VALEU A PENA LUTAR!
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Adalberto Tem贸tio da Silva
VALEU A PENA LUTAR! m e m 贸 ri as
Bras铆lia-DF, 2013
© by Fundação Astrojildo Pereira, 2013 Vedada, nos termos da lei, a reprodução total ou parcial deste livro, por quaisquer meios, sem a autorização da fundação.
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Tiragem: 1.000 exemplares Distribuição FUNDAÇÃO ASTROJILDO PEREIRA
Ficha Catalográfica S586v
Valeu a pena lutar (memórias) / Adalberto Temótio da Silva. Brasília : Fundação Astrojildo Pereira (FAP), 2013. 164p. 23 cm. 1. Ideologias. Comunismo. 2. Memória. I. Título. II. Autor. CDU 300 320.5
SUMÁRIO
PREFÁCIO ........................................................................ 7 I
Gravetos, passarinhos e árvores frutíferas. . . . . . . . 9
II
Detalhes naturais e outros que a vida foi traçando. 13
III
O dia em que fugi de casa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21
IV
As agruras da luta pela sobrevivência. . . . . . . . . . . 23
V
Um dia ainda encontro esses comunistas. . . . . . . . 41
VI
O PCB agora é legal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47
VII
O salto no escuro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49
VIII Momento complicado para o país e para mim . . . . . 57 IX
No país dos sovietes. E havia lá um relatório. . . . . . 59
X
E veio o golpe de 1964. O que fazer?. . . . . . . . . . . . 65
XI
O VI Congresso e a resistência democrática. . . . . . . 71
XII
A surpresa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77
XIII Tomando o rumo de Minas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83 XIV Acabou a ditadura. Até que enfim. . . . . . . . . . . . . . 89 XV
Mudando o partido e não de partido. . . . . . . . . . . . 93
XVI Valeu a pena lutar!. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97
DOCUMENTOS POLÍTICOS A fundação do PCB. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103 Coluna Prestes – 1924. O Manifesto de Santo Ângelo. . . . 105 O Estado Novo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 108 A carta testamento de Getúlio Vargas . . . . . . . . . . . . . . . 119 A carta renúncia de Jânio Quadros . . . . . . . . . . . . . . . . 121 O Ato Institucional N. 5 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123 Declaração sobre a política do PCB. . . . . . . . . . . . . . . . . 128 Discurso de Tancredo Neves . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153
PREFÁCIO
V
ejo este livro de Adalberto Temótio da Silva, que em boa hora a Fundação Astrojildo Pereira está editando, como um verdadeiro documento social. Está tudo ali, dir-se-ia. A infância de um menino pobre da área canavieira do Nordeste, a comovente descrição dos trabalhos extenuantes realizados nas mais diversas regiões do país, da cata do ouro ao ofício de padeiro ou tecelão. Ou o apego que o autor manifesta aos pequenos fatos do dia a dia, pois ninguém é máquina de fazer Revolução. E a alegria, como a beleza, é sempre subversiva. Trata-se, ademais, da trajetória de um bravo. De uma dessas pessoas imprescindíveis naquilo que a nossa prática política tem de mais saudável e autêntico. Com efeito, Adalberto, fruto da mítica Secretaria de Organização do PCB, a qual estruturava a vida do Partido, ingressou no movimento comunista ainda na Segunda Guerra Mundial, ajudando a combater a ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas. E desde então não parou mais: são sete décadas e meia de dedicação a uma causa – e esse fato, por si só, diz tudo. De sua prisão, no longínquo ano de 1938, no norte fluminense, aos dias de hoje, Adalberto estampa uma linha de coerência de fazer inveja à imensa maioria daqueles que se dedicam à atividade política entre nós. Por uma razão simples: ele nunca fez política em busca de cargos ou privilégios. Foi sempre e basicamente um militante comprometido com as mudanças sociais. Jogou sua vida no primeiro terço do século XX e 7
permanece ativo, de bandeira erguida, nesta segunda década do XXI. Mais: foi homem de um Partido só, o PCB-PPS. Conviveu ao longo de todos esses anos com figuras da fibra de Luiz Carlos Prestes, Astrojildo Pereira, Jaime Miranda, Carlos Marighella, Antônio Ribeiro Granja, Giocondo Dias, Severino Theodoro de Mello. Conheceu Graciliano Ramos e representou o Partido, em especial missão na Europa, junto com o saudoso dirigente Marcos Jaimovich, na tentativa de conquistar o ex-governador Miguel Arraes para que ele defendesse e agisse no sentido de se construir uma Frente Ampla de líderes políticos e sociais capaz de enfrentar a ditadura recém-implantada; da mesma forma, ao lado de Paulo Elisiário Nunes, manteve conversações com Tancredo Neves, no período conturbado que antecedeu a transição para a democracia, no início dos anos 1980. E tampouco esconde, nas páginas deste seu gostoso relato biográfico, a admiração que sente por figuras de uma geração abaixo da sua no Partido, que alinha nomes como Roberto Freire, Francisco Inácio de Almeida e o próprio Paulo Elisiário Nunes. Em sua militância exemplar, Adalberto palmilhou o Brasil, da floresta amazônica ao cerrado de Minas, do sertão nordestino ao litoral do Sudeste, sempre incansável, organizando o Partido e suas lutas. Como dizia o saudoso cronista Álvaro Moreyra, “o verbo da vida é andar”. Os velhos comunistas são assim, são desse jeito. A luta para eles é feita de paixão, está na massa do sangue. Mas eu também vejo este livro como um documento humano, sensitivo. E me emocionei várias vezes ao lê-lo. Primeiramente, pela pureza com que Adalberto encara os fatos da vida. Depois, pelo seu envolvimento com aquilo que o povo brasileiro tem de melhor, ou seja, a sua capacidade de transformar a vida, entendendo que é preciso manter acesa a chama da esperança. Talvez seja essa a grande lição deste livro. Meu querido companheiro e fraternal amigo Adalberto Temótio da Silva: muito obrigado, por tudo.
Ivan Alves Filho Historiador, autor, dentre outros, de O Memorial dos Palmares 8
Valeu a pena lutar!
I GRAVETOS, PASSARINHOS E ÁRVORES FRUTÍFERAS
E
u nasci no estado de Alagoas, mais exatamente no município de São Miguel dos Campos. Meu pai descendia de uma família originária dos Países Baixos, resultado ainda das incursões dos holandeses no Nordeste, e a minha mãe era uma cabocla, descendente de índios. Ambos muito pobres, quando se casaram. Meu pai nada mais era que um trabalhador rural a serviço das usinas de produção de açúcar da região. Homem muito dedicado às suas atividades laborais, aproveitava os momentos em que estava mais livre para lavrar as terras do meu tio Pedro Jacó, onde morávamos, plantando feijão, arroz, fava e milho, que constituíam a base da nossa alimentação. É que com o meu nascimento e o da minha irmã, meus pais tiveram de se desdobrar ainda mais para levar comida para casa, já que eram pessoas muito cientes de seus deveres para com os filhos. Eu comecei a trabalhar praticamente aos 7 ou 8 anos de idade, cortando capim para alimentar os animais do meu tio. Ou carregando lenha, para ajudar minha mãe, que, como toda mulher lá da roça, dentre outros afazeres, era quem preparava a comida para toda a família. Lembro-me que catávamos muita lenha para abastecer e alimentar o nosso fogão. Minha mãe separava um feixo grande onde ela colocava a lenha e eu num feixinho levava gravetos. Vez por outra, encontrávamos pelos matos um cacho de côco-catulé e, nessas horas, a gente substituía a lenha por ele. 9
Como era muito peso para cada um de nós transportar os dois, tínhamos de optar entre carregar a lenha ou o côco. Frequentemente, comíamos o gostoso catulé por 3 ou 4 dias. Eu tive uma infância cercada de árvores frutíferas e ouvindo o canto dos passarinhos, típica de um menino pobre do interior do Brasil, e muito particularmente do Nordeste. Eu adorava criar sabiá, curió e canário belga e os procurava pelos matos. Custei muito a largar esse hábito de colocar os bichinhos nas gaiolas. Minha mãe sempre dizia para eu soltar os passarinhos, que eu não deveria prendê-los. Mas eu lhe argumentava que era bonito ouvi-los cantar! Até que, certo dia, li em um livro que os passarinhos, quando presos nas gaiolas, cantavam de tristeza e não de alegria. Quer dizer, eles cantavam porque já tinham perdido a esperança de viver em liberdade. Aquilo calou fundo dentro de mim e os fui soltando, um a um. Dei, assim, razão à minha mãe. Mas havia outras compensações. Tínhamos coelhinhos em casa e até caranguejos nós criávamos, seguindo o hábito de engordá-los, assim como outros animais, para as comemorações da Semana Santa. E havia um campo muito limpo, e nele as plantações, em que o dominante era tudo bem verde. Meu pai tinha a rocinha dele, uma área de 25 braças, e a gente sempre tinha tarefas para fazer. Quando chegava a época do milho, eu o plantava, quando era a do feijão, concentrava-me nele, e assim por diante. As estações do ano (sobretudo verão e inverno, pois primavera e outono não eram conhecidas e vivenciadas em nossa região) comandavam nossas vidas. Eu sabia plantar tudo, até batata. Por último, quando já estava mais ou menos na época de sair de São Miguel, eu já sabia cultivar fumo. Aliás, meu pai se dedicou tanto à plantação de fumo que chegou a ser fornecedor de folhas para a Companhia de Cigarros Souza Cruz, que lhe comprava tudo, ao final da colheita. Quando eu de casa, a especialidade do meu pai era praticamente a plantação de fumo, obtendo uma produção razoável, e que não era pouco. Eu me recordo que tínhamos uma casa de farinha e, em uma ocasião, ao ler uma revista sobre assuntos de Cuba, país que possuía grandes plantações de fumo, soube que o melhor adubo para o cultivo da folhagem era a raspa da mandioca. Sabendo dessa nova e preciosa informação, não mais que de repente fui mostrar a matéria da publicação para meu pai, a 10
Valeu a pena lutar!
fim de que passássemos a utilizar a experiência dos produtores da ilha caribenha. Nossa tradição era, ao fazer a farinha: a gente raspava a mandioca e pensava que não havia mais o que aproveitar e jogava o resto fora, como se bagaço fosse. O que a revista informava é que, ao acabar de fazer a farinha, o camarada poderia jogar a raspa em cima do forno, a fim de ressecá-la, depois guardá-la e utilizá-la como adubo, posteriormente. Ora, para a folha de plantas não havia fertilizante melhor, pois a raspa não continha acidez. Então, o fumo que plantávamos, adubado desse jeito, dava uma palha enorme! É preciso dizer que o fumo era uma tradição em Alagoas, desde os tempos coloniais. Dali saiu muito tabaco para Portugal, quando ainda pertencíamos ao extremo-sul de Pernambuco. Desnecessário afirmar que aquela era uma região esplêndida para tal tipo de produção. Porém, o estado alagoano se caracterizava também pela criação de gado, que servia sobretudo de animal de tração nos grandes canaviais. Quando os meus avós morreram, deixaram toda aquela área para mim. Meu pai tomava conta dela, mas eles diziam que a plantação era minha. “Isso aqui é para o meu neto”, era assim que vovó dizia. As terras não tinham grande valor, do ponto de vista financeiro, mas constituíam uma área útil para se trabalhar e garantir nossa sobrevivência. Ficava perto do município de Arapiraca. Destaque-se que meu pai, quando eu estava com treze anos, sofreu uma grande crise de rins, não pôde mais trabalhar na roça e eu tive que assumir o comando de todo o trabalho dele. Na minha região, se o camarada começasse a trabalhar por volta das 6h, dava para fugir um pouco do calor até às 10h. Nessas quatro horas matinais, era possível se trabalhar com um ânimo melhor, pois já depois das 11h era um verdadeiro inferno, visto que o sol já estava tinindo. E geralmente a gente voltava a plantar logo depois do almoço, já ao meio-dia. Quer dizer, era brutal. Quando assumi o comando das atividades no roçado, instituí que se deveria trabalhar das 6h até às 10h, e, depois, voltar às 14h, ficando até às 18h. Tal regime permitia cada um tirar uma soneca logo após o almoço. A partir desta minha experiência, alterei o regime de trabalho lá em casa. O resultado disso é que a produção aumentou muito, pois o nosso rendimento também cresceu.
Gravetos, passarinhos e árvores frutíferas
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Com o tempo, os usineiros foram adquirindo aquelas terras, as pessoas foram morrendo ou se mudando para outros municípios ou estados. Na minha época, predominavam os minifúndios, o cultivo do fumo. Hoje, os grandes proprietários é que dominam aquilo tudo. Para mim, de tudo o que ocorreu, sobrou mais que tudo a lembrança. Vendi minha parte para o meu cunhado, e comprei um pequeno apartamento, na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro, que ficou para a minha primeira mulher e o meu filho. Ainda tenho uma casa lá, em São Miguel, mas não se constitui sobra daquelas terras de antigamente. Uma sobrinha mora nela, e vai ficar para ela, pois não pretendo mais residir naquelas paragens. Minha região virou um canavial. Vida que segue, como diria o saudoso João Saldanha.
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Valeu a pena lutar!
II DETALHES NATURAIS E OUTROS QUE A VIDA FOI TRAÇANDO
O
lhando pela perspectiva de hoje, eu diria que sempre fui uma pessoa de iniciativa. Isso nasceu comigo. Os trabalhos que fui tendo pela vida atestam isso. Eu já fabriquei tamanco, pintei casa, trabalhei em fábrica como operário têxtil, plantei e cortei cana-de-açúcar, catei ouro em garimpo, acompanhei tropa de burro, fui padeiro quase a vida toda, tive bar, fui funcionário público, fiz curso de jornalismo. Trabalho não era problema para mim, nunca foi. Talvez o único desgosto que eu tenha dado à minha mãe foi, em minha juventude, ter gastado dinheiro demais com jogo de baralho. Aliás, gastado não seria bem a palavra, eu perdia mesmo. Porém, depois me livrei disso. Ocorre que o jovem, no interior, e naquela época, só tinha três distrações: mulher, bebida e baralho! Aliás, eu nem gosto tanto de beber e isso está diretamente relacionado com uma aposta de juventude. Explico-me. Eu queria porque queria ganhar uma bezerrinha, pois já possuía um garrote. E resolvi apostar com um primo meu, antigo proprietário do tal garrote, que aquele que bebesse um litro de rabo de galo – uma cachaça poderosa da época, misturada com vinho, mel de abelha, um troço de doido! – ganhava a aposta. O resultado dessa minha maluquice foi que, só no dia seguinte, fui saber onde eu estava, pois havia desmaiado completamente. Quando a garrafa já estava pela metade, eu senti que não aguentaria o tranco. Mas fiz uma força danada e acabei com aquela gororoba, bebendo o litro todo. E quase acabei comigo também. 13
Depois dessa experiência, passei a ter nojo de cachaça, não podia sentir sequer o cheiro de aguardente, que já queria vomitar, aquela coisa toda. Foi até bom, pois serviu de exemplo para mim por toda a vida. A nossa cidadezinha era bem abastecida de água. Acontece que o coronel, dono de quase metade do município, tinha duas fontes dela em suas terras. Essa água servia para as atividades agrícolas e também para cozinhar e para o próprio banho. O coronel distribuía duas bicas para os moradores, no sábado e no domingo, e eu me recordo que era uma verdadeira festa para a pobreza. Por outro lado, é preciso dizer que São Miguel estava localizada à beira de um rio, havendo, portanto, água em abundância. Nele pescávamos peixes e camarões, e isso, naturalmente, ajudava na sobrevivência das famílias. Não havia escola pública, por perto. Mas havia uma escolinha particular e eu fui para lá. É preciso dizer que eu tinha medo da professora, uma senhora já de certa idade e muito enérgica. Nós não podíamos errar. A pergunta que ela fazia teria que ser respondida obrigatoriamente. Esse era o sistema de ensino daquela época. Nós aprendemos assim, em um sistema de instrução que adotava um rigor absoluto. Não era como hoje. Eu penso que os alunos de agora fazem o que querem: quando as professoras são enérgicas, as mães querem corrigir não os filhos, mas as próprias professoras. Eu considero que, apesar de tudo, aprendi alguma coisa na escola daquela época, mesmo tendo cursado apenas o primário e o ginásio. À medida que o tempo foi passando, meu pai também foi melhorando de situação. Inicialmente, deixou de ser um trabalhador rural, pois um comerciante português lhe pediu para que fosse ajudá-lo em seus negócios. Esse homem ajudou muito meu pai e assim as condições de vida da minha família foram melhorando aos poucos. Mas nós não deixamos, de imediato, a nossa cidadezinha. Para nos manter em condições razoáveis, era necessário ainda que meu pai e eu também trabalhássemos em um comércio de tropas, indo de uma cidade a outra levando mercadorias. Até que o português nos deu a oportunidade e nos ajudou a abrir um pequeno comércio, uma bodega. Daí fomos evoluindo, crescendo, e eu tive a possibilidade de estudar melhor, uma vez que podíamos pagar um professor. Esse homem era o telegrafista da cidade. Nós tínhamos até uma cadeira de Educação Cívica e – interessante isso – tal fato 14
Valeu a pena lutar!
me ajudou a entender melhor quando volta e meia pipocavam notícias sobre revolução por aquelas bandas. Eu me lembro que o professor nos ensinava a disciplina militar e com isso fui aprendendo o que era a República, o Exército, o papel do soldado. Nosso querido mestre era portador de tanto conhecimento que havia pessoas, na cidade, que o chamavam até de doutor. Foi um período muito enriquecedor para mim. Eu nasci em 1918, no final da Primeira Guerra Mundial, um ano depois da Revolução Russa. Quando eclodiu a Coluna Prestes, eu era ainda muito criança e, naturalmente, não me interessava muito por aquilo. Mas meus ouvidos estavam atentos. Eu ouvia falar de Juarez Távora e de João Pessoa. Eu não sabia muito bem que revolução era aquela que o capitão Luiz Carlos Prestes tramava, quando se lançou a percorrer o país com sua Coluna Invicta. É preciso ver que o Nordeste vivia muito isolado do Sul do país. Mas como as notícias chegavam por meio do telégrafo – e o meu professor era o telegrafista da cidade –, ele comentava alguns acontecimentos para nós. Lá não chegava jornal, nem mesmo rádio existia. No máximo, tínhamos alguma informação sobre o que se passava em Maceió, por meio de conversas de pessoas que tinham estado na capital. Nada mais. Meu pai, apesar da rudeza e de uma certa limitação no plano dos costumes, era um homem muito aberto e extremamente preocupado com o fato de que os filhos deveriam adquirir algum conhecimento. Isso nos ajudou muito porque também tínhamos uma verdadeira sede de ler livros ou revistas, pouco importava. A escassez de publicações era tamanha que tudo o que recebíamos, a princípio, líamos. Eu colecionava informações sobre futebol, já havia álbuns de figurinha estampando os jogadores mais famosos da época. Eu adorava aquilo. E meu pai nos incentivava também a praticar esportes, o futebol em primeiro lugar. Eu era goleiro em todos os times pelos quais pude jogar, inclusive nas “peladas” do Rio de Janeiro. O futebol sempre foi uma paixão minha, desde os tempos de infância em terras alagoanas. Ao mesmo tempo, eu não desdenhava as leituras e a ampliação dos meus conhecimentos. Quanto aos estudos escolares, propriamente, eu gostava muito de Matemática e de Geografia. Mais tarde, quando me fiz andarilho, passei a gostar ainda mais de Geografia. Desde o momento em que iniciei miDetalhes naturais e outros que a vida foi traçando
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nhas atividades políticas no PCB, eu me abri para outras leituras. Gostava muito de Jorge Amado e de Graciliano Ramos – li duas ou três obras deste, um autor que não escreveu muito, mas tinha uma extraordinária qualidade. Mais tarde, eu teria a honra de, em companhia de Prestes, conhecer pessoalmente meu conterrâneo e notável autor de Vidas Secas. Li também toda a obra do Érico Veríssimo. Os Sertões, livro clássico de Euclides da Cunha, autor que muito admiro, li durante as madrugadas, quando ainda trabalhava nos fornos das padarias. Acho que li tudo o que fora editado do velho Machado de Assis, também. Às vezes, eu tinha de me esforçar muito, lia duas ou três vezes um trecho, para entender bem, pois eu não era um intelectual. Lia porque gostava de ler. O meu estado de Alagoas, de 1933 a 1935, em decorrência dos resultados dos acontecimentos nacionais da chamada Revolução de 30 e da crise em que o mundo estava envolvido a partir do estouro da Bolsa de Nova Iorque, em 1929, transformou-se em um caldeirão dos infernos. Ali existia grande número de Senhores de Engenho, tendo cada um o seu serviço de segurança feito por jagunços. Existia, de forma secreta, o sindicato da morte. Quem matava em qualquer parte do território alagoano e viajava para a Bahia, ficava salvo da prisão e de perseguições. Algumas famílias poderosas, como a dos Gois Monteiro, dos Cavalcante, dos Palmeira, dentre outras, transformavam constantemente Maceió em campo de guerra. Eu permaneci na minha terra natal até completar 17 anos. Vou contar as razões dessa decisão, e uma delas está ligada diretamente a um desses senhores. Aos 14 anos, aconteceu algo que me fez pensar como era de fato a política. Eu estava com meu pai, em uma conversa com o chefe político local, Rocha Palmeira, o “Coronel Rochinha”. Lá pelas tantas, chegou no alpendre de sua casa, onde estávamos, um sujeito chorando, dizendo que tinha perdido a mulher. Ele quase implorava: “Coronel, eu estou até sem voz pra falar, mas estou com muitas dificuldades. Minha mulher morreu e eu não tenho nenhum réis pra comprar um metro de mortalha para enterrá-la”. Aí o coronel virou pro meu pai (a quem chamava de compadre) e fez o seguinte comentário: “Olhe, esses eleitores não se dão conta de que são iguais a roletes de cana. Eles não sabem fazer outra coisa a não ser chorar na nossa porta”. Apesar de tudo, ele acabou por atender ao pedido do homem.
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Valeu a pena lutar!
Eu não tinha condições, na minha idade, de analisar aquilo, mas o comentário dele me causou uma revolta tão grande! É que a gente tinha também uma forma própria de analisar os fatos. Tratava-se, no caso, de uma questão humana. Eu até aconselhei meu pai a não falar mais com aquele coronel. De imediato, veio-me o pensamento de que político é um filho da puta. Como era possível, com tanta frieza, fazer uma coisa dessas com um cidadão, com um homem numa situação como aquela? Tal atitude não era justa, eu pensei. Naquele momento, nasceu em mim uma revolta contra os políticos. Ao menos contra esse tipo de políticos para os quais o povo é tudo antes do voto, e depois do voto não é nada. Devo dizer que, até o final dos anos 30, eu levava comigo essa revolta. Ou seja: a política não valia nada aos meus olhos. “Não quero saber nunca de política”, foi o que imaginei, então. Alguns anos depois, comentei esse episódio com uma pessoa que eu respeitava muito, na direção partidária, o sergipano Agliberto Vieira de Azevedo, que era uns 30 anos mais velho do que eu, e ele me daria razão, afirmando que muitos de nós acabavam se engajando na luta social por causa de cenas dessa natureza que assistíamos na infância. Em seguida, apareceram na escola em que eu estudava alguns elementos fazendo palestras a propósito dos efeitos da crise no mundo e informando que alguns movimentos estavam surgindo em vários países, por causa da crise econômico-financeira, e que no Brasil já havia pessoas deles participando. Ao mesmo tempo, nossa cidade foi tomada pela onda integralista vinda de Maceió, onde ela tinha todo apoio. A família Gois Monteiro tinha, entre os seus, os cabeças do movimento em Alagoas que, no país, era comandado por Plínio Salgado. Em São Miguel, meus dois primos Eraldo e Lourdes, filhos do meu tio Pedro Jacob, pessoa bem situada econômica e socialmente, de tão entusiasmados, ingressaram nesse movimento de fundo conservador. Eles andavam fardados ou fantasiados, faziam passeatas com muita gente pelas ruas e o fato é que eu interpretava aquilo como se fosse a tal da política, algo que, portanto, me revoltava e que eu não aceitava, de jeito nenhum. Primeiramente, eu achava aquilo uma palhaçada, pois usavam camisa verde e faziam aquela cantoria no meio da rua, na minha visão mais parecendo uns palhaços. Eis que, em um determinado dia, almoçando na casa do meu primo, ele insistiu Detalhes naturais e outros que a vida foi traçando
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em me levar para o movimento do Plínio Salgado. Minha reação foi dura. Disse-lhe, assim mesmo: “Faça-me um favor. Não me convide mais para essa porcaria, porque não quero nunca dela fazer parte”. Recusei totalmente meu ingresso no integralismo, afirmando tratar-se de um “movimento politico”. Eles se ofenderam e me disseram que não eram porcos. Pensei que a coisa tivesse terminado aí. Enganei-me e, à noite, fui ao cinema ver a Vida de Cristo, pois estávamos na Semana Santa. Meu primo me chamou a um canto para conversar. Ele estava acompanhado de uma patota. Notei que alguma coisa estava acontecendo. – Ô Adalberto, vem cá... por que você não quer entrar para o nosso movimento, é porque ele é uma porcaria? Aí eu lhe disse, de forma tranquila: – Olha, Heraldo, eu não falei para diminuir ninguém, foi só por falar mesmo. E ele, então, me desafiou: – Mas, você é capaz de repetir isso agora? E eu, sem hesitação: – O que eu lhe falei está dito, não vou negar o que já lhe afirmei. Ao deduzir que ele queria me meter o braço, ali mesmo, na frente da minha namorada e de quantos estavam ali na calçada, defronte ao cinema, avisei-lhe: – Vocês podem até me bater porque são muitos, mas eu quero deixar claro que vou deixar um de vocês esticado aqui no chão. Ante a minha postura de não me dobrar à ameaça e à provocação e entrar para assistir à sessão de cinema, eles acharam melhor sair dali e procurar meu pai, que sempre visitava a casa do meu tio. Eles se queixaram com ele e lhe informaram o que tinha acontecido de uma forma completamente deturpada. O certo é que, quando eu voltei para casa, meu pai estava uma fera, sem me dar nem tempo de lhe explicar o que tinha acontecido. Ele não quis me ouvir, pois para ele a razão toda estava com o meu primo e me condenou com palavras muito duras e praticamente me pôs para fora de suas relações pessoais e familiares. Num primeiro momento, raciocinei da seguinte forma: o que eu posso querer, de fato, do meu pai? 18
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Eu fiquei emburrado, e os dias da semana – segunda, terça, quarta – foram passando, e eu mergulhado no acontecido. O apoio numa hora dessas, que era o que eu mais precisava, eu não estava obtendo do meu pai. Pior: ainda estava sendo condenado por isso. Então, minhas hesitações foram desaparecendo e eu decidi meter o pé no mundo. Vale dizer, eu decidi não suportar mais aquilo. “Vou-me embora, não vou mais ficar com meu pai, não. Na hora em que precisei de um apoio dele, eu não o tive”. Isso aconteceu num Domingo de Ramos, que, na Bíblia, se dá uma semana antes da ressurreição de Jesus.
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III O DIA EM QUE FUGI DE CASA
A
ssim é que, às 4h30 da manhã do Sábado de Aleluia, o último dia antes da Páscoa, eu bati na porta do quarto do meu pai, pedi a sua bênção e a da minha mãe, e saí para enfrentar a vida, aonde quer que fosse. No dia seguinte, o Domingo de Páscoa, também chamado do Domingo da Ressurreição de Cristo, meus familiares, conforme eu soube posteriormente, não tentaram evitar minha saída, pois compreenderam que não haveria mais conversa dalí para a frente. Eu havia metido o pé direto na estrada do Junqueiro, cidadezinha onde estávamos morando, em direção a Penedo. Eu colocara, em uma sacola, alguns apetrechos, como um par de chinelos, um outro de tênis, uma calça e uma camisa. E assim caí no mundo. Meu dinheiro era uma moeda de prata de 2 mil réis. Passei o primeiro dia todo andando e, em alguns momentos, até correndo, com medo de que meu pai me localizasse e tentasse me levar de volta para casa. No entanto, tal como ocorreu, eu não admitia retorno, até porque já estava decidido mesmo a enfrentar a vida, em qualquer lugar e circunstância. Cheguei a Penedo, por volta de uma hora da manhã, cansado, estourado. Fui ao mercado local, peguei minha sacola e a transformei em uma espécie de travesseiro. Então, adormeci. Quando acordei, não tinha mais a sacola, pois a tinham me levado e o meu dinheiro. Fiquei só com a roupa do corpo. O que fazer? Voltar? Aí eu retornaria como um derrotado. Pensei: “não volto...”. 21
O que é certo é que, quando o mercado abriu, aproximei-me de um dos seus quiosques e iniciei conversa com a sua proprietária, relatando-lhe o que acontecera comigo. De forma muito fraterna, ela me deu um pedaço de cuscuz e um copo de café. E ainda comi umas bananas e umas laranjas, para matar minha terrível fome. Quando o relógio registrou duas horas da tarde, fui para a beira do rio São Francisco, que banha a cidade, a fim de assistir à chegada das pessoas que transportavam suas mercadorias para vender. Vendo aquele movimento, tomei a iniciativa de ajudar a tirar produtos de uma das canoas, que era de Propriá, importante cidade de Sergipe, e que ficava na outra margem do Velho Chico, até que deu três horas e o dono dela deu o descarregamento como encerrado. “Vamos embora, vamos embora”, berrou ele. E, não mais que de repente, embarquei, mesmo com os pés descalços, e segui viagem também. Só que, quando o barco foi subindo o rio e já nos aproximávamos de Propriá, o canoeiro percebeu a minha presença e ficou bravo, me xingou de malandro e de outras coisas mais. Dei-lhe toda a razão e lhe disse que a canoa era dele, mas que eu tivera necessidade de atravessar o rio e estava sem dinheiro para lhe pagar. Afirmei-lhe ainda que, de fato, eu poderia ter perguntado sobre o que fazer na minha difícil situação, mas se, por acaso, assim tivesse agido, acreditava eu que ele não me teria dado carona. Garanti-lhe, então, que eu me comprometia a trabalhar o que fosse necessário para pagar meu transporte. Fiz-lhe ver, ainda, que agora só tinha dois caminhos – ou me levava consigo até Propriá ou me jogava no rio, naquele trecho tomado por piranhas. De certa maneira, o nosso problema ficava assim resolvido. Só que nós poderíamos resolvê-lo de outra forma também. A essa altura da conversa, ele concordou de eu ficar trabalhando para ele, até pagar a passagem que custava três mil réis. Desta forma, terminou esse meu primeiro dia, após a minha saída de casa. Destaque-se que eu só voltaria à minha casa paterna/materna, treze anos depois, a fim de visitar minha mãe, que sofrera um derrame cerebral. Em nosso reencontro familiar, meu pai chorou muito, afirmando que eu era um filho muito bom, que nunca lhe dera trabalho na vida.
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Valeu a pena lutar!
IV AS AGRURAS DA LUTA PELA SOBREVIVÊNCIA
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á que estou me referindo ao meu pai, devo confessar que, na verdade, a única coisa que eu sabia fazer bem mesmo era trabalhar em padaria. É que eu aprendera a fazer pão com ele, que havia prosperado um pouco e montado uma pequena panificadora. Naturalmente, eu não sabia fazer tudo o que uma pequena indústria desse tipo produz, mas, mesmo assim, decidi oferecer-me para trabalhar em uma de Propriá. Qual era o meu raciocínio? Em uma padaria, eu teria, no mínimo, como tomar um café e comer um pão, dormido que fosse. Fiquei na porta de uma delas, aguardando o dono chegar. Falei com um auxiliar dele, que me autorizou a pegar uns limões em um pé que havia no próprio quintal do estabelecimento e deles fiz várias limonadas para mim. Tomei quase um litro daquilo, com pão seco, e assim saí da fome. No dia seguinte, o dono chegou e, por sorte, o ajudante de padeiro não fora naquele dia, e eu pude assim permanecer na padaria. Inicialmente, passei a ganhar dois mil réis, além do que o patrão me dava o café da manhã, o almoço, e tinha também o café da tarde. Naquele então, eu julgava estar com o meu problema de sobrevivência resolvido, até porque eu dormia no próprio local de trabalho. Quando já me aproximava de três meses de atividades fabris, pensei em deixar tudo e continuar a viagem em busca do meu objetivo maior, que era atingir o Rio de Janeiro, a então capital da República. Mesmo com o patrão tentando me 23
convencer a ficar mais tempo, fui-me embora para Aracaju, a fim de ver, inclusive, se ganhava um pouco melhor. Na capital sergipana, naquela época, falar em sindicato era uma verdadeira subversão. Não se podia falar em nada disso, pois o trabalhador não tinha direito a coisa nenhuma. Contudo, havia por lá um Centro Operário, que, se não me falha a memória, era dirigido por um parente do Wellington Mangueira, que viria a ser meu companheiro no PCB e, em seguida, no PPS. Esse parente dele era fiscal de rendas. Eu passei, então, a ouvir palestras sobre a Revolução de 30, a respeito do paraibano João Pessoa, sobre o comportamento político de Juarez Távora, assim como a própria Revolução Constitucionalista de 32. Tais palestras iam conscientizando cada um de nós. Nessa organização, havia um pátio fechado e ninguém podia ver o que se passava exatamente ali. Todo tipo de trabalhador frequentava o local – pedreiros, marceneiros, carpinteiros, dentre outros. O regime de trabalho na Padaria Fênix era o seguinte: eu tinha que chegar às duas horas da tarde, botar uma quantidade de lenha na boca do forno, fazer o fermento branco. Deixava aquilo fermentando e ia embora. Por volta das oito horas da noite, eu voltava para botar a lenha no forno, para ali ser queimada, e, uma hora depois, o padeiro chegava, botava lenha no fogo, queimava o forno e eu tinha que estar presente para acompanhar aquela fase do trabalho. Depois, eu varria, para tirar todo aquele carvão de dentro do forno, deixava-o bem limpo, e só depois disso é que se começava a fazer o pão, já quando amanhecia. Ali pelas seis horas da matina, eu tinha que encher uma cesta de pão e levá-la, nas costas, pelas ruas da cidade, a fim de fazer as entregas aos nossos fregueses. Ao ficar livre dessa pesada tarefa, ali por volta das dez ou onze horas, já estava quase na hora de voltar ao trabalho, pois, às duas da tarde, eu já deveria estar na padaria, pronto para fazer tudo novamente. Face a essa difícil situação, começamos a discuti-la dentro do Centro Operário, e a examinar a possibilidade de se fazer uma espécie de movimento em que se pudesse provocar a melhoria das nossas condições de trabalho, já que greve não se podia fazer. Aliás, não se podia sequer falar nesse nome subversivo de cruzar os braços. Foi aí que decidimos procurar o próprio governador de Sergipe, a fim de pedir-lhe que tomasse algumas providências, pois o regime de exploração estava de24
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mais. Ele achou justo que fizéssemos algum movimento ou apresentássemos algumas reivindicações, mas pediu também para que não cometêssemos nenhum desatino. E o que fizemos? Fomos para a nossa sede, discutimos e deliberamos fazer uma greve, já para o dia seguinte. Estávamos em novembro de 1936. Nós nos reunimos e discutimos, o pão já estava na rua. No terceiro dia em diante, resolvemos fazer um pelotão de observação e cada um levou um fio de cobre enrolado em jornal ou em um pano, e no outro dia apareceram lá uns fura-greves, com as sacolas carregadinhas de pão. Nós os pegamos e a ponta dos fios andou ferindo as costas de alguns dos fura-greves. Houve uma tremenda confusão, e o governador mandou prender a gente. Ora, eu era tido como alguém que insuflou ou assanhou aquele movimento todo e acabei ficando cinco dias escondido num barraco que tinha lá perto do Cemitério do Bonfim. De fato, eu não podia nem botar a cabeça de fora já que a polícia queria me pegar, de todo jeito. Por achar que não havia feito nada demais, senti que estavam sendo injustos comigo. E não vi outro jeito senão deixar o estado de Sergipe. Sorte minha é que apareceu, no porto marítimo de Aracaju, um navio que estava vindo do Ceará e ia para o Rio de Janeiro. Como eu sabia que, sempre que os navios chegavam, os passageiros desciam para comprar mangas e outras guloseimas para levar para suas casas ou consumir durante a viagem, fui imediatamente para o mercado, tentar resolver o meu problema de transporte de saída, de como sair dalí. Por sorte, encontrei uma senhora que estava comprando mangas, a quem perguntei se ela queria que eu conduzisse a caixa com as frutas para bordo. Respondeu-me que sim, pagou sua conta, eu peguei a enorme caixa e a coloquei na cabeça, subi a escada do navio, levei com todo o carinho a caixa de manga até o camarote dela e ela me pagou cinquenta réis. Enquanto fui penetrando nos interiores do navio, fui meditando a respeito de o que fazer e concluí que não deveria abandoná-lo. O certo é que fui lá pra baixo, para a área da terceira classe, onde têm os beliches e me escondi por lá, de meio-dia até às cinco horas da tarde. Quando o navio apitou, comunicando sua partida, fui saindo devagarzinho do meu esconderijo e alegrei-me ao constatar que Aracaju já estava longe. Misturei-me, então, com o pessoal do navio e desembarquei em Salvador. As agruras da luta pela sobrevivência
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É preciso dizer que cheguei, meio desconfiado, à Boa Terra. Afinal, eu não sabia bem o que fazer ali. Fiquei no cais do porto e logo encontrei um perdido igual a mim, que puxou conversa e me pagou um café. Logo depois, saí para conhecer a encantadora cidade. Destino ou não, ao me aproximar do Elevador Lacerda, fui identificando a existência da Padaria Nossa Senhora da Conceição (acho que era esse o nome dela), que ficava ao lado do famoso transporte que liga a Cidade Baixa à Cidade Alta. Procurei o seu dono e contei-lhe uma parte da minha história, de forma que terminei arrumando trabalho. Ali vivenciei uma rotina parecida com a de Aracaju: de manhã, eu entregava o pão para os fregueses e subia aquelas ladeiras com as sacolas cheias até o largo existente na Praça Castro Alves, depois descia em direção ao Pelourinho, sempre com aquele feixe imenso nas costas e, por não poder voltar utilizando o Elevador Lacerda, era obrigado a descer pelo carrilhão. Quer dizer, eu andava um trecho imenso para voltar para a padaria. E ainda tinha gente que pedia reforço de pão ou de outros produtos, e eu tinha de retornar a esses lugares para fazer a entrega. No entanto, como meu destino era o Rio de Janeiro, todo movimento que eu fazia era no sentido de ir para a Cidade Maravilhosa, grande esperança da juventude do Nordeste, sobretudo para o pessoal que trabalhava na zona rural, os chamados boias-frias. Soube, nas adjacências do cais de Salvador, que entre Ilhéus e Itabuna havia uma empresa de navegação que transportava o cacau, já que a entrada da barra de Ilhéus era muito perigosa – só quando o navio era pequeno tornava-se possível passar na barra. Soube também que, em Itabuna, havia uma empresa com três navios, respectivamente Itabuna, Itaúna e Campeão, e, tendo feito amizade com um dos marujos dessa última embarcação, acabei indo da capital baiana para Ilhéus. E nisso o tempo foi passando na capital do cacau: em um certo dia, eu trabalhava em um lugar; em outro, eu sobrevivia fazendo algo diferente e em outro lugar, até que apareceu um sujeito à procura de quem quisesse participar da colheita do cacau. Ele nos disse apenas que o serviço era bem pago, em torno de um salário de quatro mil réis, do qual era descontado posteriormente o almoço. Aí acertei tudo com ele e embarquei numa canoa para a cidade de Itacaré, mais precisamente para a Fazenda Chã Preto. 26
Valeu a pena lutar!
Não demorei a constatar, logo que comecei a trabalhar, que aquele que entrava ali não saía mais, pois tinha que pegar o rio que desaguava lá longe em Ilhéus, tendo de passar antes – depois de ir subindo “toda a vida”, como fiz – por um córrego que terminava na fazenda. O pior era que o canal era tão estreito que a canoa entrava de proa no local, mas tinha de sair de ré, para poder contornar. E esse era o único meio de chegar até ali. Sair, então, era quase impossível. Era praticamente um trabalho escravo, digo isso sem medo de errar. Além do que a colheita de cacau é muito complicada, no sentido de que não se pode fazer a mesma coisa todo dia. Isto é, em um dia o trabalhador poda o cacau; no outro, ele o colhe; no terceiro dia, o sujeito tem que cortá-lo; no quarto, é preciso carregar a polpa do fruto para jogá-la na bancada e ainda nesta espezinhar o cacau para enxugá-lo. Evidentemente, não dava para cada trabalhador fazer a mesma coisa, ter a mesma tarefa. Como o camarada passava o dia todo trabalhando, do nascer ao pôr do sol, e quando chegava a noite, o pescoço dele não voltava para o lugar. No dia seguinte, outro trabalhador ia fazer a cata, enquanto aquele primeiro se voltava para o que havia sido catado. A gente se abaixava, pegando o cacau, colocando nos cestos e quando se atingia uma quantidade de trinta ou quarenta quilos, os cestos eram levados para um lugar determinado. No final do dia, depois de carregar esse peso todo, para baixo e para cima, de um lado para o outro, as nossas costas não queriam outra coisa a não ser uma cama. Ao acordar, uma nova tarefa nos esperava, qual seja, a de retirar o cacau da casca. Para quem já tinha prática, tudo bem. Mas quem não a tinha, como eu, fazia tudo com a unha e quando chegava a noite parecia que a unha ia cair, e os dedos estavam todos feridos. No outro dia de manhã, começava novamente a alternância, que consistia dessa vez em carregar os cestos de cacau nas costas, levando-os até às barcaças, por exemplo. Não havia um inspetor, capataz ou quem quer que fosse que mostrasse o serviço para nós – tínhamos que fazer aquilo tudo, e pronto! Com pouco mais de um mês fazendo aquele trabalho na fazenda, entendi tudo o que estava acontecendo ali. Na verdade, nós estávamos cercados, trabalhando como escravos e praticamente sem ter como sair dali. Nossa rotina era terrível. Trabalhávamos o dia todo e, quando chegava a noite, tomávamos banho, lavávamos nossas roupas, púnhamos tudo para As agruras da luta pela sobrevivência
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secar e íamos jogar um pouco de baralho, quase que nossa única distração. O que fazer? Eu fui observando que o capataz da fazenda tinha seis filhos e me aproximei deles. E comecei também a brincar com o filho dele, que me chamava para jogar bola. Em um certo dia, uma filha do capataz adoeceu e ele nos comunicou que precisava levá-la ao médico, porque ela queimava de febre. Então, ele me chamou para acompanhá-lo na viagem até a Bahia, até porque, segundo nos informou, tinha também que adquirir alguns produtos. Ao chegarmos a Ilhéus, ele me pediu para que fizesse as compras, enquanto levava a filha ao médico. Deixou-me uma relação do que comprar, mas escreveu embaixo: ”não vá fugir com meu dinheiro”. O certo é que comprei tudo o que ele mandou e deixei os pacotes em uma banca de peixes, na beira do cais. E também lhe fiz um bilhete: “deixei as encomendas todas, pois saiba que eu não sou ladrão, mas não vou voltar para a fazenda”. No fundo, meu medo era ficar em Ilhéus e ele depois me encontrar lá e querer me espancar, porque, naquele tempo, eles cercavam o trabalhador e batiam nele para valer. Atento às movimentações, fiquei encostado lá uns dias, olhando a praia, até que atracou um navio no porto de Ilhéus. Estávamos no dia 9 de novembro de 1937. Eu me aproximei da turma do navio, puxei conversa, em especial com um prático, até que, em determinada hora, ele me deu uma folga, facilitando para que eu pulasse para dentro do navio. Entrei logo dentro de um galé, fazia um calor dos infernos, mas eu aguentei firme. Volta e meia, eu levantava a tampa desse galé para ver se vinha alguém. Uma sede de matar se apoderou de mim. Mas eu ia resistindo. Dali a um bom tempo, pelas cinco horas da tarde, o navio saiu. Quando ele chegou barra afora, o prático chegou perto de mim e disse que estava me vendo. Mas aí a gente já estava em alto mar e ele não podia fazer mais nada contra mim, a não ser me jogar dentro d´água. Colocou uma comida em um prato para mim, comi e, logo depois, o navio entrou na barra de Vitória, no Espírito Santo. Eis que o tal rapaz depois se virou pra mim e perguntou-me para onde eu estava indo. Ao lhe responder que desejava ir para o Rio de Janeiro, a fim de tentar a vida por lá, declarou-me, então, que não fizesse isso, que permanecesse em Vitória, por uma razão. É que o Rio estava em polvorosa. O governo 28
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Vargas tinha posto o Exército nas ruas e o receio dele é que, se eu chegasse lá, provavelmente teria de me identificar por ocasião do desembarque e, aí, tudo estaria perdido, eu ficaria todo enrolado, sem ter explicações convincentes a dar. Diante disso, eu resolvi permanecer na capital espírito-santense. Naquele tempo, na beira do cais, havia uns pequenos quiosques, o que acabou me ajudando, pois, em um deles, uma senhora me deu comida logo que desembarquei. E fui informado, pouco depois, que seria necessário eu me deslocar até a cidade vizinha de Vila Velha, a fim de conseguir embarcar para o Rio de Janeiro, que continuava sendo meu objetivo, apesar de tudo. Não tinha jeito. Eu fui a pé de Vitória para Vila Velha. Eu me lembro ter chegado à Vila Velha, mais ou menos à meia-noite. Meus pés doíam muito e eu estava todo mordido por pernilongos, completamente extenuado. Ao ouvir o apito do trem, perguntei logo ao primeiro que encontrei qual era o destino dele. Vendo vagões carregados de toras de madeira e o trem se movimentando para sair, subi nele e fiquei quieto, escondido ali entre as toras, viajando assim até amanhecer o dia. A composição parou na Estação de Matilde e aí não deu mais para seguir viagem, pois recebi convite para retirar ouro de uns cascalhos da região. A primeira coisa que eu e os demais companheiros recrutados para essa empreitada fizemos foi acertar umas compras em um armazém para levar para a beira do rio, de onde viajaríamos, já no dia seguinte. Nessa margem do rio fazia um frio de rachar. Acendíamos uma fogueira, aquilo nos esquentava e também secava a nossa roupa, para a gente poder trabalhar, no dia seguinte. Até porque, não tínhamos outra roupa mesmo. De manhã bem cedo, acordávamos, tomávamos o café e íamos para o cascalho. O trabalho residia em abrirmos um buraco até encontrar o cascalho, após o que nós o pegávamos e o jogávamos na bica, para lavá-lo em cima de um filtro verde. Depois de certo tempo, aquele filtro era retirado e substituído por outro. Na medida em que o filtro ia enxugando, iam aparecendo as pepitas de ouro. Com um detalhe: naquela hora, ninguém podia ficar perto do filtro. O cara responsável pelo recrutamento chegava e dizia “vai pra lá, vai pra lá, afasta”, e pegava todo o ouro lavado. No entanto, o tempo foi passando, completou-se o primeiro mês de trabalho e quem falou em nos pagar? Nada de a gente As agruras da luta pela sobrevivência
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receber dinheiro! Quando deu um mês e uma semana, o tal chefe chegou lá para efetuar o pagamento. Pagou um, pagou outro e quando chegou a minha vez e a de um colega meu, ele não quis nos pagar nada. Alegou que havíamos contraído dívidas no armazém e que por isso teríamos que trabalhar o resto do mês. Ele disse que só nos pagaria depois disso. Era o sistema do barracão, muito comum, ainda hoje, em algumas áreas rurais do Brasil. E o pior é que nós tínhamos que fazer novas compras, pois já havia acabado tudo – o feijão, a carne, o arroz. A ocorrência daquela atitude sobre nós deu uma revolta na gente. Quando foi de manhã, cada um pegou seu balde, e aí eu conversei com meu colega Miguel. Disse-lhe que era necessário tomarmos alguma atitude. Informei-lhe que teríamos que recuperar nosso dinheiro e que eu não trabalharia mais. “Nós vamos acabar morrendo de fome aqui”, ressaltei. Foi, então, que interpelamos o tal sujeito que nos havia recrutado. Declarou-nos que não tinha dinheiro e que o patrão já havia ido embora. Eu retruquei, dizendo-lhe que ele tinha dinheiro sim e que nós é que não tínhamos um único tostão furado. E fui duro: “Eu não estou brincando não, rapaz. Isso é um inferno e eu não quero ficar mais aqui”. Nessa hora, o camarada se apavorou e afirmou que o único dinheiro que tinha era uma nota de duzentos réis. E eu lhe respondi, no ato: “é esse dinheiro que nós vamos levar”. Nós nem deveríamos ganhar esse dinheiro todo. No máximo seria uns 60 mil réis para cada um. Mas ele se acovardou e nós pegamos os 200 mil réis, de uma vez. E pulamos fora dali. Chegamos à Matilde propriamente dita correndo, com a nota de 200 mil réis bem guardadinha com a gente. Batemos na porta da casa de um agente ferroviário, porque era a única pessoa acordada naquele momento, nas proximidades da estação. Ele disse que não tinha comida para nos dar, a não ser algumas bananas, mas que a senhora dele iria cozinhar para nós. Eu estava com tanta fome, comi tanta banana, que vomitei tudo aquilo. O meu estômago não resistiu. Eu nunca tinha comido tanta banana na minha vida. Mas, o problema é que eu estava tão fraco! A esposa do ferroviário, então, foi lá dentro e preparou uma canjinha, que nos fez recuperar o ânimo, a energia. Nós lhe falamos que não tínhamos dinheiro trocado e ela disse que poderíamos pagar depois, que não nos preocupássemos. Eu só sei que zarpamos dali e termi30
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namos andando na linha do trem, mais umas três horas, para fugir das cercanias da estação de Matilde. Nessa andança, chegamos até Cachoeiro de Itapemirim, terra do cantor Roberto Carlos, e também do líder sindical Hércules Corrêa dos Reis, companheiro nosso do PCB. Amanheceu, e nós não podíamos entrar sujos daquele jeito na cidade. Lavamos nossas roupas na beira do rio, esperamos o sol secar as peças e fomos para o centro da cidade. Continuávamos sem condições de comprar nada para comer, devido à falta de nota pequena, e íamos assim passando fome – e com dinheiro nas mãos. Um paradoxo. Chegou a hora de dormir e ocupamos uma construção antiga ali por perto, onde avistamos uma esteira. Tiramos a poeira em volta e dormimos. Mas um vizinho percebeu nossa presença e avisou à polícia. Assim, às três horas da madrugada, policiais bateram em nossa porta, perguntando o que a gente estava fazendo ali, de onde vínhamos etc. Nós dissemos que estávamos em busca de trabalho. Não teve jeito: fomos levados para a delegacia e permanecemos por lá até o raiar do dia. Logo em seguida, se apresentou um sargento, fazendo perguntas com certa estupidez. Consultou-nos se tínhamos carteira de identidade ou de reservista, ou qualquer outro documento. Viu que não éramos marginais e acabou amolecendo. Quis, então, saber se tínhamos tomado café e, como nossa resposta foi negativa, pediu para um soldado que fosse buscá-lo para nós. Nesse meio tempo, expliquei a nossa situação a ele, evidentemente ocultando aquela história dos 200 mil réis. Ele ainda pediu a outro soldado para comprar dois maços de cigarro para nós; era um desses cigarros de estourar os peitos. E nos deu 48 horas para a gente arranjar serviço. Saímos da delegacia e fomos para a beira do rio. Lá, um senhor, dono de uma canoa, procurava alguém para tirar areia do rio. Eu me ofereci para fazer o trabalho. Era bem melhor do que voltar para a cela. Mas aquilo era pedra pura e o almoço que ele oferecia era saquinho de farinha e um pedaço de carne – e mais nada. A água para beber era a do próprio rio. Para minha infelicidade, a canoa desequilibrou-se dentro d´água e o remo caiu. Eu bem que quis correr atrás dele, mas um garoto que estava comigo pediu para que eu não fizesse aquilo, pois havia muitas cachoeiras no rio e eu poderia até morrer afogado caso mergulhasse à procura do tal remo. Quando o dono da canoa chegou, eu lhe narrei o acontecido, mas, As agruras da luta pela sobrevivência
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mesmo assim, ele disse que eu teria de trabalhar para pagar o remo. Eu topei, até porque não tinha outro jeito. E continuei trabalhando, nesse mesmo dia. Pegava a pá, entrava com ela na areia, porém a enxurrada do rio vinha em cima daquela pá de areia. Resultado: cansava muito e era preciso trabalhar como um doido. Eu lhe propus voltar, no dia seguinte, para acertar tudo, e que, depois, iria embora, para sempre. Na manhã do dia seguinte, fui procurar uma oportunidade lá na fábrica onde, mais tarde, viria a trabalhar o companheiro Hércules Corrêa, engajado para ensacar caroço de algodão. Naquela época, a máquina trabalhava o algodão, fazia lã, era uma produção completa. Mas, de noite, quando cheguei em casa, vi que meu nariz estava enorme, totalmente desfigurado, pois o pó do algodão ia entrando pelas narinas e, à medida em que eu coçava, o nariz ia inchando. Era um processo alérgico. Desisti de ensacar algodão. Mas eu precisava trabalhar e fui parar na queima do café, pois naquele tempo o governo Getúlio Vargas estava comprando café, para queimar. Dava até pena fazer aquele serviço. Era algo dantesco, parecia que eu estava trabalhando no inferno! A fumaça subia, parecendo que iria tomar conta de tudo em volta. Tinha um camarada que jogava nas nossas costas o saco de café, o qual era muito pesado. Já pela hora do almoço, quando eu tentava esticar o pescoço, doía tudo, a cabeça explodia de tanta dor. Quando chegou o momento de dormir, veio-me a febre; um troço esquisito mesmo. Aí eu falei para o meu amigo que não estava aguentando mais os serviços que vinha fazendo. No dia seguinte, pela manhã, saímos à procura de outro tipo de trabalho e não encontramos nada. Bateu um desespero terrível em mim, a tal ponto que cheguei a propor ao amigo Miguel que o melhor para nós seria se nos jogássemos no rio. Esse gesto impensado ocorreu quando estávamos em cima da ponte de Cachoeiro de Itapemirim, morrendo de fome. Nesse exato momento, eis que passou um caminhão com um carregamento de banana e um cacho caiu no chão. A fruta já estava um pouco passada, mas nós comemos uma meia dúzia delas cada um, com uma sofreguidão danada! Um dia depois, arrumamos trabalho no restaurante de uma mulher; tendo sido contratado como ajudante desse meu amigo. Só que ele deu azar, coitado: no segundo dia, ao invés dele 32
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colocar sal na comida, botou açúcar, e nós fomos mandados embora. Felizmente, nesse mesmo dia, eu arranjei emprego numa padaria. O curioso é que meu período de trabalho era de manhã cedo ao final da tarde. De noite, a gente dormia lá na delegacia de polícia. O fato é que o sargento foi se apegando à gente, fazendo amizade conosco. Eu ganhava na padaria dois mil réis por dia, mais a janta. O tratamento que eu recebia aí já era melhor. Como o meu companheiro estava sem emprego, eu dividia o meu almoço com ele. Com o tempo, eu passei a dormir na padaria e ele continuaria a dormir na delegacia. Até hoje, não posso suportar ver uma pessoa passando fome ao meu lado. Eu já passei fome e não há nada pior do que isso. Certa vez, eu estava na rua Frei Caneca, no Rio de Janeiro, saindo do trabalho, quando um camarada me abordou, com a mulher e uma filha, implorando uma ajuda, pois estava morrendo de fome. “– Moço, pelo amor de Deus, me ajude, nós estamos até essa hora, sem o café da manhã”. Aquilo acabou comigo. Como eu não tinha dinheiro algum no bolso, dei-lhe, na hora, o que tinha algum valor – o meu relógio. Foi, nesse momento, que a jovem Altair de Aquino Borges – que viria a se tornar a grande companheira de minha vida – passou por nós, viu aquela cena toda, e me disse para guardar o relógio porque ela estava com dinheiro e nós, então, pagamos uma refeição para a família do rapaz. E ainda demos uns trocados para eles. Trabalhei em Cachoeiro do Itapemirim, em um período de uns sete ou oito meses. Porém, como eu era um cara forte e vistoso, a mulher do dono da padaria tentou me seduzir. A bem da verdade, ela me queria de qualquer jeito e começou a caprichar demais na comida. Era almoço pra cá, jantar pra lá, biscoitinho, cafezinho toda hora, bolo, presentinho, um entusiasmo danado dela por mim. Eu fui me deixando levar por aquilo e ela fazendo juras de amor. Mas, de uma hora para outra, a consciência me doeu. Concluí que não podia fazer aquilo com o velho da padaria, pois ele me ajudara. E que seria melhor deixar o emprego, ir embora de vez, do que lhe atraiçoar. E fui-me embora. Àquela altura, eu já havia trocado a minha nota de 200 mil réis e reunira também um dinheirinho com o serviço de entrega dos pães. Um dos meus fregueses era da Estação da Leopoldina e, então, pude conseguir com ele um emprego para o meu companheiro fiscalizar os trens quando estes lá estacionavam. Este passou a ser o serviço dele. Muito tempo depois, eu me encontrei, por acaso, com esse amigo e ele já era agente da esAs agruras da luta pela sobrevivência
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tação de trem de Caxias. Por sua capacidade de trabalho, ele crescera profissionalmente na empresa. Foi emocionante: ele ficou olhando pra mim, eu para ele, e então um reconheceu o outro, depois de muitos anos! Ele fez questão de me levar a Duque de Caxias, me apresentando à família dele. Ele chorava de satisfação por ter me reencontrado. Ele não parava de dizer que eu salvara a vida dele. Foi muito bonito e emocionante. Bem, eu estava decidido mesmo a abandonar Cachoeiro do Itapemirim. Antes de deixar a cidade, lembro-me que ainda ouvi, pelo rádio, a narração de alguns jogos da Copa do Mundo de Futebol de 1938. Eu ficava no bar curtindo, junto com outras pessoas, momentos eletrizantes das partidas, mais ou menos como acontece com a televisão hoje em dia. Nesse tempo, arrumei uma namorada que, logo depois, mudou-se para Campos dos Goitacazes, perto dali, mas já no estado do Rio de Janeiro. E, como era natural, transferi-me também para a cidade fluminense, indo morar em um bairro chamado Guarulhos e trabalhar na padaria da ponte (antigamente não tinha a ponte nova, existia apenas uma de madeira, que ficava abaixo da atual ponte). O local do meu emprego ficava ao lado de famosa fábrica de goiabada cascão. Quando eu estava com uns seis meses de casa, começamos, eu e meus companheiros de trabalho, a conversar sobre como organizar os padeiros, sobretudo porque o regime imposto a nós era mesmo o da miséria – ninguém tinha hora para nada, não havia descanso, a gente atravessava a madrugada trabalhando. Lembro ainda que, em Campos, eu e minha namorada, que era professora, construímos uma escola e como ela ficava perto de umas terras de um grande proprietário, este mandou destruir a escola. Sempre por onde eu andava, apesar da minha juventude, eu me envolvia com associação de trabalhadores ou, então, me revoltava contra as condições do exercício do nosso trabalho, que muitas vezes beirava à escravidão. Em Campos dos Goitacazes, não seria muito diferente. Nós labutávamos mais de dez horas consecutivas e, na realidade, não havia hora para terminar o serviço. A saída foi a de nos organizarmos. Um dos padeiros, o Zezé, era do Partido Comunista. Eu dei-lhe a ideia de realizarmos uma associação dos operários padeiros, e ele gostou. Havia muitos integralistas na cidade, daí ser difícil organizar qualquer coisa, pois eles estavam vigilantes. Mas, mesmo assim, fizemos uma reunião para organizar a entidade para congregar a nossa categoria profissional. Éramos 11. 34
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Logo que o encontro começou, a polícia invadiu o local. Dois companheiros correram em direção ao rio e não sei o que aconteceu, nunca mais tivemos notícias deles. Os demais foram presos. O delegado era irmão do dono da padaria, mas que, nessa ocasião, estava viajando. Quem efetuou as nossas prisões foi o subdelegado, um sargento de cavalaria. Ele nos torturou. Colocou, por exemplo, todo mundo nu, e dava de palmatória na nossa bunda. Minha prisão se deu no dia 10 de agosto de 1939. Eu, que já estava abalado pelo fato de ter sido encarcerado (prisão, naquela época, era algo associado ao crime), fiquei mais abalado ainda. Cada golpe de palmatória que o sargento desfechava nas nádegas dos presos vinha acompanhado de um grito: “comunista filho da puta, toma!”. Eu sabia que a minha mãe era uma pessoa honesta, só não sabia mesmo o que vinha a ser comunista, concretamente. E eu sentia muitas dores; seis meses depois eu ainda as sentia fortemente. Mais: quando chegava seis horas da tarde, esse sargento vinha com umas latas d´água e inundava a pedra onde a gente ia dormir. Nós resolvemos, então, fazer um pacto, ainda na cadeia: quando saíssemos dela, aquele sargento desgraçado não faria mais nada contra ninguém. Bem, o delegado titular reassumiu o posto na quinta-feira e mandou soltar todo mundo. Tudo o que sei é que, no dia seguinte à nossa soltura, deu-se o funeral do tal sargento, morto com uma estocada. Parece que o golpe atravessou o cara de uma ponta a outra. Como a barra pesou, de novo, nós tivemos de abandonar aquela cidade do Norte fluminense. Fui, então, para Muriaé, em Minas Gerais, trabalhar em uma padaria. De certa forma, eu lamentei deixar Campos, pois eu estava até estudando música, tocando tuba e saxofone, em um clube recreativo que havia por lá. Paciência. De toda maneira, meu objetivo, desde que deixei Alagoas, era mesmo a cidade do Rio de Janeiro, onde cheguei a 13 de junho de 1940. Passei meus primeiros dias na Cidade Maravilhosa, na casa em que morava um irmão da minha namorada, na rua do Lavradio, em pleno centro histórico. O mundo vivia um tempo de guerra e já se falava em alistamento de pessoas. E logo que cheguei, não mais que de repente comecei a trabalhar. A cidade de Machado de Assis me impressionava enormemente. Era um território belo e muito grande, bem equipado e com muitas novidades e atrações para quem As agruras da luta pela sobrevivência
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nele chega. Eu me recordo da Praia das Virtudes, que hoje nem existe mais, a qual passava por trás do antigo prédio do Senado Federal (que foi posto abaixo em 1976, no governo ditatorial do general Ernesto Geisel) e ia até onde está localizado hoje o Aeroporto Santos Dumont. Aliás, eu gostava muito de ir à praia. Eu fui ganho pela torcida rubro-negra e passei a ser um flamenguista e também curtia muito as rodas de samba – até porque o Partido tinha muita penetração nas tradicionais escolas, por essa época. Só para dar um exemplo: o compositor Paulo da Portela era ligado ao PCB. Eu dançava também nos bailes populares, nas gafieiras. Eu diria até que o meu atrativo particular, como se diz, era um baile. Como eu gostava de uma festa! Eu diria até que trabalhava em padaria com um único objetivo: ter um terno branco, calçar um par de sapatos brancos, estar sempre bem trajado, para quando eu chegasse na gafieira chamar a atenção, me destacar, já que as mulheres apreciavam principalmente um homem elegante. Então, eu tinha de ter presença. Eu aprendi a dançar lá na Praça Onze, tradicional reduto do samba carioca, terra de bambas. Eu até que me saía direitinho, não era ruim de dança. Houve uma época em que uma das gafieiras me contratou para dar aulas de dança, toda quinta-feira. Como ela me tomava muito tempo, aos poucos, fui deixando de lado o meu “lado malandro”. É que a militância política falou mais alto. Não posso e não devo negar que eu gostava também desse lado lúdico da vida. De andar de bonde, com aquela brisa gostosa viajando com a gente. Quase não havia ônibus, no início dos anos 40, no Rio de Janeiro. Eu ia de bonde para tudo quanto era canto, da Praça Mauá até Madureira ou Cascadura e pegava também o bonde para Ipanema ou Cosme Velho. É que eu gostava de conhecer os recantos da cidade que verdadeiramente me encantava. E eu ficava pulando de bonde em bonde, pois não tinha dinheiro para pagar não. Quando o cobrador se aproximava, eu dava um jeito de passar para o outro lado do bonde. Muita gente fazia isso e os cobradores toleravam um pouco esse comportamento malandro. E como era agradável olhar para aquelas moças bonitas, todas bem vestidas, caminhando pelas ruas ou praças da cidade. Algumas andavam com o vestido apertado, marcando as formas e, para um jovem interiorano, aquilo era uma verdadeira tentação. Mas eu sempre fui muito respeitador. 36
Valeu a pena lutar!
Eu sempre fui trabalhador, procurando ganhar a vida com o suor do meu rosto. Mas não me submetia a certas ordens, revelando o meu lado um pouco rebelde. Certas condições de trabalho sempre me revoltavam. Mesmo em relação àquelas terras que meus avós deixaram para mim, eu percebia que nós tínhamos uma área maior do que a nossa capacidade real de utilizá-la, de explorá-la. Tanto que meu pai arrendava uma certa área, em determinada época do ano. Eu me lembro que, às vezes, a safra de algodão do pessoal não estava pronta ainda para ser colhida e meu pai determinava que eles arrancassem tudo do pé, para colocar o gado dele ali no pasto. Eu me revoltava com aquilo e não deixava de lhe falar francamente: “Não está certo, pai. O arrendamento só acaba em dezembro e você já está pedindo para o pessoal sair”. Quer dizer, as terras eram arrendadas, os camponeses colhiam a mandioca, o milho, e, quando chegava mais para o final do ano, eles tinham de sair, tivessem ou não colhido o algodão. Saía o homem e entrava o gado. E o pior era que eu tinha algumas cabras minhas misturadas àquele pequeno rebanho da minha família. Mesmo sendo meu pai, eu não considerava aquilo justo. Em uma certa vez, eu trabalhava de ajudante de açougueiro, no bairro da Lapa, mas não entendia nada daquilo. Eis que, em um belo dia, um sujeito chegou lá, o português dono do açougue não estava e eu cortei 15 quilos de alcatra para ele. Eu mesmo fui entregar aquele mundo de carne. Quando cheguei lá, o sujeito perguntou se eu tinha levado a nota fiscal, pois ele só pagaria se eu a apresentasse. O camarada estava junto a um carro. Eu voltei para o açougue, busquei a nota e o tal sujeito já tinha desaparecido do local, roubou os 15 quilos de carne. Por conta disso, tive uma discussão com o português e acabei deixando meu emprego. Depois de passar um dia, dois, três, e nada de arranjar emprego, sabe o que eu fiz? Fui catar frutas e legumes no caís do porto, e também pelas imediações da Praça Mauá, a fim de poder comer. Catava as sobras, a xepa da feira, de tanta fome que eu sentia. Havia muita coisa podre, mas, às vezes, jogavam fora frutas ou legumes em bom estado. E eu passei a revender aquilo. Quando chegava ao final da tarde, já tinha amealhado um dinheiro para pagar algumas de minhas despesas. Nunca conseguia juntar mais de dois ou três mil réis no bolso, mas aquilo já me aliviava.
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Na verdade, ninguém passava aperto no Rio de Janeiro, naquela época. Sempre tinha do que e como se viver. Eu penso que até hoje é um pouco assim. O que não se pode fazer é roubar. Roubar é doença e não tanto necessidade. O fato é que as coisas foram melhorando aos pouquinhos, eu fui trabalhando aqui e ali, e nunca deixava de frequentar a gafieira, aos sábados, na Praça da República. Aquilo era sagrado para mim. Eu gostava também de ir ao cinema. Ali na Marechal Floriano tinha um, em frente ao Colégio Pedro II, e uma das salas se chamava Poeira, era a mais popular, e havia uma outra sala também ali perto cujo nome era Carioca. Só passavam filme de bang-bang, e eu gostava muito dessas histórias de caubói. Mas o que eu adorava mesmo era o danado do samba! Vibrava ao ouvir Francisco Alves, Orlando Silva, os grandes cantores daquele tempo. E eu tinha um molejo bom; virei uma espécie de moleque bamba, desses que agradavam as cabrochas. Dançava coladinho e as mulheres não reclamavam não. Cheguei a morar, por um tempo, em um pequeno prédio, uma hospedaria que havia na Praça da República. Enfrentei de tudo por ali. Havia muito malandro, naquela época, e topei com muito ladrão que fazia a “féria”. Mas nunca andei armado, nem navalha eu usava. E raramente bebia. O Rio também tinha dessas coisas; muito camarada se metia a valentão. Houve uma época em que, sem dinheiro, eu ganhei a vida no palitinho. Ficava no bar jogando palito e ganhava uma grana boa... Enquanto não arrumava trabalho, era o que eu fazia. Atuava quase como um profissional. Fui salvo pela caixa de fósforos, essa maravilhosa invenção humana. Cheguei a passar um mês inteiro jogando palitinho e com isso pagava minha hospedaria. Mas assim que aparecia um trabalho, eu largava aquilo. O que eu quero dizer é que nunca tive medo de enfrentar as dificuldades da vida. Facilidades, eu nunca tive mesmo. Então, tinha de ir à luta, me adaptar às mais diversas situações. Dançar conforme a música. Lá em Alagoas, quando eu trabalhava de fiscal de construção de estradas, em um emprego que um tio me arranjou, eu dormia pelos matos com os demais trabalhadores. Eu tinha apenas 17 anos e acabei me habituando a andar armado; era necessário. Agora, o drama da arma é que se você puxar não pode deixar de apertar, não tem jeito. Eu só voltaria a usar arma quando tinha de cumprir alguma tarefa de maior risco por determinação do Partido. 38
Valeu a pena lutar!
Mas, quando fui morar no Rio de Janeiro, eu gostava de estudar, também. Cheguei a cursar dois anos de Contabilidade. E sempre trabalhando em padaria. Aliás, passei, alguns anos, em uma delas ali perto da barreira do Vasco da Gama, junto ao campo cruzmaltino. Eu pegava no serviço às 22 horas e atravessava a madrugada fazendo pães.
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V UM DIA AINDA ENCONTRO ESSES COMUNISTAS
A
cidade do Rio de Janeiro me impressionou muito, desde o primeiro momento. Era muito grande, bem equipada e com muitas novidades capazes de atender aos mais exigentes gostos. Além do mais, era o centro político do meu país. Mesmo diante de tanta beleza e atrações, desde que ali chegara havia algo que ocupava a maior parte dos meus pensamentos. É que, acima de tudo, eu fiquei com aquela história da prisão na minha cabeça e uma questão muito concreta não me abandonava: “Quem eram finalmente esses comunistas, que acirravam tanto o ódio da polícia e dos poderosos?” Eu queria saber quem eram esses sujeitos. Precisava aprender alguma coisa sobre eles. “Um dia”, eu pensava, “ainda encontro esses tais comunistas”. E acabamos nos encontrando. Foi assim. Em 1941, alguns companheiros fizeram contato comigo. Eram todos padeiros. Um deles se chamava Benício e era bem jovem, talvez tivesse uns 20 anos de idade. O outro era o Antônio Soares, português de nascimento, e que havia sido expulso do seu país, “por atividades subversivas”. Logo depois de conhecê-lo, soube que ele fora preso e levara tanta pancada da polícia que veio a falecer no Hospital de Manguinhos. Por ultimo, o Hilário Pinha, que morava e atuava politicamente em Nova Iguaçu, então uma área rural, na periferia do Rio de Janeiro. Conheci todos eles quando os padeiros formaram um pequeno grupo para fazer extras, como maneira de reforçar o salário, que era muito baixo. Durante o batente, ou nos poucos 41
intervalos que surgiam, o pessoal abordava a questão política, a guerra, suas razões e as apostas de vitória. Foi num intervalo desses que decidimos formar um grupo de apoio ao Socorro Vermelho, movimento que ajudava os comunistas presos e seus familiares. O que é certo é que eu não entrei no PCB num primeiro momento, eu me incorporei ao Socorro Vermelho. O Benício, inclusive, tinha sido preso, e fora libertado, há pouco tempo. Nosso grupo de trabalho dava dez por cento dos seus ganhos para o Socorro Vermelho e todos nós fazíamos isso de coração. Era por uma causa justa. Em pouco tempo, já tínhamos organizado um grupo grande. Conseguimos um mimeógrafo e começamos a fazer pequenos panfletos contra o Estado Novo, que era a Ditadura Vargas, e os distribuíamos, por exemplo, na Central do Brasil, na chegada e saída de trens. Simulávamos uma briga entre nós e, no meio da confusão, jogávamos os panfletos para o alto, e grande parte da multidão corria para pegá-los para si e alguns até para distribuir na sua comunidade. Por conta dessa movimentação toda, 11 companheiros desse nosso grupo ingressaram no PCB, inclusive eu. Já estávamos em 1943 e, no ano seguinte, fui eleito secretário do Sindicato dos Padeiros, onde o pau quebrava feio. Sempre que havia oportunidade, eu procurava transmitir aos companheiros a experiência que tivera em Aracaju e em Campos. E era preciso usar de muita cautela, sobretudo porque agentes policiais do regime nos vigiavam o tempo todo. Nós nos comunicávamos, muitas vezes, através de sinais, pois essa gente frequentava abertamente as nossas reuniões. Nesse sentido, fizemos algo incrível: chegamos a marcar uma greve, somente pelo sistema de sinais – e os “tiras” não perceberam nada. Em plena ditadura do Estado Novo, deixamos o Rio de Janeiro quatro dias sem pão, pois nem o produzíamos nem o vendíamos! Por conta disso, houve uma padaria, em Santa Tereza, que ficou seis meses sem poder fazer pão, pois o pessoal chegou a danificar os fornos. Uma outra também passou por um processo semelhante, já não me recordo bem em qual bairro exatamente. O forno de padaria, naquele tempo, era o chamado tijolão. Se o sujeito jogasse sal ali, invalidava tudo, pois a massa passaria a agarrar e não sairia mais. Em parte devido a essa greve, saiu o horário que os padeiros têm até hoje, ou seja, sete horas e quarenta e cinco minutos, contando com o sábado até meio dia para 42
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completar a hora. E nunca mais teve alteração nesse tempo de duração do trabalho. Foi uma vitória e tanto! Nós encerramos a greve e outros problemas foram sendo colocados em pauta, já por uma orientação de fora. Era o Benício quem a levava para nós, abarcando o problema da anistia, a liberdade de Prestes e outras questões nessa mesma linha, mais política, naturalmente. O Cavaleiro da Esperança era um símbolo para mim e, acredito, para muitos outros operários também, militantes ou não do PCB. Ele pensava como a gente; era nosso ídolo maior à época. Lembro-me que, em um certo dia, apareceu um cidadão lá no sindicato para recolher o nosso pão. Eu estranhei aquela situação: o camarada vinha e carregava quantidades enormes de pão, doadas pelos padeiros. Algumas horas depois foi que soubemos que aqueles sacos de pães eram recolhidos para serem levados à Serra da Mantiqueira, onde estava ocorrendo a Conferência Nacional clandestina do PCB, a qual acabaria indicando o camarada Prestes para a secretaria-geral do Partido. Isso acontecia porque cada padeiro ganhava, diariamente, um quilo de pão e cada um poderia fazer com ele o que bem entendesse. O Benício era quem fazia essa entrega dos pães doados por nós. Tempos depois, eu soube que o Mário Alves, então estudante da Bahia, é quem passava para recolher tudo. Nós, que tínhamos acabado de entrar no PCB, não conhecíamos bem essa questão dos prisioneiros e, menos ainda, das lutas internas que se travavam dentro do Partido. Tinha o nome do Prestes, uma bandeira da luta contra a ditadura. Mas o Partido era muito fechado e nem poderia ser de outra forma. Poucos conheciam uma figura como o Marighella, por exemplo. Essas coisas só vieram mesmo à tona depois da redemocratização, em 1945. Havia dificuldades até para rodar um jornalzinho de oposição ao regime. E eu diria, ainda, que não existia, ao menos da minha parte, uma compreensão suficiente a respeito do papel exercido pelo Partido. Eu enxergava a luta, mas não entendia bem o peso do PCB nesse processo. Isso veio com o tempo. O meu negócio era pôr fogo no mundo e pronto! No fundo, eu não conhecia suficientemente os mecanismos da exploração do homem pelo homem. Era mais um revoltado. Eu não queria é que homens, como aquele coronel que eu conheci lá em Alagoas, continuassem a mandar no mundo, a humilhar as pessoas. Tudo menos isso. Eu me dedicava então ao Partido, mas sem compreender muita coisa ainda. Eu trabalhava, namorava Um dia ainda encontro esses comunistas
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– mantinha sempre meu quarto bem arrumado, pois isso agradava às mulheres e eu, modéstia à parte, fazia um certo sucesso com elas – e ia tocando a vida. A consciência de classe veio vindo aos poucos. Eu ia percebendo que assim como havia exploração no campo havia também na cidade. E o Partido me passava livros e eu fui me educando, me formando e entendendo melhor a situação social. Sem dúvida, esse pendor pelo estudo (e, também, pelo trabalho de organização, diga-se de passagem) me ajudou muito como dirigente partidário. Eu estava sempre interessado em aprender. Quando eu era designado para dirigir o Partido em algum lugar, como foi o caso em Sergipe, em 1951, eu fazia meu trabalho com uma vontade grande de vencer, de que tudo desse certo. Era a mesma força de vontade que eu tinha quando abria um livro – eu gostava de tirar bom proveito dele. Desde a época em que eu pude estudar um pouco com aquele professor em Alagoas foi que comecei a entender o porquê da existência de tantas dores no mundo, a razão de haver tantas injustiças entre os homens. Naturalmente que, com minha entrada no PCB, a minha capacidade de entendimento da realidade aumentou enormemente. O partido me auxiliou muito a compreender o mundo, as relações de exploração entre patrões e empregados. A minha consciência deu um verdadeiro salto. A leitura das cartilhas, os cursos que o PCB promovia, tudo isso fez com que eu organizasse, na minha cabeça, o sentido de entender melhor aquilo tudo porque eu mesmo passara na vida. Li, uma vez, acho que foi em um texto do Gramsci, que o intelectual sabia, mas que não sentia, e que, com o povo, ocorria o contrário: ele sabia, mas não sentia. Agora, eu sentia e sabia. Alguns momentos políticos foram extremamente esclarecedores para mim. Há um episódio que me marcou muito. Isso se deu por ocasião do bombardeamento dos navios brasileiros nas costas do Nordeste. No Rio, os estudantes decidiram pedir autorização ao então chefe de Polícia, Felinto Müller, para realizar uma passeata de protesto contra os alemães. Ele, que era um pró-nazista, negou e proibiu a passeata. O governo ditatorial de Vargas – sobretudo seus mais importantes ministros, Góes Monteiro e Eurico Gaspar Dutra, dentre outros – era comprometido com as teses nazifascistas. Face à recusa, a intelectualidade e os estudantes se reuniram no Café Simpatia, na Avenida Rio Branco, e decidiram 44
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marchar dali para o Palácio do Catete, sede do governo federal. Houve discurso e tudo! Operários, como eu, também estavam envolvidos nesse movimento. Quando a passeata atingiu a Cinelândia, os esbirros do regime já estavam lá, prontos para reprimir. Uma parte do nosso pessoal, então, vazou por cima, pela rua Evaristo da Veiga, e entrou por baixo, pelo bairro da Lapa. Assim que a turma passou pela rua do Catete, próxima ao Palácio, o negócio estava fervendo, já havia uma multidão protestando. Quer dizer, não dava mais para conter. Era um sentimento tão grande que não dava mais para frear o ímpeto da massa. Eu me lembro que, quando chegamos à beira da rua Bento Lisboa, a polícia já estava toda ali concentrada, mas era uma força relativamente pequena, em se sabendo que era a estrutura de segurança do Catete. Eles bem que tentaram contornar a multidão pelo Largo do Machado, mas já era tarde. O povo gritava “Guerra! Guerra!” e o movimento começou a crescer mais e mais, até que Getúlio teve que admitir a nossa força e fez a declaração de guerra aos países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão). Aquela passeata foi, portanto, histórica. Ali, Vargas começou a recuar. Nós arrancamos isso dele. Os estudantes, principalmente, tiveram esse mérito, junto à intelectualidade. Depois o Partido organizou a militância para que se inscrevesse nas forças que iriam combater o nazifascismo na Europa. Homens, como Salomão Malina, tiveram um grande papel nisso. Eu confesso que não alcançava exatamente as implicações políticas daquele movimento pela entrada do país na Guerra. Eu estava do lado da União Soviética, mas não percebia, ao menos naquele momento, que toda aquela movimentação contribuiria para o desmantelamento da própria ditadura Vargas. Os quadros políticos mais capazes do Partido e a intelectualidade talvez enxergassem isso desde o início, mas a grande maioria provavelmente não. Eu cheguei a conhecer Getúlio por essa época, mas muito rapidamente. Estive duas vezes com ele, e só, sempre representando os trabalhadores do sindicato. Esses encontros se deram no Palácio do Catete. Qual a ideia que eu fazia dele? Para mim, era não apenas o repressor, o homem que cometera a baixeza de entregar a mulher de Luiz Carlos Prestes – Olga Benário –, aos nazistas. Getúlio, como a maioria dos gaúchos, fazia prova de um nacionalismo algo exacerbado. Para ele, a política de segurança era fundamental; aquilo era uma verdadeira fixação dele. Porém, não de deve esquecer que quando se governa, não Um dia ainda encontro esses comunistas
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se governa sozinho, e Getúlio Vargas tinha, à sua volta, figuras de todo tipo, desde policiais nazistas, como Felinto Müller, a patriotas e entreguistas. E ele tinha também um lado perverso. Daí ser muito complicado analisar a atuação dele. Ainda hoje talvez o seja. Aliás, o Juscelino Kubitscheck, que veio depois, me parecia alguém mais ousado, diria quase um aventureiro – e o termo aqui tem uma avaliação positiva, nada de pejorativo. Basta dizer que fez uma tentativa de romper com o Fundo Monetário Internacional, como forma de eliminar aqueles laços de dependência que atrasavam o desenvolvimento do nosso país. Seja como for, o período final do regime Vargas foi pautado por grandes transformações. O PCB soube explorar bem as contradições do regime estadonovista. A mobilização pela guerra, contra o fascismo, tudo isso empolgou a sociedade brasileira. A campanha pela Anistia também conquistava mentes e corações. E o Partido não abandonava, tampouco, a luta pela industrialização do país, pelo nosso desenvolvimento. Então, o PCB entrou em grande sintonia com as aspirações populares. A redemocratização como que materializou isso. O crescimento do PCB sempre foi fruto desse movimento todo.
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VI O PCB AGORA É LEGAL
C
laro que nem tudo eram flores na vida partidária. Mas chegamos a ter, na abertura de 1945, mais de 150 mil militantes. Várias cidades brasileiras amanheciam com pichações do tipo “Viva o PCB!”, “Viva Prestes!” Havia setores sectários dentro do partido desde aquela época? Claro que havia. Gente que, por exemplo, não via com bons olhos a aliança política com os católicos. Coisas estreitas aconteciam e isso ficaria mais evidenciado no final dos anos 40, e daí até o IV Congresso de 1954, quando o sectarismo ainda reinava. Por essa época, eu era entregador de pão na casa de um irmão do Góis Monteiro, alagoano como eu. E ele resolveu me ajudar, conseguindo uma colocação para mim no Ministério da Fazenda, onde fui trabalhar como servente. Pouco tempo depois, passei em um concurso, e fui trabalhar na Diretoria Geral, integrando-me a uma organização de base do PCB, lá no Ministério. Por eu ser originário do setor operário, os membros da OB [Organização de Base] me colocaram no comando da direção partidária. Nossa tarefa era organizar o partido dentro dos Ministérios. Mesmo tendo permanecido pouco tempo ali, já em 1947 tínhamos 27 funcionários da Fazenda filiados ao Partido, 14 outros do Trabalho e por aí afora, a ponto de termos um Comitê Partidário só de funcionários públicos. Foi justamente, neste momento, que o PCB seria novamente lançado na clandestinidade.
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Ninguém esperava pela cassação do registro do PCB e dos mandatos de todos os parlamentares comunistas, em todo o país. A Direção Nacional não imaginava aquele desfecho. A primeira providência que adotei, ao saber daquele absurdo, foi colocar fogo no fichário do Partido, que continha, por exemplo, nomes de filiados. Fiz isso na minha casinha de Jacarepaguá, na zona oeste do Rio. No fundo, as forças reacionárias no Brasil temiam o crescimento do Partido, cujo prestígio era cada vez maior junto às massas. E o quadro internacional foi determinante nessa nova perseguição aos comunistas. Estávamos entrando na chamada Guerra Fria. Com o fim da II Guerra Mundial, o planeta estava fundamentalmente dividido em três forças – União Soviética, Inglaterra e Estados Unidos. Pouco depois, estes dois últimos países se alinharam e passaram a hostilizar a URSS, ameaçando a paz mundial recém-conquistada. As consequências internas disso foram terríveis e o PCB mergulhou novamente na escuridão. Todas essas dificuldades pelas quais passávamos deitavam raiz nas perseguições que o Partido sofrera ao longo da História brasileira. Desde a minha entrada no PCB, eu praticamente só enfrentei clandestinidades. Ingressei durante a ditadura do Estado Novo, quando os comunistas eram massacrados nas masmorras de Vargas. Com a redemocratização, em 1945, respiramos um pouco, é verdade. Mas, já no ano de 1947, nova onda repressiva se abatia sobre nós. Na época do Dutra, as perseguições prosseguiram, por vezes duríssimas. Só viemos à tona um pouco nos governos JK e Jango. Mesmo assim, em nenhum desses dois governos tivemos a plena legalidade. Não podíamos lançar nossos próprios candidatos, por exemplo. E isso dificultava a nossa visibilidade, como partido independente dos demais, isto é, expondo abertamente sua doutrina e visão do mundo, da política. Assim, nossos sonhos, como comunistas, de ver um poder diferente atuando em nossa terra ficavam muito frustrados.
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VII O SALTO NO ESCURO
O
período em que os comunistas atuaram livres da peia do controle policial-militar e vivendo a legalidade de 1945 foi muito rico em ensinamentos políticos. Éramos muito atuantes. E fazíamos isso, pela primeira vez, praticamente desde a nossa fundação, em 1922, à luz do dia. Cito, como um dos exemplos dessa nossa vida partidária antenada, a construção do Estádio do Maracanã. O PCB foi decisivo nessa empreitada, por intermédio de sua atuação na Câmara dos Vereadores. Éramos a bancada majoritária na então capital da República. Tínhamos 18 vereadores, liderados por Otávio Brandão. E, naturalmente, apoiávamos todas as lutas de interesse da cidade. Ora, o futebol era um esporte de massas, já àquela altura, e os comunistas não poderiam ficar alheios a isso, como não ficaram. Poucos sabem disso, hoje em dia. A resposta do PCB a essa nova atitude da reação foi a esquerdização, iniciada já em 1948 e confirmada pelo Manifesto de Agosto de 1950 que, ao pregar a luta armada, distanciou ainda mais o Partido da população. São erros que cometemos. Pagamos caro por isso. No plano pessoal, a minha vida deu também uma guinada, como não poderia deixar de ser. Eu fui afastado do Ministério e voltei para a produção. O Partido me deu a tarefa de construir uma organização de base (OB) na fábrica de tecidos Confiança, que ficava em Vila Isabel, bairro de Noel Rosa e de outros bambas. À época, havia um companheiro, o Odilon, cuja mulher 49
trabalhava nessa fábrica e ela me ajudou muito a montar o trabalho político por lá, que, até então, não existia. Na realidade, nela havia apenas um companheiro nosso, que era foguista. Para melhor desenvolver minha missão, naquele importante espaço proletário, o melhor caminho era aprender a profissão de tecelão e, assim que passei a dominar meu novo ofício, consegui emprego e me misturei com aquela massa. Para mostrar o quanto fomos bem sucedidos, basta dizer que, ao realizarmos nossa primeira greve na Confiança, o PCB já contava com uma base de 32 militantes. Isso, em 1948. Em decorrência do êxito, fui afastado da fábrica e tive de arrumar emprego novamente como padeiro, lá na Vila mesmo. Nas torturas, apareceu o meu nome como o assistente da base partidária. Eu estava escondido da polícia nesta época. É que ocorrera a explosão do paiol de Guadalupe, e tentaram culpar os comunistas pelo ocorrido. Prenderam algumas pessoas, uma delas faleceu em decorrência das violentas pancadas que levou. E eu permaneci 27 dias trabalhando na padaria, sem pôr a cara sequer no balcão. A polícia rondava as cercanias. Havia “tira” que ficava de plantão, durante o dia inteiro, na porta do estabelecimento em que eu trabalhava. Quando meu filho nasceu, neste mesmo ano de 1948, eu saí do esconderijo para vê-lo. Mas entrei no hospital, pela porta dos fundos. Não deu outra: mal avistei meu filho, ao longe, constatei que a polícia invadira o hospital pela porta da frente. Eu consegui fugir e, dali, fui direto para Niterói, onde cheguei a dirigir o Partido. Mas estava impedido de atravessar a Baía de Guanabara. Ou seja, não podia ir ao Rio sequer para ver meu filho. Um dos nossos companheiros morreu, após ter passado 14 dias sob torturas na prisão. Como São Gonçalo era município vizinho, fui incumbido pela direção do PCB de montar ali um curso de formação política. Reunimos 49 companheiros nessa importante tarefa, e um deles, tempos depois, iria comigo para Moscou. Era um período de vacas magras. Não havia alimentação para tanta gente e o jeito era comer farinha de mandioca com manga, abundante no quintal. Em um certo dia, um dos então maiores dirigentes comunistas, o Diógenes de Arruda Câmara, foi lá. Ele era o secretário nacional de organização e eu trabalhava diretamente com ele. Questionei esse companheiro sobre uma informação que ele me dera a respeito da organiza50
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ção do PCB em Barra Mansa, Volta Redonda, Campos, dentre outras cidades do interior fluminense. Eu lhe informei não existir ninguém do Partido nessas cidades – e ele reagiu mal. Primeiro, começou me proibindo de chamá-lo por seu nome verdadeiro, como forma de me intimidar. Depois, perguntou se eu estava achando que ele era mentiroso. Resultado: fui transferido para Sergipe. Como castigo. É que o Arruda, com seu bigodinho a la Stalin, era assim, gostava de mandar, agia de forma arbitrária mesmo. A Secretaria de Organização, por ele comandada, era a espinha dorsal do PCB. Era a única que tinha contato com as demais, ou seja, estruturava o Partido todo. Ela é indispensável a qualquer organização política digna desse nome e eu penso que seria útil, para não dizer fundamental, reativá-la no próprio PPS. Naquela época, além do Diógenes Arruda Câmara, que comandava a Secretaria, havia ainda o Ivan Ribeiro, o Renato Oliveira da Mota, o Antônio Ribeiro Granja. Nós visitávamos, frequentemente, os estados da Federação e discutíamos com todo o conjunto partidário – e não apenas com uma parte dele. Preparávamos relatórios sobre o PCB nos estados, incluindo aí o trabalho da educação, o desenvolvimento das organizações de massa, o andamento da distribuição dos jornais. Sabíamos, por exemplo, o que estava ocorrendo em Formoso e Trombas, no estado de Goiás, pelos informes constantes do companheiro Antônio Ribeiro Granja. A companheira Maria Sallas nos informava sobre a situação no Mato Grosso, e assim por diante. O Partido tinha uma capacidade de atuação impressionante naquele período e tudo isso era do conhecimento da nossa Secretaria. Nós como que fazíamos um recenseamento disso tudo. E arejávamos o Partido com informações, trocas de experiências de uma área para outra. Dirigir um Partido é isso: olho no olho, contato pessoal. Ninguém dirige nada por telefone, sentado numa mesa de escritório. No máximo, poderemos dar uma orientação ou outra. Mas, dirigir, não. Outra coisa importante é que os membros da Secretaria de Organização se interessavam pelos problemas dos companheiros. Afinal, vivenciar o partido é se inteirar dos problemas que nos afetam como seres humanos, os problemas familiares inclusive. O nosso trabalho não aparecia, nada tinha de espetacular, mas era fundamental. Eficiente. Ele reforçava os laços de amizade e solidariedade entre os companheiros. Eu gostaria de ter forças para ajudar o Partido a retomar essa Secretaria de O salto no escuro
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Organização. Mas, com a minha idade, 95 anos, esse meu desejo torna-se quase impossível. De toda forma, quero deixar registrada aqui a importância desse trabalho. Retomando o registro de minha trajetória, eu dizia ter sido transferido para Sergipe pelo secretário Diógenes. Fôra para Aracaju, com senha errada, endereço errado e sem dinheiro para voltar. Face a essa inusitada situação, fui obrigado a passar um telegrama cifrado para um companheiro da direção nacional, no Rio de Janeiro, no qual eu explicava o que estava ocorrendo. O curioso disso tudo foi a resposta que me mandaram: “não faça como o macaco, quando cai n´água” (como se sabe, esse animal ao cair em um rio ou lagoa, põe os dedos no ouvido e, assim, morre afogado). Era um recado para que eu me virasse, e pronto. Simples assim. Bem, devo confessar-lhes que, de acordo com as informações que me foram transmitidas, antes de viajar, a situação do PCB sergipano, naquele momento, estava muito complicada e uma das minhas missões ali era expulsar 27 companheiros das fileiras partidárias. No entanto, ao contatar dirigentes e militantes, logo após minha chegada lá, vi que não era bem assim. Nem todos teriam que ser expulsos. Havia um exagero nessa ordem e eu fiz ver à direção nacional que estávamos equivocados e que muitos companheiros poderiam permanecer entre nós. Havia acusações até de traição. Eu me lembrei, na oportunidade, de uma conversa que tivera, na sede da Associação Brasileira de Imprensa, no Rio de Janeiro, com Henrique Miranda, papo de que participara um professor companheiro nosso de Aracaju, que era um destacado ativista da campanha O Petróleo é Nosso. Resolvi procurá-lo lá e iniciei, assim, meus contatos com o PCB em Sergipe. Era uma fase difícil do Partido. Não havia recursos para nada. Eu já estava hospedado em uma pensãozinha, há quatro dias, e, quando fui abrir minha mala, constatei que o meu revólver tinha desaparecido. Fiquei preocupado e intrigado com aquilo, até que o dono do estabelecimento me disse que pegara a arma como garantia de pagamento do quarto. Acertei as contas rapidamente e saí fora dali, indo me abrigar na casa de um companheiro que tinha se salvado daquele vendaval político-repressivo que havia se abatido sobre Aracaju. Esse companheiro se chamava Irineu, um tecelão da fábrica de tecidos Joaquim Ribeiro. Quando ele me abriu a porta da sua casa é que 52
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eu vi o que era miséria! Eu dormia em uma esteira colocada no chão e, quando acordava de manhã, eu passava a mão na esteira e a água escorria! A comida, além de muito pouca, era de má qualidade. Baseado então nessa humilde casa, comecei a contatar o nosso pessoal. Além do Irineu, quem tinha por lá de militância séria, aguerrida, era uma menina de 16/17 anos, filha do Anísio Dario, um companheiro assassinado na campanha do petróleo. O nome dela era Arlinda. E havia também o capitão Menezes, um militar corajoso. E eu fui me colocando a par da situação real do PCB em Aracaju e adjacências. De fato, eu soubera que alguns companheiros haviam fraquejado diante das violentas torturas. Mas, como eu disse, havia exageros na avaliação feita pela direção nacional. Daí eu ter sido tolerante, buscando entender a realidade de cada um. E não expulsei quase ninguém. Se me lembro bem, somente uma pessoa foi afastada do Partido. Nem é preciso dizer que tomamos essas medidas coletivamente. No final das contas, conseguimos reerguer o PCB, a ponto de termos tido uma boa presença nas eleições sindicais, com quatro suplentes na direção da Federação dos Trabalhadores na Indústria. E elegemos depois um vereador. Outro momento importante da nossa atuação ali foi a montagem de uma escola partidária. Construímos um pequeno barraco, algo bem simples mesmo, com umas camas improvisadas, mas montamos uma escola. Graças ao uso de um carro emprestado por Rogério Garcia, um militante nosso e pessoa influente no estado, uma vez que era irmão do então governador, conseguimos formar duas turmas. Muitas daquelas pessoas que tinham sido acusadas passaram por esse curso, reintegrando-se assim às estruturas partidárias. Paralelamente, partimos para a criação de um jornal intitulado A Verdade, de caráter artesanal, com apenas duas páginas, que era impresso uma vez por semana, mas levava nossas propostas para alguns setores da população. O nosso companheiro Rogério nos ajudava nisso, assim como o gráfico Domingão, que era um comunista vindo da Bahia. Começamos com uma tiragem de apenas 250 exemplares. No final, já rodávamos cerca de mil exemplares, tamanho o sucesso do jornalzinho. A polícia ficou em polvorosa, querendo nos pegar de qualquer jeito. Enviávamos também nosso jornal para o interior. Às vezes, era preciso remar várias horas em uma canoa para leváO salto no escuro
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-lo para cidades como Estância e São Cristóvão, por exemplo. Mas nós o levávamos. Por que Estância, exatamente? Porque lá havia uma luta camponesa importante. Um companheiro chamado Ronaldo Pacheco nos ajudou muito, nessa ocasião. Ele tinha muito espírito de luta, estava sempre animado. O que acontecia é que os camponeses de Estância não podiam plantar porque o gado dos fazendeiros destruía as plantações. Nós, então, tomamos uma decisão que desembocava na formação de núcleos armados no campo. Pretendíamos convencer os camponeses de que aquela questão só podia ser resolvida na base da espingarda. Primeiramente, fomos conversar com um companheiro ligado ao campo, que atuava, sobretudo, em São Cristóvão e em Estância, justamente. Esse companheiro passou a integrar a direção estadual do Partido, nesse momento. Ele morava em um lugar de difícil acesso. Para encontrá-lo, tínhamos de remar quatro ou cinco horas contra a correnteza. Depois de muita conversa, avaliamos que teríamos de partir para a luta armada. O Rogério obteve, inclusive, a neutralidade do seu irmão, governador, nesse processo. Não queríamos nos envolver com o governo. E tampouco pretendíamos ajuda dele. Mas era importante mantê-lo afastado daquilo. A briga era mesmo com os proprietários de terra. Depois de termos conseguido reunir 19 espingardas, fui falar com os camponeses, para transmitir-lhes o que pensava a respeito. No papo, declarei-lhes que deveríamos sacrificar todos os bezerros e os bois que, por acaso ou insuflados, invadissem a propriedade camponesa, mas não deveríamos comer sua carne. Nosso empenho deveria ser evitar a destruição das roças e não roubar carne. Todos entenderam e concordaram com a proposta. E assim foi feito: chegou um momento que havia tanto gado morto que nem os urubus ligavam mais para aquilo! E o governo acabou tendo de se envolver, determinando depois que cada fazendeiro fizesse uma cerca separando as suas propriedades das terras dos camponeses. Foi preciso até frear alguns camponeses mais afoitos. Mas o fato é que, um ano depois, estavam todos plantando, assegurando assim o sustento de suas famílias. Quer dizer, a nossa luta foi vitoriosa. E deu outros resultados positivos como, pouco depois, termos lançado a candidatura de um companheiro ligado às lutas do campo para deputado estadual. O Partido cresceu muito com essa iniciativa. 54
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Nosso passo seguinte foi atacar as condições sanitárias que vigoravam então em Aracaju, lutar por melhorias no plano ecológico, como diríamos hoje – o termo nem existia à época, ao menos com essa conotação que ele tem hoje. De fato, era uma questão ambiental, pois o mangue apodrecia, por jogarem dejetos nele e aquilo cheirava muito mal. Toda aquela região foi aterrada e hoje se chama Nova Brasília. Esse foi mais um mérito do PCB. Destaque-se que esteve no comando dessa luta o nosso herói Lídio Santos. De vez em quando, eu deixava Sergipe para cumprir alguma tarefa partidária, a pedido do Comitê Central. Eu me recordo que, em 1952, por exemplo, o companheiro Jaime Miranda tinha sido preso em Maceió e corria o risco de ser eliminado na cadeia. Fui incumbido de ir até lá, invadir a prisão e libertar o nosso camarada. Deram-me a liberdade de decidir como melhor cumprir aquela tarefa. Tratava-se de um problema difícil de resolver, como se vê. Eu me preparei para esse tipo de ação. Na realidade, eu tinha planos de explodir uma parte da cadeia, derrubando uma ou duas paredes da cela onde ele se encontrava. Chegando à capital alagoana, procurei a família dele – a mãe e a irmã – e lhes transmiti qual era a tarefa que eu havia recebido. Elas ficaram preocupadas, pois achavam que eu não teria condições de fazer a delicada operação de retirada do Jaime da cadeia. Felizmente, não foi preciso que eu corresse esse risco, pois o advogado Teotônio Vilela, obteve um habeas corpus que definiu a libertação do Jaime, ação da qual participou o pai deste, líder da Loja Maçonica local. Convém lembrar que, nos anos 1970, como senador da República, Teotônio destacou-se na luta pela redemocratização do país, capitaneando a campanha pela anistia. Curiosamente, este usineiro gostava muito do comunista Jaime Miranda, sendo muito amigos. A questão ideológica não atrapalhava a convivência dos dois. À época, eu estive com ele, na condição de advogado, para discutirmos a melhor forma de se tirar Jaime da cadeia. Com seu jeito polido, sugeriu que eu esperasse por alguns dias, que a solução viria pela via legal. E foi o que aconteceu. De noite, eu ouvi no rádio que o tinham soltado. Eu me encontrei com o Teotônio, agradeci-lhe a grande ajuda, e sumi do mapa. Jaime Miranda foi levado para uma localidade chamada Barracão, na divisa de Alagoas com a Bahia, junto a um rio, e solto lá. Eu nem fui acompanhá-lo, pois avaliamos que eu poderia estar sendo seguido e havia o O salto no escuro
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risco de pegarem o nosso companheiro naqueles ermos. O que é certo é que, logo após ser liberado das algemas, ele atravessou a divisa e desapareceu, protegendo-se de uma eventual represália da polícia alagoana, que era terrível. Infelizmente, nosso dedicado e querido companheiro Jaime Miranda seria assassinado pela ditadura militar, em 1975, e, até hoje, seus familiares não tiveram sequer acesso aos restos mortais dele.
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VIII MOMENTO COMPLICADO PARA O PAÍS E PARA MIM
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etomando o fio da meada: chegara 1954, ano em que houve o nosso IV Congresso do PCB e ocorreu o suicídio de Vargas, em um período de grande efervescência política no país. O PTB tinha um deputado em Sergipe, mas ele era inimigo do nosso Partido. Com a morte trágica de Getúlio, ele instigou o povo contra nós. E o povo na rua, com esse tipo de orientação equivocada, era uma ameaça a todos e decidimos enfrentar aquela situação. O camarada Lídio Santos foi destacado para se dirigir ao povo e saiu-se muito bem. Não foi fácil. Para que se tenha uma ideia, não havia em Aracaju uma só lâmpada acesa! Permanecíamos na clandestinidade como organização. Mas ajudamos a manter a ordem na capital sergipana, naqueles dias conturbados do suicídio do presidente, pois havia uma ameaça de golpe de direita no ar. Aracaju pegara fogo. No terceiro dia, já não tinha luz na cidade, tudo quebrado pelas ruas, invadiram a sede da emissora de rádio local e o governador fugira para o interior. O capitão Menezes, um oficial democrata, atuou muito para desanuviar o clima, entrando em contato com os militares, que acabaram colocando ordem naquilo. Com isso, afastamos o risco de golpe, pois a normalidade, a legalidade foi instaurada sem mais problemas. E tampouco havia condições para que tomássemos o poder apenas em Sergipe. Ficaríamos completamente isolados do resto do país. 57
A minha situação familiar estava muito complicada. Imagine que, quando tive de viajar para Sergipe, não pude comunicar à minha mulher para onde estava indo. E tínhamos um filho pequeno. Já na época em que eu havia saído do Rio para Niterói, meus encontros com ela se tornaram muito esporádicos, quase casuais. Com isso, a afeição que eu tinha por ela, e que ela tinha por mim, também foi se perdendo. E a situação ainda iria piorar, pois de Sergipe eu teria que viajar para a União Soviética, onde deveria frequentar a escola internacional de quadros, mantida pelo PCUS. O que eu pude fazer por ela, naquele momento, foi lhe conseguir um emprego no hospital dos funcionários do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem. Com isso, ela pôde criar nosso filho, praticamente sozinha. Era a minha maneira de ajudar na manutenção deles. Eu era clandestino, o que eu podia fazer era muito pouco. A minha vida tomou esse rumo, a minha realidade era essa, a de um perseguido. Não foi fácil enfrentar essa situação. O nosso comportamento foi bastante criticado por alguns, pois, segundo eles, tínhamos condições de tomar o poder e não o fizemos.
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IX NO PAÍS DOS SOVIETES. E HAVIA LÁ UM RELATÓRIO
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u viajei para a União Soviética em 1955. Do estado de Sergipe, fomos eu e a Arlinda. A delegação brasileira, da qual fazíamos parte, era composta por 55 membros, dos quais cinco integravam o Comitê Central. Esses companheiros e companheiras representavam vários estados do país e o objetivo do PCB era que nos fosse ministrado um curso aprofundado, uma espécie de pós-graduação em Revolução. Pouco antes de chegarmos para o curso em Moscou, circulou a notícia de que um grupo de comunistas espanhóis tinha sido preso ao retornar à Espanha e muitos desses companheiros foram sacrificados pela polícia franquista. Por precaução, ficávamos confinados em uma escola nos arredores da capital soviética e realizávamos poucas incursões fora do local em que estávamos hospedados. O nosso regime era fechado, até porque estávamos lá para estudar e a segurança, naquela época, se constituía uma das preocupações maiores, sobretudo sabendo-se dos primeiros movimentos da Guerra Fria no planeta. O nosso curso era puxado. Consistia, basicamente, em quatro matérias: filosofia, história do movimento operário e do PCUS e do movimento comunista em geral, e economia política – com ênfase nos problemas relativos à transição de uma economia capitalista para uma de base socialista, dentro da concepção de que o socialismo era a etapa inicial e transitória para o comunismo. Eu devo dizer que aquele foi um momento muito feliz da minha vida, pois pude ter toda a tranquilidade possível para 59
estudar. Os cursos eram dados em espanhol. E eu sou muito grato aos comunistas soviéticos por terem me proporcionado aquela oportunidade. Eu acho que ali foi o momento em que eu tomei consciência, de fato, do que representou a minha própria opção pelo PCB e pelo comunismo, lá atrás, em 1943. Os pressupostos teóricos dessa minha opção política foram como que alicerçados e realmente assimilados durante aquele curso. Mas o fato concreto também é que a situação estava tensa na própria União Soviética. Transcorria o ano de 1955, dois anos apenas após a morte do todo-poderoso Joseph Stalin, e o famoso Relatório Kruschëv já estava sendo elaborado. Evidentemente, não tínhamos muita informação sobre isso tudo. Um dos nossos dirigentes máximos, Diógenes Arruda, passou por Moscou nessa ocasião, acompanhado por dois outros camaradas brasileiros, mas pouco demoraram e praticamente foram direto para Pequim, capital da República Popular da China, implantada em 1949. Eles tiveram conhecimento da luta interna na União Soviética, mas foram adiando a volta deles ao Brasil. Eu tenho a impressão de que estavam com medo de levar para o PCB as informações reais que eles tinham recebido lá em Moscou. No nosso grupo, companheiros – como Moacir Longo e outros – estavam muito preocupados com o momento vivido pelos soviéticos e previam ou apostavam em imediatas mudanças. Percebíamos que era preciso mudar muita coisa, na URSS, no PCUS e também no nosso PCB. Acreditávamos ser insustentável manter aquela situação. A começar pelo fato de que era preciso entender que o povo – e não o partido, qualquer que fosse – é quem fazia a revolução. Posições vanguardistas demais sempre deturpavam o andamento do processo político. Aí, quando veio a crise com o Arruda, no Brasil, e a preparação da Declaração de Março de 1958, nós apoiamos sem nenhuma hesitação esse sopro democrático que começou a arejar também o nosso Partido. Eu voltei para o meu país, com essa convicção formada, tendo ficado muito impressionado com o que vira na pátria de Máximo Gorki, no bojo das mudanças provocadas pelo relatório secreto apresentado por Nikita Kruschëv, no XX Congresso do PCUS, em fevereiro de 1956. Lembro-me que, ao chegar a Moscou, um ano antes, havia estátua do Stalin em tudo quanto era canto. Inclusive, uma das primeiras coisas que fizemos, já no dia seguinte, foi visitar o mausoléu dele, próximo ao Kremlin. 60
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Logo após a tomada de posição de Kruschëv, a situação deu uma guinada fabulosa. E o impressionante é que a massa foi destruindo tudo o que se referisse a Stalin. Havia pedaços, blocos de estátuas dele pelas ruas, jogados no chão. Outro aspecto importante embutido nas propostas formuladas pelo dirigente soviético tinha a ver com os rumos da economia. Era preciso fazer reformas profundas no sistema socialista. Quase que recuperar a economia soviética. Afinal, em 1955, décadas após a Revolução, o povo praticamente não tinha acesso a manteiga nem a leite, reservados aos doentes. A produção de bens de consumo popular era pífia. Havia escassez de pão, também. Vale dizer, coisas básicas faltavam – e isso era um sintoma de que dificuldades imensas rondavam a economia. Eu me lembro que os soviéticos falavam muito, nessa ocasião, na expansão rumo à Sibéria, que era uma forma de alargar as fronteiras internas do país. Quanto mais eu me informava sobre essa situação, mais admirava o posicionamento dos soviéticos em ajudar, por meio de ações concretas estimuladas pelo princípio do internacionalismo, os revolucionários de todos os quadrantes do mundo. Sua fraternal solidariedade representava um enorme sacrifício para eles, que já haviam perdido milhões de pessoas na guerra, apenas uma década antes. Mesmo com todas as dificuldades, eles nos alojavam, nos davam alimentação, transporte e ainda uma ajuda financeira individual. Quer dizer, era um esforço formidável da parte deles. Quando voltamos ao nosso país, estávamos dominados por todo um clima de incertezas. Logo que cheguei ao Rio de Janeiro, fui indicado para a suplência do Comitê Central. E, novamente, designaram-me para atuar em Sergipe, onde passei pouco mais de um ano, sobretudo em Aracaju, e, já em 1959, chamaram-me de volta à capital da República, para substituir o companheiro gaúcho Orestes Timbaúba, na Secretaria Nacional de Organização. Membro titular do Comitê Central, esse companheiro tinha uma visão muito ampla do processo político e, vez por outra, entrava em conflito com Prestes. Aliás, eram ele e o líder sindical e deputado federal Roberto Morena. Eu achava que Timbaúba tinha visão estratégica, enxergava os problemas com muita acuidade, para além da conjuntura. Era um grande quadro nosso, tal como o próprio Morena, um dirigente inquieto, agitador fantástico e, também, um grande formulador político. No país dos sovietes. E havia lá um relatório
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Naquela época, eu não tinha muita clareza sobre essas questões todas, essas diferenças políticas no seio da direção. Comecei a entendê-las melhor, com o passar do tempo. Morena, por exemplo, caiu em desgraça junto a alguns setores da direção do Partido, devido aos seus posicionamentos na área sindical. Ele era um agregador nato e isso nem sempre agradava a certos companheiros nossos, de visão mais estreita ou sectária. Quando eu vim para o Rio, encontrei o Partido muito dividido, praticamente rachado em três. Tinha um grupo na Zona Sul, outro em Campo Grande, mais outro na Leopoldina, se não me engano, cada um atirando para um lado. Deu trabalho unificar aquilo tudo. A intelectualidade estava muito decepcionada com a Direção. O problema do stalinismo deixou marcas profundas. Mesmo assim, não ficávamos imobilizados. A prova disso veio em 1961, na crise oriunda da renúncia de Jânio Quadros à Presidência da República: o PCB foi o primeiro Partido a sair às ruas, para garantir a legalidade, quer dizer, a posse do então vice-presidente João Goulart. Eu fui para os sindicatos, ajudar a organizar a resistência popular por lá, já que se temia um golpe. Naquele momento, foi possível barrar a ofensiva da direita. Como sabemos, em 1964, a reação obteve sucesso e nós não – foi o contrário do que ocorrera em 1961. Se eu fosse definir o governo Jango eu diria que foi pautado pelo compromisso inegável que tinha com as forças populares. Ele vinha consolidando o processo democrático e de conquistas sociais entre nós. Eu arriscaria a dizer que mesmo o comício da Central do Brasil – e quem fez todo o material, as faixas e cartazes, foi a empresa que eu mantinha no Rio de Janeiro –, tantas vezes acusado de radicalizar o processo, não foi muito além das palavras de ordem da reforma agrária... A minha preocupação, na verdade, era muito mais com a indisciplina nas Forças Armadas, pois a quebra da hierarquia poderia servir de pretexto para uma reação da direita – como de fato serviu. É verdade que havia também o governador gaúcho Leonel Brizola, com uma posição mais à esquerda, nacionalizando a ITT, por exemplo. Ele, a meu juízo, atrapalhava e muito. Mas, de forma geral, Jango era um político bem sensato e o governo dele também buscava agir da forma mais cautelosa possível, percebendo as dificuldades políticas que enfrentava. A impressão que eu tinha é que ele estava acumulando forças, de maneira segura, para, aí sim, implementar reformas mais substanciosas no país. Quando uma certa radicalização se instalou, ela beneficiou in62
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diretamente as manobras do governo norte-americano, no sentido de desestabilizar o país todo. A reação nacional e internacional se aproveitou dessas brechas. E o que se viu foi aquele movimento das mulheres, além das movimentações do alto clero católico, dos empresários e dos próprios militares insinuando abertamente que o Brasil caminhava a passos largos para estabelecer uma República Sindicalista, o que nem de longe correspondia à realidade dos fatos. Homens como Carlos Lacerda, então governador da Guanabara, desempenharam um grande papel, nessa ocasião, insuflando as camadas médias contra a legalidade, contra a ordem democrática. Eu diria que somente nós, do PCB, víamos com clareza as artimanhas da direita reacionária. O nosso líder Luiz Carlos Prestes, independentemente de alguns equívocos, sabia perfeitamente que nós não poderíamos avançar mais do que já tínhamos avançado com Jango. O momento era delicado. E quando veio o golpe, Prestes – e todo o Partido com ele – reagiu com muita sensatez, evitando que o Brasil mergulhasse em um banho de sangue. Afinal, como reagir se o esquema militar do próprio presidente João Goulart era puxado por apenas quatro ou cinco generais, sendo que um deles se dizia amigo e, na última hora, se bandeou para o outro lado? É verdade que havia as forças populares, mas essas não se valem de cassetetes. Jango agiu com sabedoria e, até mesmo, com certa nobreza. Preferiu deixar o país, evitando, com isso, dar argumento às forças da reação, doidas para reprimir o povo e suas organizações. O que eu quero dizer é que nós já estávamos derrotados no plano militar e isso revelava, também, uma derrota política. A luta para reverter o novo estado de coisas seria forçosamente longa.
No país dos sovietes. E havia lá um relatório
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X E VEIO O GOLPE DE 1964. O QUE FAZER?
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o dia em que os militares se mobilizaram para golpear a democracia, derrubando o presidente João Goulart, da Presidência da República, eu estava na sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no centro da cidade do Rio de Janeiro, com Prestes e outros membros da direção nacional do Partido. Quando terminou a reunião e nós descemos à rua, as tropas de soldados do Exército já estavam desfilando pela Avenida Rio Branco, em direção ao bairro do Catete. Pensávamos, erroneamente, que elas se dirigiam rumo ao Palácio do Governo Estadual, onde se encontrava um dos líderes golpistas, o então governador Carlos Lacerda. Acreditávamos que se tratava de uma força de sustentação ao presidente Jango. Ledo engano! Prestes, que já havia recebido algumas informações a respeito, foi nos avisando que o golpe militar-civil estava mesmo em marcha. Giocondo Dias, então, em conversa de pé do ouvido, aconselhou-me a me esconder o mais rápido possível, chegando a me dizer: “este golpe vai durar um bom tempo”. Era a avaliação dele – e confesso que eu não tinha condições de ver o quadro com a clareza que ele enxergava naquele momento. O baiano Dias era, realmente, um dirigente extraordinário. Ele, por razões diversas (e uma delas deve ter sido não admitir que todo o estado maior do CC estivesse junto num mesmo local, num momento delicado daquele) não estivera na reunião da ABI. Sobre a duração do regime que seria implantado, ele já 65
nos alertara para que o Partido se preparasse para uma batalha que, tudo indicava, seria muito longa. Acolhendo sua orientação, passei rapidamente em casa, onde estava morando com a minha primeira mulher, mãe do meu filho, no bairro de Quintino, no subúrbio carioca. Ainda em casa, consegui organizar mais uma reunião de avaliação. Éramos seis nesse encontro, um dos quais era o líder operário, o santista Geraldo Rodrigues dos Santos, um eterno preocupado com o nível de organização dos trabalhadores e do seu partido. Junto com ele estava o presidente da Federação dos Ferroviários do Ceará. Terminado o encontro extraordinário, saí dali e fui para a casa da minha irmã, no Maracanã. Ela estava perplexa, não entendia o que estava acontecendo. De lá, fui direto para o bairro de Inhaúma, à procura de um companheiro, que nos ajudasse a conseguir uma casa, que poderia ser a dele, para nela esconder Roberto Morena. O companheiro Sérgio Holmes apareceu por lá depois, conversou com o Geraldão e conosco, declarando que estávamos mesmo derrotados e praticamente sem saber o que fazer – ou como fazer, para começar a articular a resistência ao golpe. Eu permaneci 30 ou 40 dias nessa casa, virando o mundo por aí afora, como se diz, buscando contato com os companheiros dispersos. Não era nada fácil o tempo em que fomos obrigados ao mergulho. Geraldão ficou comigo esse tempo todo. Minha mulher, meu filho e mais três companheiros também ficaram escondidos ali. Eu tinha um carro e tentava articular encontros com vários camaradas. Walter Ribeiro foi outro que também buscou refúgio nessa casa. Ele seria assassinado, pela ditadura, dez anos depois e, até hoje, a família não sabe sequer o que fizeram do corpo dele. Eu me recordo que, no dia em que ele chegou, o pessoal estava apavorado, pois o Roberto Morena tinha deixado o nosso esconderijo para fazer um comício contra o golpe, numa favela ali perto. Eu me encontrava, com certa frequência, ainda, com o Salomão Malina, que permanecia residindo em Jacarepaguá. Permitam-me fazer um necessário parêntesis. Eu estive com Luíz Carlos Prestes, em algumas vezes – antes, durante e mesmo depois do golpe. Lembro-me que, da primeira vez em que mantive contato com ele, falei-lhe da admiração que meu pai sentia pela Coluna Invicta. Para alegria minha, eu constatava que ele gostava de conversar comigo e, mesmo, de me ajudar. Ele sabia 66
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que eu não me aproximava dele para obter vantagens, muito menos visibilidade ou para mostrar prestígio. E parecia-me que ele gostava de quem se comportava assim, até porque ele conhecia muito bem os homens. Afinal, passara a vida comandando pessoas. Além do mais, nunca fui de bajular ninguém. Outro companheiro que eu apreciava muito era Giocondo Dias. De um modo geral, eu respeitava todos os membros do Comitê Central, pois conhecia a história de muitos deles. O baiano, por exemplo, fora um dos heróis de 1935, quando da tomada do governo do Rio Grande do Norte, no levante aliancista. Porém, ao ter contato pessoal com ele, é que eu pude avaliar as grandes qualidades humanas de que ele era possuidor. Ele sabia ouvir e sempre guardava uma palavra de incentivo para os companheiros. Compreendia as dores dos outros. Era um ser excepcional e tenho muitas saudades dele, até hoje. Sempre dizia que o caminho para a Revolução era cheio de espinhos e que, por isso, deveríamos estar sempre preparados para enfrentar qualquer situação. Se o camarada não tivesse isso em mente, ele poderia se desesperar e abandonar o barco. Aprendi com ele, a necessidade de termos paciência, pois nem sempre a História vai na direção que a gente quer. Eu gostava também do paraense José Maria Crispim, um homem inteligente e que fora um grande deputado federal constituinte, de 1946 até fevereiro de 1948, quando foi cassado, junto com todos os parlamentares comunistas. O que me agradava nele era sobretudo um certo espírito anticlerical. E eu tinha também um respeito muito grande ao baiano Moisés Vinhas, que se preocupava com as pessoas e que muito me ajudaria, quando, anos mais tarde, tive de buscar guarida em São Paulo, fugindo do cerco montado contra mim e a minha mulher no Rio de Janeiro. Muitos outros companheiros me impressionaram, naquele período, como o cearense David Capistrano da Costa, o pernambucano Agostinho de Oliveira, o amazonense Ivan Ribeiro, homem de extraordinária coragem. Havia ainda um companheiro um pouco difícil no plano pessoal, o também baiano Jacob Gorender, mas que eu apreciava pela inteligência e pelo preparo cultural. O mineiro Renato Oliveira da Motta era outro companheiro fantástico, humaníssimo, do qual sinto saudades até hoje. Bem, essas eram as pessoas com quem eu mais me relacionava no Partido, naquele período. Claro, com a implantação e vigência do regime militar-civil, os contatos iam ficando menos E veio o golpe de 1964. O que fazer?
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estreitos ou mais esparsos. Ainda mais que eu estava nesse trabalho ‘fechado’ de guardar os militantes, deslocando-os de um lugar para outro. É que ficara encarregado de esconder nossos dirigentes e alguns de seus denodados e importantes militantes de qualquer parte do país. O pessoal ia chegando, alguns de outros estados, e eu tinha que abrigá-los e protegê-los. Com o tempo, alugamos uma casa no bairro de Jacarepaguá, que servia de aparelho para os companheiros que continuavam vindo dos outros estados, perseguidos pela ditadura. Eu só sei que, no final das contas, eu tive, sob minha responsabilidade, nos diversos aparelhos do Partido, nada mais nada menos do que 32 pessoas. E ninguém foi preso. Certa vez, tive encontro com Carlos Marighella, na Avenida Suburbana, no Rio de Janeiro. Ele me cumprimentou e foi logo me estendendo um pacote e dizendo. “Este aqui é o seu”. Não mais do que de repente, perguntei-lhe: “O que é isso?”. E ele, sorrindo: “É uma metralhadora”. E eu ainda lhe declarei que nem sabia atirar com aquilo e que, portanto, aquela arma não teria nenhuma serventia para mim. Foi a última vez em que me avistei com o querido companheiro baiano. Esse encontro se deu perto do aparelho do Jaime Miranda. Depois disso, ele tomou outro rumo e eu permaneci no PCB. Mas o fato é que nós, do PCB, fomos nos rearticulando, inclusive com o tesoureiro do Partido, até que eu passei essa tarefa de esconder e transladar as pessoas para a responsabilidade de outro camarada e comecei a viajar para outros estados, sobretudo Minas Gerais, Espírito Santo, Goiás, Bahia e Pernambuco. No Recife, eu mantive muitos contatos com o David Capistrano, outro companheiro que seria assassinado pela ditadura. Tratava-se de um homem seríssimo, um dirigente exemplar e que deixou muitas saudades. Nessas viagens, eu comecei a distribuir os cadernos de discussão das teses do VI Congresso, o qual veio a ser realizado, em fins de 1967. Eu que, até então, estava na suplência do Comitê Central, passei a titular justamente neste Congresso. Independente disso, o que sempre me considerei mesmo foi um soldado a serviço do Partido. Tanto que trabalhei na logística do Congresso e – como sempre – na preparação de pães para alimentar os 120 delegados deslocados de todo o país para o histórico evento. O VI foi realizado num lugar de difícil acesso, eu diria que dentro do mato. Construímos dois barracões para alojar todos os camaradas. Tivemos até de desmatar uma área grande. A repressão 68
Valeu a pena lutar!
estava nos nossos calcanhares, não dava para vacilar nem abrir a guarda com questões de segurança, mesmo as mais simples. Até hoje, eu não saberia dizer em que estado nós o realizamos. Talvez em São Paulo, mas tampouco tenho certeza. Digo isso por causa do tipo de vegetação, que havia nos arredores da casa em que o fizemos. Foi nele que o companheiro Salomão Malina se acidentou feio, ao tentar minar a área em que ele se realizava. Malina perdeu uma das mãos ali, numa explosão. Foi algo dramático. Tivemos um Congresso tenso, por razões óbvias, apesar de eu não ter podido acompanhá-lo, como gostaria. Além do mais, sei que foi muito complicado, pois o Partido estava dividido em torno de duas grandes correntes, que se chocavam. Havia, de um lado, os que defendiam a reconquista das liberdades e da democracia, por um caminho de amplas alianças e num movimento capaz de isolar e derrotar o regime; e, do outro, os que propugnavam a luta armada, como a única forma capaz de derrubar a ditadura. Debateram-se muito as propostas do Marighella, por exemplo. Ele era um excelente companheiro, mas desde a época da Conferência da Mantiqueira que o Partido tinha uma certa dificuldade com ele. Era um revolucionário fantástico, mas, às vezes, era apressado demais. Impetuoso, queria resolver tudo quase que de uma hora para outra. Só que a vida não é assim. A impressão que ele sempre me deu foi essa. Eu me lembro que havia muitos choques, por exemplo, entre ele e o Mário Alves, dentro do Partido. Ele achava o Mário um pouco devagar demais para o gosto dele. Mas eu via esses problemas todos um pouco de longe. Eu era mais um soldado do Partido, quase um homem da base. Por essa época, particularmente entre 1964 e 1966, eu também atuei no trabalho de tirar gente do país e de fazer entrar em território brasileiro muitos companheiros. Era um entra e sai terrível. E, certamente, corríamos um risco muito grande, mas aquele era um trabalho absolutamente necessário. Por haver muita vigilância nas fronteiras, todo cuidado era pouco. Eu nem conhecia todas as etapas desse trabalho, e nem deveria conhecê-las mesmo, embora fosse muito ligado ao setor de preparação de passaportes. Quanto menos eu conhecesse a estrutura, melhor seria para todos, pois os riscos seriam menores. Eu fazia uma tarefa determinada. E mais nada. Outros companheiros ficavam encarregados de assumir outras funções. E veio o golpe de 1964. O que fazer?
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Gostaria de registrar que participei da primeira reunião do Comitê Central, após o “golpe de abril”. Havia muitas divergências entre nós, mas prevaleceu a linha que considerava que a luta seria longa e que nós teríamos de nos valer de instrumentos políticos – e não militares – para isolar e derrotar o regime. Alguns companheiros começavam a se impacientar, querendo partir para o confronto direto com o regime, para o embate armado. Eu segui a orientação dominante, mais política, digamos. Na verdade, a minha capacidade de influir ou orientar o processo não era a mesma de alguns dirigentes, como Giocondo e Prestes, por exemplo. Sempre tive noção das minhas limitações e nunca procurei dar um passo maior que as pernas, ou falar de algo sobre o qual eu não tinha tanta segurança. Eu era um homem de ação, de organização – e não de formulação propriamente dita. Mas uma coisa eu sabia: o PCB não poderia, em hipótese alguma, repetir aquela experiência de 1948 e 1950, quando conclamou o povo a pegar em armas contra o governo. Basta de radicalização. Por aí eu entendia que não chegaríamos a lugar nenhum. Eu nunca tive medo da luta, de matar ou morrer. Se tiver que dar a minha vida eu até dou, mas insensatez eu não cometo não.
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Valeu a pena lutar!
XI O VI CONGRESSO E A RESISTÊNCIA DEMOCRÁTICA
Q
uando o VI Congresso se encerrou, deram-me a tarefa de levar os informes e resoluções para a Paraíba, Pernambuco, Ceará, Maranhão, Pará e Amazonas. De ônibus, percorri esses estados todos, aquelas estradas todas. Era arriscadíssimo, pois havia barreiras com tropas do Exército, em tudo quanto era canto. Mas eu não sei nem explicar direito como, mas reuni coragem e aceitei a tarefa, cumprindo todos os compromissos que me foram passados. Eu me lembro de Dinarco Reis ter me alertado: “olha, companheiro, você vai fazer este trabalho, mas o realize com toda cautela e moderação, pois é muito perigoso. Você vai ter que fazer isso, pois nós não temos mais ninguém em condições de cumprir essa missão”. Aceita a tarefa, fui direto para Pernambuco. Ao chegar ao Recife, bati na porta da casa de um companheiro e, primeira decepção, ele havia sido preso. A mãe dele me pediu para fugir dali bem rápido. Fui, em seguida, para Caruaru e, de lá, para Fortaleza. Fui recebido, na capital cearense, por um companheiro do Comitê Central, que tinha um parente senador pelo estado. Em reunião por ele organizada, eu quis saber como estava a situação dele e dos demais companheiros que atuavam por lá. Como em toda parte, as condições de atividade partidária para nós eram cada vez mais difíceis e precárias. Do Ceará, ganhei o Maranhão. Mas fiquei apenas um dia por lá. Eu me recordo que me avistei, em São Luís, com um jovem comunista que estava de viagem marcada para os Esta71
dos Unidos. Naquela época, falar em viajar para a terra do Tio Sam era a mesma coisa do que jogar uma bomba nos ouvidos da gente. Dali viajei para Belém do Pará, onde encontrei um companheiro apenas. E de lá alcancei Manaus, sempre levando o material do Congresso comigo, distribuindo aquela literatura para os companheiros das áreas mais distantes. Quer dizer, cumpri a tarefa que Dinarco Reis me dera, em toda confiança. Depois, ainda voltei à capital marajoara, para acompanhar um congresso estadual do partido e, até hoje, eu tenho na lembrança a presença, nessa reunião, do companheiro Guto (o José Augusto de Souza Rodrigues), hoje presidente regional do PPS e secretário municipal do Trabalho. Por essa época (creio que por volta de 1967), fiz ainda uma viagem internacional. Giocondo Dias me chamou para um encontro e me incumbiu de ir à Europa, para fazer uns contatos com Marcos Jaimovitch, que estava em Budapeste, na Hungria. A ideia seria, por meio do nosso arquiteto, conversar com o ex-governador Miguel Arraes e convocá-lo a integrar uma frente contra a ditadura, a Frente Ampla. Encontrei-me com o Marcos, em Paris, e fomos direto ver o Miguel Arraes. A ideia era discutir com ele, então, a montagem de uma frente de líderes políticos e sociais, e a melhor forma de construir essa Frente Ampla. Arraes nos recebeu com toda a cordialidade, com aquele vozeirão peculiar dele, ofereceu-nos um almoço, foi extremamente gentil e receptivo quanto à ideia da construção da frente, mas empacou no nome do Carlos Lacerda. O curioso é que tinha sido o primeiro nome sobre o qual falamos. Ele o vetou e o fez, de forma categórica, não dando muita margem à negociação. Carlos Lacerda, na opinião dele, não deveria integrar essa frente, de maneira alguma. Tentamos argumentar que se tratava justamente de uma Frente Ampla, que deveria congregar todos aqueles que estivessem contra o regime, seja porque razão fosse. Eu pensei na hora: “Esse caboclo aqui está pior do que o Carlos Lacerda, mais estreito ainda do que ele”. De fato, Arraes se fechou em copas. De nada adiantou nós lhe falarmos que não teria sentido fazer qualquer movimento sozinho ou de maneira isolada. Nossa ideia era reforçar a Frente, com todos aqueles que estavam se sentindo mal com aquela ditadura imposta em 1964 e que almejavam o retorno de amplas liberdades no país. Uma vez obtida a vitória, cada um tomaria seu rumo e pronto. Talvez o Marcos e eu não tenhamos argumentado bem, mas o fato é que 72
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Arraes ficou irredutível. Não quis mais conversa à simples menção do nome do Lacerda. Então, resolvi abrir o jogo. E lhe disse: “Muito bem, dr. Arraes, ser revolucionário do jeito que vocês querem aqui, em Paris, cercados de todo conforto e segurança, é uma coisa. Agora, ser revolucionário, neste momento, no interior do nosso país, com a polícia nos nossos calcanhares, é outra bem diferente. Trata-se de uma ação difícil e muito perigosa. De que vale ficarmos irredutíveis, se o processo político em nosso país não avança um milímetro sequer? Nós temos de reverter esse quadro. Não podemos ficar inertes, aceitando a ditadura como um fato consumado”. Eu fui defendendo nosso ponto de vista, ao tempo em que fomos nos preparando para deixar o local em que estávamos. Nós ainda nos despedimos dele com a tênue esperança de que ele pudesse revisar seus posicionamentos. Mas isso, como se saberia depois, não ocorreu. Com a inviabilização da Frente Ampla pelo incremento da repressão, o espaço para se atuar politicamente no Brasil conseguiu ficar ainda pior. Nós chegamos a depositar algumas esperanças no então vice-presidente da República escolhido pelos militares, o mineiro Pedro Aleixo, mas a cúpula fardada impediu qualquer saída liberal, com a decretação do Ato Institucional nº 5, o AI-5. Aleixo queria uma Constituição mais arejada, porém a que foi imposta pelos setores mais à direita era o contrário disso, praticamente uma Carta de caráter pró-fascista. E aqui vai uma informação que não acredito tenha sido muito divulgada: o próprio Aleixo seria o responsável pela divulgação dos documentos da Frente Ampla que deslancharia um movimento nacional pela retomada do processo democrático. Quer dizer, ele seria um aliado da Frente. Eu dou crédito a isso até porque ele foi golpeado, em 1968, quando não lhe deram posse, após o episódio da doença do marechal Costa e Silva, de quem ele era o vice-presidente da República, nou seja, o sucessor natural. Aí, baixaram o AI-5 que, a meu juízo, veio em resposta às eleições de 1966, pois a ditadura temia que, nos pleitos seguintes, a oposição se destacasse, o que abriria brechas consideráveis nos projetos de perpetuação no poder, caro a alguns setores do regime militar. A ideia era impedir que as eleições se firmassem. A continuação do processo eleitoral representava – essa era a convicção deles e também a nossa – o desmoronamento da política golpista, o fim da ditadura. O VI Congresso e a resistência democrática
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Após esse encontro com o Arraes, tive ainda alguns contatos, sobretudo com jornalistas, a respeito das articulações em torno da Frente Ampla. Acontece que eu estava sendo muito procurado, nessa época, e a direção do Partido achou por bem que eu não me expusesse mais. E então, voltei para o meu trabalho clandestino, ligado mais à Secretaria de Organização. E continuei com aquele trabalho de levar uns companheiros para fora e trazer outros para dentro do país. Ou seja, continuei a realizar as tarefas que o aparelho partidário pedia que eu fizesse. E, mais uma vez, não caiu ninguém sob o meu comando. Alguns companheiros, é verdade, afrouxavam com essa questão de segurança, criavam até problemas, mas, de forma geral, eu pude controlar a situação. Determinados estudantes, mais indisciplinados, andaram me dando alguma dor de cabeça por essa época. Mas continuamos agindo, de cabeça fria, olhando sempre em direção ao futuro. No plano da minha vida pessoal, eu continuava a viver com a mãe do meu filho, mas tomando todas as precauções possíveis, para não colocar ninguém em risco. Afinal, o ambiente político só tendia a piorar com a decretação do chamado AI-5. Eu diria que este foi o ato mais arbitrário perpetrado contra as liberdades democráticas entre nós, ao menos no que concerne o período republicano. O tempo fechou de vez. Somente os poderosos do Exército ou das Forças Armadas tinham voz. Mesmo aqueles civis que tinham apoiado o golpe de abril de 1964 encontravam dificuldades para sobreviver politicamente. E os democratas tiveram de submergir, atuar quase que exclusivamente na sombra. Este, pelo menos, foi o nosso caso, o de militantes e dirigentes comunistas. Uma parte da esquerda desarvorou-se, realizando atentados, sequestros e ações armadas de todo tipo, incluindo aí as chamadas ações de expropriação, como assaltos a bancos e mesmo a residências, como ocorreu com a de uma amante do ex-governador paulista Ademar de Barros. Nós, do Partido Comunista Brasileiro, condenávamos esses atos, até porque eles só serviriam para alimentar de carne os leões e fortalecê-los, fazendo com que a repressão se tornasse ainda mais bárbara, brutal. Eu desconfio até que isso tudo possa ter recebido uma espécie de apoio tácito dos serviços de inteligência norte-americanos, que queriam interromper aquele período do Castelo Branco, optando por um governo ainda mais autoritário do que 74
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o dele. A linha dura e os serviços de inteligência locais e estrangeiros apostavam na ditadura total. E foi isso que ocorreu. O governo Médici foi como que a expressão acabada disso, com o domínio total da extrema-direita, o recurso sistemático às torturas e aos assassinatos, como forma de aniquilar com as atividades de oposição. Sobreviver nessa situação era praticamente uma proeza. A primeira providência que tive de tomar foi abandonar, por completo, minhas andanças durante o dia. Por atuar no setor de organização partidária, era muito restrito o número de pessoas com quem eu contatava. Era um tipo de clandestinidade dentro da clandestinidade, se posso dizer assim. Ou seja, fechadíssima. A Secretaria de Organização era um setor fundamental do PCB. Nós nos reuníamos com certa periodicidade – Giocondo Dias, Jaime Miranda e eu. Volta e meia, Antonio Ribeiro Granja também participava desses nossos encontros. Havia normas muito rígidas de segurança norteando esse nosso grupo. Ficamos nisso até 1966, quando fui incumbido de algumas tarefas e, para encaminhá-las, tive que fazer algumas viagens internacionais. Uma das questões pendentes era com o governo de Cuba, que havia detido um companheiro nosso, o jornalista Mauro Santayanna, que emitira, em Havana, algumas críticas ao funcionamento do regime cubano. Na intervenção política que desenvolvi, em nome do PCB, estava um pedido nosso às autoridades cubanas, para que libertassem o Mauro, no que fomos atendidos. Depois, ajudei a organizar uma representação nossa para um encontro pela paz que se realizaria na Índia. Eu me encontrava em Praga, onde me avistei com os companheiros Armando Ziller e Pedro Motta Lima, e dali segui para Moscou, onde participei de um Congresso do PCUS e dos festejos da Revolução Russa. Da capital soviética, fui para Sófia, na Bulgária. Quando eu me achava de volta a Praga, aconteceu uma tragédia: o avião em que viajavam o companheiro Pedro Motta Lima e um membro da Secretaria de Organização do PC japonês, explodiu e eles morreram. Fiquei na capital tcheca para ajudar a preparar, com o Ziller, os funerais do Mota Lima, cujo cadáver foi reconhecido, após oito dias de busca dos corpos, graças apenas a uma boina que ele gostava de usar. Foram momentos muito tristes aqueles. Só depois da incineração dele é que retornei ao Brasil, e o Ziller continuou nos representando em Praga. O VI Congresso e a resistência democrática
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XII A SURPRESA
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uando cheguei ao Brasil, no dia em que desembarquei, a minha companheira foi presa – e este fato colocaria em causa minha permanência na Secretaria de Organização do Partido. Eu fui avisado a tempo pelo meu filho e por isso não fui preso. Assim, eu não cheguei sequer a ir até a minha casa – a polícia estava lá, me esperando. Eu estava chegando do exterior, com muita literatura política na mala, resoluções de partidos estrangeiros, documentos de todo tipo. Passados alguns dias, consegui entrar na casa, estava tudo muito bagunçado, como se diz. Eles tinham revirado tudo, quebrado tudo lá dentro. Tentávamos impetrar um habeas corpus para libertar a minha mulher, por intermédio dos advogados do Partido, mas foi em vão. Um coronel do Exército, marido de uma vereadora do Rio de Janeiro, conseguiu a informação de que ela estava entre a vida e a morte, presa na Polícia do Exército. Esse coronel logrou retirá-la de lá, mobilizou uma ambulância e conseguiu interná-la no Hospital de Psiquiatria, onde ela ficou confinada um mês. Isso se deu em dezembro de 1966. A família então se desfez, praticamente. Minha filha foi para um canto, meu filho ficou naquele apartamento que tinha sido invadido e eu tive de sumir completamente. Esse coronel atuou de forma exemplar e nós ficamos eternamente gratos a ele. Era um homem de bem. E nós tínhamos também um companheiro lá no Hospital Psiquiátrico, o que, naturalmente, ajudou muito.
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Quando a Altair se restabeleceu, ela foi direto para São Paulo, pois não convinha permanecer mais no Rio de Janeiro. É preciso dizer que esse fato foi determinante para que eu ficasse morando de vez com ela, já que, até então, eu não havia me separado da Maria, companheira também ligada ao Partido. Em São Paulo, fomos viver na casa de uma tia da Altair, com nossa filha de nove meses. Na capital paulista, na verdade, ficávamos um dia em uma casa, outro dia em outra, a ponto de eu considerar que este foi o período mais difícil pelo qual tive de passar em toda minha vida. Como era difícil então arranjar simplesmente um lugar para descansar o corpo! Durou quatro meses essa nossa peregrinação, uma vez que os familiares da Altair tinham muito medo de nos abrigar, por causa da repressão. Temiam, claro, que acontecesse alguma coisa de ruim com eles também. Bem, depois um primo dela conseguiu para nós uma casa de propriedade de um pedreiro. Na verdade, era um depósito onde ele colocava as coisas dele, os materiais de construção etc. e nós fomos morar lá – a Altair, a criança e eu. Na verdade, fomos brigar com os ratos e as baratas, que infestavam o local. A Altair saiu da prisão semimorta, inutilizada. Queimaram todo o corpo dela na polícia política. Foi muito sofrimento. E ela foi perdendo o juízo. Havia momentos em que não raciocinava. Certa vez, eu a encontrei na rua, só de roupa de dormir. Fui cumprir uma tarefa partidária no bairro do Ipiranga e quando voltei a encontrei assim, no meio da rua, em plena tarde. Aquilo me doía. Ela tinha momentos em que perdia a visão, tinha outros em que perdia os sentidos. Estava conversando conosco e, de uma hora para a outra, não sabia mais quem eu era, por exemplo. Isso durou todo o resto de sua vida, em consequência das bárbaras torturas que sofreu. Fez uma operação em Santo André, melhorou um pouco, mas quando ia fazer nova cirurgia, infelizmente morreu. Na maior parte do tempo, ela ficava quieta, não tremia, não chorava. E eu permaneci ao lado dela, de 1966 até 1977, quando morreu. Foram 11 anos de agonia. A minha militância ficou muito restrita, mas eu não podia abandoná-la, de forma alguma. No dia de sua morte, passou pouco antes uma sirene da polícia na rua da nossa casa e ela estremeceu toda, fico completamente desarvorada. Não dá para esquecer essas coisas, nunca. Fora por demais dramático. Fora uma vida dura a nos78
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sa. O único divertimento que tínhamos era o jogo de cartas, uma das poucas alegrias dela. O Partido hesitou muito em nos ajudar naquele momento. Talvez por não ter condições. O Dinarco Reis, que era o secretário em São Paulo naquele ano, não podia ou não queria ter compromisso conosco naquele momento. Foi aí que apareceu uma pintora companheira nossa, cujo marido, um contador, aceitou em ser o fiador de uma casinha para morarmos. Foi o que nos salvou, praticamente. Com esse fato, o próprio Dinarco foi se reaproximando da gente, assim como o Hércules Corrêa, que também havia se radicado em São Paulo, fugindo do cerco montado contra ele no Rio de Janeiro. Aí eu fui me entrosando novamente com o Partido, e fui trabalhar para sustentar a minha família. Fazer o quê? Fui ser motorista de táxi, trabalhando em São Paulo mesmo. Logo depois, o Partido me procurou para transportar o nosso pessoal para uma reunião no Rio de Janeiro, na praia de Guaratiba. Foi estabelecida nesse encontro uma nova direção e eu fui indicado para atuar nela. Companheiros como Geraldo Rodrigues dos Santos (o Geraldão), da área sindical, e o Wellington Mangueira estavam comigo nessa reunião. Mas eu confesso que não estava muito atento para as coisas do Partido, pois na minha cabeça eu só pensava, àquela altura, em trabalhar para sustentar a minha família, tamanha eram as dificuldades pelas quais estávamos passando. Eu devo dizer que levava a vida quase que por levar mesmo, sem grandes esperanças de mudança. Era preciso continuar e pronto – havia um desânimo no ar e eu permaneci em São Paulo até onde pude, ou seja, até aquele ponto em que as condições de segurança o permitiram. Pois o fato é que foram surgindo problemas muito sérios, envolvendo o desaparecimento de vários companheiros, inclusive do Comitê Central. Eu, nessa época, dava assistência a uma base de Guarulhos, além de percorrer cidades como Araraquara, Bauru e toda a região de São Carlos, onde o PCB também desenvolvia um trabalho político relativamente importante. Eu era o responsável por todas essas áreas, sobretudo pela organização de faixas do setor operário do Partido. Por conta disso, eu estava muito entrosado com a direção do PCB em São Paulo. Mas nós atentávamos, ao mesmo tempo, para o recrudescimento da repressão. O companheiro Moacir Longo era um dos dirigentes que mais me alertava para isso – “tome muito cuidado, porque a barra está muito pesada, cada vez mais pesada...”, dizia ele. A surpresa
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O Moacir tinha então muitos contatos com o mundo institucional da política e tinha acesso a algumas informações dos subterrâneos da chamada alta política, e avaliava com muita precisão as decisões tomadas pelas classes dominantes na repressão contra nós. Até que aconteceu o seguinte fato. Eu tive de ir a um ponto ou encontro com um companheiro que havia sido deslocado do Pará para São Paulo. Ele estava vindo diretamente de Belém. Eu não me esqueço: o encontro seria no dia 10 de outubro, às dez horas da manhã, na esquina da Rua 13 de Maio com a Praça Castro Alves. Eu costumava ir para os pontos um pouco antes do tempo fixado. Eu me lembro que comprei o jornal O Estado de S. Paulo e fiquei por ali, como quem não quer nada, observando a cena. Aí se aproxima de mim um cidadão e pergunta; “Que horas você tem?” Percebi de chofre que alguma coisa não estava indo bem. Eu mostrei então o relógio a ele. Mas, ao invés de olhar para o relógio, ele ficou me encarando. Numa fração de segundo eu me lembrei de uma observação que o companheiro Aristeu Nogueira me havia feito, sobre os tiras sempre encararem a gente, antes de prender, como que verificando a nossa fisionomia exata, se ela batia com as informações que eles tinham. Nesse momento, encostou um ônibus e eu praticamente pulei dentro dele! A porta abriu e eu ainda tive tempo de lançar um “dá licença” em direção ao tira e entrei voando! Ele ficou perplexo e, quando tentou entrar também, a porta já havia se fechado. Quando olhei para trás, vi que o tal sujeito já gritava, e corria que nem um desesperado, mobilizando uma viatura de polícia que estava já ali por perto. Paguei a passagem e desci imediatamente, despistando assim a repressão. Peguei imediatamente um táxi e ainda tive tempo de ver a tal viatura parando o ônibus, atravessada diante dele, enquanto os tiras se preparavam para invadi-lo. Realmente, escapei por pouco, graças a uma certa presença de espírito. Quando cheguei em casa, Altair me falou: “Você está branco! E olha que você não é tão branco assim!” Bem, eu nem disse nada do que acontecera, pois ela já estava suficientemente traumatizada com tudo aquilo. Recordo-me que, no mês de dezembro, ao ir fazer compras com ela no supermercado perto de minha casa, dei de cara com o sujeito que me abordara na rua, poucos meses antes. O mesmo que me pedira as horas! A sorte foi que ele não me viu! Aí eu conversei com a Altair, expliquei-lhe tudo e tomamos a decisão de ir embora de São Paulo. Pedi-lhe 80
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que fosse para a casa da sua filha, em Itaverava, pertinho de Ouro Preto, em Minas Gerais, enquanto eu ficaria ainda por mais uns dias na Pauliceia, tentando resolver a minha própria saída. Disse-lhe que algo de anormal estava acontecendo e que, de uma hora para a outra, poderíamos ser presos. E, portanto, teríamos de agir rapidamente. Altair, então, viajou e, pouco depois, eu também. Fiquei mais para cuidar da mudança, acertar alguns detalhes de caráter mais pessoal. Fomos nos estabelecer, finalmente, em Araguari, na casa de uma irmã da Altair. Logo em seguida, alugamos uma pequena moradia perto da casa dela, que era muito pequena, de um cômodo só. Colocamos nossos móveis lá e fomos tocar a nossa vida. Dois anos após a morte de Altair, fui viver inclusive com essa irmã dela. E moro nesse lugar até hoje, transcorridos mais de 35 anos.
A surpresa
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XIII TOMANDO O RUMO DE MINAS
A
ntes de deixar São Paulo e ir para Araguari, comuniquei o fato à direção do Partido. É que, concretamente, não tinha mais condição de viver como estava vivendo – seria inevitável a minha prisão. Até porque eu estava muito envolvido com o PCB àquela altura e as quedas se avolumavam. Antes de buscar refúgio em Minas, eu tinha acabado de realizar uma viagem de interesse partidário ao Rio Grande do Sul. Tratava-se de tarefa muito arriscada e os companheiros me recomendaram muita cautela. Oswaldo Pacheco tinha acabado de chegar da Europa e precisava ser fixado no Rio Grande do Sul. Ele estava em minha casa, em São Paulo, escondido. Um companheiro nosso, o médico Fued Saad, secretário à época do PCB gaúcho, que acabara de chegar da França, fora incumbido de organizar comigo a ida e a permanência dele em Porto Alegre. Saad me deu uma Kombi para transladar o Pacheco e fui cumprir a tarefa que o Partido me dera com a ajuda de um irmão e de uma irmã da Altair, ambos jovens ainda. Deixei o companheiro Pacheco em Porto Alegre e voltei para Curitiba. Só que eu não tinha um tostão no bolso. O Partido tampouco tinha condições de me ajudar. Vivíamos com o estritamente necessário. Um período terrível aquele. Na capital do Paraná, eu vendi o meu relógio de pulso e segui viagem. Recordo-me que o sujeito perguntou quanto eu queria pelo meu objeto de controle de horas e lhe respondi: “Você me abastece de gasolina para uma viagem até São Paulo 83
e me arranja 40 cruzeiros, que eu fecho negócio com você”. O cara topou na hora e fomos direto para São Paulo, sofrendo muito frio durante todo o caminho. Jurei para mim mesmo que nunca mais faria uma viagem daquelas. Quando ocorreu aquele episódio do supermercado, que já relatei, aí eu me convenci de vez que teria de sair de São Paulo e me esconder em um lugar mais seguro em Minas. Não havia mais segurança nenhuma. Se a polícia encontrasse o Oswaldo Pacheco em minha casa, nós dois seríamos mortos, provavelmente. A ordem, naquele período da vida brasileira, era matar. Dirigente comunista raramente saía vivo das sessões de tortura. Então, como eu já afirmei, reuni minha mudança na própria Kombi e fui tentar sobreviver em Minas. Fiz a mudança, aos poucos. Ia e voltava, de São Paulo para Itaverava, inicialmente. Combinei com meu filho que ele deixaria uma toalha na janela, caso houvesse qualquer problema com a casa durante essas minhas ausências, para que eu não fosse surpreendido numa dessas idas e vindas. A minha mulher ficou a princípio em Itaverava, com os familiares dela, até eu poder me alojar em Araguari. Aluguei um pequeno apartamento em duas semanas e voltei a São Paulo, onde vendi a Kombi. Com esse dinheiro, que não era lá nenhuma grande fortuna, comprei uma boa área em Araguari, que depois loteei, vendendo alguns terrenos pequenos. Em um deles, construí depois a casa onde moro até hoje. E sabe como nós começamos a sobreviver? Jogando tarô. É que Altair entendia disso. A princípio, a clientela era familiar. As primas vinham e pediam a ela para jogar as cartas. Com o tempo, foi-se formando uma clientela – e isso foi a nossa salvação, se posso dizer assim, pois o próprio pessoal da cidade foi espalhando, fazendo propaganda do trabalho dela. A partir daí, não nos faltou mais dinheiro. Mesmo com todo o problema de saúde dela, com o desequilíbrio que ela ia manifestando e que a levaria à loucura, devido às terríveis torturas que sofrera no cárcere, ela conseguia um sucesso enorme. E chegou a ficar muito conhecida como taróloga na cidade. Às vezes, entrava em um banco, por exemplo, e todo mundo corria para falar com ela, pedindo para marcar consultas. Era uma pessoa querendo saber o futuro do namoro. Outra buscando se inteirar da sua própria saúde. Quer dizer, parava o banco, e o gerente, amigo nosso, até ria com aquilo. 84
Valeu a pena lutar!
O fato é que a partir desse sucesso nunca mais faltou dinheiro em casa! E eu pude programar a minha vida com um pouco mais de calma, inclusive negociar um outro terreno que eu havia adquirido com a venda da Kombi. Eu devo dizer que a Altair era uma mulher de muita fibra e que me ajudou muito, em Araguari. Graças a ela superamos aquele sufoco terrível que marcou nossa passagem por São Paulo. Então, como eu nunca fiquei sem trabalhar, acabei me voltando para a exploração dos terrenos, construindo algumas casinhas modestas, inclusive. Comecei a construir com material de demolição, que ia pegando na roça. O pessoal vendia as casas bem velhas, quase sem serventia, e eu aproveitava quase tudo dela, ou seja, telhas, portas, janelas, tijolos... Às vezes, até trocava uma boa porta por cimento, que usava na construção de uma casa para mim. E, nessa luta, fui me escorando, conseguindo sobreviver, bem ou mal. E ainda montei uma fachada boa para mim em Araguari: para todos os efeitos, eu era um comerciante, quase um pequeno empreiteiro. Em 1980, o Partido me ordenou para que saísse da clandestinidade. Nós iríamos atuar às claras, tentando impor a nossa legalidade. E eu cumpri à risca as determinações do PCB. Eu militava no Partido em Minas Gerais, clandestinamente. Como nós não conseguimos a legalidade política naquele ano – na verdade, ela só viria em 1985, com o fim do regime militar –, ingressei, por ordem do Partido, no PMDB, o partido legal de oposição. Nós achávamos que não deveríamos nos dispersar. Isto é, enquanto a ditadura persistisse, nós teríamos que manter a frente democrática representada, sobretudo, pela aliança entre os liberais e os comunistas. Eu cheguei a me candidatar a deputado, pela legenda do PMDB, em 1982. Fiquei como segundo suplente. Nesse mesmo ano de 1982, o PCB tentou fazer um Congresso, mas a polícia política prendeu todo mundo. E lá fui eu preso, de novo. Nos interrogatórios, eu disse que era comerciante e que tinha um bar em Araguari! Evidentemente, não era verdade. Uma vez solto, eu pensei: “agora tenho que abrir mesmo um bar lá em Araguari”. Depois, eu percebi que os serviços do Exército ficaram me vigiando até 1985, pelo menos, quando então obtivemos a legalidade partidária. Mas eu nunca dei a eles a mínima indicação de que seria um profissional do Partido. Para todos os efeitos, eu era um comerciante e ponto final. Mesmo assim, meu processo correu até 1986, ano em que foi finalmente arquivado. Tomando o rumo de Minas
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A essa altura, eu já militava há quase meio século no movimento sindical e, também, nas esferas comunistas. O acompanhamento permanente pelo Exército me incomodava. Eles colocaram dois homens na minha “cola” durante anos a fio. Os sujeitos ficavam um dia inteiro em um boteco, ao lado da minha casa. Eles queriam uma prova de que eu era militante profissional do Partido. Até mesmo quando eu ia para Belo Horizonte, para a casa do companheiro Paulo Elisiário Nunes, eles me seguiam. Nós fazíamos uma reunião e, ao acordar, de manhã, o Paulo abria a cortina da janela e dizia assim: “a polícia está aí embaixo, vigiando a gente”. E eu lhe disse, então: “O que é que nós vamos fazer?” Paulo respondeu: “Nós vamos ter de sair daqui agora”. E foi o que fizemos. Descemos, apanhamos um táxi, vimos que o pessoal da polícia estava nos seguindo e quando chegou a uma determinada altura, pedi para Paulo descer e entrar numa livraria, que eu continuaria no táxi. Fui direto para a rodoviária, saltei, tomei tranquilamente um café e comprei uma passagem para viajar. Como os tiras não largavam do meu pé, continuavam na minha cola, como se diz, eu pedi no guichê uma passagem para Uberlândia e não para Araguari, como fazia normalmente. Quando estava na plataforma pronto para viajar, a polícia chegou. “Não faça barulho”, disse o policial, “e nos acompanhe até à delegacia”. Quando chegamos lá, começou o interrogatório. Os “tiras” queriam saber o que eu estava fazendo em Belo Horizonte. Perguntaram se eu estivera com algum amigo. Eu disse que sim. Perguntaram então qual o nome dele e eu falei: “Paulo”. “Mas, Paulo de quê?”, indagaram. “Aí, eu já não sei. Só o conheço por Paulo”, respondi. E o interrogatório prosseguiu: “Quem mais você conhece em Belo Horizonte?” Eu respondi: “Raul Belém”. “Quem é esse homem?”, eles insistiram ainda. “Deputado”, eu disse, “deputado Raul Belém”. “E o senhor não conhece mais ninguém por aqui?”, insistiram, de novo. “Não, não conheço. Aliás, vocês vão me desculpar, mas meu ônibus está para sair e eu preciso pegá-lo. Não tenho mais dinheiro para comprar outra passagem. Vou para Uberlândia”. Os tiras ficaram meio perplexos com as minhas respostas, acharam que tinham se enganado de pessoa. Um deles até conseguiu parar o ônibus no meio do caminho e me colocar lá dentro. Antes, pediu mil desculpas. Eu fiquei preocupado, pois, além de ter estado com Paulo Elisiário, eu também estivera com Almir Neves, companheiro da Executiva clandestina, responsável por um longo tempo pelo setor militar do PCB. Felizmente, deu tudo certo, naquele momento. 86
Valeu a pena lutar!
Bem, fui para Uberlândia e de lá para Araguari. Eu tinha aberto um barzinho mesmo, do lado da minha casa, que jeito? Tinha de despistar os “tiras” e, também, sobreviver minimamente, pagar as minhas despesas. E eis que dois outros tiras, que já rondavam a minha casa em Araguari, passaram a frequentar o meu boteco. Até que um dia pensei: “vou arrebentar com esses idiotas”. E vejam o que fiz. Como os dois sujeitos gostavam muito de beber pinga, eu lhes disse que tinha uma especial, com pimenta de sucupira. E que eu tinha uma outra, muito especial também, de gosto um pouquinho amargo, mas ótima de beber! Resultado: misturei soda cáustica na pinga e servi os tais sujeitos. Eles só falavam assim: “essa é boa mesma! Coloca mais!”. E iam engolindo aquele líquido. Bem, foi tiro e queda! Não demorou muito, os “tiras” começaram a ficar amarelos. Coincidência ou não, depois disso eles sumiram lá do meu boteco. E eu aprendi uma lição: a melhor arma para você se defender é o ataque. Apesar das dificuldades – inerentes à própria vida; ainda mais quando se trata de uma vida atribulada como a minha –, eu acredito que pude me organizar no plano financeiro e pessoal. Nunca é demais recordar que quando desembarquei no Rio de Janeiro, estava absolutamente só. Mesmo quando fugi para São Paulo, só estávamos eu, Altair e minha filha, praticamente isolados de tudo. Já em Araguari seria diferente: a família da Altair se dispôs a nos ajudar. E eu acredito que tenha ajudado a eles também. Talvez por ter mais vivência ou uma cabeça um pouco mais arejada, o fato é que pude orientar os irmãos da Altair. Um deles, por exemplo, pagava aluguel, tinha medo de comprar um imóvel e eu o convenci a fazê-lo, financiado. Esse irmão dela era um camarada muito competente, fazia cadeiras, mesas de sinuca. Com o tempo, ele ampliou bem suas vendas. Era um artesão de muito valor. Hoje, a família dele usufrui dessa casa – e eu fico feliz em ter contribuído para isso, nem que fosse de forma bem modesta. E devo dizer que eu mesmo nunca tinha tido nada na vida e que devo ao estímulo da família da Altair o fato de poder viver em paz em minha própria casa. Pois o aluguel corrói a renda do trabalhador – ter um canto próprio é realmente um alívio. Então, Araguari me deu isso e esta é mais uma razão para eu gostar da cidade.
Tomando o rumo de Minas
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XIV ACABOU A DITADURA. ATÉ QUE ENFIM
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om o fim da ditadura militar e a conquista da legalidade, em 1985, renovaram-se nossas esperanças. O PCB tinha sido o Partido pelo qual dedicamos o melhor dos nossos esforços. Ou seja, lutamos por ele o tempo todo, durante décadas, às vezes servindo mais aos nossos aliados do que a nós mesmos. Não vou esconder: quando reconquistamos o direito, depois de 38 anos de ilegalidade e clandestinidade, de voltarmos a atuar à luz do dia, foi uma alegria muito grande. Ter a liberdade para falar abertamente, só quem passou pela experiência da repressão pode calcular o valor exato disso. Eu me sentia como que renovando todo aquele compromisso que havia assumido desde 1943, quando pus na cabeça que teria de contribuir para acabar com a miséria e a exploração, no Brasil e no mundo, e pôr fim à prepotência dos governantes das classes dominantes. Empolguei-me com essa nova legalidade do Partido e me entreguei de corpo e alma à tarefa de reorganizá-lo, sobretudo no estado de Minas Gerais, que adotei como meu. Foi também uma tarefa árdua essa. Éramos poucos, muito poucos. Havia o companheiro Paulo Elisiário Nunes, alagoano como eu, magro, quase que um feixe de ossos, mas brilhante, com uma inteligência muito aguda, um homem inteiramente dedicado ao nosso Partido, desde a juventude. Havia ainda o João de Deus Rocha, comunista de quatro costados.
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Muitos companheiros estavam ainda no exterior quando começamos a reorganizar o PCB em Minas. E outros foram se aproximando de nós, como o Juarez (Juca) Amorim e a Luzia Ferreira, companheira que presidiu a Câmara Municipal de Belo Horizonte, um motivo de orgulho para nós, e hoje é deputada estadual. Na minha visão, acredito que o Partido tinha, cada vez mais, condições de reunir forças para disputar o poder neste país, ocupando espaços políticos que, antes da legalidade, nos eram completamente vetados. Por isso, eu me candidatei a deputado. Mas não tendo sido eleito, acredito que tenha contribuído para levar as ideias comunistas às massas. Só o fato de a gente não precisar mais buscar abrigo no velho MDB, somente isso já era quase um alívio. Contudo, mal havíamos conquistado a legalidade para o PCB, desponta a crise do Muro de Berlim e da União Soviética. Apesar dos esforços de Mikhail Gorbachev e de outros camaradas seus da direção do PCUS, o chamado socialismo real desmoronou, ruindo como um castelo de cartas. Eu confesso que passei vários dias, senão meses, tentando entender o que ocorrera. Como é que um poder aparentemente tão forte, tão consolidado, como era o caso do soviético, ruía assim? Todo mundo poderia imaginar uma coisa dessas, menos eu. Com um Exército tão poderoso, com aquelas gerações todas que se forjaram na luta contra as invasões de todo tipo, e aquelas guerras de resistência contra as grandes potências, nunca passaria pela minha cabeça que a União Soviética pudesse desaparecer um dia. Mas o próprio desmoronamento do Muro de Berlim, dois anos antes, já indicava que a bipolaridade desabara no mundo e que a União Soviética corria perigo. Somente com o desenrolar do tempo é que fui compreender que se o poder, de um lado, ajuda a construir, ele também, de outro, pode se transformar em uma força negativa. Transcorridas mais de duas décadas do fim da União Soviética, já é possível fazer um certo balanço dessa experiência histórica. Acredito que, apesar de tudo, tenha tido muitos pontos ou aspectos positivos. Antes de tudo, a pátria de Lênin livrou o mundo do nazifascismo e isso decididamente não é pouco. Transformou o país na segunda potência mundial. Nunca podemos esquecer que a velha Rússia era então uma área muito atrasada, se comparada às partes centrais da Europa. Era preciso partir quase que do zero. Não foi nada fácil eletrificar o país, construir escolas, criar uma rede de hospitais para aten90
Valeu a pena lutar!
der à população, industrializar vastíssimas regiões, mergulhadas algumas delas no obscurantismo. Por outro lado, convém ressaltar que a URSS ajudou na libertação de povos da Ásia e da África, subjugados ao colonialismo, de que são exemplos maiores a China, o Vietnã, a África do Sul, e as antigas colônias de língua portuguesa. Apoiou uma nação como Cuba, quando esta se proclamou a primeira nação socialista das Américas. E o fez quase que incondicionalmente, despejando inúmeros recursos na Ilha. Apoiou ainda o Egito em sua reivindicação de construir e manter o Canal de Suez. Acho que o mundo ficou melhor com ela. Fiquei decepcionado, é claro, mas não desanimei. Acredito que o socialismo voltará à cena política mundial, só que com nova roupagem, recriado. Mais democrático, sem dúvida. Tenho ainda muitas esperanças nisso. O mundo mudou e não é mais possível querer impor as transformações pela força, de cima para baixo. A democracia caiu no agrado das massas populares, ainda mais nessa sociedade onde as chamadas redes sociais adquirem cada vez mais espaços. Quem aceitaria hoje um Pacto de Varsóvia? Poucos, acredito eu. Os gastos fabulosos com a política de defesa, gastos esses que se esvaíram com a queda do Muro de Berlim, não se justificam, sob hipótese alguma, aos olhos da nova geração no poder nos países do Leste europeu. Esses recursos poderão ser aplicados, hoje, no incremento à produção e na melhoria da qualidade de vida das populações presentes nessa região do globo. Mas é preciso atentar também para a crise que vem agora dos Estados Unidos e da própria Europa. Curiosamente, há setores advogando, como saída para a situação crítica em que a economia dessas regiões do mundo mergulhou, uma maior intervenção do Estado. Acredito que muita água vai rolar ainda por debaixo da ponte e que países como o Brasil terão um papel importante daqui para frente, inclusive no que tange à reinvenção de modelos econômicos mais socializantes. O socialismo democrático poderá ser uma alternativa um dia. Um socialismo que não seja imposto e, sim, consensual. Pois tanto o socialismo real quanto o chamado neoliberalismo já deram o que tinham de dar, a meu juízo. Não sei até quando irá o predomínio do capitalismo financeiro. Afinal, a História é ou não é feita de possibilidades? Temos de construir um socialismo que não seja imposto e, sim, construído pelas pessoas e de forma consensual, repito. Acabou a ditadura. Até que enfim
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XV MUDANDO O PARTIDO E NÃO DE PARTIDO
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própria formação do Partido Popular Socialista, no X Congresso do PCB, realizado em São Paulo, em janeiro de 1992, é um sintoma de que os comunistas brasileiros – ou os pós-comunistas brasileiros – estão à procura, desde essa época, de um modelo diferente de organização da sociedade e da própria economia. Por um lado, essa legenda, PPS, é bem próxima do antigo Partido Comunista, até porque muitos dos seus fundadores são oriundos do PCB. Mas não é só isso: no fundo, o PPS é herdeiro daquelas teses da chamada Declaração de Março de 1958, que propunha a superação do capitalismo a partir do terreno da democracia. Naquele então, perdemos as ilusões vanguardistas e percebemos que as mudanças só poderiam ser feitas pelo próprio povo. Sem a participação popular, nada poderia ser feito de realmente sólido. A nova sociedade socialista que queremos só pode ser edificada com base nesse pressuposto. Quando afirmo que o PPS é fruto dessa nova concepção, não quero dizer com isso que estou totalmente satisfeito com os rumos do meu Partido. A rigor, penso até que muitos companheiros nossos – militantes, mas também alguns dirigentes – não entenderam que um partido sem povo não está preparado para ir a lugar algum. Não constrói nada, muito menos uma nova sociedade. Se eu posso fazer uma crítica à nossa atuação, nesses últimos 20 anos, eu diria que o PPS está precisando ir aonde o povo está, como cantou certa vez Milton Nascimento. 93
Defendo que o que precisa ser feito, hoje em dia, é o seguinte: a direção central do Partido tem que lembrar, quase que diariamente, ao conjunto da militância, o porquê da nossa legenda, as razões da nossa especificidade, da nossa existência. Somos partidários de um socialismo democrático, aberto à ampla participação das pessoas. Todo partido político necessita de uma base de sustentação. Com o PPS, não é diferente. Assim, se quisermos, de fato, crescer política e eleitoralmente, teremos de nos apoiar em setores cada vez mais amplos do nosso povo. Como já estou com minha idade bastante avançada (95 anos), minha contribuição nos dias que correm é pequena. A vida muda de forma muito rápida e eu já não possuo, nem sequer de longe, a mesma energia de antes. Mas continuo na luta, tentando acompanhar esses novos tempos, buscando ainda ser útil. Afinal, para alguma coisa serve a experiência. E o pior erro para nós seria irmos a reboque dessa política equivocada – para dizer o mínimo – do Partido dos Trabalhadores. Nunca fomos e não somos social-democratas. Para fazer uma política de subserviência ao grande capital já existem outros partidos, entre os quais o próprio PT. Ao contrário, o que precisamos afirmar é nossa opção pelo socialismo. Hoje, eu vejo que há elementos de ruptura e elementos de continuidade em nosso Partido, no que tange ao nosso passado recente. Romper com uma visão autoritária de socialismo, me pareceu correto. Mas não poderíamos ter jogado fora a boa e velha prática do centralismo democrático. O medo do centralismo democrático entre nós gerou algo de muito ruim. Ou seja, um partido sem direção. Passamos de um polo a outro: de um excessivo ou rígido controle por parte da direção a quase uma ausência de comando partidário. Nem tanto ao céu nem tanto ao mar, já diz o ditado. Tendemos a ser hoje mais um partido de certos nomes – alguns grandes nomes, até figuras sem dúvida respeitáveis, extraordinárias – do que uma organização realmente estruturada, com um eixo e uma prática determinados. Uma Secretaria de Organização continua sendo imprescindível à vida orgânica ativa do Partido. Eu, portanto, diria que, nessa questão da direção partidária, estamos meio perdidos. Ainda não encontramos uma orientação que possa nos guiar nas lutas do presente. Eu considero o companheiro Roberto Freire um grande comunista, um homem totalmente dedicado ao nosso partido, mas uma andorinha só não faz verão. É preciso que aflorem outras lide94
Valeu a pena lutar!
ranças. Eu penso que o próprio Roberto, em um momento adequado, deveria levantar essa questão. Há um problema de fundo, ainda, e que é importante tentar ao menos abordá-lo neste livro. Tem que ver com a evolução da base material das sociedades modernas. Ela mudou muito, de algumas dezenas de anos para cá. Temos uma série de experiências bem sucedidas, como as cooperativas e, mais recentemente, um desenvolvimento muito apurado do trabalho por conta própria. Vejamos o exemplo das cooperativas. Quando eu comecei a estudar o marxismo, a ler os clássicos, como se dizia naquela época, eu me recordo que me impressionaram os escritos de Lênin sobre essa forma de organização do trabalho. Ele chegou a fazer propaganda desse sistema cooperativo. E o que é a cooperativa? Antes de mais nada, é o reconhecimento de que é preciso ter uma prática coletiva do trabalho, para que este funcione, de fato, nos dias atuais. Ninguém faz nada de forma isolada nesse mundo. E os trabalhadores das cooperativas, muitas vezes, reúnem seus meios de produção, fundindo-os em uma propriedade de novo tipo. Esse tipo de cooperação entre trabalhadores – da cidade ou do campo, pouco importa – tem crescido muito. O próprio capitalismo já não tem essa pureza toda, abrindo-se para uma série de experimentos, até para poder sobreviver. E isso se reflete até em uma nova correlação de forças no mundo. Há capitalismo e capitalismo. A atual política de blocos reflete bem isso. Há um bloco, liderado pelos Estados Unidos, o qual vem agregando o Canadá e o México, grosso modo. Como existe também um deslocamento em direção ao Pacífico, onde a força do Japão é incontestável. E ainda tem a China e a Índia. Em meio a tudo isso, o bloco sul-americano – o Mercosul – também busca um lugar ao sol. Então, onde está a centralização do capital, ao menos geográfica? Haverá ainda um eixo, como ocorreu há algumas dezenas de anos? Uma centralidade como antes, a qual provocou tantas guerras e tantos desequilíbrios? Duvido um pouco. E onde tudo isso vai dar? Em novas guerras? Também duvido um pouco, pois seria simplesmente a destruição da humanidade. As grandes potências talvez tenham perdido a capacidade ou a possibilidade de resolver tudo pela guerra, como antes. Aí entra, então, um elemento novo e imprescindível – a cooperação. De um capital com o outro, mas, Mudando o partido e não de partido
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mesmo assim, cooperação para poder sobreviver. O exemplo da indústria automobilística norte-americana chega a ser exemplar, nesse sentido. Alguns grupos tiveram de ceder frente a outros, caso contrário eles iriam se comer uns aos outros. Ninguém pode dar conta sozinho do gigantismo da produção no mundo atual, pois ninguém tem mais o monopólio da atividade produtiva. Nunca a produção esteve tão socializada, esta é que é a verdade. Com isso, novas oportunidades e possibilidades se abrem também para as lutas das pessoas. Pois uma boa resposta à globalização do capital é a própria globalização dos povos do mundo. Pois os de baixo também existem, e assim sendo resistem, lutam. Muitos sofrem com o desemprego, não têem muito a perder mais. Porém, é a massa de trabalhadores que dá sustentação a toda essa movimentação que aí está, a essa migração do capital, inclusive. A revolução científica e tecnológica tem de ser posta a serviço dos que trabalham e não necessariamente a serviço do grande capital. Assim, os de baixo buscarão formas de união, como as próprias cooperativas e certas lutas sindicais em curso no mundo já o indicam.
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Valeu a pena lutar!
XVI VALEU A PENA LUTAR!
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os tempos correntes, passo meus dias em Araguari, no Triangulo Mineiro, curtindo uma certa paz. Levo horas cuidando do meu quintal. Eu morava com meu neto, mas ele agora arrumou uma moça e foi morar com ela. É natural. E eu fiquei sozinho. Acordo muito cedo, leio, depois vou cuidar das plantas, falo com alguns companheiros ao telefone, frequento alguns amigos meus, na praça perto de casa. Converso com um, converso com outro, volto para casa, tomo banho, deito, leio, vejo televisão, quando eu acho que essa coisa toda está ficando muito chata, eu compro uma passagem e vou lá para Ribeirão Preto, passo uns dias lá na casa do filho. E, assim, vou levando a existência. Quando completei 89 anos, passei o comando do Diretório Municipal para os companheiros mais jovens. Já não era sem tempo. Mas continuo militando, comparecendo às reuniões do Diretório Nacional, o antigo Comitê Central nosso, do qual fiz parte oficialmente até 2009. Vou morrer dentro desse Partido, que abracei ainda na juventude. O PPS é bem conceituado na cidade. Mas devo dizer que não estou feliz com o que está ocorrendo no Partido de Araguari, neste momento. As pessoas quase não se reúnem mais. A região toda está muito complicada para nós. Não temos nenhum deputado federal em todo o chamado Triângulo Mineiro e isso me deixa muito preocupado. De toda forma, o nosso país avançou. Hoje, há muito mais democracia do que no passado. Éramos um país grande terri97
torialmente, mas habitado por poucos milhões de homens e mulheres. Em 1922, quando o Astrojildo Pereira lançou oficialmente o Partido Comunista, o texto, se não me engano, começava nessa linha: “Nós, 17 milhões de brasileiros...” Hoje, somos quase duzentos milhões! E eu pude assistir a toda essa transformação, inclusive demográfica. Vivemos com muito mais conforto do que antes. E o país obteve conquistas democráticas, também. Na minha época de juventude, no Brasil, só podia estudar até o ginasial quem fosse de classe média para cima. Ou seja, muito pouca gente. Mesmo as escolas primárias quase não existiam em muitos rincões. Quando muito, havia mais escolas particulares que públicas, uma vez que as prefeituras não criavam praticamente esses estabelecimentos pelo interior. Acredito que isso só se daria a partir do governo Vargas, ali no início da chamada Revolução de 30. O trabalhador não tinha quase direitos sociais e ganhava um salário ridículo, que nunca dava para alimentar a sua família – isso quando tinha salário. É claro que o consumo não tinha a intensidade que tem hoje, a capacidade de o país produzir naquela época era muito reduzida, se comparada com a de hoje. Mais para o Norte, você encontrava uma grande variedade de frutas, muitas vezes a base da alimentação das famílias mais pobres, que se valiam ainda dos córregos, abundantes àquela época no interior do Nordeste, por exemplo, suprindo-se de peixes. Na minha infância, eu me lembro de que a minha mãe só cozinhava carne uma vez por semana. O Brasil, nessa época, era apenas Rio de Janeiro, São Paulo, um pouco o Paraná, e olhe lá. Do Sul de Minas para São Paulo, que não é essa distância toda, o camarada levava um dia e meio para chegar, porque não tinha estrada. Dessa minha região até a Bahia, eu levei, certa vez, dois dias e meio para chegar. Da Bahia em diante, em direção ao Norte do país, o camarada ia de navio ou apelava para uma ferrovia muito precária, cujo trem ia parando em tudo quanto era estado do Nordeste, até desembocar em Fortaleza – e depois da capital cearense não tinha mais nada. Eu diria que a única coisa melhor, naquela época, era o pai de família chegar em casa, fazer seu cigarro de corda, sentar à frente de casa, na varanda, estando o vizinho do lado de fora. A vida corria assim, mais sossegada. Nem dá para comparar com essa correria de hoje. 98
Valeu a pena lutar!
Mas eu não sou um homem mergulhado no passado. O que passou, passou. E eu não quero que volte, pois a vida era pior, naquela fase. Eu quero que a roda continue a andar para frente. A cidade que não tem chaminé é uma cidade morta, se fôssemos parodiar uma obra célebre do Monteiro Lobato, sobre aquelas áreas que entraram em decadência em São Paulo, com o declínio das fazendas de café. Só não avançamos mais porque partimos de um patamar muito precário em matéria de educação. Temos dificuldades, por isso, de acompanhar a revolução científica e tecnológica em curso, que provoca a automação e a robotização de setores imensos da atividade produtiva. O mundo hoje é outro, não é só o Brasil não. A revolução científica só não avançou mais porque éramos um país atrasadíssimo na preparação das nossas gerações a fim de enfrentarem o novo que chegava vindo de todos os lugares. Eu sou um velho, minha cabeça é muito diferente de muitos jovens de hoje – e não poderia ser de outra maneira. Mas procuro acompanhar as transformações. Acho que os países que não estão em guerra – a experiência que vivi na antiga União Soviética, por esse aspecto, me marcou muito – têm a obrigação de investir seus recursos em educação, a base de todo e qualquer desenvolvimento, qualquer que seja o período da humanidade, particularmente em nossos dias. No final deste meu relato, se fosse fazer um balanço da minha vida, eu diria que devo muito a esse Partido. Eu era um camponês pobre de Alagoas, um estado pequenino e pouco influente, e este Partido me fez ver o mundo e conhecer melhor as pessoas. Eu me recordo, por exemplo, quando o Paulo Elisiário e eu fomos ao encontro do então governador Tancredo Neves, no Palácio das Mangabeiras, em Belo Horizonte. Era o ano de 1984, época de grande agitação política em torno das Diretas-Já e ele queria contar com a nossa compreensão para a delicadeza do momento vivido pelo país. Em outras palavras: convinha não radicalizar naquela hora. Garantimos-lhe que o PCB entendia a singularidade do momento. É que ele estava preocupado com o grande número de bandeiras vermelhas nos comícios, dizendo que os militares estavam assustados com aquilo e que não convinha cutucá-los com vara curta. Paulo, com aquele jeito dele de índio, de caboclo alagoano, falou o seguinte: “Dr. Tancredo, nós estamos agradecidos pela lembrança e pela confiança que deposita em nosso Partido. Nós queremos dizer que a festa não é nossa, a festa é da democracia, e essa busca da Valeu a pena lutar!
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democracia é comandada por Vossa Excelência. Pode ficar seguro que a vossa ponderação será atendida”. Ele agradeceu e nos afirmou: “Eu não esperava de vocês outra coisa”. Para os democratas, o principal era acabar com a ditadura. Nós saímos do Palácio e eu ainda me lembro que comentei com o Paulo que estava preocupado com o governador, que não me pareceu muito bem de saúde, estava muito pálido, da cor da flor do algodão, quer dizer, amarelo. Paulo achou a mesma coisa. Poucos meses depois, foi derrotada a emenda Dante de Oliveira, que instituía as eleições diretas, e Tancredo foi o nome escolhido para representar uma coligação de partidos de oposição, reunidos na Aliança Democrática, e aceitou o desafio de se candidatar à Presidência da República. Em 15 de janeiro de 1985, foi eleito presidente do Brasil pelo voto indireto de um colégio eleitoral, mas adoeceu gravemente, em 14 de março do mesmo ano, véspera da posse, morrendo 39 dias depois, sem ter sido empossado. Gostaria de destacar duas homenagens que muito me sensibilizaram nessa atual fase da minha vida. A primeira delas ocorreu, em novembro de 2008, quando dirigentes e militantes do PPS, assim como pessoas amigas sem filiação partidária, promoveram, na sede estadual da organização, em Belo Horizonte, um fraterno encontro, com discursos e falas a meu respeito, seguido da entrega de uma placa honorífica pelos meus 90 anos, e uns comes-e-bebes, em que havia pão-de-queijo e cachaça da boa. A outra foi uma sessão solene na Câmara Municipal de Araguari, em novembro de 2009, oportunidade em que o vereador Wesley M. Lucas de Mendonça entregou-me sob aplausos de um salão repleto de convidados especiais, o título de Cidadão Honorário do município. Foram duas inesquecíveis emoções, uma do meu querido Partido e outra da minha atual e estimada cidade. O que posso afirmar para terminar esse meu relato? Valeu a pena lutar.
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Valeu a pena lutar!
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A FUNDAÇÃO DO PCB
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Congresso de fundação do Partido não foi coisa realizada de improviso, mas resultou de um trabalho de preparação que durou cerca de cinco meses. Por iniciativa e sob a direção do Grupo Comunista instalado no Rio a 7 de novembro de 1921, outros grupos se organizaram, nos centros operários mais importantes do país, com o objetivo precípuo de marchar para a fundação do Partido. Tinha-se em vista estabelecer certos pontos de apoio nas regiões onde havia alguma concentração de massa operária. Compreendia-se, por outro lado, que o Partido devia ter desde o início um caráter definido de partido político de âmbito nacional. O mensário Movimento Comunista, editado pelo Grupo do Rio, já em seu primeiro número (janeiro de 1922) explicava claramente o que se pretendia: “Com referência à organização partidária, desejamos e preconizamos a união, solidamente baseada num mesmo programa ideológico, estratégico e tático, das camadas mais conscientes do proletariado. As experiências próprias e alheias nos aconselham unidade de concentração de esforços e energias, tendo em vista coordenar, sistematizar, metodizar, a propaganda, a organização e a ação do proletariado”. Para melhor compreendermos o sentido dessas palavras, no momento em que foram escritas, devemos lembrar que a classe operária brasileira não possuía nenhuma tradição de organização política em partido e que os sindicatos operários de tendência revolucionária, em cujo seio nasceu o Partido eram organizações de orientação anarquista, baseadas numa estru103
tura ultraliberal, adversas a qualquer forma de direção unitária e centralizada. Os Grupos Comunistas eram constituídos, em sua absoluta maioria, por operários ativistas do movimento sindical, e assim desde o início se constituiu o Partido, sobre uma firme base proletária. Eis porque a preparação política e prática para a realização do 1° Congresso se desenvolveu em estreita ligação com a atividade dos comunistas dentro dos Sindicatos, com a sua participação nas lutas operárias e nas ações de massa. Não é demais chamar a atenção para o que havia de positivo neste aspecto da formação inicial do Partido. Simultaneamente, os comunistas sustentavam intensa campanha ideológica de esclarecimento e definição de princípios em luta aberta e cerrada contra a ideologia anarquista até então predominante. A formação do partido se processou, de tal sorte, em pleno fogo das lutas de classe e, ao mesmo tempo, sob o fogo de uma dura luta ideológica, que era o reflexo, no Brasil, e segundo as condições brasileiras, da luta ideológica travada no plano mundial pela III Internacional. Fundado definitivamente o Partido, no 1° Congresso, os Grupos passaram a constituir suas organizações locais, já agora estruturadas em moldes centralizados, isto é, com a sua subordinação a uma direção única, de acordo com os estatutos então adotados. O mensário Movimento Comunista passou a ser editado pela direção nacional como órgão do partido, e em suas páginas podemos encontrar algumas indicações sobre a vida e a atuação do Partido em seus primeiros meses de existência como tal. Continuando a orientação já seguida anteriormente pelos Grupos, os comunistas intensificaram sua atuação dentro dos sindicatos operários, através de líderes e ativistas sindicais que haviam aderido ao Partido. Em aplicação da linha partidária, os comunistas batiam-se pela unidade sindical, independente de diferenças ideológicas e políticas, como condição básica para o êxito das ações de massa. A luta ideológica de crítica à orientação anarquista era sobretudo uma luta contra o sectarismo, fator de divisionismo, isolamento e impotência. “É imprescindível levar em conta as lições do passado” – lia-se em editorial do Movimento Comunista consagrado ao problema de reorganização sindical – “Se não queremos incidir nas mesmas falhas e nos mesmos erros, que inevitàvelmente nos levariam às mesmíssimas derrotas”. 104
Valeu a pena lutar!
COLUNA PRESTES – 1924. O MANIFESTO DE SANTO ÂNGELO
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chegada a hora solene de contribuirmos com nosso valoroso auxílio para a grande causa nacional. Há 4 meses a fio que os heróis de São Paulo vêm se batendo heroicamente para derrubar o governo de ódios e de perseguições que só têm servido para dividir a família brasileira, lançando irmãos contra irmãos como inimigos encarniçados. Todo o Brasil, de Norte a Sul, ardentemente deseja, no íntimo de sua consciência, a vitória dos revolucionários, porque eles lutam por amor do Brasil, porque eles querem que o voto do povo seja secreto, que a vontade soberana do povo seja uma verdade respeitada nas urnas, porque eles querem que sejam confiscadas as grandes fortunas feitas por membros do governo à custa dos dinheiros do Brasil, porque eles querem que os governos tratem menos da politicagem e cuidem mais do auxílio ao Povo laborioso que numa mescla sublime de brasileiros e estrangeiros, irmanados por um mesmo ideal, vive trabalhando honestamente pela grandeza do Brasil. Todos desejam a vitória completa dos revolucionários, porque eles querem o Brasil forte e unido, porque eles querem pôr em liberdade heróis oficiais da revolta de 5 de Julho de 1922, presos porque num ato de patriotismo, quiseram derrubar o governo Epitácio, o que esvaziou criminosamente o nosso tesouro, e porque quiseram evitar a subida do Governo Bernardes, que tem reinado à custa do generoso sangue brasileiro.
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Todos sabem hoje, apesar da censura da Imprensa e do Telégrafo, apesar das mentiras oficiais espalhadas por toda a parte, que os revolucionários têm recebido verdadeira consagração por onde têm passado e que até hoje não foram batidos. Todos sabem que eles se retiraram para dar um descanso à tropa, que eles dispõem de toda a artilharia de São Paulo, ainda intacta, que dispõem de 20 milhões de tiros e de 5 mil fuzis novos, e que ainda não entraram em ação, que eles estão senhores da parte sul de Mato Grosso, a mais rica, de grande parte do Paraná, perfeitamente aparelhadas e que agora, voltam novamente à luta, mais fortes do que nunca. Todos sabem hoje que o Governo organizou sucessivamente 8 colunas para batê-los e que foi forçado a desorganizá-las novamente porque as tropas do Exército se negavam a combatê-los e os demais, que os combateram, foram dizimados como aconteceu com o Batalhão da Marinha e com a nossa Brigada Militar, agora, depois da entrada em seção da coluna Rondon é o próprio governo quem confessa não ser mais possível dominar a revolução no Brasil, porque a vitória dela é já uma aspiração nacional. E o Povo Gaúcho, altaneiro e altivo, de grandes tradições a zelar, sempre o pioneiro de grandes causas nacionais, levanta-se hoje como um só homem e brada: Já é tempo de fazer o governo respeitar a vontade do povo, já é tempo de restabelecer a harmonia na família brasileira, já é tempo de lucrarmos não peito a peito, mas sim ombro a ombro, para restabelecermos a situação financeira do Brasil, para recobrar o dinheiro que os nossos maus governos nos roubaram e podermos, assim, evitar que, em 1927, o Governo Inglês venha tomar conta das nossas alfândegas e das nossas ricas colônias para cobrar a dívida do Brasil. Hoje, 29 de outubro, por ordem do general Isidoro Dias Lopes, levantam-se todas as tropas do Exército das guarnições de Santo Ângelo, São Luiz, São Borja, ltaquí, Uruguaiana, Sant’Anna, Alegrete, Don Pedrito, Jaguarão e Bagé, hoje irmanados pela mesma causa e pelos mesmos ideais levantam-se as forças revolucionárias gaúchas da Palmeira, de Nova Wutemberg, Ijuí, São Nicolau, São Luiz, São Borja, Santiago e de toda a fronteira até Pelotas e, hoje entram no nosso Estado os chefes revolucionários Honório Lemos e Zeca Netto, tudo de acordo com o grande plano já organizado. 106
Valeu a pena lutar!
E, desta mescla, desta comunhão do Exército e do Povo, com nacionais e estrangeiros, resultará a rápida terminação da luta armada no Brasil, para honra nossa e glória dos nossos ideais e de nossos foros de povo civilizado e altivo. De acordo com o plano geral, as tropas de Santo Ângelo talvez pouco demorem aqui, mas durante este tempo a ordem, o respeito a propriedade e a família serão mantidos rigorosamente e para isso o governo revolucionário provisório conta com o auxílio da própria população. Não queremos perturbar a vida da população, porque amamos e queremos a ordem como base do progresso. Podem, pois, estar todos calmos que nada acontecerá de anormal. São convocados todos os reservistas do Exército a se apresentarem ao quartel do 1º Batalhão Ferroviário, e fica aberto o voluntariado. Todos os possuidores de automóveis, carroças e cavalos deverão imediatamente pô-los à disposição do 1º Batalhão Ferroviário e serão em todos os seus direitos respeitados. Todas as requisições serão documentadas e assinadas sob a responsabilidade do Ministro da Guerra. Pelo Governo Revolucionário do Brasil Capitão Luiz Carlos Prestes – 29/10/1924
Coluna Prestes – 1924. O Manifesto de Santo Ângelo
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O ESTADO NOVO
À Nação O homem de Estado, quando as circunstâncias impõem uma decisão excepcional, de amplas repercussões e profundos efeitos na vida do país, acima das deliberações ordinárias da atividade governamental, não pode fugir ao dever de tomá-la, assumindo, perante a sua consciência e a consciência dos seus concidadãos, as responsabilidades inerentes à alta função que lhe foi delegada pela confiança nacional. A investidura na suprema direção dos negócios públicos não envolve, apenas, a obrigação de cuidar e prover as necessidades imediatas e comuns da administração. As exigências do momento histórico e as solicitações do interesse coletivo reclamam, por vezes, imperiosamente, a adoção de medidas que afetam os pressupostos e convenções do regime, os próprios quadros institucionais, os processos e métodos de governo. Por certo, essa situação especialíssima só se caracteriza sob aspectos graves decisivos nos períodos de profunda perturbação política, econômica e social. A contingência de tal ordem chegamos, infelizmente, como resultante de acontecimentos conhecidos, estranhos à ação governamental, que não os provocou nem dispunha de meios adequados para evitá-los ou remover-lhes as funestas consequências. Oriundo de um movimento revolucionário de amplitude nacional e mantido pelo poder constituinte da Nação, o governo 108
continuou, no período legal, a tarefa encetada de restauração econômica e financeira e, fiei às convenções do regime, procurou criar, pelo alheamento às competições partidárias, uma atmosfera de serenidade e confiança, propícia ao desenvolvimento das instituições democráticas. Enquanto assim procedia, na esfera estritamente política, aperfeiçoava a obra de justiça social a que se votara desde o seu advento, pondo em prática um programa isento de perturbações e capaz de atender às justas reivindicações das classes trabalhadoras, de preferência as concernentes às garantias elementares de estabilidade e segurança econômica, sem as quais não pode o indivíduo tornar-se útil à coletividade e compartilhar dos benefícios da civilização. Contrastando com as diretrizes governamentais, inspiradas sempre no sentido construtivo e propulsor das atividades gerais, os quadros políticos permaneciam adstritos aos simples processos de aliciamento eleitoral. Tanto os velhos partidos, como os novos em que os velhos se transformaram sob novos rótulos, nada exprimiam ideologicamente, mantendo-se à sombra de ambições pessoais ou de predomínios localistas, a serviço de grupos empenhados na partilha dos despojos e nas combinações oportunistas em torno de objetivos subalternos. A verdadeira função dos partidos políticos, que consiste em dar expressão e reduzir a princípios de governo as aspirações e necessidades coletivas, orientando e disciplinando as correntes de opinião, essa, de há muito, não a exercem os nossos agrupamentos partidários tradicionais. O fato é sobremodo sintomático se lembrarmos que da sua atividade depende o bom funcionamento de todo sistema baseado na livre concorrência de opiniões e interesses. Para comprovar a pobreza e desorganização da nossa vida política, nos moldes em que se vem processando, aí está o problema de sucessão presidencial, transformado em irrisória competição de grupos, obrigados a operar pelo suborno e pelas promessas demagógicas, diante de completo desinteresse e total indiferença das forças vivas da Nação. Chefes de governos locais, capitaneando desassossegos e oportunismos, transformaram-se, de um dia para outro, à revelia da vontade popular, em centros de decisão política, cada qual decretando uma candidatura, como se a vida do país, na sua significação coletiva, O Estado Novo
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fosse simples convencionalismo, destinado a legitimar as ambições do caudilhismo provinciano. Nos períodos de crise, como o que atravessamos, a democracia de partidos, em lugar de oferecer segura oportunidade de crescimento e progresso, dentro das garantias essenciais à vida e à condição humana, subverte a hierarquia, ameaça a unidade pátria e põe em perigo a existência da Nação, extremando as competições e acendendo o facho da discórdia civil. Acresce, ainda, notar que, alarmados pela atoarda dos agitadores profissionais e diante da complexidade da luta política, os homens que não vivem dela mas do seu trabalho deixam os partidos entregues aos que vivem deles, abstendo-se de participar da vida pública, que só poderia beneficiar-se com a intervenção dos elementos de ordem e de ação construtora. O sufrágio universal passa, assim, a ser instrumento dos mais audazes e máscara que mal dissimula o conluio dos apetites pessoais e de corrilhos. Resulta daí não ser a economia nacional organizada que influi ou prepondera nas decisões governamentais, mas as forças econômicas de caráter privado, insinuadas no poder e dele se servindo em prejuízo dos legítimos interesses da comunidade. Quando os partidos tinham objetivos de caráter meramente político, com a extensão de franquias constitucionais e reivindicações semelhantes, as suas agitações ainda podiam processar-se à superfície da vida social, sem perturbar as atividades do trabalho e da produção. Hoje, porém, quando a influência e o controle do Estado sobre a economia tendem a crescer, a competição política tem por objetivo o domínio das forças econômicas, e a perspectiva da luta civil, que espia, a todo momento, os regimes dependentes das flutuações partidárias, é substituída pela perspectiva incomparavelmente mais sombria da luta de classes. Em tais circunstâncias, a capacidade de resistência do regime desaparece e a disputa pacífica das urnas é transportada para o campo da turbulência agressiva e dos choques armados. É dessa situação perigosa que nos vamos aproximando. A inércia do quadro político tradicional e a degenerescência dos partidos em clãs facciosos são fatores que levam, necessariamente, a armar o problema político, não em termos democráticos, mas em termos de violência e de guerra social. Os prepa110
Valeu a pena lutar!
rativos eleitorais foram substituídos, em alguns estados, pelos preparativos militares, agravando os prejuízos que já vinha sofrendo a Nação, em consequência da incerteza e instabilidade criadas pela agitação facciosa. O caudilhismo regional, dissimulado sob aparências de organização partidária, arma-se para impor à Nação as suas decisões, constituindo-se, assim, em ameaça ostensiva à unidade nacional. Por outro lado, as novas formações partidárias surgidas em todo o mundo, por sua própria natureza refratárias aos processos democráticos, oferecem perigo imediato para as instituições, exigindo, de maneira urgente e proporcional à virulência dos antagonismo, o reforço do poder central. Isto mesmo já se evidenciou por ocasião do golpe extremista de 1935, quando o Poder Legislativo foi compelido a emendar a Constituição e a instituir o estado de guerra, que, depois de vigorar mais de um ano, teve de ser restabelecido por solicitação das forças armadas, em virtude do recrudescimento do surto comunista, favorecido pelo ambiente turvo dos comícios e da caça ao eleitorado. A consciência das nossas responsabilidades indicava, imperativamente, o dever de restaurar a autoridade nacional, pondo termo a essa condição anômala da nossa existência política, que poderá conduzir-nos à desintegração, como resultado final dos choques de tendências inconciliáveis e do predomínio dos particularismos de ordem local. Colocada entre as ameaças caudilhescas e o perigo das formações partidárias sistematicamente agressivas, a Nação, embora tenha por si o patriotismo da maioria absoluta dos brasileiros e o amparo decisivo e vigilante das forças armadas, não dispõe de meios defensivos eficazes dentro dos quadros legais, vendo-se obrigada a lançar mão, de modo normal, das medidas excepcionais que caracterizam o estado de risco iminente da soberania nacional e da agressão externa. Essa é a verdade, que precisa ser proclamada, acima de temores e subterfúgios. A organização constitucional de 1934, vazada nos moldes clássicos do liberalismo e do sistema representativo, evidenciara falhas lamentáveis, sob esse e outros aspectos. A Constituição estava, evidentemente, antedatada em relação ao espírito do tempo. Destinava-se a uma realidade que deixara de existir. Conformada em princípios cuja validade não resistira ao abalo da crise mundial, expunha as instituições por ela mesma criadas à investida dos seus inimigos, com a agravante de enfraquecer e anemizar o poder público. O Estado Novo
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O aparelhamento governamental instituído não se ajustava às exigências da vida nacional; antes, dificultava-lhe a expansão e inibia-lhe os movimentos. Na distribuição das atribuições legais, não se colocara, como se devera fazer, em primeiro plano, o interesse geral; aluíram-se as responsabilidades entre os diversos poderes, de tal sorte que o rendimento do aparelho do Estado ficou reduzido ao mínimo e a sua eficiência sofreu danos irreparáveis, continuamente expostos à influência dos interesses personalistas e das composições políticas eventuais. Não obstante o esforço feito para evitar os inconvenientes das assembleias exclusivamente políticas, o Poder Legislativo, no regime da Constituição de 1934, mostrou-se irremediavelmente inoperante. Transformada a Assembleia Nacional Constituinte em Câmara de Deputados, para elaborar, nos precisos termos do dispositivo constitucional, as leis complementares constantes da Mensagem do Chefe do Governo Provisório, de 10 de abril de 1934, não se conseguira, até agora, que qualquer delas fosse ultimada, mau grado o funcionamento quase ininterrupto das respectivas sessões. Nas suas pastas e comissões se encontram, aguardando deliberação, numerosas iniciativas de inadiável necessidade nacional, como sejam: o Código Penal, o Código do Ar, o Código das Águas, o Código de Minas, o Código Penal, o Código do Processo, os projetos da Justiça do Trabalho, da criação dos Institutos do Mate e do Trigo etc. Não deixaram, entretanto, de ter andamento e aprovação as medidas destinadas a favorecer interesses particulares, algumas, evidentemente, contrárias aos interesses nacionais e que, por isso mesmo, receberam veto do Poder Executivo. Por seu turno, o Senado Federal permanecia no período de definição das suas atribuições, que constituíam motivo de controvérsia e de contestação entre as duas casas legislativas. A fase parlamentar da obra governamental se processava antes como um obstáculo do que como uma colaboração digna de ser conservada nos termos em que a estabelecera a Constituição de 1934. Função elementar e, ao mesmo tempo, fundamental, a própria elaboração orçamentária nunca se ultimou nos prazos regimentais, com o cuidado que era de exigir. Todos os esforços realizados pelo Governo no sentido de estabelecer o equilíbrio orçamentário se tornavam inúteis, desde que os representan112
Valeu a pena lutar!
tes da Nação agravavam sempre o montante das despesas, muitas vezes, em benefício de iniciativas ou de interesses que nada tinham a ver com o interesse público. Constitui ato de estrita justiça consignar que em ambas as casas do Poder Legislativo existiam homens cultos, devotados e patriotas, capazes de prestar esclarecido concurso às mais delicadas funções públicas, tendo, entretanto, os seus esforços invalidados pelos próprios defeitos de estrutura do órgão a que não conseguiam emprestar as suas altas qualidades pessoais. A manutenção desse aparelho inadequado e dispendioso era de todo desaconselhável. Conservá-lo seria, evidentemente, obra de espírito acomodatício e displicente, mais interessado pelas acomodações da clientela política do que pelo sentimento das responsabilidades assumidas. Outros, por certo, prefeririam transferir aos ombros do Legislativo os ônus e dificuldades que o Executivo terá de enfrentar para resolver diversos problemas de grande relevância e de graves repercussões, visto afetarem poderosos interesses organizados, interna e externamente. Compreende-se, desde logo, que me refiro, entre outros, aos da produção cafeeira e regularização da nossa dívida externa. O Governo atual herdou os erros acumulados em cerca de vinte anos de artificialismo econômico, que produziram o efeito catastrófico de reter stocks e valorizar o café, dando em resultado o surto da produção noutros países, apesar dos esforços empreendidos para equilibrar, por meio de quotas, a produção e o consumo mundial da nossa mercadoria básica. Procurando neutralizar a situação calamitosa encontrada em 1930, iniciamos uma política de descongestionamento, salvando da ruína a lavoura cafeeira e encaminhando os negócios de modo que fosse possível restituir, sem abalos, o mercado do café às suas condições normais. Para atingir esse objetivo, cumpria aliviar a mercadoria dos pesados ônus que a encareciam, o que será feito sem perda de tempo, resolvendo-se o problema da concorrência no mercado mundial e marchando decisivamente para a liberdade de comércio do produto. No concernente à dívida externa, o serviço de amortização e juros constitui questão vital para a nossa economia. Enquanto foi possível o sacrifício da exportação de ouro, a fim de satisfazer as prestações estabelecidas, o Brasil não se recusou a fazê-lo. É claro, porém, que os pagamentos, no exterior, só podem ser realizados com o estado da balança comercial, Sob a apaO Estado Novo
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rência de moeda, que vela e disfarça a natureza do fenômeno de base nas relações econômicas, o que existe, em última análise, é a permuta de produtos. A transferência de valores destinados a atender a esses compromissos pressupõe, naturalmente, um movimento de mercadorias do país devedor para os seus clientes no exterior, em volume suficiente para cobrir as responsabilidades contraídas. Nas circunstâncias atuais, dados os fatores que tendem a criar restrições à livre circulação das riquezas no mercado mundial, a aplicação de recursos em condições de compensar a diferença entre as nossas disponibilidades e as nossas obrigações só pode ser feita mediante o endividamento crescente do país e a debilitação da sua economia interna. Não é demais repetir que os sistemas de quotas, contingenciamentos e compensações, limitando, dia a dia, o movimento e volume das trocas internacionais, têm exigido, mesmo nos países de maior rendimento agrícola e industrial, a revisão das obrigações externas. A situação impõe, no momento, a suspensão do pagamento de juros e amortizações, até que seja possível reajustar os compromissos sem dessangrar e empobrecer o nosso organismo econômico. Não podemos por mais tempo continuar a solver dívidas antigas pelo processo ruinoso de contrair outras mais vultosas, o que nos levaria, dentro de pouco, à dura contingência de adotar solução mais radical. Para fazer face às responsabilidades decorrentes dos nossos compromissos externos, lançamos sobre a produção nacional o pesado tributo que consiste no confisco cambial, expresso na cobrança de uma taxa oficial de 35%, redundando, em última análise, em reduzir de igual percentagem os preços, já tão aviltados, das mercadorias de exportação. É imperioso pôr um termo a esse confisco, restituindo o comércio de câmbio às suas condições normais. As nossas disponibilidades no estrangeiro, absorvidas, na sua totalidade, pelo serviço da dívida e não bastando, ainda assim, às exigências, dão em resultado nada nos sobrar para a renovação do aparelhamento econômico, do qual depende todo o progresso nacional. Precisamos equipar as vias férreas do país, de modo a oferecerem transporte econômico aos produtos das diversas regiões, bem como construir novos traçados e abrir rodovias, prosseguindo na execução do nosso plano de comunicações, particularmente no que se refere à penetração do hinterland e articulação dos centros de consumo interno com os escoadouros de 114
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exportação. Por outro lado, essas realizações exigem que se instale a grande siderurgia, aproveitando a abundância de minério, num vasto plano de colaboração do Governo com os capitais estrangeiros que pretendam emprego remunerativo, e fundando, de maneira definitiva, as nossas indústrias de base, em cuja dependência se acha o magno problema da defesa nacional. É necessidade inadiável, também, dotar as forças armadas de aparelhamento eficiente, que as habilite a assegurar a integridade e a independência do país, permitindo-lhe cooperar com as demais nações do Continente na obra de preservação da paz. Para reajustar o organismo político às necessidades econômicas do país e garantir as medidas apontadas, não se oferecia outra alternativa além da que foi tomada, instaurando-se um regime forte, de paz, de justiça e de trabalho. Quando os meios de governo (3) não correspondem mais às condições de existência de um povo, não há outra solução senão mudá-los, estabelecendo outros moldes de ação. A Constituição (4) hoje promulgada criou uma nova estrutura legal, sem alterar o que se considera substancial nos sistemas de opinião: manteve a forma democrática, o processo representativo e a autonomia dos Estados, dentro das linhas tradicionais da federação orgânica. Circunstâncias de diversas naturezas apressaram o desfecho deste movimento, que constitui manifestação de vitalidade das energias nacionais extra-partidárias. O povo o estimulou e acolheu com inequívocas demonstrações de regozijo, impacientado e saturado pelos lances entristecedores da política profissional; o Exército e a Marinha o reclamaram como imperativo da ordem e da segurança nacional. Ainda ontem, culminando nos propósitos demagógicos, um dos candidatos presidenciais mandava ler da tribuna da Câmara dos Deputados documento francamente sedicioso e o fazia distribuir nos quartéis das corporações militares, que, num movimento de saudável reação às incursões facciosas, souberam repelir tão aleivosa exploração, discernindo, com admirável clareza, de que lado estavam, no momento, os legítimos reclamos da consciência brasileira. Tenho suficiente experiência das asperezas do poder para deixar-me seduzir pelas suas exterioridades e satisfações de O Estado Novo
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caráter pessoal. Jamais concordaria, por isso, em permanecer à frente dos negócios públicos se tivesse de ceder quotidianamente às mesquinhas injunções da acomodação política, sem a certeza de poder trabalhar, com real proveito, pelo maior bem da coletividade. Prestigiado pela confiança das forças armadas e correspondendo aos generalizados apelos dos meus concidadãos, só acedí em sacrificar o justo repouso a que tinha direito, ocupando a posição em que me encontro, com o firme propósito de continuar servindo à Nação. As decepções que o regime derrotado trouxe ao país não se limitaram ao campo moral e político. A economia nacional, que pretendera participar das responsabilidades do Governo, foi também frustrada nas suas justas aspirações. Cumpre restabelecer, por meio adequado, a eficácia da sua intervenção e colaboração na vida do Estado. Ao invés de pertencer a uma assembleia política, em que é óbvio, não se encontram os elementos essenciais às suas atividades, a representação profissional deve constituir um órgão de cooperação na esfera do poder público, em condições de influir na propulsão das forças econômicas e de resolver o problema do equilíbrio entre o capital e o trabalho. Considerando de frente e acima dos formalismos jurídicos a lição dos acontecimentos, chega-se a uma conclusão iniludível, a respeito da gênese política das nossas instituições: elas não corresponderam, desde 1889, aos fins a que se destinavam. Um regime que, dentro dos ciclos prefixados de quatro anos, quando se apresentava o problema sucessório presidencial, sofria tremendos abalos, verdadeiros traumatismos mortais, dada a inexistência de partidos nacionais e de princípios doutrinários que exprimissem as aspirações coletivas, certamente não valia o que representava e operava, apenas, em sentido negativo. Numa atmosfera privada de espírito público, como essa em que temos vivido, onde as instituições se reduziam às aparências e aos formalismos, não era possível realizar reformas radicais sem a preparação prévia dos diversos fatores da vida social. Torna-se impossível estabelecer normas sérias e sistematização eficiente à educação, à defesa e aos próprios empreendimentos de ordem material, se o espírito que rege a política geral não estiver conformado em princípios que se ajustem às reali116
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dades nacionais. Se queremos reformar, façamos, desde logo, a reforma política. Todas as outras serão consectárias desta, e sem ela não passarão de inconsistentes documentos de teoria política. Passando do Governo propriamente dito ao processo da sua constituição, verificava-se, ainda, que os meios não correspondiam aos fins. A fase culminante do processo político sempre foi da escolha de candidato à Presidência da República. Não existia mecanismo constitucional prescrito a esse processo. Como a função de escolher pertencia aos partidos e como estes se achavam reduzidos a uma expressão puramente nominal, encontrávamo-nos em face de uma solução impossível, por falta de instrumento adequado. Daí as crises periódicas do regime, pondo, quadrienalmente, em perigo a segurança das instituições. Era indispensável preencher a lacuna, incluindo na própria Constituição o processo de escolha dos candidatos à suprema investidura, de maneira a não se reproduzir o espetáculo de um corpo político desorganizado e perplexo, que não sabe, sequer, por onde começar o ato em virtude do qual se define e afirma o fato mesmo da sua existência. A campanha presidencial, de que tivemos, apenas, um tímido ensaio, não podia, assim, encontrar, como efetivamente não encontrou, repercussão no país. Pelo seu silêncio, a sua indiferença, o seu desinteresse, a Nação pronunciou julgamento irrecorrível sobre os artifícios e as manobras a que se habituou a assistir periodicamente, sem qualquer modificação no quadro governamental que se seguia às contendas eleitorais. Todos sentem, de maneira profunda, que o problema de organização do Governo deve processar-se em plano diferente e que a sua solução transcende os mesquinhos quadros partidários, improvisados nas vésperas dos pleitos, com o único fim de servir de bandeira a interesses transitoriamente agrupados para a conquista do poder. A gravidade da situação que acabo de escrever em rápidos traços está na consciência de todos os brasileiros. Era necessário e urgente optar pela continuação desse estado de coisas ou pela continuação do Brasil. Entre a existência nacional e a situação de caos, de irresponsabilidade e desordem em que nos encontrávamos, não podia haver meio termo ou contemporização. Quando as competições políticas ameaçam degenerar em guerra civil, é sinal de que o regime constitucional perdeu o seu O Estado Novo
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valor prático, subsistindo, apenas, como abstração. A tanto havia chegado o país. A complicada máquina de que dispunha para governar-se não funcionava. Não existiam órgãos apropriados através dos quais pudesse exprimir os pronunciamentos da sua inteligência e os decretos da sua vontade. Restauremos a Nação na sua autoridade e liberdade de ação: – na sua autoridade, dando-lhe os instrumentos de poder real e efetivo com que possa sobrepor-se às influências desagregadoras, internas ou externas; na sua liberdade, abrindo o plenário do julgamento nacional sobre os meios e os fins do Governo e deixando-a construir livremente a sua história e o seu destino.
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A CARTA TESTAMENTO DE GETÚLIO VARGAS
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ais uma vez, as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se novamente e se desencadeiam sobre mim.Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam; e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes. Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao Governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário-mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar a liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobras, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobras foi obstaculizada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre. Não querem que o povo seja independente. Assumi o Governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores de trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Na declaração de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a 119
resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia a ponto de sermos obrigados a ceder. Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater a vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no meu pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto, O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história. Getúlio Vargas
Rio de Janeiro, 24 de agosto de 1954
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Valeu a pena lutar!
A CARTA RENÚNCIA DE JÂNIO QUADROS
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ui vencido pela reação e assim deixo o governo. Nestes sete meses cumpri o meu dever. Tenho-o cumprido dia e noite, trabalhando infatigavelmente, sem prevenções, nem rancores. Mas baldaram-se os meus esforços para conduzir esta nação, que pelo caminho de sua verdadeira libertação política e econômica, a única que possibilitaria o progresso efetivo e a justiça social, a que tem direito o seu generoso povo. Desejei um Brasil para os brasileiros, afrontando, nesse sonho, a corrupção, a mentira e a covardia que subordinam os interesses gerais aos apetites e às ambições de grupos ou de indivíduos, inclusive do exterior. Sinto-me, porém, esmagado. Forças terríveis levantam-se contra mim e me intrigam ou infamam, até com a desculpa de colaboração. Se permanecesse, não manteria a confiança e a tranquilidade, ora quebradas, indispensáveis ao exercício da minha autoridade. Creio mesmo que não manteria a própria paz pública. Encerro, assim, com o pensamento voltado para a nossa gente, para os estudantes, para os operários, para a grande família do Brasil, esta página da minha vida e da vida nacional. A mim não falta a coragem da renúncia. Saio com um agradecimento e um apelo. O agradecimento é aos companheiros que comigo lutaram e me sustentaram dentro e fora do governo e, de forma especial, às Forças Armadas, cuja conduta exemplar, em todos os instantes, proclamo nesta 121
oportunidade. O apelo é no sentido da ordem, do congraçamento, do respeito e da estima de cada um dos meus patrícios, para todos e de todos para cada um. Somente assim seremos dignos deste país e do mundo. Somente assim seremos dignos de nossa herança e da nossa predestinação cristã. Retorno agora ao meu trabalho de advogado e professor. Trabalharemos todos. Há muitas formas de servir nossa pátria. Brasília, 25 de agosto de 1961
Jânio Quadros
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Valeu a pena lutar!
O ATO INSTITUCIONAL N. 5
O
Presidente da República Federativa do Brasil, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e
Considerando que a Revolução Brasileira de 31 de março de 1964 teve, conforme decorre dos Atos com os quais se institucionalizou, fundamentos e propósitos que visavam a dar ao País um regime que, atendendo às exigências de um sistema jurídico e político, assegurasse autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana, no combate à subversão e às ideologias contrárias às tradições de nosso povo, na luta contra a corrupção, buscando, deste modo, “os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direto e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa Pátria” (Preâmbulo do Ato Institucional nº 1, de 9 de abril de 1964); Considerando que o Governo da República, responsável pela execução daqueles objetivos e pela ordem e segurança internas, só não pode permitir que pessoas ou grupos anti-revolucionários contra ela trabalhem, tramem ou ajam, sob pena de estar faltando a compromissos que assumiu com o povo brasileiro, bem como porque o Poder Revolucionário, ao editar o Ato Institucional nº 2, afirmou categoricamente, que “não se disse que a Revolução foi, mas que é e continuará” e, portanto, o processo revolucionário em desenvolvimento não pode ser detido; 123
Considerando que esse mesmo Poder Revolucionário, exercido pelo Presidente da República, ao convocar o Congresso Nacional para discutir, votar e promulgar a nova Constituição, estabeleceu que esta, além de representar “a institucionalização dos ideais e princípios da Revolução”, deveria “assegurar a continuidade da obra revolucionária” (Ato Institucional nº 4, de dezembro de 1966); Considerando, no entanto, que atos nitidamente subversivos, oriundos dos mais distintos setores políticos e culturais, comprovam que os instrumentos jurídicos, que a Revolução vitoriosa outorgou à Nação para sua defesa, desenvolvimento e bem-estar de seu povo, estão servindo de meios para combatê-la e destruí-la; Considerando que, assim, se torna imperiosa a adoção de medidas que impeçam sejam frustrados os ideais superiores da Revolução, preservando a ordem, a segurança, a tranquilidade, o desenvolvimento econômico e cultural e a harmonia política e social do País comprometidos por processos subversivos e de guerra revolucionária; Considerando que todos esses fatos perturbadores da ordem são contrários aos ideais e à consolidação do Movimento de Março de 1964, obrigando os que por ele se responsabilizaram e juraram defendê-lo a adotarem as providências necessárias, que evitem sua destruição. Resolve editar o seguinte Ato Institucional Art. 1º São mantidas a Constituição de 24 de janeiro de 1967 e as Constituições Estaduais, com as modificações constantes deste Ato Institucional. Art. 2º O Presidente da República poderá decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, por Ato Complementar, em estado de sítio ou fora dele, só voltando os mesmos a funcionar quando convocados pelo Presidente da República. § 1º Decretado o recesso parlamentar, o Poder Executivo correspondente fica autorizado a legislar em todas as matérias e exercer as atribuições previstas nas Constituições ou na Lei Orgânica dos Municípios. 124
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§ 2º Durante o período de recesso, os Senadores, os Deputados Federais e Estaduais e Vereadores só receberão a parte fixa de seus subsídios. § 3º Em caso de recesso da Câmara Municipal, a fiscalização financeira e orçamentária dos Municípios que não possuam Tribunal de Contas será exercida pelo do respectivo Estado, estendendo sua ação às funções de auditoria, julgamento de contas dos administradores e demais responsáveis por bens e valores públicos. Art. 3º O Presidente da República, no interesse nacional, poderá decretar a intervenção nos Estados e Municípios, sem as limitações previstas na Constituição. Parágrafo único. Os interventores nos Estados e Municípios serão nomeados pelo Presidente da República e exercerão todas as funções e atribuições que caibam, respectivamente, aos Governadores ou Prefeitos, e gozarão das prerrogativas, vencimentos e vantagens fixados em lei. Art. 4º No interesse de preservar a Revolução, o Presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, poderá suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais. Parágrafo único. Aos membros dos Legislativos federal, estaduais e municipais, que tiverem seus mandatos cassados, não serão dados substitutos, determinando-se o quórum parlamentar em função dos lugares efetivamente preenchidos. Art. 5º A suspensão dos direitos políticos, com base neste Ato, importa simultaneamente, em: I – cessação de privilégio de foro por prerrogativa de função; II – suspensão do direito de votar e de ser votado nas eleições sindicais; III – proibição de atividades ou manifestação sobre o assunto de natureza política; IV – aplicação, quando necessário, das seguintes medidas de segurança: a. liberdade vigiada; b. proibição de frequentar determinados lugares; c. domicílio determinado. O Ato Institucional N. 5
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§ 1º O Ato que decretar a suspensão dos direitos políticos poderá fixar restrições ou proibições relativamente ao exercício de quaisquer outros direitos públicos ou privados. § 2º As medidas de segurança de que trata o item IV deste artigo serão aplicadas pelo Ministro de Estado da Justiça, defesa a apreciação de seu ato pelo Poder Judiciário Art. 6º Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de: vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções por prazo certo. § 1º O Presidente da República poderá, mediante decreto, demitir, remover, aposentar ou pôr em disponibilidade quaisquer titulares das garantias referidas neste artigo, assim como empregados de autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista, e demitir, transferir para a reserva ou reformar militares ou membros das polícias militares, assegurados, quando for o caso, os vencimentos e vantagens proporcionais ao tempo de serviço. § 2º O disposto neste artigo e seu § 1º aplica-se, também, nos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios. Art. 7º O Presidente da República, em qualquer dos casos previstos na Constituição, poderá decretar o estado de sítio e prorrogá-lo, fixando o respectivo prazo. Art. 8º O Presidente da República poderá, após investigação, decretar o confisco de bens de todos quantos tenham enriquecido ilicitamente, no exercício de cargo ou função pública, inclusive de autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista, sem prejuízo das sanções penais cabíveis. Parágrafo único. Provada a legitimidade da aquisição dos bens, far-se-á a sua restituição. Art. 9º O Presidente da República poderá baixar Atos Complementares para a execução deste Ato Institucional, bem como adotar, se necessário à defesa da Revolução, as medidas previstas nas alíneas d e e do § 2º do artigo 152 da Constituição. Art. 10º Fica suspensa a garantia de habeas-corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular. Art. 11º Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato Institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos.
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Art. 12º O presente Ato Institucional entra em vigor nesta data, revogadas as disposições em contrário. Brasília, 13 de dezembro de 1968; 147º da Independência e 80º da República. – A. COSTA E SILVA – Luís Antônio Gama e Silva – Augusto Hamann Rademaker Grunewald – Aurélio de Lyra Tavares – José de Magalhães Pinto – Antônio Delfin Netto – Mário David Andreazza – Ivo Arzua Pereira – Tarso Dutra – Jarbas G. Passarinho – Márcio de Souza e Mello – Leonel Miranda – José Costa Cavalcanti – Edmundo de Macedo Soares – Hélio Beltrão – Afonso de A. Lima – Carlos F. de Simas. (D.O. de 13.12.68 – pág. 10.801)
O Ato Institucional N. 5
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DECLARAÇÃO SOBRE A POLÍTICA DO PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO (MARÇO DE 1958)
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s documentos do XX Congresso do PCUS motivaram nas fileiras do nosso Partido intensa discussão, no curso da qual foram submetidos à crítica os graves erros de caráter dogmático e sectário da orientação política do Partido. O exame destes erros e a necessidade de superá-los levaram o Comitê Central do PCB a traçar uma nova orientação política, que é exposta na presente declaração. Ao fazê-lo, o Comitê Central considerou a experiência passada do Partido e as modificações essenciais ocorridas na situação do Brasil e do mundo. O Comitê Central espera que, no processo de sua aplicação prática, a política aqui traçada seja submetida à comprovação e enriquecida pela experiência do Partido e do povo brasileiro. I – O processo de desenvolvimento econômico do Brasil Modificações importantes têm ocorrido, durante as últimas décadas, na estrutura econômica que o Brasil herdou do passado, definido pelas seguintes características: agricultura baseada no latifúndio e nas relações pré capitalistas de trabalho, predomínio maciço da produção agropecuária no conjunto da produção, exportação de produtos agrícolas como eixo de toda a vida econômica, dependência da economia nacional em relação ao estrangeiro, através do comércio exterior e da penetração do capital monopolista nos postos-chave da produção e da circulação. 128
Nos quadros dessa estrutura atrasada, foi-se processando um desenvolvimento capitalista nacional, que constitui o elemento progressista por excelência da economia brasileira. Este desenvolvimento inelutável do capitalismo consiste no incremento das forças produtivas e na expansão, na base material da sociedade, de novas relações de produção, mais avançadas. Por sua própria natureza e ainda por se chocar com a resistência de elementos econômicos atrasados e sofrer a pressão do imperialismo, o desenvolvimento capitalista nacional vem-se realizando num ritmo bastante desigual, se bem que tenha se acelerado nos últimos vinte anos. O desenvolvimento capitalista nacional já trouxe resultados que modificaram sensivelmente a vida econômica e social do país. Assim é que foi construído no Brasil um parque industrial, que abastece o mercado interno da quase totalidade de artigos de consumo comum. A indústria de meios de produção elevou a sua participação de 20 a 33% no conjunto da produção industrial, entre os anos de 1939 a 1956. Num prazo relativamente breve, de 1944 a 1956, o volume físico da produção industrial total foi duplicado. Surgiu e se fortaleceu no setor da indústria pesada um capitalismo de Estado de caráter nacional e progressista, que abrange empresas poderosas como a Petrobras e a Companhia Siderúrgica Nacional. Embora mais lentamente, também na agricultura vem-se desenvolvendo o capitalismo, que se traduz no crescimento do número de assalariados e semiassalariados, bem como na multiplicação da quantidade de máquinas e instrumentos agrários. Ampliou-se de modo acentuado o mercado interno, sendo que o volume do comércio de cabotagem entre 1921 e 1955 aumentou de cinco vezes. Em consequência do desenvolvimento capitalista, cresceram os efetivos do proletariado industrial e aumentou o seu peso específico no conjunto da população. Enquanto esta duplicou de 1920 até hoje, o número de operários industriais aumentou de sete vezes no mesmo período, passando de 275.000 a cerca de 2 milhões. Simultaneamente, surgiu e se fortaleceu cada vez mais uma burguesia interessada no desenvolvimento independente e progressista da economia do país. O desenvolvimento capitalista, entretanto, não conseguiu eliminar os fatores negativos, que determinam as características do Brasil como país subdesenvolvido. Ao tempo em que se incrementam as forças produtivas e progridem as novas relaDeclaração sobre a política do Partido Comunista Brasileiro
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ções de produção capitalistas, conservam-se em vastas áreas as relações atrasadas e permanece a dependência diante do imperialismo particularmente o norte-americano. Com a penetração do capitalismo na agricultura, combinam-se, em proporção variável, os métodos capitalistas à conservação do monopólio da terra e das velhas relações semifeudais, o que permite um grau mais elevado de exploração dos trabalhadores do campo. O Brasil continua a ser um país de grande concentração latifundiária: em 1950, os estabelecimentos agrícolas com 500 hectares e mais constituíam 3,4% do número total de estabelecimento e abrangiam 62,3% de toda a área ocupada. As sobrevivências feudais obstaculizam o progresso da agricultura, que se realiza, em geral, lentamente, mantém o baixíssimo nível de vida das massas camponesas e restringem de modo considerável as possibilidades de expansão do mercado interno. As sobrevivências feudais são um dos fatores que acentuam a extrema desigualdade de desenvolvimento das diferentes regiões do país, especialmente entre o sul e parte do leste, que se industrializam, e o resto do país, quase inteiramente agrário. Apesar de detida sua penetração em algumas importantes esferas da economia brasileira, o imperialismo continua a dominar posições-chave em ramos fundamentais. Esta penetração é realizada em elevado grau sobretudo pelos monopólios norte-americanos que, a partir da segunda guerra mundial, alcançaram o predomínio absoluto sobre os seus competidores. Os investimentos diretos norte-americanos aumentaram de 193,6 milhões de dólares, em 1929, para 1.107 milhões de dólares em 1955. Cerca de 60% dos financiamentos estrangeiros procedem dos Estados Unidos. Mais de um terço do comércio exterior brasileiro é realizado com os Estados Unidos, que, além disso, dominam o mercado internacional de nossos principais produtos de exportação e podem,– assim, fazer do comércio exterior um instrumento de controle da vida econômica e política do país. Mantendo embora o seu predomínio, o imperialismo norte americano enfrenta no Brasil a crescente concorrência de outras potências imperialistas, principalmente da Alemanha Ocidental e da Inglaterra. A exploração imperialista impõe pesado tributo à nação, transferindo para o exterior considerável parte do valor criado 130
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pelos trabalhadores brasileiros, o que reduz, em consequência, a taxa de acumulação capitalista no país, diminui o ritmo do seu progresso e influi no baixo nível de vida da sua população. A independência política do Brasil sofre sérias restrições em virtude da situação de dependência econômica. À medida que a nação se desenvolve, aguça-se o seu antagonismo com o imperialismo norte americano. O desenvolvimento capitalista nacional exige cada vez mais, como seu instrumento, uma independência política completa, que se traduza numa política exterior independente e na proteção consequente do capital nacional contra o capital monopolista estrangeiro. O processo de democratização se reflete no parlamento. É verdade que os setores reacionários e entreguistas ainda possuem poderosas posições naquela instituição e conseguem impor decisões opostas aos interesses nacionais, a exemplo da aprovação do Acordo Militar Brasil-Estados Unidos, da rejeição de uma legislação social para os trabalhadores do campo e da cassação do direito de representação parlamentar para o Partido Comunista. É igualmente inegável, porém, que vem aumentando nas sucessivas legislaturas o número de parlamentares nacionalistas e democráticos integrantes dos mais variados partidos. Isto indica o aumento da influência da burguesia nesses partidos e a utilização do voto por grandes setores das massas, particularmente do proletariado, para apoiar uma política nacionalista e democrática. Se bem que o processo eleitoral ainda esteja submetido a restrições antidemocráticas, as massas têm conseguido influir na composição do parlamento e pressionando sobre ele com a ação extra-parlamentar, já o levaram a adotar decisões positivas para a emancipação nacional, a exemplo do monopólio estatal do petróleo e da política nacionalista dos minerais atômicos. O processo de desenvolvimento capitalista e a participação da burguesia no poder do Estado se refletem também na composição do atual governo. Em decorrência da coligação de que surgiu, o governo do Sr. Juscelino Kubitschek tomou um caráter heterogêneo, com um setor entreguista ao lado de um setor nacionalista burguês. A composição do governo do Sr. Juscelino Kubitschek é, em virtude disso, o resultado de um compromisso entre as duas alas que o integram. Este compromisso é frágil, não anula as contradições internas do governo e não impede a luta que lavra Declaração sobre a política do Partido Comunista Brasileiro
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no seu seio. Apoiado nas massas, na Frente Parlamentar Nacionalista e no setor nacionalista das Forças Armadas, o setor nacionalista do governo tem influído para importantes decisões positivas. Disto são exemplos expressivos a defesa do monopólio estatal do petróleo e a manutenção de um clima de legalidade constitucional na vida Política. Por outro lado, sob a pressão do setor entreguista e do imperialismo norte-americano, os elementos nacionalistas do governo têm sido levados a vacilações, derrotas e mesmo a graves capitulações, como foi o caso da cessão do arquipélago de Fernando de Noronha aos Estados Unidos. As contradições existentes no seio do governo se manifestam em todas as esferas de sua atividade. A Política exterior permanece em geral caudatária do Departamento de Estado norte-americano, mas se fortalece a pressão do setor nacionalista por importantes modificações, como a exigência do estabelecimento de relações com a União Soviética e demais países socialistas. O governo tem desenvolvido, apoiado no povo, formas nacionais e progressistas de capitalismo de Estado, a exemplo da Petrobras e de Volta Redonda. O capitalismo de Estado vem sendo um elemento progressista e anti-imperialista da política econômica do governo, mas este ainda permite que empresas de capitalismo de Estado realizem uma política favorável ao imperialismo, como no caso dos financiamentos do BNDE ou da distribuição, pelos trustes, da energia produzida nas centrais elétricas estatais. Enquanto toma medidas de interesse nacional, ao defender o café contra a especulação das firmas norte-americanas no mercado interno e mundial, o governo continua a propiciar inversões imperialistas à base de excepcionais privilégios, que suscitam protestos dos círculos mais representativos da burguesia. As medidas de reforma agrária não figuram sequer nos planos governamentais. A inflação e a carestia de vida continuam sendo fatores de instabilidade da economia nacional e de crescentes dificuldades para as massas. Enquanto altera a velha estrutura econômica e cria uma nova e mais avançada, o desenvolvimento capitalista nacional entra em conflito com a exploração imperialista e a estrutura tradicional arcaica e em decomposição. Este desenvolvimento se processa através de contradições, de avanços e recuos, mas é a tendência que abre caminho e se fortalece. 132
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II – A democratização da vida política nacional O desenvolvimento capitalista do país não podia deixar de refletir-se no caráter do Estado brasileiro, em seu regime político e na composição do governo. O Estado brasileiro atualmente representa os interesses dos latifundiários, dos setores de capitalistas ligados ao imperialismo, particularmente ao norte americano, e também da burguesia interessada no desenvolvimento independente da economia nacional. Dai surgem contradições e tipos diversos de compromisso de classe no seio do próprio Estado. Os diferentes interesses de classe representados nos órgãos do Estado encontram pontos de contato e de acordo, mas, ao mesmo tempo, lutam entre si para impor determinados rumos à política estatal, chegando por vezes a conflito aberto, como em agosto de 1954 e em novembro de 1955. As forças novas que crescem no seio da sociedade brasileira, principalmente o proletariado e a burguesia, vêm impondo um novo curso ao desenvolvimento político do país, com o declínio da tradicional influência conservadora dos latifundiários. Este novo curso se realiza no sentido da democratização, da extensão dos direitos políticos a camadas cada vez mais amplas. A democratização do regime político do país, que tomou impulso com os acontecimentos de 1930, não segue o seu curso em linha reta, mas, enfrentando a oposição das forças reacionárias e pró-imperialistas, sofre, em certos momentos, retrocessos ou brutais interrupções, como sucedeu com o Estado Novo, com a ofensiva reacionária de 1947 ou por ocasião do golpe de 1954. Mas o processo de democratização é uma tendência permanente. Por isto, pode superar quaisquer retrocessos e seguir incoercivelmente para diante. Vem-se firmando, assim, em nosso país, a legalidade democrática, que é defendida por amplas e poderosas forças sociais. A Constituição promulgada em 1946 encerra traços reacionários que resultaram da correlação de forças existente na época de sua elaboração e expressam aspectos retrógrados da estrutura econômico-social brasileira. Ao mesmo tempo, a Constituição consagra as liberdades democráticas e os direitos sociais das massas alcançados após a derrota mundial no nazi-fascismo e do Estado Novo em nosso país: as liberdades de expressão, inclusive de imprensa, de reunião e de organização, o direito de greve etc. As massas trabalhadoras das cidades Declaração sobre a política do Partido Comunista Brasileiro
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têm obtido vitórias na justa luta pela concretização de seus direitos já consolidados em lei, como a liberdade sindical, a previdência social e outros. A democratização do país também influi, menos acentuadamente, nas zonas rurais, onde o tradicional despotismo dos grandes senhores de terra é obrigado a ceder terreno, conquanto ainda perdure. Os atentados cometidos pelos elementos reacionários do aparelho do Estado encontram a resistência cada vez mais eficiente das massas na defesa das liberdades e dos direitos constitucionais. Tudo isso explica por que, no curso da vida política recente do país, as forças nacionalistas e democráticas se colocaram ao lado da Constituição, como sucedeu a 24 de agosto de 1954 e a 11 de novembro de 1955, ao passo que as forças golpistas pró-imperialistas atentaram contra ela. A política do governo do Sr. Juscelino Kubitschek não atende, assim, aos interesses nacionais e às aspirações das massas populares em questões essenciais, contendo, entretanto, aspectos positivos de caráter nacionalista e democrático. À medida que os aspectos negativos da atuação do governo se tornam mais evidentes, acentua-se a luta por modificações na sua composição e na sua política num sentido favorável aos interesses nacionais e populares. Esta luta é apoiada pelo setor nacionalista do próprio governo e aprofunda as suas contradições com o setor entreguista. É na luta contra o imperialismo norte-americano e os seus agentes internos que as forças progressistas da sociedade brasileira podem acelerar o desenvolvimento econômico independente e o processo de democratização da vida política do país. Para atingir este objetivo, as forças progressistas têm interesse em defender, estender e consolidar o regime de legalidade constitucional e democrático. III – Crescem no mundo inteiro as forças da paz, da democracia e do socialismo Na situação do Brasil, no desenvolvimento de suas forças anti-imperialistas e democráticas, influem poderosamente as modificações essenciais verificadas na situação internacional, sobretudo após a segunda guerra mundial. A característica nova e principal de nossa época, o seu conteúdo fundamental, é a transição do capitalismo ao socialismo, 134
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iniciada pela Grande Revolução Socialista de Outubro na Rússia. O socialismo ultrapassou os marcos de um só país e se transformou num sistema mundial vigoroso e florescente, que exerce influência positiva na evolução política e social de todos os povos. São enormes os êxitos econômicos e culturais dos países socialistas, e em primeiro lugar da União Soviética, que já assumiu a vanguarda em importantes ramos da ciência e da tecnologia, marchando para superar, em breve prazo histórico, o país capitalista mais adiantado, os Estados Unidos, quanto aos índices fundamentais da produção por habitante. Estes êxitos crescentes atraem para a ideia do socialismo a consciência das grandes massas de todos os continentes. Aplicando com justeza os princípios do marxismo-leninismo às condições nacionais específicas, fortalecem-se os partidos comunistas e operários de numerosos países do mundo capitalista. O movimento comunista mundial elevou a novo nível a sua unidade. A luta da classe operária obtém grandiosas vitórias e constitui uma força decisiva na situação internacional. Fato novo de imensa significação é o adiantado processo de desagregação do sistema colonial do imperialismo. Populações de mais de um bilhão de pessoas se libertaram do jugo colonial e alcançaram a independência política, enquanto os povos ainda submetidos aquele jugo intensificam a sua luta de libertação, colocando em situação cada vez mais difícil as potências imperialistas. Surgiu no mundo uma vasta zona de paz, que abrange os países socialistas e os países da Ásia e da África amantes da paz e promotores de uma política de defesa da sua soberania e de emancipação econômica. A luta contra o imperialismo norte-americano, pela democracia e pela paz eleva o seu nível na América Latina. As ditaduras terroristas a serviço dos monopólios dos Estados Unidos estão sendo derrubadas, o que abre caminho para o avanço do processo democrático e emancipador. A política de chantagem guerreira praticada pelos círculos de Washington vem fracassando na América Latina, à medida que se acentua o alívio da tensão internacional. Em consequência do impetuoso ascenso do socialismo e das vitórias do movimento de libertação nacional, acelerou-se o processo de debilitamento e decomposição do imperialismo. Não só se reduziu drasticamente a área do seu domínio, como se agravaram as contradições entre os países imperialistas e dentro de cada um deles. Aumentam as dificuldades econômiDeclaração sobre a política do Partido Comunista Brasileiro
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cas nos Estados Unidos, onde a produção vem caindo, enquanto cresce o número de desempregados, o que delineia uma perspectiva de crise econômica. O imperialismo norte-americano é o centro da reação mundial. Segue uma política de atentados contra a soberania nacional de todos os povos, de corrida armamentista e preparativos de uma terceira guerra mundial, que seria a mais terrível catástrofe para a humanidade. As guerras de agressão continuam a encontrar terreno na existência do imperialismo e este ainda tem desencadeado bárbaros atentados contra numerosos povos. Em virtude, porém, da correlação de forças favorável ao socialismo e às forças amantes da paz, surgiu em nossa época a possibilidade real de impedir as guerras. A luta pela paz – tarefa primordial de todos os povos tem condições para ser plenamente vitoriosa. A política consequente de coexistência pacífica praticada pela União Soviética e pelos demais países socialistas ganha a simpatia dos povos, desfaz as manobras da “guerra fria” e consegue resultados concretos no sentido do alívio da tensão internacional. A rápida cessação da agressão imperialista ao Egito mostrou mais uma vez que a causa da paz e da libertação nacional tem a seu favor forças mais poderosas do que os agentes da guerra. As modificações na arena internacional criam condições mais favoráveis para a luta pelo socialismo, tornam mais variados os caminhos da conquista do poder pela classe operária e as formas de construção da nova sociedade. A possibilidade de uma transição pacífica ao socialismo se tornou real numa série de países. O ascenso do socialismo, da causa da paz e do movimento de libertação nacional no mundo inteiro influi de modo positivo no crescimento das forças políticas anti-imperialistas e democráticas no Brasil. A nova situação internacional cria condições favoráveis ao desenvolvimento econômico de nosso país, à libertação da dependência em relação ao imperialismo, à democratização da vida política nacional. Estas condições são especialmente favoráveis à aplicação de uma política externa independente e de paz, em benefício da emancipação econômica da nação. Uma política desta ordem, que muitos países do mundo capitalista já praticam, encontra o apoio de poderosas forças que atuam no cenário mundial.
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Conquanto se beneficie da influência dos fatores positivos da situação internacional, o povo brasileiro é obrigado a enfrentar a pressão e os atentados do imperialismo norte-americano, que ocupa posições-chave na economia de nosso país e interfere nas questões de sua política interna e externa. Não obstante as derrotas que tem sofrido, não cessa a penetração econômica dos monopólios norte-americanos. Os círculos dirigentes dos Estados Unidos, com o apoio dos setores entreguistas, tomam medidas para vincular o Brasil aos preparativos bélicos e aos planos de uma terceira guerra mundial. Esta é a mais grave ameaça que pesa sobre a nossa Pátria e contra esta ameaça tendem a unir-se todos os brasileiros favoráveis à manutenção da paz. A luta contra o imperialismo norte-americano, pela independência nacional do Brasil, é parte integrante da luta pela paz mundial. As vitórias da causa da paz no mundo inteiro contribuem para os êxitos da luta emancipadora de nosso povo. Existem condições para derrotar a política de dependência ao imperialismo norte-americano e anular suas ameaças. A situação internacional é favorável às forças que lutam pela paz, pela emancipação nacional e pela democracia no Brasil. IV – Aprofunda-se a contradição entre a nação brasileira e o imperialismo norte-americano As modificações na situação econômica e política do país, bem como na situação internacional, determinam importantes alterações na disposição das forças sociais e definem o caminho para a solução dos problemas da revolução brasileira. Como decorrência da exploração imperialista norte-americana e da permanência do monopólio da terra, a sociedade brasileira está submetida, na etapa atual de sua história, a duas contradições fundamentais. A primeira é a contradição entre a nação e o imperialismo norte-americano e seus agentes internos. A segunda e a contradição entre as forças produtivas em desenvolvimento e as relações de produção semifeudais na agricultura. O desenvolvimento econômico e social do Brasil torna necessária a solução dessas duas contradições fundamentais. A sociedade brasileira encerra também a contradição entre o proletariado e a burguesia, que se expressa nas várias formas da luta de classes entre operários e capitalistas. Mas esta contradiDeclaração sobre a política do Partido Comunista Brasileiro
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ção não exige uma solução radical na etapa atual. Nas condições presentes de nosso país, o desenvolvimento capitalista corresponde aos interesses do proletariado e de todo o povo. A revolução no Brasil, por conseguinte, não é ainda socialista, mas anti-imperialista e antifeudal, nacional e democrática. A solução completa dos problemas que ela apresenta deve levar à inteira libertação econômica e política da dependência para com o imperialismo norte-americano; à transformação radical da estrutura agrária, com a liquidação do monopólio da terra e das relações pré-capitalistas de trabalho; ao desenvolvimento independente e progressista da economia nacional e à democratização radical da vida política. Estas transformações removerão as causas profundas do atraso de nosso povo e criarão, com um poder das forças anti-imperialistas e antifeudais sob a direção do proletariado, as condições para a transição ao socialismo, objetivo não imediato, mas final, da classe operária brasileira. Na situação atual do Brasil, o desenvolvimento econômico capitalista entra em choque com a exploração imperialista norte-americana, aprofundando-se a contradição entre as forças nacionais e progressistas em crescimento e o imperialismo norte-americano, que obstaculiza a sua expansão. Nestas condições, a contradição entre a nação em desenvolvimento e o imperialismo norte-americano e os seus agentes internos tornou-se a contradição principal na sociedade brasileira. O golpe principal das forças nacionais, progressistas e democráticas se dirige, por isto, atualmente, contra o imperialismo norte-americano e os entreguistas que o apoiam. A derrota da política do imperialismo norte-americano e de seus agentes internos abrirá caminho para a solução de todos os demais problemas da revolução nacional e democrática no Brasil. Para realizar a sua política de exploração e de vinculação de nosso país aos seus planos guerreiros, o imperialismo norte-americano conta com o apoio de setores de latifundiários e de setores da burguesia. Servem ao imperialismo norte-americano os latifundiários que estão ligados, por seus interesses, à exploração imperialista, numerosos intermediários do comércio exterior, os sócios de empresas controladas pelo capital monopolista norte-americano e determinados agentes de negócios bancários e comerciais. Estes setores – minoria verdadeiramente ínfima – constituem as forças entreguistas que, dentro e fora dos órgãos de 138
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Estado, sustentam a política de dependência ao imperialismo norte-americano. Ao inimigo principal da nação brasileira se opõem, porém, forças muito amplas. Estas forças incluem o proletariado, lutador mais consequente pelos interesses gerais da nação; os camponeses, interessados em liquidar uma estrutura retrógrada que se apoia na exploração imperialista; a pequena burguesia urbana, que não pode expandir as suas atividades em virtude dos fatores de atraso do país; a burguesia, interessada no desenvolvimento independente e progressista da economia nacional; os setores de latifundiários que possuem contradições com o imperialismo norte-americano, derivadas da disputa em torno dos preços dos produtos de exportação, da concorrência no mercado internacional ou da ação extorsiva de firmas norte-americanas e de seus agentes no mercado interno; os grupos da burguesia ligados a monopólios imperialistas rivais dos monopólios dos Estados Unidos e que são prejudicados por estes. São forças, portanto, extremamente heterogêneas pelo seu caráter de classe. Incluem desde o proletariado, que tem interesse nas mais profundas transformações revolucionárias, até parcelas das forças mais conservadoras da sociedade brasileira. A sua consequência na luta contra o imperialismo norte-americano não pode ser evidentemente a mesma, porém todas essas forças possuem motivos para se unirem contra a política de submissão ao imperialismo norte-americano. Quanto mais ampla for esta unidade, maiores serão as possibilidades de infligir uma derrota completa àquela política e garantir um curso independente, progressista e democrático ao desenvolvimento da nação brasileira. V – A frente única e a luta por um governo nacionalista e democrático As tarefas impostas pela necessidade do desenvolvimento independente e progressista do país não podem ser resolvidas por nenhuma força social isoladamente. Disto decorre a exigência objetiva aliança entre todas as forças interessadas na luta contra a política de submissão ao imperialismo norte-americano. A experiência da vida política brasileira tem demonstrado que as vitórias anti-imperialistas e democráticas só puderam ser obtidas pela atuação em frente única daquelas forças.
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A frente única se manifesta nas múltiplas formas concretas de atuação ou de organização em comum, que surgem no país, por iniciativas de diferentes origens e de acordo com as exigências da situação. Entre estas formas, a mais importante atualmente é o movimento nacionalista. O seu desenvolvimento expressa um grau mais elevado de unidade e concentração das forças anti-imperialistas. Constituiu um fato novo, resultante não só de fatores objetivos, entre os quais o desenvolvimento do capitalismo, que fortaleceu as posições da burguesia, como também das lutas patrióticas de massas, que se travaram durante muitos anos com a participação combativa do proletariado e de sua vanguarda comunista. Tendem a unir-se e podem efetivamente unir-se no movimento nacionalista a classe operária, os camponeses, a pequena burguesia urbana, a burguesia e os setores de latifundiários que possuem contradições com o imperialismo norte-americano. O movimento nacionalista vem exercendo influência para elevar a consciência antiimperialista das massas e para agrupar os setores nacionalistas dos partidos políticos, do parlamento, das Forças Armadas e do próprio governo. Superando as divergências que existem entre os seus participantes, o movimento nacionalista atrai para a sua frente de luta entidades, partidos, correntes e personalidades do mais variado caráter social e orientação política. Assim é que a Frente Parlamentar Nacionalista, cujo aparecimento tem notável significação em nossa vida política, unificou a ação de grande número de parlamentares pertencentes aos mais diversos partidos com representação no Congresso, quer sejam governistas ou oposicionistas. O movimento nacionalista vem surgindo nas diferentes regiões com plataformas que, ao lado de pontos comuns, apresentam questões variadas, de acordo com a influência de determinadas forcas políticas e da maior sensibilidade, por motivos locais, a esta ou aquela reivindicação antiimperialista. Os comunistas consideram que é necessário tudo fazer, dentro do mais alto espírito de unidade, para impulsionar o movimento nacionalista, ampliar seu caráter de massas e ajudar sua coordenação em escala nacional. Isto contribuirá para acelerar a polarização em processo entre as forças anti-imperialistas e democráticas de um lado, e as forças entreguistas do outro lado. Os comunistas devem ser um fator por excelência unitário dentro da frente única nacionalista e democrática. Por isto, não condicionam a sua permanência na frente única à total aceita140
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ção de suas opiniões. Os participantes da frente única poderão aceitar essas opiniões somente como resultado de sua justeza, de sua força persuasiva e, acima de tudo, da sua comprovação pela experiência política concreta. Defendendo firmemente suas opiniões, os comunistas consideram que, se forem justas, tais opiniões acabarão sendo aceitas pelas massas e pelos aliados, vindo a prevalecer através de processos democráticos, dentro da frente única. Os comunistas não são exclusivistas e, ao mesmo tempo que encaram com espírito autocrítico a sua própria atividade, aceitam e valorizam as opiniões corretas procedentes das outras forças da frente única. Sendo inevitavelmente heterogênea, a frente única nacionalista e democrática encerra contradições. Por um lado, há interesses comuns e, portanto, há unidade. Este é um aspecto fundamental e explica a necessidade da existência da frente única, a sua capacidade de superar as contradições internas entre os seus componentes. Por outro lado, há interesses contraditórios e, portanto, as forças sociais integrantes da frente única se opõem no terreno de certas questões, esforçando-se para fazer prevalecer seus interesses e pontos de vista. O proletariado e a burguesia se aliam em torno do objetivo comum de lutar por um desenvolvimento independente e progressista contra o imperialismo norte-americano. Embora explorado pela burguesia, é do interesse do proletariado aliar-se a ela, uma vez que sofre mais do atraso do país e da exploração imperialista do que do desenvolvimento capitalista. Entretanto, marchando unidos para atingir um objetivo comum, a burguesia e o proletariado possuem também interesses contraditórios. A burguesia se empenha em recolher para si todos os frutos do desenvolvimento econômico do país, intensificando a exploração das massas trabalhadoras e lançando sobre elas o peso das dificuldades. Por isto, a burguesia é uma força revolucionária inconsequente, que vacila em certos momentos, tende aos compromissos com os setores entreguistas e teme a ação independente das massas. O proletariado tem interesse no desenvolvimento antiimperialista e democrático consequente. A fim de assegurá-lo, ao mesmo tempo que luta pela causa comum de todas as classes e camadas que se opõem à exploração imperialista norte-americana, o proletariado defende os seus interesses específicos e os das vastas massas trabalhadoras e bate-se por amplas liberdades Declaração sobre a política do Partido Comunista Brasileiro
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democráticas, que facilitem a ação independente das massas. O proletariado deve salvaguardar, por isto, a sua independência ideológica, política e organizativa dentro da frente única. É indispensável, entretanto, jamais perder de vista que a luta dentro da frente única é diferente, em princípio, da luta que a frente única trava contra o imperialismo norte-americano e as forças entreguistas. Neste último caso, o objetivo consiste em isolar o inimigo principal da nação brasileira e derrotar a sua política. Já a luta do proletariado dentro da frente única não tem por fim isolar a burguesia nem romper a aliança com ela, mas visa a defender os interesses específicos do proletariado e das vastas massas, simultaneamente ganhando a própria burguesia e as demais forças para aumentar a coesão da frente única. Por se travar dentro da frente única, esta luta deve ser conduzida de modo adequado, através da crítica ou de outras formas, evitando elevar as contradições internas da frente única ao mesmo nível da contradição principal, que opõe a nação ao imperialismo norte-americano e seus agentes. Assim, é preciso ter sempre em vista que as contradições de interesses e divergências de opinião dentro da frente única, embora não devam ser ocultadas e venham a causar dificuldades, podem ser abordadas e superadas sem romper a unidade. Os comunistas de modo algum condicionam a sua participação na frente única a uma prévia direção do movimento. Tendo por objetivo a ampliação e a coesão da frente única, os comunistas trabalham para que as forças anti-imperialistas e democráticas, principalmente as grandes massas da cidade e do campo, aceitem a direção do proletariado, uma vez que esta direção é, do ponto de vista histórico, a única capaz de dar à frente única firmeza e consequência política. A conquista da hegemonia do proletariado é, porém, um processo de luta árduo e paulatino, que avançará à medida em que a classe operária forjar a sua unidade, estabelecer laços de aliança com os camponeses e defender de modo acertado os interesses comuns de todas as forças que participam da frente única. Para a unidade da classe operária, tem grande importância o fortalecimento do movimento sindical. Este alcançou numerosas vitórias nos últimos tempos, possibilitando aos trabalhadores defender o seu nível de vida, restabelecer a liberdade sindical e elevar o seu grau de unidade e organização. As organizações intersindicais têm contribuído para a unidade da classe operária, mas a experiência vem demonstrando que o movimento 142
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sindical tem avançado à medida que se fortalece a unidade de ação dos trabalhadores nos sindicatos, federações e confederações, isto é, nos quadros da organização sindical existente no país. O movimento sindical tem avançado igualmente à medida em que os trabalhadores aprendem a utilizar as conquistas da legislação social vigente e procuram concretizá-la e aperfeiçoá-la, influindo no parlamento, com a pressão de massas, para a aprovação de novas leis. Os sindicatos e as demais organizações profissionais não devem servir a objetivos partidários, mas precisam ser instrumentos da unidade dos trabalhadores de todas as tendências ideológicas e políticas, na luta por suas reivindicações imediatas, pelo direito de greve, pelo melhoramento da previdência social etc. Simultaneamente, cabe aos sindicatos um grande papel no amplo movimento nacionalista e democrático. Os camponeses constituem a massa mais numerosa da nação e representam uma força cuja mobilização é indispensável ao desenvolvimento consequente das lutas do povo brasileiro. O movimento camponês se encontra, entretanto, bastante atrasado, sendo baixíssimo o seu nível de organização. Para impulsionar o movimento camponês, é preciso partir do seu nível atual, tomando por base as reivindicações mais imediatas e viáveis, como o salário mínimo, a baixa do arrendamento, a garantia contra os despejos e evitando, no trabalho prático, as palavras de ordem radicais que ainda não encontram condições maduras para a sua realização. Também no campo, a experiência demonstra que a atuação através de formas legais de luta e de organização é aquela que permite alcançar êxitos para as massas. Assim é que tem progredido, além das associações rurais e cooperativas, a organização dos assalariados e semiassalariados em sindicatos, que já obtiveram vitórias em contendas com fazendeiros. Tem grande importância a defesa jurídica dos direitos já assegurados aos camponeses. A ação de massas se mostra indispensável para vencer a resistência dos latifundiários no Parlamento e conquistar a aprovação de leis que correspondam aos interesses dos trabalhadores agrícolas, inclusive a elaboração de uma legislação trabalhista adequada ao campo. As camadas médias urbanas são extremamente sensíveis às reivindicações de caráter nacionalista e democrático. Aos pequenos negociantes, ao funcionalismo civil e militar e a outros setores da pequena burguesia cabe um posto destacado Declaração sobre a política do Partido Comunista Brasileiro
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nas lutas do povo brasileiro. Importante papel desempenha a intelectualidade, que em sua esmagadora maioria está interessada no progresso e na emancipação nacional. Como setor mais combativo da intelectualidade, o movimento estudantil tem dado importante contribuição às lutas do povo brasileiro. A unidade dos estudantes das mais diversas tendências doutrinárias e políticas é um fator essencial para o fortalecimento das organizações estudantis, universitárias e secundárias, que têm sido baluartes da frente única nacionalista e democrática. Seguindo o exemplo dos estudantes, a juventude dos sindicatos, dos clubes esportivos e recreativos pode unir-se e obter vitórias na luta por suas reivindicações. A formulação dos objetivos comuns, num processo de discussão democrática, vai-se tomando necessária para a frente única à medida que aumenta a envergadura de suas tarefas. Os comunistas são de opinião que uma plataforma de frente única deve incluir os seguintes pontos fundamentais: 1°) Política exterior independente e de paz. Estabelecimento de relações amistosas com todos os países, acima de diferenças de regime social, na base de respeito mútuo da integridade territorial e da soberania, da não agressão, da não intervenção nos assuntos internos e da igualdade de direitos e vantagens recíprocas. Desvinculação de compromissos com quaisquer blocos militares, denúncia de tratados belicistas e de ajustes antinacionais como o da cessão de Fernando de Noronha. Apoio às propostas que visem ao alívio da tensão internacional e ao término da “guerra fria”. Apoio às lutas de libertação nacional de todos os povos. 2°) Desenvolvimento independente e progressista da economia nacional.Intercâmbio comercial com todos os países, inclusive socialistas. Desenvolvimento da iniciativa estatal nacionalista nos setores do petróleo, energia elétrica, siderurgia, minerais estratégicos e outros setores básicos. Proteção e estímulo da iniciativa privada nacional. Execução de um programa federal para o desenvolvimento das regiões mais atrasadas do país e, em particular, incentivo à industrialização do nordeste. Revogação dos privilégios cambiais ou de qualquer outra ordem concedidos ao capital estrangeiro, selecionando suas inversões de acordo com os interesses do desenvolvimento do país e sem prejuízo dos empreendimentos nacionais. Dar preferência aos financiamentos em geral, governamentais ou não, sempre que não condicionados a exigências políticas e esco144
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lhendo livremente aqueles que, seja qual for sua procedência, ofereçam melhores condições no que se refere a juros, prazos de amortização e assistência técnica. 3°) Medidas de reforma agrária em favor das massas camponesas. Redução das taxas de arrendamento e prolongamento dos seus prazos contratuais. Defesa dos camponeses contra a grilagem e os despejos. Facilitar aos camponeses o acesso à terra, particularmente junto aos centros urbanos e vias de comunicação. Garantia da posse da terra e entrega de títulos de propriedade aos atuais posseiros. Aplicação dos direitos dos trabalhadores do campo já consolidados em lei. Legislação trabalhista adequada ao campo. Facilitar aos camponeses o crédito bancário, particularmente do Banco do Brasil, os transportes, a armazenagem e a assistência técnica. 4º) Elevação do nível de vida do povo. Combate enérgico à inflação e à carestia. Equilíbrio orçamentário e política tributária que não sacrifique as massas nem prejudique as atividades produtivas. Salários e vencimentos que assegurem melhores condições de vida aos trabalhadores e ao funcionalismo. Democratização dos órgãos governamentais de controle do abastecimento e dos preços, de tal maneira que possam servir efetivamente aos interesses das massas populares. Aumento das verbas destinadas à educação e saúde do Povo. Estímulo ao desenvolvimento da cultura nacional. Aplicação efetiva e melhoria da legislação trabalhista. 5°) Consolidação e ampliação da legalidade democrática. Garantia dos direitos democráticos contidos na Constituição. Abolição completa das discriminações políticas e ideológicas. Garantia do direito de greve e dos direitos sindicais dos trabalhadores. Direito de voto aos analfabetos, bem como aos soldados e marinheiros. Os comunistas apresentam esta plataforma para um amplo debate do qual possa resultar a formulação unitária dos objetivos comuns das forças nacionalistas e democráticas. A frente única nacionalista e democrática acumula forças à medida que luta por soluções positivas para os problemas colocados na ordem do dia, realizando-as na proporção de sua capacidade e das condições favoráveis de cada momento. A exigência dessas soluções positivas para os problemas brasileiros conduz, inevitavelmente, à necessidade de um governo que possa aplicar com firmeza em todas as esferas da política interna e Declaração sobre a política do Partido Comunista Brasileiro
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exterior a política de desenvolvimento e de emancipação reclamada pelo povo brasileiro. A luta das correntes nacionalistas e democráticas para alcançar modificações na composição e na política do governo atual assume, e tende a assumir cada vez mais, o caráter de luta por um governo de coligação nacionalista e democrática. Um governo nacionalista e democrático pode ser conquistado pela frente única nos quadros do regime vigente e aplicar uma política externa de independência e de paz, assegurar o desenvolvimento independente e progressista da economia nacional, tomar medidas em favor do bem-estar das massas, garantir as liberdades democráticas. O desenvolvimento da situação no país indica que esta orientação política pode vir a ser gradualmente realizada por um ou por sucessivos governos que se apóiem na frente única nacionalista e democrática. Um governo nacionalista e democrático dependerá fundamentalmente, do apoio das massas e, por isto, o ascenso do movimento de massas não poderá deixar de influir no sentido da radicalização de sua composição e de sua política. Esta radicalização será também resultado da necessidade inevitável de medidas mais enérgicas e profundas diante dos atentados do imperialismo norte-americano e das forças entreguistas e reacionárias no país. O curso dos acontecimentos no Brasil indica, por conseguinte, a possibilidade real de um processo em que, sob a pressão das ações independentes das massas e diante da necessidade de medidas mais consequentes contra o inimigo, principal da nação, um governo de coligação nacionalista e democrática abrirá caminho para uma nova correlação de forças, que possibilite completar as transformações revolucionárias exigidas pelo desenvolvimento econômico e social de nossa Pátria. Ainda que dispostos a participar dos governos de caráter nacionalista e democrático, os comunistas os apoiarão de modo resoluto, mesmo que não venham a fazer parte de sua composição. VI – O caminho pacífico da revolução brasileira Os comunistas consideram que existe hoje em nosso país a possibilidade real de conduzir, por formas e meios pacíficos, a 146
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revolução antiimperialista e antifeudal. Nestas condições, este caminho é o que convém à classe operária e a toda a nação. Como representantes da classe operária e patriotas, os comunistas, tanto quanto deles dependa, tudo farão para transformar aquela possibilidade em realidade. O caminho pacífico da revolução brasileira é possível em virtude de fatores como a democratização crescente da vida política, o ascenso do movimento operário e o desenvolvimento da frente única nacionalista e democrática em nosso país. Sua possibilidade se tornou real em virtude das mudanças qualitativas da situação internacional, que resultaram numa correlação de forças decididamente favorável à classe operária e ao movimento de libertação dos povos. O caminho pacífico significa a atuação de todas as correntes anti-imperialistas dentro da legalidade democrática e constitucional, com a utilização de formas legais de luta e de organização de massas. É necessário, pois, defender esta legalidade e estendê-la, em benefício das massas. O aperfeiçoamento da legalidade, através de reformas democráticas da Constituição, deve e pode ser alcançado pacificamente, combinando a ação parlamentar e a extraparlamentar. O povo brasileiro pode resolver pacificamente os seus problemas básicos com a acumulação, gradual mas incessante, de reformas profundas e consequentes na estrutura econômica e nas instituições políticas, chegando-se até à realização completa das transformações radicais colocadas na ordem do dia pelo próprio desenvolvimento econômico e social da nação. A fim de encaminhar a solução de seus problemas vitais, o povo brasileiro necessita conquistar um governo nacionalista e democrático. Esta conquista poderá ser efetuada através dos seguintes meios mais prováveis: 1. Pela pressão pacífica das massas populares e de todas as correntes nacionalistas, dentro e fora do Parlamento, no sentido de fortalecer e ampliar o setor nacionalista do atual governo, com o afastamento do poder de todos os entreguistas e sua substituição por elementos nacionalistas. 2. Através da vitória da frente única nacionalista e democrática nos pleitos eleitorais. 3. Pela resistência das massas populares, unidas aos setores nacionalistas do Parlamento, das forças armadas e do goDeclaração sobre a política do Partido Comunista Brasileiro
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verno, para impor ou restabelecer a legalidade democrática, no caso de tentativas de golpe por parte dos entreguistas e reacionários, que se proponham implantar no país uma ditadura a serviço dos monopólios norte-americanos. O complexo desenvolvimento da vida política nacional é que determinará como será realizada a conquista de um governo nacionalista e democrático. Sejam quais forem as vicissitudes que o povo brasileiro tiver de enfrentar para resolver pacificamente os seus problemas, será sempre necessário o amplo desenvolvimento da luta de classes do proletariado, dos camponeses e das camadas médias urbanas em defesa dos seus interesses específicos e dos interesses gerais da nação. A escolha das formas e meios para transformar a sociedade brasileira não depende somente do proletariado e das demais forças patrióticas. No caso em que os inimigos do povo brasileiro venham a empregar a violência contra as forças progressistas da nação, é indispensável ter em vista outra possibilidade a de uma solução não pacífica. Os sofrimentos que recaírem sobre as massas, em tal caso, serão da inteira responsabilidade dos inimigos do povo brasileiro. Quanto aos comunistas, tudo farão para alcançar os objetivos vitais do proletariado e do povo por um caminho que, sendo de luta árdua, de contradições e de choques, pode evitar o derramamento de sangue na insurreição armada ou na guerra civil. Os comunistas confiam em que, nas circunstâncias favoráveis da situação internacional, as forças anti-imperialistas e democráticas terão condições para garantir o curso pacífico da revolução brasileira. VII – Pela vitória da frente única nacionalista e democrática nas eleições A experiência política do país vem demonstrando que o povo já alcançou importantes vitórias dentro do Parlamento e dos órgãos legislativos nos Estados e municípios. Esta experiência também já demonstrou que é possível eleger nacionalistas e democratas para os postos executivos. As eleições constituem, portanto, um acontecimento de excepcional importância em nossa vida política. 148
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As eleições, no Brasil, ainda estão submetidas a sérias restrições antidemocráticas. Certas destas restrições derivam do poder econômico e político concentrado em massas das classes exploradoras e são inevitáveis mesmo nas melhores condições da democracia burguesa. Outras, porém, são restrições possíveis de eliminar ainda no regime atual, à medida que avança o processo de democratização. Os comunistas lutam, por isto, pela extensão do direito de voto aos analfabetos, bem como aos soldados e marinheiros. Lutam, igualmente, pela restituição da legalidade ao Partido Comunista, fazendo cessar uma discriminação anticonstitucional, consumada numa conjuntura reacionária e mantida até hoje em flagrante desrespeito aos postulados da Carta Magna. As restrições antidemocráticas que ainda pesam sobre o processo eleitoral não impedem, porém, a afirmação da sua crescente importância para determinar os rumos da vida política do país. Combinadas a outras formas pacíficas e legais de lutas de massas, as eleições podem dar vitórias decisivas ao povo. Massas de milhões vêm utilizando o voto para expressar a sua vontade e influir nos destinos da nação. A participação mais entusiástica nas eleições é, assim, um dever para os comunistas. Esta participação não visa exclusivamente a obter pequenos proveitos imediatos e a utilizar uma oportunidade para fazer agitação de palavras de ordem. O objetivo fundamental da participação dos comunistas nas eleições consiste em eleger para os postos executivos e legislativos os candidatos da frente única, que possam fortalecer os setores nacionalistas do Parlamento e do governo. Todo o trabalho eleitoral dos comunistas, seja em âmbito nacional como em estadual e municipal, deve ser considerado uma parte do trabalho geral de formação e desenvolvimento da frente única, visando sempre à mudança da correlação de forças políticas e à conquista de um governo nacionalista e democrático. Os comunistas se empenham, por este motivo, em contribuir para a constituição de amplas coligações eleitorais, que tenham força para levar à vitória os candidatos da frente única. A ação independente dos comunistas se realizará, não fora, mas dentro da frente única. Lutando, na medida de suas possibilidades, para eleger seus próprios candidatos, os comunistas não adotam, porém, uma posição exclusivista, colocam acima de tudo a necessidade de desenvolver e fortalecer a frente única e consideram que a vitória de candidatos não comunisDeclaração sobre a política do Partido Comunista Brasileiro
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tas da frente única é também sua vitória. Esta orientação contribuirá para aprofundar nacionalmente e em cada local a polarizado em processo entre nacionalistas e entreguistas, a fim de isolar e derrotar os candidatos comprometidos com o imperialismo norte-americano. Buscando formar amplas coligações eleitorais, que levem à vitória os nacionalistas e os democratas, é necessário ter em vista a composição de classe mais ou menos heterogênea dos partidos políticos brasileiros, sem, entretanto, estabelecer identidade entre eles. Os comunistas apoiam os elementos nacionalistas e democratas que existem em todos os Partidos. Tais elementos constituem uma ala considerável do PSD, a qual tem lutado com relativo êxito contra a ala reacionária do mesmo partido, ligada aos latifundiários mais retrógrados e a interesses imperialistas. Em proporção menor, existem elementos nacionalistas na UDN que se chocam com a alta direção nacional do seu partido, ainda dominada por conhecidos golpistas e porta-vozes do imperialismo norte-americano. Partidos como o PTB, o PSP e o PSB, que possuem maior base popular nos centros urbanos, apresentam uma tendência nacionalista e democrática mais acentuada. O PTB, cujo maior contingente eleitoral provém das massas trabalhadoras, de modo geral orienta-se por uma política nacionalista e popular. O mesmo ocorre com o PSB, cuja base social repousa em setores da pequena burguesia urbana e, em particular, da intelectualidade. Tanto o PTB como o PSB já defendem plataformas nacionalistas e democráticas. À medida que se desenvolve o capitalismo no país, os partidos políticos brasileiros adquirem um caráter cada vez mais estável e nacional. Em virtude, porém, da extrema desigualdade de desenvolvimento que se verifica entre as diferentes regiões, os Partidos políticos não puderam ainda superar as divergências, por vezes agudas, que lavram entre as suas seções estaduais e até mesmo municipais. Esta circunstância não pode deixar de ser levada em conta, a fim de distinguir, com justeza, as variações de orientação entre os diretórios nacionais, estaduais e municipais. Os comunistas apoiam nas eleições os partidos, alas e seções de partidos e personalidades de atuação nacionalista reconhecida, não confundindo-os, porém, com os falsos nacionalistas, que procuram enganar o povo com a sua demagogia eleitoreira. 150
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É com esta visão das eleições e de suas perspectivas essenciais que os comunistas se mobilizam para tomar parte nos pleitos de 1958 e 1960. VIII – Fortalecer o Partido para a aplicação de uma nova política O proletariado brasileiro necessita de uma vanguarda marxista-leninista organizada e combativa a fria de realizar sua política de classe. O Partido Comunista Brasileiro, que é esta vanguarda, deve ser capaz de cumprir o seu papel na ação política concreta. Isto exige que o nosso Partido se depure de persistentes defeitos e adquira qualidades novas. O subjetivismo, que exerceu longo domínio em nossas fronteiras, deve ser combatido em profundidade, através da reeducação dos dirigentes e militantes no espírito de uma nova política, que emane diretamente das condições objetivas de nosso país e seja a correta aplicação dos princípios universais do marxismo-leninismo às originais particularidades concretas do desenvolvimento histórico nacional. O abandono dos princípios universais do marxismo-leninismo, como síntese científica da experiência do movimento operário mundial, conduz inevitavelmente à desfiguração do caráter de classe do Partido, e à degenerescência revisionista. Mas o desconhecimento das particularidades concretas do próprio país condena o Partido, irremediavelmente, à impotência sectária e dogmática. As concepções dogmáticas e sectárias, que nas condições atuais de nosso Partido constituem o perigo fundamental a combater, se opõem de modo radical ao próprio caráter da missão que os comunistas têm a cumprir. A frente da classe operária deve estar um Partido que saiba dirigir a luta pelos objetivos revolucionários na ação política corrente, diária, determinada pelas próprias exigências do movimento real das massas, das classes e das forças políticas. A esta característica essencial se subordinam as atividades de agitação e propaganda, do trabalho de massas e de organização do Partido. Para que os comunistas possam cumprir sua importante tarefa, devem estar a serviço das massas e lançar-se decididamente à atividade junto às massas. Ao invés de se voltarem apenas para o trabalho interno do Partido, precisam dedicar o Declaração sobre a política do Partido Comunista Brasileiro
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fundamental de suas energias à atuação legal nas organizações de massas e aí exercer uma função eminentemente construtiva. É indispensável, por conseguinte, tomar as medidas adequadas para que o maior número possível de quadros, militantes e dirigentes, realizem atividades legais entre as massas. Participando das lutas de massas nos movimentos reivindicativos, nas campanhas políticas, nas eleições, os comunistas não tem outro fim senão o de tornar vitoriosas as aspirações das massas, aprender com elas e educá-las a partir do nível de consciência que já atingiram. Os comunistas devem ser em toda parte trabalhadores isentos de exclusivismo, abnegados e consequentes, pela construção da frente única nacionalista e democrática. O Comitê Central concita a todos os militantes a empenharem-se no fortalecimento do Partido para torná-lo o instrumento adequado à execução vitoriosa da nova política traçada nesta Declaração, que deve guiar, de agora em diante, toda a atividade do Partido. O Comitê Central do PCB Março de 1958
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DISCURSO DE TANCREDO NEVES
Brasileiros, Neste momento alto na história, orgulhamo-nos de pertencer a um povo que não se abate, que sabe afastar o medo e não aceita acolher o ódio. A Nação inteira comunga deste ato de esperança. Reencontramos, depois de ilusões perdidas e pesados sacrifícios, o bom e velho caminho democrático. Não há Pátria onde falta democracia. A Pátria não é a mera organização dos homens em estados, mas sentimento e consciência, em cada um deles, de que lhe pertencem o corpo e o espírito da Nação. Sentimento e consciência da intransferível responsabilidade por sua coesão e seu destino. A Pátria é escolha, feita na razão e na liberdade. Não basta a circunstância do nascimento para criar esta profunda ligação entre o indivíduo e sua comunidade. Não teremos a Pátria que Deus nos destinou enquanto não formos capazes de fazer de cada brasileiro um cidadão, com plena consciência dessa dignidade. Assim sendo, a Pátria não é o passado, mas o futuro que construímos com o presente. Não é a aposentadoria dos heróis, mas tarefa a cumprir. É a promoção da justiça, e a justiça se promove com liberdade.
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Na vida das nações, todos os dias são dias de História, e todos os dias são difíceis. A paz é sempre esquiva conquista da razão política. É para mantê-la, em sua perene precariedade, que o homem criou as instituições de Estado, e luta constantemente para aprimorá-las. Não há desânimo nessa condição essencial do homem. Por mais pesadas que sejam as sombras totalitárias ou mais desatadas as paixões anárquicas, o instinto da liberdade e o apego à ordem justa trabalham para restabelecer o equilíbrio social. No conceito que fazemos do estado democrático há saudável contradição: quanto mais democrática for uma sociedade, mais frágil será o estado. Seu poder de coação só se entende no cumprimento da lei. Quanto mais fraterna for a sociedade, menor será a presença do Estado. Debate Constitucional Brasileiros, a primeira tarefa de meu governo é a de promover a organização institucional do Estado. Se, para isso, devemos recorrer à experiência histórica, cabe-nos também compreender que vamos criar um Estado moderno, apto a administrar a Nação no futuro dinâmico que está sendo construído. Sem abandonar os deveres e preocupações de cada dia, temos de concentrar os nossos esforços na busca de consenso básico à nova Carta Política. Convoco-vos ao grande debate constitucional. Deveis, nos próximos meses, discutir, em todos os auditórios, na imprensa e nas ruas, nos partidos e nos parlamentos, nas universidades e nos sindicatos, os grandes problemas nacionais e os legítimos interesses de cada grupo social. É nessa discussão ampla que ireis identificar os vossos delegados ao poder constituinte e lhes atribuir o mandato de redigir a lei fundamental do País. A Constituição não é assunto restrito aos juristas, aos sábios ou aos políticos. Não pode ser ato de algumas elites. É responsabilidade de todo o povo. Daí a preocupação de que ela não surja no açodamento, mas resulte de uma profunda reflexão nacional. Os deputados constituintes, mandatários da soberania popular, saberão redigir uma Carta Política ajustada às circunstâncias 154
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históricas. Clara e imperativa em seus princípios, a Constituição deverá ser flexível quanto ao modo, para que as crises políticas conjunturais sejam contidas na inteligência da lei. Presidente eleito do Brasil, busco no coração e na consciência as palavras de agradecimento profundo aos correligionários da Aliança Democrática (2), o valente e fiel PMDB, sob o comando do Deputado Ulisses Guimarães, e o recém-fundado Partido da Frente Liberal, sob a liderança de Aureliano Chaves, Marco Maciel e meu companheiro, Vice-Presidente, José Sarney, aos integrantes do PDT, PT, PTB, dissidentes do PDS, que, por decisão partidária ou pessoal, me entregam a mais alta e mais difícil responsabilidade da minha vida pública. Os Compromissos Creio não poder fazê-lo de melhor forma do que, perante Deus e perante a Nação, nesta hora inicial de itinerário comum, reafirmar o compromisso de resgatar duas aspirações que, nos últimos vinte anos, sustentaram, com penosa obstinação, a esperança do povo: Esta foi a última eleição indireta do País. Venho para realizar urgentes e corajosas mudanças políticas, sociais e econômicas indispensáveis ao bem-estar do povo. Não foi fácil chegar até aqui. Nem mesmo a antecipação da certeza da vitória, nos últimos meses, apaga as cicatrizes e os sacrifícios que marcaram a História da luta que agora se encerra. Não há porque negar que houve muitos momentos de desalento e cansaço, em que cada um de nós se indagava se valia a pena a luta. Mas, cada vez que essa tentação nos assaltava, a visão emocionante do povo, resistindo e esperando, recriava em todos nós energias que supúnhamos extintas e recomeçávamos, no dia seguinte, como se nada houvesse sido perdido. A História da Pátria, que se iluminou através dos séculos com o martírio da Inconfidência Mineira, que registra, com orgulho, a força do sentimento de unidade nacional sobre as insurreições libertárias durante o Império, que fixou, para admiração dos pósteros, a bravura de brasileiros que pegaram em armas na defesa de postulados cívicos contra os vícios da Primeira-República, a História situará na eternidade o espetáculo inesquecível das grandes multidões que, em atos pacíficos de Discurso de Tancredo Neves
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participação e de esperança, vieram para as ruas reivindicar a devolução do voto popular na escolha direta para a Presidência da República. Frustradas nos resultados imediatos dessa campanha memorável, as multidões não desesperaram, nem cruzaram os braços. Convocaram-nos a que viéssemos ao Colégio Eleitoral e fizéssemos dele o instrumento de sua própria perempção, criando, com as armas que não se rendiam, o Governo que restaurasse a plenitude democrática. Na análise desses dois grandes movimentos cívicos, não sei avaliar quando o povo foi maior: se quando rompeu as barreiras da repressão, e veio para as ruas gritar pelas eleições diretas, ou se quando, nisso vencido, não se submeteu, e com extrema maturidade política exigiu que agíssemos dentro das regras impostas, exatamente para revogá-las e destruí-las. As Contribuições É inegável que o processo de transição teve contribuições isoladas que não podem ser omitidas: • A do Poder Legislativo, que, muitas vezes mutilado em sua constituição e nas suas faculdades, conservou acesa a chama votiva da representação popular, como última sentinela no campo da batalha democrática. • A do Poder Judiciário, que se manteve imune a influências dos casuísmos, para, na atual conjuntura, fazer prevalecer o espírito de reordenação democrática. • A da igreja, que com sua autoridade exponencial no campo espiritual e na ação social e educativa lutou na defesa dos perseguidos e pregou a necessidade da opção preferencial pelos pobres com base na democracia moderna. • A de homens e mulheres de nosso povo, principalmente as mães de famílias, que arrostaram as duras dificuldades de desemprego e da carestia em seus lares, e lutaram, com denodo, pela anistia, pelos direitos humanos e pelas liberdades políticas. • A da imprensa – jornais, emissoras de rádio e televisão – que sob a censura policial, a coação política e econômica, ousou bravamente enfrentar o poder para servir à liberdade do povo. 156
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• A da sociedade civil como um todo, em suas muitas instituições, a Ordem dos Advogados do Brasil, a Associação Brasileira de Imprensa, as entidades de classe patronais, de empregados, de profissionais liberais, as organizações estudantis, as universidades, e tantas outras, com sua participação, muitas vezes sob pressões inqualificáveis, nesse mutirão cívico da reconstrução nacional. • A das Forças Armadas, na sua decisão de se manterem alheias ao processo político, respeitando os seus desdobramentos até a alternativa do poder. • A de S. Excia., o Presidente João Figueiredo, (4) que, prosseguindo na tarefa iniciada com a revogação dos Atos lnstitucionais, ajudou com a anistia política, a devolução da liberdade de imprensa, as eleições diretas de 82, o desenvolvimento normal da sucessão presidencial. Graças a toda essa imensa e inesquecível mobilização popular, chegamos agora ao limiar da Nova República. Venho em nome da conciliação. Não podemos neste fim de século e de milênio, quando, crescendo em seu poder, o homem cresce em suas ambições e em suas angústias, permanecer divididos dentro de nossas fronteiras. Se não vemos as outras nações como inimigas, e as não vemos assim, devemos ter a consciência de que o mundo se contrai diante de árdua competição internacional. Acentua-se a luta pelo domínio de mercados, pelo controle de matérias primas, pela hegemonia política. As ideologias, tão fortes no século passado e na metade do século XX, empalidecem frente a um novo nacionalismo. Tarefa Prioritária Ao mesmo tempo, fenômeno típico do desenvolvimento industrial e da expansão do capitalismo, surge nova realidade supranacional nas grandes corporações empresariais. Aparentemente desvinculadas de suas pátrias de origem, tais organizações servem, fundamentalmente, a seus interesses. Ao lado da ordem constitucional, que é tarefa prioritária, temos que cuidar da situação econômica. A inflação é a maniDiscurso de Tancredo Neves
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festação mais clara da desordem na economia nacional. Iremos enfrentá-la desde o primeiro dia. Não cairemos no erro, grosseiro, de recorrer à recessão como instrumento deflacionário. Ao contrário: vamos promover a retomada do crescimento, estimulando o risco empresarial e eliminando, gradativamente, as hipertrofias do egoísmo e da ganância. O ritmo de nossa ação saneadora dependerá unicamente da colaboração que nos prestarem os setores interessados. Contamos, para isso, com o patriotismo de todos. Retomar o crescimento é criar empregos. Toda a política econômica de meu Governo estará subordinada a esse dever social. Enquanto houver, neste País, um só homem sem trabalho, sem pão, sem teto e sem letras, toda a prosperidade será falsa. Cabe acentuar que o desenvolvimento social não pode ser considerado mera decorrência do desenvolvimento econômico. A Nação é essencialmente constituída pelas pessoas que a integram, de modo que cada vida humana vale muito mais do que a elevação de um índice estatístico. Preservá-la constitui, portanto, um dever que transcende a recomendação de caráter econômico, tão indeclinável quanto a defesa das nossas fronteiras. Nessas condições, temos de reconhecer e admitir, como objetivo básico da segurança nacional, a garantia de alimento, saúde, habitação, educação e transporte para todos os brasileiros. O bem-estar que pretendemos para a sociedade brasileira deve assentar-se sobre a livre iniciativa e a propriedade privada. Exatamente por isso adotaremos medidas que venham a democratizar o acesso à propriedade e à proteção das pequenas empresas. A defesa do regime de livre iniciativa não pode ser confundida, como muitos o fazem, com a proteção aos privilégios de forças econômicas e financeiras. Defender a livre iniciativa e a propriedade privada é defendê-las dos monopólios e do latifundio. Brasileiros, O entendimento nacional não exclui o confronto das ideias, a defesa de doutrinas políticas divergentes, a pluralidade de opiniões. Não pretendemos entendimento que signifique capitulação, nem o morno encontro dos antagonistas políticos em região de imobilismo e apatia. O entendimento se faz em torno de razões maiores as da preservação da integridade e da soberania nacionais. 158
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Dentro dessa ordem de ideias a conciliação, instruindo o entendimento, deve ser vista como convênio destinado a administrar a transição rumo à nova e duradoura institucionalização do Estado. Faz algumas semanas eu anunciava, em Vitória, a construção de uma Nova República. Vejo, nesta fase da vida nacional, a grande oportunidade histórica de nosso povo. As crises porque temos passado, desde a Independência, podem ser atribuídas a dificuldades normais em um processo de formação de nacionalidade. Hoje, no entanto, encontram-se vencidas as etapas mais duras. Mantivemos a integridade política da Nação graças à habilidade do Segundo Reinado, que soube exercer a tolerância nos momentos certos, evitando que das insurreições liberais vencidas ficassem cicatrizes históricas. Com a ocupação da Amazônia e do Oeste, concluída nos últimos decênios, chegamos ao fim da tarefa iniciada pelos bandeirantes e desenvolvida por pioneiros intrépidos e desbravadores audazes, pelo gênio político de Rio Branco e pela bravura nacionalista do Marechal Rondon. Deixamos, há muito, de ser, aos olhos estrangeiros, exótica nação dos trópicos. lncluímo-nos entre os países economicamente mais desenvolvidos. Nossa cultura é admirada internacionalmente. Traduzem-se os nossos escritores em todas as línguas, a música brasileira é conhecida, e o desempenho de nossos artistas de teatro, de cinema e de televisão recebe o aplauso de espectadores de inúmeros países. Na pesquisa científica, apesar dos poucos recursos públicos, temos obtido excepcionais resultados. Nossos homens de ciências têm o seu trabalho admirado nos principais centros mundiais. Dever dos Políticos Sabeis que os homens públicos não se fazem de especial natureza. Eles se encontram sujeitos à fragilidade da condição humana. Quando um povo escolhe o Chefe de Estado, não elege o mais sábio de seus compatriotas, e é possível que não eleja o mais virtuoso deles. Tais qualidades, que só o juízo subjetivo consegue atribuir, não podem ser medidas. Ao nomear, com
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seu voto, o Presidente da República, a Nação expressa a confiança de que ele saberá conduzi-la na busca do bem comum. Consciente desta realidade, concito-vos ao grande mutirão nacional. Não há um só de vós que pode ser dispensado desta convocação. A cidadania não é atitude passiva, mas ação permanente em favor da comunidade. Faço meu apelo aos homens públicos. A política, tal como a entendemos, é a mais nobre e recompensadora das atividades humanas. Servir ao povo reclama dedicação incansável, noites indormidas, o peso abrasador das emoções. São muitos os que sucumbem em pleno combate, legando-nos o exemplo de seu sacrifício pela Pátria. “Com o êxtase e terror de haver sido o escolhido”, como diria Verlaine, entrego-me, hoje, ao serviço da Nação. Nesta hora, de forte exigência interior, recorro à memória de Minas, na inspiração familiar, e na fé revelada na paz das igrejas de São João del Rey. Tantas vezes renovada em minha vida, é a esta memória, com sua inspiração e sua fé que recorrerei, se a tentação do desalento vier a assaltar-me. Fui chamado na hora em que realizava a grande aspiração política de minha vida, que era a honra de administrar o meu Estado, a grande e generosa terra de Minas Gerais, e procurava colocar a sua renascente força política a serviço da causa da Federação hoje distorcida, esvaziada, humilhada. Não deixaria ao meio o mandato que o povo mineiro me confiou, para assumir o supremo Poder da Nação, apenas pelo gosto do Poder, que nem sempre é glória ou alegria. Vim para promover as mudanças, mudanças políticas, mudanças econômicas, mudanças sociais, mudanças culturais, mudanças reais, efetivas, corajosas, irreversíveis. Nunca o País dependeu tanto da atividade política. Dirijo-me, pois, a todos vós que a exerceis, aos que servirão a meu Governo com seu apoio e aos que a ele prestarão a vigilância de opositores. Não aspiro à unanimidade, nem postulo a conciliação subalterna, que se manifesta no aplauso inconsequente do aulicismo. A conciliação se faz em torno de princípios, e ninguém poderá inquinar, na injustiça e na maledicência, os que nos reuniram nesta vitoriosa aliança de forças democráticas. 160
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Quero a conciliação para a defesa da soberania do povo, para a restauração democrática, para o combate à inflação, para que haja trabalho e prosperidade em nossa Pátria. Vamos promover o entendimento entre o povo e o Governo, a Nação e o Estado. Rejeitaria, se houvesse quem a pretendesse, a conciliação entre elites, o ajuste que visasse à continuação dos privilégios, à manutenção da injustiça, ao enriquecimento sobre a fome. Para a conciliação maior, sem prejuízo dos compromissos de Partido e de doutrina, convoco os homens públicos brasileiros, e todos os cidadãos de boa fé. No serviço da Pátria há lugar para todos. Tenho uma palavra especial para os trabalhadores. É às suas mãos que muito devemos e é em suas mãos que está o futuro do nosso País. Desde o primeiro passo de minha vida pública tenho contado com o apoio dos trabalhadores. Elegi-me vereador em São João dei Rey com os votos dos ferroviários e nunca deixei de lhes merecer a confiança política. Uma Nação evolui na mesma medida em que cresce a sua participação na divisão de renda e na direção dos negócios públicos. Ao prestar minha homenagem a esses brasileiros, que são a maioria de nosso povo, reafirmo-lhes o compromisso de dedicar todo o meu esforço para que se ampliem e se respeitem os seus direitos. A reconstrução democrática do País significa o retorno, em toda a liberdade, dos trabalhadores à vida política. Sem seu apoio, nenhum Governo poderá cumprir suas tarefas constitucionais. Brasileiros, esta memorável campanha confirmou a ilimitada fé que tenho em nosso povo. Nunca, em nossa História, tivemos tanta gente nas ruas, para reclamar a recuperação dos direitos da cidadania e manifestar seu apoio a um candidato. Em todo o País, foi o mesmo entusiasmo. De Rio Branco a Natal, de Belém a Porto Alegre, as multidões se reuniram, em paz, cantando, para dizer que era preciso mudar, que a Nação, cansada do arbítrio, não admitia mais as manobras que protelassem o retorno das liberdades democráticas.
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Não vamos nos dispersar. Continuemos reunidos, como nas praças públicas, com a mesma emoção, a mesma dignidade e a mesma decisão. Se todos quisermos, dizia-nos, há quase duzentos anos, Tiradentes, aquele herói enlouquecido de esperança, podemos fazer deste País uma grande Nação. Vamos fazê-la. Campanha das Diretas-Já
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