1950 – no início da década, sob forma dispersa nas dissidências de comunistas que resistiam a cumprir consignas desproporcionais ao momento adverso do governo Dutra (cf. CAVALCANTE, 1983) e fruto da crise de 1954 – não é suficiente para levar o partido desde o seu redirecionamento após o 24 de Agosto até a afirmação de um caminho peculiar à revolução no Brasil. A nova política do PCB, anunciada, em março de 2 Há dois documentos do PCB do imediato pós-24 de Agosto que trazem a nova postura: o “Manifesto do Comitê Central: a ditadura de Café Filho”, de 01/09/1954 e “Comunistas e trabalhistas ombro a ombro na luta contra o inimigo comum”, de 12/10/1954 (SANTOS, op. cit.). 22

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1958, pela resolução do Comitê Central, conhecida como Declaração de Março, tem por base as proposições renovadoras vindas dos debates sobre o XX Congresso do PCUS. No entanto, essa reorientação que levaria o PCB adiante não advém da direção partidária, como se pode ver na sua postura nos meses seguintes ao suicídio de Getúlio. Referimo-nos às teses por ela propostas ao IV Congresso, realizado entre novembro de 1954 e fevereiro de 1955, que ratificaram (as teses foram aprovadas por unanimidade, cf. VINHAS, 1982) a diretriz da derrubada do “governo de traição nacional”, tática, como veremos com detalhe mais adiante, distanciada da realidade nacional e sem qualquer validade.3 Recordemos, todavia, que, na discussão sobre o stalinismo no PCB, não foi pequena a oposição (de algumas organizações intermediárias e áreas militantes) à vertente renovadora, campo ao qual, desde o seu primeiro momento, pertencem os dois autores – Armando Lopes da Cunha e Armênio Guedes – recenseados na presente introdução, principalmente Guedes. A ação formulativa da nova estratégia nasce da confluência de dois eventos de forte repercussão no PCB: o 24 de Agosto, pondo em crise sua orientação antiga, e o XX Congresso do PC soviético, cujas revelações erosionam os seus princípios marxistas-leninistas. Os quadros renovadores não se deixam subsumir à luta pela defesa desses princípios que exauria o PCB, sem lhe indicar rumo. Ao contrário, associam suas reflexões à circunstância de sentido democratizante que começara a se afirmar por força do episódio de agosto de 1954. Desde tal ponto de vista, eles procurarão ver, nas conjunturas da situação política das duas crises (a nacional e a dos PCs), as possibilidades de o PCB vir a ter presença positiva no país. Eles veem o dinamismo na vida nacional do pós-54 e o abalo nas práticas e na ideologia comunistas como os dados do problema posto ao PCB, daí começando a se envolver com um labor formulativo visando chegar a uma orientação que reativasse o partido.4 3 Há inclusive registro do apelo da direção à prevalência da doutrina, no estudo do terreno no qual atuaria o protagonista pecebista. Elias Chaves Neto reclama do fato de ter sido interpelado, em 1955, por tentar ver a circunstância brasileira, em um artigo publicado na Revista Brasiliense, recorrendo a Caio Prado e não aos princípios marxistas-leninistas (CHAVES NETO, 1977). 4 A Declaração de Março de 1958 contou com a mediação de Alberto Passos Guimarães, intelectual atento aos acontecimentos brasileiros, e sobretudo com a presença de Prestes na reunião do Comitê Central, decisiva para sua aprovação. O marxismo político de Armênio Guedes

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Observemos que, com as novas ideias, o PCB passa a dispor de duas fontes que substantivavam sua tática, recebidas, entretanto, de modo diferenciado. A primeira e mais antiga, digamos, mais de tipo “programático” (mas não só), era oferecida por Caio Prado Jr., cujo pensamento já se conhecia pela publicação dos seus livros clássicos Evolução política do Brasil (1933), Formação do Brasil contemporâneo (1942) e História econômica do Brasil (1945). Influente no sindicalismo camponês praticado pelos comunistas desde os primeiros anos 1950 (ver PCB, 1952, e SANTOS; CARVALHO COSTA, 1997), o aporte do historiador não é considerado no programa do PCB. Teria sido de muita valia a apropriação das teses a respeito da singularidade brasileira (PRADO JR., 1933; 1942; 1945) e especialmente do reformismo reestruturador da economia, tal como é exposto no seu livro Diretrizes para uma política econômica brasileira, de 1954.5 Entretanto, àquela época, o reformismo caiopradiano é visto como uma versão do nacional-reformismo (termo com que a direção do PCB expressa sua reserva ante a discussão isebiano-cepalina), no caso, à controvérsia sobre o tema posto na ordem do dia daqueles anos 1950: as reformas de estrutura, mais precisamente, as diretrizes da “política econômica brasileira” (como se vê, o historiador, não por acaso, pôs esse nome no seu livro de 1954).6 As análises dos seus artigos sobre a realidade brasileira divulgados pela Revista Brasiliense tampouco foram levadas em conta nas diretrizes para o trabalho político dos comunistas, mesmo sendo contribuição igualmente extraída da sua teoria da formação social brasileira, inclusiva, portanto, das dimensões econômica e social, do Estado e da política (por exemplo: PRADO JR., 1956a, 1956b, 1962; 2007).

5 Citemos uma passagem do livro em que o historiador define sua Economia Política, em contraste com a ânsia daqueles tempos por "produção e produtividade”: “As minhas reservas são relativas ao destaque que lhes é dado, sem a consideração que a meu ver deveria ser preliminar ou, pelo menos conjunta e no mesmo plano, da questão do consumo e do mercado. No caso brasileiro, e entre os dois polos do mecanismo econômico, a produção e o consumo, a oferta e a procura, escolheria o segundo como ponto de partida e baliza do assunto” (PRADO JR., 1954, in: PRADO JR., 2007, p. 147). Esta referência para um programa de reformas do capitalismo permanece inconclusa no próprio Caio Prado Jr. e no seu partido (esse livro está a merecer uma reedição). 6 A controvérsia sobre o desenvolvimentismo é uma das mais interessantes que este país já conheceu. O historiador não só publica, em 1954, Diretrizes para uma política econômica brasileira, como a seguir, em 1955, cria a Revista Brasiliense dirigida justamente àquela cena intelectual. 24

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Em relação à segunda fonte, a das ideias renovadoras gestadas na controvérsia sobre o XX Congresso, acima referidas, registremos, por enquanto, que elas têm melhor recepção no PCB, embora experimentem resistências internas, mas não como as que encontrava Caio Prado Jr. Aliás, essas formulações revisionistas não se referem às proposições do intelectual paulista, diferentemente – não há porque não fazer a comparação – da elaboração do caminho italiano para o socialismo anunciado também em 1958, na qual o pensamento gramsciano exerceu muita influência (TOGLIATTI, 1958; 1966). Anotemos também que o desaproveitamento da obra de Caio Prado Jr. por parte das duas alas do partido – os renovadores e os círculos dirigentes – deu-se naquela época e depois, na segunda renovação pecebista dos últimos anos 1970 e começo da década de 1980. O insucesso do historiador no seu partido aumenta o interesse em ver como as ideias renovadoras são legitimadas e acolhidas em uma cena partidária sob tensão latente entre a “conciliação” (termo usado em textos pecebistas) dos círculos dirigentes com a antiga mentalidade e a necessidade de eles próprios movimentarem o PCB por meio de orientação atualizada. Todavia, ao não se desenvolverem de forma progressiva, as novas teses formam intelectualmente áreas reduzidas, não sendo apropriadas no partido como um corpus seminal ao qual pudesse se referir um amplo contingente de militantes. A divulgação pela imprensa pecebista dos escritos de diversos militantes renovadores entre outubro de 1956 e outubro de 1957, ao tempo que os dispôs à leitura de todo o partido, permite ver, no exame intertextual, o tipo de incorporação das suas proposições à Declaração de Março e aos documentos do V Congresso de 1960 (teses e resolução final). Nesse cotejo, notamos que essa absorção é efetiva, construtiva (dos novos lineamentos do PCB) e revela desencontros na elaboração da sua direção, como se pode ver se estendermos a comparação a alguns documentos posteriores. Com efeito, o texto final do V Congresso de 1960 e outras resoluções trazem, nas suas diretrizes, teses da Declaração de Março. Essa associação prática entre as novas referências dispostas ao PCB e as linhas políticas desses documentos, norteadoras da atuação com que os comunistas são identificados, às vezes tem sido chamada de pecebismo

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contemporâneo.7 A expressão alude, por um lado, ao distanciamento da nova política de 1958 em relação ao determinismo doutrinário (ainda incompleto, como se vê na presença da teoria da contradição de Mao Tsé Tung nos textos de 1958 e do V Congresso) e, por outro, à natureza política que as diretrizes e as ações do PCB vão ganhando, justamente à medida que, na formulação do partido, reduz-se a força do marxismo-leninismo como lente de leitura da realidade. Nascido em meados dos anos 1950, o pecebismo contemporâneo não recebeu reflexão sistemática no interior do PCB, a não ser em tempo bem mais recente.8

A concretização da “revolução brasileira” Passemos a apresentar a nova política, a partir de dois artigos de Armênio Guedes. Escrito no contexto dos debates sobre o XX Congresso do PCUS (1956-57), o primeiro deles, Algumas ideias sobre a frente única no Brasil, do final de 1957, apareceu no segundo dos seis números da revista Novos Tempos, editada nessa época por alguns renovadores; e o outro, Uma ação positiva das forças nacionalistas, foi publicado no jornal Voz Operária, três meses após a Declaração de Março de 1958. Armênio Guedes é o principal expositor das proposições inovadoras e também quadro importante no processo de conversão do PCB em partido propriamente político, qualidade protagonizada pelos militantes mobilizados por uma concepção de via revolucionária (suas principais proposições) que propiciara a refundação pecebista na segunda metade do anos 1950. Desde essa época, o nome de Guedes vem sendo identificado com a valorização da política no agir da esquerda marxista e leninista. Sua escrita, que não é muito extensa, ora pode ser vista nos jornais comunistas e em passagens dos documentos do partido, ora encontrada em revistas de esquerda para as quais escrevia artigos, inclusive na gran-

7 Ainda não têm sido objeto de estudo específico, nos documentos pecebistas, as seções da “tática” e das “nossas tarefas” e de outros tópicos dedicados à ação partidária, a suas insuficiências e efetividade. Nesse sentido, são muito interessantes os informes de balanço dos congressos, especialmente o do VI Congresso (PCB, 1967b). 8 A propósito, Alberto Aggio faz o registro formal, no campo pecebista, do sentido teorizante da ensaística de Luiz Werneck Vianna sobre a maturidade e a orientação política do PCB (AGGIO, 2011). 26

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de imprensa, como o Jornal do Brasil e o Jornal do Commercio no qual publicou texto sobre a crise do socialismo dos anos 1980. É notável ver como dois traços permanecem no pensamento de Guedes – a previsão de cenários e a perspectiva de ação. Nas análises de conjuntura, campo do seu labor, o pecebista tanto procura guardar distância em relação ao tempo largo da doutrina como, nos momentos difíceis, sempre se opôs ao desespero imediatista, como costuma dizer ao relembrar a fase mais dura do regime de 1964 e a fragmentação das esquerdas dessa época. A congruência das suas ideias pode ser observada nos escritos dos anos 1950 antes citados, na Resolução Política do Comitê Estadual do PCB da Guanabara de março de 1970, de sua autoria (cf. GUEDES, 1981), aqui também resenhada, no artigo O impasse político e a saída democrática (GUEDES, 1980) e ainda em outros textos, alguns deles também reunidos na segunda parte deste volume. O caminho político da “revolução brasileira” desenhado por Guedes nos anos 1957 e 1958 provém de cometimento partidário, como, de resto, as formulações de comunistas desse e de outros tempos. No entanto, Guedes chama a atenção pelo ponto de partida que o distingue como formulador em meio ao clima de turbulência doutrinal que então paralisava o PCB. Ele vai adotar no tocante à relação entre a teoria e a prática – nevrálgica para o marxismo – o critério da prática política. Desde este prisma, Guedes pensa em uma tática que incida na conjuntura vivida pelos atores reais e aponte para um tempo da “revolução brasileira” diverso do tempo que aparecia em consignas ainda vigentes no PCB. O que o singulariza é o fato de sua elaboração trazer a ideia de revolução no Brasil para o “tempo presente”, tendo como perspectiva um horizonte relativamente próximo. Ou seja, ele refere sua construção formulativa à circunstância do pós-24 de Agosto, procurando divisar cenários em relação aos quais o protagonista pudesse fazer cálculo razoável e extrair referências para a ação. As presentes notas enfatizam, na elaboração de Guedes, o ponto de vista político com o qual o autor põe atenção na vida nacional que à época tensionava o PCB. O analista centraliza o olhar na esfera pública, buscando onde os comunistas poderiam convergir com outras vertentes, começando pelas áreas que haviam se diferenciado no O marxismo político de Armênio Guedes

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contexto do suicídio de Getúlio em oposição aos grupos conservadores que disputavam o controle da cena de governo. Nos seus textos, Guedes termina por expor uma narrativa que envolvia a compreensão da circunstância e seus movimentos de mais alento, análises das conjunturas daquela situação política (1954-58) e diretrizes para a ação. Guedes parte da ideia de que apenas com o domínio do terreno seria possível balizar a prática partidária para que ela fosse atinente à realidade e eficaz. Ao lermos essa narrativa, estamos diante de uma imagem – construída no interior do PCB – da concretização da revolução no Brasil, isto é, da descrição de um processo revolucionário já em andamento naquele tempo presente em que ele dispõe suas ideias ao PCB. No entanto, os textos de Guedes precisam ser associados a Armando Lopes da Cunha, um dos primeiros comunistas a se posicionar na imprensa partidária sobre o Relatório Kruschev, indo além da disputa principista que encobria a questão posta ao PCB: a revisão completa da sua tática. Lopes da Cunha observa que a tática que precisava mudar até ali se centrava na concepção de que “o processo de desenvolvimento do país e a conquista da sua plena independência só serão (seriam) possíveis após a derrubada do ‘atual governo’ (Dutra, depois Vargas – RS), visto como expressão pura e simples do regime de latifundiários e grandes capitalistas serviçais dos imperialistas norte-americanos” (LOPES DA CUNHA, 1956). Na crítica às concepções e prática do seu partido, esse autor realça a questão do estagnacionismo econômico, segundo ele, exagerada nos anos da Guerra Fria (o perigo de o Brasil tornar-se colônia dos Estados Unidos) e que ainda amparava aquela antiga diretriz mantida no IV Congresso, de dezembro de 1954: Não há mais dúvida de que o país pode se desenvolver e caminhar rapidamente para sua independência nacional sem a prévia derrubada do ‘atual’ governo, e não há mais dúvida simplesmente porque isto está acontecendo sob nossos olhos. A necessidade de modificarmos nossas concepções programáticas é portanto patente, como patente é também que muito se pode avançar no sentido da independência e do progresso, bem como da própria modificação do governo, nos quadros da atual Constituição (...) (IBIDEM).

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Lopes da Cunha extrai dessa proposição duas outras, interligadas: Passaremos a ter que apresentar soluções positivas para os problemas brasileiros e deixaremos de criar dificuldades para a unidade de ação em prol da independência como por vezes tem ocorrido por estarmos imbuídos das mencionadas ideias programáticas que condicionam a tática estreita, sectária e exclusivista”(IBIDEM).

Podemos trazer do texto de Lopes da Cunha (escrito no governo JK) os seguintes pontos que vão compor orientação oposta à do IV Congresso: a) o reconhecimento do avanço capitalista no país;9 b) a tática das “soluções positivas”; c) a possibilidade de mudar os rumos do governo existente (e/ou ganhar apoio para formar um novo governo de frente única, como dirá, depois, Guedes); e d) a valorização da Constituição de 1946. Guedes voltará a esses pontos de Lopes da Cunha para pensar em uma movimentação revolucionária por meio da “ação política” (expressão dele) nas conjunturas da circunstância do pós-54. Vale dizer, ação política eficaz se encaminhada conjuntamente com agrupamentos políticos (e sociais). A proposição do autor é a de que a coligação que vinha se configurando nos anos seguintes à crise de 1954 como Frente Nacionalista, ao se desenvolver, poderia propiciar transformações reformistas no país. Aliás, nesse tempo, a ideia de renovação nacional como um processo de mudanças estruturais – devemos acentuar este registro – não era exclusiva do nosso militante pecebista nem difundida apenas pelo PCB da Declaração de Março. Ela já estava em discussão em uma cena intelectual pública bem mais ampla do que a área de influência do partido, na qual, como Caio Prado Jr., vários outros autores não comunistas entendiam a “revolução brasileira” ou “pré-revolução brasileira”, no dizer de época de Celso Furtado, como reforma do capitalismo. Guedes se torna o mais visível dos publicistas das novas ideias que obtém êxito no seu partido (ainda que parcial), possivelmente pela natureza da sua narrativa (referenciada ao mundo real brasileiro) nortear – por seus termos propriamente formulativos – ações prá9 Em 1958, a Declaração de Março chamaria tal desenvolvimento capitalista nacional de “o elemento progressista por excelência da economia brasileira”, cf. PCB, 1958; ver o seu texto no apêndice deste volume. O marxismo político de Armênio Guedes

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ticas. Ele inclusive fez parte da comissão preparatória da Declaração de Março de 1958, composta por Giocondo Dias, Alberto Passos Guimarães e Mário Alves (GORENDER, 2011). No entanto, é plausível dizer que, em março de 1958, quando formalmente se encerraram os debates sobre o XX Congresso, Guedes não conta, no interior do PCB, sobremaneira na cúpula partidária, com o apoio dos renovadores ativos em 1956 e 1957, conquanto um grande número deles havia se marginalizado do partido. Hoje, quando consultado, Armênio Guedes se refere a Armando Lopes da Cunha como sendo um dos integrantes do que ele chama de “Sinédrio”, dando a entender que naqueles anos existia um grupo de quadros dispostos ao empreendimento renovador. 

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À medida que a controvérsia sobre o XX Congresso ganhava dimensão pública pelas páginas da imprensa partidária, as críticas da tática comunista (dissociada do mundo real) vêm dificultar, se tanto se pode dizer, o caminho livre à já aludida compulsão a resolver a questão do dogmatismo através de uma correição por meio dos princípios marxistas-leninistas. Esta crença aparece em textos publicados nos jornais pecebistas nos quais os seus autores intentam centralizar a discussão no tema partidário, sobremaneira nos desvios organizacionais (centralismo, mandonismo etc.), superáveis mediante revigoramento ideológico e reestruturações. Com esta mentalidade, segundo os argumentos de Lopes da Cunha e Armênio Guedes, o PCB continuaria à margem do Brasil dinâmico à vista de todos. Contracorrente àquela propensão, os dois quadros intelectuais não submergem no mundo interno da doutrina. Pelo contrário, percebem que o choque de realidade provocado pelo suicídio de Getúlio e pelas revelações do XX Congresso, de um lado, e a compreensão do curso político que se firmara com a posse de JK (1956), de outro, precisavam ser processados em termos de uma orientação ao modo da via democrática ao socialismo do PCI.10 Com o olhar centrado na circunstância do pós-24 de Agosto, aqueles pecebistas subiram à super10 No começo dos debates sobre o stalinismo, a imprensa partidária divulgou alguns materiais do PCI sobre o XX Congresso, em particular de Togliatti, que já apresentavam aquela concepção dos comunistas italianos. 30

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fície em busca de uma tática que habilitasse, como diz Lopes da Cunha no texto acima citado, o PCB a movimentar “imensas forças dispostas a combater o imperialismo norte-americano e impulsionar o progresso do país”. Armando Lopes da Cunha e Guedes veem que a grande questão da “revolução brasileira” era justamente a frente única, então tida por eles (e muitos outros militantes pecebistas e não pecebistas) como a formação que podia – este é o seu realismo – ­adquirir presença efetiva na vida nacional e assim reunir energias para viabilizar metas parciais da revolução no Brasil. Essa valorização da frente única não constitui um giro menor ou desvio direitista dos comunistas. A ativação da convergência pluriclassista era vista pelo Iseb, o PCB pós-58 e outros ambientes politico-intelectuais, como condição para que o desenvolvimento do país prosseguisse num rumo progressista – com a reforma do capitalismo – em circunstância democratizante por meios institucionais (governo eleito, política econômica, leis etc.).11 Em Algumas ideias sobre a frente única no Brasil (1957), Guedes esboça o caminho da “revolução brasileira”, sem mobilizar dissertação sobre sua circunstância nacional, como fazem os grandes autores lidos no campo pecebista (Marx, Engels e Lênin).12 Guedes parte da crítica do dogmatismo predominante na mentalidade comunista e se debruça sobre a circunstância do ator revolucionário, realizando um movimen11 Na parte final do seu livro de 1962, Sodré menciona um “estudioso” (sic) (Lênin) que o leva a ver a modernização brasileira como constituição da ordem burguesa ao “modo prussiano” (sic) (SODRÉ, 1962, p. 357). Nesse autor está sugerida a ideia da democratização como reversão da revolução burguesa “pelo alto” (Lênin) no Brasil. Sodré refere-se deste modo ao nexo entre revolução e democracia política: “A defesa do regime democrático, no processo da Revolução Brasileira, não se prende, assim, ao supersticioso respeito a uma legalidade qualquer, mas na compreensão de que a democracia é o caminho apropriado ao seu desenvolvimento. Não interessa ao nosso povo, evidentemente, uma legalidade qualquer, mas o regime democrático efetivo cujo conteúdo esteja intimamente ligado ao desenvolvimento de alterações econômicas, políticas e sociais capazes de afetar profundamente o país e corresponder ao avanço das forças produtivas que impõem modificações radicais nas relações de produção” (IBIDEM p. 404). 12 Os dois primeiros são exemplares por seus excursos sobre a revolução na França e na Alemanha, e o último, por suas dissertações sobre a Rússia da passagem ao século XX e a Revolução de 1905. Como anotamos anteriormente, entre nós, Caio Prado Jr. fundamentava a teoria da “revolução brasileira” tanto na interpretação da nossa formação social (a ser exposta em quatro volumes, sendo A Revolução Brasileira, de 1966, além dos três já mencionados, o último livro) como também nos seus artigos divulgados pela Revista Brasiliense sobre temas econômicos, sociais e políticos (cf. SANTOS, 2001). O marxismo político de Armênio Guedes

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to elaborativo de marxismo político. Para ele (e também para outros pecebistas da época), o dogmatismo não era apenas um descaminho devido à perda dos princípios doutrinários, mas um modo de pensar interposto à compreensão da realidade que ainda determinava a ação dos comunistas. No entanto, para Guedes, a abertura de vistas no PCB daquele momento de crise teórico-prática importava quebrar o elo principal do circuito das ideias marxistas-leninistas com as quais se movia o partido brasileiro no plano elaborativo. Um novo tipo de prática só adviria se a prática (tática) resultasse de uma elaboração intelectual com fins militantes referida ao mundo real, isto é, se resultasse de um cometimento destinado a incidir na política existente. Tal construção se contrapõe à tática sem referência na realidade efetiva, fixada por meio de uma formulação na qual a relação entre a teoria e a prática era mecânica, ou seja, unidas através da própria doutrina. Aqui reside o que, no marxismo, diferencia uma ação praticista da ação teoricamente orientada;13 no caso, balizada pela compreensão da circunstância pós24 de Agosto, mais precisamente, da situação política subsequente (1954-58) e suas conjunturas até aquele tempo presente em que Guedes apresentava suas análises políticas. Com efeito, na narrativa composta pelos seus dois textos (em Algumas ideias sobre a frente única no Brasil, de 1957, e Uma ação positiva das forças nacionalistas, de 1958), Armênio Guedes vai referir a “revolução brasileira” àquela nova época da segunda metade dos anos 1950. Desvencilhado do longo prazo da doutrina, ele retém dos processos políticos (e econômico-sociais), então em andamento, movimentações relevantes à revolução reformista, buscando possibilidades de ação na conjuntura. Poder-se-ia dizer que o emblema posto a Guedes, nesses anos imediatamente anteriores à Declaração de Março, é o nexo 1954-55, conjuntura marcada por muitas tensões e pela presença de setores políticos e sociais, aos olhos do analista, dispostos cada vez mais a se mover em sentido progressista.14 13 Em Marx, o critério de validação da teoria assim está posto na tese sobre Feuerbach nº 8: “Toda vida social es esencialmente practica.Todos los mistérios que inducen la teoria al misticismo encuentran su solución racional en la practica humana y en la compreensión de esta practica” (Cf. MARX, 1845; 1978). (Os grifos são do autor do presente texto; para o tema, ver VÁZQUEZ, 1980). 14 A ideia daquele tipo de atenção em uma determinada conjuntura é sugerida por uma passagem dos Cadernos do cárcere, na qual Gramsci se refere ao que chama de “núcleo 1848-1849” da revolução burguesa italiana (o Risorgimento). O clássico diz que 32

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Nos textos de Guedes, o tema da frente única “em ligação com a atual situação” (sic) lembra Duas táticas da social-democracia russa (1905), de Lênin. A leitura do artigo Algumas ideias sobre a frente única no Brasil evoca o texto clássico no sentido de que sua narrativa se assemelha à “teoria” organizadora das forças da revolução burguesa contida no livro de Lênin (LÊNIN, 1905; 1975).15 Nesse sentido, a “terceira frente de luta” da formulação de Guedes16 – a crítica do dogmatismo – consiste em desimpedir o caminho no PCB para uma “teoria organizadora” das forças da “revolução democrático-burguesa” no Brasil, no caso, uma larga movimentação pluriclassista em condições de redirecionar, de forma gradual e em termos democráticos, o desenvolvimento capitalista por meio de reformas estruturais (começando por “soluções positivas” e “medidas parciais”, no dizer dos comunistas, após 1958), como também pretendiam – já marcamos este ponto –, sob outros registros, o Iseb, o trabalhismo e áreas cepalinas. No texto de 1957, Guedes anuncia o primeiro passo do seu cometimento: “O dogmatismo no seio do PCB impediu-nos de refletir, no pensamento político, a realidade do país”. É deste ponto de partida, os acontecimentos desses anos, “‘dada a sua espontaneidade’, podem ser considerados como típicos para o estudo das forças sociais e políticas da formação social italiana” (GRAMSCI, 1974, p. 125). Aliás, recorde-se “1945” como emblema das análises políticas caiopradianas do pré-1964 e a oposição democrática ao regime de 1964 como referência da tentativa de renovação do PCB da segunda metade dos anos 1970, assim aludida no terceiro tópico destas notas. 15 Como se sabe, Lênin analisa o processo revolucionário de 1905 sob a chave das vias das revoluções burguesas em países retardatários. Para ele, o capitalismo pode se desenvolver ao modo prussiano, se conduzido por uma aliança reacionária de classes altas urbanas e rurais ou ter curso farmer-progressista (de desenvolvimento capitalista rápido, europeu, e erradicação do ancien régime), caso ocorra uma eclosão revolucionária vinda de baixo. Inevitável a modernização, era mais provável que na Rússia se consolidasse a modalidade conservadora, dado o seu andamento já adiantado. No entanto, não estava excluída aquela segunda via por meio de uma ativação popular e camponesa que viesse derrocar o ancien régime czarista (LÊNIN, op. cit.). 16 Aquela expressão é de Engels e aparece em Que fazer? A menção lenineana se deve à distinção de Engels das três frentes da luta da classe operária alemã (a mais teórica do seu tempo) e não apenas duas: a frente da luta econômica, a frente da luta política e a frente da luta teórica (LÊNIN, 1902; 1975). O recurso a Engels ampara a tese lenineana da função teórica do partido revolucionário como portador (externo à classe operária) da “consciência social-democrata” (então, social-democrata equivalia a revolucionário) indispensável ao encaminhamento consequente das outras ações operárias (VÁZQUEZ, op. cit.). Ademais, recorde-se que Que fazer? e Duas táticas são textos dos mais expressivos desse último tipo de frente de luta ao interior dos grupos revolucionários russos, escritos em meio a inúmeras acirradas polêmicas que ocupam todas as páginas desses livros. O marxismo político de Armênio Guedes

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distante da mentalidade doutrinária, que o autor avalia a política nacional à procura de possibilidades de ações conscientes (em tanto referidas ao mundo real) para o seu partido. Ações conscientes que levassem os comunistas a ter influência efetiva na mobilização pelas “reformas de base”, como ficaram conhecidas as mudanças no governo de Jango, cuja discussão se expande pelo país, à medida que crescia o movimento nacionalista como corrente de opinião. Guedes apresenta uma tática oposta às diretrizes ainda oficiais no PCB, nestes termos: “Esta tática (a nova – RS) necessita cada vez mais do conhecimento da realidade (ela é essa própria realidade, mais a vontade de transformá-la refletida no pensamento político do movimento), é fruto da concepção do peculiar de cada revolução” (GUEDES, 1957). A partir dessa ruptura com o dogmatismo, ele mostra a dissociação entre a realidade e a tática que então norteava os comunistas ao tempo que expõe sua percepção da nova circunstância nacional. O formulador relembra ações do PCB vistas por ele (e também por outros publicistas do seu partido) como desconexas em relação ao mundo real: “Era impossível ter uma tática elaborada. A tática foi rebaixada à condição de mera agitação; partir das denúncias e, através apenas da propaganda, ganhar as massas para as lutas decisivas, para a mudança do regime. Nunca se levou em conta a importância de participar do movimento real” (IBIDEM). Guedes tem uma apreciação do período pós-24 de Agosto mediada por um ponto de vista prático-consciente, motivado pelo propósito de convencer o seu PCB a participar do “movimento real” (sic). O ponto do autor é o de que só esse tipo de olhar voltado para a realidade externa aos muros do partido abriria as vistas dos comunistas em relação à dinâmica da vida nacional da época e os levaria à revisão de toda sua orientação. Recorrendo à distinção leniniana das formas “evolutiva” e “revolucionária” da revolução, Guedes chama a tática do IV Congresso de 1954 (todavia presente no PCB em 1957) de “tática radicalista” conquanto contemplava apenas a forma “revolucionária” do processo brasileiro. O autor aponta a visão dos que haviam formulado esse tipo de tática: “Por desconhecer a realidade, inspirada tão só pelos objetivos finais, o PCB realizou sempre (tomando-se para exame do pro34

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blema um longo período) uma política voluntarista, com ignorância ou desprezo das leis objetivas” (IBIDEM). Essa tática “radicalista” revela um doutrinarismo que se justifica a si mesmo, como ilustraria a passagem das diretrizes do Manifesto de Agosto à orientação do IV Congresso. Quando a conjuntura muda após o 24 de Agosto, os formuladores do partido, amparados pela doutrina, sem se concentrarem na compreensão da realidade, propõem outra tática de igual natureza à do Manifesto de 1950, ou seja, doutrinária e dogmática. É este círculo doutrinarista que impede o PCB de atuar como um partido de ação política, de participar da vida política realmente existente no país. No texto de Guedes, há uma passagem expressiva daquele tipo de elaboração e do seu desdobramento: “Por desconhecer a realidade e abstrair os caminhos peculiares, o Partido tirava sempre os seus elementos táticos dessa premissa – uma estratégia a curto prazo” (IBIDEM). Vale dizer, lançar-se a ações determinadas por um olhar (doutrinário, “estratégico”) posto no “longo período”, esperando obter, no curto termo, metas relativas aos “objetivos finais”. Sem interpretar a situação política que se abrira em 1954 (aqui se vê a importância das noções de “etapa” e “conjuntura” e para que serve trabalhar com previsão do tempo próximo), os formuladores da tática antiga desconsideram, como reclama Guedes, a participação do seu partido no “movimento real”, sua responsabilidade de agir (consciente) em um momento bem determinado. Com tais proposições, ele chega ao cerne da questão comunista: enquanto o PCB se guiava pela doutrina, a vida política real daquele tempo, digamos parafraseando o famoso teorema gramsciano, era movida pelos fatos. O impasse significa que o ator brasileiro se encontrava incapacitado de delinear cenários a partir dos quais pudesse calibrar sua atuação prática e depois aferir suas consequências. A propósito dessa atuação invertida sob a “estratégia a curto prazo” (dirigida pela doutrina, alheia à conjuntura), o autor diz: “Daí (o PCB-RS) não dar importância às formas de aproximação, transitória (lei de todas as revoluções), não procurar investigar o específico de nossa revolução, a relação entre a luta democrática geral e a luta pelas transformações radicais” (IBIDEM). E continua a exposição, seguindo Lopes da Cunha: “Não resolvendo esta questão (associação das mudanças mais avançadas à progressiva democratização do país – RS), não podia (o ator de vanguarda) solucionar uma outra, derivada: a luta pela O marxismo político de Armênio Guedes

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mudança de governo como forma, caminho, para a mudança de regime” (IBIDEM). A partir dessa proposição passa a ser possível, no campo pecebista, alcançar uma concepção da “revolução brasileira” como uma estratégia radicada em um nexo entre a democracia política e as reformas do capitalismo. Nesse seu texto de 1957, ao se referir à ideia de frente única que os comunistas tinham, Armênio Guedes particulariza o seu ponto de vista. Sob a “estratégia a curto prazo”, sem a importância que lhe atribui, a frente única era concebida “em torno de pequenas reivindicações, tendo como fito ganhar as massas para a luta pela derrubada do regime” (IBIDEM). O que deveriam ser ações iniciais com as quais os comunistas obteriam gravitação (se operassem em convergência com outras vertentes), naquela “estratégia a curto prazo” são ações com fisionomia revolucionária (metas distantes) formuladas sob determinação doutrinária. Continua ele, em seu artigo: “Faz-se frente única (ex.: nas últimas eleições em São Paulo), a fim de obter vantagens para o movimento (melhores condições para sua agitação e propaganda etc.) com vistas a um objetivo remoto e não para mudar o tipo de governo. A ideia central dessa política é a da relação entre a frente única limitada e a frente democrática de libertação nacional” (do Manifesto de Agosto e ideia ainda remanescente no IV Congresso de 1954-RS) (IBIDEM). O prisma por meio do qual ele vê a frente única – que o leva a realçar ações não episódicas entre diversos atores existentes na cena pública – aponta para uma articulação de construção progressiva e de grande alcance: “O objetivo não deve ser apenas a frente única por reivindicações parciais; deve visar a ação política pela criação de um governo de frente única anti-imperialista (ou nacional-democrática ou antientreguista ou que nome tenha)” (IBIDEM). O novo que, assim colocada, a questão da frente única trazia era abrir oportunidade à esquerda e demais correntes nacionalistas e democráticas para chegarem a ter presença efetiva na cena nacional. Na conjuntura do ano do seu texto (1957), Guedes divisava espaços para iniciativas e movimentações, cujos desdobramentos poderiam se constituir, em futuro não distante, em uma aproximação à “revolução brasileira” na sua primeira etapa (“nacional e democrática”, como a chamariam os documentos pecebistas): “A frente limitada se funde com a frente única 36

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geral (nacional) e a ela se subordina, tendo como objetivo criar, nos quadros do regime, um novo tipo de governo” (IBIDEM).17 Visualizada pelo publicista a “revolução brasileira” em andamento de 1954 em diante, convém agora perquirir outras passagens desse mesmo texto de 1957 com vistas a aferir em que medida seu registro etapista ainda se expressava ligado à ideia do advento de uma fase do processo propriamente revolucionário (uma segunda etapa pensada sob a força do repertório comunista, marcada por objetivos mais radicais e outras condições institucionais). Ou, se a sua narrativa sobre uma ampla ativação político-social referida a “soluções positivas”, a “medidas parciais” e à formação de um novo governo de frente única, “nos quadros do regime” (voltaremos a este ponto) e por eleição, de fato perfila uma via política para a revolução no Brasil. Acerca desta projeção, diz Guedes: “Será, talvez, um governo que levará a democracia, à medida que ela avance, a ter de encarar necessariamente a questão das transformações revolucionárias.” E segue com esta passagem: “Será, antes de tudo, um governo de luta contra o imperialismo norte-americano (antientreguista) e democrático. Isso significará o coroamento da luta pela frente única nacional”. Continua Guedes: “E tal governo, nascido de um poderoso movimento de massas (em que o proletariado seja a força decisiva), será um governo que não restringirá a atuação do proletariado, mas, pelo contrário, terá nele um dos seus pontos de apoio, abrindo o caminho para a ampla democratização da vida do país e tomando medidas firmes contra o imperialismo norte-americano e os restos feudais no campo. Parece-me que se criam, no momento atual, condições objetivas para um tal governo: de um lado, o choque dos interesses da burguesia com o imperialismo norte-americano; de outro, o aumento da força do proletariado e das massas trabalhadoras em geral” (IBIDEM).18 17 Em seu artigo, acima citado, Armando Lopes da Cunha se refere àquela meta como “modificação do governo nos quadros da atual Constituição”. No texto de Guedes, como se vê, não há referência à Constituição. A tese da formação de um novo governo “nos quadros do regime” pode estar expressando restrições à Carta de 1946, por suas insuficiências quanto à vida democrática. (Note-se que, no seu artigo de 1958, Guedes também vislumbra hipótese de a frente única alterar a composição do governo de JK, possibilitando a implementação de medidas reformistas, como se verá logo adiante). 18 A passagem acima “o coroamento da luta pela frente única nacional” sugere o advento de uma frente única de outra natureza? Citemos ainda este trecho: “Então, cabe mais uma vez perguntar: participando de tal governo, ou apoiando-o, o proletariado O marxismo político de Armênio Guedes

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Na narrativa de Armênio Guedes, ligar a “revolução brasileira” à “atual situação política” importa situá-la na circunstância democratizante aberta pelos acontecimentos do 24 de Agosto (1954-58). Buscar atualidade à revolução, levando em conta a experiência acumulada, requeria, em primeiro lugar, concentrar o trabalho partidário nos ambientes que se aproximavam em movimentos na esfera pública, como o da coalizão eleitoral de 1955, e pôr particular atenção nos estratos referenciados (dizendo ao modo da época) pela burguesia nacional; setores que chegaram a ter representantes no governo de composição heterogênea de JK (diferenciados da ala entreguista). Por sua vez, esta participação no governo conferia atualidade às reformas na medida em que o agrupamento de vanguarda (o PCB) buscasse, por meio de iniciativas conjuntas com grupos convergentes na frente única, defendê-las ante o próprio governo e fora dele. E, em terceiro lugar, dar importância ao sentimento antigolpista no 24 de Agosto e às ações a favor das eleições de 1955, principalmente para garantir o seu resultado, implicava em passar a ter um novo olhar sobre a questão da defesa da Constituição. Pensar sobre aquele nexo 1954-55 induzia a valorizar o processo de democratização então em curso, pois, à medida que as liberdades prosseguissem – este é o principal pressuposto da nova política pecebista – alargar-se-iam espaços para o PCB estimular a Frente Nacionalista tanto a se fortalecer como a pressionar o governo JK. O regime democrático-liberal encerrava processos, especialmente os eventos eleitorais, através dos quais os protagonistas suscitariam mais energias, pensando no futuro próximo. Em suma, na concepção aqui exposta, a “revolução brasileira” dependia de um condicionamento de ordem geral que a singulariza em relação ao leninismo revolucionário de 1905: o “desenvolvimento normal dos acontecimentos”, de que fala Engels.19 e seu partido perdem de vista a necessidade de forjar a aliança operária e camponesa? É evidente que não. Ao contrário, ao lutar por semelhante governo, o proletariado busca criar as condições que possibilitem o estabelecimento de relações definidas com o movimento camponês, apoiando-o firmemente. O proletariado pode assim assumir a direção da revolução democrática do campesinato” (GUEDES, 1957). Aqui aparece o tema do “democrático” da fórmula etapa “nacional e democrática”. Alusivo à dimensão das liberdades, da ampliação do sistema político e da importância da Constituição, ou se refere à estrita questão camponesa na revolução? De qualquer modo, como veremos no último tópico, a “revolução democrática do campesinato” não será levada pelo PCB a uma ativação camponesa como no modelo leniniano. 19 Para Engels, aquela era a condição das revoluções do fim do século XIX, no contexto das modernizações europeias “pelo alto” (sic). Seria um novo tipo de “revolução da 38

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Um horizonte como esse, nem distante nem traçado pela doutrina, mas prefigurado a partir da vida política ativada pela presença de atores reais, movida pela disputa no interior do governo JK entre grupos da burguesia (que procuravam controlar a “política econômica”) e classes latifundiárias (“incapazes de manter o seu monopólio nos postos do aparato estatal”), no entanto, não significava certeza histórica, pois, ao se configurar na realidade efetiva, poderia colocar os atores e seus publicistas diante de processos e momentos diversos. Armênio Guedes diz que, nesse tempo nacional-democrático, os protagonistas dispunham de oportunidades para intervir naquela conjuntura (desde a posse de JK) e angariar forças para o futuro próximo favorável à “revolução brasileira”: a) era possível “transformar o atual governo, alterando sua composição em favor das posições nacionalistas”; e b) havia a possibilidade “menos imediata, porém mais provável de formar um governo desse tipo como resultado das eleições de 1958 e de 1960” (GUEDES, op. cit.); oportunidades interligadas num processo progressivo, a mais próxima associada à outra seguinte e mais decisiva – a eleição presidencial. Ao invés de aplicar a doutrina na definição da linha política, Guedes reúne na tática de um partido comunista duas referências expressivas do sentido daqueles tempos democrático e nacional-cepalinos. A primeira consiste em uma ideia de concretização da “revolução brasileira” por meio da ação política (de um conjunto de atores) a um só tempo “atual”, efetiva (possibilidade de realização de metas parciais) e conseguinte (pois conectada a cenário previsível) e a outra, um tipo de prática visando impulsionar contingentes da frente nacionalista e democrática a se mobilizarem como protagonistas de um

maioria” (sic), diversa das “revoluções da minoria” do ciclo revolucionário de meados dos Oitocentos. O clássico pensava em uma via ao socialismo (cuja “ditadura do proletariado” assumiria a forma de uma “república democrática”, cf. Engels, 1894) válida na Alemanha modernizada (desenvolvimento econômico, sindicalismo, avanço eleitoral da social-democracia etc.) (ENGELS, 1895; 1975). Engels menciona o “método democrático” (sic) e eleições, após ele e Marx terem reconhecido que o capitalismo não havia se desenvolvido como uma revolução radical transformadora de todas as dimensões da vida social, como escreveram em O Manifesto Comunista (MARX; ENGELS, 1847-1848; e especialmente 1850 e 1895; 1975). O marxismo político de Armênio Guedes

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processo de redirecionamento do capitalismo, conquanto mantida sua livre atividade no regime democrático.20 Até aquele momento do governo de Juscelino (e do primeiro artigo de Guedes, 1957), os comunistas já haviam passado por experiências que os induziam à política. O PCB estivera e estava (em 1957) diante de processos e conjunturas que o requeriam como ator político. O 24 de Agosto, a eleição de 1955, o movimento antigolpista de 11 de novembro e, em 1956, a posse de JK (eventos que lhes traziam o tema da defesa da Constituição e do sistema liberal-democrático) levavam os comunistas a perceber que a situação política (ainda instável) desse tempo (1954-57), de fato, abria caminho à concretização da “revolução brasileira”. As medidas reformistas propostas para aquela etapa nacional e democrática, justamente por serem parciais, poderiam reunir apoios crescentes e ter encaminhamentos a nível de governo e por meio de lei (assim de maneira mais sustentável) desde que o sistema político se ampliasse – esta também é condição indispensável para a via revolucionária aqui apresentada – com o crescimento da organização dos grupos populares e a presença das suas representações na esfera pública, inclusive governamental. Em seu segundo texto, de junho de 1958, Armênio Guedes vai realçar outro ponto da questão pecebista, do modo de agir do PCB contemporâneo, já aludido por Lopes da Cunha: o papel das iniciativas na construção do caminho gradualista-revolucionário (ações tempestivas, soluções positivas, medidas reformistas progressivas). No artigo Uma ação positiva das forças nacionalistas, Guedes nos fala da ação política em um instante preciso. O autor fixa sua atenção em uma conjuntura, sob o governo JK, na qual as forças nacionalistas e democráticas operavam em instante bem determinado, tendo à frente as duas eleições que se avizinhavam. O articulista refere-se novamente ao tema das “condições objetivas” da revolução na etapa nacional-democrática, mas desta feita 20 No seu opúsculo Duas táticas da social-democracia russa, Lênin prevê, no caso da Revolução de 1905, após a derrubada do czarismo, um desfecho em que poderia surgir uma “série de governos” provisórios (sic) conforme crescesse a ativação sociorevolucionária. Todavia, no transcurso dessa eclosão vinda de baixo, o marxista russo divisava o desencadeamento da revolução democrático-burguesa propriamente dita quando se instalasse a “ditadura revolucionária democrática do proletariado e do campesinato". 40

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através do prisma da atuação na política corrente. Sem exagerar o pequeno tamanho do seu partido, Guedes recusava reticência em relação ao agir no curtíssimo prazo, do qual esperava impulso à “revolução brasileira”, associando-o à movimentação que tivesse o campo reformista. Seu relato sobre o agir por ocasião de uma reforma ministerial em 1958 – no momento em que setores da frente única pressionavam Juscelino para alterar a orientação do governo – registra expectativa de que tal ação não só abria oportunidade para o encaminhamento de “medidas firmes contra o imperialismo e os restos feudais” como permitia ampliar o apoio à tese da formação, por via eleitoral, de um novo governo mais definido. O analista observa que essa pressão transcorria em um instante de tensão entre as alas nacionalistas e entreguistas no seio do governo. Guedes avalia o embate, no interior do governo de JK, como um momento “que tende a se prolongar por algum tempo”. Ao ver na reforma ministerial (daquele instante; do governo JK) uma dimensão “constante” (sic), ele estava indicando que o protagonista, que fizesse previsão e trabalhasse com perspectiva, não só não se desobrigava ante a cena política posta à sua frente, como deveria agir com vistas a potenciar as ações conjuntas das vertentes da frente única em função de outras iniciativas de mais alento. Nesse ponto, o autor se refere a uma outra observação de Lênin sobre o processo revolucionário na qual o clássico russo diferencia os “períodos de calmaria” dos “momentos de tensão”, ora lembrada por Armênio Guedes ao operador político para que pusesse atenção na linha por onde passava a resolução daquela disputa. Nos tempos de tensão, retendo um ponto que continuará em suas análises políticas, Guedes diz em seu texto: “As forças em choque adquirem contornos mais definidos e, o que é mais importante, ampliam ou restringem suas fileiras”. Para ele, essa questão da expansão ou perda dos apoios se apresenta sob o ponto de vista das posturas dos atores situados em condições objetivas, tanto nas suas análises de momento de acumulação de força (governo JK) como em época desfavorável (os anos duros do regime de 1964). Naquele tempo do texto (junho de 1958), o governo JK vivia um “momento de tensão”, com o presidente sob pressão (dos imperialisO marxismo político de Armênio Guedes

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tas norte-americanos “para quebrar a reação nacional contra seus planos de escravização”) e também era interpelado por correntes da frente única críticas aos “aspectos negativos” do governo, ao mesmo tempo que lhe exigiam “medidas positivas”. Guedes faz este registro: “Não sabemos se este período terminará com a recomposição ministerial em curso. E é difícil, por isso, dizer quem saiu ou sairá fortalecido do atual choque, se os grupos entreguistas ou o movimento nacionalista” (GUEDES, 1958). É preciso realçar que, nesse episódio, para Armênio Guedes, não era certo que as forças nacionalistas obtivessem êxito por mero voluntarismo nem que a disputa pela orientação do governo tivesse seu desenlace ali mesmo. Esta é a nota dele: “Os últimos acontecimentos não levam à dedução de que uma das forças em choque já esteja em condições de impor uma decisão definitiva, isto é, empolgar o governo e imprimir sua fisionomia à política interna e externa do país” (IBIDEM). Não cabia esperar das previsões do analista desfecho do embate sem espaço para a ação política dos atores e a incerteza. Ele falava de certezas, no entanto, relativas: “Não há dúvida que, historicamente, as reais possibilidades de avanço são das forças nacionalistas. Mas as possibilidades só se tornarão algo real pela ação consciente das forças sociais de vanguarda” (IBIDEM). O envolvimento com a conjuntura levaria o PCB a agir como um partido político: “Daí a necessidade de destacar no conjunto da ação política concreta aquilo que é positivo e que representa, muitas vezes, o ponto de partida para uma direção política acertada, ou que, pelo menos, constitui um importante elemento de uma tal direção” (IBIDEM). Neste ponto, ele está aludindo ao traço “novo e positivo” daquela pressão das correntes nacionalistas: a forma coordenada que a movimentação da frente única então ia assumindo. O analista tem em mente a atuação “fora e dentro do aparelho estatal ” (sic), pondo atenção nas iniciativas de caráter convergente que “ajudavam a esclarecer amplos setores populares sobre o sentido real das questões importantes do momento” (IBIDEM). No artigo de 1957, Guedes descreve a “revolução brasileira” na etapa nacional e democrática a se concretizar por meio de uma convergência de protagonistas bem diferenciados. Pelos traços por ele apresentados, o caminho brasileiro requeria mobilização e largueza de vistas, por 42

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um lado, para associar as medidas parciais à discussão na opinião pública dos temas nacionais, buscando consensos necessários à sua efetivação, e, por outro, para suscitar apoio ativo aos movimentos seguintes. No outro texto de 1958, Guedes traz o tema da colaboração entre atores para uma conjuntura concreta, realçando a função construtiva das correntes da frente única (desde logo o agrupamento pecebista) e as oportunidades para difundirem suas “ideias claras” e “soluções positivas” aos pequenos e grandes problemas. Ele procura divisar naquele momento determinado ações que viessem favorecer o processo reformista, sua atenção indo de uma reforma ministerial até “formas superiores de luta” (usando aqui expressão de um conhecido sociólogo do Rio de Janeiro), as eleições de 1958 e 1960. Em suma, nesse artigo de junho de 1958, Armênio Guedes observa que já existiam premissas políticas “essenciais” para a formação de um governo nacionalista e democrático, fazendo a ressalva nada desimportante de que era “necessário vencer grandes e fortes resistências que se opõem a isso”. Para enfrentá-las, ele insiste na capacidade de iniciativa do ator chamado a identificar o “aspecto positivo” (o “ponto de partida”), nos quais os protagonistas mais ativos deviam pôr um “esforço permanente” (sic). Acrescenta a esta observação sobre a militância em frente única: “Não se trata de impor formas rígidas de organização, o que seria impossível, pois estancaria o movimento, mas de elaborar ideias claras, ter soluções concretas para enfrentar as grandes e as pequenas questões da luta anti-imperialista e, nesse processo, ir estruturando a convergência em bases sólidas. Uma medida que impulsionaria esse esforço organizativo seria talvez a realização de reuniões de contato, em que seriam debatidos problemas do movimento nacionalista e estabelecidas as respectivas soluções” (IBIDEM). Essa “linha mestra”, como ele se refere à diretriz, não era tarefa para o futuro distante, mas atual e de realização progressiva, pois já tinha lugares dos mais indicados: as duas eleições de 1958 e 1960. Nestas “formas superiores de luta”, a participação dos comunistas não seria questão menor nem subordinada (sublinhemos este ponto dele) a interesse partidista, mas empenhada na vitória das candidaturas da frente única como passos em direção a um processo mais amplo. As ideias e formulações anteriormente descritas compõem uma narrativa da “revolução brasileira” e o que seria, repetindo a expresO marxismo político de Armênio Guedes

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são de Guedes de 1957, o “pensamento político” pecebista. Mesmo que de trajetória descontínua e o PCB não as recolhesse plenamente, elas incidiriam no seu modo de ser, ensejando um estilo de pensar e de agir característico, pois, a partir de março de 1958, os comunistas iriam atuar no plano da política ganhando desenvoltura cada vez maior e desempenho como esquerda positiva.

Política de frente única, democracia e Constituição A refundação pecebista dos anos de 1956-58 não teria se consolidado na Declaração de Março se não tivesse sido mobilizada uma narrativa sobre a “revolução brasileira”. Ela não adviria de um revigoramento marxista-leninista e de mudanças nas estruturas organizativas. Ao contrário, com tal narrativa, o PCB se tornaria mais livre em relação aos determinismos doutrinários ainda fortes; mais livre para otimizar na conjuntura espaços democráticos e iniciativas dirigidas tanto à ativação da frente única como à estruturação do “movimento sindical e camponês”, lugar não só de autodefinição popular como terreno propício para criar instituições da República. O exemplo é o bem-sucedido sindicalismo camponês, pois aí estão os sindicatos rurais distribuídos pelo país e a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), esta inclusive por muitos anos marcada por orientação de origem caiopradiana-pecebista (SANTOS, 2007). A refundação pecebista tampouco se limita ao momento da resolução de 1958. Ela se desdobra em mudanças bem observáveis a partir dos tempos de JK: o PCB se converte em um ator reformista em colaboração efetiva com outras vertentes político-sociais e setores de governo em mobilização unitária. Nesse processo, ele vai assumir caráter de partido propriamente político, afirmando cada vez mais vocação para atuar na democracia representativa enquanto quadro institucional das sociedades pluralistas. O período de democratização política da segunda metade dos anos 1950 requeria daquele PCB uma produção intelectual-formulativa que lhe fosse homóloga. Armênio Guedes se torna o mais expressivo dos seus autores, porquanto manteve sua publicística de marxismo político no interior do seu partido. 44

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Na sua narrativa, ele expõe os contornos de um caminho político da “revolução brasileira” cujas conexões principais entre teoria e prática iriam dar outro perfil ao PCB nos anos posteriores à Declaração de Março: 1) a militância na frente única passa a ser permanente, levando os pecebistas a darem nova dimensão à política tal como é conhecida, alcance este compreensível à medida que eles se envolvessem com instituições e processos democráticos; 2) para que a ação partidária, nessa última acepção da política, viesse a influir no mundo efetivo, o seu protagonista (o PCB) já não podia agir ao modo dos revolucionários das revoluções burguesas dos Oitocentos e das revoluções russas de 1905 e 1917 que lhe serviam de modelo; e 3) o êxito na transformação do capitalismo, mediante o reformismo da “pré-revolução brasileira” que ocupa a cena política dos primeiros anos 1960 (que ia de medidas parciais até reformas de estrutura), demandava dos atores muito empenho para que os acontecimentos seguissem curso normal, como dissera Engels, falando da Alemanha e do socialismo do final do século XIX. Essas conexões prático-refundadoras também iriam convencer o PCB a atribuir importância à relação entre as mudanças e a vigência de uma Constituição legítima e democrática. Esse nexo se converte em referência dos comunistas com o correr do tempo. Nos acontecimentos do 24 de Agosto, levado pelos fatos, o PCB se movimentara na defesa da Carta de 1946 (e da democracia representativa), mesmo que, então, não lhe reconhecesse função positiva no processo revolucionário. A Declaração de Março repete a tese de Armênio Guedes, formulada na conjuntura do governo JK, da formação de um novo governo de orientação reformista mais definida “nos quadros do regime”, acrescentando-lhe uma referência a mais (o termo “vigente”), ficando assim a fórmula: “nos quadros do regime vigente” (sic), mas não menciona a Carta de 1946.21 Em agosto de 1961, a mobilização pela posse do vice-presidente João Goulart, após a renúncia de Jânio Quadros, pôs a questão da legalidade constitucional novamente no centro de uma conjuntura 21 Logo depois do 24 de Agosto, em seu artigo inaugural da Revista Brasiliense, Política de união nacional, já aludido, o caiopradiano Elias Chaves Neto anuncia esta proposição: “A defesa da Constituição é, portanto, o ponto básico de uma política que visa resolver os problemas dos quais depende a nossa prosperidade” (CHAVES NETO, 1955). O marxismo político de Armênio Guedes

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instável, tensionando a frente única na sua defesa. Recordemos também o movimento, no tempo de Jango, pela ampliação do sistema político mediante reformas asseguradoras de direitos civis e sociais, em particular a do direito à reforma agrária (revogação do preceito daquela Constituição que garantia o pagamento em dinheiro das indenizações). Durante os governos militares, a estratégia da frente de oposição e reconquista das liberdades estende o movimento democrático brasileiro até o momento alto da convocatória de uma Constituinte. Ademais, no PCB, a concepção de resistência ao regime de 1964 por meio da política coexiste com uma outra formulação comunista da época indicada pela bibliografia como marca do pecebismo contemporâneo: a via pacífica ao socialismo. Como uma possibilidade de acesso ao socialismo, a via pacífica foi admitida em 1956 no XX Congresso do PCUS e reafirmada na reunião dos 81 PCs, realizada em Moscou, em 1960. Há duas posturas que são de grande valor para o constitucionalismo do campo pecebista: o envolvimento sem reservas com os trabalhos da Constituinte de 1987/88 e a compreensão da Carta cidadã de Ulisses Guimarães, no dizer de Luiz Werneck Vianna, como concretização da revolução democrática brasileira. A Constituição viera não só organizar a vida do país sob vigência plena do Estado democrático de Direito como dispor à “generalidade da população” (expressão sempre repetida por Caio Prado Jr. ao se referir às mudanças sociais) um quadro de referência programático no sentido dos novos tempos. Recentemente, realçando essa segunda dimensão da Carta de 1988, Werneck Vianna chamou a atenção para o fato de que, por primeira vez nas nossas Constituições (desde a de 1824), a Constituição de 1988 anuncia, como compromisso da República, o “princípio do justo” (cf. VIANNA, 2011).22

22 Lê-se na atual Constituição: “Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária ...”), preceito que não é formalismo de técnica jurídica. 46

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A nova política na segunda renovação pecebista Ao término da discussão sobre o XX Congresso do PCUS, em 1957, o PCB dispunha de uma orientação já distante da antiga mentalidade marxista-leninista. Aperfeiçoada pela Resolução de 1970,23 ela ressurge, nos últimos anos dessa década, em um novo movimento de atualização pecebista, à frente do qual estavam dirigentes, dentre eles, Armênio Guedes, militantes e jovens intelectuais. Era o tempo do exílio de vários membros do Comitê Central e quadros comunistas que o PCB decidiu manter no exterior para preservá-los da repressão concentrada na sua direção. Era também o tempo do eurocomunismo, a discussão sobre o nexo democracia-socialismo protagonizada por alguns PCs um pouco mais de 10 anos depois do fim da Primavera de Praga, em 1968. Enquanto os PCs italiano, espanhol e francês (não apenas estes, mas ainda os PCs japonês e mexicano) buscavam redimencionar suas estratégias nacionais com vistas a um tipo novo de socialismo – pluralista, com vigência das liberdades políticas e sem o domínio do partido único –, numerosos intelectuais, sobremaneira europeus, discutiam o tema da natureza não democrática do sistema político dos países socialistas. Aliás, por essa ocasião, Norberto Bobbio já havia interpelado os comunistas italianos a propósito da ausência de instituições democráticas no socialismo. Bobbio abrira o debate teórico sobre as consequências da centralidade do marxismo nas questões do poder e do partido, dirigindo aos intelectuais do PCI indagação incisiva: “Existe uma teoria marxista do Estado?” Para ele, o marxismo não tinha nem poderia ter uma ciência política, devido ao seu teorema da extinção da política na futura sociedade homogeneizada (a respeito deste último tema, ver COLLETTI, 1979). Essa discussão não repercute entre os comunistas brasileiros como a crise de 1956. Ela tampouco levaria o PCB a renovar sua política no VII Congresso, realizado no começo dos anos 1980, mesmo ante a evidência de que sua identificação com o socialismo da URSS e o 23 Naquele documento, Guedes apresenta sua concepção da estratégia de resistência ao regime de 1964 a partir da política, visão que diferencia a resolução pecebista de outras teses oposicionistas da época. Mais adiante, mencionaremos alguns pontos desse seu texto. O marxismo político de Armênio Guedes

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marxismo-leninismo constituíam entraves à evolução do pensamento pecebista. Entretanto, os novos renovadores, como os dos anos 1950, concentrarão suas formulações na circunstância nacional, tomando como referência o sentido democrático da resistência ao regime de 1964. A valorização dessa política de frente única para renovar o PCB teve suas primeiras manifestações em resoluções do partido elaboradas nesse tempo de exílio e textos publicados na Voz Operária (edições mensais de 1977 a 1978). À hora da controvérsia sobre a questão democrática trazida particularmente pelo PCI e da anistia de 1979, o PCB dispunha de duas linhas elaborativas. Uma primeira provinha de militantes, como Armênio Guedes, que desenvolviam o pecebismo – então muito imbricado com a própria estratégia de oposição ao regime de 1964 – como uma orientação de mais alento, válida para os próximos tempos da transição.24 A outra linha podia ser localizada em jovens intelectuais que intentavam reelaborar a política da resistência democrática em termos de uma concepção de socialismo fundada em estudos mais contemporâneos sobre o país. Nossa “ocidentalização” (o conceito com que Gramsci se refere às formações complexas, mobilizado no Brasil nessa época) avançara muito na década de 1970, evidenciando cada vez mais o dissídio entre a complexificação da sociedade brasileira e a democratização. Essas linhas tinham em comum o nexo entre a tese da “democratização radical da vida nacional” (cf. Declaração de Março) e uma nova ideia de socialismo, ainda que suas argumentações partissem de pontos de vista diferentes (a mais antiga, a de Armênio Guedes, de marxismo político, e a outra, de intelectuais atentos àquela discussão europeia e possuidores de uma nova interpretação do Brasil). Anotemos que a Voz Operária publicou, em 1978, um artigo chamado “A questão democrática” (TEIXEIRA, 1978) que trazia o tema democrático referido à “socialização da política” e à “articulação entre a democracia representativa e formas cada vez mais complexas de democracia de base” que representa, diz o autor do texto, “a inversão completa de uma tendência hoje dominante na história brasileira” 24 Ver o artigo de Armênio Guedes Construir uma saída para a crise, eis a tarefa atual para as forças democráticas (1978), incluído na segunda parte deste volume. 48

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(IBIDEM). E registremos ainda que, na passagem dos anos 1970 à década de 1980, o estudo de Luiz Werneck Vianna sobre a modernização “pelo alto” no contexto de 1930 começa a ser visto como referência da questão democrática do nosso tempo. Em 1976, o autor havia publicado Liberalismo e sindicato no Brasil,25 livro no qual expunha suas reflexões sobre o padrão de constituição da ordem capitalista e a institucionalidade política do país. Por essa ocasião, Vianna já tinha seu interesse voltado para a circunstância da “modernização conservadora” dos anos 1970 (VIANNA, 2004). As novas proposições chegaram à opinião pública mediante as entrevistas de Armênio Guedes ao Jornal do Brasil, em julho e outubro de 1979, por meio de pequenos artigos de jovens intelectuais publicados em um periódico de São Paulo, chamado A República, nos quais o tema da democratização aparece (lembrando a nota de Sodré já referida, cf. SODRÉ, 1962) como um processo de reversão da modalidade “prussiana” de imposição do capitalismo brasileiro (KONDER, 1980). As ideias renovadoras também aparecem em textos publicados nos primeiros números da Voz da Unidade, o semanário editado no Brasil logo após a anistia e ainda na sua Tribuna de Debates preparatória do VII Congresso, como, por exemplo, Força e fraqueza das Teses, de Leandro Konder (KONDER, 1981) e o artigo de Luiz Werneck Vianna Sobre a tática e a estratégia das Teses. Neste texto, do começo dos anos 1980, Werneck Vianna mobiliza sua leitura dos dois ciclos da modernização brasileira e formaliza a tese da centralidade da democratização política do país em uma estratégia renovada no PCB (VIANNA, 1981). 26 Esse momento era o momento da divisão na direção do PCB. A oposição pública de Prestes à linha política proveniente da segunda metade dos anos 1950 e da Declaração de Março iria condicionar a 25 O livro de Vianna chama particular atenção por suas remissões aos clássicos do tema da revolução burguesa não clássica: a Lênin, especialmente a Duas táticas da social-democracia russa (1905) e a O programa agrário da social-democracia russa, de 1907 (mais precisamente à noção de via prussiana) e a Gramsci e sua interpretação da revolução burguesa na Itália dos Oitocentos, o Risorgimento, como uma revolução passiva. 26 Depois, na linha de pensamento de Vianna, explicita-se uma formulação, próxima à de Guedes, “que se expressaria com todo o vigor na decidida reavaliação dos aspectos propriamente institucionais das estruturas democrático-liberais do Estado, e numa articulação das forças heterogêneas geradas pela ação modernizadora dos militares no Brasil, a partir do espaço da política” (cf. ZAIDÁN; SANTOS,1985; 1992 e 1996). O marxismo político de Armênio Guedes

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postura dos quadros do Comitê Central interessados na atualização pecebista. O desfecho da divergência será a saída de Prestes da Secretaria-Geral do PCB e de renovadores da cúpula partidária, bloqueando, às vésperas da realização do VII Congresso (1981-82), os espaços daquelas duas tendências renovadoras no interior do partido. Entretanto, as teses de atualização pecebista são vistas restritivamente como sendo uma versão “politicista” da estratégia e da tática do PCB. Por ocasião da realização do VII Congresso, reclamava-se dos seus autores o fato de não terem realçado os temas da dependência e do imperialismo.27 Ao contrário dessa apreciação, o politicismo das novas ideias expressava um modo de atuar com sentido político característico do pecebismo, traço que acompanha todo o pensamento de Guedes. Todavia, o sentido da discussão sobre a importância estratégica da democracia política foi afirmada no PCB depois, no começo da década de 1990, no seu último congresso, ainda que, na resolução final do evento, ela também apareça intercambiável com a noção de democracia de massas, proveniente de Pietro Ingrao (INGRAO, 1980). Acrescente-se a recepção do reconhecimento da democracia como valor universal (proposição anunciada em 1977, em Moscou, por Enrico Berlinguer, dirigente do PCI), posta na cena intelectual das esquerdas por Carlos Nelson Coutinho, em 1979, como referência-chave do socialismo brasileiro (COUTINHO, 1979). Entretanto, as duas linhas formulativas, oferecidas ao PCB para que ele desenvolvesse sua política de orientação democrática, são passagens intermitentes na elaboração partidária.28 No VII Congresso, realizado em 1981-82, a maioria do Comitê Central e quadros seus atentos à necessidade de uma renovação do partido não se decidiram (não seguiram o exemplo de Alberto Passos Guimarães nos idos dos anos 1950), no momento propício imediato à anistia de 1979, a elabo27 Essa reação relembra aquela que se teve em áreas pecebistas (cf. MATTOS, 1962), às vésperas de 1964, quando Caio Prado Jr. falara da necessidade de partidos fortes para sustentar as “reformas estruturais” desse tempo (reformas, aliás, que ele achava de grande porte a exigir apoio político muito sólido). Pessimista quanto à força do movimento nacionalista da época, o historiador inclusive chegaria a aludir a uma reorganização partidária (cf. PRADO JR., 1962; 2007). 28 Uma observação à margem: o pesquisador interessado no pensamento pecebista é levado a recorrer a elaborações de autores como Caio Prado Jr., Passos Guimarães, Armênio Guedes e Luiz Werneck Vianna, para citar os principais. 50

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rar uma nova Declaração de Março que incorporasse as proposições da segunda renovação pecebista que então se desenhavam. A ocasião era oportuna e o PCB contava com aquele grupo de intelectuais militantes, de estudo e elaboração sistemática.29

O caminho político e democrático O caminho político esboçado por Armênio Guedes diferencia-se do modelo da revolução russa de 1905, descrito por Lênin em Duas táticas da social-democracia russa, pois aqui o publicista não dispunha de referências para esperar uma ativação camponesa de tipo revolucionário. O curso modernizante dos anos 1930 não contara com pressão de baixo, vinda de um mundo rural de subalternidade prolongada e acesso difícil e lento à pequena propriedade.30 Tínhamos, então, um campesinato “sem vínculo com a sociedade mercantil”, usando aqui anotação de Werneck Vianna em uma passagem do seu livro na qual ele se refere aos agrários daquele período modernizador (VIANNA, 1976); “vínculo” este que, segundo Lênin, na Rússia do começo do século XX, impulsionara o campesinato, em processo de diferenciação econômica e social, à movimentação revolucionária. No entanto, conhecemos, de meados dos anos 1950 até o fim da tentativa nacional-reformista do pré-64, mobilização e associativismo rural importantes, mas sem a rebeldia do campesinato russo (PASSOS GUIMARÃES, 1960a). Esse “despertar camponês”, como tem sido chamado, em grande medida sob liderança partidária (PCB) e organizado sob a forma estável do sindicalismo (ao modo caiopradiano até certo ponto, como se verá adiante) apontava para rumo diverso 29 Esses intelectuais, que se tornaram conhecidos na segunda metade dos anos 1970 e primeiros anos da década de 1980, sim, tinham condições para conformar todo um campo de interpretação do Brasil com possibilidades formulativas para o tempo da transição (lembrando o sentido da obra de Caio Prado Jr.); campo depois chamado por um deles de matriz da revolução passiva. 30 Ao se estabelecer, nos primeiros tempos da Colônia, com anterioridade à emergência dos “camponeses antigos” (sic), o grande domínio territorialista estendera sobre os rurais uma enorme sombra de dependência (PASSOS GUIMARÃES, 1963). O escravismo (escravismo em era moderna), imposto manu militari, marca por longo tempo a força de trabalho trazida de fora para mover uma produção agrária que tampouco mantinha nexo relevante com a vida dos homens rurais livres. A pequena propriedade se constitui no contexto de processos migratórios bem avançado no século XIX (IBIDEM). O marxismo político de Armênio Guedes

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da ativação camponesa do modelo lenineano, conquanto as diretrizes que o PCB desenvolvia no “movimento camponês” (expressão de época) não visava torná-lo base para ações revolucionárias de fins rupturistas, mas assentar os rurais, por meio de uma reforma agrária (redistributivista), como seres produtivos em novas sociabilidades (para este último ponto, ver PRADO JR., 1964; 2007). A modernização dos anos 1930 já foi associada à circunstância que Gramsci, para além do Risorgimento, divisa como própria das modernizações burguesas da “Era de revoluções passivas” que se seguiram à Revolução de 1789 (GRAMSCI, 2002, p. 85).31 Aqui, diz o autor de uma das melhores interpretações da revolução burguesa dos anos 1930, ela fora levada adiante por uma coligação liderada por oligarquias de origem agrária. Em aliança com setores médios de extração urbana, o bloco conservador-revolucionário soube potencializar sua ação por meio da conquista do Estado (VIANNA, op. cit.), figura da tradição brasileira de função reitora da sociedade civil, como observou Gilberto Freyre (FREYRE, 1965). O Estado apresenta-se como instrumento novo conquanto o seu uso já não se limita aos interesses pretérito-rurais, mas expande suas atividades para dar passagem, no decurso daquela década, ao moderno-industrial. As elites que se assenhorearam do poder em 1930 (um grupo mais recessivo que o setor aburguesado da produção agrária) obtêm êxito no seu empreendimento, mantidas baixa a movimentação dos grupos sociais, a tutela organizativa dos contingentes populares urbanos e a imobilização dos rurais despossuídos (VIANNA, op. cit.).32 31 Gramsci se refere a uma modalidade de revolução passiva de todo um período, cujas modernizações teriam características diversas das revoluções clássicas (Inglaterra). No caso da França, ele ressalta o “espírito jacobino, audaz, temerário”, decisivo nessa experiência (espírito ausente nos revolucionários do Risorgimento). O autor marxista o associa à larga hegemonia da França na Europa, à existência de um centro urbano como Paris e “à centralização conseguida na França por obra da monarquia absoluta”. Gramsci descreve essa via de revolução passiva atentando à evolução das classes criadas no decurso do desenvolvimento industrial (o caso alemão) “com o alcance do limite da hegemonia burguesa” e “a inversão de posições das classes progressistas” (com respeito às classes antigas). Tal inversão induzira a burguesia a não lutar “até o fim contra o velho regime, mas a deixar subsistir uma parte da sua fachada sob a qual oculta o domínio efetivo” (IBIDEM). 32 Florestan Fernandes faz menção a Gramsci no seu ensaio sobre a “revolução encapuzada” brasileira, A revolução burguesa no Brasil, de 1975. Depois se conhecem no país outros usos de Gramsci, em sua grande maioria sem a centralidade que a noção de revolução passiva tem no autor pecebista. 52

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Essa modernização avançaria sem classe econômica produtiva, ativismo social e pressão vinda do mundo rural, pois, como também insiste Caio Prado Jr., nosso campesinato era um contingente que não se espalhava pela “generalidade do país”. Aprofundar em sentido democrático as modernizações realizadas pressupunha que, nas condições brasileiras, os publicistas e os agentes renovadores levassem muito em conta os nexos entre o moderno e os constrangimentos à mudança social (o atraso, especialmente rural, e a dependência). Em meados dos anos 1950, o processo modernizador “pelo alto” seguia diferenciando o país, entretanto, sem desenvolver uma estrutura social e uma institucionalidade correspondentes a uma formação capitalista, como na experiência europeia. Entende-se, em Armênio Guedes, que o alcance estratégico da ação do partido de vanguarda dessa época consistia justamente em suscitar a presença ativa das classes inovadoras e progressistas nas diferentes esferas da vida nacional. Daí que superar a dispersão, a pouca coesão das classes e estratos sociais e o seu baixo protagonismo constitui a tarefa das tarefas a ser resolvida por meio da tática de frente única e no campo da política, vale dizer, em espaços nos quais o ator revolucionário tinha, com grande margem de liberdade, capacidade de iniciativa: no terreno da convergência de ações com outras forças e no plano organizacional.33 33 A tese proposta ao V Congresso (1960) para orientar o trabalho agrário (reafirmando a Declaração de Março) ilustra bem: “Entretanto, o movimento camponês se ressente de grande atraso e é muito baixo o seu nível de organização. A fim de impulsionar a organização das massas do campo, é necessário atribuir uma atenção primordial aos assalariados e semiassalariados agrícolas. Em virtude de sua condição social de proletários ou semiproletários, como também do seu grau de concentração, os assalariados rurais são mais suscetíveis de organizarem-se em sindicatos que podem constituir as bases iniciais para a mobilização das massas camponesas. Esta mobilização exige, igualmente, que se parta das condições atuais do movimento camponês e se tomem por base as reivindicações mais imediatas e viáveis como a baixa das taxas de arrendamento, a prorrogação dos contratos, a garantia contra os despejos, o pagamento do salário mínimo, a legitimação das posses etc. (...)” (PCB, 1960, p. 73). Alberto Passos Guimarães, citando o texto lenineano de 1907, apresenta esse sindicalismo camponês como uma “revolução agrária não camponesa” (imaginada por Lênin em um país em que a agricultura já estivesse “amalgamada” à economia capitalista) “que não revolucione as relações agrárias que afetam em especial os camponeses e não destaque estes entre as forças sociais, sequer ativas, executoras da revolução” (PASSOS GUIMARÃES, 1960b). Aqui ela começaria no contexto de um “grande movimento social” dos assalariados e semiassalariados sob forma sindical. Essa ativação para mobilizar camponeses desdobraria a revolução agrária não camponesa (no início voltada para a destruição dos vestígios feudais, escravistas) em O marxismo político de Armênio Guedes

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Esse tema da debilidade dos grupos sociais não só esteve no centro das preocupações de Caio Prado Jr. e de Passos Guimarães,34 como, desde 1958, nos textos pecebistas, ele vem acompanhado da questão democrática. Pode-se dizer que há compreensão não economicista da “revolução brasileira”, uma concepção que não esperava sua concretização como consequência da lógica histórica das contradições econômicas e classistas, embora tal expectativa todavia estivesse em algumas passagens da Declaração de Março. Segundo a narrativa de Armênio Guedes, os comunistas teriam que despender enorme esforço para agrupar um bloco democrático-reformista, visando incidir na política e nas esferas pública e governamental. Compreende-se também que a democracia representativa e seus processos (partidos, embates políticos, eleições etc.) constituíam condição para o acesso a governo(s) e à implementação de políticas orientadas às mudanças. Durante o decênio 1954-64, o PCB viu-se tensionado a desenvolver prática distinta da de um partido voltado para a conquista do aparato de poder. Em um tempo agitado, como os três anos anteriores a abril de 1964, os pecebistas teriam de agir como esquerda positiva, não obstante haver compulsão revolucionária em setores da militância e da sua direção (SEGATTO, 1995). O PCB precisaria desempenhar-se, por assim dizer, ao modo de um “intelectual coletivo”.35 Ele era chamado a tornar-se um ente inovador ativo e levar adiante cometimentos que iam desde a representação das classes subalternas e suas organizações (sindicatos e diversas formas de associativismo); das posturas construtivas na frente única em vários ação propriamente camponesa em torno da reforma agrária (IBIDEM). (A expressão ”grande movimento social” é de Caio Prado Jr. que a usa não como tática para alcançar camponeses, mas para se referir ao associativismo trabalhista de “empregados agrícolas”, estratégico do começo ao fim da revolução agrária). 34 Ver PRADO JR., 1933 e 1942; e para o ator burguês, 1945 e 1977; e para o campesinato, PASSOS GUIMARÃES, 1960a; 1996; e 1963. 35 A alusão àquele conceito é sugerida apenas no sentido da amplitude das ações do partido a que Gramsci se refere como “intelectual coletivo”, conquanto requerido pela circunstância das sociedades complexas do seu tempo. Esse ator iria dirigir uma revolução que exigia, como condição para a conquista do poder, construir hegemonia diruptiva da ordem por meio de uma "guerra de trincheiras" (sic) nas inúmeras agências da sociedade civil (GRAMSCI, op. cit.). A respeito do tema, uma anotação à margem: para compreender o novo tipo de estruturação social dos anos 1930, Gramsci ampliara sua teoria social com o conceito de Bloco Histórico, mais inclusivo de dimensões da vida social que os modelos de modo de produção e de formação econômico-social (PORTANTIERO, apud SANTOS, 1978). 54

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níveis (político, social, parlamentar, eleitoral, de governo) até atuações em outras áreas estruturantes da vida nacional, como nas frentes intelectual e da cultura, para citar duas delas, nas quais os comunistas iriam exercer papel relevante por conta do seu trabalho continuado em instituições permanentes. Ante os desafios daqueles tempos, principalmente o de tudo fazer para que a democratização prosseguisse, os pecebistas e seus aliados mais ativos e lúcidos da frente única (relembremos o nome de Santiago Dantas) não puderam evitar que as tensões se estendessem a setores da sociedade brasileira cada vez mais amplos, acelerando o colapso de um sistema político que não conseguia incorporar à vida nacional crescentes demandas (CARVALHO, 2001; 2002). O golpe de Estado provoca, em uma cena intelectual de desconcerto político, uma discussão sobre dois temas cruciais para a oposição ao novo regime: de um lado, o do potencial mobilizatório das classes sociais estratégicas da “revolução brasileira” derrotada em 1964 e, de outro, o papel da política no movimento de resistência aos governos militares. A literatura que se ocupa dessas questões visava, indireta ou diretamente, incidir na postura dos agentes oposicionistas na nova circunstância. Nos anos de chumbo, observamos duas posições bem contrastantes quanto às possibilidades de oposição: de um lado, estaria a de Florestan Fernandes quando desenha, para aquele momento, um cenário por demais sombrio, e de outro, a do publicista Armênio Guedes apresentando, no seu texto de 1970, já mencionado, uma visão mais aberta. Enquanto o sociólogo da USP divisa um tempo fechado à atividade dos atores, o olhar mais atento de Guedes leva a uma estratégia oposicionista por meio da política, terreno onde os protagonistas, com todas suas restrições, teriam iniciativas para se movimentar e vir a criar um campo de resistência ao regime de 1964. Em relação ao primeiro tema do protagonismo social, recordemos que, logo após a destituição de João Goulart, jovens intelectuais do meio universitário tornaram-se referência crítica ao atingirem, nas suas reflexões, a tese isebiano-pecebista da ativação das classes inovadoras (a burguesia nacional e a classe operária; e, a partir de 1967, os novos contingentes da pequena burguesia urbana, cf. PCB, 1967b). Inclusive, anteriormente, em 1962, alguns deles, reunidos por FloresO marxismo político de Armênio Guedes

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tan Fernandes no chamado Grupo da USP (FERNANDES, 1962), seguindo suas indicações, já haviam se voltado para o estudo da potencialidade dos atores no processo de mudanças sociais. O resultado da missão são publicações, cujos títulos mostram endereçamento crítico aos fundamentos da “revolução brasileira” do pré-64. Citemos duas de Fernando Henrique Cardoso: Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil (1964) e Política e desenvolvimento em sociedades dependentes: ideologias do empresariado industrial argentino e brasileiro (1971; edição em francês, 1969) e o livro de Octávio Ianni, Estado e Capitalismo. Estrutura social e industrialização no Brasil de 1965 (IBIDEM). Também há textos dessa época referentes à autonomia e força mobilizatória das classes populares urbanas, como os artigos de Francisco Weffort (Estado e massas no Brasil, de 1965; Le populisme dans la politique brésilienne, de 1967, e Classes populares e desenvolvimento social, originariamente mimeografado, em 1968, pelo Ilpes, de Santiago do Chile, depois reescrito e republicado conjuntamente com a versão em português daquele texto no livro O populismo na política brasileira, de 1978 (PÉCAUT, 1990). Após o Ato Institucional nº 5 (AI-5), Florestan persiste no antigo tema dos atores, de onde buscara, no tempo do Grupo da USP, proposições de reforma do desenvolvimento econômico (FERNANDES, op. cit.) e expõe, sobremaneira nos ensaios Anotações sobre o capitalismo agrário e mudança social no Brasil (1973) e A revolução burguesa no Brasil (1975),36 sua interpretação da revolução burguesa, entendida justamente como assimilação do padrão de civilização moderno por uma sociedade (suas classes e grupos sociais). No entanto, aqui, na periferia capitalista, ela moderniza o país aprofundando a “dependência dentro da dependência” (dos padrões colonial e neocolonial), constituindo um tipo de capitalismo que ele chama de “capitalismo dependente” e uma ordem social tendente à autocratização, nisso lembrando o caminho prussiano observado por Lênin na Rússia do começo do século XX. Segundo Florestan, aqui era muito limitada a assimilação dos dinamismos econômicos e socioculturais do padrão capitalista de de36 Referiremo-nos particularmente ao artigo de 1973 por ele ter sua publicação mais próxima à circulação do citado texto de Guedes (1970). 56

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senvolvimento. Havíamos tido um processo de revolução burguesa de baixa “concentração de elementos revolucionários”, como diz ele, referindo-se tanto aos estratos altos com pouca disposição a inovar e romper com o ancien régime (FERNANDES, 1975), como ao baixo protagonismo dos grupos sociais, em particular dos contingentes populares (FERNANDES, 1973). Florestan observa que a modernização diferenciara nossa estrutura social, mas sua ordem social competitiva é bem diversa da que se conhecera com o capitalismo avançado e a implantação do seu regime de classes sociais. No Brasil, a ordem social competitiva incorpora os estratos subalternos de maneira restritiva, absorvendo em certa medida aqueles que movimentam algum grau de associativismo, deixando de fora sobretudo os despossuídos rurais, que se expandiam reproduzindo sua grande dispersão e inorganicidade e “sofrem o capitalismo como uma espécie de hecatombe social”37 (IBIDEM). Esses são os traços do capitalismo brasileiro e da sua ordem social que Florestan descreve, em 1973, no citado ensaio sobre o mundo rural.38 No contexto do AI-5, já teria se concluído a autocratização completa do sistema político. No dizer do seu discípulo José de Souza Martins, para Florestan, aquele tempo era um tempo em que se fecharam as “possibilidades históricas” (MARTINS, 2006). Com essa caracterização da circunstância, o sociólogo passa a ter a visão pes­ simista que põe em dúvida a efetividade da resistência ao regime de 1964. Certamente ele não daria atenção aos atores oposicionistas que diziam haver, nas classes e grupos sociais, energias capazes de interromper o processo de endurecimento do regime nos anos de chumbo. 37 Essas populações rurais “não possuem qualquer possibilidade de utilizar a ordem social competitiva para resguardarem seus interesses”. Para elas, a ordem social competitiva está praticamente “morta”, “no que tange a processos de suas relações positivas com as funções classificadoras do mercado interno e com as funções estratificadoras do sistema de produção capitalista” (FLORESTAN, 1973, p. 195). A esses “condenados do sistema” (sic) só lhes restava o “único caminho” das “migrações internas” (e as “pontes” que eles criavam com os polos “modernos”), tornando tal tipo de “mobilidade espacial e socioeconômica” em “técnica de redefinição das posições e das situações de classe” (IBIDEM). 38 Lê-se no texto: “Por paradoxal que pareça, as ‘forças da ordem’ e de ‘defesa da paz social’ identificam-se com a sobrevivência indefinida das iniquidades econômicas, sociais e políticas que são incompatíveis com o ‘capitalismo maduro’” (IBIDEM, p. 198). Em uma passagem anterior, Florestan anota que, na ponta dos despossuídos, os “condenados do sistema”, havia a apatia, a acomodação passiva, “produtos da desmoralização coletiva de uma ordem ultrarrepressiva” (IBIDEM, p. 196). O marxismo político de Armênio Guedes

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Nem acreditaria nos movimentos daqueles que, nesse tempo, buscavam subir à superfície por meio de atividade difícil, visando alcançar o ponto alto das liberdades, com as quais um protagonismo plural – este era o seu cálculo estratégico – novamente viria pôr à prova sua capacidade de mudar os rumos das coisas. 



Como vimos nos seus textos dos anos 1950, Armênio Guedes refere os constrangimentos às mudanças sociais (antigos e novos) e à possibilidade de o agrupamento de vanguarda dar vida a uma “tática realista” e criatividade que potencializasse uma concertação pluriclassista.39 No caso da circunstância que começa com a destituição de Jango, o cometimento passa a ser o de construir uma articulação a partir dos contingentes afastados das esferas governamentais e, portanto, distantes da implementação das reformas. As correntes derrotadas em 1964 logo procurariam sair do imobilismo, em primeiro lugar, as que atuavam no mundo político, campo no qual, mesmo cerceado, por meio de iniciativas, elas podiam se mover. Postos na defensiva, os antigos e novos e diversificados aliados iriam se ativar, conquistando espaços para desenvolver, com avanços e recuos, um movimento democrático contra o regime de 1964. O PCB não só extrai energias da frente única, como sobretudo pratica e defende, nos momentos de desânimo de áreas aliadas, o caminho gradualista e expansivo da resistência como se estivesse amalgamando sua própria identidade.40 Sob o registro da política, a análise de Armênio Guedes da conjuntura dos anos de chumbo delineia aquela perspectiva. A interdição da democratização, em 1964, não significa o fim do pensamento aqui re39 As Teses para o V Congresso (1960) anunciavam aquele lineamento deste modo: “A experiência da vida política brasileira tem demonstrado que as vitórias anti-imperialistas e democráticas parciais só puderam ser obtidas pela atuação em frente única de várias forças interessadas na emancipação e no progresso do país. A aliança destas forças resulta, portanto, de uma exigência da própria realidade objetiva” (PCB, 1960, p. 61). 40 A propósito da relação entre a política e a cultura no tema do partido, Norberto Bobbio diz: “Cultura ya no fuera o contra el partido, sino dentro o por medio del partido” (BOBBIO, 1993, p. 273). O comentário do autor vem por conta da sua referência à visão gramsciana do partido como um “crisol de la unificación de la teoria y de la practica” (IDEM). 58

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ferido, como as críticas ao PCB, que não foram poucas, chegaram a dar por suposto. Ao contrário, a Resolução Política do Comitê Estadual do PCB da Guanabara, embora conhecida em áreas restritas, em virtude da repressão, tem muito a ver com a estratégia da oposição.41 Nesse texto de 1970, tão emblemático quanto os seus escritos dos anos 1950, o labor de Guedes consiste em analisar a conjuntura do pós68. Novamente o seu cometimento é propiciar aos atores (ao seu partido e por meio dele às correntes diversificadas das oposições) pontos de referência para atuação nos anos mais violentos do regime de 1964. Como os textos de 1957 e 1958, a resolução de março de 1970 surge em uma época em que o fracasso da Primavera de Praga ainda repercutia no campo intelectual (tendo recebido apoio inclusive de militantes comunistas). No entanto, essa discussão sobre a natureza não democrática do socialismo real não será considerada nesta menção ao documento pecebista conquanto Guedes concentra sua análise na conjuntura. O redator da Resolução do PCB da Guanabara avalia a trajetória dos governos militares e detém-se nos quase dois anos de chumbo subsequentes ao AI-5. Guedes via no acirramento do autoritarismo um “avanço do processo de fascistização” da ditadura de 1964 (sic). Argumentava que a tendência reacionária (em 1970, ela ainda podia aumentar), no entanto, vista em perspectiva, desde a caracterização do regime,42 podia ser barrada. Neste ponto chave, ele se colocava na contracorrente das teses que davam como consumado o fechamento completo do sistema político, incluídas as dos grupos radicalizados, principalmente jovens, que, então, protagonizavam ações armadas. Ao analisar as marchas e as contramarchas da ditadura, Guedes põe atenção nas áreas de conflito que, segundo ele, ampliavam-se com a exarcebação da natureza do regime em várias direções (liberdades, instituições políticas, economia nacional, intelectualidade e cultura). O publicista via nos “males do regime” as possibilidades de oposição, 41 É desse momento uma resolução do Comitê Central do PCB sobre o papel dos entendimentos políticos na resistência democrática (“nos mais diferentes níveis”, cf. PCB, 1971). Há também um outro texto pecebista que registra as articulações e ações parciais (“moleculares”, na linguagem gramsciana) contra o regime de 1964 nas esferas sindical e associativa. 42 A resolução do Comitê Central do PCB, de maio de 1965, dizia que 1964 não podia ser considerado apenas como um golpe de Estado, mas como uma mudança na forma de dominação estatal (cf. PCB, 1965; 1982). Guedes repete esta caracterização na resolução ora recenseada. O marxismo político de Armênio Guedes

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quer seja contestação manifesta, de caráter parcial (em relação a um ou a mais aspectos da ação do regime), quer seja latente. Atento aos movimentos da conjuntura, ele observa que, à medida que avançava a tendência fascistizante, crescia a insatisfação e o regime perdia apoios no mundo político, o que era um dado dos mais importantes. O analista busca identificar o “aspecto positivo” e o “ponto de partida” de um instante ou dimensão de um atrito que suscitasse iniciativas e ações continuadas. Segundo sua previsão, em torno dessas linhas de resistência, reunir-se-iam grupos e correntes políticas, sociais e culturais cada vez mais numerosas, cujos movimentos se afirmariam até adquirir dimensão nacional, nessa medida passando a expressar “o espírito de rebeldia brasileiro” (sic). Em virtude do ponto de vista militante em que se situava (diferentemente dos autores pessimistas que não dispunham deste tipo de conexão formulativa), Armênio Guedes termina apresentando às oposições os lineamentos de uma estratégia de desenvolvimento progressivo – assim nesta ordem – de “resistência, isolamento e derrota” do então (1970) poderoso regime militar. Aí está, resumidamente, a estratégia de oposição descrita por Guedes. Aliás, nove anos depois, em um tempo em que já eram muitas as recepções de Gramsci no Brasil, ele admite, à hora da anistia de 1979, a comparação do caminho da resistência democrática à tese gramsciana da “guerra de posições”. Essa alusão, contudo, não reflete influência de Gramsci relevante nas suas ideias políticas inclusive nas dos anos 1980. Entretanto, subsiste a questão, já posta em relação aos textos de 1957 e 1958, que ora necessita ser retomada: saber até que ponto, na sua formulação de 1970, aquela “guerra de posições”, proposta por Armênio Guedes como construção progressiva de um largo arco de correntes oposicionistas, ainda era uma tática pensada em termos de uma ideia da frente única nucleada pela aliança operário-camponesa.43 Esse é o tema da hegemonia, central no marxismo – hegemonia de classes 43 Na análise de conjuntura da Resolução da Guanabara, a passagem alusiva a um cenário mais distante é a relativa à estratégia “limitada da fase atual” (1970) da luta contra o regime de 1964, e a que registra que o erro da sua diluição na “tática quase cotidiana” seria evitado “desde que subordinemos as ações de resistência ao objetivo central da frente única nacional e antiditatorial” (GUEDES, 1970). A estratégia de “resistência, isolamento e derrota” da ditadura levaria ao entendimento entre as correntes da oposição visando o “Compromisso nacional com a democracia”, como diz ele no texto de 1978 (GUEDES, 1978). 60

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em ação revolucionária (como em Lênin) ou hegemonia (classista) ampliada por conquista progressiva de consensos (em Gramsci) – posto em evidência nos anos do eurocomunismo. Enquanto o PCB acompanhava a questão sem se voltar para ela como controvérsia também sua, o PCI a considerou chave para a discussão sobre o socialismo pelo menos desde a década de 1970 até há bem pouco tempo.44 Guedes também escreveu sobre a crise do socialismo, no entanto, são os textos de análise da política brasileira os que mostram os traços peculiares do seu pensamento nos anos 1980. A referência à centralidade da aliança operário-camponesa na frente única esmaeceria em áreas intelectuais e políticas ligadas à tradição pecebista, à medida que novas reflexões vieram mostrar que temos uma estruturação social muito diferenciada e realçar que somos uma formação social com rica articulação sociocultural. Estas dimensões são traços da sociedade brasileira complexificada a serem considerados devidamente no labor “formulativo” dos ambientes de raiz pecebista (adquirindo, assim, valor permanente), sendo exemplos o largo e variado associativismo, cada vez mais transclassista e a extensa opinião pública e os meios de comunicação livres. O sistema político com democracia representativa (partidos, eleições, liberdades, três níveis de parlamento, governos políticos) passou a ser reconhecido nessas áreas como valor irrenunciável; o pluralismo cultural igualmente ali visto como potencial civilizatório e assim por diante. Em tal clima político e intelectual aberto, a democracia política foi ganhando – se não para outros grupos de esquerda marxista, para as vertentes de origem pecebista remanescente hoje no PPS e fora dele 44 A ideia de frente única pode ser vista em três referências importantes. Primeiro, está posta em O Manifesto Comunista, nas suas páginas finais. Depois pode ser acompanhada nas Frentes Populares antifascistas e especialmente após o golpe sangrento no Chile (1973), no “compromisso histórico” concebido por Berlinguer como convergência das principais vertentes políticas da Itália daqueles anos de Aldo Moro (comunistas e democratas-cristãos). O Partito Democratico (PD) italiano de agora se distancia do seu partido-raiz, o PCI, e da fórmula novecentista da união entre correntes heterogêneas para a “luta contra o adversário”. O PD, como disse Walter Veltroni, indica outra direção: será possível obter consensos e “modificar as relações de forças eleitorais” na Itália apenas com uma “profunda inovação política e programática”, cuja credibilidade exige ainda “testes de competência para governar.” O autor se refere à necessidade de o PD dispor de melhor “oferta política” como base para a concretização, por via eleitoral, de uma “grande aliança na sociedade italiana, uma aliança com o país” (VELTRONI, 2008; ver SANTOS, 2009). O marxismo político de Armênio Guedes

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– significado universal, ou seja, condição para um reformismo progressivo, democrático (de conquistas extensivas à “generalidade do país”, usando a expressão caiopradiana) e sustentável conquanto desenvolvido no Estado democrático de Direito. Nestes tempos avessos a qualquer tipo de narrativa, a recusa à ação política teoricamente orientada pode encerrar os perigos do “mero ativismo” e “saltos no vazio sem se conhecer suas consequências”, como, já distante da filosofia da consciência, tem advertido Habermas.45 O pensador alemão se refere à possibilidade de uma “fecunda simbiose” entre teoria e prática que evite o abismo entre o “ideal” e o “possível” – “sem adiar nada para o final dos tempos” (IBIDEM). Num campo de esquerda que aceite sem reservas o Estado democrático de Direito, usando proposição do mesmo Habermas, não se dispensa, mas, ao contrário, se requer tanto explicitação dos fins do agir como sua avaliação e sobremaneira racionalidade interdiscursiva no ambiente político. Para finalizar as presentes notas, interessa dizer que o cânone da ação consciente aqui descrito liga as duas construções – a do imediato pré-Declaração de Março de 1958 e a da matriz da revolução passiva – que aparecem no campo pecebista em tempos distintos. A propósito deste ponto, vale referir, por ser exemplar, o já citado publicista Luiz Werneck Vianna, nos primeiros momentos da transição democrática, com seus textos de época que enfatizam o tema da intervenção tempestiva do ator (VIANNA, 1983; 1986). No caso de Armênio Guedes, que publica textos sobre a transição democrática por toda a década dos anos 1980, chama a atenção sua permanente defesa da “ação política” (lúcida) com vistas a pôr em movimento um protagonismo pluriclassista na vida nacional. Ele propõe uma frente única que incida de modo eficaz nos momentos aqui aludidos: nos distantes anos 1950, uma concertação que reúna energias visando reestruturar em sentido democrático a modernização do país; e, nos tempos do pós-64, uma convergência que levasse à recuperação das liberdades democráticas. 45 Velasco Arroyo observa que, no âmbito da teoria da ação comunicativa, Habermas se propõe superar o marco da “filosofia da consciência” – à qual se filia o modelo marxista e leninista do partido portador da consciência revolucionária “de fora” à classe operária –, testando no tema da relação entre teoria e prática as possibilidades das suas teses da ação comunicativa. Longe das grandes certezas da filosofia da história, Habermas elabora uma estratégia intelectual “que possibilita a colocação não voluntarista de propostas construtivas” (cf. VELASCO ARROYO in: HABERMAS, 1999). 62

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Hoje, quando já não se põem as vistas em uma sociedade futura pertencente ao mundo da doutrina, o mesmo Armênio Guedes, não faz muito, como que voltando à questão da frente única (é uma conjectura sugerida pelo fato de, alguns anos atrás, ele nos pedir para encontrar o seu artigo Algumas ideias da frente única no Brasil, de 1957), parece querer voltar a ver a extensão das suas ideias de quase um pouco mais de meio século atrás, à parte o repertório usado naquela época. Em um programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo (2008), referindo-se ao “caminho democrático ao socialismo” do PCI, afirmou, em tom, digamos, bem consciente do tempo em que estamos (mas também com olhar retrospectivo) que o que os comunistas italianos haviam trilhado, de fato, era um caminho democrático para a democracia.

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O marxismo político de Armênio Guedes

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II. TEXTOS DE ARMÊNIO GUEDES



1 O pecebismo contempor창neo



Algumas ideias sobre frente única no Brasil*

O

dogmatismo no seio do PCB impediu-nos de refletir, no pensamento político, a realidade do país. E sem este fator – conhecimento da realidade – era impossível ter uma tática elaborada. A tática foi rebaixada à condição de mera agitação; partir das denúncias e, através apenas da propaganda, ganhar as massas para as lutas decisivas, para a mudança de regime. Nunca se levou em conta a importância de participar do movimento real. Por desconhecer a realidade, inspirada tão só pelos objetivos finais, o PCB realizou sempre (tomando-se para exame do problema um longo período) uma política voluntarista, com ignorância ou desprezo das leis objetivas. Nossa política, normalmente, desconhece que a “missão fundamental da tática do proletariado” deve ser determinada em “rigorosa conexão com todas as premissas de sua concepção materialista e dialética do mundo”. Na tática dos comunistas brasileiros, em geral, não encontramos esta conexão. Ela decorre de uma concepção falsa do movimento (idealista, metafísica), concepção que desconhece a relação (unidade) entre as duas formas de que ele se reveste, a evolutiva e a revolucionária. A separação dessas duas formas do movimento conduz sempre, em política, a uma tática oportunista ou a uma tática radicalista. Para a primeira, existe apenas a evolutiva; para a segunda, apenas a revolucionária. Se se parte das premissas materialistas para determinar a “missão fundamental da tática proletária”, tem-se que considerar o movimen* Revista Novos Tempos, set./1957. 73


to em suas duas formas, a evolutiva e a revolucionária, considerar a relação entre elas, ou melhor, reconhecer que as modificações lentas, quantitativas, são completadas pelos saltos, constituindo as duas formas um processo único do desenvolvimento. Partindo dessas premissas, Lênin chegou a uma conclusão geral sobre a tática: A tática do proletariado deve levar em conta, em cada grau do seu desenvolvimento, em cada momento, esta dialética objetivamente inevitável da história humana: de uma parte, aproveitando as épocas de estancamento político ou de desenvolvimento a passo de tartaruga, chamado “pacífico”, para desenvolver a consciência, a força e a capacidade combativa da classe de vanguarda e, de outra parte, orientando todo este trabalho de aproveitamento para a “meta final” do movimento da referida classe, capacitando-a para resolver praticamente as grandes tarefas nos grandes dias “em que se condensam vinte anos”(V. I. Lênin, Marx, Engels y el Marxismo, p. 43).

Por desconhecer a realidade e abstrair os caminhos peculiares, o Partido tirava sempre os seus elementos táticos dessa premissa – uma estratégia a curto prazo. Daí não dar importância às formas de aproximação, transitória (lei de todas as revoluções), não procurar investigar o específico de nossa revolução, a relação entre a luta democrática geral e a luta pelas transformações radicais. Não resolvendo esta questão, não podia solucionar uma outra, derivada: a luta pela mudança de governo como forma, caminho para a mudança de regime. 



Assim chegamos até o momento presente. Esses erros refletem-se agora na concepção de frente única, atualmente predominante no PCB, isto é, frente única em torno de pequenas reivindicações, tendo como fito ganhar as massas para a luta pela derrubada do regime. Faz-se frente única (ex.: nas últimas eleições em São Paulo), a fim de obter determinadas vantagens para o movimento (melhores condições para sua agitação e propaganda etc.) com vistas a um objetivo remoto e não para mudar o tipo de governo. A ideia central dessa política é a da relação entre a frente única limitada e a frente democrática de libertação nacional.

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Creio, no entanto, que é preciso encarar a questão através do seguinte ângulo: o objetivo não deve ser apenas a frente única por reivindicações parciais; deve visar à ação política pela criação de um governo de frente única anti-imperialista (ou nacional-democrática ou antientreguista ou que nome tenha). Esta nova concepção que procura abrir caminho, à medida em que o movimento – ou parte dele – vai tomando contato com a realidade: a frente única limitada se funde com a frente única geral (nacional) e a ela se subordina, tendo como objetivo criar, nos quadros do regime, um novo tipo de governo. No caso atual, um governo nacionalista e democrático, isto é, um governo cujo conteúdo é – repetimos – de frente única anti-imperialista. Esse governo não será o de libertação nacional, previsto pelo Programa do PCB. Será, talvez, um governo que levará a democracia, à medida que ela avance, a ter de encarar necessariamente a questão das transformações revolucionárias. Será, antes de tudo, um governo de luta contra o imperialismo norte-americano (antientreguista) e democrático. Isso significará o coroamento da luta pela frente única nacional. E tal governo, nascido de um poderoso movimento de massa (em que o proletariado seja a força decisiva), será um governo que não restringirá a atuação do proletariado, mas pelo contrário terá nele um dos seus pontos de apoio, abrindo o caminho para a ampla democratização da vida do país e tomando medidas firmes contra o imperialismo norte-americano e contra os restos feudais. Parece-me que se criam, no momento atual, condições objetivas para um tal governo: de um lado, o choque dos interesses da burguesia nacional com o imperialismo norte-americano; de outro lado, o aumento da força do proletariado e das massas trabalhadoras em geral.” O choque entre o entreguismo e o antientreguismo, a luta da burguesia para orientar a política econômica do Estado em seu benefício, a incapacidade dos latifundiários feudais de manter o monopólio dos postos de comando do aparelho estatal etc. – tudo isto são fatores que indicam a possibilidade de êxito da luta pela formação de um governo de frente única anti-imperialista. 



O pecebismo contemporâneo – Algumas ideias sobre frente única no Brasil

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Nesta concepção, a ideia tática é oriunda não de uma estratégia a curto prazo; ao contrário, parte da necessidade das formas de aproximação ou da relação entre o movimento democrático geral e a solução dos problemas da revolução democrático-burguesa (preponderantemente nacional, em nosso caso). Esta tática necessita, cada vez mais, do conhecimento da realidade (ela é essa própria realidade mais a vontade de transformá-la refletida no pensamento político do movimento), é fruto da concepção do peculiar de cada revolução. 



No programa do PCB, pelo fato de não se dar importância às formas de aproximação da revolução ou porque se predeterminaram essas formas, a questão da hegemonia é encarada de modo rígido, vendo-se apenas sua fase superior, quando essa hegemonia já é manifestação plena da aliança operário-camponesa. Daí colocar o problema assim, falsamente: primeiro formar a aliança operário-camponesa e, como prolongamento desta, a frente democrática de libertação nacional, instrumento indispensável para a instauração do governo democrático popular. Esse esquema pouco explica a situação atual. Em nada ajuda à formação da frente única antientreguista e muito menos à luta pela formação de um governo de frente única. Por isso leva à passividade, ao reboquismo, a não encarar a necessidade da criação de um governo de frente única com a nossa participação, governo que – repetimos – não será evidentemente o de libertação nacional do Programa do PCB. Então, cabe mais uma vez perguntar: participando de tal governo, ou apoiando-o, o proletariado e seu partido perdem de vista a necessidade de forjar a aliança operária e camponesa? É evidente que não. Ao contrário, ao lutar por semelhante governo, o proletariado busca criar as condições que possibilitem o estabelecimento de relações definitivas com o movimento camponês, apoiando-o firmemente. O proletariado pode assim assumir a direção da revolução democrática do campesinato (o que constitui o traço fundamental de sua hegemonia). 

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

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E não creio que isso seja fruto da fantasia. Participando do poder (ou apoiando-o), o proletariado disporá de enormes recursos para mobilizar e organizar, de cima e pela base, massas imensas do campesinato, colocando-as sob sua direção. Daqui uma conclusão: ao participar de um governo de frente única (ou apoiá-lo), o proletariado, através de sua organização política, está unido e em luta com a burguesia nacional. Claro que nem sempre esta luta será obrigatoriamente violenta e contra a burguesia em bloco. Ela poderá assumir, também, formas não violentas e, em certas ocasiões, dirigir-se contra setores limitados da burguesia, contra os elementos de sua ala direita, aqueles que tendem a um acordo com o imperialismo e os latifundiários feudais, para impedir uma vitória definitiva sobre esses dois inimigos (impedir as medidas de emancipação e as medidas agrárias do governo de frente única). A força do movimento de massas, o grau de organização dessas massas, a força da aliança operário-camponesa – a isso se subordina a intensidade da luta em cada momento, as tarefas a serem cumpridas. O grau de luta depende igualmente da força interna e externa do inimigo. 



Em face de tudo isso, coloca-se agora concretamente o problema da frente única em ligação com a atual situação política. Trata-se de alcançar um governo dessa frente única anti-imperialista, mas como? Diante de nós bifurca-se o caminho: 1) existe a possibilidade de transformar o atual governo, alterando sua composição em favor das posições nacionalistas; 2) existe a possibilidade menos imediata, porém mais provável, de formar um governo desse tipo como resultante das eleições de 1958 e 1960.

O pecebismo contemporâneo – Algumas ideias sobre frente única no Brasil

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Uma ação positiva das forças nacionalistas*

A

luta entre as forças interessadas no desenvolvimento do país e os grupos entreguistas é uma constante da situação política atual do Brasil. Trata-se de uma luta que tende a se prolongar ainda por algum tempo. Como em todo embate desse tipo, teremos sempre, no curso do seu desenvolvimento, períodos de calmaria e momentos de tensão. Nos momentos de tensão, as forças em choque adquirem contornos mais definidos e, o que é mais importante, ampliam ou restringem suas fileiras. Não há dúvidas que historicamente as possibilidades de avanço são das forças nacionalistas. Mas tais possibilidades só se tornarão algo real pela ação consciente das forças sociais de vanguarda. Daí a necessidade de destacar, do conjunto da ação política concreta, aquilo que é positivo e que representa, muitas vezes, o ponto de partida para uma direção política acertada ou que, pelo menos, constitui um importante elemento de uma tal direção. A situação atual, condicionada pelas dificuldades financeiras do país e pela pressão dos imperialistas norte-americanos para quebrar a resistência nacional aos seus planos da escravização, deu lugar a um novo período de tensão. Não sabemos se este período terminará com a recomposição ministerial em curso. E é difícil, por isso, dizer quem saiu ou sairá fortalecido do atual choque, se os grupos entreguistas ou o movimento nacionalista. Nosso objetivo aqui é destacar principalmente o que surge de novo e positivo na ação do movimento nacionalista. Parece que o fato mais positivo dessa ação foi o caráter da atividade desempenhada pelos nacionalistas em face dos últimos aconteci* Voz Operária, 28/06/1958. 78

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mentos. A pressão nacionalista, exigindo soluções favoráveis ao desenvolvimento independente do país, soluções de resistência ao imperialismo, foi realizada fora e dentro do aparelho de Estado. Não se limitaram os nacionalistas a analisar esse ou aquele fato, como em outras ocasiões. E mais ainda, procuraram, embora em pequena escala, coordenar suas forças, suas ações tinham caráter convergente, ajudaram a esclarecer amplos setores populares sobre o sentido real das questões palpitantes do momento. Foi esse o sentido da ação da Frente Parlamentar Nacionalista, da “Ala Moça” do PSD, das organizações estudantis, da imprensa democrática e nacionalista, dos líderes sindicais, do Iseb etc. Queremos citar, como um exemplo típico dessa ação, o memorial dos líderes sindicais de São Paulo ao Sr. Juscelino Kubitschek. Há um trecho do memorial que reflete bem o caráter da intervenção das forças nacionalistas nos últimos acontecimentos: Ao dirigirmo-nos a Vossa Excelência, na qualidade de intérpretes da vontade dos trabalhadores, coerentes com os princípios que juntos defendemos no curso da árdua e memorável luta pela eleição e posse de Vossa Excelência, ressaltamos que é inadmissível a recomposição do ministério com a inclusão dos setores entreguistas que representam a frustração da marcha da política de emancipação econômica nacional a que se propôs o governo de Vossa Excelência.

É sob a pressão do movimento nacionalista que os novos ministros ocuparão os seus cargos. Certamente alguns deles são nomeados por imposição dos setores entreguistas. Mas isso não é o bastante para que mudem os rumos da política governamental, no sentido de liquidar os elementos nacionalistas que ela encerra e fazer preponderar e vencer o seu lado entreguista e reacionário. Os últimos acontecimentos não levam à dedução de que uma das forças em choque já esteja em condições de impor uma decisão definitiva, isto é, empolgar o governo e imprimir sua fisionomia à política interna e externa do país. A atual instabilidade do governo – responsável pelos seus constantes vaivens – prolongar-se-á por algum tempo, até que uma das forças em pugna imponha uma decisão que lhe seja favorável.

O pecebismo contemporâneo – Uma ação positiva das forças nacionalistas

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O movimento nacionalista dispõe dos fatores essenciais para impor essa decisão, batendo os elementos entreguistas e reacionários. Já existem as premissas políticas essenciais para a formação de um governo nacionalista no Brasil. Mas é necessário vencer grandes e fortes obstáculos que se opõem a isso. Um dos primeiros passos a ser dado nesse sentido é terminar com a dispersão política e organizativa nas fileiras do movimento nacionalista. As forças nacionalistas, dispersas por vários partidos e organizações, não atingiram um grau de consciência e unidade de vistas que possibilite sua unificação no plano programático ou organizativo. Deve haver um esforço permanente no sentido de coordenar as ações em plano local e nacional das diferentes correntes nacionalistas. Não se trata de impor formas rígidas de organização, o que seria impossível e estancaria o movimento, mas de elaborar ideias claras, ter soluções concretas para enfrentar as grandes e as pequenas questões da luta anti-imperialista e, nessa base, ir estruturando a frente única em bases sólidas. Uma medida que impulsionaria esse esforço organizativo seria talvez a realização de reuniões de contato, em que seriam debatidos problemas do movimento nacionalista e estabelecidas as respectivas soluções. Vencida a dispersão de suas forças, o movimento nacionalista cresceria rapidamente. Os comunistas, que já têm elaborado alguns pontos de vista sobre o movimento nacionalista, precisam colocar toda a sua experiência política a serviço da organização do movimento nacionalista. Esta é a linha mestra que deve orientar nossa atividade no decorrer da atual campanha eleitoral.

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2 A resistĂŞncia polĂ­tica ao regime de 1964



Resolução Política do Comitê Estadual da Guanabara do PCB (março 1970)*

O

I

período transcorrido da promulgação do AI-5 até agora foi marcado, politicamente, pelo avanço do processo de fascistização do país. Para levar avante seu programa antinacional, antidemocrático e antipopular, o regime criado pelo golpe de 1964 vem, sucessivamente, a partir do AI-1, restringindo as liberdades civis, concentrando o poder nas mãos de uma minoria militar e usando o arbítrio e o terror como métodos de governo para dar solução aos problemas políticos na ordem do dia. Isso não constitui, evidentemente, um traço peculiar à modalidade brasileira do fascismo. Aqui, como em todas as partes, ele se caracteriza por surgir e definir-se, antes de tudo, como um ataque violento, armado, contra as organizações e instituições democráticas, em geral, e contra as associações de trabalhadores, em particular. Fazemos questão de insistir nesse ponto. Isto é, fazemos questão de estar sempre alertando para a mudança do regime político ocorrido no Brasil em resultado do golpe de abril de 1964. A verdade é que o movimento militar que derrubou o governo de João Goulart mudou a forma estatal de dominação de classe: o regime de democracia burguesa foi substituído por outro, de tipo fascista. As peculiaridades assumidas pelo tipo brasileiro de fascismo, nesta segunda metade do século XX, não devem confundir ninguém. A percepção disso é um mérito que não se pode negar ao nosso partido. Há muito que batemos nessa tecla, e fomos nós os primeiros a mostrar a diferença entre o golpe de 1964 e os demais golpes militares * Manifestos Políticos do Brasil Contemporâneo. Org.: PENA, Lincoln de Abreu. Rio de Janeiro: E-papers, 2008.

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realizados no Brasil, depois do fim da II Guerra Mundial. O fato, entretanto, nem sempre é visto com clareza pelas várias forças e correntes políticas de oposição ao governo. E essa falta de compreensão leva, frequentemente, a ilusões que, de um lado, favorecem o processo de fascistização e, de outro, entorpecem a unificação e a combatividade das forças políticas e sociais que a ele se opõem. É ela, igualmente, que impede a visão global do processo e induz certos analistas políticos a encarar as sucessivas crises do governo assinaladas depois de abril de 1964 como episódios isolados, e não como marchas e contramarchas, provocadas, de uma parte, pelo esforço fascista para dar vida ao seu projeto de um Estado autoritário, militarista e tecnocrático, e, de outro, pela resistência das forças democráticas à realização de tal projeto. Se conseguirmos, com nossas constantes advertências, esclarecer a opinião pública sobre o caráter do regime, será mais fácil estimular a resistência ao seu avanço: não se trata de oposição apenas ao governo de Médici ou de outro general qualquer; o que se pretende é barrar e liquidar o processo de fascistização, restaurar e renovar o regime democrático, de forma a permitir que os trabalhadores e a maioria do povo, vencida a contrarrevolução de 1964, voltem a impulsionar o Brasil no sentido de sua completa emancipação nacional. Visto nesse contexto, o ano de 1969 foi um ano de recuo das forças democráticas e de avanço da ditadura. As medidas tomadas a partir do AI-5 (supressão do habeas-corpus, fortalecimento dos órgãos de repressão, emprego da violência e do terror abertos para o combate à oposição ao governo e ao regime etc.) criaram maiores dificuldades para a manifestação das massas. O fortalecimento do caráter repressivo do poder atual foi a forma encontrada pela contrarrevolução para enfrentar as dificuldades políticas que lhe são criadas, tanto pela resistência democrática como pelos conflitos surgidos no seio das forças governamentais. É uma solução que, embora dê vantagens temporárias ao regime, cria, a médio e longo prazos, premissas para novas crises, que lhe podem ser fatais. Mas esta afirmação não deve ser compreendida, de forma alguma, como um fatalismo positivo. Dados de ordem objetiva e subjetiva determinam que os fatores temporários favoreçam o avan84

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ço do processo de fascistização; o mesmo não se dá em relação aos fatores permanentes que atuam em sentido contrário. E é por causa disto que certos círculos das classes dominantes, que levaram os militares fascistas ao poder, passaram, do apoio ao governo, à neutralidade, e, agora, já começam a inquietar-se com os excessos da ditadura, excessos que comprometem o futuro político de quem os pratica ou, mesmo, de quem se mantém omisso ante suas consequências. A correta avaliação desses fatores temporários e permanentes revela-nos, paradoxalmente, que o avanço do processo de fascistização, na medida em que vai se afirmando na estruturação de um Estado autoritário, militarista e tecnocrático, através dos três governos que se seguiram ao golpe de abril de 1964, tende, ao mesmo tempo, a esgotar suas potencialidades. É fácil entender. O processo, para avançar, tem que se afastar de alguns dos seus sustentáculos iniciais, isto é, cortar seus vínculos mais estreitos com as correntes liberais do centro ou da direita da antiga “classe política”. Ao fazer isso, se é verdade que limpa a sua área, tornando-a cada vez mais impermeável a qualquer tipo de pressão nacional e democrática, não é menos certo que se condena a um certo tipo de isolamento político, pois o espaço deixado vazio pela liquidação de uma parte de seu sistema de sustentação não é ocupado, a não ser em escala reduzida, por novas forças. O esforço realizado pelo atual governo, tentando substituir a parte da “classe política” alijada (Magalhães Pinto, Pedro Aleixo, Cordeiro de Farias, Daniel Krieger etc.) por quadros tecnocratas, ilustra o que antes afirmamos. É oportuno dizer que a falta de uma base de massas (um partido fascista de massas) e o apoio fundamental no núcleo reacionário das Forças Armadas são peculiaridades marcantes do regime atual e do processo de fascistização instaurado no Brasil. Essas duas facetas do regime atual, ao lado de outras que merecem análise e estudos precisos, têm de ser bem ponderadas quando tentamos elaborar um plano de ação para a resistência das forças que se opõem ao processo contrarrevolucionário aberto pelo golpe de 1964. Como conclusão do que foi dito antes, gostaríamos de assinalar que continua como objetivo central de nossa ação política a luta pela liquidação do regime do golpe de abril de1964. Não se trata, repetimos, de fazer oposição apenas a este ou outro governo, a um ou outro aspecto de suas políticas, e sim de subordinar quaisquer desses esforA resistência política ao regime de 1964 – Resolução Política do CE da Guanabara...

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ços à estratégia geral para deter o processo de fascistização do país e, em seguida, derrotar o regime atual e liquidar, politicamente, as forças decisivas que lhe deram vida e o sustentam. O que foi realizado até aqui, em matéria de resistência, apesar do baixo nível de organização da oposição à ditadura, revela que a consolidação do regime não é uma fatalidade. E mais ainda: mostra que ele é vulnerável, que são limitados e temporários os seus suportes. Qualquer ilusão sobre o caráter do regime, quer em nossas fileiras, quer entre as forças da oposição, deve ser combatida. E toda e qualquer ação, não importa a sua importância ou extensão, deve ser orientada de forma a somar forças contra a ditadura, de modo a impulsionar o movimento histórico em direção à contestação global, direta e indireta, do regime e da sua política. Vejamos, a seguir, as condições nacionais (aqui não trataremos da situação internacional, apesar de sua importância), em que temos hoje de conduzir a resistência à ditadura. II As crises políticas que culminaram na indicação do general Garrastazu Médici para a Presidência da República ganharam intensidade na segunda metade de 1969. Essas crises foram geradas por conflitos de naturezas diversas e se deram em diferentes planos da vida política. As soluções encontradas, quer com as medidas tomadas pela Junta Militar, quer com a eleição do novo presidente militar, apenas atenuaram (ou adiaram) os seus efeitos. E justamente porque persistem tais conflitos é que é importante examiná-los. Antes de tudo, assinalemos que as últimas crises, ao lado de suas especificidades, apresentaram pontos comuns com as demais crises sofridas pelo regime atual. Entre os fatores causadores de desgastes da ditadura, opondo-se a seus esforços para fazer avançar o processo de fascistização, encontramos sempre dois tipos de resistência: a do movimento nacionalista e a do movimento democrático. Certo, esses dois elementos do processo político brasileiro tendem, historicamente, à convergência: há entre eles um condicionamento mútuo muito estreito. Mas, em determinadas situações concretas, um deles pode assumir maior importância 86

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como acelerador do processo revolucionário brasileiro. De qualquer forma, direta ou indiretamente, eles sempre estiveram no centro das crises que vêm abalando o regime. Ou se originando de um choque direto entre o governo e a oposição (AI-2, novembro de 1965), ou de um conflito no seio do sistema de forças do governo (afastamento de Costa e Silva, constituição da Junta Militar e indicação de Médici), os golpes sucessivos, a partir de 1964, foram sempre desencadeados para precaver o processo contrarrevolucionário contra o seu desgaste pela resistência nacionalista e democrática. A maior ou menor instabilidade dos governos da ditadura (razão das crises) tem sido em função de sua maior ou menor permeabilidade às pressões oriundas daqueles dois movimentos. A contradição a que acabamos de nos referir dá origem a outras menores, secundárias e subordinadas, mas que nem por isso deixam de assumir importância decisiva em determinados momentos. É o caso, por exemplo, do conflito entre um poder de fato, constituído por um núcleo de oficiais superiores das Forças Armadas (ideologicamente afinados com as doutrinas político-militares da ESG, mas de difícil identificação física), e o governo do momento. Cabe esclarecer que os diferentes governos do regime de abril (Castelo, Costa, Junta e Garrastazu) surgiram sempre como frutos de acordos entre aquele poder militar de fato e as velhas forças políticas integradas nos quadros da ditadura. Produtos de tais acordos, sujeitos muitas vezes a pressões colidentes, vimos os vários governos do regime oscilar, pendularmente, entre as duas forças, até um momento em que o aumento das tensões desemboca em crises políticas, que geram novos pactos, já que as forças em choque não tiveram, até aqui, possibilidade de terminar com o impasse. Nesses pactos, os contendores disputam posições e vantagens que os coloquem em condições favoráveis para enfrentar a nova crise. É esse, precisamente, o panorama do governo do general Garrastazu Médici. Dele dizia recentemente o jornalista Carlos Castello Branco: “Chegamos aí a outra curiosidade da situação brasileira, que é o fato de não estar o poder totalmente e, às vezes, substancialmente, nas mãos dos seus titulares, que o representam, mas não o empolgam. A força invisível está por trás de tudo, definindo critérios, selecionando A resistência política ao regime de 1964 – Resolução Política do CE da Guanabara...

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virtudes e impondo normas às quais devem obediência os que a representam ostensivamente”. Já se desenha nitidamente a formação de focos de atrito no novo governo. Apesar das medidas que, em 1969, aumentaram ainda mais o autoritarismo e o arbítrio do regime, dos atos e leis que dificultaram em alto grau a atividade da oposição e a manifestação da vontade das massas, e talvez por tudo isso, a situação política do governo Garrastazu se apresenta instável. Ele se esforça para cobrir os claros deixados por certas forças afastadas do poder, após a última crise, chamando técnicos para sua equipe numa tentativa de dar ao seu governo uma imagem tecnocrática. Poderá, com isso, substituir uma parte da velha “classe política” alijada do poder, criando um novo elo de ligação com as classes dominantes, evitando o isolamento e prolongando o bonapartismo atual por mais tempo. O difícil é avaliar até onde irão as possibilidades desse bonapartismo sem um Bonaparte. Ao lado das contradições já referidas, cabe, finalmente, assinalar mais uma. Em nível mais elevado que os seus antecessores, o governo de Garrastazu sofre as consequências da divisão do suporte militar da ditadura. À medida que passam os dias e que as Forças Armadas continuam como centro das decisões políticas importantes, maiores são os conflitos que as dilaceram. Grosso modo, a parte mais ativa da oficialidade, que participou do golpe de 1964, principalmente do Exército, divide-se hoje em dois grupos principais: um deles, englobando talvez a maioria, é formado pelos partidários de um nacionalismo autoritário, e o outro, que dispõe de maior parcela de poder, reúne os que se mantêm aferrados aos dogmas entreguistas e reacionários da ESG. O primeiro grupo tende a crescer e a romper, de dentro, a unidade do bloco militarista reacionário. Isto determinará, obviamente, uma convergência da ação dessa força com a do movimento nacionalista democrático da oposição. É necessário, no momento de uma apreciação mais concreta, não esquecer que, entre um grupo e outro, existem, nas Forças Armadas, correntes de várias nuances, além de uma enorme massa – possivelmente a maioria – de oficiais indecisos e indiferentes. É dentro desse quadro que o general Garrastazu terá de enfrentar as próximas eleições de governadores, para o Congresso Nacional, Assembleias Estaduais e Câmaras Municipais. “A disputa eleitoral – diz o JB – não será evidentemente capaz, por si mesma, de aplainar as 88

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contradições; muito pelo contrário. Pode-se esperar que as dificuldades se criem”. Em alguns dos estados mais importantes – SP, GB, MG, BA – o partido oficial, a Arena, até agora não conseguiu unir suas forças, e o general-presidente ameaça impor seus candidatos, vetando aqueles que não lhe agradam, numa ação que já se convencionou chamar de “cassação branca”. O governo, que num arroubo demagógico prometeu fazer o “jogo da verdade”, age com cautela nesse terreno, a fim de não provocar desarranjos no precário sistema de forças políticas em que se apoia. As correntes de oposição – e, claro, entre elas, o nosso Partido – têm, com as eleições, um grande campo para potencializar a resistência à ditadura. Nada nos leva a crer que as próximas eleições, cercadas como estão pelas medidas coercitivas da ditadura, possam ser decisivas para a liquidação do regime – é uma advertência que não podemos deixar de fazer. Mas não tenhamos dúvidas de que elas vão concorrer, e muito, para a nova crise em gestação. Daí a sua importância para a oposição. Ninguém pode dizer, com segurança, o resultado de uma nova crise, se haverá alguma abertura (não entramos aqui na discussão sobre a extensão de tal abertura, mas consideramos apenas que o alargamento da faixa das liberdades, por menor que seja, ajuda a organizar a resistência ao avanço do fascismo), ou se serão ampliadas as medidas repressivas, com novas restrições às já quase inexistentes liberdades civis. O que não se pode é ficar à margem, acatar o desejo do general-presidente. Isto é, participar das eleições sem contestar o regime. A oposição, particularmente as forças de esquerda e o nosso Partido, não pode, como quer o atual presidente, permitir que a opinião pública, em hipótese alguma, seja confundida a ponto de admitir as medidas repressoras do regime como necessárias à defesa da democracia. O regime de abril, por sua essência de classe (serviçal das velhas classes dominantes, do imperialismo etc.), por suas vinculações antinacionais e por sua ideologia reacionária, pode, tranquilamente, ser classificado como de tipo fascista. Enfim, o general Garrastazu, no primeiro trimestre de existência de seu governo, revela, em nível diferente, dificuldades semelhantes às dos outros dois governos que o antecederam: mostra-se incapaz de montar um sistema político compatível com o poA resistência política ao regime de 1964 – Resolução Política do CE da Guanabara...

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der militar que lhe deu origem, um sistema que legalize este poder – razão de sua força e fraquezas. III Nossa preocupação principal nesta discussão é, partindo de um momento concreto, ampliar o conhecimento sobre a natureza do regime, a maneira de combatê-lo e derrotá-lo, e, com base nisso, traçar as perspectivas para depois de sua queda. Nada melhor para isto do que a apreciação da política econômica do regime e da situação atual dela resultante. Porta-vozes oficiais estão constantemente proclamando com insistência os êxitos da política econômica do regime. Apresentam, em apoio a essas afirmações, dados quantitativos sobre o crescimento do país. O crescimento é um fato, e seria uma estultícia negá-lo. Um dos elementos essenciais da política do Partido é dado pela análise dos fatos. Há muito que ele se esforça para superar aquele tipo de primarismo que vê as esperanças do êxito de uma política revolucionária unicamente no caos e na catástrofe da política econômica das classes dominantes. Certo, os índices de desenvolvimento de alguns setores apresentam-se bem positivos quando feita a comparação entre os anos de 1963 e 1969: aço, 75% de aumento; energia elétrica, 61% de aumento da capacidade instalada e 56% do consumo; cimento, 52%; produção de petróleo, 71%; rodovias pavimentadas, 89%; unidades de habitação construídas, 120 mil nos vinte e seis anos anteriores e, nos últimos cinco anos (1964-69), 519.490. A essas cifras, sempre tomando os anos 1963/69, podemos acrescentar a elevação do número de alunos matriculados nas escolas (aumento de 40% no curso primário, de 12% no grau médio e de 158% no ensino superior), o aumento das exportações (de 60%) e dos incentivos fiscais para o desenvolvimento das regiões atrasadas do Norte e do Nordeste. O fato de haver crescimento, de não haver uma crise profunda, não significa que a política econômica não contrarie os interesses da maioria da nação e, mais particularmente, das grandes massas trabalhadoras. O que nos cabe discutir, portanto, é o tipo desse crescimento, ou, se se deseja uma expressão mais em moda, o modelo de desenvolvi90

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mento atualmente aplicado. Claro que não vamos discutir aqui, em profundidade, esta questão. Desejamos apenas dar algumas das suas características básicas, que mais ou menos nos indicam as linhas de resistência e as alternativas à política econômica do regime e à situação dela resultante. Antes de tudo, vamos esclarecer a filosofia do modelo. Ela visa, antes e acima de tudo, a vincular “a economia brasileira a um determinado sistema econômico de perspectivas mundiais”. “Essa grande estratégia... pretende opor ao avanço do mundo socialista e capitalista independente uma crescente coalizão de interesses econômicos, capaz de colocar os ‘sagrados’ princípios da propriedade privada acima de quaisquer considerações, até mesmo da soberania nacional”. Outro elemento importante desse modelo é manter o crescimento dentro de limites que dispensem, obviamente, as reformas de estruturas, substituindo-as por mecanismos que racionalizem o desenvolvimento capitalista dentro da linha preferida (ou imposta) pela matriz imperialista. Orientada por essa doutrina, a política econômica do regime criou uma situação que se caracteriza: Pelo crescimento dos setores monopolistas da economia. O desenvolvimento está sendo feito em benefício da grande empresa e do grande capital monopolista, principalmente estrangeiro. Nesse sentido, para citar apenas dois exemplos, estão os casos do setor bancário (entre 1964 e 1969 foram incorporados 51 bancos e 5 se fundiram) e da indústria automobilística. Esta orientação é, ao mesmo tempo, monopolista e entreguista, pois a centralização e a capitalização servem principalmente à grande empresa estrangeira e estão minando a capacidade de resistência de grande número de empresas menores, pequenas e médias. No Rio, em São Paulo e outros centros importantes tem aumentado grandemente, nos últimos anos, a partir de 1964, o número de falências e concordatas, sem falar nas empresas que se deixam absorver pelo grande capital. Os teóricos do regime justificam o fato alegando que só não resistem às medidas do governo “as empresas marginais do sistema, que não possuem estrutura adequada e dimensionam mal a inflação futura” (Delfim). A orientação monopolista dá margem à organização de uma importante linha de resistência à política econômica e ao regime autoriA resistência política ao regime de 1964 – Resolução Política do CE da Guanabara...

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tário que a patrocina. Ou melhor, possibilita a criação de uma frente antimonopolista como parte da frente única antiditatorial. Pelo confisco salarial. Segundo a FGV, o salário mínimo real (usando-se os preços por atacado como deflator), a preços de 1964, caiu de 42 cruzeiros novos naquele ano para 32,77 atualmente, ou seja, uma queda de ¼ (vinte e cinco por cento). Isto quer dizer que a taxa de acumulação está sendo aumentada mediante o confisco salarial. É a política de compressão de salários, tornada possível em virtude da repressão governamental, que reduziu, na prática, os sindicatos à impotência, e transformou a luta dos trabalhadores em caso de polícia. Este é um ponto da política econômica do governo que exprime, sem margem a dúvidas, a essência de classe do processo de fascistização inaugurado em 1964. A organização da resistência ao confisco salarial dá margem, principalmente, a organizar-se o antagonista histórico do regime, a classe operária, força capaz, pelo papel social que desempenha, de resistir e impedir sua consolidação, para depois derrubá-lo. Mas a organizar não somente a classe operária, como todos os trabalha­ dores assalariados. Pelo confisco tributário. A política de progressividade do imposto de consumo e do aumento das incidências, assim como o número de pessoas físicas tributadas pelo imposto de renda afetou, grandemente, o nível de vida das massas trabalhadoras e funciona como mecanismo de distribuição da renda em favor do grande capital, beneficiado pelo governo com isenções e subsídios diretos e indiretos. Este confisco, pelo número de pessoas que atinge, desperta grande oposição. É uma linha de oposição ainda difusa e que deve ser estimulada e organizada. Pelos critérios adotados para os investimentos estatais. Em geral, não é – ao contrário do que aconteceu com a Petrobras, Volta Redonda, Vale do Rio Doce etc. – o interesse nacional que comanda, hoje, os grandes investimentos do Estado brasileiro, como, em parte, aconteceu antes de abril de 1964. As empresas e os investimentos públicos, como está acontecendo em outros países, estão crescentemente atendendo ao amplo campo da criação das economias externas e da manutenção e melhoria da infraestrutura básica da indústria e dos serviços, imprescindíveis às empresas dominantes. 92

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A orientação atual – com a exclusão de alguns casos em que o resíduo nacionalista de antes de 64 se faz presente – implica, assim, numa contradição total às finalidades teoricamente assinaladas pelo movimento nacionalista para os investimentos e empresas públicos. A gritaria contra o estatismo, ainda presente na grande imprensa, visa apenas a confundir a questão e a quebrar certas resistências que, ou em setores isolados do governo, ou em grupos das Forças Armadas, sintonizam com a opinião pública contrária ao rumo pró-monopolista e antidemocrático imprimido aos investimentos e empresas estatais. Continua válida, nesse terreno, a defesa das empresas e investimentos públicos surgidos como alternativa ao capital estrangeiro. Devemos, portanto, distinguir entre os dois tipos de investimentos, antes de fixarmos qualquer posição ante casos concretos. Pela adoção de um tipo de relações econômicas internacionais altamente danosas aos interesses brasileiros. A subordinação de nossa economia aos planos da grande estratégia norte-americana veio acentuar de forma marcante nossa dependência ao imperialismo, cortando as tendências a um desenvolvimento autônomo que se manifestaram na política de relações econômicas internacionais do Brasil antes de 1964. O resultado da política atual foi continuar com o endividamento do país, a acentuação da desigualdade nas relações de troca (aumento do preço da tonelagem importada e diminuição do da exportada) e o aumento das remessas financeiras a título de lucros, juros, comissões, royalties, seguros e serviços. São claros os dados oficiais a este respeito. Há um sentimento generalizado contra o aumento da espoliação do país, que pode tomar forma na medida em que se organize a resistência à política entreguista da ditadura. O campo econômico, social e político para este trabalho é o mais amplo, inclusive nas Forças Armadas. Pela desnacionalização crescente da economia brasileira. A política oficial de “incentivos” à entrada de capital estrangeiro está propiciando a crescente desnacionalização da economia brasileira. O capital monopolista estrangeiro está ocupando pontos básicos da economia do país, transferindo para o exterior muitos de seus centros de decisão. A reação de empresários nacionais dos setores mais atingidos por esta invasão serve como indicador da profundidade do fenômeno. É uma linha de resistência que já existe, mas que precisa ser melhor coordenada. A resistência política ao regime de 1964 – Resolução Política do CE da Guanabara...

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Pela limitação de crescimento do mercado nacional. A obstinação da oposição do regime a qualquer reforma de estrutura está condenando o mercado interno a um crescimento lento e desequilibrado. A reforma agrária – pedra de toque da posição de qualquer política ante as reformas –, sobre a qual os governos da ditadura tantas vezes foram obrigados a falar, por pressão da opinião pública, vai sendo substituída, na linguagem oficial, por uma pretensa e vaga colonização de terras (veja-se entrevista recente do ministro da Agricultura ao JB). O resultado de tudo isso é que parcela considerável da população fica fora do mercado consumidor, por falta de emprego e falta de renda, enquanto a parte empregada tem seu poder aquisitivo empurrado para baixo em virtude dos confiscos salariais e tributários já referidos. Assim, o desenvolvimento econômico ou se volta para uma pequena faixa de 5% da população, de poder aquisitivo razoável, ou se destina à exportação (Dados do IBGE dão conta de que metade da população ativa do país, 14 milhões em 28 milhões de pessoas, é constituída de desempregados totais ou parciais). A limitação do mercado sugere várias linhas de resistência. Seria difícil, no momento, determinar concretamente essas linhas. Em conclusão, diremos que o tipo de desenvolvimento que a ditadura está tentando imprimir ao país, antes de mais nada o afasta das grandes opções. O modelo por ela esboçado, de inspiração externa, em lugar de possibilitar a transformação da sociedade brasileira, deseja apenas ordenar o crescimento nacional e evitar os momentos de tensão, mediante a modernização do sistema e o emprego de técnicas sofisticadas. É difícil, hoje, com o precário instrumental de análise que temos, predizer até que ponto irá o regime atual. Mas uma coisa podemos desde já afirmar: serão altíssimos os custos sociais de qualquer resultado que ele venha a obter. IV Para uma avaliação correta do momento político, avaliação indispensável ao trabalho do Partido a curto, a médio e a longo prazos, um dado a ser examinado é a situação em que se encontra a oposição à ditadura após o AI-5. 94

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O movimento de oposição experimentou, em 1968, um considerável avanço, em termos de dinamização de suas forças sociais e políticas. Essa dinamização, que era apenas início de formação de uma oposição de massas, não chegou a ter tempo de se traduzir em organização, embora, àquela época, não fossem poucos os que a superestimassem, partindo daí para a conclusão de já haver então chegado a hora da ofensiva geral contra a ditadura. Os fatos posteriores mostraram a falsidade dessa apreciação. O AI-5 foi um rude golpe contra a oposição. A resistência ao processo de fascistização do país se faz agora de posições mais difíceis, em virtude do recuo do movimento de massas, em 1969. As medidas de repressão, depois de 13 de dezembro de 1968, atingiram particularmente a luta dos trabalhadores, dos estudantes e da Igreja Católica. Essa retração do movimento de massas influiu negativamente em toda a oposição e aumentou a sua dispersão: as correntes burguesas e pequeno-burguesas, principalmente as suas cúpulas, se retraíram. Os focos de resistência criados na ascensão de 1968 (nos sindicatos, nas escolas, na imprensa e no parlamento), em defesa da liberdade de manifestação, contra a censura e o terror cultural, em defesa das riquezas naturais do país, contra a desnacionalização da indústria etc. foram praticamente liquidados ou reduzidos a um mínimo. O movimento de resistência ainda busca neste momento novas formas e caminhos para se expressar, para criar, enfim, os seus novos focos de irradiação. Cabe aqui, finalmente, uma observação especial sobre a situação das esquerdas dentro da oposição. Para essas forças, a pior consequência da inflexão do movimento de massas foi o rápido incremento das posições radicais. Não foram poucos os grupos revolucionários pequeno-burgueses que não souberam recuar ante o avanço da contrarrevolução, passando do radicalismo verbal às posições de desespero e aventura. Iniciaram essas correntes uma série de atos que se explicam, antes de tudo, pela sua incapacidade para enfrentar a tarefa de reestruturar o movimento de massas nas condições difíceis criadas pelo avanço da repressão fascista. Os assaltos a bancos, os golpes de mão e outras formas de ação postas em prática por pequenos grupos desligados das massas, enfim, o emprego indiscriminado da violência, embora compondo objetivamente o quadro da oposição, não deixam, apesar de seu suposto caráter revolucionário, de desservir à reA resistência política ao regime de 1964 – Resolução Política do CE da Guanabara...

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sistência e de dificultar a organização da frente única de massas contra a ditadura. Em uma palavra, enfraquecem a oposição. O trabalho paciente, cauteloso e demorado de organização da classe operária e do povo, de sua preparação para enfrentar uma luta prolongada, se assim for preciso, que constitui para o nosso Partido uma alta virtude revolucionária, não passa, para aqueles grupos, de um pecado mortal oportunista. É esse o quadro da oposição. Quadro que explica porque a ditadura, apesar de suas fraturas e instabilidade, ainda encontra meios e formas para avançar no processo de fascistização. Quadro que se modificará, com maior ou menor ritmo, a partir do momento em que o processo político, permitindo uma reflexão mais profunda da oposição sobre sua experiência, indique-lhe a maneira de usar sua imensa potencialidade para organizar os combates e a batalha final contra a ditadura. V O exame até aqui feito sobre as forças presentes e em conflito na sociedade brasileira induz a um otimismo realista em relação à formação de uma frente antiditatorial. Essa conclusão, juntamente com a de que não é fácil a consolidação do regime atual, não autoriza, porém, qualquer atitude política alicerçada na subestimação dos suportes da ditadura. Quando dizemos que a ditadura se isola de determinadas forças políticas, não estamos, ipso facto, prevendo a sua queda imediata. Queremos tão-somente significar que surgiram novas dificuldades para o regime, que podem aumentar ou desaparecer, em dependência dos erros ou acertos de seus opositores. O dimensionamento das dificuldades atuais do regime, em confronto com a capacidade de ação da oposição, indica que elas não são de natureza a prever a derrocada da ditadura em curto prazo. E os fatos decisivos que conduzem a tal conclusão são o retraimento do movimento de massas e a dispersão da oposição. Usando uma outra fórmula, diremos o seguinte: se os fatores temporários ainda favorecem o processo de fascistização, a nossa tática só pode necessariamente ser defensiva, de resistência tenaz e, se preciso, prolongada. Temos, 96

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portanto, que trabalhar com essa perspectiva, afastando de nosso Partido e, se possível, das demais forças da oposição, quaisquer ilusões sobre uma vitória fácil sobre a ditadura. Os dados de que dispomos não nos autorizam a prever o tempo de duração do regime atual. É claro que o nosso problema não é ficar especulando abstratamente sobre a vida mais curta ou mais longa da ditadura, não é subordinar nossa luta de resistência aos resultados dessa indagação. Mas a especulação é válida, desde que dê à oposição um elemento de referência – as probabilidades de maior ou menor duração da ditadura – para que ela possa determinar o ritmo e a intensidade de sua ação. Se não prevemos uma queda fácil e imediata da ditadura, temos, como Partido revolucionário, de subordinar nossa ação política e o trabalho de organização a uma tal realidade. A perspectiva é a de nos prepararmos, tanto no plano da atividade política como no da organização, para um trabalho em profundidade, cujos resultados só serão colhidos depois de um período de maturação. Um trabalho adaptado a uma situação de violenta reação política, em que a luta de resistência surgiu como decorrência de uma série de derrotas e desgastes impostos ao movimento revolucionário, nacional e democrático. Nossa ideia de resistência apoia-se no fato de existir no Brasil um sentimento generalizado de repulsa à ditadura, abrangendo as mais diversas classes e camadas sociais, mas disperso e desorganizado. Devemos partir de ações parciais, em todos os níveis do movimento de massas ou dos acordos de cúpula, a fim de conseguir que aquele sentimento passivo vá tomando forma, pouco a pouco, até se transformar num grande movimento nacional, em frente única, que englobe os sindicatos, o movimento estudantil, a Igreja Católica, os partidos e os políticos da oposição – um movimento que expresse, em nível superior, a rebeldia brasileira contra o processo de fascistização do país. Cabe salientar em relação ao esforço destinado a impulsionar a luta de resistência, nas condições atuais, a valorização a ser dada às pequenas ações, mesmo nos casos em que estas só indiretamente se oponham às medidas da ditadura. O que não podemos é condenar a A resistência política ao regime de 1964 – Resolução Política do CE da Guanabara...

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oposição ao imobilismo na espera das grandes tarefas ou do dia supremo. A constante preocupação em descobrir e organizar a resistência concreta das massas contra determinados atos do regime ditatorial é o melhor antídoto para evitar os apelos à luta abstrata ou à resistência indeterminada. Desses apelos ao palavrório radical desligado de qualquer objetivo real, basta apenas dar um passo. Os protestos contra o ato do governo que instituiu a censura prévia à publicação de livros e periódicos são um exemplo atual e palpitante de resistência concreta. Há, na luta de resistência limitada da fase atual, o risco de o Partido desprezar sua estratégia. Mas isto será evitado desde que subordinemos as ações de resistência ao objetivo central de formação de uma frente única nacional antiditatorial. Assim, o Partido será resguardado e não incorrerá no erro de minimizar sua ideia estratégica, “diluindo-a em uma tática quase cotidiana”. Trata-se, agora, de incrementar e multiplicar o aparecimento de focos políticos de resistência, a fim de romper com a passividade das massas e passar da defensiva à ofensiva, até atingir o ponto em que se coloque na ordem do dia o ataque geral contra a ditadura. É nesse momento que se dará o fim do processo de fascistização, com a liquidação da ditadura: 1. ou através de um movimento irresistível que mobilize a opinião pública, atraia para o seu lado uma parte das Forças Armadas e organize um levantamento nacional (com maior ou menor emprego da violência); 2. ou através da desagregação interna do poder, sob o impacto do movimento de massas e depois de crises sucessivas, forçando uma parte do governo a facilitar a abertura democrática; 3. ou pela predominância e vitória, nas Forças Armadas, da corrente nacionalista, capaz de superar e liquidar o conteúdo entreguista do regime, nos moldes concebidos pela ESG e aplicados pelos altos chefes militares no mando do país, a partir de 1964. Em relação à terceira hipótese, cabe um esclarecimento. No caso de surgir uma situação semelhante, é de se prever que a corrente nacionalista vitoriosa, mesmo negando o traço fundamental do regime 98

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atual – sua subordinação à estratégia americana de controle do mundo capitalista –, tentará manter o poder militar autoritário, como instrumento para a realização de seu projeto de afirmação nacional. Mas esse poder, penetrado de um novo conteúdo, na medida em que aguce seu confronto com o imperialismo, tornar-se-á carente de amplo apoio popular e permeável, por isso mesmo, às reivindicações de ordem democrática. É claro que as saídas acima apontadas são, como não poderiam deixar de ser, bastante esquemáticas. São hipóteses para o trabalho político, tanto mais úteis quanto expressem com maior rigor as tendências reais do processo político em curso. De qualquer forma, a queda do regime atual poderá assumir o caráter de uma verdadeira revolução antifascista, com a derrota e afastamento do poder das forças e camadas políticas e sociais mais reacionárias do país. VI O AI-5 teve profundas consequências na Guanabara. Podemos dizer que um dos seus objetivos primordiais foi esmagar o movimento político das massas, em oposição aberta ao regime, que ganhou corpo no estado a partir do início de 1968. O mesmo já ocorrera por ocasião do AI-2, que teve como finalidade contrabalançar o golpe que o povo carioca desfechou contra a ditadura nas eleições de 1965. Isto significa que a GB tem sido, até aqui, o mais importante foco de resistência ao processo de fascistização do país. Mostra, simultaneamente, a grande responsabilidade, de caráter nacional, das forças antiditatoriais do estado. Os êxitos ou fracassos na organização de uma oposição de massas ao regime na Guanabara repercutem rapidamente em todo o território nacional. A primeira e mais importante consequência do golpe de 13 de dezembro de 1968 foi a dispersão do bloco oposicionista estadual. Abateu-se sobre o povo da GB a mais feroz reação: recesso forçado da Assembleia Legislativa, cassações e prisões de líderes políticos, de trabalhadores e estudantes, controle policial dos sindicatos, fortalecimento dos órgãos de segurança estaduais e federais e terror cultural contra os intelectuais. A resistência política ao regime de 1964 – Resolução Política do CE da Guanabara...

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O movimento de massas foi obrigado a recuar e, só aos poucos, vai encontrando novas formas para se expressar na situação de extrema reação criada pelo AI-5. O Partido sentiu também esses golpes e, como é natural, teve que introduzir modificações na organização de sua atividade política e de sua vida interna. Seu trabalho decresceu, como não podia deixar de acontecer, e só aos poucos ele vai conseguindo romper com as dificuldades criadas pelo AI-5. Além disso, as dificuldades políticas do Partido (e de toda a oposição) são acrescidas pela atividade desorganizadora e anárquica dos grupos radicais que, através de ações isoladas de pequenos grupos de conspiradores e em dissonância com o estado de espírito das massas, motivam o terrorismo do governo (fornecendo argumentos para justificar a chamada “guerra revolucionária”), confundem a opinião pública e, assim, entorpecem os esforços que, juntamente com outras forças, realizamos para estruturar a frente antiditatorial. Ao lado das medidas repressivas, o povo da GB é um dos mais sacrificados pela política econômica do regime. Basta atentar, neste sentido, para o que vem ocorrendo no estado: diminuição do número de empregos industriais (caindo de 201 mil para 199 mil pessoas, entre janeiro e outubro de 1969), aumento dos preços da alimentação (subiu 30%) e dos serviços públicos (aumento de 31%), aumento progressivo das falências e concordatas, a partir de 64, elevação brutal do número de despejos, aumento da carga tributária etc. Outro ponto da política econômica do governo que atinge a GB é a sua orientação pró-monopolista, e isso em virtude, principalmente, do dimensionamento médio e pequeno da maioria esmagadora das empresas industriais do estado. Essas indústrias se ressentem fortemente com os favores oficiais concedidos aos setores monopolistas da economia. E é nisso, talvez, que se encontra uma das razões para explicar o chamado esvaziamento da Guanabara. Dentro desse panorama surgem, na GB, duas importantes questões políticas: as próximas eleições e a sua fusão com o estado do Rio. Nos próximos pleitos, serão escolhidos, em eleição indireta, o governador, e, em eleições diretas, os deputados estaduais, federais e senadores. A ditadura está adotando uma série de medidas fascistas para 100

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evitar, em torno das eleições, os contatos e a movimentação políticos que certamente determinarão um impulso para o acordo de pontos de vista e a ação comum das forças de oposição. Acautela-se contra a possibilidade de as eleições se transformarem em elemento de contestação do regime, mesmo em escala reduzida. As eleições apresentam, assim, nas condições atuais, um duplo aspecto: de um lado, são mantidas porque o processo de fascistização não teve força para suprimi-las totalmente; de outro, porque ajudam a mascarar o caráter fascista da ditadura e a diminuir certas tensões políticas (conflito aberto com a direita liberal), que poderiam ser fatais ao regime atual. Conscientes de tudo isso é que vamos trabalhar nas eleições. Os obstáculos à atividade política, em torno das eleições, tornam-se ainda mais evidentes quando consideramos a imensa apatia popular em relação às mesmas. O fato é que temos de empenhar-nos, desde já, junto às forças de oposição no estado, para pôr em andamento nossa tática eleitoral. Levando em conta a força da ditadura, julgamos difícil colher, de imediato, grandes lucros políticos das eleições. Mas não podemos subestimar sua importância: abrem-se respiradouros, por menores que sejam, para a manifestação da vontade das massas e ampliam-se as possibilidades de criação de novos focos de resistência à ditadura. Devemos, por isso, preparar imediatamente as candidaturas que apresentaremos ou apoiaremos, intensificando, ao mesmo tempo, as alianças políticas, organizando os contatos com líderes e cúpulas políticas e selecionando os quadros e recursos materiais para sustentar esta atividade. Agindo, é claro, sem perder de vista que o trabalho eleitoral é apenas um momento, e nada mais do que isto, do nosso esforço para a formação, na GB, da frente antiditatorial. É uma atividade que deve reforçar e ser reforçada pelas demais frentes de trabalho: sindical, estudantil, favelas, cultural etc. Chamamos, em último lugar, a atenção para a possibilidade que as eleições abrem para se estimular as crises e cisões no sistema de forças do governo, crises que minam e enfraquecem os seus suportes políticos. A questão da fusão não pode, hoje, ser discutida academicamente, no plano técnico e histórico. Quanto a esses aspectos da questão, os A resistência política ao regime de 1964 – Resolução Política do CE da Guanabara...

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menos relevantes no momento, diremos apenas que a fusão, por si só, não representaria um meio ou garantia de solução para os problemas econômicos, sociais e administrativos dos dois estados. No contexto político atual, porém, a ótica de exame do problema é outra, completamente diferente. Diremos, de forma sintética, que, na medida em que a fusão signifique um ato da ditadura, com a finalidade de diminuir a potencialidade política da GB como grande foco de resistência ao processo de fascistização do país, ela deve ser denunciada e tenazmente combatida. A denúncia e a mobilização das forças políticas do estado podem paralisar a ação da ditadura. Se isto não acontecer e a fusão for arbitrariamente realizada, ainda assim aquela ação não terá sido em vão: o ato será catalogado como mais um passo do regime para implantar, na vida nacional, o regime do partido único. Pois tudo indica que, com a fusão, deseja-se, na realidade, extinguir o mais dinâmico centro do partido da oposição no país. As linhas aqui traçadas exigem modificações na organização e na forma de trabalho do Partido na GB. Algumas dessas modificações e adaptações são sugeridas no plano de trabalho de nosso Partido para o estado. Outras questões essenciais, como o velho problema da criação do Partido nas grandes empresas, de sua propaganda, do emprego racional de seus quadros, dos critérios de concentração etc. devem ser confiadas a grupos de trabalho, em virtude das pesquisas e estudos que exigem para ser solucionadas. O importante, no momento, é quebrar a passividade e a apatia que se apoderam de vários setores do Partido, despertando-os para organizar a resistência do povo ao avanço do processo de fascistização do país. Indicamos, nesse sentido, as linhas de trabalho que se seguem. 1. Na frente sindical: luta contra o “arrocho salarial”, contra a intervenção aberta ou mascarada nos sindicatos, contra o aumento dos impostos e contra a liquidação dos direitos e garantias existentes. 2. Na frente estudantil: luta para dar aos estudantes o direito de gerirem suas organizações e de realizarem livremente suas reuniões e assembleias nos locais de estudo; luta pela revogação do 477 e contra o terror dentro das universidades e colégios; luta pela libertação dos estudantes presos. 102

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3. Na frente econômica: resistência à política de privilégios para o setor monopolista da economia (principalmente os estímulos ao capital estrangeiro); resistência à entrega das riquezas naturais brasileiras, resistência à desnacionalização das empresas brasileiras; e luta em defesa da Petrobras e das empresas estatais. 4. Na frente cultural: luta pela liberdade de criação e de pesquisa; resistência ao terror cultural e à censura ao trabalho de criação artística, de divulgação e de informação. 5. Na frente eleitoral: luta para dar aos partidos políticos liberdade para escolher seus candidatos, livres da interferência do governo e da pressão dos órgãos de informação; luta para assegurar a liberdade de propaganda para os candidatos, com a realização de comícios e garantia de acesso aos meios de informação de massas; luta para estabelecer contato com todas as correntes, partidos e grupos de oposição na GB e, antes de tudo, com o MDB e os católicos. 6. Na frente de solidariedade: organização de ajuda aos presos e suas famílias; denúncia sistemática das torturas; luta para garantir a assistência jurídica aos processados. 7. Na frente das liberdades civis: luta pelo restabelecimento do habeas-corpus. Aferrando-nos a essas linhas, iremos pacientemente reestruturando e recriando, nas difíceis condições atuais, as grandes correntes do movimento político de massas da Guanabara, o movimento operário e sindical, o movimento estudantil, o movimento cultural e o movimento de funcionários públicos e empregados. Essa atividade deve ter como suporte um trabalho de propaganda forte e bem estruturado. Isto é indispensável ao aprendizado político das massas e concorrerá para despertar no povo um estado de ânimo favorável à organização da resistência ao processo de fascistização. Deve, então, ser uma propaganda que desvende o caráter antinacional e antidemocrático do governo atual, uma propaganda que torne os trabalhadores conscientes de serem eles a força política e socialmente mais qualificada para liquidar o regime criado pelo golpe de 1964. Uma propaganda, enfim, capaz de esclarecer, nos mínimos detalhes, que, sem a liquidação do poder autoritário e militarista, são praticamente nulas as A resistência política ao regime de 1964 – Resolução Política do CE da Guanabara...

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possibilidades de ascensão dos trabalhadores à vida política e social da nação, acentuando-se a situação de marginais da sociedade brasileira em que foram colocados depois de abril de 1964. É claro que não há nenhuma organização do Partido capaz de sozinha, engajar-se, nas presentes condições, na realização desse elenco de tarefas. Cabe a cada uma fazer suas opções, levando em conta suas possibilidades e as situações que se apresentem.

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Apresentação à Resolução Política do Comitê Estadual da Guanabara do PCB (março de 1970)*

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m 1970, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) vivia um momento de grandes dificuldades políticas. E não era diferente a situação dos comunistas da antiga Guanabara, cujo Comitê Estadual havia sido eleito em 1967, na conferência preparatória do VI Congresso do Partido. A derrota do movimento de massas em 1968-1969 e a promulgação do AI-5, que liquidou os últimos restos de liberdades existentes no país, após o golpe de 1964, colocaram as correntes políticas e o movimento operário e popular perante uma situação nova e complexa. As formas de luta e de organização que as forças democráticas deviam adotar a partir de posições necessariamente defensivas, de resistência impostas por derrotas sucessivas após 1964, e principalmente no período que se seguiu ao insucesso político de 1968, nem sempre foram assimiladas com a rapidez que a situação do país exigia. Faltaram para isso a todas essas organizações – e entre elas o PCB – lucidez e agilidade políticas. Muitos – pessoas e organizações –, levados pelo desespero e pela falta de perspectiva, se deixaram arrastar, com base numa análise falsa, para as posições da luta armada e do uso indiscriminado da violência, como formas únicas e exclusivas de ação política no combate para liquidar a ditadura. A um tal comportamento não estiveram alheios militantes e setores do PCB que posteriormente dele se desligaram. Em 1970, apesar da condenação do VI Congresso ao “foco guerrilheiro” e a outras formas de luta que não apresentavam caráter de massa, ainda tinham influência nas fileiras do PCB muitas das ideias defendidas pelos “foquistas”. Parcialmente influenciados por tais ideias, muitos membros do PCB vacilavam em realizar esforços para reconstruir o movimento de massas e, assim colocar em prática a linha de resistência ao processo de fascistização do * Revista Temas de Ciências Humanas, n. 10, São Paulo: Ciências Humanas, 1981. 105


país, executado pelo regime mais abertamente após a adoção do AI-5. Essa não era certamente uma tarefa simples nas condições de repressão e terror então existentes; mas era o único caminho possível e viável para a resistência e o gradativo avanço das forças democráticas. Foi para reagir a esse momento de dificuldades e confusões que a Comissão Política do CE da Guanabara decidiu lançar o documento de março de 1970. Tratava-se, de um lado, de um esforço para colocar em prática a linha aprovada pelo VI Congresso e, de outro, para dar continuidade à tradição do Partido no estado de ligação com as massas e de alianças com um amplo arco de forças democráticas e liberais. Para a elaboração do presente documento, de minha autoria, foi decisiva a participação que pude ter nas discussões realizadas no interior da Comissão Política do CE, integrada também, entre outros, por Élcio Costa e João Massena de Mello, ambos eliminados pela ditadura durante os anos da repressão sangrenta de 1974/76. Depois de elaborado, o documento foi aprovado por unanimidade na Comissão Política e no Comitê Estadual, praticamente sem qualquer emenda. Ao republicá-lo hoje, é relevante observar que algumas das teses nele defendidas só seriam levadas em consideração pela direção nacional do PCB, alguns anos mais tarde, em 1973. Pode-se constatar também o acerto da análise e das previsões, o que é mais significativo quando se pensa que aquela era praticamente a primeira intervenção dos comunistas no novo quadro inaugurado com a edição do AI-5 e com o início do “milagre brasileiro”, com todas as suas consequências e características. O texto resistiu ao tempo, dez anos após sua publicação. Exatamente por isso, o documento não pode deixar de ser lido se se deseja conhecer um pouco da história da ação e das concepções do PCB, durante os anos mais negros do regime criado pelo golpe de 1964. Vem daí a ideia de republicá-lo. Ao fazer isso, cumpre registrar, alto e bom som, que o documento não existiria sem a atividade do conjunto do Partido na Guanabara, em particular de seus organismos dirigentes e de base. Foi em nome dessa atividade, integralmente voltada para a organização da classe operária e das massas do Brasil e para a conquista de uma democracia que se abrisse para o socialismo, que diversos companheiros foram presos, torturados e mortos, amargaram o exílio e tiveram suas vidas destroçadas. A eles, pois, e em particular a Élcio Costa e João Massena de Mello, deve ser sempre dedicado o documento que se segue. 106

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3 A transição democrática



Construir uma saída para a crise, eis a tarefa atual para as forças democráticas*

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m quadro novo na realidade do país. A participação dos interesses populares no estabelecimento de um pacto nacional pela democracia. O regime, suas manobras e ameaças, suas cisões diante do crescimento das forças democráticas. As greves de São Paulo no contexto das lutas nacionais. A livre organização partidária e sindical, a legalidade do PC, características de um regime democrático. Propostas para as questões concretas atuais. A nação está rasgando a camisa de força da opressão. A vontade da maioria dos brasileiros impõe que vivamos um tempo de mudanças. Não de mudanças que transformam aparentemente tudo para evitar que tudo se transforme. As forças que assim o querem são ainda poderosas e dispõem de trunfos consideráveis, em primeiro lugar do poder estatal, mas são cada vez mais incapazes de submeter nosso povo a seus projetos, suas conveniências, seus interesses mesquinhos da forma como fizeram nos últimos 14 anos. Grupo algum da sociedade pode hoje ditar o que será feito. Passou o tempo em que a ditadura, em nome de um falso conceito de segurança nacional e através da violência, podia reservar-se a última palavra, substituir o debate e o confronto de interesses por um sistema de governo em que tudo é permitido a alguns poucos e tudo é negado aos outros muitos. A ditadura não acabou. Isso não acontece da noite para o dia. Mas a ideia de que ela acabará, que veio crescendo e generalizando-se na consciência de dezenas de milhões de brasileiros após as eleições de 1974, ganha agora seus primeiros contornos reais. Já se pode quase * Voz Operária, n. 147, jul./1978. 109


vislumbrar o processo que conduzirá ao seu fim e à construção de um novo regime, onde primem as liberdades democráticas. A resistência à ditadura nem sempre apareceu à flor da pele, como agora. Mas esteve sempre nas entranhas da sociedade brasileira, como revelam as greves dos metalúrgicos paulistas. Hoje, a dinâmica do movimento antiditatorial suplantou a dinâmica do regime implantado pelo golpe contrarrevolucionário de 1964. O momento em que ingressaremos numa fase de transição pode estar se aproximando. Longe de implicar em relaxamento, dispersividade e euforia, isto nos conduz a preconizar a maior seriedade, a aplicação em buscar os caminhos e criar os meios de superar este regime de pesadelo. Nada está resolvido. É preciso preparar-se, com lucidez e responsabilidade, para construir uma saída. O elemento espontâneo, sempre presente na origem dos grandes movimentos sociais, não basta para conduzir a soluções concertadas. Na hora de negociar, de estabelecer um compromisso nacional com a democracia, os interlocutores sociais e políticos estarão armados, na medida de suas próprias possibilidades, com intenções bem definidas. Uma nova luta terá lugar. Que ela se dê em condições diferentes das que nos foram impostas nestes 14 anos e que os interesses populares possam expressar-se com suficiente força política: aí está o ponto nevrálgico. Em meio às crescentes dificuldades provocadas pela aplicação de uma política antidemocrática e antipopular, o governo Geisel preparou-se para assegurar a continuidade do regime. Por um lado, através da fixação de um novo quadro institucional, com que pretende em vão responder aos anseios de democratização. De outro lado, mediante a escolha do sucessor de Geisel, o chefe do SNI. Ao mesmo tempo, tratava-se, para a ditadura, de recolocar a Arena em situação de poder disputar vantajosamente as eleições de 15 de novembro próximo, entregando ao partido oficial a bandeira de uma “redemocratização” mais que controlada, conduzida pelo senador Petrônio Portela sob o olhar vigilante do núcleo militar do regime. A candidatura do chefe do SNI transformou-se assim no desdobramento lógico, em nível presidencial, da “missão” Portela e das medidas de suavização institucional que o governo decidiu apresentar ao país após o término dessa “missão”.

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Com tais projetos, o regime revelou desconhecer inteiramente o momento político em que vive o país. Os anseios de democratização existentes hoje no Brasil e que se encontram em todas as classes, camadas e grupos da sociedade brasileira, são bem maiores e vão muito além do limitadíssimo alcance das medidas apresentadas pelo go­ verno ao Congresso. Tende a aumentar, assim, o descompasso entre o sentimento geral da nação e aquilo que a ditadura foi obrigada a conceder desde que a cristalização do regime se tornou impossível. As medidas anunciadas por Geisel caíram no vazio porque estão muito aquém do que é hoje o centro das aspirações da imensa maioria do povo brasileiro: a organização e o funcionamento de um regime efetivamente democrático, que restabeleça o pleno direito de representação popular sistematicamente negado há 14 anos. É claro que, se a propalada “liberalização” não conseguiu criar um consenso mínimo através da satisfação da aspiração democrática, seriam previsíveis as dificuldades que encontrou e encontra a candida­ tura oficial para se consolidar. O processo que levou à escolha dessa candidatura e seu conteúdo político – reformas que absolutamente não correspondem às necessidades políticas nacionais – restringiram ainda mais as bases de sustentação política e mesmo militar do regime. A definição oficial da sucessão, o anúncio público das reformas e a escolha dos futuros governadores e senadores arenistas deveriam ter reforçado a coesão interna do partido do governo, segundo os cálculos do regime, reforçando assim a própria posição do chefe do SNI como novo polo da unidade arenista. Aconteceu o contrário. Velhas divisões eclodem e novas divisões aparecem. Uma rebelião aberta conduziu à derrota do candidato indicado pelo general Figueiredo na convenção da Arena paulista, enquanto o governo assiste, impotente, a multiplicação das cisões dentro do partido que deverá, teoricamente, assegurar a eleição do ungido oficial à Presidência da República e garantir a maioria parlamentar do próximo período presidencial. E já está se tornando muito difícil para o regime acenar com o emprego da força ou chegar à sua utilização efetiva para a resolução dos conflitos dentro do seu próprio campo.

A transição democrática – Construir uma saída para a crise, eis a tarefa atual...

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O consenso que existia no Alto Comando e que garantia a suposta homogeneidade antidemocrática das Forças Armadas começa a desaparecer, substituído por algo que ele hoje apenas encobriria: o mal-estar que também existe entre os militares. Indica-o a necessidade sentida pelo ministro do Exército de vir a público anunciar a fidelidade e o engajamento do Exército à candidatura oficial. Atesta-o também o surgimento, na disputa pela Presidência, de uma candidatura militar contrária à do chefe do SNI. A candidatura do general Euler Bentes Monteiro não se apresenta apenas como uma contestação à candidatura do general João Batista Figueiredo. Ela contém elementos visíveis de hostilidade à política do regime. Se o lançamento anterior da candidatura do senador Magalhães Pinto e as sucessivas divisões e rebeliões da Arena atestam a impotência do governo para manter a unidade de sua base política, a candidatura do general Bentes é a evidência de que esta impotência está se transferindo também para a base militar do regime. O regime está perdendo aquilo que foi algo de essencial na história da ditadura brasileira: o controle de seus próprios processos e mecanismos de sucessão presidencial. Hoje, já não se consegue impor ao país uma nomeação a general-presidente, como aconteceu com Costa e Silva, Médici e Geisel: o povo resiste e reage cada vez mais e, por isso, aumentam a resistência e a reação das forças políticas, provocando deslocamentos de opinião importantes dentro das Forças Armadas e fazendo com que setores e personalidades militares se aproximem ou passem a integrar o campo de resistência democrática. As últimas greves realizadas em São Paulo, mobilizando dezenas de milhares de metalúrgicos em unidades industriais vitais do aparelho produtivo nacional, não são nem um simples acidente histórico nem, menos ainda, algo que se inscreve na normalidade das relações entre patrões e empregados, como se apressou a declarar o ministro do Trabalho. Diálogo, a classe operária sempre buscou: os encontros, reuniões e congressos de dirigentes sindicais sempre procuraram apontar soluções e medidas que visavam a diminuir o grau insuportável de miséria das massas trabalhadoras no Brasil. Mas a classe operária conheceu, ao longo do tempo, as duras respostas que o regime, com o apoio

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dos patrões, deu às tentativas de diálogo: arrocho salarial e violência para manter a política de exploração e monopolização crescentes. Normalidade de uma ação grevista nos quadros de um regime como o brasileiro? A verdade é que, diante do grau de coesão, de combatividade e de maturidade revelado pelos grevistas, o governo recuou e foi derrotado, pois este governo é a encarnação de um regime que nunca aceitou a greve como meio de expressão legítima da classe operária e que sempre reprimiu quaisquer tentativas grevistas com a violência mais aberta. Os operários paulistas mostraram o que valeu o aprendizado de uma resistência longa, paciente, cautelosa, mas nem por isso menos inequívoca. O movimento grevista de São Paulo conseguiu atravessar a contento três momentos igualmente difíceis e cheios de armadilhas: eclodir, desenvolver-se e obter uma solução. Ele mostrou ainda, dada sua inserção singular no processo político nacional, o papel decisivo que a classe operária tem a desempenhar na construção da democracia. Ficou claro que nenhuma força política, que ninguém poderá organizar um regime democrático em que não sejam reconhecidos os direitos essenciais dos trabalhadores, como o direito de greve e a liberdade de organização sindical. É também cada vez mais claro que a livre organização das forças e correntes políticas deverá caracterizar um regime democrático. Os comunistas lutarão para a plena aplicação deste princípio. Lutarão, portanto, pela legalidade do Partido Comunista Brasileiro. Legalidade que, uma vez conquistada, será um elemento essencial para definir o grau de normalidade democrática da vida brasileira. O alargamento do campo das forças democráticas, que é o elemento principal do quadro em que hoje vivemos, coloca a questão central da unidade deste campo e das relações entre as diversas forças que o compõem. A convergência dos diferentes movimentos de oposição, no seu choque com o regime, está desembocando na criação de uma frente capaz de expressar aquilo que é efetivamente comum a todas as forças e segmentos oposicionistas: o desejo de substituir o atual regime por um regime democrático. Nesta medida, uma frente que incorpore movimentos que partem de associações de profissionais liberais, como a A transição democrática – Construir uma saída para a crise, eis a tarefa atual...

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Ordem dos Advogados, que incorpore o movimento oposicionista da Igreja Católica, dos estudantes, dos intelectuais, das mulheres, dos militares e, sobretudo, das massas trabalhadoras, através de suas organizações sindicais, é necessariamente mais ampla que o partido legal de oposição, o MDB. Entretanto, ninguém pode subestimar o papel fundamental que o MDB deverá desempenhar na organização e dinamização desta frente, como canal de expressão político-parlamentar e eleitoral dos diversos movimentos que podem integrá-la. Mas, para que isso ocorra, para que o MDB possa ser um polo ativo de organização desses movimentos, a manutenção e o aprofundamento de sua própria unidade interna tornam-se vitais. Não se pode pensar em organizar uma frente pela democracia no Brasil, através da divisão do partido legal de oposição, num momento em que o regime, sentindo seu isolamento, procurará certamente criar divisões no campo democrático. Essa unidade é condição para uma ampla vitória nas eleições legislativas de novembro. A derrota do regime, em tais eleições, será a melhor garantia do fortalecimento da oposição em seu conjunto. Os pontos programáticos do MDB podem, assim, servir como uma base de negociação para a constituição de uma frente democrática nesta conjuntura, respeitados, evidentemente, os pontos específicos de reivindicação de cada segmento. Os comunistas consideram que só um amplo entendimento entre todos os grupos, setores, correntes e personalidades que se empenham na luta pela democracia no Brasil pode traçar os rumos e fixar as diretrizes que deverão nortear a formação e o desenvolvimento de uma frente pela democracia. A acumulação de forças, que ora se processa no campo democrático, aliada à aceleração do desgaste do regime, permite uma avaliação nova da questão eleitoral. Já não se trata mais, como ocorreu em eleições passadas, parlamentares e presidenciais, de exprimir nas urnas e no Congresso um voto de repúdio ou protesto. Assim sendo, o problema não se situa, hoje, no lançamento de uma anticandidatura para a Presidência da República. Os comunistas acreditam que as forças oposicionistas podem lançar uma candidatura que, através de sua pregação democrática, constitua um fator importante de impulsionamento da luta oposicionista, facilitando a construção de 114

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uma frente pela democracia e sendo, por isso mesmo, capaz de atrair novas forças e setores para o bloco democrático. Consideramos que as diversas correntes e setores oposicionistas devem examinar esta questão da maneira mais aberta possível, sem preconceitos de nenhuma espécie. O que interessa, hoje, é unificar e ampliar o campo democrático, e qualquer candidatura, civil ou militar, da ativa ou da reserva, que atender a este requisito básico, poderá tornar-se, a nosso ver, a candidatura das forças democráticas à Presidência da República. Mas o momento privilegiado de manifestação da oposição à ditadura e dos anseios democráticos será a eleição direta de novembro. É, nas condições atuais, o canal mais amplo de participação popular. As eleições parlamentares de 1978 poderão adquirir uma dimensão até aqui imprevista, dada a aceleração do ritmo da vida política brasileira. O que não se pode conceber é que elas percam nem um grama do conteúdo político que já têm. Elas podem ser travadas de tal modo que a campanha eleitoral reflita já a existência de uma frente democrática que é, certamente, amplamente majoritária no país, permitindo, ao mesmo tempo, a incorporação crescente das massas populares e da classe operária à luta contra o regime. O desenvolvimento da campanha eleitoral em torno de propostas claras, e de modo a permitir que os eleitores não tenham dúvidas quanto às opções a fazer, não contradiz a extensão do trabalho pela organização da frente, não contradiz sequer o inicio do exame de soluções concretas para que se ingresse numa fase de transição. A sabedoria das forças democráticas consistirá em saber articular convenientemente os diversos momentos e instâncias deste processo que a maioria imensa dos brasileiros deseja ver deflagrado o mais cedo possível. Uma vitória expressiva da oposição é a garantia básica do reforçamento do campo democrático e o motor de sua ampliação a setores dissidentes e hesitantes do campo governista. As forças democráticas poderão, nestas condições, impor novos recuos ao regime, acelerar ainda mais a sua decomposição e conduzir o Brasil em direção à democracia.

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O PCB encara a democracia – a luta pela democracia e a luta pelo socialismo*

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aiano do interior, das Lavras, na Chapada Diamantina, com 61 anos de idade e 44 de militância no PCB, Armênio Guedes é um intelectual puro, formado em Direito, com longa atividade no jornalismo (era diretor da Imprensa Popular, no momento da invasão e fechamento do jornal em 1948), um dos 18 do Comitê Central, com oito anos de exílio, inicialmente no Chile e a partir da queda de Salvador Allende vagando pelas duas europas. Cordial, discreto, dono de uma memória surpreendente, baiano muito carioca, fanático e irracional somente quando discute sobre o Botafogo, foi dos dirigentes comunistas o que maiores consequências deu a esse período de exílio. Sobretudo na rigorosa autocrítica que faz, antes de mais nada, de suas próprias ideias e de toda a sua ação política. Poucos, como Armênio Guedes, foram tão incisivos, claros e categóricos ao responder a esta pergunta simples: JB – Você e o Partido sempre defenderam a concepção de democracia hoje mais difundida e aceita na direção? Armênio Guedes – Não. Eu acho que isso é uma conquista, que não me pertence porque é do nosso Partido. Acho que houve um certo tempo em que nós identificávamos liberdades democráticas com o poder da burguesia. Mas a verdade é que, pouco a pouco, a vida foi nos mostrando que a democracia é algo importante, permanente para o avanço da sociedade, para um próprio avanço no sentido do socialismo. E hoje o nosso trabalho é o de elaborar, de uma

* Entrevista ao Jornal do Brasil, 29/07/1979. 116

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forma mais precisa, esse nexo entre a luta pela democracia e a luta pelo socialismo, sem fazer uma dissociação entre esses dois importantes momentos da luta do nosso povo, no sentido do progresso, de um futuro de justiça social e de paz. JB – Quando fala em democracia, refere-se à pluripartidária, a mais aberta e ampla possível? Armênio Guedes – Evidente. Pelo menos é como concebo a democracia hoje no Brasil. Ao dizer isso, não quero, de modo algum, como já disse o PCB, ocultar o fato de que não são idênticas as concepções que circulam, explícita ou implicitamente, entre as diversas correntes da oposição. Para os comunistas, a luta pela democracia política, por sua conservação e aprofundamento, é parte integrante da luta pelo socialismo, pela democracia socialista. Assim, nossa concepção supera, na medida em que conserva e supera em nível superior, os institutos formais da democracia liberal. Estamos convencidos da necessidade de elaborar e aplicar, vencida a ditadura, um programa de desenvolvimento democrático da economia que elimine progressivamente o poder dos monopólios, do imperialismo e do latifúndio, colocando desse modo o desenvolvimento a serviço das massas trabalhadoras, das camadas médias assalariadas, dos camponeses, dos pequenos e médios empresários nacionais. Mas tais medidas só poderão se concretizar se forem, obviamente, sustentadas pela dinamização e mobilização permanente de todas as forças organizadas do povo; só com tal mobilização, capaz de assegurar um consenso majoritário na luta contra a reação, será pos­ sível derrotar os monopólios e, ao mesmo tempo, evitar os perigos de uma contraofensiva capaz de levar à desestabilização do país e ao consequente retorno a novos regimes autoritários. JB – Que você espera do retorno ao Brasil? Armênio Guedes – Minhas esperanças correspondem ao esforço feito pelo nosso Partido durante todos esses anos de ditadura militar, ditadura de tipo fascista, como nós comunistas sempre a caracterizamos. O nosso esforço foi sempre no sentido de mobilizar as grandes massas do nosso país, elevar a consciência política do nosso povo, estimular o seu amor à liberdade, no sentido de liquidar essa ditadura e substituí-la por um regime de amplas liberdades democráticas. Portanto, minha esperança hoje, quando são evidentes os sintomas de declínio dessa diA transição democrática – O PCB encara a democracia...

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tadura (que insisto em não considerar liquidada, terminada; a meu ver, é uma ditadura que ainda procura se autorreformar), é encontrar uma saída democrática para nosso povo. E nossa luta pelas liberdades democráticas, hoje, não é apenas uma luta de caráter tático, é também de caráter estratégico. Faremos tudo para transformar o fim dessa ditadura, sua liquidação, na conquista de um regime de liberdades democráticas, liberdades e democracia políticas, que se traduzem numa ampla reorganização democrática da sociedade brasileira. Nós não pretendemos instrumentalizar hoje a democracia ou essa luta pelas liberdades democráticas para impor amanhã um tipo de governo que seja antidemocrático, o que muitas pessoas – algumas por má informação, outras intencionalmente – procuram atribuir ao Partido Comunista. Queremos realmente esse regime de amplas liberdades democráticas, porque este é para nós o terreno privilegiado onde se travam os combates de classe, onde se definem as políticas de várias formações. Esperamos, através desse confronto, ganhar a maioria para as soluções que hoje propomos e, a longo prazo, para a conquista do socialismo. JB – E das apreensões que devem estar levando também na próxima viagem de volta? Armênio Guedes – Essas apreensões têm razões bastante reais. São apreensões que decorrem da formação autoritária da classe dominante brasileira. São apreensões que se baseiam no anticomunismo destilado durante tantos e tantos anos, principalmente durante os últimos 15 anos de regime ditatorial, através de todos os mecanismos de informação existentes no país, totalmente monopolizados pelas forças mais reacionárias de nossa sociedade. Isso cria, muitas vezes, incompreensões e obstáculos e dificulta a reorganização democrática da sociedade brasileira. Então, essa reorganização vai exigir realmente – de nossa parte – lucidez, de um lado, e, de outro lado, também audácia. Sendo uma luta difícil, pode-se cometer erros – e os erros que cometermos teremos que pagar caro por eles. Poderão implicar em retrocessos, em uma contratendência a essa marcha natural, a essa convergência natural que neste momento existe, de todas as forças, no sentido de conquistar uma democracia política em nosso país. JB – Qual o erro que você mais receia que o PCB possa cometer se retornar à legalidade? 118

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Armênio Guedes – Acho que não se trata só de um erro que o PC possa cometer, apesar de ele não estar isento da possibilidade de cometer erros. É bem provável que o PC cometa erros. O esforço que nós, da direção e todos os comunistas, devemos fazer, é para que o Partido não contribua para a desestabilização da vida política brasileira. Uma desestabilização que poderia ser provocada por uma posição radical, intempestiva, uma posição que não correspondesse a um balanço real de forças, às possibilidades reais de avanço da sociedade. Uma desestabilização que daria como resultado um reagrupamento, uma polarização das forças da direita, e, consequentemente, uma volta ao regime arbitrário, a um regime autoritário em nosso país. Em suma, evitar tensões sociais que levem à ruptura desfavorável do movimento operário e das forças democráticas em geral, como ocorreu em março de 1964. JB – Diz-se frequentemente que as esquerdas, de um modo geral, e os PCs, em particular (no caso, não só o brasileiro), sempre tiveram uma vocação para o gueto. Concorda e teme que isso possa se repetir com vocês? Armênio Guedes – Acho que sim. Concordo. Quando se trata de História, concordo que essa vocação existiu. Mas queria frisar o seguinte: durante 15 anos de ditadura que nosso país atravessou, o nosso Partido, entre as forças antifascistas, entre as forças democráticas, entre as forças antiditatoriais, deu um exemplo de que, pouco a pouco, ele procura se corrigir. Pouco a pouco, procurou e procura afastar de si, libertar-se, enfim, dessa vocação ao gueto. Quando, depois de 1964, principalmente depois de 1968 e mesmo um pouco antes (em 1967), quando realizamos o nosso VI Congresso, travamos uma luta não só dentro das fileiras do Partido como fora delas, entre as forças que se opunham à ditadura, sustentamos um autêntico combate, do ponto de vista ideológico, bastante áspero contra esse gueto. A verdade é que muitos desses grupos que se diziam à esquerda do Partido, que caracterizamos como grupos, forças ou correntes ultraesquerdistas, não acreditavam numa força de resistência do povo ao regime que se havia instaurado em 1964. Eles tinham uma visão desesperada da situação. Procuravam enfrentá-las a partir de posições voluntaristas. Achavam que, através da criação de um foco de guerrilha urbana ou rural, sem que para isso existissem condições – e a vida provou que A transição democrática – O PCB encara a democracia...

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elas não existiam – poderiam derrotar a ditadura. Afastavam-se assim do trabalho, lento e paciente, de criar um movimento de resistência de massas à ditadura, possível mesmo nas condições de repressão existentes no nosso país. E o nosso Partido, ao contrário, optou por canalizar seus esforços para criar esse movimento de massas. Por exemplo, quando muitas forças, que se diziam de esquerda, achavam que não havia condições de trabalhar nos sindicatos, nós, ao contrário, dizíamos que isso podia ser feito. Porque os sindicatos, mesmo sob intervenção da polícia, do Ministério do Trabalho, mesmo com pelegos em postos da sua direção, não deviam ser abandonados pelos trabalhadores. Estes deviam levantar, aí, suas reivindicações, transformando os sindicatos em instrumentos de defesa dessas mesmas reivindicações. E, ao mesmo tempo, de resistência à ditadura. Nós sabíamos que estávamos num momento de defensiva, de luta defensiva. Havíamos sofrido uma derrota, tínhamos que reagrupar nossas forças, tínhamos que acumulá-las, resistindo à política da ditadura. Tínhamos a convicção de que mais dias menos dias, chegaria o momento em que essa resistência se transformaria num movimento geral de oposição à ditadura, num movimento de ofensiva contra ela, que é mais ou menos o momento (embora não me sinta convencido de que já estamos nessa ofensiva) do qual nos aproximamos. O fato essencial é que, hoje, percebe-se que essa resistência paciente, demorada, criou as condições que atualmente possibilitam a saída da ditadura e a conquista de uma democracia, um regime de amplas liberdades democráticas para o nosso povo. JB – Na América Latina, o Chile, a Argentina e até mesmo o Uruguai são apontados como exemplos da incompetência das esquerdas. Isto é, da incapacidade sempre atribuída às esquerdas para unir-se ou para cumprir um processo democrático. Você acha que, hoje, ainda existe esse risco no Brasil? Armênio Guedes – Na verdade, as esquerdas sempre trabalharam na América Latina em condições bastante difíceis. São muitos os obstáculos a vencer. Eu não quero falar pelas esquerdas de outros países. Mas tomemos o caso do Brasil. Por exemplo, em 1964, se passou algo muito semelhante ao que 10 anos depois se repetiria no Chile. Houve um avanço das forças democráticas e uma tomada de consciência nacional. Esse movimento teve mesmo expressão no poder. Não se pode negar que o governo João Goulart tivesse características de um gover120

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no de resistência ao imperialismo. Procurava, além disso, realizar algumas transformações na vida do país. Esse movimento determinou, evidentemente, uma reação contra ele, um agrupamento das forças reacionárias de direita, que o viram com a tendência de levar a sociedade brasileira a um grande avanço, a dar um passo adiante. E qual foi a nossa posição, aí? Eu tenho a impressão de que, nós, membros do Partido, que tínhamos entre as forças de esquerda (não vacilo em dizer isso, apesar de não o fazer com arrogância) a posição mais lúcida, nós nos deixamos envolver por uma orientação golpista. Quisemos transformar uma luta que deveria ser prolongada numa conquista imediata. Nós tomamos o inicio de um processo pelo fim dele. E nos propusemos tarefas irreais para o momento, saltar etapas, subestimando o sentimento, a consciência, a vontade e a organização das massas. Isso deu como resultado que nos isolássemos e fossemos batidos. Quer dizer, isolamo-nos de grandes forças, que podiam ser aliadas, e, assim, evitar o golpe de direita que estava em articulação, que há muito vinha sendo preparado. JB – Nos últimos anos em que viveram no exílio, vocês, da direção do Partido, certamente tiveram tempo e oportunidade para elaborar a linha política do PCB, sobretudo a partir das perspectivas criadas por uma anistia. Qual seria? Armênio Guedes – A direção do nosso Partido, enquanto pôde se manter no país, lá esteve. Permaneceu no interior do país até 1975. Como você sabe, o Partido, nos anos 1974 e 1975, sofreu uma repressão brutal. Muitos de seus dirigentes, talvez quase metade dos membros efetivos do Comitê Central, desapareceram. Temos para nós que essas pessoas foram assassinadas pelos órgãos de repressão da ditadura. Portanto, só há quatro anos nos reorganizamos no exterior, em virtude de uma contingência que a isso nos obrigou. O importante era que o Partido não ficasse sem direção. Quanto à segunda parte, eu diria que nossa linha não foi traçada agora, no exterior. É uma continuação da linha geral elaborada no VI Congresso do PCB. Linha que nosso Comitê Central, na sua última reunião (junho/79), mais uma vez considerou fundamentalmente justa. Evidentemente, o Brasil mudou, a situação mudou, essa linha tem que ser enriquecida, tem que ser ampliada, mas a partir de coisas justas que ela acentuou – de uma concepção justa que ela tinha dos rumos da luta da classe operária no nosso país. Então, A transição democrática – O PCB encara a democracia...

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diria que, nesses anos no exterior, o que houve realmente foi um enriquecimento, uma aproximação maior entre essa linha e a realidade brasileira. Isto é, consideramos, ao formular nossas propostas políticas, as importantes transformações observadas no Brasil. JB – Essas transformações teriam criado condições para uma transição pacífica na direção do socialismo? Armênio Guedes – Eu diria que essas transformações e o nível de resistência mostrado pela sociedade brasileira à ditadura possibilitam, em grande medida, esse caminho sem luta armada, o que não é a mesma coisa de forma alguma de um caminho sem luta. Será um caminho de luta, um caminho por onde terão que ser vencidos grandes obstáculos, um caminho que vai exigir notáveis esforços e capacidade de direção, não somente dos comunistas, como de todas as forças do movimento operário e do movimento democrático. Esforço muito grande, habilidade muito grande, lucidez, inteligência, para que essa possibilidade se torne uma realidade. Mas acho que, historicamente, uma oportunidade é dada ao nosso povo. E devemos transformá-la numa conquista, num caminho democrático para o socialismo. Evidentemente que nós todos aspiramos melhorar as condições do povo com o menor sofrimento possível para o próprio povo. É o que deve aspirar qualquer revolucionário, depois de 15 anos de ditadura. JB – Que metas objetivas a direção do PCB, ao desembarcar no Brasil, pretende perseguir imediatamente? Armênio Guedes – Vamos fixar bem o momento em que isso se dará. Quando desembarcarmos no Brasil, legalmente, é porque a situação mudou. Esse desembarque tem em si mesmo uma significação. Significa que foram conquistados espaços democráticos no Brasil, ainda que nós consideremos que esses espaços não correspondem plenamente à democracia política que todos aspiramos em substituição ao atual regime. Nosso objetivo, então, nosso objetivo imediato, vai ser o de nos incorporar à luta política para a ampliação dos espaços. Para que, ampliados, chegue a um ponto em que consiga pôr o ponto final no regime atual e conquistar-se uma situação política qualitativamente diferente da atual, em que predomine a democracia política. Um regime em que se possam organizar os partidos políticos, em que haja livre possibilidade de organização 122

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autônoma dos sindicatos, das várias organizações e forças sociais. Enfim, um regime que possibilite ao povo discutir amplamente os seus problemas e encontrar, sem paternalismo, solução para os seus problemas. É evidente que isso deve se expressar numa etapa posterior, em algo tão importante quanto possa ser a convocação de uma Assembleia Constituinte que dê ao país uma nova lei básica, uma Constituição democrática. Pois acho que é incompatível a existência de uma sociedade democrática com a Constituição atualmente existente no Brasil. Essa será uma tarefa primordial. Além do mais, devemos nos esforçar para limpar o caminho para isso, terminando com tudo aquilo que seja uma reminiscência de 15 anos de ditadura. Devemos nos esforçar, por exemplo, para liquidar com os órgãos de repressão, os Sede, os DOI, as Operações Bandeirantes, que foram criaturas da ditadura. E, o que é mais importante: realizar um grande esforço para que se termine com os conceitos e a prática da assim chamada “doutrina de segurança nacional”, que é o âmago da ideologia fascista que, durante esses anos, conformou toda a vida política do país. Como se pode ver, são muitas e importantes as tarefas políticas que teremos pela frente. É evidente que isto não está desligado de uma reorganização em grande escala, que terá o caráter de uma renovação e mesmo de uma recriação de nosso Partido, que pretendemos seja um Partido nacional, democrático, popular, um Partido que tenha um peso nacional importante, um Partido que seja um fator decisivo na estruturação de um forte movimento operário, popular, democrático. Realmente capaz de influir, de maneira decisiva, a partir do momento que vivemos, na unidade das forças democráticas e nos destinos do país. JB – Em 1945, a primeira grande batalha pela restauração de um regime democrático começou também com a anistia. Nela, os comunistas tiveram os aliados mais diversos. Em seguida, o PCB lançou como palavra de ordem a Constituinte com Vargas. Hoje, seria possível a repetição de uma palavra de ordem desse tipo: por uma Constituinte com os militares? Armênio Guedes – Creio que aí há uma correção a fazer. Nós não falávamos (e acho que esse foi um mérito de Prestes, ao sair da prisão) em Constituinte com Vargas. Falávamos, pura e simplesmente, em convocação de uma Assembleia Constituinte. Sem colocar A transição democrática – O PCB encara a democracia...

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como condição necessária, para essa convocação, o afastamento de Getúlio Vargas do poder. Achávamos que os passos que ele havia dado, no sentido de ceder à pressão das forças democráticas, de ceder à pressão do grande movimento que se espraiou por todo o país, pela sua imediata redemocratização, que por tudo isso Getúlio deixara de constituir um empecilho à convocação de uma Assembleia Constituinte. Ao contrário, foram as forças reacionárias que, depois de terem se manifestado como forças de direita (como foi o caso de alguns elementos da UDN), a advogar a derrubada de Getúlio. Foram elas que se uniram ao embaixador americano daquela época, Adolph Berle, que promoveram o golpe de Estado de 29 de outubro de 1945, afastando Vargas do poder. Nós estávamos convencidos de que, naquele momento, a permanência de Getúlio Vargas à frente do governo não era, de maneira alguma, um obstáculo à convocação de uma Assembleia Constituinte. As eleições foram convocadas depois da queda de Getúlio, e não podiam ser evitadas diante do grande ímpeto do movimento que surgira e se alastrara no país. Mas isso se daria também, e talvez em melhores condições, se não tivesse havido o golpe de 29 de outubro, que foi – como em geral acontece com os golpes militares – um golpe reacionário para truncar e limitar o movimento das massas surgido em 1945. JB – E hoje? Com que governo os comunistas gostariam de ver em função de uma Assembleia Constituinte? Armênio Guedes – Hoje, nós acreditamos também que se houver um impetuoso e importante movimento de massas, como é de se esperar que ocorrerá, ninguém terá forças de impedir a convocação de uma Assembleia Constituinte. Nós estamos convencidos de que as Forças Armadas – pois também aí haverá uma polarização das forças democráticas – sofrerão a influência da luta geral que se travar, em todo o país, pela convocação da Constituinte. E é evidente que os segmentos, ou forças que dentro das Forças Armadas queiram a isso se opor, tenderão a ficar em minoria, consequentemente não terão um papel decisivo na condução da orientação das Forças Armadas no Brasil. JB – Isso quer dizer que você não confunde a necessidade de uma Assembleia Constituinte com a necessidade de um regresso dos militares aos quartéis? 124

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Armênio Guedes – Não, esta é uma forma simplista que nada explica. Nós achamos que todo militar tem o direito de participar da vida política como qualquer outro cidadão brasileiro. O que nós achamos, por outro lado, é que as Forças Armadas como tal, como instituição, tem a sua função específica. E numa reorganização democrática da sociedade brasileira, devem exercer suas funções que sempre foram determinadas na tradição constitucional brasileira, como guardiãs da soberania nacional. Esta é também a doutrina militar tradicional de nosso país, e não aquilo que lhe atribui a assim chamada “doutrina de segurança nacional”, que, diga-se de passagem, é uma doutrina forjada nos Estados Unidos, atribuindo às Forças Armadas uma função secundária, mais de perseguição a um suposto inimigo interno. A prática desses 15 anos de ditadura mostra exaustivamente a falsidade desta doutrina, segundo a qual, qualquer força pode ser considerada como “inimigo interno”. Nós pensamos que a normalização da vida do país se traduzirá inevitavelmente na normalização das funções das Forças Armadas. JB – Hoje, é possível antever e identificar um aliado ou um grupo de aliados preferenciais para o PCB no quadro político brasileiro? Armênio Guedes – Sim, eu acho que para um Partido de vanguarda e operário, como o nosso, a questão das alianças é capital. O isolamento ou a visão errada de uma política de alianças leva qualquer Partido revolucionário ao fracasso, à derrota. No amplo conjunto de forças políticas da oposição brasileira há algumas que são aliadas preferenciais. Achamos que, conquistadas as liberdades democráticas, nosso esforço deve ser orientado no sentido de formar o maior arco possível de forças em defesa das liberdades conquistadas. Evidentemente, nós procuraremos nos aproximar de todas essas forças. É claro que aquelas que têm maior vinculação com as massas populares, com as massas trabalhadoras em especial, os partidos que com elas estejam mais identificados e vinculados, serão os nossos aliados preferenciais, porque serão forças caracterizadamente mais consequentes. Nós, por exemplo, lutamos não só no futuro, mas já hoje, por manter contatos e alianças com todas aquelas forças que começam a se definir e começam a ter influência no movimento operário, no movimento democrático. Procuraremos ter contatos com as forças da Igreja Católica, com as várias forças do trabalhismo etc. A transição democrática – O PCB encara a democracia...

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Com todos os que, em princípio e por princípio, resistiram à ditadura e que agora lutam pela democratização do país. Enfim, essa definição também será fruto de um processo político que venha a desenvolver-se no Brasil. Nosso referencial para essas alianças será também a posição dessas forças diante da legalização ou não do nosso Partido, diante da manutenção ou não do regime democrático, diante do movimento operário e sindical, das liberdades fundamentais. Serão esses os nossos referenciais para estabelecermos o nosso sistema de alianças. Não concordamos, portanto, com certas correntes do movimento de oposição que, em lugar de postularem a necessidade de criação de um amplo bloco ou frente de forças democráticas, se batem, neste momento, por uma estreita frente de esquerdas. Isso seria o isolamento. E o isolamento, para um Partido operário e de vanguarda como é o PCB, é o caminho certo da derrota.

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Dirigente do PCB diverge de Prestes sobre a luta armada*

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aris – Armênio Guedes, 62 anos, membro eminente do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro, será, sem dúvida, um dos últimos dirigentes de seu Partido a retornar ao Brasil; ainda não fixou a data do embarque, mas o prevê para fins de novembro. Militante da primeira hora (há 44 anos), verdadeira figura histórica do PCB e teórico realizado, passa por ser um pregador da abertura e do realismo diante da ortodoxia de alguns outros. Em Paris, onde vive um exílio modesto, há oito anos, num pequeno apartamento de uma austeridade apenas quebrada por um retrato de Gramsci e alguns cartazes de museus italianos, Armênio Guedes procurou esclarecer para o Jornal do Brasil certos pontos do pensamento dos comunistas brasileiros, em face da movediça situação atual. JB – Luis Carlos Prestes admitiu esta semana a possibilidade de uma saída violenta para chegar-se ao socialismo no Brasil. É esta também a sua opinião, ou, antes, pensa que uma passagem ao socialismo por caminhos não violentos é mais provável? Armênio Guedes – Penso que a questão atual não é a da pas­ sagem ao socialismo. É a fase de democratização do país que está em causa. Depois de 15 anos de governo autoritário, ditatorial, que adotou o arbítrio e a violência como método de direção da vida social e política, creio que há primeiro a necessidade de uma reorganização democrática da sociedade brasileira. Reorganização que se deverá fazer não por uma ruptura violenta em relação às antigas instituições do regime, mas por uma ruptura gradual exercida sob

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pressão do movimento democrático, de uma oposição ampla que se estenda a todo o país. Todos os que fizeram seus cálculos tendo por base a ruptura do regime, na passagem para um sistema democrático, por meio da luta armada, estão equivocados. De nossa parte, temos afirmado o contrário, há muitos anos: o que se verifica claramente é uma ruptura por vias democráticas, não violenta, sob pressão das massas. Repito: seria erro acreditar que estamos num período de transição rápida para o socialismo. Estamos num período de transição para a democracia. E nós, comunistas, não pretendemos instrumentalizar essa democracia. Nossa concepção de democracia vai além da tática. Para nós, não é simples expediente, mas um dado estratégico. Mesmo se houvesse a possibilidade, no Brasil, de transformações socialistas, por elas deveríamos lutar por meios não violentos. Pessoalmente não vejo a necessidade de utilizar a luta armada na conquista do socialismo, nas condições atuais. É preferível apoiar-se sobre um consenso obtido na confrontação democrática, entre as ideias da classe operária e das forças de vanguarda, com o Partido Comunista ocupando evidentemente lugar importante nesta luta. Ideias que acabarão por conquistar a maioria da população. É o que denominamos de conquista de hegemonia pela classe operária. JB – Existem divergências de estratégia dentro do próprio PCB? Armênio Guedes – Seria absurdo fazer acreditar que há pensamento unânime sobre esse ponto. São questões de tal modo complexas que há inevitavelmente divergências, e até uma batalha de ideias no interior do Partido. Exigem reflexões profundas sobre a História do Brasil, sobre as características de nosso país, sobre nossos traços culturais. A partir daí poder-se-á ver qual seria o caminho possível para chegar-se ao socialismo no Brasil. De qualquer maneira, estou convencido que a sociedade brasileira tem tal nível de complexidade, em função do desenvolvimento do capitalismo, que um socialismo que seria conquistado através da luta armada poderia tornar-se um socialismo do tipo autoritário, e não um socialismo do tipo democrático. Porque, afinal, é o socialismo democrático que devemos pretender. Somos não apenas revolucionários, mas também libertários. Temos a pretensão de desejar a liberdade do homem. 128

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JB – Em sua opinião, pois, antes da passagem ao socialismo, no Brasil será preciso de qualquer maneira um período de aprendizado democrático? Armênio Guedes – Sim. Penso que é necessário, depois de 15 anos de ditadura. Observe o caso da Itália, onde há um Partido Comunista forte, onde o movimento operário tem ali raízes profundas na história do país e possui verdadeira influência na condução da vida social e política, 30 anos depois do fascismo, está ainda no período da luta democrática. Não foi possível ainda chegar a uma etapa mais avançada no sentido de uma modificação socialista da vida italiana. Vê-se, assim, que a reorganização democrática da sociedade, momento importante da luta para o socialismo, pode estender-se por período tão prolongado. JB – Ou seja, 20, 30, 50 anos? Armênio Guedes – Não sei. O problema é que certos dirigentes políticos confundem, às vezes, suas vidas com a luta social. Confesso que se meu país fosse verdadeiramente democrático, com possibilidades para os trabalhadores organizarem-se, de criar um forte movimento operário, se houvesse um Partido Comunista importante com sólidas raízes implantadas na vida nacional, nesse caso, teria grande satisfação ao nível da minha biografia. Vou fazer 62 anos e estou na luta social desde a idade de 15 anos. Meu país só viveu períodos de democracia de maneira muito transitória, durante todo esse tempo. A instauração duma verdadeira democracia seria, pois, um grande passo. JB – Tem esperanças que isso possa acontecer? Armênio Guedes – Não será fácil. Creio, contudo, que se as forças democráticas não caírem na armadilha das classes dominantes, criando situações que poderiam desestabilizar o país e conduzir a um retorno ao processo reacionário, poder-se-á avançar no rumo de uma democratização profunda. E, para quem tem uma visão histórica do caminho que leva ao socialismo, é um momento importante. JB – Outra questão importante: a noção de ditadura do proletariado não aparece nos estatutos do PCB, mas Prestes declarou que isso não quer dizer que o Partido não a reconheça mais. Qual o ponto de vista de Armênio Guedes a respeito?

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Armênio Guedes – O termo presta-se à confusão. Os clássicos do socialismo – Marx, Engels, Lênin – adotaram o termo para evocar um tipo de poder. O poder da burguesia, da classe dominante, é uma ditadura. Passando-se do poder da burguesia ao poder da classe operária, teremos ainda uma ditadura, a ditadura do proletariado. Atualmente, o termo está no centro das especulações negativas do ponto de vista da imagem dos PCs. Tanto que o Partido Comunista Português, logo depois do 25 de abril de 1974, convocou um congresso especialmente para mudar seus estatutos e abolir essa expressão. O que, porém, não o impediu de continuar a se sentir vinculado a tal concepção. Em outras palavras, a considerar necessária a hegemonia do proletariado, o que é hoje uma coisa muito discutida por todos os comunistas. No que me diz respeito, não tenho posição dogmática, como certas pessoas, que acham que se deve rotular de revisionista todo aquele que especula sobre esse termo. Acho que a luta pelo socialismo, no momento presente, chegou a um ponto nos países capitalistas, como a França, Espanha, Itália ou Portugal, em que tudo indica que não serão os velhos caminhos utilizados por outros países que darão passagem do regime capitalista ao regime socialista. Resta dizer que, para a imagem do nosso Partido no Brasil, o termo ditadura, após 15 anos de ditadura no país, pode ser prejudicial a visão que hoje temos, no PCB, da necessidade de uma democratização da vida do Brasil. Como uma democracia pluripartidária, haverá confrontos de opiniões. Para concluir, direi que estou de acordo com a formulação do nosso último congresso que não fala da ditadura do proletariado, mas de hegemonia da classe operária. JB – Quais devem ser, na sua opinião, as formas de ação do PCB, enquanto não estiver legalizado? Armênio Guedes – Devemos utilizar o espaço democrático conquistado nos últimos tempos para lutar contra as limitações que ainda existem. Hoje, no Brasil, já é possível a discussão, por exemplo, se sou um sindicalista, posso agir dentro de meu sindicato como comunista. Posso dar minha opinião sobre a melhor maneira de reivindicar, de lutar por melhores condições de vida e pelas liberdades. A forma pela qual os comunistas, atualmente, falam abertamente, 130

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dizendo com clareza o que pretendem, é a forma que podemos efetivamente adotar. Não é uma capitulação, é uma maneira de reconhecer as limitações que nos são impostas sem, contudo, admiti-las, e procurando eliminá-las. A ditadura que existia no Brasil procura autorreformar-se. Isto é difícil, chega-se sempre a um impasse. Devemos, pois, tentar romper o esquema autoritário criado no país, há 15 anos. JB – Admite então a convocação de uma Constituinte, antes da legalização do Partido Comunista? Armênio Guedes – É sempre difícil falar sobre hipóteses em política. Lutamos por uma Assembleia Constituinte como uma das maneiras mais corretas de traçar caminhos para a democracia. De chegar a um rompimento com o projeto esquemático da ditadura. É preciso que, para que essa Assembleia cumpra realmente com seu papel, profundo e decisivo na reorganização da vida nacional, que todos os partidos se organizem legalmente, que haja ampla liberdade de propaganda política, liberdade de imprensa, liberdade sindical etc. Isto diz tudo. Seria difícil dizer o que faríamos em caso contrário. Será que boicotaríamos a Constituinte, ou não? Iremos ver, diante do problema, o que faremos. O certo, porém, é que devemos usar de todas as oportunidades que aparecerem, que possam permitir avançar no processo de democratização. JB – Acredita que a legalização do PCB possa vir logo? Armênio Guedes – Não creio que isso seja fácil. Sempre a luta pela legalização das forças políticas progressistas não tem sido fácil. Vê-se isso com a lei governamental de reorganização dos partidos: é quase um só cercado de outros partidos, bem legais, mas marginalizados, desprovidos de toda a possibilidade de influenciar os mecanismos de Estado. É por essa razão que somos contra a dissolução automática, arbitrária, do MDB. Acreditamos que a formação dos partidos deve ser algo espontâneo, que deve surgir normalmente na vida do país a partir da base e não por imposição dos que pretendem assegurar a manutenção do sistema autoritário ainda por muitos anos. Cabe, pois, aos democratas brasileiros impedir que se consolide em nosso país uma “democracia relativa” a mais. Para nós, comunistas, até a legalização, mas também A transição democrática – Dirigente do PCB diverge de Prestes sobre a luta armada

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depois dela, há grandes esforços a realizar para explicar o que somos realmente e o que pretendemos. Será preciso lutarmos durante anos, na batalha ideológica do poder contra os comunistas. JB – Se a legalização do PCB demorar e o VII Congresso não possa realizar-se abertamente no país, acha que será assim mesmo necessário convocá-lo? Luis Carlos Prestes, na última semana, parecia admitir tal possibilidade. Armênio Guedes – Não sou menos otimista que ele. Penso como ele que a reunião na ilegalidade do VII Congresso do PCB não teria sentido, nas condições atuais, depois da anistia. Nossa esperança de realizar esse congresso na legalidade é, afinal, realista. Dentro da realidade atual, no Brasil pelo menos, uma das tendências mais prováveis é a ampliação das conquistas democráticas.

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O impasse político e a saída democrática*

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ano que acaba de terminar não foi nada pródigo para a política de abertura do governo. Nem também para a unidade de ação das forças da oposição.

No começo do atual governo, houve a atividade desenvolvida por Petrônio Portela. A linha por ele esboçada – e mesmo alguns dos passos que deu como ministro político do governo – deixavam ver sua intenção de conseguir, mediante acordo com certas forças intermediárias e a médio prazo, a formação de um governo de transição. Um governo que, ao alargar as bases políticas do atual poder, se tornasse capaz de superar as instituições e hábitos autoritários criados pela ditadura e de tornar possível o aparecimento das condições essenciais para a reorganização democrática da vida brasileira. Nada nos garante, contudo, que, caso continuasse vivo, Portela fosse capaz de concretizar suas intenções, que fosse capaz de vencer os partidários do imobilismo no âmago do regime e das forças armadas. Mas é um fato – e o tomamos, antes de tudo, como um ponto de referência – que a morte do ministro marca um ponto de involução na política de abertura do governo Figueiredo. A partir desse momento, e sob a pressão dos “duros” do regime, o governo vem enveredando por caminhos que dificultam a ação das forças democráticas e de oposição e amortecem o ritmo do processo político iniciado com a anistia. Somam-se, na ação do poder, os atos e medidas eivados de arbítrio e autoritarismo. Estão, neste caso, a suspensão das eleições municipais de novembro passado, a aprovação da

* Voz da Unidade, 31/12/1980. 133


lei contra os estrangeiros, a demissão de ministros que tentaram realizar uma política liberal, a política de recessão econômica nos moldes do FMI etc. No meio de tudo isso, e como único ponto positivo, resta apenas a aprovação da eleição direta para governadores em 1982, conquista que deve ser defendida com unhas e dentes, principalmente no sentido de impedir que sua importância seja diminuída pela legislação eleitoral casuística pretendida pelo regime. Por sua parte, as oposições, caindo muitas vezes nas malhas da política divisionista do governo, nem sempre souberam dar continuidade e colocar num nível mais elevado o processo de convergência e unidade iniciado nos meados dos anos 1970. O certo é que, no ano que findou, foi muito difícil um entendimento e aliança mais profundos entre as forças que se esforçam para dar fim ao regime autoritário. Chegamos assim, em 1981, tanto pelo que ocorre no campo do governo como pelo que se passa no lado das oposições, a uma situação complicada. Uma situação de impasse político ou, quando menos, próxima disso. Além de tudo, seriamente agravada pela crise econômica em que vive o país. É dentro desse quadro complexo e carregado de tensões sociais que as oposições e as correntes democráticas terão que atuar no ano que agora começa. Antes de tudo, para evitar qualquer passo em falso, é preciso analisar e avaliar com precisão o caráter opressivo do regime. A resistência das forças democráticas, quando bem orientada, tem, em muitas ocasiões, atrapalhado a estratégia do regime, ajudando a avançar o processo de abertura. De qualquer forma, os dados de que se dispõe indicam que o período de transição, longe de ser linear, tende a continuar em ziguezague e pode se prolongar por um tempo mais longo do que seria desejável. As forças democráticas, para avançarem, precisam estar bem conscientes das possibilidades de recuo – de fechamento e de volta aos tempos do AI-5 – que o momento e as tensões atuais encerram. É uma situação que exige firmeza, habilidade e prudência. E em que as convergências e a unidade das oposições são indispensáveis. Mas esse esforço de unidade e convergência não deve, na conjuntura presente, limitar-se ao universo das oposições. Tem que ir mais longe 134

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e, num trabalho paciente e prolongado, abarcar correntes, grupos e pessoas que, apesar de ainda permanecerem no sistema de forças do governo, começam a questionar o autoritarismo do regime e a exigir a ampliação das liberdades públicas. Há uma outra observação que pode ser feita a partir da peculiaridade do momento político que atravessamos. É que, talvez no caso brasileiro, a superação do autoritarismo e a conquista de um regime democrático possam ocorrer sem mudanças bruscas e violentas. Resultarão antes de uma guerra de posições – no bom sentido da tese gramsciana. Mas haverá, necessariamente, um momento de ruptura das instituições autoritárias e repressivas que se dará pela pressão conjugada da opinião pública e de um amplo movimento de massas. É com tal visão que hoje devemos trabalhar. E é por ela não estar presente, até aqui, no pensamento e na prática das forças democráticas e do movimento operário que os diferentes segmentos da oposição se perdem ou em propostas muito gerais, a médio e longo prazo, ou em reivindicações que se esgotam em questões particulares e corporativas. Toda a reflexão até aqui desenvolvida induz a afirmar que os grandes problemas do país situam-se hoje nos termos concretos de um período de transição, ainda que ambíguo e pouco definido. E é neste contexto, portanto, que terão de ser resolvidos. Não seria fora de propósito que as forças democráticas – que não têm interesse nem na continuação do impasse nem no confronto – comecem a pensar na oportunidade ou não de se trabalhar com a ideia de um governo de transição, integrado pelas mais amplas forças e capaz, por isso mesmo, de dar começo à reorganização política do país.

A transição democrática – O impasse político e a saída democrática

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4 O socialismo



A crise do socialismo1 Armênio Guedes

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discussão atual sobre a crise do socialismo vem de longe. Começou nos anos 1950 com a realização do XX Congresso do PCUS e com as crises políticas da Polônia e da Hungria, ressurgiu com a intervenção soviética na Checoslováquia, para finalmente reacender com mais força e profundidade depois do início dos dramáticos acontecimentos poloneses no verão europeu de 1980. Até pouco tempo atrás havia entre marxistas e partidários do socialismo, pessoas que não admitiam a existência de crise nos países do “socialismo real”. Os fenômenos negativos, com raízes e repercussões em todos os campos da vida política, econômica, social e ideológica, eram considerados incidentes menores na marcha batida e triunfal da construção do socialismo. Mas já agora, diante de fatos e dados que se acumulam ao longo da história dos países socialistas e que comprovam desacertos, erros e ineficiências dos seus regimes, tornou-se quase impossível a sustentação dessas posições acríticas e apologéticas. Outra forte razão que trouxe para a discussão a crise do socialismo, e a colocou entre os temas capitais da política mundial, é a estreita relação que ela guarda com a crise dos países capitalistas e, por extensão, com a questão da paz e da guerra. Vale a pena aqui destacar dois fatos. De um lado, havia a esperança, em amplos setores da opinião pública, principalmente no movimento operário, de que as massas atormentadas e castigadas pelas dificuldades da crise atual encontrassem no exemplo do “socialismo real” um estímulo e indicações para a alternativa de reformas sociais que buscam – 1 Ensaio especial para o Fórum da Gazeta Mercantil, São Paulo, realizado em dezembro de 1982, cujas colaborações foram publicadas em encarte especial. 139


às vezes de modo vago e quase inconsciente – conquistar com sua luta. De outro lado, era lógico que os defensores da paz, como, aliás, aconteceu até a bem pouco tempo, esperassem continuar tendo, na política internacional dos Estados socialistas, um apoio, em toda linha, a seus esforços para impedir as guerras locais e, o que é ainda mais importante, tornar inviável uma nova conflagração mundial. Mas essas esperanças e expectativas, ante a crise e os tropeços de muitos países socialistas, tornam-se cada vez mais tênues. São expectativas e esperanças que se desvanecem na medida em que, ao contrário do que podia e devia acontecer, muitos regimes socialistas (que guardam entre si e em relação a isso semelhanças e diferenças) se tornam mais autoritários, rígidos e burocráticos e deixam que se manifestem em suas políticas exteriores elementos de nacionalismo e de hegemonia de grande potência, que se chocam frontalmente com os princípios socialistas de solidariedade internacional, de coexistência pacífica e de não exportação da revolução; princípios, na prática, negados pela situação conflituosa entre a China e a URSS, pela agressão chinesa ao Vietnã, pelas intervenções soviéticas na Checoslováquia e no Afeganistão e pelas pressões dos paí­ ses do Leste europeu sobre a Polônia para que ela terminasse com a atividade dos sindicatos autônomos, como o Solidariedade e com o amplo movimento social por eles iniciado. Admitida a existência da crise do socialismo, antes de tudo como crise nos países do “socialismo real”, é preciso reconhecer, porém, que ela não se restringe a isso, é mais ampla e abrange os contrastes, as limitações e os impasses atuais do marxismo. Mas é difícil, ao analisar a crise em sua totalidade, separar pensamento e ação, dizer o que é causa e o que é efeito: há entre os dois momentos, o do conhecimento e o da prática, uma interação constante; e só em casos muito concretos e situa­ ções bem definidas é possível estabelecer o que é determinante. São muitos e variados os indicadores dessa crise de fundo, estrutural, nos regimes socialistas. Nos primeiros anos do pós-guerra, no período da guerra fria, os sintomas das crises eram quase imperceptíveis, difíceis de ser captados; pouco a pouco eles germinaram, vieram à superfície e hoje podem ser identificados a olho nu, apesar dos esforços dos ideólogos e burocratas do “socialismo realmente existente” para minimizá-los e ocultá-los...

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Na vida econômica, a crise traduz-se na queda dos ritmos de crescimento industrial, quantitativa e qualitativamente (variando, é claro, de um país a outro), no mau desempenho da agricultura, no endividamento externo e no caráter quase obsoleto de certos mecanismos de planificação, direção e controle da economia. No terreno político institucional, vem-se acentuando o conflito entre as exigências da sociedade civil e o autoritarismo do partido-Estado. As estruturas e posições deste – ao contrário do que sempre afirmaram os clássicos do socialismo científico – tornam-se cada dia mais rígidas e, depois das investidas reformistas e liberalizantes de Kruschev, têm sido insignificantes as tentativas de novas aberturas. No plano ideológico, a situação não é melhor. O “marxismo-1eninismo” foi erigido à posição de ideologia oficial, uma espécie de religião de Estado, e, com isso, nas mãos dos teóricos do regime, o pensamento de Marx e de Lênin perdeu o seu viço e criatividade. Lucio Lombardo Radice compara a situação do marxismo soviético atual com o de uma fase precedente (o de pós-Outubro) e conclui que, ao contrário de hoje, a doutrina de Marx na década de 1920 foi fermento de verdadeira criatividade política, cultural, filosófica e pedagógica (LOMBARDO RADICE, 1982).2 Avaliando tudo isso, e sem negar ou obscurecer a importância e o valor das transformações por que passaram as sociedades dos países de regime socialista, temos de afirmar, com Enrico Berlinguer, que de muitos anos para cá começaram a se multiplicar, nos países do “socialismo real” sinais de estagnação, de involução e mesmo de crise. E é ele mesmo quem, de forma ainda mais incisiva, escreve: “Se não se parte da fria compreensão da realidade hodierna (ele se refere à situa­ção dos países do Leste europeu) e não se procura as suas causas, fica-se sujeito a surpresas e a traumas constantes. Além disso, observa-se o estancamento de renovação, tanto no terreno econômico-social quanto no político e no das ideias”. Que contribuições – pergunta ele – ao crescimento e à inovação teórica do socialismo, por exemplo, nos chegaram dali nos últimos decênios. Ao contrário, assistimos a um difuso conservadorismo dogmático e a uma ossificação das ideias que sufocam as energias por maiores e mais vigorosas que sejam. E esta, segundo nós,

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Ver Lucio Lombardo Radice. Um socialismo a inventar, Brasiliense, 1982.

A crise do socialismo

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é uma das consequências – conclui Berlinguer – de se haver transformado o marxismo em ideologia de Estado (BERLINGUER, 1982).3 Mas argumentemos com um caso concreto, o caso polonês, por exemplo, no qual fica mais claro que a crise do socialismo, não obstante as diferenças qualitativas que apresenta em relação à crise do capitalismo, não é uma abstração ou fruto de uma especulação ideológica, mas algo real e objetivo. Vimos na Polônia, em toda a sua rudez, o drama do “socialismo real”: um Estado dito operário que reprime operários e que qualifica como inimiga a central sindical de mais de nove milhões de membros. Ao mesmo tempo, assistimos ao espetáculo deprimente de um partido operário que, depois de trinta anos no poder e num momento crucial para o futuro do país, é posto à margem da vida nacional e suplantado por um aparelho militar. É um fato que revela, de maneira inquestionável, à parte sua singularidade nacional, a crise institucional e político-ideológica da maioria dos regimes socialistas existentes. Quer dizer, a crise polonesa mostrou a inviabilidade histórica do partido-Estado e tornou evidente o absurdo da concepção dos sindicatos e de outras organizações sociais como “correias de transmissão” ou talvez menos que isso, como meras agências estatais para incorporar os trabalhadores à política geral do governo. A Revolução de Outubro e a construção de uma sociedade nova na Rússia e, depois do fim da Segunda Guerra Mundial, em outras partes, representaram uma ruptura do sistema imperialista e colocaram fora da lógica capitalista os países de regimes socialistas. O reflexo dessa ruptura foi imenso e inspirou revoluções nacionais e sociais em todo o mundo. Nas novas sociedades pós-capitalistas foram feitos grandes avanços no terreno do desenvolvimento econômico, social e cultural. E é por isso que os países socialistas constituem hoje elementos determinantes da situação internacional, cuja presença é indispensável para a solução de qualquer problema que aí apareça. Mas a verdade é que o que se passou nesses países não foi o que muitos pensaram e disseram durante muito tempo. A grande experiência histórica, iniciada em outubro de 1917, não transcorreu linearmente sem contradições e conflitos. Ainda que seja muito importante, não é nosso objetivo aqui opinar sobre as conclusões catastrofistas que sem3 142

Enrico Berlinguer, entrevista a L’Unitá, 21/02/1982. Raimundo Santos (Org.)


pre tiraram disso os antissocialistas. O que nos interessa é outra coisa. Trata-se de, negando o discurso triunfalista e apologético do “socialismo real”, apontar algumas das razões que levaram os conflitos e as contradições, passada a fase do grande impulso inicial, a configurar a atual crise do socialismo. O que nos interessa, enfim, é ao mesmo tempo em que realizamos uma rigorosa revisão crítica, descobrir por que “a fase de desenvolvimento do socialismo, que teve início com a Revolução de Outubro, esgotou a sua força de propulsão”. E também por que os países do “socialismo real” perderam a capacidade de renovação política, econômica e cultural e correm o risco de ver a repetição de novos conflitos, provocados pela oposição entre a necessidade de reformas e a estreiteza autoritária de suas instituições. São muitas e variadas as razões que explicam a crise do socialismo. As origens dessa crise já podem ser encontradas nos primeiros momentos de existência da URSS, quando os conselhos (sovietes) começaram a perder sua força e importância, se burocratizaram e se transformaram em órgãos formais. Pouco a pouco, a democracia de base (democracia jacobiana, é certo) que possibilitava uma grande participação das massas no processo político-revolucionário, foi sendo substituída por um poder centralizado e autoritário, o poder do partido-Estado. E, a partir de então, tudo passou a ser justificado pela tese stalinista do crescente “acirramento da luta de classes” nas condições de construção do socialismo. “A sociedade civil foi inteiramente submetida ao Estado político: não houve relação tanto contratual quanto da ‘esfera íntima’ que não fosse afetada pelos caprichos tirânicos do Estado” (HELLER, 1982a, p. 46).4 Depois, vêm os anos da repressão stalinista. A guerra e a vitória e, finalmente, a implantação, historicamente desastrosa, do “modelo soviético” nos países do Leste europeu. Assim chegamos ao momento atual, quando nos defrontamos, nesses países, com uma estrutura econômico-político-social rigorosamente centralizada: tudo é propriedade do Estado e todas as atividades políticas e culturais são controladas pelas autoridades. O Estado é cada vez mais forte e o “socialismo real” cada vez se distancia mais do ideal socialista de enfraquecimento e extinção do Estado e da substituição deste pela sociedade livre e autogerida. 4

Agnès Heller. Marxisme et Democratie, p. 46. Petite Collection. Maspero, Paris, 1982.

A crise do socialismo

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Há entre os marxistas os que justificam (ou defendem) esse fortalecimento exagerado do aparelho estatal dos países socialistas como um dado de uma realidade adversa, como exigência da luta de classes no plano nacional e internacional. O fortalecimento do Estado resultaria assim de uma situação objetiva e não de uma opção política. Mas essa, evidentemente, não é uma opinião unânime entre socialistas e marxistas. Já nos primeiros anos da revolução soviética, quando a jovem República era alvo de ataques armados, internos e externos, no auge da guerra civil e da intervenção estrangeira, Rosa de Luxemburgo condenava a concepção da direção bolchevique sobre o caráter do novo poder. Ela opinava que a ditadura do proletariado deveria ser uma “democracia de massa que conserva as liberdades formais ‘clássicas’ proclamadas nas constituições burguesas e as realiza plenamente, acrescentando a elas a participação real nas decisões das massas trabalhadoras através de novos organismos institucionais” (LOMBARDO RADICE, op. cit., p. 97).5 E dizia mais: “A liberdade concedida apenas a quem apoia o governo, e somente para os membros do partido único – por mais numerosos que sejam –, não é verdadeira liberdade. A liberdade é sempre e tão somente liberdade para quem pensa de maneira diferente” (apud HELLER, 1982b).6 Há uma reflexão da filósofa húngara Agnès Heller que tenta explicar a deformação autoritária surgida nos países socialistas. Ela relaciona o fato com o que Marx, conceituava como abolição negativa da propriedade privada. Expliquemos. Para Marx, a abolição da propriedade pode ser positiva ou negativa. Seria negativa quando se liquidasse o direito à propriedade sem a transferir para todos; neste caso, as forças produtivas e os bens produzidos passariam para o Estado que se constituiria em proprietário universal e, a partir daí, só o poder político poderia dispor de tais forças e bens. Seria positiva quando não se suprimisse o direito de propriedade, mas quando se generalizasse a propriedade enquanto tal, quer dizer, quando se garantisse o direito de propriedade a todos os membros da sociedade e se desse a cada um a possibilidade de dispor das forças produtivas da sociedade e de gozar os frutos da atividade produtiva. É este, de resto, esclarece Agnès Heller, o fundamento da concepção atualizada da autogestão. Em síntese,nos países 5 6 144

Lucio Lombardo Radice. Um socialismo a inventar, p. 97, Brasiliense, 1982. Citada por Agnes Heller. Para mudar a vida, Brasiliense. 1982 Raimundo Santos (Org.)


socialistas não houve abolição positiva da propriedade privada e, sim, a abolição negativa. Talvez essa reflexão ajude a explicar por que o “socialismo real” se afastou daquele tipo de Estado de transição imaginado por Marx e venha crescentemente assumindo a forma de um Estado autoritário, centralizado e burocrático, relativamente separado da sociedade (IBIDEM, p. 237-238).7 A reflexão da filósofa húngara pode ser completada com esta observação de Luciano Gruppi sobre a estrutura social da URSS: “A gestão da economia não é gestão social; a política não é socializada. Sem socialização da política não pode haver democracia e sem democracia não há socialismo (...), o socialismo como Lênin havia entendido...” Neste ponto, e depois do que foi dito, não é difícil concluir que o fulcro da crise do socialismo é a questão democrática nela implícita, isto é, a ruptura entre socialismo e democracia ocorrida no “modelo soviético”. Ao realizar tal ruptura, ao não estabelecer um nexo correto entre democracia e socialismo, as forças revolucionárias que chegaram ao poder com a Revolução de Outubro, em lugar de se transformarem em classes dominantes e dirigentes, assumiram apenas o papel de classes dominantes. Deram atenção apenas ao aspecto coercitivo do Estado (dominação) e desprezaram a conquista da hegemonia (consenso). O socialismo foi assim reduzido unicamente à mudança das relações de propriedade e de produção, talvez pensando-se que bastasse isso para, automaticamente, alcançar-se todas as transformações e desenvolvimentos indispensáveis à configuração de uma sociedade socialista. É claro que a práxis do “socialismo real”, tal como foi realizada, tinha de se refletir negativamente no pensamento marxista. Para Eric Hobsbawm, o marxismo chegou nesses países a uma tal ossificação, a uma talteologização que, na maioria das vezes, é impossível ele realizar uma análise concreta. Impedido de uma tal análise, ele se limita em geral a repetir os dogmas de uma doutrina oficial. Por isso é mais do que pertinente a afirmação desse mesmo historiador inglês ao concluir que a “crise do marxismo” é apenas o sintoma de um mau marxismo. Uma observação que é indubitavelmente válida

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Agnès Heller. Marxisme et Democratie, p. 237-238. Petite Collection. Maspero, Paris, 1982.

A crise do socialismo

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não só para o marxismo dos países do “socialismo real” como também para todos os marxismos. A crise atual do socialismo tem uma grande repercussão no Ocidente e nos países do Terceiro Mundo. O descompasso entre democracia e socialismo, a negação do pluralismo político e da alternância do poder, além de outros erros e descaminhos, criaram dificuldades e impasses para amplos setores do movimento operário e socialista desses países. Principalmente para aqueles que surgiram sob o influxo da Revolução de Outubro e nela se inspiraram. Daí o esforço crítico que muitos deles, em diferentes níveis, realizam para superar em seus programas, ações e propostas, as concepções autoritárias e dogmáticas do “socialismo real” Muitos desses setores já hoje expressam claramente a preocupação de guardar o que consideram mais positivo na herança de Outubro – a ruptura com o capitalismo. Mas quase todos começam a ter consciência de que os acontecimentos poloneses deram início a uma nova fase na história do socialismo.

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Entrevista de Armênio Guedes a José Fucs*

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rmênio Guedes, 66 anos, militou no Partido Comunista Brasileiro (PCB) até 1983, quando afastou-se da agremiação por causa do modelo de socialismo idealizado por seus dirigentes e porque “não é possível imaginar a luta pela construção de uma sociedade socialista sem uma ampla democracia política.” Sua militância começou na Bahia, seu estado natal, em 1935, onde chegou a ser dirigente regional do partido. Em 1943, foi eleito para o Comitê Central do PCB, na Conferência da Mantiqueira, onde permaneceu até 1954, quando não foi reeleito para o cargo no IV Congresso. Em 1967, voltou à direção do partido como suplente. No entanto, com as perseguições desencadeadas contra os comunistas, no início da década de 1970, ele deixou o país seguindo para a Europa. Quando o Comitê Central foi reorganizado no exterior, fez parte da Executiva do partido, “porque eu acho que faltava mão de obra por lá”. Em 1980, com o retorno ao Brasil, na primeira reunião do Comitê Central, aqui realizada, afastou-se, mais uma vez, da Executiva, pois “eram muito grandes as discordâncias”. Atualmente, é assessor parlamentar. É um dos fundadores e diretores da revista Presença, de política e cultura. JF – Quais foram as principais divergências que surgiram entre você e os demais dirigentes do PCB que acabaram provocando a sua saída do partido? Armênio Guedes – Basicamente, eu lhe diria que estas divergências giravam em torno do modelo de socialismo idealizado por estes * Revista Socialismo & Democracia, n. 6, ano 2, 1985. São Paulo: Alfa Ômega. José Fucs é jornalista formado pela PUC-SP. 147


dirigentes – que é uma concepção baseada no socialismo construído nos países do chamado “socialismo real” – e pela opção deles em seguir o modelo de partido da 3a Internacional, principalmente do partido soviético, modelo em que o centralismo esmaga e afoga a democracia partidária. Eles não concordavam em assumir uma atitude crítica diante do tipo de política conduzida pela União Soviética. Acham normal o que ocorreu no caso da Tchecoslováquia, do Afeganistão e da Polônia. Eles pensam que tudo que a União Soviética realizou como política exterior é correta – é uma política a favor do socialismo. Eu discordo deste posicionamento e acho que isto tem pouco a ver com uma política socialista de solidariedade internacional. A União Soviética, há muito tempo, vem realizando uma política de grande potência. Eu não diria que é uma política imperialista. Mas, repito, é uma política de grande potência, que se choca com os interesses dos povos de outros países e é, de certa forma, uma espécie de exportação do modelo soviético. Essa não é uma divergência qualquer: é uma divergência fundamental. A coisa se complica ainda mais quando se sabe que Prestes também acusa a direção do partido de ser “antissoviética”. Na verdade, não é. As posições de Prestes e a do grupo da direção atual do partido, na realidade, são muito semelhantes. Não só enquanto concepção de partido, mas também enquanto concepção de socialismo. Eu acho que eles não são capazes de definir as divergências existentes entre eles, porque talvez estejam muito mais em jogo questões relacionadas com o controle do aparelho partidário do que propriamente concepções. Não estão em jogo as concepções de cada um deles sobre o socialismo, sobre o “socialismo real”, ou melhor, sobre a relação da democracia com o socialismo. JF – Quer dizer que a sua posição se aproximava de certa forma do que se convencionou chamar de “eurocomunismo”? Armênio Guedes – Sim, porque eu vejo a democracia como um valor universal. Não é possível imaginar a luta pela construção de uma sociedade socialista sem uma ampla democracia política em que os princípios da representatividade e as liberdades fundamentais da pessoa humana sejam garantidas. Eu acho que é impossível pensar a construção de um regime socialista sem que exista o pluralismo político e a 148

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alternância do poder. Seria, então, um governo autoritário, como, aliás, é o que existe na maioria dos países do chamado “socialismo real”, onde há um comando único, uma centralização excessiva e uma completa falta de participação das massas, configurando uma total ausência de democracia política. As eleições, por exemplo, são realizadas quase por unanimidade. Não se vê uma discussão num parlamento dos países socialistas. Não é possível que todo mundo pense igual, é? Eles argumentam que lá a democracia funciona de forma diferente, que uma lei antes de ser aprovada é discutida amplamente nas bases, mas tudo isso é um pouco de imposição política, um pouco de cenário, um cenário montado para dizer que isso funciona. Mas, na realidade, não funciona. É um sistema supercentralizado em que a participação do povo é muito pequena e a atividade política das massas é muito controlada e dirigida no sentido do desejo ou da vontade do chamado Estado Partido. Não há, portanto, essa espontaneidade, essa mobilização que se pressupõe ser a grande força do socialismo. A realidade está muito longe daquilo que seria a socialização da política. JF – É verdade que os comunistas em geral apresentam-se em favor da chamada “democracia social” em detrimento da “democracia liberal”? Armênio Guedes – Eu acho que quando se faz crítica à democracia liberal dizendo que é uma democracia formal, não pode se esquecer que há um lado formal da democracia que é importante, porque é uma conquista das massas através da história. O que é formalismo? É ter garantidos a representatividade parlamentar, os partidos políticos, a liberdade do cidadão de ir e vir, a liberdade da palavra, a liberdade de expressão cultural? Não se pode dizer que essas são liberdades formais. E isso não se choca com a democracia social, com as reivindicações das massas por um bem-estar geral, por uma maior participação no controle do Estado. Ao contrário, eu acho que sem essa democracia política dificilmente pode-se ter uma democracia social e econômica efetivas. Eu não estou com isso negando algumas conquistas que estão na origem da Revolução de Outubro, que representaram, realmente, um grande avanço das massas na história. Ninguém pode negar o valor universal que isso teve ao romper as regras do capitalismo. Mas, ao mesmo tempo, o fato de não existir democracia política, de não existir uma partiO socialismo – Entrevista de Armênio Guedes a José Fucs

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cipação das massas no controle e na elaboração da política nos países socialistas, permite, muitas vezes, que se formem verdadeiras camarilhas entre a chamada “casta dirigente” em todos estes Estados. JF – Qual seria a diferença básica, na sua opinião, entre o chamado “eurocomunismo” e a social-democracia? Armênio Guedes – Eu acho que a diferença é que, na concepção clássica da social-democracia, não há uma ideia de se romper com a lógica do capitalismo. Há, de parte da social-democracia, muitas vezes, apenas a ideia de reformar o capitalismo, de melhorar o capitalismo. Mesmo que, na prática política, o “eurocomunismo” possa se confundir com a ação da social-democracia, porque ele também não busca uma abolição violenta do capitalismo, isso não obscurece o fato de que, em última instância, os “eurocomunistas” querem a negação da lógica do capitalismo a partir da defesa intransigente dos interesses das massas trabalhadoras e não a partir de uma conciliação entre os interesses dos trabalhadores e dos capitalistas. Mas é evidente que há um amplo campo de ação comum entre estas forças. E eu não creio que a política feita pelos setores social-democratas mais avançados se oponha, totalmente, à proposta dos “eurocomunistas”, na medida em que as massas se mobilizem e sejam capazes de romper com a lógica da exploração capitalista. Agora, eu quero esclarecer que os chamados “eurocomunistas” buscam, na verdade, um terceiro caminho para transformar a sociedade no sentido do socialismo, fugindo às leis e às lógicas do capitalismo, um caminho diferente não só do “socialismo real” do modelo apontado pela 3a Internacional, como também daquele que luta apenas para reformar e melhorar o capitalismo. JF – Mas os partidos comunistas têm se colocado como “legítimos representantes da classe operária”, usando isso como argumento para descaracterizar outras propostas sob a acusação de “reformismo”. Como é que você analisa esta questão? Armênio Guedes – Deixando um pouco de lado os mitos, em muitos países, em determinados momentos, os comunistas representaram, de fato, o movimento operário ou se identificaram com as reivindicações dos trabalhadores. No entanto, não se pode negar a importância da social-democracia, em alguns países da Europa. Foi um erro dos comunistas qualificar, por exemplo, nos anos 1920, depois do 150

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aparecimento do fascismo, a social-democracia como social-fascismo. Na verdade, era uma coisa muito diferente. Isso contribuiu muito para atrasar as conquistas dos trabalhadores, na medida em que criou um abismo entre o movimento social-democrata e o movimento comunista, entre os sindicatos dirigidos pelos sociais-democratas e os sindicatos dirigidos pelos comunistas na Europa. Só mesmo depois de 1937, quando o fascismo batia nas portas de todos os países, é que os comunistas entenderam e compreenderam – ainda que de forma limitada – a necessidade de modificar um pouco esta atitude em relação à social-democracia. Mas, logo depois da II Guerra Mundial, pouco a pouco foram voltando os velhos preconceitos, as velhas visões e os velhos estereótipos, o que continuou prejudicando o movimento operário. As críticas que fazemos aos comunistas não querem dizer que a social-democracia também não tenha cometido grandes erros. Então, eu acho justamente que a posição correta seria aquela assumida pelos comunistas italianos que estão buscando um terceiro caminho, partindo do princípio de que muitas coisas estão por ser resolvidas onde existe o chamado “socialismo real” e muitas coisas também estão por ser resolvidas nos países onde a social-democracia ocupou o poder durante anos e anos. JF – Ultimamente, Marx tem sido enterrado e crucificado, dentro desta revisão que vem ocorrendo no pensamento socialista no mundo inteiro, principalmente em função das experiências do “socialismo real”. Qual você acha, seria o papel de Marx ainda hoje? Armênio Guedes – Eu acho que ele tem um papel imenso, porque a força das ideias de Marx continua viva. Isso não quer dizer, evidentemente, que Marx tenha pensado a humanidade de seu começo até o fim. No entanto, ele representa um momento brilhante do pensamento social, o que não significa, também, que o marxismo seja um dogma. JF – Então, antes de ser uma revisão do marxismo, essa sua posição é uma revisão do leninismo? Armênio Guedes – Nem do marxismo, nem do leninismo, mas um enriquecimento do que estes pensadores fizeram no terreno da ciência social. A ciência social não pode ser congelada no momento em que O socialismo – Entrevista de Armênio Guedes a José Fucs

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eles pararam de pensar. Outros pensadores apareceram. Quanta contribuição deu Gramsci ao marxismo ocidental depois do leninismo? O próprio Lênin viveu numa sociedade muito diferente da sociedade que existe na Europa Ocidental, por mais que ele fosse um pensador universal. Mas ele era, basicamente, um pensador com suas raízes mergulhadas na Rússia, na sociedade russa, na cultura russa. Então, a sua concepção de partido está muito impregnada do que era a Rússia pré-revolucionária. Mesmo em seus últimos dias de vida, Lênin demonstrava uma grande preocupação com o futuro da luta revolucionária, principalmente no sentido de que essa luta seguia um caminho não muito civilizado. Os últimos escritos de Lênin sobre o poder soviético, por exemplo, já manifestavam muita preocupação em relação a isso. JF – O Partido Comunista Espanhol, de Santiago Carrillo, deixou de se definir como leninista, radicalizando esse processo de rompimento com o “modelo soviético”. Como você se posiciona em relação a isso? Armênio Guedes – Eu também sou partidário disso. Eu acho que um partido não deve ter uma ideologia oficial. Ele deve ser laico, neste sentido. Eu, enquanto político, posso ser marxista, mas o Partido Comunista pode ter um programa que não seja necessariamente baseado nas ideias elaboradas por Lênin. Um partido não deve se orientar pela doutrina. Isso não significa, no entanto, que o PCE tenha tentado liquidar o pensamento leninista, que continua tendo uma influência muito ampla no movimento operário e no movimento revolucionário. JF – Qual deve ser, afinal, na sua opinião, o modelo do socialismo brasileiro? Armênio Guedes – Eu não saberia definir isso, não. Eu acho que o modelo do socialismo brasileiro tem de surgir na luta do povo brasileiro por uma transformação social. O socialismo brasileiro terá que ser um caminho especificamente brasileiro. Quando a gente quer subordinar esta especificidade a um modelo já estabelecido, tendo como protótipo uma revolução que já ocorreu, sempre se tem o perigo de seguir por vias não muito propícias ao avanço na luta por uma transformação social. Esse caminho está sendo inventado no entrechoque de ideias, nesse conflito ideológico, pelos socialistas e pelos democratas brasileiros. 152

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JF – No Brasil, hoje, o PDT, liderado pelo governador Leonel Brizola, coloca-se como um partido socialista. Como você vê o posicionamento do PDT na realidade brasileira atual? Armênio Guedes – Eu acho que a coisa mais importante para qualquer pessoa que se diga partidária de uma transformação social ou socialista no Brasil é a sua posição diante da questão democrática. E eu acho que a posição do Brizola não tem facilitado a solução desse problema. Brizola tem sido sempre um obstáculo a isso. Primeiro, na campanha das diretas quando ele levantou a tese do governo tampão do Figueiredo. A vida mostrou que esse caminho estava errado. Depois, quando colocou a questão da eleição do Tancredo no Colégio Eleitoral, ele também tomou uma posição vacilante, ambígua, cheia de reticências, que não é a posição das forças majoritárias da grande frente que se formou em torno de Tancredo, que realmente representava a possibilidade de romper com a República militar e criar uma República nova, democrática. Agora, a posição do Brizola ainda continua um tanto quanto obscura. Eu acho que há um erro básico de Brizola que é a forma caudilhesca que ele imprime à direção do partido que dirige. Mas, apesar de tudo, eu acho que isso não o exclui do grande universo das forças capazes de criar uma democracia estável neste país. Pouco a pouco, ele também vai ser batido pela realidade e vai acabar, ainda que tardiamente, aderindo a estas posições. No momento, a sua posição não é muito condizente com a de um socialista lúcido. Ele é um socialista dos pampas, meio atrasado. Eu digo “dos pampas” não no sentido pejorativo, mas no sentido do tradicionalismo, da forma caudilhesca com que ele se coloca. Brizola traz muito esse traço da cultura conservadora do seu estado natal, que é uma cultura política muito ligada ao caudilhismo e aos métodos de pensar e fazer política que lhe são peculiares. JF – E quanto ao PT, qual é a sua posição? Armênio Guedes – Eu lamento a posição atual do PT, porque é um partido no qual depositamos muitas esperanças. Eu nunca fui daqueles que, pelo fato de ter sido do PC, apostavam no fracasso do PT. Agora, eu sinto uma tendência no PT de ser exclusivista, de se condenar ao gueto político, de querer se distanciar do universo das forças democráticas, de não ser uma parte ativa e um elemento propulsor destas forças. O socialismo – Entrevista de Armênio Guedes a José Fucs

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Mas acho que eles já começam a ver isso também. Há uma contradição, hoje, no PT, muita discussão. Pelo que se nota, inclusive na imprensa, a questão da democracia também começa a preocupar o PT. O livro do professor Francisco Welffort, por exemplo, sobre democracia, tem muito dessas ideias que eu procurei defender aqui. Então, neste momento, muita gente do PT tem noção disso. No entanto, também há correntes que pensam o contrário, correntes radicais, dogmáticas, ortodoxas, que forçam muito o partido a essa posição excludente e exclusivista, a esta posição de querer ser sempre o diferente: uma posição que privilegia a democracia social em detrimento da democracia política, ou melhor, que ignora o nexo dialético entre uma e outra. JF – Você acha possível a formação de uma “frente de esquerda” para facilitar a construção do socialismo no Brasil? Armênio Guedes – Eu continuo achando que a criação de instituições democráticas duráveis ainda é a coisa mais importante, neste momento. Eu acho que o que baliza a luta, hoje, pelo avanço e progresso no Brasil é a constituição democrática do Estado e da sociedade brasileira. E essa necessidade é reconhecida por todas as forças políticas do país. Esse é o grande pacto destas forças, um pacto, talvez, mais político do que social. Bem, mas as forças de esquerda no Brasil, em função da nossa história, da discriminação e das perseguições e de uma luta ideológica mal conduzida, ainda têm muitas restrições umas às outras, muitos preconceitos do ponto de vista subjetivo, mesmo que a objetividade da situação favoreça uma convergência destas forças numa ampla frente de luta. Então, para que haja esta unidade é muito importante nós estarmos conscientes disso e que esse contato, ainda que com divergências profundas, seja feito, porque nós sabemos que há pontos de convergência que são importantes para que o processo político-democrático avance. Portanto, eu acho que há uma possibilidade objetiva de trabalho nesse sentido, mas há, também, aqueles empecilhos de ordem subjetiva a que me referi. Na medida em que as pessoas começarem a discutir, na medida em que houver um exercício maior da democracia no país cuja falta nestes últimos anos tem sido um fator que vem prejudicando esta unidade, estes obstáculos irão sendo vencidos.

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Entrevista de Armênio Guedes à revista “Socialismo & Democracia”*

S&D – O que você ou seu partido entende por socialismo? Armênio Guedes – No momento, não pertenço a nenhum partido. Acho o socialismo não apenas uma forma de organização da vida econômica, mas sobretudo um regime político e uma forma de organização da sociedade em geral. Assim, um regime para ser socialista, além da socialização dos meios de produção, deve ter como característica uma ampla democracia política. É inconcebível socialismo sem que se assegurem a todos os cidadãos as liberdades mais amplas: de votar, ser votado, de livre organização; das pessoas se organizarem nos partidos que desejarem; liberdade de imprensa, enfim, das chamadas liberdades fundamentais dos cidadãos. Em contrapartida, fica definido aquilo que não deve ser o socialismo: que não se baseie e não admita o pluripartidarismo, que não exista a alternância do poder. Hoje, é muito difícil, nas atuais condições do mundo, um socialismo implantado através de um ato de força, pois necessariamente ele tende a um regime de tipo autoritário que, mesmo adotando medidas em benefício das necessidades materiais elementares dos cidadãos – direito à educação, à saúde e a socialização dos meios de produção – acabará por definhar e se burocratizar na medida em que não há uma socialização também da política, em que as pessoas não participem amplamente da vida política. Em linhas gerais, de uma forma tosca e rápida, essa é a minha visão do socialismo no mundo de hoje.

* Revista Socialismo & Democracia, n. 6, ano 2, 1985. São Paulo: Alfa Ômega. 155


S&D – Qual é o critério objetivo para julgar se um partido ou grupo é socialista ou não? Armênio Guedes – É a forma como esse partido luta ou se insere na vida política desse ou daquele país. Se esse partido realmente se coloca ao lado dos trabalhadores; se luta realmente pela ampla democracia e a participação dos trabalhadores na vida e nas decisões do país; se ele não transige diante de conquistas fundamentais ou dos interesses fundamentais dos trabalhadores e se ele procura sempre uma relação ou estabelece uma relação correta entre o mundo do trabalho e o da cultura, no sentido também de que a liberdade se exprima na possibilidade ampla de todos poderem elevar seus níveis culturais, participar da elaboração da política do país, participar amplamente da sociedade civil. Se um partido faz isso e se diz socialista então esse partido é merecedor de crédito. Agora, se um partido se diz socialista e se coloca contra os interesses dos trabalhadores, contra a ampla organização dos sindicatos, da sociedade civil, se ele coloca qualquer medida de restrição às liberdades públicas, às organizações que lutam pela melhoria das condições de vida do povo, contra as medidas do progresso, é evidente que esse partido não é o que se possa chamar socialista. Principalmente se esse partido não tem como objetivo final – e deixe isso sempre muito claro nas batalhas que trava – acabar com a lógica da sociedade privada e do capitalismo e da sociedade organizada na base da propriedade privada. Acho que esse é o critério político da militância ou da atividade política do partido, que determina se ele é ou não socialista. Acho que isso é uma coisa complicada de se ver na prática da vida, da sociedade em geral, e da nossa sociedade, em particular. S&D – Quais devem ser na sua opinião os traços característicos do regime socialista, hoje? Armênio Guedes – Isso já estava mais ou menos definido nas coisas que disse anteriormente. É um regime que não só se baseie na socialização dos meios de produção, mas que também saiba estabelecer um nexo entre isso e uma ampla democracia política; que veja na democracia uma forma de desenvolver a sociedade como um elemento essencial para uma sociedade realmente justa do ponto de vista social e econômico.

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Então, o que tem que se determinar é aquilo que Bobbio (cientista político liberal italiano) chama de paradoxo: onde houve revolução socialista, a liberdade política não foi preservada, e onde a liberdade política foi mantida, não houve revolução socialista. Eu acho que o ideal do militante socialista e da humanidade é encontrar a junção dessas duas coisas. S&D – Quais as diferenças principais entre a sua concepção de socialismo com as diferentes formas de capitalismo e liberalismo? Armênio Guedes – São essas a que acabei de referir-me. Desde que as pessoas não se atenham àquilo que eu chamaria a lógica do capitalismo, a lógica da propriedade privada, da preponderância do indivíduo sobre o coletivo, se atenham ao chamado liberalismo clássico, que o indivíduo é tudo, a sociedade é nada, o coletivo é nada, então isso leva à brutal competição entre os homens e a lei quase que da selva, baseada em que todos são livres e cada um faz o que quer. Mas isso, na vida real, significa o domínio dos que acumularam riquezas sobre a grande massa que foi despojada dela, do fruto de seu trabalho. É isso que a história nos mostra e se choca frontalmente com a concepção de uma sociedade baseada na justiça social, numa divisão da riqueza social de acordo com o trabalho de cada um, baseada no coletivismo, na solidariedade, mas naquela em que os homens se reúnam para resolver seus problemas e não para se digladiarem, não para predominar ou dominar os outros. S&D – Quais são as falhas fundamentais que você localiza nos países socialistas? Armênio Guedes – Eu acho que a falha fundamental, nos chamados países do socialismo real, é justamente essa falta de democracia política, da inexistência de pluralismo na sociedade, da existência de partidos únicos ou que, quando existe mais de um partido político, os demais são caudatários do partido principal, quer se chame socialista, comunista, unificado ou dos trabalhadores; os demais partidos só são fachadas porque, na realidade, quase todos têm uma cláusula fundamental em seus estatutos: a de seguir o partido dominante. Portanto, essa é uma das críticas fundamentais que eu acho que deve ser feita aos países do chamado socialismo real; outra, é a burocratização desses regimes, em vez de haver a socialização dos meios de produção, O socialismo – Entrevista de Armênio à revista Socialismo & Democracia

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no sentido de que toda a sociedade ou grupos sociais sejam donos destes meios, estas riquezas passaram a ser controladas e dirigidas centralmente pelo Estado, falta aquele conceito dos socialistas clássicos no sentido de haver autogestão nas unidades de produção. S&D – Qual a sua opinião sobre os regimes europeus de social-democracia? Armênio Guedes – Durante muito tempo, foram julgados por nós, partidários do socialismo, mas que estávamos organizados em partidos comunistas, de uma forma muito injusta. Nós só víamos nesses partidos o fato de eles manterem o regime capitalista, de se manterem dentro da lógica do capitalismo e colocarem o ideal de uma sociedade socialista num futuro muito remoto. Na realidade, nós não vemos também que esses partidos são – têm uma base – de trabalhadores, que os partidos sofrem influência dos trabalhadores e que por isso são obrigados a fazer concessões, a se bater por determinadas mudanças sociais e políticas que, em última instância, redundam em melhorias das condições de vida da classe trabalhadora e falo em classe trabalhadora no sentido mais amplo da palavra, falo de todas aquelas pessoas que vivem do seu trabalho, recebem salários e não pertencem às classes exploradoras. Houve, no passado, um julgamento muito severo e antipolítico em relação à social-democracia. Houve um período em que os regimes social-democráticos eram caracterizados como social-fascistas, social-imperialistas ou coisa que o valha. Logo depois da I Guerra Mundial, os partidos social-democratas também foram caracterizados como tal; depois, na medida em que surgiu o fascismo e consequentemente a necessidade de uma frente única dos trabalhadores para defender a democracia, nós vimos que era necessário fazer uma diferença entre estes partidos e os outros; que entre os partidos social-democratas, de um lado, e os partidos liberais tradicionais e os partidos conservadores de direita, de outro, havia diferenças muito importantes. Hoje, na Europa, um partido tão importante como o comunista italiano, que tem uma concepção diferente da transformação social, transformação essa baseada, não numa imposição, num ato de violência em que as classes subalternas se apossam, através de um partido, do Estado e implantam o socialismo de baixo para cima, mas que vê a necessidade de uma longa e prolongada luta dos trabalhadores, das 158

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massas populares, uma ampla e demorada luta para obter da sociedade o consenso, a favor do socialismo, de um socialismo que realmente modifique a estrutura da sociedade, que produza transformações sociais profundas à base de um consenso nacional e não de uma imposição. Um partido que faz isso, como o PCI, vê a necessidade de um entendimento, de uma aliança com as forças social-democratas. Hoje, o PCI se bate muito por uma aliança das esquerdas na Europa. Acho que essa é uma indicação que deve ser pelo menos apreciada, estudada e analisada pelos que lutam realmente pela transformação social em toda parte do mundo, ver que essa transformação pode ser fruto de um bloco de forças que também inclua a social-democracia. Então, é nisso, é no encontro histórico dessas duas correntes, dessas duas grandes vertentes do movimento pelas transformações sociais existentes no mundo nos últimos 150 anos que eu acho que nós vamos encontrar a rota para que o chamam de um terceiro caminho para a criação de um Estado de regime socialista ou de transformação social profunda. S&D – Você acredita que a experiência do PCI possa ser generalizada para outras realidades? Armênio Guedes – Não faria uma afirmação tão categórica. Acho que é uma experiência válida, ou melhor, que deve ser analisada e estudada como uma tentativa a partir da situação em que o capitalismo moderno chegou, ao estágio em que chegou a sociedade desenvolvida na Europa. O PCI é um partido que tenta inovar, um partido que foge à lógica ou àquela tendência de gueto. É um partido que não quer a exclusividade da transformação social e, então, procura nos movimentos sociais, nos demais partidos, que de uma forma ou de outra tentam modificar a sociedade e o Estado, um caminho diferente daquele que até aqui foi seguido e que redundou em experiências, na minha opinião, não muito positivas no que diz respeito àquilo que nós idealizamos como uma sociedade socialista, uma sociedade justa em que haja não só o bem-estar material, mas que haja o florescimento político de todos os cidadãos. S&D – Quais os pontos de contato e de diferenças entre o seu socialismo e os diferentes tipos de socialismo reais existentes na URSS, Democracias Populares, China, Iugoslávia, Cuba etc.?

O socialismo – Entrevista de Armênio à revista Socialismo & Democracia

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Armênio Guedes – É justamente essa questão da democracia. A não existência da democracia política nesses países, mesmo naqueles mais liberais, mais abertos à participação das massas no processo e na vida política, mesmo aí há restrições muito sérias. É o caso de Cuba, Iugoslávia e da própria Hungria. Já em relação a um país que passou a ser o centro de atenção de todos aqueles que lutavam pelo socialismo, como é o caso da URSS, eu acho que ao lado das conquistas materiais que a Revolução de Outubro trouxe, por ter ela fugido à lógica do capitalismo e do imperialismo, em contrapartida, não surgiu uma sociedade democrática em que realmente as massas participem ativamente na elaboração e na vida política do país, tanto interna como externamente. O que nós vemos é essa coisa desalentadora: um país como a URSS realizar, hoje, uma política – não diria imperialista, mas de grande potência, uma política internacional que visa, antes de tudo, garantir os interesses da URSS enquanto Estado, um Estado forte e poderoso. Então, aí vem a divergência básica com esse tipo de política que segue em muito os padrões estabelecidos pela 3ª Internacional, de partidos únicos como elementos de transformações sociais, de regimes políticos centralizados, uma democracia absolutamente restrita às massas, que deu na prática, como vemos, a parlamentos que não têm uma expressão maior, porque tudo é elaborado pelo Estado-Partido; regime unipartidário, regime em que há uma centralização excessiva, onde as liberdades individuais, o florescimento do cidadão enquanto membro da sociedade foi muito achatado. Isso tem reflexo até no próprio desenvolvimento dos países. O fato de não existir democracia, de não existir ampla participação das massas, tem como resultado inclusive a estagnação da economia de alguns desses países. O nível de vida é muito limitado, o bem-estar das massas idem, ainda que algumas coisas básicas lhes sejam asseguradas como educação, saúde, mas a vida não se resume só a isso – trabalho – tem o lado do lazer, dos bens culturais, do bem-estar material amplo dos indiví­duos. Quando nós comparamos esses regimes com os de países adiantados da Europa Ocidental ou dos EUA, acho que há um desnível muito grande ainda. Isso pode ser atribuído ao fato desses socialismos serem centralizados, nos quais não existe o pluripartidarismo e a possibilidade de alternância no poder. Eu acho que a coisa ficou muito clara no caso da 160

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Polônia. Eu tinha minhas dúvidas sobre certas coisas que se passavam nos países socialistas. A partir do caso polonês, isso se esclareceu de forma definitiva para mim. Vimos um partido dito operário se colocar contra a reivindicação das grandes massas trabalhadoras organizadas no sindicato Solidariedade. Pode-se dizer que, nesses países, esses sindicatos não queriam o socialismo, como é que nós vamos resolver essa questão e impô-lo de cima para baixo. Pela força? Ele efetivamente deixa de ser socialista. S&D – Como o senhor explica historicamente esses fatos? Armênio Guedes – Eu não sou historiador e teria dificuldades de explicar esses fatos, mas acho que houve um desvio de rota. Houve uma mudança de rota, ou não se corrigiu a rota. Muitas coisas podem ter vindo de Marx, Engels e Lênin nas suas concepções e que talvez pudessem levar a um tipo de regime autoritário; deveriam ter sido corrigidas, a fim de que não se chegasse, a sociedade socialista, ao ponto a que chegou. Ao tipo de sociedade em que o Estado é tudo, o Partido é tudo, as pessoas pouco significam, não há democracia política, não há participação, não há socialização da política. Eu acho que foram deformações produzidas em parte por um não domínio da teoria ou das ideias do socialismo por parte dos dirigentes desses países e também explicado por certas condições históricas em que surgiu o socialismo nesses países. Países, talvez, mais atrasados, nos quais a classe trabalhadora tinha um nível de vida inferior, um nível cultural inferior ao dos países adiantados. Quem sabe, as tradições nacionais não induziram a forma autoritária de Estado? No caso da URSS, isso é evidente. Por ser o país mais poderoso, digamos, o desencadeador desse processo, de uma revolução socialista. Depois de 1917, em várias partes do mundo, todos os países seguiram esse modelo que se mostrou ineficiente e incompetente para resolver os grandes problemas como a transformação social profunda, que desse como resultado não só a socialização dos meios de produção, mas também a elevação cultural e material das massas nos países do chamado Sorex. S&D – Qual é a sua opinião sobre a jovem revolução nicaraguense? Armênio Guedes – É uma revolução que passa por uma série de dificuldades, com o inimigo batendo à porta. Sofre com essa pressão O socialismo – Entrevista de Armênio à revista Socialismo & Democracia

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direta dos EUA. Isso restringe as possibilidades de uma ampla participação criativa do povo num caminho novo para o socialismo. Nós vemos, então, a Nicarágua entrar, um pouco, na lógica da revolução cubana, na lógica das revoluções que têm que se defender por meio das armas. Aí, então, começam as restrições às liberdades. S&D – O senhor acha possível unir, dialeticamente, socialismo e democracia, criando um socialismo democrático ou democracia socialista? Armênio Guedes – Eu acho que é possível uma democracia socialista; sou mais partidário da democracia socialista do que do socialismo democrático embora sejam praticamente a mesma coisa, mas como acho que nós vivemos, no Brasil, um período em que a democracia é a coisa mais importante que existe, a estabilidade democrática é essencial para que hajam transformações e mudanças de fundo. Então dou essa predominância ao lado democrático. Lênin dizia: “que não se pode pensar em conquistar o socialismo sem democracia”. Não se pode pensar em construir e consolidar o socialismo sem essa democracia também. Acho que esse nexo dialético entre democracia e socialismo não deve se afastar do horizonte daqueles que realmente lutam pelo socialismo no mundo. S&D – Pelo que vimos até agora, fala-se muito em socialismo democrático, mas não se localiza um país com estas feições. Isso ainda está restrito ao campo das ideias? Armênio Guedes – Acho que é uma aspiração – como eu disse, nem tudo é desprezível. Nos países socialistas, não se pode dizer que não houve coisas importantes do ponto de vista das conquistas humanas, políticas e sociais. Como também não se pode dizer que tudo foi feito, ao contrário, falta muita coisa a se fazer. Isso se coloca, efetivamente muito mais no campo das aspirações, no terreno dos objetivos, das coisas a serem conquistadas do que propriamente de uma coisa já adquirida. Mas, de uma forma ou de outra, se vê pelo próprio movimento, uma constante inquietação de forma intermitente, surgindo nos países do Sorex (socialismo realmente existente). Também a luta das massas nos países dominados ainda pela lógica do capitalismo faz com que essa esperança, essa aspiração, não morra em cada um de nós. Ao contrário, ela está viva e é uma base real para o socialismo no mundo. É uma coisa que será sempre fruto de lutas. Há coisas negativas e 162

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positivas, mas elas não amortecem as esperanças, ao contrário, tornam-se esperanças sempre, não esperanças baseadas no que é apenas desejo sem base na realidade – mas esperança que tem caráter real, que tem por trás dela a força da História. S&D – O senhor acha possível um socialismo brasileiro? Como ele deverá ser? Armênio Guedes – Eu acho que é possível. Como em qualquer país, é possível o socialismo. Talvez seja mais, por estar o país numa etapa mais avançada do que outros países do Terceiro Mundo. É um país onde já existe uma base industrial, onde já existe uma economia desenvolvida. Isso é um pressuposto importante em direção ao socialismo. Ao lado desse pressuposto material, existem também outros que são objetivos ou são de caráter subjetivo. Nosso povo e alguns setores importantes de nossa sociedade têm tido como bússola política uma transformação social profunda em nosso país. Às vezes, para algumas camadas, isso é mais claro, para alguns segmentos da sociedade e para alguns partidos, é menos, mas grosso modo o país já foi tocado historicamente, até com certa profundidade, pelas ideias de uma transformação social. É ainda uma ideia difusa em grandes massas do nosso povo, mas uma ideia que se traduz em manifestações dos partidos políticos que lutam pelo socialismo declaradamente; que se traduzem em posições tomadas pela Igreja Católica, por alguns partidos mesmo da burguesia mas que têm um contingente popular muito grande. Enfim, se nota que no Brasil existe no inconsciente de grandes camadas da população esse desejo de uma transformação que é possível uma transformação social nesse país. Por isso tenho fé, ainda que na minha idade eu talvez não venha a participar. Mas acho que a premissa histórica disso é a luta que hoje nós travamos pela consolidação de um regime político de democracia. Um regime estável em que as chamadas liberdades formais e, às vezes, desprezadas por nós, devido ao termo, sejam realmente garantidas e efetivas e que o cidadão brasileiro possa, portanto, florescer. S&D – Qual a sua opinião a respeito da filosofia do materialismo dialético e histórico? Armênio Guedes – Eu sou um político mais ligado às coisas da política do que propriamente às da filosofia. É evidente que durante, toda a minha vida, eu procurei me orientar pelas ideias do materialisO socialismo – Entrevista de Armênio à revista Socialismo & Democracia

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mo. Me considero um materialista dialético e, como tal, procuro seguir, quando analiso os fatos sociais ou políticos, as ideias que aprendi com os clássicos do marxismo. Eles abriram, com seus conceitos, um imenso campo de investigação e pesquisa social. Acredito que outras teorias sociais e filosóficas possam também, a partir da própria realidade, descobrir aspectos e contribuir para o conhecimento da sociedade, da cultura e do homem em geral. S&D – E a respeito das religiões, sobretudo a Católica Apostólica? Armênio Guedes – Acho que as religiões têm que ser respeitadas. Eu vejo isso como um político. Acho que deve haver ampla liberdade e garantia para todos os cultos religiosos. No caso específico da religião católica, a predominante no Brasil, há uma certa particularidade que deve ser assimilada: nós devemos ver que o catolicismo não pode ser desprezado, não pode ser ignorado por aqueles que lutam por uma transformação social no Brasil. Acho que as pessoas, indivíduos e os partidos não precisam estar possuídos de uma ideologia materialista para desejarem uma transformação social. No movimento socialista, hoje, há muitos militantes que são católicos, protestantes, israelitas ou que são adeptos de outras crenças religiosas. Eu acho que a religião não é de uma forma absoluta, como no passado, um freio para o desenvolvimento social. Ela pode, em determinadas condições, até ajudar no avanço da luta social. A habilidade está naqueles que são políticos, que são materialistas, saber estabelecer alianças com os religiosos para que eles não sejam dirigidos apenas pelo fanatismo e pelo obscurantismo como acontece em determinados momentos históricos e que, realmente, tem consequências muito ruins. O papel dos homens esclarecidos, dos homens que se julgam mais com o pé na realidade, é estabelecer relações políticas, com toda tolerância, com aqueles que são religiosos. S&D – Só para finalizar: o senhor poderia sintetizar, em poucas palavras, as divergências que o levaram a se desligar do PCB? Armênio Guedes – Foram divergências do ponto de vista das concepções políticas sobre a situação do país hoje. As suas referências internacionais. O seu apoio incondicional, acrítico, a tudo o que 164

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ocorre nos países socialistas, no socialismo real. O auge dessas divergências foi justamente no momento do golpe militar na Polônia em que eu fiquei absolutamente contra esse golpe e o PCB deu uma explicação, achando que ele foi necessário e imprescindível à manutenção do regime socialista na Polônia e, portanto, isso redundava em benefício para o socialismo em todo o mundo. Na minha opinião, isso redundou em prejuízo para a causa do socialismo. Portanto, também em prejuízo à causa, teoricamente defendida pelo PCB. S&D – O que o senhor acha da revista Socialismo & Democracia? Armênio Guedes – Eu acho que qualquer revista que trate esse assunto é uma revista que merece nosso apoio e que contribui para elevar o nível do debate político em nosso país. O que aspiro é que uma revista como a Socialismo & Democracia se volte cada vez mais para a questão concreta da democracia em nosso país. Vejam quais são realmente os “nós” a desatar para que as forças democráticas desse país sejam capazes de assegurar as conquistas destes últimos cinco anos, como o fim do autoritarismo e a transição para um regime de democracia política estável. Esses são os meus votos.

O socialismo – Entrevista de Armênio à revista Socialismo & Democracia

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5 A nova formação política



PMDB: as novas tarefas do partido da transição democrática*

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rmênio Guedes, jornalista e dirigente comunista por muitos anos, tem sua vida ligada à história da luta de resistência democrática no país.

Nessa entrevista, um dos principais formuladores da política de transição do interior do PCB e atual militante peemebedebista, analisa as conjunturas paulista e nacional, conversando, com a revista Presença, sobre as principais tarefas do PMDB na construção de uma institucionalidade democrática para a sociedade brasileira. RP – Talvez você pudesse iniciar a entrevista com um breve balanço dos resultados obtidos pelo PMDB nas últimas eleições... Armênio Guedes – Não é fácil fazer um balanço rápido dos resultados eleitorais de novembro último, principalmente em São Paulo. Foi uma eleição muito complicada, não é? Sobretudo em virtude das várias correntes que se abrigam sob a sigla do PMDB e que, aqui em São Paulo, podem ser divididas, grosso modo, entre o grupo liderado pelo senador Fernando Henrique Cardoso e o que sempre girou em torno do atual governador Orestes Quércia. Durante todo o processo, o primeiro grupo criou dificuldades para a candidatura Quércia, favorecendo, inclusive, num primeiro momento, o crescimento do candidato Antônio Ermírio. Para os que participavam dessa articulação não havia diferenças fundamentais entre o candidato do PMDB e o do PTB, chegando mesmo a considerar que o Antônio Ermírio era mais representativo das forças que fazem a resistência ao autoritaris* Revista Presença, n. 9, fev./1987. Participaram da entrevista Augusto Rodrigues, Milton Lahuerta e Luiz Werneck Vianna. A edição coube a Giselle Safadi e Maria Alice R. de Carvalho. 169


mo e estão procurando conduzir com êxito a transição para um regime democrático no Brasil. Considero, portanto, um êxito verdadeiramente significativo do PMDB, como partido, a reviravolta observada em torno do mês de outubro, quando a candidatura Quércia assumiu a liderança em todas as pesquisas de opinião realizadas em São Paulo. Um êxito que se deve, em primeiro lugar, à mobilização lenta, porém efetiva, da militância do partido e, em segundo lugar, ao trabalho pessoal do próprio candidato, a uma certa competência do Quércia como político, que soube se manter firme quando o barco começou a fazer água. Essa conjugação de fatores conduz a uma série de observações interessantes, sendo a primeira delas a ideia de que o PMDB saiu desse processo com a sua face moderna fortalecida. E por face moderna estou considerando a sua tentativa de implantação real na sociedade, com a configuração de uma militância ativa que não se manifesta apenas nos períodos eleitorais. Não pretendo exagerar a força e a capacidade de mobilização dessa militância, mas até onde conheço a vida partidária no Brasil, somente o PMDB dentre os grandes partidos, dentre os partidos que não estão ligados diretamente ao movimento operário, pode caracterizar-se por possuir uma militância mais ou menos permanente, com todas as falhas e deficiências que esse fenômeno ainda demonstra ter na prática política brasileira. E mesmo tomando o PCB como exemplo – o PCB nos seus melhores tempos, nos seus tempos de maior militância –, não podemos fugir à constatação de uma militância intermitente que refluía nos períodos de entressafra eleitoral. O mesmo parece ocorrer, hoje, no PMDB, mas, não obstante essa debilidade, percebo um movimento interessante de construção de um trabalho permanente por parte dos ativistas peemedebistas. Acho, por isso, que o êxito eleitoral do Quércia corresponde, tudo pesado, à afirmação do PMDB como um partido que acentua, aos poucos, sua identidade moderna. RP – Revisto, agora, o apoio a Quércia num momento de extrema dificuldade, quando era totalmente incerta a sua vitória, fica claro que tal atitude representava uma política de sustentação do PMDB diante das forças conservadoras e da esquerda “ideologicamente nítida” que pretendiam a implosão do partido da transição. Uma política, enfim, que não considerava extintas as possibilidades 170

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de uma aliança entre os liberais progressistas e a esquerda, em prol das mudanças. Com a vitória de Quércia pode-se dizer que essa política demonstrou-se vitoriosa. Mas estaria Quércia à altura dela? Isto é: o atual governador de São Paulo representa, de fato, as forças mais empenhadas num processo de mudança ou, ao contrário, representa apenas um setor da burguesia empreendedora de São Paulo, pouco afeito às transformações que a democracia exige? Armênio Guedes – Acho que o Quércia está comprometido realmente com as mudanças porque o seu compromisso com o setor do partido que luta por elas é muito forte. Por outro lado, não acredito que sua vitória possa ser caracterizada, apressadamente, como uma vitória infringida aos “inimigos” da transição, pois alguns de seus mais poderosos adversários se encontravam no interior do próprio PMDB, lutando também por mudanças, como é o caso do grupo liderado pelo senador Fernando Henrique Cardoso. Daí eu jamais ter acreditado muito na eficácia dessa articulação que, vez por outra, anuncia a implosão do PMDB, mesmo nos períodos mais difíceis da vida do partido, pois no seu interior há personalidades políticas muito diferentes, com trajetórias diversas, sendo algumas delas egressas de partidos de esquerda, mas com a visão clara de que o PMDB é o partido da transição tal como ela foi concebida, isto é, como o resultado de uma frente larga contra o autoritarismo. E essas personalidades, a despeito de divergências momentâneas, refluem sempre ao mesmo leito. Infelizmente, entre os partidos que se dizem “nitidamente” de esquerda não existe uma visão clara da transição que permita a configuração de uma política de alianças com as forças mais avançadas desse processo em curso visando ao estabelecimento de uma democracia política no país. O exemplo do PT é óbvio: ele poderia desempenhar um papel importante nessa conjuntura, mas é um partido que tem uma vocação tremenda ao gueto e abomina a ideia de aliança, o que é, ao contrário do que acreditam suas lideranças, a essência da atuação de qualquer partido sério que se pretenda ligado ao movimento operário. O Partido Comunista Italiano, por exemplo, caracteriza-se, exatamente, por buscar os aliados certos nas diferentes conjunturas visando à consecução dos seus objetivos. O PT persegue, ao contrário, a preservação da sua “pureza”. A nova formação política – PMDB: As novas tarefas do partido da transição democrática

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Também no PMDB essa questão das alianças políticas a serem buscadas não é sempre muito clara. Talvez isso se deva ao fato de ele ser um partido muito grande e diversificado, e, às vezes, a questão das alianças se apresentar mais como um acordo entre políticos em rixa dentro do próprio partido. Mas, nesse caso, e em contraste com os efeitos produzidos pelo equívoco do PT, as ambiguidades do partido em buscar uma política efetiva de alianças têm seus efeitos diluídos, entre outras coisas, porque a própria militância empurra as lideranças para uma política convergente com todos aqueles que representam a luta por mudanças. Mesmo quando falta clareza às lideranças partidárias do PMDB há uma convergência quase que “natural” ditada pelo reconhecimento da identidade dos objetivos buscados que se manifesta nas bases do partido. É o que está ocorrendo em São Paulo, é o que aconteceu em Recife, no episódio de Jarbas Vasconcelos, momentos em que o PMDB saiu unido e revigorado como partido. RP – Isso significa dizer que o controle dos “notáveis” sobre a máquina partidária no PMDB paulista é menor do que em outros estados da Federação e que, aqui, a militância detém maior controle sobre a política traçada pelo partido? Armênio Guedes – Talvez seja menor, mas é fato que a pressão que vem “de baixo” é muito forte. Uma pressão que vem de um eleitorado de 15 milhões de votos, num estado importante como São Paulo, com grande concentração urbana e com um “interior” constituído por cidades com mais de 100 mil habitantes, como é o caso de Campinas, Santos, Ribeirão Preto, Bauru etc., detentoras de universidades, de uma intelectualidade ativa e de uma imprensa mobilizada em torno dos acontecimentos locais. Talvez isso bastasse para a caracterização da diferença. Mas há um outro elemento para o qual devo chamar atenção: os “notáveis” do PMDB têm o seu passado ligado às lutas populares desse país e tornaram-se “notáveis” exatamente na medida em que participaram, durante os anos de ditadura militar, da luta de resistência democrática. Isso significa que já se posicionaram, há muito tempo, pelas mudanças e, nesse caso, não são insensíveis ao movimento deslanchado pelas bases partidárias nessa direção. RP – Contudo, não lhe parece que a caracterização do PMDB como um partido moderno, mesmo em São Paulo, está a exigir uma implantação mais efetiva dessa agremiação na frente sindical, na 172

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frente feminina, junto aos jovens, além de uma reativação da Fundação Pedroso Horta e da organização de uma publicação permanente? Armênio Guedes – De fato, essas são exigências de um partido moderno, de massas. Mas insisto que o PMDB não se assemelha aos “comitês de notáveis” tal como podem ser definidos os partidos brasileiros antes de 1946. Suas dificuldades de implantação podem ser comparadas àquelas experimentadas mesmo por partidos que se caracterizavam por uma atividade extra-parlamentar, como é o caso do PCB. Com isto desejo sublinhar que não é moeda corrente na vida partidária brasileira o ter uma imprensa própria, comitês funcionando nos bairros e uma influência ativa no movimento sindical. Mas o embrião dessas coisas já se faz notar. As mulheres, por exemplo, do PMDB paulista, organizam-se em torno de um comitê bastante ativo, e há alguma coisa ligada ao movimento sindical, também. RP – Tomando como suposto esse movimento embrionário no interior do PMDB, que papel você atribuiria à esquerda do partido na constituição de uma agremiação partidária permanente, democrática e de massas? Armênio Guedes – Grosso modo, pode-se dizer que a esquerda, mais do que qualquer outro grupo político no país, tem na sua memória, e como parte da sua herança, a crença na importância do funcionamento permanente dos partidos políticos. Isto se aplica, evidentemente, à esquerda do PMDB que deve se esforçar para levar ao conjunto da militância peemedebista aquilo que ela (a esquerda) tem como memória histórica. Sua atuação será tão mais facilitada quanto mais claro estiver que esse esforço deve-se traduzir numa luta pela hegemonia dentro do partido sem grandes rupturas ou radicalizações contra a ala direitista, até que o PMDB deixe de se reproduzir como uma frente e possa aprofundar as características de um partido autocentrado que já se encontram presentes no seu interior. Aliás, essa caracterização do PMDB como um partido-frente é bastante problemática e me faz lembrar de uma das minhas divergências em relação à análise corrente no PCB, quando eu fazia parte de seus quadros. Porque o PMDB não foi formado numa reunião de partidos que se sentaram numa mesa e acordaram quanto à neces­sidade de constituição de uma frente, tal como ocorre no esquema clássico. Ao contráA nova formação política – PMDB: As novas tarefas do partido da transição democrática

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rio, o PMDB foi uma convergência natural das forças políticas que não tinham outra maneira de se posicionar contra a ditadura. Por isso, sempre considerei um pouco forçada a designação do PMDB como partido-frente, principalmente numa conjuntura em que já se havia dado a divisão orgânica dos partidos. Ao PCB faltou a percepção de que o PMDB tinha, como ainda tem, a possibilidade de ser um partido real, o mais importante partido da transição. Esgotada a transição, ou seja, uma vez estabelecida uma institucionalidade democrática no país, poderá haver uma decantação partidária no Brasil, mas ainda assim não estão claros, por ora, os limites da existência e atuação do PMDB. Considero, portanto, plenamente possível a sobrevivência do PMDB, ainda que concluído o processo da transição, dependendo da forma como ele encaminhar a luta pelas mudanças reclamadas pela sociedade brasileira e dependendo da forma como ele resolver suas divergências internas. Sem dúvida, a hegemonia da esquerda no interior do partido representa o caminho mais seguro para a organização de um PMDB moderno, democrático e de massas. Só que a conquista da hegemonia, insisto, não significa uma luta de foice no interior do partido. RP – Mas não exigiria, desde já, uma certa organização da esquerda peemedebista? Não será chegado o momento dessa esquerda buscar construir sua identidade como uma corrente no interior do PMDB? A questão talvez mereça uma explicitação maior. Na caracterização que se faz do espectro partidário brasileiro, afora essa postura do PCB – que encara o PMDB como uma frente com prazo determinado de vigência –, há duas outras visões, igualmente equivocadas, que cresceram dentro do PMDB e têm dificultado o seu fortalecimento enquanto um partido permanente. A primeira delas, de teor mais pragmático, considera que, com a proximidade do desfecho da transição, torna-se justificável subordinar a dinâmica do partido à dinâmica estatal e, dessa forma, realizar as mudanças e o ideário reformista do PMDB como uma tarefa de governo. Com isso, em que pese a realização de algumas reformas, o partido perde a sua independência em relação ao governo e se dilui em vários níveis do aparato estatal. O governo Franco Montoro exemplifica bastante bem esse fenômeno. Já a segunda corrente se encarrega de emprestar sentido à ideia do PMDB como um “partido-ônibus”, isto é, capaz de carregar todo o mundo e, portanto, de 174

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constituir-se na única arena legítima para onde podem convergir as forças políticas que pretendem ter uma atuação real na conjuntura. Estar fora do PMDB, nesse caso, corresponderia à condenação ao gueto, o que contribui, grandemente, para o inchaço do partido e a neutralização da sua atividade – mesmo a parlamentar –, uma vez que qualquer iniciativa política acaba sendo o resultado de tanta negociação entre diferentes setores do partido que se torna quase impossível caminhar, seja qual for a direção. Tomados em conjunto, os efeitos de ambas as posturas sobre a atualização do PMDB como uma instituição duradoura são danosos. Por isso, o dilema com que se defrontaram os peemedebistas consequentes consiste em resguardar o partido dessa estatização, por um lado, e dessa diluição, por outro, causada por sua excessiva... “complacência” para com os mudancistas de última hora. E de onde poderia vir uma formulação que saneasse o partido dos riscos envolvidos nessas duas posturas? Não lhe parecem ser da esquerda do PMDB as possibilidades de construção de uma visão partidária nova, que antecipe, num certo sentido, a vigência de uma sociedade mais democrática? Armênio Guedes – Não creio que o PMDB continue a ser, sempre, esse imenso partido que vence as eleições em 22 estados ou, por outro lado, que se torne algo correspondente ao PRI, o partido oficial do México. E, suspensas essas possibilidades, é provável que venhamos a observar a sua depuração progressiva, tanto em relação ao fisiologismo, que é a forma mais perversa do estatismo que vocês apontavam, como também em relação à filiação ininterrupta dos democratas de última hora. RP – Você talvez tenha razão quando atribui ao tempo – um tempo político – uma parcela da responsabilidade pelo que irá acontecer ao PMDB. Afinal, parte transcende o próprio partido e se apresenta como um problema da transição inconclusa. O fato, por exemplo, de o PMDB ser o partido forte no governo da transição e ser mais fraco no trabalho extraparlamentar do que outros partidos, como o PT e o PDT, sugere que a política do governo da transição não tem conseguido solidarizar-se com os movimentos sociais e que, nesse sentido, a própria democratização da sociedade ainda encontra limites muito claros à sua consecução. É como se, nesse momento, as forças políticas que se identificam com a transição atuassem de forma cada vez mais “presa” e subordinada ao Estado, ao passo que, em A nova formação política – PMDB: As novas tarefas do partido da transição democrática

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contraste com isso, a sociedade corresse cada vez mais solta em relação à política do governo. Essa assimetria não é perigosa? Armênio Guedes – Acho que o PMDB tem procurado responder a essa situação. O governador Montoro, por exemplo, concedeu ampla liberdade à organização e à manifestação dos movimentos sociais durante a sua gestão... RP – Sem dúvida. Mas esse favorecimento dos movimentos sociais reverteu contra ou a favor da política de transição? Contra ou a favor do PMDB? Afinal o governo Montoro pode ter representado uma perspectiva modernizadora do Estado sem que tenha contribuído para o fortalecimento do partido como uma instituição duradoura, capaz de realizar o nexo orgânico entre a política de transição e os movimentos sociais. Esse, aliás, nos parece ser o ponto: a urgência de o PMDB constituir-se como um partido permanente, democrático e de massas reside, exatamente, na tentativa de contenção – a ser levada a cabo pela esquerda peemedebista – desse processo de estatização, oxigenando a vida partidária através da interpelação dos novos atores sociais que chegam à cidadania. Somente a esquerda poderá configurar um partido de massas, na medida em que enfrente a incorporação das demandas sociais como uma estratégia de ampliação progressiva da democracia. Tomemos como exemplo a saída de Alberto Goldman do PMDB paulista. Ela representou a desarticulação de uma importante referência política para as bases peemedebistas. No seu vácuo, proliferaram os diretórios condominiados por conhecidos “caciques” e os interesses fisiológicos. Mesmo as boas intenções do Fernando Henrique, que se julgou o herdeiro do espaço ocupado anteriormente pelos comunistas organizados no interior do PMDB, não foram suficientes para impedir o avanço do fisiologismo e o senador acabou não se qualificando como o “homem da unidade”. Em São Paulo, portanto, não há, pelo menos por ora, o homem capaz de dirigir a transição, embora a modernização do estado vá muito bem, obrigado... Armênio Guedes – Mas a própria dinâmica do partido, às vezes, se contrapõe a esse diagnóstico que vocês acabaram de fazer acerca da estatização do PMDB, não é? Porque nem todos chegam ao poder e, nesse caso, têm que continuar valendo-se do partido para que possam 176

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chegar lá. A vitória do Quércia pode ajudar a iluminar esse ponto. Como ele não tem a maioria na Assembleia, ele terá que fazer concessões. Não apenas nas negociações que vier a empreender com o PT e outros partidos, mas também ao negociar com os deputados do seu partido que não se alinham, exatamente, nas hostes quercistas, ou, pelo menos, não constituem o núcleo mais importante do quercismo. Assim, as personalidades peemedebistas terão que recorrer às forças que atuam dentro do partido, os deputados eleitos terão que interpelar as suas bases e, por conta disso, o partido poderá ser mantido em constante mobilização. Esse movimento contínuo poderá fazer do PMDB um partido real e não apenas uma peça do poder. É certo que a saída dos comunistas foi uma perda para o PMDB, tanto do ponto de vista da sua relação com os movimentos sociais, quanto do ponto de vista da sua reconhecida capacidade de organização da militância de base. Mas o importante, nesse momento, é discutir a forma como a esquerda que permaneceu no PMDB poderá contribuir para a organização do partido em bases permanentes. Será que é através de uma explicitação programática daquele grupo dentro do partido? Mas de que esquerda estamos falando? Queiramos ou não, o Fernando Henrique, o José Serra, o Almino Afonso representam a esquerda do PMDB... Por isso, acredito que militantes como nós, que não temos um projeto pessoal de participação no poder, devemos levar o PMDB a ter uma visão crítica sobre sua política em relação às demais forças políticas do país, forçando-o a esboçar uma política de alianças que inclua o PT, o PDT e todos os que puderem ser agregados nessa tarefa de implantação de um regime democrático e anti-autoritário no país. Acho que talvez seja a hora da esquerda peemedebista olhar menos para o interior do partido e retornar à sua aspiração original, retomar o seu programa peemedebista forçando o partido a buscar a formação desse grande ajuntamento nacional para sustentar a democratização do país. RP – Você tem razão quando afirma que a tentativa de constituição de uma identidade da esquerda do PMDB não pode ser feita “contra” os demais segmentos do partido. Ao contrário, ela terá que promover o consenso acerca da direção abraçada pela transição. Mas, a permanecer como estamos, o processo social da transição poderá reverter contra nós, uma vez que o PMDB – o partido da transição – não é capaz de disputá-lo com o PT e o PDT, importando em que fiquemos A nova formação política – PMDB: As novas tarefas do partido da transição democrática

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como uma agremiação parlamentar, seguros no governo e nas instituições. A propósito, como você compreende a posição do PMDB dentro do governo da transição? A morosidade do PMDB em constituir-se como um elemento de dinamização dos conflitos sociais e das disputas políticas diretas pode ser creditada à imobilidade “tática” do governo de transição, imprensado, como está, entre dois partidos parlamentaristas que são a base de sustentação do atual sistema de poder? E, por último: você concorda com o diagnóstico acerca do imobilismo do governo da transição e com o fato de que, por força da estatização do partido, a que já fizemos menção, esse imobilismo acabou transfundido para a vida do PMDB, ate­nuando a sua vocação renovadora? Armênio Guedes – Concordo em parte. Acho que se olharmos para a trajetória do PMDB, deveremos concluir que ele tem ajudado a transição. Ele não tem sido um elemento passivo: não o foi na campanha das Diretas, na eleição do Tancredo, na convocação da Constituinte. Deixando o passado e arriscando um prognóstico, eu não creio que, nessa Constituinte, algo venha a ser feito sem a participação direta do PMDB, uma participação, inclusive, como governo. Acho que se a esquerda do PMDB souber mexer-se agora, como sempre soube, ela poderá levar a transição a aprofundamento progressivo. Sou contra um programa independente da esquerda. Afinal, o programa do PMDB é altamente positivo, e, além disso, esse cuidado básico, mínimo, de solidarização dos setores do PMDB poderá impedir que se acuse a esquerda peemedebista de ser uma força conspirando contra o seu próprio partido. A hegemonia deve ser conquistada numa luta apoiada no movimento social. Por isso, não vejo essa dicotomia entre governo e PMDB, de um lado, e movimentos sociais, de outro. Aliás, considero até positivo que o PT e o PDT compartilhem também da possibilidade de articulação dos movimentos sociais com a democracia política no país. É bom para o processo democrático, como um todo, que eles sejam uma força que não concorda com a linha da história, mas que instigam a linha da história a procurar o seu equilíbrio. Quando o PT se lança numa greve geral que até nos irrita, não deixa de ter um lado positivo. Afinal, o PMDB se vê obrigado a disputar “quem é quem” no movimento social. E isso, pouco como pareça, contribui para o desenvolvimento de uma institucionalidade democrática e estável no Brasil. 178

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APÊNDICE



Declaração sobre a política do Partido Comunista Brasileiro (março de 1958)

O

s documentos do XX Congresso do PCUS motivaram nas fileiras do nosso Partido intensa discussão, no curso da qual foram submetidos à crítica os graves erros de caráter dogmático e sectário da orientação política do Partido. O exame destes erros e a necessidade de superá-los levaram o Comitê Central do PCB a traçar uma nova orientação política, que é exposta na presente declaração. Ao fazê-lo, o Comitê Central considerou a experiência passada do Partido e as modificações essenciais ocorridas na situação do Brasil e do mundo. O Comitê Central espera que, no processo de sua aplicação prática, a política aqui traçada seja submetida à comprovação e enriquecida pela experiência do Partido e do povo brasileiro. I O processo de desenvolvimento econômico do Brasil Modificações importantes têm ocorrido, durante as últimas décadas, na estrutura econômica que o Brasil herdou do passado, definido pelas seguintes características: agricultura baseada no latifúndio e nas relações pré-capitalistas de trabalho, predomínio maciço da produção agropecuária no conjunto da produção, exportação de produtos agrícolas como eixo de toda a vida econômica, dependência da economia nacional em relação ao estrangeiro, através do comércio exterior e da penetração do capital monopolista nos postos-chave da produção e da circulação. Nos quadros dessa estrutura atrasada, foi-se processando um desenvolvimento capitalista nacional que constitui o elemento progressista por excelência da economia brasileira. Este desenvolvimento 181


inelutável do capitalismo consiste no incremento das forças produtivas e na expansão, na base material da sociedade, de novas relações de produção, mais avançadas. Por sua própria natureza e ainda por se chocar com a resistência de elementos econômicos atrasados e sofrer a pressão do imperialismo, o desenvolvimento capitalista nacional vem-se realizando num ritmo bastante desigual, se bem que tenha se acelerado nos últimos vinte anos. O desenvolvimento capitalista nacional já trouxe resultados que modificaram sensivelmente a vida econômica e social do país. Assim é que foi construído no Brasil um parque industrial que abastece o mercado interno da quase totalidade de artigos de consumo comum. A indústria de meios de produção elevou a sua participação de 20% a 33% no conjunto da produção industrial, entre os anos de 1939 a 1956. Num prazo relativamente breve, de 1944 a 1956, o volume físico da produção industrial total foi duplicado. Surgiu e se fortaleceu, no setor da indústria pesada, um capitalismo de Estado de caráter nacional e progressista, que abrange empresas poderosas como a Petrobras e a Companhia Siderúrgica Nacional. Embora mais lentamente, também na agricultura vem-se desenvolvendo o capitalismo, que se traduz no crescimento do número de assalariados e semiassalariados bem como na multiplicação da quantidade de máquinas e instrumentos agrários. Ampliou-se, de modo acentuado, o mercado interno, sendo que o volume do comércio de cabotagem, entre 1921 e 1955, aumentou de cinco vezes. Em consequência do desenvolvimento capitalista, cresceram os efetivos do proletariado industrial e aumentou o seu peso específico no conjunto da população. Enquanto esta duplicou de 1920 até hoje, o número de operários industriais aumentou de sete vezes no mesmo período, passando de 275.000 a cerca de 2 milhões. Simultaneamente, surgiu e se fortaleceu cada vez mais uma burguesia interessada no desenvolvimento independente e progressista da economia do país. O desenvolvimento capitalista, entretanto, não conseguiu eliminar os fatores negativos, que determinam as características do Brasil como país subdesenvolvido. Ao tempo em que se incrementam as forças produtivas e progridem as novas relações de produção capitalistas, conservam-se em vastas áreas as relações atrasadas e permanece a dependência diante do imperialismo, particularmente o norte-americano. 182

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Com a penetração do capitalismo na agricultura, combinam-se, em proporção variável, os métodos capitalistas à conservação do monopólio da terra e das velhas relações semifeudais, o que permite um grau mais elevado de exploração dos trabalhadores do campo. O Brasil continua a ser um país de grande concentração latifundiária: em 1950, os estabelecimentos agrícolas com 500 hectares e mais constituíam 3,4% do número total de estabelecimentos e abrangiam 62,3% de toda a área ocupada. As sobrevivências feudais obstaculizam o progresso da agricultura, que se realiza, em geral, lentamente, mantêm o baixíssimo nível de vida das massas camponesas e restringem de modo considerável as possibilidades de expansão do mercado interno. As sobrevivências feudais são um dos fatores que acentuam a extrema desigualdade de desenvolvimento das diferentes regiões do país, especialmente entre o Sul e parte do Leste, que se industrializam, e o resto do país, quase inteiramente agrário. Apesar de detida sua penetração em algumas importantes esferas da economia brasileira, o imperialismo continua a dominar posições-chave em ramos fundamentais. Esta penetração é realizada, em elevado grau, sobretudo pelos monopólios norte-americanos que, a partir da segunda guerra mundial, alcançaram o predomínio absoluto sobre os seus competidores. Os investimentos diretos norte-americanos aumentaram de 193,6 milhões de dólares, em 1929, para 1.107 milhões de dólares, em 1955. Cerca de 60% dos financiamentos estrangeiros procedem dos Estados Unidos. Mais de um terço do comércio exterior brasileiro é realizado com os Estados Unidos que, além disso, dominam o mercado internacional de nossos principais produtos de exportação e podem, assim, fazer do comércio exterior um instrumento de controle da vida econômica e política do país. Mantendo embora o seu predomínio, o imperialismo norte-americano enfrenta no Brasil a crescente concorrência de outras potências imperialistas, principalmente da Alemanha Ocidental e da Inglaterra. A exploração imperialista impõe pesado tributo à nação, transferindo para o exterior considerável parte do valor criado pelos trabalhadores brasileiros, o que reduz, em consequência, a taxa de acumulação capitalista no país, diminui o ritmo do seu progresso e influi no baixo nível de vida da sua população.

Apêndice – Declaração sobre a política do Partido Comunista Brasileiro

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A independência política do Brasil sofre sérias restrições, em virtude da situação de dependência econômica. À medida que a nação se desenvolve, aguça-se o seu antagonismo com o imperialismo norte-americano. O desenvolvimento capitalista nacional exige, cada vez mais, como seu instrumento, uma independência política completa que se traduza numa política exterior independente e na proteção consequente do capital nacional contra o capital monopolista estrangeiro. O processo de democratização se reflete no parlamento. É verdade que os setores reacionários e entreguistas ainda possuem poderosas posições naquela instituição e conseguem impor decisões opostas aos interesses nacionais, a exemplo da aprovação do Acordo Militar Brasil-Estados Unidos, da rejeição de uma legislação social para os trabalhadores do campo e da cassação do direito de representação parlamentar para o Partido Comunista. É igualmente inegável, porém, que vem aumentando nas sucessivas legislaturas o número de parlamentares nacionalistas e democráticos integrantes dos mais variados partidos. Isto indica o aumento da influência da burguesia nesses partidos e a utilização do voto por grandes setores das massas, particularmente do proletariado, para apoiar uma política nacionalista e democrática. Se bem que o processo eleitoral ainda esteja submetido a restrições antidemocráticas, as massas têm conseguido influir na composição do parlamento e, pressionando sobre ele com a ação extraparlamentar, já o levaram a adotar decisões positivas para a emancipação nacional, a exemplo do monopólio estatal do petróleo e da política nacionalista dos minerais atômicos. O processo de desenvolvimento capitalista e a participação da burguesia no poder do Estado se refletem também na composição do atual governo. Em decorrência da coligação de que surgiu, o governo do sr. Juscelino Kubitschek tomou um caráter heterogêneo, com um setor entreguista ao lado de um setor nacionalista burguês. A composição do governo do sr. Juscelino Kubitschek é, em virtude disso, o resultado de um compromisso entre as duas alas que o integram. Este compromisso é frágil, não anula as contradições internas do governo e não impede a luta que lavra no seu seio. Apoiado nas massas, na Frente Parlamentar Nacionalista e no setor nacionalista das Forças Armadas, o setor nacionalista do governo tem 184

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influído para importantes decisões positivas. Disto são exemplos expressivos a defesa do monopólio estatal do petróleo e a manutenção de um clima de legalidade constitucional na vida política. Por outro lado, sob a pressão do setor entreguista e do imperialismo norte-americano, os elementos nacionalistas do governo têm sido levados a vacilações, derrotas e mesmo a graves capitulações, como foi o caso da cessão do arquipélago de Fernando de Noronha aos Estados Unidos. As contradições existentes no seio do governo se manifestam em todas as esferas de sua atividade. A política exterior permanece em geral caudatária do Departamento de Estado norte-americano, mas se fortalece a pressão do setor nacionalista por importantes modificações, como a exigência do estabelecimento de relações com a União Soviética e demais países socialistas. O governo tem desenvolvido, apoiado no povo, formas nacionais e progressistas de capitalismo de Estado, a exemplo da Petrobras e de Volta Redonda. O capitalismo de Estado vem sendo um elemento progressista e anti-imperialista da política econômica do governo, mas este ainda permite que empresas de capitalismo de Estado realizem uma política favorável ao imperialismo, como no caso dos financiamentos do BNDE ou da distribuição, pelos trustes, da energia produzida nas centrais elétricas estatais. Enquanto toma medidas de interesse nacional, ao defender o café contra a especulação das firmas norte-americanas nos mercados interno e mundial, o governo continua a propiciar inversões imperialistas à base de excepcionais privilégios, que suscitam protestos dos círculos mais representativos da burguesia. As medidas de reforma agrária não figuram sequer nos planos governamentais. A inflação e a carestia de vida continuam sendo fatores de instabilidade da economia nacional e de crescentes dificuldades para as massas. Enquanto altera a velha estrutura econômica e cria uma nova e mais avançada, o desenvolvimento capitalista nacional entra em conflito com a exploração imperialista e a estrutura tradicional arcaica e em decomposição. Este desenvolvimento se processa através de contradições, de avanços e recuos, mas é a tendência que abre caminho e se fortalece. Apêndice – Declaração sobre a política do Partido Comunista Brasileiro

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II A democratização da vida política nacional

O desenvolvimento capitalista do país não podia deixar de refletir-se no caráter do Estado brasileiro, em seu regime político e na composição do governo. O Estado brasileiro atualmente representa os interesses dos latifundiários, dos setores de capitalistas ligados ao imperialismo, particularmente ao norte-americano e também da burguesia interessada no desenvolvimento independente da economia nacional. Daí surgem contradições e tipos diversos de compromisso de classe no seio do próprio Estado. Os diferentes interesses de classe representados nos órgãos do Estado encontram pontos de contato e de acordo, mas, ao mesmo tempo, lutam entre si para impor determinados rumos à política estatal, chegando por vezes a conflito aberto, como em agosto de 1954 e em novembro de 1955. As forças novas que crescem no seio da sociedade brasileira, principalmente o proletariado e a burguesia, vêm impondo um novo curso ao desenvolvimento político do país, com o declínio da tradicional influência conservadora dos latifundiários. Este novo curso se realiza no sentido da democratização, da extensão dos direitos políticos a camadas cada vez mais amplas. A democratização do regime político do país, que tomou impulso com os acontecimentos de 1930 não segue o seu curso em linha reta, mas, enfrentando a oposição das forças reacionárias e pró-imperialistas, sofre em certos momentos retrocessos ou brutais interrupções, como sucedeu com o Estado Novo, com a ofensiva reacionária de 1947 ou por ocasião do golpe de 1954. Mas o processo de democratização é uma tendência permanente. Por isto, pode superar quaisquer retrocessos e seguir incoercivelmente para diante. Vem-se firmando, assim, em nosso país, a legalidade democrática que é defendida por amplas e poderosas forças sociais. A Constituição promulgada em 1946 encerra traços reacionários que resultaram da correlação de forças existente na época de sua elaboração e expressam aspectos retrógrados da estrutura econômico-social brasileira. Ao mesmo tempo, a Constituição consagra as liberdades democráticas e os direitos sociais das massas alcançados 186

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após a derrota mundial no nazifascismo e do Estado Novo em nosso país: as liberdades de expressão, inclusive de imprensa, de reunião e de organização, o direito de greve etc. As massas trabalhadoras das cidades têm obtido vitórias na justa luta pela concretização de seus direitos já consolidados em lei, como a liberdade sindical, a previdência social e outros. A democratização do país também influi, menos acentuadamente, nas zonas rurais, onde o tradicional despotismo dos grandes senhores de terra é obrigado a ceder terreno, conquanto ainda perdure. Os atentados cometidos pelos elementos reacionários do aparelho do Estado encontram a resistência cada vez mais eficiente das massas na defesa das liberdades e dos direitos constitucionais. Tudo isso explica porque, no curso da vida política recente do país, as forças nacionalistas e democráticas se colocaram ao lado da Constituição, como sucedeu a 24 de agosto de 1954 e a 11 de novembro de 1955, ao passo que as forças golpistas pró-imperialistas atentaram contra ela. A política do governo do sr. Juscelino Kubitschek não atende, assim, aos interesses nacionais e às aspirações das massas populares em questões essenciais, contendo, entretanto, aspectos positivos de caráter nacionalista e democrático. À medida que os aspectos negativos da atuação do governo se tornam mais evidentes, acentua-se a luta por modificações na sua composição e na sua política num sentido favorável aos interesses nacionais e populares. Esta luta é apoiada pelo setor nacionalista do próprio governo e aprofunda as suas contradições com o setor entreguista. É na luta contra o imperialismo norte-americano e os seus agentes internos que as forças progressistas da sociedade brasileira podem acelerar o desenvolvimento econômico independente e o processo de democratização da vida política do país. Para atingir este objetivo, as forças progressistas têm interesse em defender, estender e consolidar o regime de legalidade constitucional e democrático.

Apêndice – Declaração sobre a política do Partido Comunista Brasileiro

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III Crescem no mundo inteiro as forças da paz, da democracia e do socialismo

Na situação do Brasil, no desenvolvimento de suas forças anti-imperialistas e democráticas influem poderosamente as modificações essenciais verificadas na situação internacional, sobretudo após a segunda guerra mundial. A característica nova e principal de nossa época, o seu conteúdo fundamental, é a transição do capitalismo ao socialismo iniciada pela Grande Revolução Socialista de Outubro na Rússia. O socialismo ultrapassou os marcos de um só país e se transformou num sistema mundial vigoroso e florescente, que exerce influência positiva na evolução política e social de todos os povos. São enormes os êxitos econômicos e culturais dos países socialistas, e, em primeiro lugar, da União Soviética, que já assumiu a vanguarda em importantes ramos da ciência e da tecnologia, marchando para superar, em breve prazo histórico, o país capitalista mais adiantado, os Estados Unidos quanto aos índices fundamentais da produção por habitante. Estes êxitos crescentes atraem para a ideia do socialismo a consciência das grandes massas de todos os continentes. Aplicando com justeza os princípios do marxismo-leninismo às condições nacionais específicas, fortalecem-se os partidos comunistas e operários de numerosos países do mundo capitalista. O movimento comunista mundial elevou a novo nível a sua unidade. A luta da classe operária obtém grandiosas vitórias e constitui uma força decisiva na situação internacional. Fato novo de imensa significação é o adiantado processo de desagregação do sistema colonial do imperialismo. Populações de mais de um bilhão de pessoas se libertaram do jugo colonial e alcançaram a independência política, enquanto os povos ainda submetidos àquele jugo intensificam a sua luta de libertação, colocando em situação cada vez mais difícil as potências imperialistas. Surgiu no mundo uma vasta zona de paz, que abrange os países socialistas e os países da Ásia e da África amantes da paz e promotores de uma política de defesa da sua soberania e de emancipação econômica. A luta contra o imperialismo norte-americano, pela democracia e pela paz eleva o seu nível na América Latina. As ditaduras terroristas, 188

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a serviço dos monopólios dos Estados Unidos, estão sendo derrubadas, o que abre caminho para o avanço do processo democrático e emancipador. A política de chantagem guerreira praticada pelos círculos de Washington vem fracassando na América Latina, à medida que se acentua o alívio da tensão internacional. Em consequência do impetuoso ascenso do socialismo e das vitórias do movimento de libertação nacional, acelerou-se o processo de debilitamento e decomposição do imperialismo. Não só se reduziu drasticamente a área do seu domínio, como se agravaram as contradições entre os países imperialistas e dentro de cada um deles. Aumentam as dificuldades econômicas nos Estados Unidos, onde a produção vem caindo, enquanto cresce o número de desempregados, o que delineia uma perspectiva de crise econômica. O imperialismo norte-americano é o centro da reação mundial. Segue uma política de atentados contra a soberania nacional de todos os povos, de corrida armamentista e preparativos de uma terceira guerra mundial, que seria a mais terrível catástrofe para a humanidade. As guerras de agressão continuam a encontrar terreno na existência do imperialismo e este ainda tem desencadeado bárbaros atentados contra numerosos povos. Em virtude, porém, da correlação de forças favorável ao socialismo e às forças amantes da paz, surgiu em nossa época a possibilidade real de impedir as guerras. A luta pela paz – tarefa primordial de todos os povos – tem condições para ser plenamente vitoriosa. A política consequente de coexistência pacífica praticada pela União Soviética e pelos demais países socialistas ganha a simpatia dos povos, desfaz as manobras da “guerra fria” e consegue resultados concretos no sentido do alívio da tensão internacional. A rápida cessação da agressão imperialista ao Egito mostrou, mais uma vez, que a causa da paz e da libertação nacional tem a seu favor forças mais poderosas do que os agentes da guerra. As modificações na arena internacional criam condições mais favoráveis para a luta pelo socialismo, tornam mais variados os caminhos da conquista do poder pela classe operária e as formas de construção da nova sociedade. A possibilidade de uma transição pacífica ao socialismo se tornou real numa série de países.

Apêndice – Declaração sobre a política do Partido Comunista Brasileiro

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O ascenso do socialismo, da causa da paz e do movimento de libertação nacional no mundo inteiro influi de modo positivo no crescimento das forças políticas anti-imperialistas e democráticas no Brasil. A nova situação internacional cria condições favoráveis ao desenvolvimento econômico de nosso país, à libertação da dependência em relação ao imperialismo, à democratização da vida política nacional. Estas condições são especialmente favoráveis à aplicação de uma política externa independente e de paz, em benefício da emancipação econômica da nação. Uma política desta ordem, que muitos países do mundo capitalista já praticam, encontra o apoio de poderosas forças que atuam no cenário mundial. Conquanto se beneficie da influência dos fatores positivos da situação internacional, o povo brasileiro é obrigado a enfrentar a pressão e os atentados do imperialismo norte-americano, que ocupa posições-chave na economia de nosso país e interfere nas questões de sua política interna e externa. Não obstante as derrotas que tem sofrido, não cessa a penetração econômica dos monopólios norte-americanos. Os círculos dirigentes dos Estados Unidos, com o apoio dos setores entreguistas, tomam medidas para vincular o Brasil aos preparativos bélicos e aos planos de uma terceira guerra mundial. Esta é a mais grave ameaça que pesa sobre a nossa pátria e contra esta ameaça tendem a unir-se todos os brasileiros favoráveis à manutenção da paz. A luta contra o imperialismo norte-americano, pela independência nacional do Brasil, é parte integrante da luta pela paz mundial. As vitórias da causa da paz no mundo inteiro contribuem para os êxitos da luta emancipadora de nosso povo. Existem condições para derrotar a política de dependência ao imperialismo norte-americano e anular suas ameaças. A situação internacional é favorável às forças que lutam pela paz, pela emancipação nacional e pela democracia no Brasil.

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IV Aprofunda-se a contradição entre a nação brasileira e o imperialismo norte-americano

As modificações na situação econômica e política do país bem como na situação internacional determinam importantes alterações na disposição das forças sociais e definem o caminho para a solução dos problemas da revolução brasileira. Como decorrência da exploração imperialista norte-americana e da permanência do monopólio da terra, a sociedade brasileira está submetida, na etapa atual de sua história, a duas contradições fundamentais. A primeira é a contradição entre a nação e o imperialismo norte-americano e seus agentes internos. A segunda é a contradição entre as forças produtivas em desenvolvimento e as relações de produção semifeudais na agricultura. O desenvolvimento econômico e social do Brasil torna necessária a solução dessas duas contradições fundamentais. A sociedade brasileira encerra também a contradição entre o proletariado e a burguesia que se expressa nas várias formas da luta de classes entre operários e capitalistas. Mas esta contradição não exige uma solução radical na etapa atual. Nas condições presentes de nosso país, o desenvolvimento capitalista corresponde aos interesses do proletariado e de todo o povo. A revolução no Brasil, por conseguinte não é ainda socialista, mas anti-imperialista e antifeudal, nacional e democrática. A solução completa dos problemas que ela apresenta deve levar à inteira libertação econômica e política da dependência para com o imperialismo norte-americano, à transformação radical da estrutura agrária com a liquidação do monopólio da terra e das relações pré-capitalistas de trabalho, ao desenvolvimento independente e progressista da economia nacional e à democratização radical da vida política. Estas transformações removerão as causas profundas do atraso de nosso povo e criarão, com um poder das forças anti-imperialistas e antifeudais, sob a direção do proletariado, as condições para a transição ao socialismo, objetivo não imediato, mas final da classe operária brasileira. Na situação atual do Brasil, o desenvolvimento econômico capitalista entra em choque com a exploração imperialista norte-americana, Apêndice – Declaração sobre a política do Partido Comunista Brasileiro

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aprofundando-se a contradição entre as forças nacionais e progressistas em crescimento e o imperialismo norte-americano que obstaculiza a sua expansão. Nestas condições, a contradição entre a nação em desenvolvimento e o imperialismo norte-americano e os seus agentes internos tornou-se a contradição principal na sociedade brasileira. O golpe principal das forças nacionais, progressistas e democráticas se dirige, por isto, atualmente, contra o imperialismo norte-americano e os entreguistas que o apoiam. A derrota da política do imperialismo norte-americano e de seus agentes internos abrirá caminho para a solução de todos os demais problemas da revolução nacional e democrática no Brasil. Para realizar a sua política de exploração e de vinculação de nosso país aos seus planos guerreiros, o imperialismo norte-americano conta com o apoio de setores de latifundiários e de setores da burguesia. Servem ao imperialismo norte-americano os latifundiários que estão ligados, por seus interesses, à exploração imperialista, numerosos intermediários do comércio exterior, os sócios de empresas controladas pelo capital monopolista norte-americano e determinados agentes de negócios bancários e comerciais. Estes setores – minoria verdadeiramente ínfima – constituem as forças entreguistas que, dentro e fora dos órgãos de Estado, sustentam a política de dependência ao imperialismo norte-americano. Ao inimigo principal da nação brasileira se opõem, porém, forças muito amplas. Estas forças incluem o proletariado, lutador mais consequente pelos interesses gerais da nação, os camponeses interes­sados em liquidar uma estrutura retrógrada que se apoia na exploração imperialista, a pequena burguesia urbana que não pode expandir as suas atividades em virtude dos fatores de atraso do país, a burguesia, interessada no desenvolvimento independente e progressista da economia nacional, os setores de latifundiários que possuem contradições com o imperialismo norte-americano derivadas da disputa em torno dos preços dos produtos de exportação, da concorrência no mercado internacional ou da ação extorsiva de firmas norte-americanas e de seus agentes no mercado interno, os grupos da burguesia ligados a monopólios imperialistas rivais dos monopólios dos Estados Unidos e que são prejudicados por estes. 192

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São forças, portanto, extremamente heterogêneas pelo seu caráter de classe. Incluem desde o proletariado, que tem interesse nas mais profundas transformações revolucionárias, até parcelas das forças mais conservadoras da sociedade brasileira. A sua consequência na luta contra o imperialismo norte-americano não pode ser evidentemente a mesma, porém todas essas forças possuem motivos para se unirem contra a política de submissão ao imperialismo norte-americano. Quanto mais ampla for esta unidade, maiores serão as possibilidades de infligir uma derrota completa àquela política e garantir um curso independente, progressista e democrático ao desenvolvimento da nação brasileira. V A frente única e a luta por um governo nacionalista e democrático

As tarefas impostas pela necessidade do desenvolvimento independente e progressista do país não podem ser resolvidas por nenhuma força social isoladamente. Disto decorre a exigência objetiva de aliança entre todas as forças interessadas na luta contra a política de submissão ao imperialismo norte-americano. A experiência da vida política brasileira tem demonstrado que as vitórias anti-imperialistas e democráticas só puderam ser obtidas pela atuação em frente única daquelas forças. A frente única se manifesta nas múltiplas formas concretas de atuação ou de organização em comum, que surgem no país, por iniciativas de diferentes origens e de acordo com as exigências da situação. Entre estas formas, a mais importante atualmente é o movimento nacionalista. O seu desenvolvimento expressa um grau mais elevado de unidade e concentração das forças anti-imperialistas. Constituiu um fato novo, resultante não só de fatores objetivos, entre os quais o desenvolvimento do capitalismo, que fortaleceu as posições da burguesia, como também das lutas patrióticas de massas, que se travaram durante muitos anos com a participação combativa do proletariado e de sua vanguarda comunista. Tendem a unir-se e podem efetivamente unir-se no movimento nacionalista a classe operária, os camponeses, a pequena burguesia urbana, a burApêndice – Declaração sobre a política do Partido Comunista Brasileiro

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guesia e os setores de latifundiários que possuem contradições com o imperialismo norte-americano. O movimento nacionalista vem exercendo influência para elevar a consciência anti-imperialista das massas e para agrupar os setores nacionalistas dos partidos políticos, do parlamento, das Forças Armadas e do próprio governo. Superando as divergências que existem entre os seus participantes, o movimento nacionalista atrai para a sua frente de luta entidades, partidos, correntes e personalidades do mais variado caráter social e orientação política. Assim é que a Frente Parlamentar Nacionalista, cujo aparecimento tem notável significação em nossa vida política, unificou a ação de grande número de parlamentares pertencentes aos mais diversos partidos com representação no Congresso, quer sejam governistas ou oposicionistas. O movimento nacionalista vem surgindo nas diferentes regiões com plataformas que, ao lado de pontos comuns, apresentam questões variadas, de acordo com a influência de determinadas forças políticas e da maior sensibilidade, por motivos locais, a esta ou aquela reivindicação anti-imperialista. Os comunistas consideram que é necessário tudo fazer, dentro do mais alto espírito de unidade, para impulsionar o movimento nacionalista, ampliar seu caráter de massas e ajudar sua coordenação em escala nacional. Isto contribuirá para acelerar a polarização em processo entre as forças anti-imperialistas e democráticas, de um lado, e as forças entreguistas, do outro lado. Os comunistas devem ser um fator por excelência unitário dentro da frente única nacionalista e democrática. Por isto, não condicionam a sua permanência na frente única à total aceitação de suas opiniões. Os participantes da frente única poderão aceitar essas opiniões somente como resultado de sua justeza, de sua força persuasiva e, acima de tudo, da sua comprovação pela experiência política concreta. Defendendo firmemente suas opiniões, os comunistas consideram que, se forem justas, tais opiniões acabarão sendo aceitas pelas massas e pelos aliados, vindo a prevalecer através de processos democráticos, dentro da frente única. Os comunistas não são exclusivistas e, ao mesmo tempo que encaram com espírito autocrítico a sua própria atividade, aceitam e valorizam as opiniões corretas procedentes das outras forças da frente única.

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Sendo inevitavelmente heterogênea, a frente única nacionalista e democrática encerra contradições. Por um lado, há interesses comuns e, portanto, há unidade. Este é um aspecto fundamental e explica a necessidade da existência da frente única, a sua capacidade de superar as contradições internas entre os seus componentes. Por outro lado, há interesses contraditórios e, portanto, as forças sociais integrantes da frente única se opõem no terreno de certas questões, esforçando-se para fazer prevalecer seus interesses e pontos-de-vista. O proletariado e a burguesia se aliam em torno do objetivo comum de lutar por um desenvolvimento independente e progressista contra o imperialismo norte-americano. Embora explorado pela burguesia, é do interesse do proletariado aliar-se a ela, uma vez que sofre mais do atraso do país e da exploração imperialista do que do desenvolvimento capitalista. Entretanto, marchando unidos para atingir um objetivo comum, a burguesia e o proletariado possuem também interesses contraditórios. A burguesia se empenha em recolher para si todos os frutos do desenvolvimento econômico do país, intensificando a exploração das massas trabalhadoras e lançando sobre elas o peso das dificuldades. Por isto, a burguesia é uma força revolucionária inconsequente, que vacila em certos momentos, tende aos compromissos com os setores entreguistas e teme a ação independente das massas. O proletariado tem interesse no desenvolvimento anti-imperialista e democrático consequente. A fim de assegurá-lo, ao mesmo tempo que luta pela causa comum de todas as classes e camadas que se opõem à exploração imperialista norte-americana, o proletariado defende os seus interesses específicos e os das vastas massas trabalhadoras e bate-se por amplas liberdades democráticas que facilitem a ação independente das massas. O proletariado deve salvaguardar, por isto, a sua independência ideológica, política e organizativa dentro da frente única. É indispensável, entretanto, jamais perder de vista que a luta dentro da frente única é diferente, em princípio, da luta que a frente única trava contra o imperialismo norte-americano e as forças entreguistas. Neste último caso, o objetivo consiste em isolar o inimigo principal da nação brasileira e derrotar a sua política. Já a luta do Apêndice – Declaração sobre a política do Partido Comunista Brasileiro

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proletariado dentro da frente única não tem por fim isolar a burguesia nem romper a aliança com ela, mas visa a defender os interesses específicos do proletariado e das vastas massas simultaneamente ganhando a própria burguesia e as demais forças para aumentar a coesão da frente única. Por se travar dentro da frente única, esta luta deve ser conduzida de modo adequado através da crítica ou de outras formas, evitando elevar as contradições internas da frente única ao mesmo nível da contradição principal que opõe a nação ao imperialismo norte-americano e seus agentes. Assim, é preciso ter sempre em vista que as contradições de interesses e divergências de opinião dentro da frente única, embora não devam ser ocultadas e venham a causar dificuldades, podem ser abordadas e superadas sem romper a unidade. Os comunistas de modo algum condicionam a sua participação na frente única a uma prévia direção do movimento. Tendo por objetivo a ampliação e a coesão da frente única, os comunistas trabalham para que as forças anti-imperialistas e democráticas, principalmente as grandes massas da cidade e do campo, aceitem a direção do proletariado, uma vez que esta direção é, do ponto de vista histórico, a única capaz de dar à frente única firmeza e consequência política. A conquista da hegemonia do proletariado é, porém, um processo de luta árduo e paulatino, que avançará à medida em que a classe operária forjar a sua unidade, estabelecer laços de aliança com os camponeses e defender, de modo acertado, os interesses comuns de todas as forças que participam da frente única. Para a unidade da classe operária tem grande importância o fortalecimento do movimento sindical. Este alcançou numerosas vitórias, nos últimos tempos, possibilitando aos trabalhadores defender o seu nível de vida, restabelecer a liberdade sindical e elevar o seu grau de unidade e organização. As organizações intersindicais têm contribuído para a unidade da classe operária, mas a experiência vem demonstrando que o movimento sindical tem avançado à medida que se fortalece a unidade de ação dos trabalhadores nos sindicatos, federações e confederações, isto é, nos quadros da organização sindical existente no país. O movimento sindical tem avançado igualmente à medida em que os trabalhadores aprendem a utilizar as conquistas da legislação social vigente e procuram concretizá-la e aperfeiçoá-la, influindo no parlamento, com a pressão de massas, para a aprovação de novas leis. Os sindica196

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tos e as demais organizações profissionais não devem servir a objetivos partidários, mas precisam ser instrumentos da unidade dos trabalhadores de todas as tendências ideológicas e políticas, na luta por suas reivindicações imediatas, pelo direito de greve, pelo melhoramento da previdência social etc. Simultaneamente, cabe aos sindicatos um grande papel no amplo movimento nacionalista e democrático. Os camponeses constituem a massa mais numerosa da nação e representam uma força cuja mobilização é indispensável ao desenvolvimento consequente das lutas do povo brasileiro. O movimento camponês se encontra, entretanto, bastante atrasado, sendo baixíssimo o seu nível de organização. Para impulsionar o movimento camponês, é preciso partir do seu nível atual, tomando por base as reivindicações mais imediatas e viáveis, como o salário mínimo, a baixa do arrendamento, a garantia contra os despejos e evitando, no trabalho prático as palavras de ordem radicais que ainda não encontram condições maduras para a sua realização. Também no campo a experiência demonstra que a atuação através de formas legais de luta e de organização é aquela que permite alcançar êxitos para as massas. Assim é que tem progredido, além das associações rurais e cooperativas, a organização dos assalariados e semiassalariados em sindicatos que já obtiveram vitórias em contendas com fazendeiros. Tem grande importância a defesa jurídica dos direitos já assegurados aos camponeses. A ação de massas se mostra indispensável para vencer a resistência dos latifundiários no Parlamento e conquistar a aprovação de leis que correspondam aos interesses dos trabalhadores agrícolas, inclusive a elaboração de uma legislação trabalhista adequada ao campo. As camadas médias urbanas são extremamente sensíveis às reivindicações de caráter nacionalista e democrático. Aos pequenos negociantes, ao funcionalismo civil e militar e a outros setores da pequena burguesia cabe um posto destacado nas lutas do povo brasileiro. Importante papel desempenha a intelectualidade que, em sua esmagadora maioria, está interessada no progresso e na emancipação nacional. Como setor mais combativo da intelectualidade, o movimento estudantil tem dado importante contribuição às lutas do povo brasileiro. A unidade dos estudantes das mais diversas tendências doutrinárias e políticas é um fator essencial para o fortalecimento das organizações Apêndice – Declaração sobre a política do Partido Comunista Brasileiro

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estudantis, universitárias e secundárias que têm sido baluartes da frente única nacionalista e democrática. Seguindo o exemplo dos estudantes, a juventude dos sindicatos, dos clubes esportivos e recreativos pode unir-se e obter vitórias na luta por suas reivindicações. A formulação dos objetivos comuns, num processo de discussão democrática, vai-se tornando necessária para a frente única à medida que aumenta a envergadura de suas tarefas. Os comunistas são de opinião que uma plataforma de frente única deve incluir os seguintes pontos fundamentais: 1°) Política exterior independente e de paz. Estabelecimento de relações amistosas com todos os países, acima de diferenças de regime social, na base de respeito mútuo, da integridade territorial e da soberania, da não agressão, da não intervenção nos assuntos internos e da igualdade de direitos e vantagens recíprocas. Desvinculação de compromissos com quaisquer blocos militares, denúncia de tratados belicistas e de ajustes antinacionais como o da cessão de Fernando de Noronha. Apoio às propostas que visem ao alívio da tensão internacional e ao término da “guerra fria”. Apoio às lutas de libertação nacional de todos os povos. 2°) Desenvolvimento independente e progressista da economia nacional. Intercâmbio comercial com todos os países, inclusive socialistas. Desenvolvimento da iniciativa estatal nacionalista nos setores do petróleo, energia elétrica, siderurgia, minerais estratégicos e outros setores básicos. Proteção e estímulo da iniciativa privada nacional. Execução de um programa federal para o desenvolvimento das re­ giões mais atrasadas do país e, em particular, incentivo à industrialização do Nordeste. Revogação dos privilégios cambiais ou de qualquer outra ordem concedidos ao capital estrangeiro, selecionando suas inversões de acordo com os interesses do desenvolvimento do país e sem prejuízo dos empreendimentos nacionais. Dar preferência aos financiamentos em geral, governamentais ou não, sempre que não condicionados a exigências políticas e escolhendo livremente aqueles que, seja qual for sua procedência, ofereçam melhores condições no que se refere a juros, prazos de amortização e assistência técnica. 3°) Medidas de reforma agrária em favor das massas camponesas. Redução das taxas de arrendamento e prolongamento dos seus prazos 198

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contratuais. Defesa dos camponeses contra a grilagem e os despejos. Facilitar aos camponeses o acesso à terra, particularmente junto aos centros urbanos e vias de comunicação. Garantia da posse da terra e entrega de títulos de propriedade aos atuais posseiros. Aplicação dos direitos dos trabalhadores do campo já consolidados em lei. Legislação trabalhista adequada ao campo. Facilitar aos camponeses o crédito bancário, particularmente do Banco do Brasil, os transportes, a armazenagem e a assistência técnica. 4º) Elevação do nível de vida do povo. Combate enérgico à inflação e à carestia. Equilíbrio orçamentário e política tributária que não sacrifique as massas nem prejudique as atividades produtivas. Salários e vencimentos que assegurem melhores condições de vida aos trabalhadores e ao funcionalismo. Democratização dos órgãos governamentais de controle do abastecimento e dos preços, de tal maneira que possam servir efetivamente aos interesses das massas populares. Aumento das verbas destinadas à educação e saúde do povo. Estímulo ao desenvolvimento da cultura nacional. Aplicação efetiva e melhoria da legislação trabalhista. 5°) Consolidação e ampliação da legalidade democrática. Garantia dos direitos democráticos contidos na Constituição. Abolição completa das discriminações políticas e ideológicas. Garantia do direito de greve e dos direitos sindicais dos trabalhadores. Direito de voto aos analfabetos, bem como aos soldados e marinheiros. Os comunistas apresentam esta plataforma para um amplo debate do qual possa resultar a formulação unitária dos objetivos comuns das forças nacionalistas e democráticas. A frente única nacionalista e democrática acumula forças à medida que luta por soluções positivas para os problemas colocados na ordem do dia, realizando-as na proporção de sua capacidade e das condições favoráveis de cada momento. A exigência dessas soluções positivas para os problemas brasileiros conduz, inevitavelmente, à necessidade de um governo que possa aplicar com firmeza, em todas as esferas da política interna e exterior, a política de desenvolvimento e de emancipação reclamada pelo povo brasileiro. A luta das correntes nacionalistas e democráticas para alcançar modificações na composição e na política do governo atual assume, e tende a assumir Apêndice – Declaração sobre a política do Partido Comunista Brasileiro

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cada vez mais, o caráter de luta por um governo de coligação nacionalista e democrática. Um governo nacionalista e democrático pode ser conquistado pela frente única nos quadros do regime vigente e aplicar uma política externa de independência e de paz, assegurar o desenvolvimento independente e progressista da economia nacional, tomar medidas em favor do bem-estar das massas, garantir as liberdades democráticas. O desenvolvimento da situação no país indica que esta orientação política pode vir a ser gradualmente realizada por um ou por sucessivos governos que se apóiem na frente única nacionalista e democrática. Um governo nacionalista e democrático dependerá, fundamentalmente, do apoio das massas e, por isto, o ascenso do movimento de massas não poderá deixar de influir no sentido da radicalização de sua composição e de sua política. Esta radicalização será também resultado da necessidade inevitável de medidas mais enérgicas e profundas diante dos atentados do imperialismo norte-americano e das forças entreguistas e reacionárias no país. O curso dos acontecimentos no Brasil indica, por conseguinte, a possibilidade real de um processo em que, sob a pressão das ações independentes das massas e diante da necessidade de medidas mais consequentes contra o inimigo principal da nação, um governo de coligação nacionalista e democrática abrirá caminho para uma nova correlação de forças, que possibilite completar as transformações revolucionárias exigidas pelo desenvolvimento econômico e social de nossa pátria. Ainda que dispostos a participar dos governos de caráter nacionalista e democrático, os comunistas os apoiarão, de modo resoluto, mesmo que não venham a fazer parte de sua composição. VI O caminho pacífico da revolução brasileira

Os comunistas consideram que existe hoje em nosso país a possibilidade real de conduzir, por formas e meios pacíficos, a revolução anti-imperialista e antifeudal. Nestas condições, este caminho é o que convém à classe operária e a toda a nação. Como representantes da 200

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classe operária e patriotas, os comunistas, tanto quanto deles dependa, tudo farão para transformar aquela possibilidade em realidade. O caminho pacífico da revolução brasileira é possível em virtude de fatores como a democratização crescente da vida política, o ascenso do movimento operário e o desenvolvimento da frente única nacionalista e democrática em nosso país. Sua possibilidade se tornou real em virtude das mudanças qualitativas da situação internacional que resultaram numa correlação de forças decididamente favorável à classe operária e ao movimento de libertação dos povos. O caminho pacífico significa a atuação de todas as correntes anti-imperialistas dentro da legalidade democrática e constitucional, com a utilização de formas legais de luta e de organização de massas. É necessário, pois, defender esta legalidade e estendê-la em benefício das massas. O aperfeiçoamento da legalidade, através de reformas democráticas da Constituição, deve e pode ser alcançado pacificamente, combinando a ação parlamentar e a extraparlamentar. O povo brasileiro pode resolver pacificamente os seus problemas básicos com a acumulação, gradual mas incessante, de reformas profundas e consequentes na estrutura econômica e nas instituições políticas, chegando-se até à realização completa das transformações radicais colocadas na ordem do dia pelo próprio desenvolvimento econômico e social da nação. A fim de encaminhar a solução de seus problemas vitais, o povo brasileiro necessita conquistar um governo nacionalista e democrático. Esta conquista poderá ser efetuada através dos seguintes meios mais prováveis: 1. Pela pressão pacífica das massas populares e de todas as correntes nacionalistas, dentro e fora do Parlamento, no sentido de fortalecer e ampliar o setor nacionalista do atual governo, com o afastamento do poder de todos os entreguistas e sua substituição por elementos nacionalistas. 2. Através da vitória da frente única nacionalista e democrática nos pleitos eleitorais. 3. Pela resistência das massas populares, unidas aos setores nacionalistas do Parlamento, das forças armadas e do governo, Apêndice – Declaração sobre a política do Partido Comunista Brasileiro

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para impor ou restabelecer a legalidade democrática, no caso de tentativas de golpe por parte dos entreguistas e reacionários, que se proponham implantar no país uma ditadura a serviço dos monopólios norte-americanos. O complexo desenvolvimento da vida política nacional é que determinará como será realizada a conquista de um governo nacionalista e democrático. Sejam quais forem as vicissitudes que o povo brasileiro tiver de enfrentar para resolver pacificamente os seus problemas, será sempre necessário o amplo desenvolvimento da luta de classes do proletariado, dos camponeses e das camadas médias urbanas em defesa dos seus interesses específicos e dos interesses gerais da nação. A escolha das formas e meios para transformar a sociedade brasileira não depende somente do proletariado e das demais forças patrióticas. No caso em que os inimigos do povo brasileiro venham a empregar a violência contra as forças progressistas da nação, é indispensável ter em vista outra possibilidade, a de uma solução não pacífica. Os sofrimentos que recaírem sobre as massas, em tal caso, serão da inteira responsabilidade dos inimigos do povo brasileiro. Quanto aos comunistas, tudo farão para alcançar os objetivos vitais do proletariado e do povo por um caminho que, sendo de luta árdua, de contradições e de choques, pode evitar o derramamento de sangue na insurreição armada ou na guerra civil. Os comunistas confiam em que, nas circunstâncias favoráveis da situação internacional, as forças anti-imperialistas e democráticas terão condições para garantir o curso pacífico da revolução brasileira. VII Pela vitória da frente única nacionalista e democrática nas eleições

A experiência política do país vem demonstrando que o povo já alcançou importantes vitórias dentro do Parlamento e dos órgãos legislativos nos estados e municípios. Esta experiência também já demonstrou que é possível eleger nacionalistas e democratas para os 202

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postos executivos. As eleições constituem, portanto, um acontecimento de excepcional importância em nossa vida política. As eleições, no Brasil, ainda estão submetidas a sérias restrições antidemocráticas. Certas destas restrições derivam do poder econômico e político concentrado em massas das classes exploradoras e são inevitáveis mesmo nas melhores condições da democracia burguesa. Outras, porém, são restrições possíveis de eliminar ainda no regime atual à medida que avança o processo de democratização. Os comunistas lutam, por isto, pela extensão do direito de voto aos analfabetos, bem como aos soldados e marinheiros. Lutam, igualmente, pela restituição da legalidade ao Partido Comunista, fazendo cessar uma discriminação anticonstitucional, consumada numa conjuntura reacionária e mantida até hoje em flagrante desrespeito aos postulados da Carta Magna. As restrições antidemocráticas que ainda pesam sobre o processo eleitoral não impedem, porém, a afirmação da sua crescente importância para determinar os rumos da vida política do país. Combinadas a outras formas pacíficas e legais de lutas de massa, as eleições podem dar vitórias decisivas ao povo. Massas de milhões vêm utilizando o voto para expressar a sua vontade e influir nos destinos da nação. A participação mais entusiástica nas eleições é, assim, um dever para os comunistas. Esta participação não visa exclusivamente a obter pequenos proveitos imediatos e a utilizar uma oportunidade para fazer agitação de palavras de ordem. O objetivo fundamental da participação dos comunistas nas eleições consiste em eleger para os postos executivos e legislativos os candidatos da frente única que possam fortalecer os setores nacionalistas do Parlamento e do governo. Todo o trabalho eleitoral dos comunistas, seja em âmbito nacional como em estadual e municipal, deve ser considerado uma parte do trabalho geral de formação e desenvolvimento da frente única visando sempre à mudança da correlação de forças políticas e à conquista de um governo nacionalista e democrático. Os comunistas se empenham, por este motivo, em contribuir para a constituição de amplas coligações eleitorais que tenham força para levar à vitória os candidatos da frente única. A ação independente dos comunistas se realizará não fora mas dentro da frente única. Lutando, na medida de suas possibilidades, para eleger seus próprios candidatos, Apêndice – Declaração sobre a política do Partido Comunista Brasileiro

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os comunistas não adotam, porém, uma posição exclusivista, colocam acima de tudo a necessidade de desenvolver e fortalecer a frente única e consideram que a vitória de candidatos não comunistas da frente única é também sua vitória. Esta orientação contribuirá para aprofundar nacionalmente e em cada local a polarização em processo entre nacionalistas e entreguistas a fim de isolar e derrotar os candidatos comprometidos com o imperialismo norte-americano. Buscando formar amplas coligações eleitorais, que levem à vitória os nacionalistas e os democratas, é necessário ter em vista a composição de classe mais ou menos heterogênea dos partidos políticos brasileiros, sem, entretanto, estabelecer identidade entre eles. Os comunistas apoiam os elementos nacionalistas e democratas que existem em todos os partidos. Tais elementos constituem uma ala considerável do PSD, a qual tem lutado com relativo êxito contra a ala reacionária do mesmo partido, ligada aos latifundiários mais retrógrados e a interesses imperialistas. Em proporção menor, existem elementos nacionalistas na UDN que se chocam com a alta direção nacional do seu partido, ainda dominada por conhecidos golpistas e porta-vozes do imperialismo norte-americano. Partidos como o PTB, o PSP e o PSB, que possuem maior base popular nos centros urbanos, apresentam uma tendência nacionalista e democrática mais acentuada. O PTB, cujo maior contingente eleitoral provém das massas trabalhadoras, de modo geral, orienta-se por uma política nacionalista e popular. O mesmo ocorre com o PSB, cuja base social repousa em setores da pequena burguesia urbana e, em particular, da intelectualidade. Tanto o PTB como o PSB já defendem plataformas nacionalistas e democráticas. À medida que se desenvolve o capitalismo no país, os partidos políticos brasileiros adquirem um caráter cada vez mais estável e nacional. Em virtude, porém, da extrema desigualdade de desenvolvimento que se verifica entre as diferentes regiões, os partidos políticos não puderam ainda superar as divergências, por vezes agudas, que lavram entre as suas seções estaduais e até mesmo municipais. Esta circunstância não pode deixar de ser levada em conta a fim de distinguir, com justeza, as variações de orientação entre os diretórios nacionais, estaduais e municipais.

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Os comunistas apoiam nas eleições os partidos, alas e seções de partidos e personalidades de atuação nacionalista reconhecida, não os confundindo, porém, com os falsos nacionalistas que procuram enganar o povo com a sua demagogia eleitoreira. É com esta visão das eleições e de suas perspectivas essenciais que os comunistas se mobilizam para tomar parte nos pleitos de 1958 e 1960. VIII Fortalecer o Partido para a aplicação de uma nova política

O proletariado brasileiro necessita de uma vanguarda marxista-leninista organizada e combativa a fim de realizar sua política de classe. O Partido Comunista Brasileiro, que é esta vanguarda, deve ser capaz de cumprir o seu papel na ação política concreta. Isto exige que o nosso Partido se depure de persistentes defeitos e adquira qualidades novas. O subjetivismo que exerceu longo domínio em nossas fileiras, deve ser combatido em profundidade através da reeducação dos dirigentes e militantes no espírito de uma nova política que emane diretamente das condições objetivas de nosso país e seja a correta aplicação dos princípios universais do marxismo-leninismo às originais particularidades concretas do desenvolvimento histórico nacional. O abandono dos princípios universais do marxismo-leninismo, como síntese científica da experiência do movimento operário mundial, conduz inevitavelmente à desfiguração do caráter de classe do Partido e à degenerescência revisionista. Mas o desconhecimento das particularidades concretas do próprio país condena o Partido, irremedia­velmente, à impotência sectária e dogmática. As concepções dogmáticas e sectárias, que, nas condições atuais de nosso Partido, constituem o perigo fundamental a combater, se opõem de modo radical ao próprio caráter da missão que os comunistas têm a cumprir. À frente da classe operária deve estar um Partido que saiba dirigir a luta pelos objetivos revolucionários na ação política corrente, diária, determinada pelas próprias exigências do movimento real das massas, das classes e das forças políticas. A esta característica essencial se subordinam as atividades de agitação e propaganda, do trabalho de massas e de organização do Partido. Apêndice – Declaração sobre a política do Partido Comunista Brasileiro

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Para que os comunistas possam cumprir sua importante tarefa, devem estar a serviço das massas e lançar-se decididamente à atividade junto às massas. Ao invés de se voltarem apenas para o trabalho interno do Partido, precisam dedicar o fundamental de suas energias à atuação legal nas organizações de massas e aí exercer uma função eminentemente construtiva. É indispensável, por conseguinte, tomar as medidas adequadas para que o maior número possível de quadros, militantes e dirigentes, realizem atividades legais entre as massas. Participando das lutas de massas nos movimentos reivindicativos, nas campanhas políticas, nas eleições, os comunistas não têm outro fim senão o de tornar vitoriosas as aspirações das massas, aprender com elas e educá-las a partir do nível de consciência que já atingiram. Os comunistas devem ser, em toda parte, trabalhadores isentos de exclusivismo, abnegados e consequentes, pela construção da frente única nacionalista e democrática. O Comitê Central concita a todos os militantes a empenharem-se no fortalecimento do Partido, para torná-lo o instrumento adequado à execução vitoriosa da nova política traçada nesta Declaração, que deve guiar, de agora em diante, toda a atividade do Partido. O Comitê Central do PCB Março de 1958

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Sobre o organizador

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aimundo Santos estudou Ciência Política na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) e se doutorou pela Universidade Nacional Autônoma do México, nos anos 1970, e hoje é professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, onde desenvolve a pesquisa “Pensamento social e agrarismo no Brasil”. Publicou os livros A primeira renovação pecebista. Reflexos do XX Congresso do PCUS no PCB: 1956-57 (Oficina de Livros,1988); O pecebismo inconcluso. Escritos sobre ideias políticas (Editora da UFRRJ, 1992; 1994); Modernização e Política (Forense Universitária, 1996); Caio Prado Jr. na cultura política brasileira (Mauad, 2001); Política e agrarismo sindical no PCB (Fundação Astrojildo Pereira, 2002); e Agraristas políticos brasileiros (Nead-MDA/FAP, 2007). Com Luiz Flávio Carvalho Costa, organizou a coletânea Questão agrária e política: autores pecebistas (Editora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 1996). Preparou para a editora Brasiliense e a Fundação Astrojildo Pereira o volume Dissertações sobre a revolução brasileira, com textos de Caio Prado Jr. (Brasiliense/FAP, 2007). Escreve regularmente no site Gramsci e o Brasil (<www.gramsci. org>), na revista Política Democrática (<www.politicademocratica. com.br>)e no blog Democracia Política e Novo Reformismo (<http:// gilvanmelo.blogspot.com>).

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Distribuição FUNDAÇÃO ASTROJILDO PEREIRA Tel.: (61) 3224-2269 Fax: (61) 3226-9756 contato@fundacaoastrojildo.org.br www.fundacaoastrojildo.org.br


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