N° 17 - O desafio da esquerda no Brasil

Page 1


O desafio da esquerda no Brasil

Politica Democratica 17 - 25 de 1 1

26/3/2007 17:38:12


Fundação Astrojildo Pereira SDS · Edifício Miguel Badya · Sala 322 · 70394-901 · Brasília-DF Fone: (61) 3224-2269 Fax: (61) 3226-9756 - fundacao@fundacaoastrojildo.org.br www.fundacaoastrojildo.org.br

Política Democrática Revista de Política e Cultura www.politicademocratica.com.br

Conselho de Redação Editor Caetano E.P. Araújo Editor Executivo Francisco Inácio de Almeida Editor Executivo Adjunto Cláudio Vitorino de Aguiar

Alberto Aggio

Anivaldo Miranda Davi Emerich Dina Lida Kinoshita Ferreira Gullar George Gurgel de Oliveira

Giovanni Menegoz Ivan Alves Filho José Antonio Segatto Luiz Mário Gazzaneo Raimundo Santos

Conselho Editorial Alberto Passos Guimarães Filho Amilcar Baiardi Antonádia Monteiro Borges Antonio Carlos Mota Antonio Carlos Máximo Antonio Ildegardo Alencar Armênio Guedes Artur da Távola Artur José Poerner Aspásia Camargo Augusto de Franco Benedito Monteiro Bernardo Ricupero Celso Frederico Cícero Péricles de Carvalho Charles Pessanha Délio Mendes Denis Lerrer Rosenfield Fábio Freitas Fernando Pardellas Flávio Kothe Francisco José Pereira

Gildo Marçal Brandão Gilson Leão Gilvan Cavalcanti Hermano Nepomuceno Irma Passoni Joanildo Buriti José Bezerra José Carlos Capinam José Cláudio Barriguelli José Monserrat Filho Luís Gustavo Wasilevsky Luiz Carlos Azedo Luiz Carlos Bresser-Pereira Luiz Eduardo Soares Luiz Gonzaga Beluzzo Luís Sérgio Henriques Luiz Werneck Vianna Manoel Correia de Andrade Marco Antonio Coelho Marco Aurélio Nogueira Maria do Socorro Ferraz Marisa Bittar

Michel Zaidan Milton Lahuerta Oscar D’Alva e Souza Filho Othon Jambeiro Paulo Alves de Lima Paulo Bonavides Paulo César Nascimento Paulo Fábio Dantas Pedro Vicente Costa Sobrinho Raul de Mattos Paixão Filho Ricardo Cravo Albin Ricardo Maranhão Roberto Mangabeira Unger Rose Marie Muraro Sérgio Augusto de Moraes Sérgio Bessermann Sinclair Mallet Guy Guerra Telma Lobo Washington Bonfim Willame Jansen Willis Santiago Guerra Filho Zander Navarro

Copyright © 2007 by Fundação Astrojildo Pereira ISSN 1518-7446

Ficha Bibliográfica Política Democrática – Revista de Política e Cultura – Brasília/DF: Fundação Astrojildo Pereira, 2007. Nº 17, março de 2007 200 p. 1. Política. 2. Cultura. I. Fundação Astrojildo Pereira. II. Título. CDU 32.008.1 (05) Os artigos publicados em Política Democrática são de responsabilidade dos respectivos autores. Podem ser livremente veiculados desde que identificada a fonte.

Politica Democratica 17 - 25 de 2 2

26/3/2007 17:38:12


Política Democrática Revista de Política e Cultura Fundação Astrojildo Pereira

O desafio da esquerda no Brasil

Politica Democratica 17 - 25 de 3 3

26/3/2007 17:38:12


Sobre a capa

O

autor das belas pinturas de nossas capa e contracapa é o artista plástico cearense Félix Ximenes, nascido em 1944. Seus primeiros conhecimentos de pintura, desenho artístico, anatomia e modelagem (escultura), ele recebeu na antiga Sociedade Cearense de Artes Plásticas (SCAP), celeiro de figuras da qualidade de Aldemir Martins, Antonio Bandeira, Barrica, Estrigas, Sérvulo Esmeraldo e Zenon Barreto. Funcionário do Banco do Nordeste, desde 1958, foi dali demitido pela ditadura militar que se instalou no país em 1964, por ser militante do clandestino Partido Comunista Brasileiro. Fora do BNB, dedicou-se com grande sucesso à atividade privada de criação de stands para grandes empresas locais, regionais, nacionais e até multinacionais, em eventos de grande porte realizados no Sul e no Sudeste. Foi um período de sucesso além do esperado e que perdurou até 1979, quando, por força da Lei da Anistia, foi reintegrado ao BNB, dele se aposentando anos depois. Excelente profissional da fotografia, participou de várias exposições pelo Brasil e na França, destacando-se a da I Festa do Mar, em Florianópolis, onde recebeu um troféu; Festival Mundial de Folclore em Bray-Dunes/França e a mostra Juazeiro do Norte, Imagens da Fé, que estreou na Escola Nacional de Música, do Rio de Janeiro, e foi exibida em Fortaleza e Aracaju, sendo doada, posteriormente, à Paróquia de Juazeiro. Participou de dois Salões de Abril, a melhor mostra de artes plásticas do Ceará, nas modalidades de pintura e fotografia. A seleção de pinturas, aqui publicada, faz parte de sua última exposição em Fortaleza que traz suas realizações mais recentes em óleo sobre tela, quadros que retratam cenas noturnas de bares e outros espaços públicos, alguns reproduzidos, outros imaginados, com uma composição bem estruturada e um colorido suave e harmônico, cujo leit motiv é um foco de luz, que provém do interior, transpondo invariavelmente uma grande porta aberta e invadindo a via pública, poeticamente deserta, ambientes soturnos, marcados pela ausência sistemática da figura humana.

Politica Democratica 17 - 25 de 4 4

26/3/2007 17:38:12


Sumário

I. Apresentação O desafio da esquerda no Brasil

Caetano Araújo............................................................................................................................ 11

II. Conjuntura – O desafio da esquerda no Brasil Dos partidos ao Projeto de Esquerda

Rudá Ricci................................................................................................................................... 17

O fantasma da modernidade

Martin Cezar Feijó....................................................................................................................... 25

Estamos velhos como os nossos pais

Davi Emerich............................................................................................................................... 33

Uma nova esquerda

José do Nascimento Junior.......................................................................................................... 38

Quem somos nós?

Raul Jungmann........................................................................................................................... 41

III. Observatório Político Água e democracia

Anivaldo de Miranda................................................................................................................... 47

Faltam petições para tantas tragédias

Mariana Mota Prado................................................................................................................... 54

Violência & Cultura

Ivan Alves Filho........................................................................................................................... 57

Aquecimento Global

Humberto França........................................................................................................................ 63

Politica Democratica 17 - 25 de 5 5

26/3/2007 17:38:12


IV. No Compasso das Reformas Reforma política: uma lógica velha, mas repaginada como nunca

Isabela Naves............................................................................................................................. 67

A Educação entre nós: do diagnóstico à solução

Lucília Helena do Carmo Garcez.................................................................................................. 71

Educação e PDE: transformação ou ilusão?

Marcelo Aguiar e Carlos Henrique Araújo..................................................................................... 76

V. Batalha das Idéias A solidão dos intelectuais: entre a moralidade e o compromisso

Edison Bariani............................................................................................................................ 87

Fé em tempo de consumo

Inez Lemos................................................................................................................................. 97

A Amazônia já não é nossa

Lúcio Flávio Pinto..................................................................................................................... 101

Atalhos para o resgate da cidadania

Ariosto Holanda........................................................................................................................ 107

VI. Mundo O mundo globalizado, a hegemonia americana e o fundamentalismo

Délio Mendes............................................................................................................................ 119

Democracia, conflito social e participação: a rebelião os jovens no Chile

Fernando de la Cuadra............................................................................................................. 125

O socialismo venezuelano do século XXI

Dina Lida Kinoshita.................................................................................................................. 136

Politica Democratica 17 - 25 de 6 6

26/3/2007 17:38:13


VII. Vida Cultural A construção do feminino no romance brasileiro

Regina Dalcastagnè.................................................................................................................. 141

A “gramática Chico Alvim” do diálogo

Marcus Alves............................................................................................................................ 147

VIII. Documento I Congresso (de fundação) do PCB...................................................... 153

IX. Ano Caio Prado Jr. Na trilha de Caio Prado Jr.

Raimundo Santos...................................................................................................................... 163

X. Memória A crise do Canal de Suez em 1956: o fim de uma época no Oriente Médio e o começo de outra Efraim Davidi............................................................................................................................ 171

Porque sou romancista

José de Alencar......................................................................................................................... 182

XI. Resenhas Luiz Maranhão, o santo da democracia

Cláudio de Oliveira.................................................................................................................... 189

As contradições do marechal

Pedro Paulo Rezende................................................................................................................. 192

A esquerda européia e a construção democrática

Alberto Aggio............................................................................................................................. 194

Politica Democratica 17 - 25 de 7 7

26/3/2007 17:38:13


Politica Democratica 17 - 25 de 8 8

26/3/2007 17:38:13


I. Apresentação Caetano E.P. Araújo

Professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) e consultor legislativo do Senado Federal. caetano@senado.gov.br

Politica Democratica 17 - 25 de 9 9

26/3/2007 17:38:14


Autor Caetano E.P. AraĂşjo

Professor do Departamento de Sociologia da Universidade de BrasĂ­lia (UnB) e consultor legislativo do Senado Federal. caetano@senado.gov.br

Politica Democratica 17 - 25 de 10 10

26/3/2007 17:38:14


O desafio da esquerda no Brasil Caetano E.P. Araújo

O

tema selecionado para discussão neste número de Política Democrática sempre esteve presente em nossa revista desde sua fundação: o desafio da esquerda no Brasil. Afinal, a crise das duas grandes vertentes da esquerda do século XX, o comunismo e a social-democracia, deu início a um processo de redefinição de estratégias e objetivos ainda em andamento. A discussão confronta posições que diferem fundamentalmente sobre o grau em que as antigas idéiasforça da esquerda devem ser mantidas, modificadas ou abandonadas. Em torno dessa questão, formam-se e alteram-se, continuamente, novas ortodoxias e revisionismos. Nesse debate, não há nem haverá palavra final. Ao contrário do século XIX e da maior parte do século XX, propostas e programas da esquerda contemporânea não tomarão a forma de um corpo teórico e doutrinário fechado. Perdemos em termos de certezas e segurança, ganhamos, penso eu, em consciência e diversidade de formulações. Um texto introdutório a uma seleção de artigos não pode pretender mais que lançar algumas das questões mais relevantes do debate. Penso que uma maneira sintética e eficiente de fazer isso é apresentar os diferentes significados políticos que o conceito de esquerda foi acumulando e questionar sua validade presente. José Luiz Fiori remonta o surgimento da esquerda, já dividida em questões fundamentais, aos radicais das revoluções inglesas do século XVII. Poderíamos recuar até os revolucionários camponeses alemães do século anterior, mas, num e noutro caso, importa lembrar o traço específico desses movimentos: uma utopia igualitária ou o igualitarismo como valor.

11

Politica Democratica 17 - 25 de 11 11

26/3/2007 17:38:14


I. Apresentação

De Babeuf a Marx, desenvolve-se, no século XIX, sob o impacto da revolução industrial, um significado adicional de esquerda, que viria a sobrepor-se ao primeiro: o usufruto comum da propriedade, concentrada nas mãos do Estado, gerida racionalmente, por meio do planejamento centralizado. A vitória política dessa visão no campo da esquerda ocorreu em prejuízo de socialistas utópicos, que dispensavam a luta pelo poder estatal, e de anarquistas, que propugnavam a extinção imediata do estado após a vitória da revolução e a auto-gestão dos trabalhadores como instrumento de organização da economia. A Revolução de Outubro acrescentou mais um significado ao leque de critérios definidores da esquerda. Com a bipolaridade do mundo, a dimensão antiimperialista ganhou importância. Governos, partidos e movimentos puderam ser classificados como esquerdistas simplesmente por sua postura antiamericana. Finalmente, a divisão entre comunistas e social-democratas, fruto também da Revolução de Outubro, contribuiu também para enriquecer as definições de esquerda. A tentativa de conciliar democracia e socialismo, com a incorporação, depois de 1930, das idéias de Keynes, originou um modelo no qual o Estado, pela via da propriedade de setores essenciais, do manejo de políticas macroeconômicas e pelo poder de arbítrio dos conflitos entre capital e trabalho parecia ter conseguido domesticar o mercado e transformar os capitalistas em funcionários da coletividade. Evitaram-se as crises até então cíclicas do capitalismo e condições mínimas de segurança (“do berço ao túmulo”), em termos de emprego, renda, aposentadoria, educação, saúde e moradia, foram garantidas a todos. Como se comportam todos esses significados no nosso mundo de hoje? A idéia do controle estatal da produção, da organização da economia por meio exclusivo do planejamento, sofreu um duro golpe com a queda do socialismo real. O mercado ressurgiu mesmo em países em que o poder político continua nas mãos do Partido Comunista. Tudo indica que a concentração da propriedade no Estado faliu como meio de conseguir prosperidade e igualdade. Nesse caso, nenhum governo de uma esquerda nova poderia prescindir do mercado. A alternativa ortodoxa seria persistir nas antigas definições, pensar a superação do capitalismo apenas como o controle estatal direto dos meios de produção e aguardar as condições propícias para uma nova rodada de estatização. A idéia associada à propriedade estatal exclusiva, o controle do Estado pelo partido único, apresenta também sinais claros de falência. O mais evidente talvez seja a rapidez com que os ganhos em termos 12

Politica Democratica 17 - 25 de 12 12

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:14


O desafio da esquerda no Brasil

de igualdade de condições conseguidos pelo comunismo se evaporaram. Garantidos apenas pela força e não pela mobilização cívica dos cidadãos, caíram com a queda do regime. Moral da história: sem participação, ou seja, sem liberdade de informação, expressão, reunião e organização, qualquer avanço é aparente e na realidade não temos nada. Não há atalho. Para atingir seus objetivos, a esquerda no poder precisa da democracia. A equivalência automática entre esquerda e antiimperialismo tampouco parece haver sobrevivido à queda do muro. Parece claro que o enfrentamento antiamericano promovido pelo radicalismo islâmico, por exemplo, não pode ser considerado a priori como esquerda. A agenda de esquerda nas relações internacionais está em gestação, mas aponta mais no sentido da construção de uma governança democrática internacional, objetivo que confronta, evidentemente, as posições norte-americanas, mas em nome da ampliação da democracia e da constituição de uma ordem multipolar. Finalmente, o significado social-democrata de esquerda. Na Europa, o Estado de Bem-Estar Social funcionou bem até à década de 1970. A partir daí entrou em crise, crise que rebateu na política sob a forma da eleição de governos neoliberais e obrigou os partidos social-democratas a uma revisão teórica e política que dura até hoje. Há fortes evidências de que a revolução tecnológica e o processo de globalização que dela resultou inviabilizaram a continuidade do modelo. Hoje, o capital, como a informação, locomove-se instantaneamente pelo mundo todo. Não precisa submeter-se a restrições impostas pelas políticas macroeconômicas dos Estados nacionais nem a seu poder de arbítrio de conflitos. A idéia de um Estado gerente exclusivo ou principal do crescimento econômico, dos conflitos de classe, das crises do sistema, da segurança dos cidadãos, parece um sonho tão distante quanto a ditadura do proletariado. Resta, nessa perspectiva, como critério definidor da esquerda, sua motivação de valores, constante na história: a igualdade como valor. Os meios para consegui-la, desenvolvidos em séculos de lutas, encontram-se, aparentemente, esgotados. O caráter da utopia está em transformação. A sociedade de trabalhadores, que por meio do Estado, partilha a riqueza da sociedade não se revelou um caminho aceitável e eficiente para conseguir e manter uma situação de eqüidade. Se mercado e democracia precisam ser incorporados à utopia, por outro lado, qual a igualdade possível nessas condições? A distribuição contínua de propriedade, renda, conhecimento e poder, e a radicalização constante da democracia podem apontar para uma resposta. 13

Politica Democratica 17 - 25 de 13 13

26/3/2007 17:38:14


Politica Democratica 17 - 25 de 14 14

26/3/2007 17:38:14


II. Conjuntura

Politica Democratica 17 - 25 de 15 15

26/3/2007 17:38:15


Autores Rudá Ricci

Sociólogo, doutor em Ciências Sociais, coordenador do Instituto Cultiva e membro do Comitê Executivo Nacional do Fórum Brasil do Orçamento. ruda@inet.com.br .

Martin Cezar Feijó

Professor de comunicação na FAAP e no programa de pós-graduação em Educação, Arte e História da Cultura na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Historiador formado pela FFLCH-USP e doutor em Comunicação pela ECA-USP. Autor de vários livros, entre eles O Revolucionário Cordial (Boitempo/Fapesp, 2001).

Davi Emerich Jornalista profissional, mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB).

José do Nascimento Junior Antropólogo, é diretor do Departamento de Museus e Centros Culturais do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Raul Jungmann Deputado federal (PPS-PE), ex-presidente do Ibama (1995-1996) e ex-ministro do Desenvolvimento Agrário (1996-2002).

Politica Democratica 17 - 25 de 16 16

26/3/2007 17:38:15


Dos partidos ao Projeto de Esquerda Rudá Ricci

O

s partidos políticos modernos nasceram no século XIX. Eram, no início, partidos operários, funcionavam além do período eleitoral, eram compostos por um corpo de militância estável e possuíam um programa político para toda a sociedade. Eles vieram para superar o que a literatura especializada denominou de Partidos de Notáveis, que emergiram no século XVIII como clubes de lideranças burguesas que faziam uma breve campanha para que fosse definido um representante no processo de transição do feudalismo para o capitalismo. Os partidos de notáveis desmontavam assim que o representante era escolhido. Os partidos de esquerda, que no final do século XIX e início do XX, se conformaram a partir da tradição marxista, tiveram sua referência na organização militarizada que ficou desenhada por Lênin em Que Fazer? Mas, mesmo Lênin não elaborou a mesma proposta organizativa ao longo de sua vida. Em seu primeiro texto a respeito, de 1895 (Projeto e Explicação do Programa do Partido Social-Democrata), o líder bolchevique sugeria que o papel do partido político seria o de articular e unificar as lutas sociais, que seriam a verdadeira escola política das massas. Quatro anos depois, começava a esboçar uma concepção vanguardista do papel do partido. Sustentou que a luta pelo socialismo e a luta operária estariam divorciadas no cotidiano. Finalmente, em 1902, quando publica Que Fazer?, Lênin indica a premissa da construção de uma importante burocracia partidária, profissionalizada, criando uma lógica etapista da luta e formação política, que passaria da luta sindical, de caráter econômico, à luta política. Entretanto, a compreensão política do mundo não seria fruto de uma evolução natural. Surge uma relação direta entre o cotidiano

17

Politica Democratica 17 - 25 de 17 17

26/3/2007 17:38:15


II. Conjuntura

operário e a alienação, de um lado; e a consciência política e a teoria revolucionária e o profissionalismo partidário, de outro. Em seu último texto (Vale quanto Pesa), contudo, Lênin reconhece que sua suposição estava equivocada. Num mea culpa duríssimo, lamenta que a relação que teria estimulado entre partido, Estado e governo teria gerado uma burocracia que se distanciava perigosamente do dia-a-dia da vida social concreta. Este tema foi um dilema fundamental para toda a trajetória das esquerdas no século XX. Desde o debate sobre a determinação essencial do poder capitalista, se centrado no desenvolvimento das forças produtivas ou nas relações de produção, até o difícil aprofundamento sobre o caráter da alienação do trabalho. Não por outro motivo, uma das passagens mais instigantes e apaixonadas do jovem Marx trata das relações de equivalência. Embora esta passagem seja dedicada, nos Manuscritos Econômico-Filosóficos às trocas mediadas pelo dinheiro, Marx avança surpreendentemente sobre a equivalência nas relações humanas. No Terceiro Manifesto vaticina: Suponhamos que o homem seja homem e que sua relação com o mundo seja humana. Então, o amor só poderá ser trocado por amor, confiança, por confiança, etc. Se se desejar apreciar a arte, será preciso ser uma pessoa artisticamente educada; se se quiser influenciar outras pessoas, será mister se ser uma pessoa que realmente exerça efeito estimulante e encorajador sobre as outras. Todas as nossas relações com o homem e com a natureza terão de ser uma expressão específica, correspondente ao objeto de nossa escolha, de nossa vida individual real. Se você amar sem atrair amor em troca, i. é, se você não for capaz, pela manifestação de você mesmo como uma pessoa amável, fazer-se amado, então seu amor será impotente, uma desgraça.

Um dilema que pode ser transposto, num exercício de analogia, para a representação política. Se o líder não se fizer refletido nos liderados, se o representante não se fizer legitimado nos representados, então esta relação política será impotente, uma desgraça. Tantos outros autores, de todas as filiações que se ramificaram a partir das teorias de Marx, procuraram responder e aprofundar este dilema. Quase todos foram devorados por ele. Trotsky, no exílio mexicano, escreveu copiosamente a respeito; Gramsci, na prisão fascista, ampliou o conceito de hegemonia como cimento, ou capacidade de escuta, interpretação e fusão dos interesses difusos de 18

Politica Democratica 17 - 25 de 18 18

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:16


Dos partidos ao Projeto de Esquerda

vários agrupamentos sociais; Erich Fromm retomou os estudos sobre alienação; recentemente, o tema ressurgiu no seio das esquerdas a partir do debate sobre a democracia como valor universal, sem adjetivos. Mas foi nos anos 1990 que, a partir da força inovadora dos movimentos sociais e conquista de espaços no interior da estrutura de Estado (principalmente na América Latina) que o cruzamento entre sociedade civil e sociedade política se cruzou e se complexificou definitivamente. Antes de entendermos com mais detalhes esta novidade dos últimos 15 anos, é importante demarcar que a crise de legitimidade dos partidos enquanto estruturas de organização de interesses e representação política nunca foi tão profunda como agora, em que a sociedade civil se fragmentou e parte de suas organizações acabou por invadir o Estado, em forma de conselhos de gestão, de participação direta na condução de orçamentos públicos, de sistemas e estruturas de monitoramento e controle social sobre políticas públicas. Não chega a ser uma mudança definitiva na política, mas revela um esboço de tendência ou tensão política. Durante o século XX esta organização de representação política (o partido político) foi se desgastando gradativamente. Robert Michells foi o mais conhecido crítico da estrutura partidária moderna, fundamentando sua crítica a partir da teoria da Lei de Ferro da Oligarquização, que sugere a formação de oligarquias políticas e burocratização interna na tomada de decisão. No final do século XX, ficou patente o desencanto e ressentimento generalizado com as lideranças e estruturas partidárias: desde a formação de ligas regionais na Europa, que quebraram a unidade nacional dos partidos; até mesmo a criação de estruturas em rede, envolvendo movimentos sociais e ONGs, modelo adotado pelo Fórum Social Mundial. Pesquisas recentes revelam o que parece um paradoxo entre o aumento de mecanismos de controle social e participação cidadã na gestão pública e o afastamento progressivo do interesse e participação do cidadão comum. Este paradoxo vem estimulando estudos importantes desde a década de 70 do século passado. Richard Sennett, em seu livro O Declínio do Homem Público, sugere que a representação pública se distanciou de tal magnitude da vida cotidiana comum que se espraiou um forte sentimento de ressentimento sobre todo espaço e institucionalidade pública. O ressentimento, por sua vez, gera um profundo acanhamento do homem simples, sem poder político decisivo, que o impele a ser transparente e afetivo apenas em seu restrito círculo de confiança, no espaço íntimo, privado. Em públi-

19

Politica Democratica 17 - 25 de 19 19

26/3/2007 17:38:16


II. Conjuntura

co, desenvolveria um ameaçador cinismo político, que nega qualquer compromisso com tudo o que é público. Alain Touraine, em seu livro Poderemos Viver Juntos? sustenta que o mundo globalizado apartou a dimensão cultural (dos valores e tradições sociais) da dimensão política e econômica. A política estaria a serviço da economia globalizada, tendo como principal objetivo a criação de um ambiente de segurança para os investimentos privados, do alto capital lastreado pelo sistema financeiro. Manuel Castells sugeriu, recentemente, que o Estado teria como função primordial no mundo globalizado o de facilitador do fluxo de capital. O mundo da política (e, com ele, os partidos políticos) se descolou do cotidiano social e vinculou-se à dinâmica econômica. Paradoxalmente, o que a tradição leninista procurava distinguir (a dimensão econômica da dimensão política) acabou desmanchando no ar. Os partidos políticos (incluindo os de esquerda) conformaram, desde a década de 80, um poderoso mercado de votos. As esquerdas não conseguiram, desde então, criar um projeto alternativo, inovador e progressista, de ampliação da representação e participação do cidadão na definição das decisões políticas. Pelo contrário, capitularam ao mercado de votos. Nas exceções, disseminaram um discurso estranho aos que pretende representar. Enfim, se enredou em lógicas estranhas à representação política. Neste final da primeira década do século XXI o sonho de uma noite de verão se dissipou. Como dizia Puck, pela pena de Shakespeare, se tudo causou enfado, que o melhor é pensar que foi sonho, uma visão (ou uma teoria que não se revelou fértil). Mas haveria uma chance, como prediz a última fala de Oberon. Marx, ao analisar a equilvalência, retomou a busca frenética pelo amor que ser revelava no enredo infernal de Shakespeare, em que todos se amam e os amores são trocados, até que, na manhã seguinte, tudo se resolve e ocorre um casamento triplo.

Reatando a política com o cotidiano dos cidadãos O fato é que o Brasil seguiu a passos rápidos o que acontece a décadas na Europa e EUA, e já se manifesta em parte da Ásia: os partidos transformaram-se em imensas máquinas de tipo empresarial em busca do voto. Não por outro motivo, grande parte dos brasileiros que assistiu os depoimentos de dirigentes partidários envolvidos diretamente nos inúmeros casos de corrupção que assolou a política nacional, nunca

20

Politica Democratica 17 - 25 de 20 20

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:16


Dos partidos ao Projeto de Esquerda

havia sequer visto de relance as figuras de administradores que, de fato, movimentam fortunas, articulam negociações e acordos, definem e conduzem empresas de marketing político, comandam o cotidiano partidário. Os partidos se transmutaram em empresas. Possuem a lógica e a estrutura de uma empresa do século XX. Seus líderes estão absolutamente descolados da vida dos militantes, justamente porque um corpo administrativo poderoso se transformou numa parede de isolamento e proteção. Típico de qualquer estrutura burocrática. O que é mais significativo é que o corpo administrativo passa a ser a face real, do poder real, dos partidos. É ele quem faz acordos e efetiva alianças, quem coordena o marketing, quem seleciona e traduz a elaboração dos técnicos e especialistas, quem define as estratégias gerais, quem comanda o cotidiano das contas e pagamentos, quem planta as notícias na grande imprensa, quem promove as tramas e intrigas, quem organiza os encontros e congressos partidários, quem estabelece as rotinas e compromissos com sindicatos e outras estruturas de representação social, quem organiza as relações entre filiados e eleitos. Secretário geral, tesoureiro, secretário de formação ou de organização, secretário de comunicação dos partidos políticos possuem um poder inimaginável para o eleitor. Constituem um poder que quase não possui ônus pessoal e quase sempre são portadores de imensos bônus. Não se expõem à luz do dia como os líderes que são chamados pela imprensa e que se arriscam nas eleições. Sua ascensão se faz pelos acordos internos, na penumbra dos corredores e salas de gabinete. É raro prestarem contas publicamente. Não se expressam bem, justamente porque não exercitam a comunicação. Acostumam-se ao discurso executivo, sumário, de quem manda. As esquerdas, por uma trajetória tortuosa e estranha aos seus objetivos finais, foi vítima desta tentação burocrática porque ela facilita o acesso ao poder, mas destrói os laços de confiança e o diálogo entre representantes e representados. Enfim, os partidos políticos, incluindo os de esquerda, abandonaram seu papel pedagógico. Os partidos políticos em todo o mundo e mais profundamente no Brasil não representam mais o cotidiano do homem simples, justamente porque seu cotidiano é outro, definido por este corpo administrativo partidário, escondido nos escaninhos absolutamente ignorados até mesmo da grande imprensa. Como são os administradores que dirigem o cotidiano partidário, o militante vai se tornando uma figura folclórica, saudosista. Os militantes, cada vez mais raros porque imbuídos pelo espírito voluntário, não conseguem fazer frente a esta espetacular estrutura de poder burocrática. Não são profissionalizados, 21

Politica Democratica 17 - 25 de 21 21

26/3/2007 17:38:16


II. Conjuntura

não possuem os recursos materiais e políticos dos administradores. São convocados pela emoção e não pela razão. São a antítese do corpo administrativo, que considera paixões e emoções algo rasteiro e primário, ineficaz. O militante é um crente, alimentado pela utopia ou pela guerra. Mas, pouco a pouco, não entende o motivo para seu empenho não ser reconhecido no período entre eleições. Sente-se alarmado pelas notícias que lê nos jornais, envolvendo administradores em tramas que nunca havia pensado. E, gradativamente, começa a sentir o mesmo ressentimento dos homens simples, não militantes, não filiados. A crítica à alienação e passividade, que faz o militante ser militante, dificulta o divórcio total com o partido, mas fica a dúvida e certa angústia. Angústia porque o militante sente que a estrutura burocrática que domina o partido é a promessa de sociedade que será construída a partir das vitórias eleitorais. Mesmo porque ninguém ensina o que não sabe. Mas o discurso do líder, por sua vez, carregado de paixão e utopia, cria o consolo e faz a roda da militância girar. O desgaste progressivo parece natural. Nesta engenharia política, aumenta a Corte: técnicos de marketing, institutos de pesquisa e elaboradores de programas de governo tratam diretamente com os administradores partidários e criam um staff que tem seus dias de glória nos três ou quatro meses que antecedem o dia das eleições. Não é incomum, a partir deste cenário, que os programas de campanha raramente sejam executados depois que o candidato se elege. Também não é incomum que os coordenadores de áreas programáticas das campanhas não atinjam cargos de destaque nos governos que logo se formam após a vitória. Chegam, no máximo, à equipe de transição. Mas, se as estruturas partidárias tornam-se elementos estranhos ao cotidiano, a política pública, paradoxalmente, parece se revitalizar, ainda que timidamente. Mais um paradoxo da vida real. A revitalização não passa pelos partidos políticos. No caso brasileiro, é algo similar ao que ocorreu com as estruturas confederativas do sistema sindical. A quase totalidade dos movimentos sociais formou-se à margem das federações e confederações sindicais. Surpreendentemente, foi comum, nos anos 80, encontrar líderes de movimentos sociais que eram simultaneamente dirigentes sindicais. Questionados porque o sindicato não liderava aquele movimento e o motivo de existirem duas estruturas paralelas de organização de uma mesma base social, as respostas eram lacônicas ou confusas. Mas o mais comum era o dirigente reclamar da burocratização sindical, da incapacidade de mobilizar massas, do vício das pautas formais. Os movimentos políticos de cunho participacionista, que procuram ampliar o controle social sobre os governos, instalando instru-

22

Politica Democratica 17 - 25 de 22 22

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:16


Dos partidos ao Projeto de Esquerda

mentos e mecanismos públicos de gestão no interior do Estado, não nascem ou se organizam a partir dos partidos políticos. Não existem pesquisas que aprofundem o ideário dessas lideranças participacionistas, instaladas em inúmeros fóruns, redes de movimentos sociais e ONGs, articulações de organismos de base. São inúmeras siglas, como ASA (Articulação do SemiÁrido), FBO (Fórum Brasil do Orçamento), FNPP (Fórum Nacional de Participação Popular), Inter-redes. Muitas estruturas híbridas, de representação direta da sociedade civil em instâncias de deliberação de políticas públicas instalados no interior do Estado já existem. Já somam 27 mil o número de conselhos de gestão pública (de direitos e setoriais) ao longo do país. Mais de 170 municípios adotam o orçamento participativo. Segundo o IBGE, 74% dos municípios brasileiros adotam algum tipo ou instrumento de gestão participativa na condução de políticas e orçamento públicos. Já existem diversos municípios (como Montes Claros, em Minas Gerais; Rio das Ostras, no Rio de Janeiro; e Recife) que adotam o orçamento participativo mirim. Alguns deles (como a paranaense Maringá) que possui uma lei de responsabilidade social. O Fórum Brasil do Orçamento apresentou à Câmara Federal uma proposta de Lei de Responsabilidade Fiscal e Social, que já tramita na Comissão de Legislação Participativa daquela Casa. A lei sugere a obrigatoriedade da inclusão de metas sociais objetivas em todo ciclo orçamentário (Plano Plurianual, Lei de Diretrizes Orçamentárias e Lei Orçamentária Anual) em todos entes federativos e institui Conselhos de Monitoramento em todos os municípios brasileiros para avaliarem a execução das metas e elaborarem Balanços Sociais anuais. Uma seqüência de balanços negativos abriria o processo de responsabilização da autoridade pública. Também têm início as tentativas de instalar mecanismos participacionistas nos parlamentos brasileiros. São diversas as casas legislativas que já instalaram comissões técnicas permanentes de participação popular. Está em curso a instalação, em Câmaras Municipais, de câmaras técnicas (parlamento juvenil, direitos da mulher, da terceira idade, do mundo rural) no seu interior; as audiências públicas (Câmara Itinerante), as audiências ordinárias com conselhos de gestão pública para compor o orçamento municipal. Enfim, a onda participacionista que atingiu os executivos, agora está se dirigindo aos legislativos. Há, ainda, outros tantos exemplos que envolvem toda a América Latina, principal celeiro dessas inovações. Este é o caso da Red de Solidariedad colombiana, Lei de Transparência da Informação Pú23

Politica Democratica 17 - 25 de 23 23

26/3/2007 17:38:16


II. Conjuntura

blica peruana, Lei Orgânica dos Municípios e conselhos comunais venezuelanos, parlamentos juvenis chilenos, comitês infantis argentinos. Europeus e asiáticos afluem à América Latina para compreender esta nova energia moral na política pública. Exemplos como os citados acima oferecem uma pista do que poderia ser uma estrutura de representação política mais adequada ao mundo contemporâneo: organizações enraizadas nos locais de moradia, articuladas em rede e forte controle das políticas públicas. São estruturas mais representativas, também mais flexíveis, e altamente participativas. O cidadão se reconhece nessas novas estruturas. É nossa senha para o século XXI. Talvez, a partir da sua compreensão, reformulemos o que no século XIX era o objetivo e a estrutura que fundaram os partidos políticos. Talvez, essas novas práticas e estruturas criem as pistas para renovação dos partidos políticos. Esta é uma clara intenção das esquerdas. Se isto ocorrer, poderemos ainda denominar por muito tempo essas estruturas de representação de partidos. Mas, cá entre nós, não serão o mesmo que hoje. Muito menos o que foram no século XIX.

***

24

Politica Democratica 17 - 25 de 24 24

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:17


O fantasma da modernidade Martin Cezar Feijó Um fantasma ronda a cultura brasileira, e não é o do comunismo apontado por Marx em seu famoso manifesto de 1848: é o fantasma da modernidade, o que tem gerado até uma guerra dos filósofos, em defesa ou contra, seja a favor de suplícios medievais ou nostalgia de um tempo sagrado, seja questionando a esquerda brasileira de não estar contemporânea de seu tempo. Algumas questões precisam ser esclarecidas neste debate, e não aos debatedores, que as sabem muito bem, mas principalmente ao público a quem estão sonegados, de forma deliberada ou disfarçada, os motivos ideológicos de tal contenda. A primeira questão refere-se à própria modernidade. De que modernidade se trata quando se a condena ou se a defende? A modernidade da destruição das cidades pela guerra ou pelo embelezamento na reconstrução, como lembrou Kafka? A modernidade dos fornos de Auschwitz ou a modernidade das descobertas científicas que salva tantas vidas? A modernidade da bomba atômica ou a modernidade da rede mundial de computadores? A modernidade da publicidade misógina, que confunde mulher com latinha de cerveja, ou a modernidade da luta feminina pela emancipação, pela descriminalização do aborto (verdadeiro tabu neste país “do futuro”)?

Modernidade: estética, experiência ou projeto? Modernidade é um conceito perigoso, principalmente quando vira adjetivo, para o bem ou para o mal. Mas a palavra modernidade foi criada por um poeta, um dos maiores poetas de todos os tempos: o francês Charles Baudelaire (1821-1867). Vivendo em Paris, contemporâneo do governo de Luís Napoleão Bonaparte – o imperador Napoleão III, o que deu o golpe que foi analisado por Marx como uma farsa, mas que também providenciou a reforma urbana de Paris, na prefeitura do engenheiro Haussmann, tranformando-a em modelo para outras cidades que aspiravam a ser modernas –, Baudelaire percebeu que algo mais mudava que simplesmente a política ou a economia; era um novo mundo que se construia, marcado por uma nova sensibilidade. A força do progresso, que o incomodava, atropelava tudo, destruia valores, enterrava de vez a crença na eternidade, e transformava tudo 25

Politica Democratica 17 - 25 de 25 25

26/3/2007 17:38:17


II. Conjuntura

em efêmero, passageiro, transitório. Ao poeta, que perdia sua antiga auréola, aquela que lhe garantia prestígio por ser considerado sagrado, restava um único caminho para sobreviver aos novos tempos. Assim, Baudelaire criou a palavra modernidade, ao descrever o pintor da vida moderna, que ele escolheu como uma metáfora do poeta como pintor ou músico. Em outras palavras, o artista moderno, em qualquer linguagem que escolha, ou demonstre talento, verbal, musical ou visual, está diante de uma nova necessidade, de uma nova estética: Assim ele vai, ele corre, procura. O quê? Certamente esse homem, tal como o descrevi, esse solitário dotado de uma imaginação ativa, sempre viajando através do grande deserto dos homens, tem um objetivo mais elevado do que a de um simples flanêur, um objetivo mais geral, diverso do prazer efêmero da circunstância. Ele busca esse algo, ao qual se permitirá chamar de modernidade, pois não me ocorre melhor palavra para exprimir a idéia em questão. Trata-se, para ele, de tirar da moda o que esta pode conter de poético no histórico, de extrair o eterno no transitório...

Em suma, modernidade, a palavra, em sua origem, indicava uma aspiração estética, embora nascesse de uma experiência. Fruto de um mundo desencantado, na perspectiva que Max Weber apontou no começo do século XX, a modernidade, na perspectiva de Baudelaire analisada por Walter Benjamin, é marcada por uma desauratização da arte; ou seja: a arte, a poesia, perde sua aura, seu valor sagrado. E o poeta perde sua dimensão mítica. Mas Baudelaire não se queixa, agora ele pode cair na vida, viver na esbórnia, aproximar-se dos mortais comuns. É a base para a autonomia da arte que permite o nascimento tanto da arte moderna quanto da obra de arte em época de sua reprodutibilidade técnica; o entretenimento: o fonógrafo, o cinema, a televisão, como brilhantemente demonstrou um dos maiores pensadores do século XX, o marxista Walter Benjamin E se a arte perde sua aura, nem por isso a aura deixará de existir. Apenas ela se transfere, como apontou Marx, para a mercadoria. É a auratização da mercadoria que está na base das origens da sociedade do espetáculo (conceito elaborado no final do século por outro pen O pintor da vida moderna. Ensaio publicado originalmente no Fígaro em três partes (26/11, 29/11, 0312/1863). Tradução de Suely Cassal. In: BAUDELAIRE, Charles. Poesia e prosa. Edição organizada por Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 859.

26

Politica Democratica 17 - 25 de 26 26

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:17


O fantasma da modernidade

sador marxista decisivo, Guy Debord) e do predomínio da linguagem publicitária em sua missão de reforçar uma estetização que garanta o fetiche da mercadoria. Um mundo desencantado, uma arte desauratizada, uma sociedade do espetáculo, formas diferentes de entender a modernidade, nem por isso antagônicas. O conceito “desencantamento do mundo” foi assim explicado em sua tradução pelo sociólogo Antônio Flávio Pierucci: “Desencantamento”, em alemão Entzauberung, significa literalmente “desmagificação”. Zauber quer dizer magia, sortilégio, feitiço, encantamento e por extensão encanto, enlevo, fascínio, charme, atração, sedução... Der Zauber nomeia o mágico, o mago, o feiticeiro, o bruxo, o encantador...

A modernidade não pode ser, então, compreendida sem a constatação de que o mundo se transformou a partir do capitalismo, mas principalmente a partir das revoluções burguesas do século XVIII, particularmente a industrial na Inglaterra e a francesa, permitindo assim duas críticas ao processo: a conservadora, representada por historiadores como Edmund Burke e Thomas Carlyle, que defendem a volta a um mundo medieval, de crenças estabelecidas, de culto aos heróis, e “valores nobres” (em que uma aristocracia abençoada por Deus voltasse a governar); e a revolucionária, que tem em Marx seu maior nome, que vê exatamente a possibilidade de uma transformação radical da sociedade em benefício do proletariado, dos que nada tinham a não ser sua prole e seus grilhões. Marx, que em 1848, no manifesto que escreveu juntamente com Engels, define a modernidade, ainda sem o nome dado por Baudelaire alguns anos mais tarde, como uma experiência marcada pela constatação de que no capitalismo “tudo que é sólido desmancha no ar” . A modernidade aqui é, portanto, uma experiência e uma possibilidade. Possibilidade de revolução. Tudo o que os conservadores, sejam eles religiosos dogmáticos ou não, mais O desencantamento do mundo. Todos os passos do conceito em Max Weber. São Paulo: Curso de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo/ Editora 34, 2003, p.7-8. Quem desenvolveu esta linha, analisando a modernidade como experiência, a partir de Baudelaire, Marx, Benjamin, foi o norte-americano Marshall Berman em All that is solid melts into air. The experience of Modernity, publicado no ano de 1982, e que lançado em português em 1987 pela editora Companhia das Letras tornou-se um de seus best-sellers.

27

Politica Democratica 17 - 25 de 27 27

26/3/2007 17:38:17


II. Conjuntura

detestam. Em suma, ao mesmo tempo que pode ser uma aventura, a modernidade nunca deixou de ser um problema. Ou um projeto. Quem definiu modernidade como projeto foi o filósofo reconhecido como o último representante vivo da Escola de Frankfurt, e a favor do esclarecimento sempre: Jürgen Habermas, que, em 1981, quando surgia o conceito de pós-modernismo, já apontava para a questão central: a modernidade era um projeto inacabado e já se falava em seu fim. Ao se falar em pós-modernidade se supunha que a modernidade havia esgotado seu projeto. O projeto da modernidade, formulado no século XVIII pelos filósofos do Iluminismo, consiste em desenvolver imperturbavelmente, em suas respectivas especificidades, as ciências objetivantes, os fundamentos universalistas da moral e do direito, e a arte autônoma, mas ao mesmo tempo consiste também em liberar os potenciais cognitivos assim acumulados de suas elevadas formas esotéricas, aproveitando-se para a prática, ou seja, para uma configuração racional das relações da vida.

A modernidade vista como projeto, então, é o de fazer valer as propostas do Iluminismo que estavam expressas na Revolução Francesa através de três (não tão) simples aspirações: liberdade, igualdade, fraternidade. Pode-se entender, então, que é só olhar ao redor, como demonstrou Norberto Bobbio, para se observar que tais apostas ainda não haviam sido, e ainda não foram, cumpridas. Onde houve, e há, liberdade, não há igualdade. Onde se tentou construir, como na experiência do socialismo real, uma sociedade mais igualitária, isto se deu às custas da liberdade. É só observar os casos da China, apesar de se tornar uma potência mundial, cada vez mais capitalista, ainda longe de ser considerada livre, e Cuba, que ao perder a ajuda externa soviética apresenta dificuldades até em manter suas conquistas sociais básicas, apesar do esforço heróico de seu povo e da teimosia de seus dirigentes, que se justificam com o criminoso boicote norte-americano para não promover reformas democráticas.

HABERMAS, Jürgen. Modernidade – um projeto inacabado. Tradução de Márcio Suzuki. In: ARANTES, Otília B. Fiori & ARANTES, Paulo Eduardo. Um ponto cego no projeto moderno de Jürgen Habermas. Arquitetura e dimensão estética depois das vanguardas. São Paulo: Brasiliense, 1992, p. 110.

28

Politica Democratica 17 - 25 de 28 28

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:17


O fantasma da modernidade

E fraternidade não há em lugar algum, somente nos discursos, na maioria das vezes, demagógicos. Como, portanto, pode se considerar esgotado um projeto que nem sequer se realizou?

Direita e esquerda no contexto do século XXI Mas as dificuldades históricas desse processo também favorecem o fortalecimento dos que enxergam na modernidade as origens de todos os males de nosso tempo. Os arautos da antimodernidade, declarando-se pré (conservadores assumidos) ou pós (conservadores envergonhados) se unem num momento no Brasil em que os desafios são enormes, e a definição do que vem a ser uma esquerda moderna pode ser decisivo. Porque a outra questão, esta implícita, neste debate, é a questão ideológica que pode esclarecer o que é ser direita ou esquerda neste contexto. Neste sentido, é bastante pertinente a posição do filósofo Antonio Cícero publicada na Folha de S.Paulo: A esquerda de maneira geral, está longe de defender as conquistas da modernidade: ao contrário, ela é a primeira a tentar desmoralizá-las. Ora, quem se beneficia com isso, senão exatamente os reacionários antimodernos? .

Assim como a lembrança do filósofo Ruy Fausto, que leciona em Paris:

A direita sempre foi fraca intelectualmente, mas agora se reforça. A esquerda tem a reflexão sobre o totalitarismo ainda muito verde, o que confunde a reflexão sobre o país. Leva a pensar pouco sobre a experiência européia, porque existe uma miragem revolucionária misturada sem rigor”. E completa lembrando que há sempre uma distância muito grande entre o que o intelectual brasileiro fala de sua especialidade e da política: “O discurso político também tem de ser rigoroso. A gente vê intelectuais falando de política irresponsavelmente, se deixando levar pela demagogia de auditório . Folha de S. Paulo. Ilustrada, 03/02/2007. Folha de S. Paulo. Mais!, 04/02/2007.

29

Politica Democratica 17 - 25 de 29 29

26/3/2007 17:38:17


II. Conjuntura

Então, a questão da modernidade ganha um novo contorno e um novo problema, o da definição sobre o que é ser de esquerda no mundo de hoje, ou para utilizar-se de uma retórica esquerdista recorrente: o que será da esquerda no século XXI? Ficar presa ao projeto proto-fascista de Hugo Chávez? Confundir anti-imperialismo com anti-americanismo? Considerar o Governo Lula como um governo de esquerda? Ou ficar citando dogmaticamente os “clássicos” da revolução sem contextualizá-los... Uma esquerda moderna pressupõe procurar desenvolver um projeto efetivamente democrático, que respeite a liberdade, tanto a política quanto a econômica, que não tenha preconceitos com o empreendedorismo ou criatividade, mas que também tenha compromissos com a questão social, que passa pela necessidade de uma revolução educacional e de uma reformulação no sistema tributário que não onere tanto o pequeno empreendedor e a classe média assalariada, mas que não tema discutir – o que já é normal em qualquer país desenvolvido – o imposto sobre as grandes fortunas, principalmente do setor financeiro, para financiar projetos sociais e não distribuir migalhas através de esmolas com roupagens publicitárias. Que há uma direita no país e forte, ninguém duvida. Mas é uma direita que hoje parece estar convencida de que a convivência civilizada – leia-se respeito às normas legais – supõe a alternância de poder e a manutenção dos calendários eleitorais (sem terceiro mandato, obviamente). E esta direita, que se renova, já tem seus ideólogos bem preparados que se apresentam como neo-conservadores, como os neocons norte-americanos, que hoje dão sustentação intelectual ao Governo Bush. Apesar de que a expressão “neoconservador” não deixe de ser um tanto paradoxal: como pode ser novo o que defende o velho, como pode ter dúvidas o que só defende certezas? O mesmo não se pode dizer dos que se definem como pertencentes ao arco ideológico da esquerda: ela está realmente não apenas perdida sobre os escombros do muro de Berlim, mas principalmente dividida, e não é de hoje – a história do PCB e de seu fundador, a quem dediquei anos de estudo demonstra esta divisão na raiz –, e rigorosamente não se deve considerar isto um entrave, mas parte da realidade. Uma esquerda dividida entre os que compreendem o projeto moderno como fruto da obra de intelectuais do iluminismo – Marx entre eles – e os que se agarram em cômodas gaiolas do pensamento irracional, anti-moderno, autoritário e messiânico. Ideológico no pior sentido da palavra, desprovido de reflexão crítica e auto-crítica. Dizer que seria uma esquerda atrasada não ajudaria muito na compreensão pela ênfase no adjetivo e pouca consistência no substantivo. A verdade é que 30

Politica Democratica 17 - 25 de 30 30

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:17


O fantasma da modernidade

a “esquerda atrasada”, seja pelo despudor ou pelo despreparo teórico, num país culturalmente atrasado como o Brasil (apesar de todos os ufanismos multiculturais folclorizantes) tem mais chances eleitorais do que os chatos que vivem questionando tudo. E todos os índices apurados com rigor comprovam isto. Até o presidente da República, depois de quatro anos sem prestar atenção nisto, se deu conta, ao abandonar momentaneamente uma retórica embriagada do “nunca se fez tanto neste país”... e admitir lucidamente que em matéria de educação (e não só, claro) o Brasil vai muito, mas muito, mal. E muito tem que ser feito nesta área decisiva para ingressar o país na contemporaneidade. Portanto, voltando à questão inicial, buscando contribuir num debate que promete ser fundamental: a modernidade, com sua revolução intelectual, científica, educacional, sensorial, enfim, cultural, não pode ser vista como um problema, mas como uma solução. A primeira delas, a constatação de que ainda está muito longe de sermos modernos. Já questionamos seus efeitos sem ter passado pelo tratamento. O nível em que o debate está, com a hegemonia dos conservadores intelectualmente bem preparados – o que implica na atenção do que estão dizendo, até para refutá-los em igual nível, mesmo que não aceitem o fato de pertencerem ideológicamente ao campo da direita – e uma esquerda presa a velhos clichês (curiosamente com mais espaço na grande imprensa. Será proposital?), é a prova disto. Isto não quer dizer que o ambiente da modernidade não carregue seus problemas, que são muitos, e eles foram aqui apontados em sua essência. É que a solução, é óbvio, não pode ser a conservadora. Não há como negar, em suma, que haja um mal-estar. Isto seria também fugir do problema em toda sua gravidade, que envolve não só o conservadorismo fundamentalista quanto o terrorismo e a violência. É por isto que escritores decisivos da contemporaneidade, como o norte-americano John Updike, ao lançar seu último romance, Terrorista, chama a atenção para um aspecto que não deve ser descartado em nenhum debate sobre nosso tempo, principalmente o da falta de perspectivas para os jovens:

O sentimento religioso hoje se vale de uma profunda negação do presente. O mundo em que se vive se torna insuportável . E se há um Deus, então ele só pode estar num outro universo que não seja este em que estamos. Não existe para estes jovens qualquer perspectiva de mudar o presente, de transformar o mundo. Então, passa a ser banal pensar em explodir tudo. Qualquer coisa parece ser melhor do que o inferno da vida cotidiana.

Entrevista de John Updike. Caderno Prosa & Verso. O Globo, 17/03/2007.

31

Politica Democratica 17 - 25 de 31 31

26/3/2007 17:38:18


II. Conjuntura

O quadro, portanto, parece mais favorável ao conservador do que ao revolucionário, principalmente se o revolucionário não tiver claro que se na modernidade tudo se transforma, nada é permanente, ele também não deve, ao modo do conservador, se agarrar a uma perspectiva que historicamente já demonstrou não ter funcionado, seja pelo nacionalismo, seja pelo autoritarismo. A esquerda do século XXI só será digna deste nome se entender que liberdade, igualdade e faternidade não é uma invenção burguesa, nem patrimônio de uma classe dominante que a abandonou assim que conquistou o poder, mas uma aspiração humana, e humanista, que merece o esforço não apenas da reflexão, mas principalmente o da luta.

***

Prefiro a contraposição ao conservador no revolucionário e não na palavra progressista, um jargão de resquício positivista. Até porque se torna necessário mais uma vez desconstruir uma imagem que revolucionário tem que ser o da ação direta, irracional, aventureiro e irresponsável, por mais heróico que seja, com uma metralhadora na mão e uma boina na cabeça. O verdadeiro revolucionário na modernidade foi Marx, que viveu mais em gabinete de leitura do que em bar ou em conspirações, assim como um verdadeiro revolucionário no Brasil foi Astrojildo Pereira.

32

Politica Democratica 17 - 25 de 32 32

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:18


Estamos velhos como . os nossos pais Davi Emerich

P

ara usar uma expressão popular e politicamente não correta, as esquerdas brasileiras (não seria errado estender essa mesma conclusão às do mundo como um todo) estão como cego em tiroteio. O peso do desabamento do velho mundo socialista, com seus conceitos, expectativas e esperanças espalhados por tanto tempo sobre grupos e movimentos nos quatro cantos do planeta continua a esmagar idéias e corações daqueles que no íntimo da alma e da razão ainda sonham com sociedades mais felizes e igualitárias – de corte socialista. Mas, antes do próprio débâcle do socialismo real, outro fato mais dramático ajudou a desenhar os labirintos do minotauro para os que se proclamam de esquerda e herdeiros de uma certa tradição marxista – o desaparecimento “lento, gradual e seguro” da classe operária como agente histórico das transformações. Saiu o velho e festejado exército de macacão e, em seu lugar, não entrou nada, nenhuma classe específica para sepultar o modelo capitalista como se pretendia. Quem continuou aferrado ao conceito antigo descambou para um revolucionarismo retórico, oportunista ou sincero; quem rompeu com o conceito formulou alternativas, teve como grande mérito resgatar a democracia como valor universal – mas também não conseguiu vislumbrar paradigmas seguros para mobilizar grandes massas e lideranças e, assim, alavancar processos de mudança reais no país. E se não bastasse nada disso, as tentativas de novas formulações, no caso brasileiro, tiveram de conviver com conjunturas políticas complicadas, tendo ao centro o poder do presidencialismo com sua assustadora força para afastar, destruir projetos e, também, para cooptar e desmontar partidos políticos. Esse fenômeno pode ser verificado com muita clareza, principalmente, nos dois governos de Fernando Henrique Cardoso e nas gestões de Luiz Inácio Lula da Silva, que já fechou um mandato e dá curso a um segundo, sem alterar a rota nefasta. A rigor, a política no país está fora de lugar, deslocada, se concordamos com a idéia de que os campos programáticos e paradigmáticos devem convergir. Se o governo FHC engendrou alianças

33

Politica Democratica 17 - 25 de 33 33

26/3/2007 17:38:18


II. Conjuntura

díspares – da direita a setores comprometidos com alguma tradição social-democrata, PSDB por exemplo –, buscando isolar e exorcizar outros segmentos à esquerda, no Governo Lula a situação não é diferente: neste segundo governo, em que pese ser positiva a busca de alianças mais amplas, a chamada base de sustentação transformou-se em um caldeirão fervente de interesses inconciliáveis, não dando nenhum sinal de que um novo projeto de esquerda está concretamente sendo montado no país. O Governo Lula corre um sério risco de ficar conhecido na história como detentor de uma mística de esquerda e de uma prática que foi pouco além do realizado por outras experiências liberais ou conservadoras. Nesse cenário confuso estão os partidos políticos e movimentos de esquerda, todos eles igualmente perdidos. E tal como um buraco negro, ninguém escapa da confusão – do Partido dos Trabalhadores ao Partido Comunista do Brasil; do PSDB ao Partido Popular Socialista, o PPS. Como já perguntava Lênin, que fazer? Quem ousar apresentar uma alternativa acabada a esse cenário nada lisonjeiro corre o risco de cair no cabotinismo e vender mais uma pretensão do que um projeto político realmente diferente e factível. Mas, também, e em sentido contrário, deixar de buscar respostas e correr para os braços dos centros de poder – nas esferas federal ou estaduais –, em nome da necessidade de se ter um mínimo de estrutura e sombra para poder agir, é sucumbir diante de uma demanda histórica que a esquerda, de modo geral, não conseguiu atender adequadamente. Aos partidos que ainda pretendem enfrentar todo esse cenário adverso, outra dificuldade se coloca: sua própria capacidade de formular programas e utopias de forma coerente, sob uma perspectiva realmente transformadora. Todos eles – sem exceção, uns mais que outros – pagaram o preço pela abertura que fizeram para enfrentar a legislação eleitoral e outras exigências políticas conjunturais. Resultado: transformaram-se em frentes políticas heterodoxas, com interesses contraditórios e, se ainda conseguem vender algumas referências de suas experiências do passado, isso se deve à existência ainda em seu núcleo de uma direção forte e cristalizada. Direção que tende a desaparecer com o tempo e se nada for feito para mudar o curso da marcha, então o próprio partido ou desaparecerá ou se transformará, inevitavelmente, em um acampamento fisiológico, uma espécie de maquinaria, com um certo verniz de seriedade ou não, para apenas reproduzir mandatos. O partido político que almeja um futuro fora do lamaçal previsto precisa sacudir-se, jogar roupa velha fora, ter coragem para pensar

34

Politica Democratica 17 - 25 de 34 34

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:18


Estamos velhos como nossos pais

modelos profundamente diferentes, fugir da armadilha fácil de inventar palavras e raciocínios pomposos e com cara nova para coisas antigas. Estar na política real é uma exigência, porém construir um projeto e uma utopia radicais e diferentes é uma questão de vida ou morte. Nos dias de hoje, parece, é quase impossível montar organizações políticas a partir de quadros somente endógenos, como sempre a esquerda marxista fez e o velho Partido Comunista Brasileiro, o PCB, é o melhor exemplo dessa aposta. Novos paradigmas, para mobilizar massas e consciências, e se converter em instrumentos de ação política, só vão nascer a partir de catarses, buscando quadros e lideranças nos mais diversos segmentos da sociedade. Atualmente, no contexto da modernidade que vivemos, com a afirmação da individualidade e com a socialização do conhecimento, quem forma o quadro político são as entranhas da sociedade e não mais o destacamento partidário. A este cabe a função de burilar o filiado e lideranças, dar um certo padrão, construir espaços para que o projeto político em questão tenha condições de materializar-se na ação do dia-a-dia. Há certamente outras clivagens para formular projetos realmente revolucionários e capazes de gerar outro animus nas pessoas e na política, mas um radioso farol colocou-se à frente de todos aqueles que acreditam em um mundo melhor – o primeiro dos três relatórios da ONU, que, alto e bom som, e alicerçado em padrões científicos rigorosos, a proclamar que a Terra está em franco processo de decadência pela ação do homem. E duas linhas emergem do relatório: que o progresso que conhecemos é destruidor e, portanto, a atividade econômica deve ser redimensionada; e que a ciência não pode tudo, como os marxistas, iluministas que são, sempre acreditaram. As esquerdas brasileiras, mesmo com as divergências em torno de caminhos e modelos, sempre organizaram as suas propostas em cima de uma idéia-força, a do desenvolvimentismo. E nos dias de hoje, a situação não é diferente: a mesma concepção está embutida no conceito do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do Governo Lula e de sua base aliada; está na raiz do pensamento de pessoas como José Serra, governador de São Paulo; guia o pensamento, por exemplo, dos principias líderes do PPS, só para citar um partido político específico. O crescimento é a regra – e o grande debate que se faz, é se o Brasil cresceu muito ou pouco, em que direção ele se dá, se há integração ou não das regiões, se a distribuição de renda está no caminho certo, se a renda deve se dar por programas assistenciais ou por meio do emprego formal. Ou seja, não se questiona o próprio conceito de desenvolvimento, o que é requerido agora com a divulgação do relatório pela ONU sobre as mudanças climáticas do planeta.

35

Politica Democratica 17 - 25 de 35 35

26/3/2007 17:38:18


II. Conjuntura

O mesmo relatório – e isso ficará mais claro em dois outros relatórios que serão divulgados até junho, sobre o impacto das mudanças climáticos nas atividades econômicas e sociais do mundo, e sobre quais medidas precisam ser adotadas para que a nossa nave mãe não entre em colapso – deixa claro que a ciência não pode mais reverter os estragos feitos pelo homem à Terra em nome da riqueza e do progresso. Portanto, cai um mito dos iluministas e uma outra responsabilidade é jogada nos ombros de quem optou pela política como percurso de suas vidas para criar sociedades melhores. Ao que parece, um novo paradigma com possibilidade de afirmação teria condições de incorporar em uma mesma proposta a força potencial do movimento ambientalista – tema com grande capacidade de envolver gerações novas e que estão preocupadas com o seu futuro e o de seus filhos – e a generosidade do pensamento democrático e socialista, que sempre se orientou para sociedades menos injustas, mais cultas e solidárias. E essa sinergia começa a tornar-se viável porque o próprio ambientalismo também mudou, teve de abandonar posições principistas e deslocar-se para o mundo real da política para viabilizar idéias. Nesse vértice, a utopia que embalou milhões de pessoas no país e mundo afora pode voltar à tona, obviamente renovada e balizada pelos novos marcos que a contemporaneidade coloca. A crítica ao desenvolvimentismo incorpora o entendimento de que a sociedade de consumo tal como conhecemos não tem futuro – e se for mantida, a marcha da destruição da natureza será inevitável. Formulações criativas como a do desenvolvimento via educação, deslocando-se do economicismo que escraviza tudo, devem ser debatidas com vigor, pois na sua base o pensamento é generoso e atende ao princípio da universalidade social. O mandarinato da economia não explica nem dá saídas ao que precisamos no mundo atual, apesar da asfixia visível e ainda reinante dos mercados e do financismo. A par das novas abordagens, o partido que se queira transformador tem a obrigação de formular propostas mais claras em torno do poder local e das práticas de democracia direta que ele possibilita; deve relacionar-se mais positivamente com o mundo da cultura e da ciência, colocando a educação como área estratégica; sem querer dirigir e comandar, deve ser instrumento dos amplos movimentos sociais e urbanos que se alçam cada vez com mais força no contexto da política, esta entendida como espaço de articulação de interesses e solução de conflitos.

36

Politica Democratica 17 - 25 de 36 36

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:18


Estamos velhos como nossos pais

Juntar pedras, argamassa, dar concretude a um movimento que possa revigorar o pensamento de esquerda no Brasil – em um partido ou em mais de um – é uma tarefa hercúlea, porém possível. E sua articulação passa ao largo da questão de se estar no Governo Lula ou fora dele, até porque deve ser construído na sociedade e não dentro dos palácios. Entretanto, essa articulação não será construída como consequência de um certo oposicionismo duro ao governo atual, em alianças com forças conservadoras ou então vivificadoras de modelos desenvolvimentistas ultrapassados. Só dá para fazer uma oposição conseqüente com propostas igualmente conseqüentes e inovadoras. A nova esquerda não pode continuar como o velho do Restelo, de Camões, a praguejar do alto da torre diante dos navios que saíam dos portos portugueses para singrar o grande oceano desconhecido. Ela mesma precisa colocar os seus barcos na água.

***

37

Politica Democratica 17 - 25 de 37 37

26/3/2007 17:38:18


Uma nova esquerda José do Nascimento Junior Nada se assemelha mais ao pensamento mítico que a ideologia política. Em nossas sociedades contemporâneas, talvez esta tenha se limitado a substituir aquele. Claude Lévi-Strauss

C

onceber uma nova cultura política deve ser sempre a perspectiva a ser alcançada por todos aqueles que, de certa forma, se relacionam com os temas da política. A construção de novos códigos políticos e de novas formas de conduta nos leva sempre a pensar nas possibilidades de sínteses nesse campo.

Nem sempre conseguimos perceber que as ações no campo da política têm uma ética própria e que essas ações direcionam as políticas públicas transformando-as em parâmetros para definirmos os nossos posicionamentos políticos. Parece ser esta a configuração de uma nova ética da política. No continente europeu, parece começar a surgir uma nova perspectiva de renovação no campo da esquerda. A eleição de Zapatero, primeiro-ministro da Espanha, poderia ser encarada, em um primeiro instante, como fenômeno isolado circunscrito à realidade política daquele país. Contudo, ao vermos o apoio se ampliando à candidatura para a presidência da França, este ano, da deputada Ségolène Royal, do Partido Socialista, podemos apontar uma tendência à renovação não apenas eleitoral, mas também de uma perspectiva estratégica para as jovens lideranças surgidas do pós-guerra, incorporando temas como casamento gay, revisão histórica do período da ditadura, imigração e inclusão social da juventude. A pauta social passa a ser o tema central das gestões dos partidos de esquerda inseridos no cenário de uma Europa unificada e com a transformação dos países europeus em sociedades multiculturais. Esse, com certeza, é o maior impacto das políticas de unificação e da relação com suas antigas colônias. Diferentemente da época dos viajantes de séculos passados, quando o relato sobre as colônias e seus povos era algo distante, hoje

38

Politica Democratica 17 - 25 de 38 38

26/3/2007 17:38:19


Uma nova esquerda

o “diferente” e o “outro” no sentido antropológico, estão dentro do território europeu como as populações das ex-colônias ou como parte da incorporação dos países do Leste europeu na União Européia. Exemplos disso são as recentes manifestações nos subúrbios de Paris de jovens desempregados originários das colônias francesas cujas políticas sociais e econômicas não responderam ao tema da inclusão e sem que apontassem para esse grupo uma perspectiva de futuro. No caso espanhol também fica clara a complexidade dessa temática aos vermos a lista das vitimas do atentado de 11 de março de 2004. A grande maioria das vítimas foram latino‑americanos e imigrantes do Leste Europeu, explicitando a complexidade do tema da multiculturalidade e introduzindo o tema da interculturalidade. A eleição brasileira de outubro passado trouxe para a cena política nacional novos elementos que devem ser analisados ainda sob o calor das vitórias e das montagens de governos. Mais do que a reeleição do presidente Lula o que parece ser a grande novidade é a eleição dos novos governadores. O eleitorado apostou em perfis renovadores, quebrando em muitos casos algumas das velhas estruturas políticas existentes, Essa renovação reside na esperança de constituir uma nova cultura política que amplie e consolide uma sociedade civil local modernizadora das relações sociais. Essa modernidade parece ser o germe que deve ser cultivado, rompendo a aridez de uma estrutura política que, durante anos e anos, se reproduz no velho patrimonialismo brasileiro e que, em algumas regiões, aprofundou as desigualdades sociais. A esperança é da necessária modernização das estruturas de gestão – não no sentido gasto e neoliberal do termo – e sim modernizar para incluir mais e mais brasileiros nas políticas sociais para que o superávit esperado seja o social. A esperança manifesta é a de que as políticas públicas sejam realmente públicas, e que nesses 117 anos de República realizemos a utopia republicana, que de fato a res publica possa prevalecer nas ações dos governos. Como indica Jesus Martin-Barbero, intelectual mexicano: “fazer um país é mais que possibilitar que aquilo que se produz em uma região possa chegar às outras, que o que se produz em outra região chegue aos portos para ser exportado. Fazer um país é também projeto político e cultural”.

39

Politica Democratica 17 - 25 de 39 39

26/3/2007 17:38:19


II. Conjuntura

Compreendendo que a política é também um fenômeno cultural, resultado das representações simbólicas e identitárias, quase como um reflexo da sociedade, a tarefa da mudança da cultura política torna-se mais necessária, é evidente. Para isso, as políticas públicas sociais devem receber o devido peso, serem inseridas dentro de um direito social básico e, ao mesmo tempo, transformadas em um importante vetor do desenvolvimento econômico e de inclusão social. Política social é, portanto, área estratégica para o desenvolvimento do país. O recado das urnas foi esse: o povo quer políticas públicas efetivas que mudem suas vidas, que a retórica política seja apenas um elemento da ação, que o dizer seja de fato o fazer. É nesse sentido que a criação do PAC (Programa de Ampliação da Cidadania) torna-se fundamental. O superávit social é o verdadeiro superávit que o país necessita para o seu desenvolvimento, decorrente de políticas positivas para as áreas de educação, saúde, cultura e seguridade social. Esses fatores são agentes indiscutíveis do superávit social – e, conseqüentemente, do superávit fiscal do futuro. Nessa direção, parece ficar cada vez mais claro a necessidade de constituir no país um campo com um perfil realmente social-democrático e, como se costuma dizer, não acharemos no nome dos partidos esse perfil. Esse campo da social­-democracia apresenta possibilidades de desenvolver um programa que agregue a pauta social como prioridade e subordine as políticas econômicas às políticas sociais e não o inverso. Se o Brasil conseguisse ter um programa como esse devidamente aplicado já seria, sem sombra de dúvida, uma revolução das relações políticas e sociais e uma mudança real na cultura política nacional. A construção da democracia no Brasil passa pelo acesso da população às políticas públicas. Essa é a agenda da esquerda do continente europeu e a do Brasil: a inclusão social, o trabalho, a diversidade e a luta contra a desigualdade. A geografia política torna-se cada vez mais clara quando tocamos nas políticas sociais. O investimento nessas áreas hoje define quem está à esquerda ou não. Este me parece o parâmetro de análise para redefinirmos uma nova esquerda.

*** 40

Politica Democratica 17 - 25 de 40 40

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:19


Quem somos nós? Raul Jungmann

I

dentidade define aquilo que somos. O que nos diferencia, tornando-nos um sujeito ou objeto reconhecível pelo outro, pelos outros. Daí decorre que a identidade é um valor da mais alta importância tanto para pessoas como para organizações. Donde se conclui que a sua perda é algo similar à morte ou, para muitos de nós, à inexistência de razões para continuar vivendo. Isto porque, ao perdê-la, deixamos de ser o que somos; sentimo-nos brutalmente mutilados, dissolvidos. Somos confinados ao terreno do indiferenciado, do mesmo ou do uno – como se queira. Assim, talvez, tenha ocorrido com o Partido Popular Socialista (PPS), o qual abriu mão da sua identidade para sobreviver, fundindo-se ao Partido Humanista da Solidariedade (PHS) e ao Partido da Mobilização Nacional (PMN), para dar a luz à Mobilização Democrática (MD). Sem dúvida, abrir mão do nome e do número do partido não foi pouca coisa, ao contrário. Mas, ao renunciarmos à nossa raison d’être, ao socialismo, o que restou de nós? Eu não sei, sinceramente. É possível argumentar, e com razão, que menos e menos falávamos sobre o tema. E, quando o fazíamos - releiam nossos discursos - era sobre tempos passados e nada, quase nada, em termos futuros. Nós até chegamos a “denunciar” que as propostas de teses do XIV Congresso Nacional do PPS, em 2004, não continham a palavra socialismo uma única vez. Exceto no final, na assinatura do texto: Partido Popular Socialista. Não o fiz, entretanto, para posar de palmatória, logo eu que tenho acessos de perplexidades e incertezas quando tropeço na dita palavrinha... É que, me perguntava: para que serve dizer-se algo ou alguma coisa se não a expressamos ou agimos enquanto tal? Verdade é que socialismo virou algo incômodo. Sabemos muito o que ele já foi um dia; e quase nada do que é ou será. Afora arranjos do tipo “radicalidade democrática”, “mundo da cultura e do trabalho”, “nova forma-partido” etc, o que temos a dizer? Qual o nosso patrimônio teórico de 1992 para cá? Por favor, não pensem que implico com esses conceitos antes citados, muito pelo contrário.

41

Politica Democratica 17 - 25 de 41 41

26/3/2007 17:38:19


III. Observatório Político

Minha ojeriza é pelo fato que eles se transformaram em pau-pratoda-obra-e-pra-qualquer-situação, uma espécie de bombril ou de “superbonder” teórico-conceitual. Podem até ser recuperados, voltar a ter validadade heurística, tensão dialética. Mas, coitados, sozinhos e abandonados num mar raso de rigor e trabalho teórico, pouco ou nada podem fazer. E, divagando, é que me pergunto: será que alguém não se aproveitou da situação de alto risco decorrente da cláusula de barreira para se livrar do complicador socialismo? Assim como quem diz, “olha, não deu. Tentamos de tudo, Mas éramos nós ou ele”. O problema é que “ele” somos (ou éramos?) “nós”, ou não? Se éramos socialistas, então nós nos entregamos a nós mesmos, isto é, nos suicidamos, na transição para a MD. Se não éramos mais socialistas, tudo bem, sobrevivemos! Mas, quem somos nós agora e/ou quem já éramos, ainda que inconscientes disso? Esse vai e vem, provavelmente, deve dar nos nervos da nossa direção partidária. Portadores da verdade, autoconfiantes, experientes e homens de ação, imagino o que nos responderiam se indagados fossem... “O momento não comportava vacilação, tonterias; ou, então, não sobreviveríamos”. No que concordo, sem objeções. Sim, corríamos o risco de morte súbita por anemia aguda de mandatos e quadros penosamente alcançados. Não questiono isso. Mas, sem querer polemizar, PSOL, PV e PCdoB preferiam correr todos os riscos, a abrir mão das suas respectivas identidades... O que eu quero ver respondido doravante é: quem somos nós? Em termos muito práticos, deixamos de ser socialistas no momento em que, por quase aclamação, no recente congresso extraordinário, criamos a MD. Decisão soberana e consciente, ato jurídico perfeito da maioria esmagadora da nossa direção nacional. Porém, com a queda da cláusula de barreira, voltamos, (atenção!), sem qualquer decisão do mesmo nível ou amplo debate, à condição anterior de socialistas, pois que PPS uma vez mais! Donde a inescapável pergunta: afinal, o que ou quem somos nós hoje? Afinal, identidade não é uma roupa que se põe e tira sem mais e a qualquer momento. Ao meu modo, revendo a trajetória do nosso partido após 1992, vejo um esforço ingente, heróico e abnegado de muitos, de alguns em especial, para que aquele projeto, gestado em 1922, já lá se vai quase um século, continue sobrevivendo. A todos, o nosso reconhecimento e afeto. Porém, não me escapa o fato, evidente, que (i) vivemos um grave e irresolvido problema de identidade e que (ii) fugimos da dor e do 42

Politica Democratica 17 - 25 de 42 42

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:19


Quem somos nós?

risco de enfrentá-lo, buscando soluções externas, lá fora, para nossos problemas. Foi assim com o projeto Ciro Gomes, que terminou vocêssabem-como. Será assim com a Conferência Caio Prado Júnior? A vinda de Ciro “resolveu”, em certo sentido, a agonia e luto pela morte do PCB; a Conferência resolverá (?) a da morte e “ressurreição” do PPS? Os “de fora” vão dizer-nos a identidade que devemos ter, nos poupando do sofrimento de afirmá-la? Talvez seja pedir demais. Acho que é hora de olharmos para dentro, para nós mesmos. Sei que é difícil, numa era de ambigüidades e volatilidade, possuir uma identidade – contemporânea, definida e ao mesmo tempo flexível. Esse desafio não é só nosso. Olhemos à nossa volta. PT, PSDB, PFL etc etc vivem dilemas semelhantes ou outros, todos engolfados por uma crise identitária que buscam superar ao seu modo. Desaprendemos a conjugar o “verbo” socialismo, essa é que é a verdade. Não sabemos muito bem o que fazer com ele. Mas era (é?), bem ou mal, a nossa identidade. Ambígua e contraditória, projetando suas sombras, hoje imprecisas, sobre nossas escolhas, campos, alianças e mentes. Para mim, segue sendo um valor e referência em nossas vidas, elemento constituinte dos nossos afetos, esperanças e de nós mesmos. Nossa dor e âncora; nossas asas guardadas para um dia que não veio – virá? Qual o lugar e a pertinência do socialismo nas nossas vidas, no nosso partido? Existe ou não um lugar para ele, que não apenas afeto, referência, vaga esperança? Mandala a que nos aferramos para continuarmos a ser nós mesmos? Ou ainda palavra-força e síntese das nossas intenções e horizonte plausível das nossas ações e projetos? Seja como for, a minha escolha aqui vai: prefiro ser algo ou alguém, limitado todavia, bem ou mal, que a ambigüidade de ser tudo e nada, a um só tempo. Ser ou não ser, lembram?

***

43

Politica Democratica 17 - 25 de 43 43

26/3/2007 17:38:19


Politica Democratica 17 - 25 de 44 44

26/3/2007 17:38:19


III. Observat贸rio Pol铆tico

Politica Democratica 17 - 25 de 45 45

26/3/2007 17:38:20


Autores Anivaldo de Miranda Jornalista e mestre em Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentรกvel pela Universidade Federal de Alagoas. anivaldomiranda@oi.com.br

Mariana Mota Prado Mestre pela Universidade de Yale (EUA), professora da Faculdade de Direito da Universidade de Toronto (Canadรก)

Ivan Alves Filho

Historiador, autor, dentre outros, do clรกssico Memorial de Palmares.

Humberto Franรงa

Escritor e chefe de Projetos Especiais do Museu do Homem do Nordeste, no Recife.

46

Politica Democratica 17 - 25 de 46 46

26/3/2007 17:38:20


Água e democracia Anivaldo de Miranda

A

s comemorações do Dia Mundial da Água (22 de março) ganharam uma conotação mais dramática este ano. Aconteceram no calor dos relatórios da ONU sobre as mudanças climáticas decorrentes do aquecimento global. Esses e outros relatórios fazem projeções preocupantes para um cenário que se imaginava ocorrer apenas no final deste século, mas que, infelizmente, já se delineia em nossos dias com possibilidades de agravamento já para as próximas décadas. Uma das mais graves conseqüências de todo esse processo será, indubitavelmente, o aumento da escassez de água doce, fenômeno que já afeta muitas regiões do nosso planeta. O Brasil, país inegavelmente privilegiado pela natureza em termos do seu potencial hídrico – detém, aproximadamente, 13% da água doce disponível no mundo – nem por isso estará livre dessa ameaça, sobretudo em sua vasta área do semi-árido. Posta nesse contexto, a política de gestão das águas, que já vinha ganhando relevância e adquiriu considerável impulso a partir de 1997 com a aprovação da Lei Federal 9.433, dando início ao estabelecimento do Sistema Nacional de Recursos Hídricos, volta a reclamar novo patamar de prioridade nacional, muito embora isso ainda não esteja muito claro na cabeça da nossa elite governante. Essa elite, pressionada pelas demandas do crescimento econômico e, mais particularmente, pelos interesses do agronegócio e, ultimamente, pela idéia da expansão dos biocombustíveis – notadamente do etanol proveniente da cana-de-açúcar – alimenta projetos intensivos no uso da água doce, sem colocar no rol das suas prioridades o estudo dos impactos socioambientais de todo esse processo, sem avaliar criteriosamente o conjunto das nossas disponibilidades hídricas

47

Politica Democratica 17 - 25 de 47 47

26/3/2007 17:38:20


III. Observatório Político

e, sobretudo, sem fortalecer e ampliar os instrumentos institucionais que permitam à sociedade brasileira participar efetivamente, através dos seus segmentos organizados, das grandes decisões sobre o uso da água e do solo no território brasileiro. Como principal insumo do crescimento econômico, a água será, cada vez mais, objeto de disputa. E sob a perspectiva do agravamento do aquecimento global, sua utilização deveria ser rigorosamente submetida às regras de um processo crescentemente sustentável, algo que só será viável se os instrumentos da gestão democrática dos recursos hídricos e do meio ambiente forem ampliados, consolidados e respeitados. A Lei das Águas, ou seja, a 9.433, apesar de algumas ambigüidades, estabeleceu de forma razoável as bases dessa gestão democrática. Quando tratou dos fundamentos da Política Nacional dos Recursos Hídricos, já em seu artigo 1º definiu a água como um bem de domínio público, estabeleceu que, em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais e assegurou que a gestão das águas deve sempre proporcionar o uso múltiplo, a descentralização e a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades. Para gerenciar o Sistema Nacional dos Recursos Hídricos sob a égide desses fundamentos, a Lei 9.433 criou o Conselho Nacional dos Recursos Hídricos e seus similares estaduais e, na base dessa pirâmide institucional, aprovou os comitês de bacias hidrográficas. Esses comitês correspondem não somente ao desejo do legislador de tornar democrática e participativa a gestão das águas, como também respondem às exigências modernas de ocupação racional do território e uso sustentável dos recursos naturais, na medida em que a Lei 9.433 também definiu a bacia hidrográfica como unidade territorial para implementação da Política e atuação do Sistema Nacional dos Recursos Hídricos, com o objetivo de sobrepor as divisões naturais do território às divisões político-administrativas criadas pelos seres humanos. O Governo Lula, oriundo de uma retórica que durante anos pregou a necessidade da “participação popular” nos processos políticos, não parece ter ficado à altura dessa pregação, pelo menos no que diz respeito às questões relacionadas com a gestão das águas, em particular, e com a gestão ambiental, de um modo geral. Em outras palavras, o governo (tal qual aquele que o antecedeu) não tem correspondido aos avanços que a Lei das Águas trouxe para a cultura da gestão dos recursos hídricos no Brasil. 48

Politica Democratica 17 - 25 de 48 48

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:20


Água e democracia

O caso gerado pelo polêmico projeto de transposição das águas do Rio São Francisco para os estados do Nordeste Setentrional é um exemplo lapidar da falta de compromisso do governo com a realidade da democracia participativa e ainda uma evidência da absorção que fez da tradicional cultura autoritária e centralizadora do Estado brasileiro, mesmo nas condições do relativo progresso que a nossa democracia vem experimentando. Anunciado a todo o país como uma suposta solução para a escassez hídrica na região do semi-árido setentrional, o Projeto da Transposição consiste, em verdade, na transposição de águas para aumentar a segurança hídrica dos grandes reservatórios daquela região, notadamente o Açude Castanhão, no Ceará, e a Barragem Armando Ribeiro Gonçalves, no Rio Grande do Norte. Em resumo, levar água para locais onde ela já está acumulada em grandes quantidades, com o objetivo de viabilizar grandes interesses de mercado, principalmente o agronegócio de exportação de frutas tropicais e criatórios de camarões, também para exportação. Algo que, portanto, nada tem a ver com a generosa idéia – como gosta de repetir o presidente Lula – de “levar uma cuia d’água para os nossos irmãos sertanejos.” Para atingir esses objetivos não declarados da Transposição, que provocam naturalmente tanto dissenso nacional, outra alternativa não restou ao Governo Lula senão aquela de violentar o caráter democrático e participativo da Lei das Águas. Foi assim que, retomando a coisa no ponto exato em que Fernando Henrique havia deixado, o Governo Lula deu continuidade e enriqueceu um cabedal de processos abusivos para impor o seu projeto. A seqüência dessas iniqüidades antidemocráticas não é difícil de ser estabelecida: para obter a outorga do direito de uso da água para o Projeto da Transposição, o governo enfiou goela abaixo do Conselho Nacional de Recursos Hídricos uma resolução a toque de caixa e regimentalmente arbitrária, promoveu, sob protestos, audiências públicas relâmpagos nos estados da Bacia do São Francisco, as quais terminaram se transformando em autênticas farsas, elaborou Estudos de Impacto Ambiental absolutamente insatisfatórios, cujo conteúdo é objeto de disputa judicial, e praticamente ignorou o Plano Diretor da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco e as resoluções soberanas do seu Comitê, triturando a legislação pertinente. Não bastassem essas violências institucionais, o Governo Lula deu as costas ao óbvio caráter federativo do conflito em que se converteu o Projeto da Transposição e sequer quis ouvir as razões dos governadores que representam as populações da Bacia do São Francisco,

49

Politica Democratica 17 - 25 de 49 49

26/3/2007 17:38:20


III. Observatório Político

convertendo-se em fator de instabilidade no contexto de uma difícil e delicada construção de consensos. São consensos que deveriam começar dentro da própria Bacia onde os conflitos potenciais pelo uso da água ainda precisam ser trabalhados – e se estendem para fora dela onde esses potenciais de conflito são ainda maiores. Ao sufocar, inclusive financeiramente, o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, o Governo Lula praticamente extirpou da Lei das Águas aquilo que ela tem de mais precioso: o seu espírito democrático e algo que compõe a sua essência, ou seja, a idéia da gestão compartilhada dos recursos hídricos e, por extensão, de todos os recursos naturais. Não param por aí, no entanto, as demonstrações de desprezo pela legislação: o Ministério da Integração toma medidas para implementar as licitações das obras da Transposição, mesmo sabendo que o Congresso Nacional precisa se pronunciar sobre obras que se realizam com grande impacto em terras indígenas. E mesmo sabendo que outras pendências, como as dúvidas levantadas pelo Tribunal de Contas da União, quanto ao real alcance social da Transposição, não foram esclarecidas. Remando contra a maré das opiniões técnico-científicas produzidas por instituições de insuspeita competência profissional, como é o caso da Sociedade Brasileira Para o Progresso da Ciência, o Banco Mundial, o Conselho Nacional de Biologia, a Ordem dos Advogados do Brasil e outras, o Governo Lula ignora inclusive as alternativas surgidas do âmago da própria administração pública, a exemplo da Agência Nacional de Águas – ANA, o principal órgão executor da política nacional dos recursos hídricos. Com efeito, ao divulgar os dados do Atlas Nordeste, a ANA apresenta um elenco de 530 obras hídricas para solucionar os problemas de abastecimento de água até 2015 em todos os núcleos urbanos acima de 5.000 (cinco mil habitantes), no semi-árido brasileiro, a um custo de 3,6 bilhões de reais, custo esse que é praticamente a metade daquilo que se pretende gastar apenas com a captação da água e construção dos canais da Transposição. Tantas objeções ao Projeto da Transposição já deveriam ter convencido o Governo Lula a trocar o tom impositivo com que trata a questão, por um outro tipo de comportamento, capaz de aliar a cautela e o bom senso ao exercício do diálogo, tal como foi prometido ao bispo Dom Cappio para convencê-lo a encerrar sua memorável greve de fome contra o início das obras da Transposição. O diálogo solenemente prometido, jamais foi cumprido. 50

Politica Democratica 17 - 25 de 50 50

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:21


Água e democracia

Espaço para o diálogo e a negociação há. A partir do próprio Plano Diretor da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco que admite transposição de águas do velho Chico, desde que não se apresentem outras alternativas para solucionar o problema da escassez de água para consumo humano e dessedentação de animais em áreas fora da Bacia. No caso do Projeto da Transposição do São Francisco há condições para uma negociação federativa e republicana em torno, por exemplo, das necessidades a serem atendidas pelo chamado Canal Leste, que atenderá partes de Pernambuco e da Paraíba sabidamente complexas em termos de escassez hídrica e sua solução. Mas, ao que parece, o Governo Lula prefere tratar o problema a partir de uma visão exclusivamente de poder. Mesmo que isso provoque a divisão dos nordestinos, o descontentamento dos mineiros e a desordem hídrica na mais complexa das bacias hidrográficas brasileiras. Águas no semi-árido setentrional já existem, acumuladas em reservatórios do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco que, em sua totalidade, correspondem a mais de 30 bilhões de metros cúbicos em capacidade de reservação, praticamente a mesma quantidade representativa da capacidade de acumulação do Lago de Sobradinho, um dos maiores lagos artificiais do mundo. E se é para atender, como sustenta a retórica governamental, aos sertanejos sedentos, antes de se pensar em mais adução de água ao custo de obras caríssimas, manda o bom senso da nova cultura mundial da água que o Governo Lula faça melhor utilização do dinheiro da Transposição, empregando-o na construção dos sistemas de distribuição da água já acumulada e recuperação hidroambiental da gigantesca rede de açudes e barragens já existente. Só assim Lula realmente estaria fazendo a “democracia das águas” no Ceará, no Rio Grande do Norte, na Paraíba e Pernambuco, e nos demais estados do semi-árido. A polêmica provocada pelo Projeto da Transposição do São Francisco não é apenas uma questão de ordem ambiental (a agonia do ecossistema), de disponibilidade hídrica (os limites da vazão outorgável do São Francisco), de engenharia hídrica (as dúvidas sobre as dimensões do projeto e sua eficácia) ou econômico – financeira (os altos custos da obra e manutenção futura do sistema). A polêmica é sobretudo fruto de duas questões muito mais profundas: a primeira delas referente ao modelo de crescimento que se quer para o Brasil e que implica em escolhas muito claras entre a continuidade da concentração de riquezas e aprofundamento das de51

Politica Democratica 17 - 25 de 51 51

26/3/2007 17:38:21


III. Observatório Político

sigualdades sociais e regionais ou então a ruptura com essa inércia conservadora e a procura de alternativas que efetivamente traduzam o crescimento econômico em desenvolvimento sustentável. E a segunda questão é relativa à democracia, uma vez que, por intermédio da resistência do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco e de todos os seus aliados ao Projeto da Transposição, está a defesa dos avanços conquistados com a nova legislação das águas no Brasil. O que verdadeiramente está em jogo na disputa decorrente do Projeto da Transposição é o caráter participativo da democracia brasileira. É a gestão compartilhada dos nossos recursos naturais. É a essência da nova Constituição brasileira. É a integridade do Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos, em época de tantas incertezas como é a época atual. O processo de descrédito em que se envolveram a representação política e as estruturas do Poder Público no Brasil, colocou, mais do que nunca, na ordem do dia, o repensar da democracia, para incorporar à sua dimensão puramente político-representativa, as dimensões econômica, social, ambiental e cultural. E talvez seja no espaço da ecologia e, mais precisamente, no espaço da política nacional de recursos hídricos, através dos comitês de bacias hidrográficas, o lugar histórico onde essa nova concepção da democracia esteja sendo construída e posta à prova com mais intensidade neste momento. Não há outra saída para a crise ambiental global senão a saída democrática requalificada. Mercado e Poder Público isolados jamais serão capazes de resolver o desafio dessa crise. Por isso a democracia precisa ser ampliada no seu sentido dinâmico, porque os problemas globais resolvem-se sobretudo localmente e essa dialética do global e do local, do geral e do particular, do centralizado e do descentralizado é que poderá nos antecipar à catástrofe e à barbárie. Aprender com a polêmica da Transposição e com a luta dos comitês de bacias hidrográficas é reaprender o exercício da liberdade. É recapturar a inspiração revolucionária que, na época atual, só poderá ser entendida como radicalidade democrática que se materializa na prática concreta da democracia participativa em todos os planos da sociedade, seja no plano da luta pelos direitos humanos, pelos direitos das futuras gerações, pelos direitos da infância, pelos direitos do livre comércio, pelos direitos da cidadania internacional, pelos direitos da soberania dos povos, pelos direitos a um ambiente saudável e tantos quantos compõem a grande aventura da sociedade humana.

52

Politica Democratica 17 - 25 de 52 52

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:21


Água e democracia

Defender a nova Lei das Águas e o caráter democrático do Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos passou a ser uma questão de prioridade para tantos quantos, na vida empresarial, no mercado, na administração pública ou na sociedade civil, queiram dar sua contribuição à garantia e construção de um futuro sustentável para o planeta, para o nosso país e sua população.

***

53

Politica Democratica 17 - 25 de 53 53

26/3/2007 17:38:21


Faltam petições para tantas tragédias Mariana Mota Prado

A

tragédia do menino João Hélio provocou não só comoção nacional, mas também justificada movimentação em torno da questão: o que deve ser feito para impedir que isso aconteça de novo? A prisão e o julgamento dos acusados tornaram-se questão de segunda ordem, diante de um acalorado debate nacional sobre a alteração da legislação penal. O alto escalão do governo, o STF, políticos e juristas se pronunciaram sobre aumento de penas, diminuição da maioridade penal e políticas de aumento da segurança pública. E os pais de João Hélio, acertadamente, clamam para que a população não se silencie e exija providências. A mensagem é clara: não podemos mais viver assim. Assinamos todos embaixo. É surpreendente, todavia, que essa discussão pública sobre o que devemos fazer para que isso não aconteça de novo não esteja ocorrendo em outras esferas. Sem querer diminuir ou atenuar a atrocidade da qual foi vítima João Hélio, há muitas pessoas morrendo no Brasil e há muito pouca gente perguntando o que deve ser feito para evitar que isso aconteça. No início do carnaval, por exemplo, uma cantora morreu quando o trio elétrico onde estava enroscou e rompeu fios de telefonia. No mesmo dia, dois outros foliões sofreram o mesmo acidente, em outra cidade, mas com fios de alta tensão. Sete pessoas morreram no desabamento das obras do metrô de São Paulo. Cento e cinquenta e quatro pessoas morreram na queda do avião da Gol em setembro do ano passado. E apesar das válidas preocupações com a punição dos culpados, muito pouco se tem dito sobre o que devemos fazer para impedir que episódios como esses aconteçam de novo. Precisamos acabar com a criminalidade e garantir segurança pública para a população. Precisamos também nos assegurar de que as pessoas que estão trabalhando ou se divertindo durante o carnaval estejam em um ambiente seguro para fazê-lo. E não me parece que alguém precise de um PhD em cálculo avançado para descobrir que um trio elétrico de uma determinada altura vai colidir com a fiação em certas ruas da cidade. 54

Politica Democratica 17 - 25 de 54 54

26/3/2007 17:38:21


Faltam petições para tantas tragédias

Há alguém supervisionando o trajeto de trios elétricos para se certificar que eles não colidam com fios da rede de infra-estrutura? Há alguma regulamentação sobre a altura dos trios elétricos, para evitar que os carros estejam sujeitos a essas colisões? Se as regras já existem, há pessoas honestas aplicando e garantindo a observância das mesmas? A coisa se torna um pouco mais complexa no caso do desabamento do metrô. Qual é a regulação sobre contratos de construção assinados pela prefeitura? São contratos turn-key – entrega da construção pronta – que criam incentivos para que as construtoras economizem dinheiro? Por que não mudamos isso, então? Por que não estamos discutindo se a prefeitura de São Paulo deveria ter autorização para assinar contratos turn-key ou não? Uma discussão como essa é relativamente sofisticada, e deve exigir conhecimento especializado, mas isso não impediu que a legislação penal fosse alterada quando João Hélio foi brutalmente assassinado. Por que deveria ser um obstáculo, nesse caso? E ainda que alguém me convença que as tecnicalidades do direito contratual são mais impenetráveis do que as do Direito Penal, eu me pergunto: onde estão os 120 mil bacharéis em direito que formamos todos os anos? Por que estão eles em silêncio, quando poderiam estar ajudando a pensar em uma forma contratual que evite o que aconteceu em São Paulo? Por que os 450 formandos que saem da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo todo ano, com cinco anos de educação jurídica de primeira, totalmente financiada pelo Estado, não estão compartilhando com a sociedade um pouco do que aprenderam? Por fim, vem o caso mais complexo. A tragédia da Gol voltou às páginas dos principais jornais devido à divulgação da gravação da caixa preta do jato Legacy. Uma jornalista descreveu o acidente como “uma sucessão de erros, mal-entendidos e uma certa inexperiência ou incompetência”, e colocou ainda mais lenha na discussão sobre quem é o culpado, se é que houve apenas um. A questão é relevante, mas não deveria eliminar outra discussão que precisamos ter neste momento: independentemente de quem seja o culpado pela queda do avião, estamos fazendo alguma coisa para evitar um outro acidente? Tráfego aéreo é uma questão técnica e provavelmente não temos 120 mil controladores de tráfego se formando todo ano, como temos em direito. Ainda assim, há algumas questões que me parecem relativamente simples: o que está sendo feito para tapar o buraco negro do radar brasileiro sobre a Serra do Cachimbo? Foi instaurado algum tipo de procedimento para que o plano de vôo de todos os aviões fossem 55

Politica Democratica 17 - 25 de 55 55

26/3/2007 17:38:21


III. Observatório Político

devidamente checados pelas torres de controle de diversos pontos? Podemos fazer alguma outra coisa para evitar que isso aconteça de novo? O quê? Estamos todos cansados dessa realidade triste em que vidas são perdidas por razões pouco ou nada justificáveis. Junto com isso, vem a frustação de que os culpados por essas perdas nem sempre são devidamente punidos. Sem dúvida, isso precisa ser remediado. Mas precisamos voltar nossa atenção também para o que precisa ser feito para evitar que isso aconteça no futuro. Estamos em um regime democrático, e os governantes estão respondendo a pressões e clamores populares. A alteração da legislação penal após a morte de João Hélio é um exemplo. Precisamos alterar leis, regulamentos, contratos e tudo o que dá margem a “uma sucessão de erros, mal-entendidos e uma certa inexperiência ou incompetência” que matam 154 pessoas. Não podemos nos consolar com a idéia de que foi uma infeliz coincidência que levou a essa “sucessão de erros e mal-entendidos”. Nós temos poder para impedir que infelizes coincidências aconteçam, que erros sejam cometidos, e que riscos desnecessários sejam assumidos, e precisamos usar esse poder o mais rápido possível. Enfim, precisamos de um debate acalorado sobre nossas leis e políticas públicas e precisamos implementar mudanças antes que o problema surja de novo. Mas isso, indiretamente, os pais do João Hélio já tinham dito. Eu apenas estou enfatizando que há mais de uma petição para assinarmos embaixo.

***

56

Politica Democratica 17 - 25 de 56 56

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:21


Violência & Cultura Ivan Alves Filho A cultura é uma necessidade imprescindível de toda uma vida, é uma dimensão constitutiva da existência humana, como as mãos são um atributo do homem. José Ortega y Gasset

A cultura não se herda, conquista-se. André Malraux

O

povo brasileiro vive uma extraordinária crise de identidade, a qual se manifesta, por exemplo, na violência desenfreada que tem sacudido o país nas últimas décadas. Abrir os jornais virou um suplício para muitos de nós. Contabilizamos milhares e milhares de jovens mortos estupidamente na guerra do tráfico, nas ações descontroladas da polícia, enquanto crimes cada vez mais bárbaros são cometidos pela própria população. Há anos tem sido assim, numa rotina verdadeiramente aterrorizante. Os dados estatísticos de 2006 falam por si só: cerca de 48 mil pessoas foram assassinadas no Brasil nesse ano. Só para se ter uma idéia, morreram, na guerra do Vietnam, em 15 anos de agressão imperialista, cerca de 50 mil soldados norteamericanos. Temos um Vietam por ano – pelo menos se formos nos ater às perdas de guerra dos Estados Unidos. Dir-se-ia então que o Brasil doicodizou-se. Que não há mais fundo do poço. Que a violência que tradicionalmente desaba sobre as nossas cabeças – vinda de cima, da vertical portanto – foi como que horizontalizada pelo povo, que a esparrama para os lados. Para todos os lados. Não há sociedade que se mantenha de pé assim por muito tempo. A nossa não seria uma exceção à regra. E entendemos por violência não somente a pancadaria promovida pelas ditaduras sucessivas que ensangüentaram o século XX brasileiro como também os pacotes econômicos baixados na calada da noite e os mensalões da vida. Vale dizer, a violência atual é sistêmica e como tal deve ser combatida. Com essa ótica, a questão vai muito além da prevenção e da própria repressão. Antes fosse, ousaríamos até dizer: ela implica, também, em uma questão cultural – que deita raízes, certo, na forma como organizamos o nosso sistema econômico, mas que possui

57

Politica Democratica 17 - 25 de 57 57

26/3/2007 17:38:22


III. Observatório Político

igualmente uma relativa independência em relação a ele. Necessita ser combatida, portanto, com outras armas também. Podemos imaginar as causas mais profundas dessa violência: a coisificação do ser humano pelo sistema capitalista está levando o homem a cometer os atos mais brutais contra si mesmo. Atos esses agravados pela crise econômica que corrói há tempos a quantidade e também a qualidade de vida do cidadão comum no Brasil e em vários outros cantos do mundo. Isso, para não aludirmos à injustificável (vamos acreditar que sim) exposição das pessoas à violência que a mídia moderna promove diariamente, em quase todos os países, centrais ou periféricos ao mundo capitalista. Conforme indicou o filósofo jesuíta francês Teilhard de Chardin é preciso optar entre ter e ser em sociedades como as nossas, conduzidas pelo capital. E essa postura está cada vez mais difícil. A redução dos homens à condição de coisa parece estar levando a melhor. Outro filósofo, o alemão Karl Marx, escreveu certa vez – e cito de cor, sujeito a incorrer em imprecisões – que “quando os de cima não podem mais comandar e os de baixo não têm projeto alternativo, a sociedade se desagrega”. Obviamente, ninguém deseja que isso se dê no Brasil. Daí necessitarmos urgentemente de nos dotar de um projeto de Nação (leia-se: para toda a Nação) que leve em conta as transformações que a atual revolução técnico-científica vem operando no processo civilizatório. Mas que avance também a partir da nossa realidade mais profunda. Temos uma cultura antiga – formada pela contribuição-síntese de vários continentes – e somos um Estado Nacional há quase dois séculos. Isso decididamente não é pouco. Pelo contrário: pesa e muito. Partidos, sindicatos, organizações da sociedade civil, as Forças Armadas, as instituições de educação e cultura, ninguém pode ficar de fora do ato de repensar o Brasil. Ele está precisando. Nós estamos devendo a nós mesmos uma revisão dessa natureza. O que fazer, para além de uma ruptura com um modelo econômico que perpetua nas margens da sociedade contingentes enormes de brasileiros? Pois acreditamos que não basta tomar medidas econômicas. Mudar de padrão econômico é sem dúvida uma condição necessária – mas não única (e é preciso dizer que nenhum esforço tem sido feito nesse sentido pelos dirigentes do país nas últimas décadas). Recentemente, e esse nos parece um ponto importante, o IBGE divulgou que o Piauí, reconhecidamente um dos estados mais pobres da Federação brasileira, apresenta o menor índice de criminalidade do país. Provavelmente isso tem que ver com o grau de coesão interna das cidades e vilarejos piauienses, onde a inserção social dos 58

Politica Democratica 17 - 25 de 58 58

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:22


Violência & Cultura

indivíduos ainda é uma realidade. A igrejinha, o futebol de domingo, a sinuca no botequim da esquina, o passeio na pracinha, a pescaria entre amigos, o almoço em família – eis aí alguns elementos estruturantes que em determinadas áreas brasileiras ainda saltam aos nossos olhos. Não sabemos por quanto tempo. Não se trata de retornar ao passado, mas de imaginar que determinados elementos desse passado possam se incorporar ao presente, humanizando mais a vida. A concepção dialética, contrariamente à idealista, ensina que o passado pode ser superado – mas nunca ignorado ou simplesmente apagado, uma vez que se prolonga forçosamente no tempo presente. Nem tudo está morto no passado como nem tudo está vivo no presente. Além do que, a crise de valores atuais é sem precedentes, levando de roldão tanto valores ditos tradicionais quanto aqueles considerados revolucionários. A brutalidade da (incompleta) urbanização brasileira talvez tenha algo que ver com isso. A nossa violência – se poderia dizer – tem um duplo caráter. Tanto há elementos típicos de uma certa barbárie que se instala lentamente no tecido social dos países capitalitas desenvolvidos – uma violência que, por falta de outro nome, denominaríamos de gratuita, ou norte-americana – como elementos da violência tradicional, mais terceiromundista, digamos assim. Uma combinação explosiva, bem à maneira brasileira, país que costuma confundir, por força de seu desenvolvimento desigual e combinado, as etapas históricas. Com efeito, a nossa crise, sobretudo nas grandes cidades, foi além do meramente econômico: tornou-se uma crise de identidade. O que somos? Qual o sentido de nossas existências? Para que vivemos? Possivelmente estamos perdendo as respostas a essas perguntas. Enquanto isso, as entranhas da sociedade brasileira vão sendo contaminadas pela violência. Quem assistiu ao filme O ovo da serpente, de Ingmar Bergman, sabe a que estou me referindo. Não há como negar que uma patologia se alastra pelo tecido social brasileiro, esgarçando-o. Mulheres, pobres, crianças e negros são as principais vítimas da brutalidade que estamos cometendo contra nós mesmos. Mudar o atual modelo econômico e preservar e ampliar o Estado Democrático de Direito são duas exigências civilizatórias dos dias de hoje, duas premissas básicas. De fato, o Brasil não agüenta mais conviver com a sangria da dívida, hoje acima de 1 trilhão de reais. Como não suporta mais os salários aviltantes e o crescimento pífio do Produto Interno Bruto, superado na América Latina apenas pelo do Haiti, um país em guerra e o mais pobre do continente americano.

59

Politica Democratica 17 - 25 de 59 59

26/3/2007 17:38:22


III. Observatório Político

A isso vêm-se somar alguns sinais inquietantes de desmoronamento do Estado, materializados pelo caos aéreo, pelas péssimas condições das rodovias e pela ausência de projetos efetivos na área social. E o que dizer das escolas e hospitais públicos? O que dizer? A famigerada política de superávit primário, ao definir que investir é gastar, tem provocado enormes transtornos ao Brasil. Cerca da metade da força de trabalho juvenil está desempregada no Brasil. Dá até vontade de repetir esse dado – metade da força de trabalho juvenil, entre os 18 e os 24 anos! E enquanto isso gastamos 590 bilhões de reais com os serviços da dívida, para ficarmos apenas nos últimos quatro anos (2002-2006). Entre pagar tudo e não pagar nada, talvez houvesse espaço para uma saída negociada. Os tempos andam tão difíceis que não há quem não sinta um desconforto diante desse quadro. Quando a própria Arte descarta a noção de Belo é porque – sem trocadilho – a coisa anda mesmo feia... “Viver, você já sabe, viver é muito perigoso”, vaticinou Guimarães Rosa – e essa frase se torna cada vez mais verdadeira entre nós. Mas nunca é tarde para mudar e setores mais esclarecidos do governo e da oposição começam a perceber que a retomada dos investimentos públicos é um imperativo da realidade. A própria divulgação, no começo de 2007, do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) pode ser um primeiro passo nesse sentido. São centenas de emendas tramitando atualmente no Congresso, visando a corrigir eventuais distorções e também ampliar pontos positivos do programa. Mas há mais: até quando teremos de aturar o convívio com a impunidade e a empulhação? Com os exemplos negativos que vêm de cima? Com políticos envolvidos em negócios para lá de duvidosos, no bojo daquelas tenebrosas transações a que se referia há tempos Chico Buarque de Hollanda? Sabemos todos – até pelas desastrosas experiências recentes – que não há saída fora do quadro democrático e da política. E é pela via da democracia que teremos de enfrentar todo um conjunto de questões que infernizam o cotidiano do brasileiro comum. Assim, é fundamental ampliar o nosso espaço democrático, justamente. Estender a democracia ao cotidiano de cada um. Nesse sentido, é necessário travar uma batalha específica, ainda que ligada ao todo. Por uma razão simples: muitas das medidas administrativas (tomadas ou a serem tomadas ainda...) se dão no âmbito do aparelho de Estado, no campo da institucionalidade. E acontece que as grandes massas vivem no cotidiano, nas instituições, teias e práticas da chamada sociedade civil. Os partidos políticos têm que atentar para isso – e mui60

Politica Democratica 17 - 25 de 60 60

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:22


Violência & Cultura

tos deles têm dificuldade, pois estão longe de vivenciarem o dia-a-dia do povo. E não só: a atividade econômica não pode abarcar o conjunto das práticas humanas ou ter a pretensão de resolver tudo, automaticamente, como em um passe de mágica. Nunca é demais recordar que o homem é a soma de todas as suas experiências sociais. É aqui que entra a cultura, como fator que agrega sentido às nossas vidas. Entendemos que a cultura não tem como ser reduzida à mera produção de artigos para a venda. Vale dizer, a cultura é, acima de tudo, um posicionamento diante do que aí está. E ela só faz unir, o que é ainda melhor. Ligado inicialmente à idéia de cultivo – o que nos remete a algo naturalmente prático –, o termo cultura passou a designar, genericamente, as atividades relacionadas às coisas do espírito. Hoje o termo tende a sofrer uma nova mutação, refletindo um certo estar no mundo. Essa noção tem a vantagem de unificar aquilo que é prático ao que é também reflexão, e, mesmo, lúdico. É pelo menos o que desejamos: que a cultura corresponda à identidade do homem. O mínimo que podemos dizer é que essa identidade – ao menos no que toca ao homem brasileiro – está profundamente comprometida. A nossa auto-estima encontra-se severamente abalada. Não que tenhamos parado de criar. Afinal, exemplos nesse sentido não faltam. E isso em todos os domínios da atividade cultural. Se tivemos, no passado, músicos como Pixinguinha e Villa-Lobos ou escritores como Graciliano Ramos e Carlos Drummond de Andrade, temos hoje criadores da qualidade de Elomar e Ferreira Gullar, Manoel de Barros e Nelson Pereira dos Santos, o cineasta membro da Academia Brasileira de Letras. E temos ainda este exemplo maior da nossa cultura, o arquiteto Oscar Niemeyer, produzindo ainda no ano do seu centenário. Mas... é impossível negar: há uma inquietação no ar. Estamos perdendo a nossa cordialidade e a cultura do crime que se espalha pela sociedade, parece, por momentos, querer destruir a nossa alma, o nosso patrimônio civilizatório. Dialéticamente, a vida põe e dispõe. Assim, experiências recentes levadas a cabo em determinadas prefeituras e estados brasileiros, ou implementadas por organizações do chamado terceiro setor e do poder local – apoiadas em rede cada vez maior de cursos voltados para a dança, a música, as artes e o artesanato em geral, dentro e fora das escolas – demonstram que há luz no fim do túnel. Esses experimentos também revelam que a violência recua – e o faz drasticamente, por sinal – diante da recuperação (e em certos casos até da criação, para lá de desejável) de uma real identidade por parte das pessoas. Pois

61

Politica Democratica 17 - 25 de 61 61

26/3/2007 17:38:22


III. Observatório Político

identidade é crucial e implica em constante criação. Como sabemos, nada é extático na vida. Um povo que não se afirma, que não cultiva a auto-estima ou abre mão de pensar por conta própria está fadado a viver novas aventuras autoritárias. A História ensina que tudo que é feito violando o contexto cultural raramente alcança êxito. Cultura e política atuam na comunidade. Isto é, dividem o mesmo espaço. Ajudam a mudar a vida. Ajudam a mudar de vida. E a vida tem mostrado que a cultura precisa da política para ultrapassar por vezes a erudição acadêmica e o tecnicismo e a política precisa da cultura para não se limitar a ser a arte da manutenção do poder a qualquer preço. Nada melhor do que a cultura para dar uma razão à nossa existência. A cultura cria. A cultura indaga. A cultura inclui. A cultura combate enfim pelo homem. Assim, é preciso irrigar de cultura o terreno da política, em ampla mobilização para humanizar o próprio homem. Ainda há tempo.

***

62

Politica Democratica 17 - 25 de 62 62

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:22


Aquecimento Global Humberto França

A

comunidade científica reunida recentemente em Paris, no Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática, fez advertências assombrosas a respeito do aquecimento global. Nos últimos anos, recorrentes fenômenos de alterações climáticas evidenciam que a Terra está submetida a um rápido processo de mudanças naturais. Os cientistas advertem, que nos próximos cem anos, o nível dos mares se elevará em meio metro, arrasando cidades costeiras, inclusive o Recife. Há outros complicadores. Os fenômenos climáticos e a exploração desenfreada dos recursos naturais conjugados ao crescimento populacional também poderão desencadear pandemias entre humanos e animais (ver a questão da gripe aviária). A humanidade igualmente terá de confrontar outro problema: deter a irrefreável exploração dos recursos da natureza, diante das elevadas taxas de um crescimento populacional atrelado às exigências insustentáveis de padrões de consumo. Se a população mundial alcançar nove bilhões em 2050, muitos desses habitantes serão consumidores ávidos pretendendo manter o mesmo nível de consumismo dos países desenvolvidos, os maiores responsáveis pela destruição do meio ambiente. Para agravar as dificuldades, nos últimos anos, os países asiáticos, principalmente China e Índia, desencadearam um processo de crescimento destrutivo que objetiva inserir no competitivo mercado de trabalho internacional, 600 milhões de pessoas. Esta população passará a ter maiores rendimentos e exigirá um padrão de consumo que, no entanto, a Terra não poderá atender, principalmente se prosseguirem na mesma escala, as intensas modificações climáticas. Um outro tema a despertar discussões é a elevação da expectativa de vida da população mundial em decorrência da melhoria dos padrões de alimentação e de assistência à saúde, o que está desencadeando uma explosão nos orçamentos, ameaçando quebrar os Estados, pois, estes terão de arcar com despesas estratosféricas, para “repararem” os danos provocados pelas mudanças do clima.

63

Politica Democratica 17 - 25 de 63 63

26/3/2007 17:38:22


III. Observatório Político

É possível que os governos não encontrem meios para garantir os direitos de uma enorme população ultraconsumista, e ao mesmo tempo, atenderem as necessidades de um grande contingente populacional em processo de envelhecimento, o que exigirá tratamentos médicos cada vez mais sofisticados e impagáveis. A conta deverá ser passada para a sociedade. Possivelmente também as legislações sofrerão reinterpretações, porque o tesouro público terá de financiar custos sociais e também a recuperação de áreas devastadas, a recolocação de populações desalojadas e os prejuízos causados por enchentes, estiagens, ressacas, aumento do nível dos oceanos, queda de produção, expansão de pragas e escassez de alimentos que produzirão crises econômicas. O crescimento da população e a exigência pela inclusão de milhões de novos consumidores também poderão desencadear tensões nunca antes ocorridas nas relações internacionais, pois os países mais fortes vão lutar para manterem, sob seu controle, os escassos recursos naturais. Os centros de poder já estão se deslocando celeremente em direção à Ásia e os desentendimentos entre as nações conduzirão a guerras fratricidas. Atualmente, a proliferação de armamentos atômicos no Oriente Médio é um fato que aponta nesta direção. As conseqüências do fenômeno climático talvez gerem profundas mudanças no comportamento humano. O pensamento, as relações sociais e políticas poderão sofrer alterações, a depender da intensidade e da velocidade em que os fatos ocorrem. Se as mudanças do clima, aliadas às alterações naturais recorrentes provocarem catástrofes apocalípticas, o inconsciente e a consciência do homem serão modificados. A humanidade confrontada com o desajuste climático, se este atingir níveis insuportáveis, talvez se sinta tentada a procurar soluções místico-religiosas e ideológicas, abandonando os padrões de organização político e social até então aceitos pela razão da civilização tecnológica. Diante da mudança climática pelas quais passa a Terra, talvez o pior fenômeno já registrado pela História, causam espanto a indecisão e a relutância de líderes políticos para implementarem medidas urgentes. Se os Estados e a sociedade nada fizerem, as gerações futuras serão obrigadas a resolverem desafios nunca antes imaginados, para permanecerem com vida, no seu próprio habitat: a Terra.

*** 64

Politica Democratica 17 - 25 de 64 64

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:23


IV. No Compasso das Reformas

Politica Democratica 17 - 25 de 65 65

26/3/2007 17:38:23


Autores Isabela Naves Cientista política e assessora da Liderança do PPS na Câmara.

Lucília Helena do Carmo Garcez

Professora aposentada da UnB, doutora em Lingüística Aplicada ao Ensino e escritora.

Marcelo Aguiar Especialista em Políticas Sociais, foi chefe de gabinete do ministro da Educação e secretário nacional do Programa Bolsa Escola, em 2003.

Carlos Henrique Araújo Mestre em Sociologia, foi diretor de Avaliação da Educação Básica no MEC (2003/2005).

66

Politica Democratica 17 - 25 de 66 66

26/3/2007 17:38:23


Reforma política: uma lógica velha, mas repaginada como nunca Isabela Naves

N

ão é exclusividade de um governo, nem foi criado por um, especificamente. O processo de negociação de cargos do Poder Executivo para construir uma base aliada no Congresso Nacional é o resultado da opção presidencialista feita em 1993, quando do plebiscito do parlamentarismo. À ocasião, decidimos pelo presidencialismo, mesmo que o texto constitucional elaborado poucos anos antes pelo Congresso tenha sido escrito à luz de um outro ideário. Essa configuração crítica de poderes que observamos hoje no Brasil, embora não seja nova, é de dimensões bastante diferente das demais ocasiões em que houve uma sobreposição do Poder Executivo sobre o Legislativo. A situação de hoje é conhecida pela sociedade, por ela questionada e está na iminência de expor todos a uma crise sem precedentes. Nos quatro primeiros anos do Governo Lula, a base do governo dedicou pouquíssimo ou nenhum esforço para deliberar sobre as matérias que reestruturaria o sistema eleitoral e o sistema partidário. Feito um levantamento das propostas que tramitam na Câmara e Senado, projetos de lei e propostas de emenda à Constituição, observa-se que as principais matérias em andamento nas Casas, ou que deram ensejo a novas leis, são de autoria do PFL. O distanciamento do Partido dos Trabalhadores e de seus aliados dessa problemática política e eleitoral deve-se, em parte, à impreci-

67

Politica Democratica 17 - 25 de 67 67

26/3/2007 17:38:24


IV. No compasso das reformas

são dos resultados eleitorais que as propostas em trâmite poderão produzir. Embora tenham buscado por muito tempo o aperfeiçoamento dos mecanismos democráticos, hoje temem possíveis mudanças de status quo. Uma vez no poder, o PT descobriu os dois lados da disputa política, o lado da oposição derrotada e da situação vencedora, ambas resultantes da expressão das urnas. Essa vivência deu aos petistas o conhecimento dos vícios e virtudes da Lei Eleitoral (Lei nº 9.504, de 1997) e Lei dos Partidos Políticos (Lei nº 9.096, de 1995) e os ensinou a tirar proveito de ambos, igualmente. O Poder Executivo geriu todo o primeiro mandato com os olhos nas trocas partidárias e nas conseqüências construtivas e destrutivas dessas mudanças para o processo de controle e execução de sua agenda legislativa. Ciente da fragilidade do presidencialismo de coalizão que comandava, o presidente Lula manteve-se atento a essas alterações e procurou negociar posições de primeiro, segundo e terceiro escalões de seu poder para garantir a prevalência de sua vontade na atividade legiferante. Para fazer constar, ao longo do primeiro mandato foram feitas 131 mudanças partidárias. Ainda que tivessem sobre a mesa cargos disponíveis, recursos para custear apoio de parlamentares, estratégias de edição de medidas provisórias, contingenciamento de gastos, restrições orçamentárias e não empenho de emendas da oposição, o governo e o PT não conseguiram evitar as graves crises inter e intra poderes noticiadas diariamente pela imprensa brasileira. As crises desdobraram-se em escândalos que, num primeiro momento, foram amortecidos pelo eleitorado crente na vitória da esperança sobre o medo e que não haveria de ser páginas de jornais e movimentações policiais que destruiriam a crença no aumento da renda (ainda que a redistribuição de renda inexista), na ampliação do acesso da população a bens não-duráveis (ainda que fazendo crediários a perder de vista) e na governança bem sucedida de um operário. O momento que se seguiu a essa relativização dos acontecimentos foi o de dar ao presidente Lula, quando de sua recondução ao poder em 2006, a oportunidade de alterar o status quo político e eleitoral corrompido, por um novo, e nisso retornou à pauta, timidamente, a reforma política. Desde que a matéria foi reinserida na ordem do dia do Congresso, avisos do governo começaram a ser disparados. O presidente da Câmara dos Deputados, deputado Arlindo Chinaglia, alertou que a inclusão da

68

Politica Democratica 17 - 25 de 68 68

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:24


Reforma política: uma lógica velha, mas repaginada como nunca

mesma “não era pra valer!”, mas para alertar a todos da importância de se discutir e se acertar sobre os pontos que seriam contemplados na reforma, apenas aqueles estritamente necessários. Passado o momento de entretenimento da mídia e da reanimação das lideranças que se apoderaram da matéria, realizou-se reunião de líderes para decidir, “pra valer”, quando, como e o quê será a reforma política, de autoria da Câmara dos Deputados. E o decidido ficou assim: A matriz da reforma será o PL nº 2.679, de 2003, de autoria da Comissão Especial, relatada pelo deputado Ronaldo Caiado (PFL/GO). Os principais pontos dessa proposta são: financiamento público exclusivo de campanha, nova cláusula de barreira, lista partidária fechada, fim das coligações nas eleições proporcionais e federação partidária. As demais propostas deverão ser reapreciadas pelo grupo temático criado, mas ainda não instalado. Entre essas matérias encontramos: convocação de plebiscito e referendo pela população e TSE, redução do número de assinaturas para apresentação de projeto de lei de iniciativa popular e possibilidade de apresentação de proposta de emenda à Constituição pela mesma iniciativa, referendo para parlamentarismo, referendo revocatório de presidente da República e congressistas, fim da reeleição, redução do mandato de senadores, entre outros pontos. Para tornar viável a deliberação dessa matéria complexa, decidiuse que apenas os projetos de lei ordinária farão parte do texto a ser apreciado pelo plenário da Casa, otimistamente até o fim do mês de maio. De antemão, observem que essa primeira definição do tipo de lei a ser contemplada é suficiente para excluir a dissolução de alguns nós no procedimento político-eleitoral brasileiro. Deste cenário, o que podemos seguramente concluir é que, em definitivo, a reforma política não será “pra valer”. Os pontos da discussão e deliberação estarão restritos aos procedimentos que constranjam, mas nem tanto, o troca-troca partidário, que barateiem os custos da campanha eleitoral, que permitam a sobrevivência das pequenas legendas e que sejam suficientes para prestar contas à sociedade. De substancial, nenhuma mudança. O resultado será aquele que não apague ou obstaculize os caminhos alternativos e paralelos encontrados pelo PT para chegar ao poder e nele se manter. Alteraria substancialmente o funcionamento do jogo político-eleitoral a introdução de listas partidárias fechadas e o financiamento público exclusivo de campanha. O primeiro, antes mesmo do anúncio

69

Politica Democratica 17 - 25 de 69 69

26/3/2007 17:38:24


IV. No compasso das reformas

de que entraria “em discussão o projeto de reforma política” já teria o voto contrário de 26 deputados que trocaram de partido até o dia 5 de março deste ano e que, segundo as regras propostas pelo projeto matriz, PL nº 2.679, de 2003, teriam a posição na lista prejudicada em razão da mudança de legenda. Uma observação mais atenta desse troca-troca demonstra-nos algumas das motivações dessa movimentação e, não surpreendentemente, verifica-se os incentivos dados a parlamentares da oposição para se filiarem a partidos da base aliada. O raciocínio é simples: parlamentar eleito por estado cujo governador é de partido da base aliada, vê-se pressionado a acompanhar a orientação partidária do mesmo para não se deparar com uma situação de restrições orçamentárias para sua região. Diante disso, procura um partido que lhe acolha e otimize os ganhos da região que representa. Se, por um lado, o parlamentar ganha com a liberação de verbas e o apoio do Executivo estadual, por outro, o partido que lhe acolheu ganha no processo de barganha junto ao Executivo federal, já que poderá oferecer um maior número de votos para a aprovação da agenda legislativa executiva. Por tudo isso, dificilmente uma reforma substancial irá ocorrer. Além da imprecisão dos resultados eleitorais que ela pode produzir, coloca em dúvida a certeza do poder de determinados grupos políticos instalados dentro do mesmo e todo o know-how adquirido para a manutenção do status quo. Portanto, até que o Poder Executivo coloque em sua agenda legislativa a reforma política como prioridade, não haverá nenhuma mudança. Não basta estar na agenda formulada pelo Poder Legislativo, resultante de acordos de líderes porque boa parte dos líderes estão diretamente vinculados à lógica do presidencialismo de coalizão sustentado pela loteamento dos cargos do Executivo. Lamento não vislumbrar nenhuma mudança significativa para os próximos quatro anos, mas estou otimista no fato de que a insustentabilidade dessa situação será capaz de trazer inquietude suficiente à alteração da conduta da sociedade e do próprio Congresso Nacional, nessa ordem, necessariamente.

***

70

Politica Democratica 17 - 25 de 70 70

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:24


A Educação entre nós: . do diagnóstico à solução Lucília Helena do Carmo Garcez

M

ais uma vez, o Brasil toma conhecimento dos resultados alarmantes das avaliações nacionais da educação, sempre em declínio. Há dez anos, o MEC vem avaliando a situação dos alunos no que se refere à leitura, compreensão de texto e matemática, ou seja, as habilidades fundamentais que constituem a base de qualquer crescimento intelectual posterior, por meio do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) e do Saeb (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica). Entretanto, à prática da avaliação não tem correspondido o tratamento específico dos problemas detectados. É como ir ao médico, fazer os exames, chegar a um diagnóstico, mas não fazer o tratamento indicado para a doença. Naturalmente, quando de um outro diagnóstico a doença terá progredido. Assim, a deficiência em leitura está progredindo a passos largos, conforme comprovam os sucessivos diagnósticos. Os debates atuais a respeito da leitura estimulam e exigem uma reflexão mais profunda, com base em tudo que já se sabe sobre o processo de ler e compreender. Os programas de democratização da leitura, oficiais ou não, devem intensificar qualitativamente sua atuação, para fazer frente aos apelos imediatos de um mundo cada vez mais seduzido pela imagem, pela comunicação rápida, pela velocidade, e, ao mesmo tempo, devem ampliar quantitativamente os esforços para incluir parcelas cada vez maiores da população. Nesse percurso, muitas vezes descontínuo e cheio de obstáculos, qualquer iniciativa em direção ao estímulo à leitura deve envolver diversos agentes e diferentes segmentos sociais: famílias, escolas, professores, bibliotecários, especialistas, pesquisadores, editores, autores, meios de comunicação, instituições governamentais e não-governamentais. Se queremos socializar o direito à leitura, não apenas como correspondência entre sons e letras, mas como forma real de conhecimento, interpretação e compreensão do mundo e do ser humano, é imprescindível uma articulação contínua, intensa e harmoniosa entre esses atores. Isso porque o desenvolvimento da leitura, já sabemos há muito tempo, depende de: convívio contínuo com histórias, livros e leitores, 71

Politica Democratica 17 - 25 de 71 71

26/3/2007 17:38:24


IV. No compasso das reformas

desde a primeira infância; valorização social da leitura pelo grupo social; disponibilidade de acervo de qualidade e adequado aos interesses, horizontes de desejo e aos diferentes estágios de leitura dos leitores; tempo para ler, sem interrupções; espaço físico agradável e estimulante; ambiente de segurança psicológica e de tolerância dos educadores em relação ao percurso individual de superação de dificuldades; oportunidades para expressar, registrar e compartilhar interpretações e emoções vividas nas experiências de leitura; acesso à orientação qualificada sobre porque ler, o que ler, como ler e quando ler. Para aprofundar a reflexão relativa à natureza do ato de ler, é necessário considerar que se trata, simultaneamente, de uma experiência individual única e de uma experiência interpessoal profunda e intensa, um exercício dialógico ímpar, pois entre leitor e texto desencadeia-se um processo discursivo de decifração, interpretação, reflexão e reavaliação de conceitos absolutamente renovado a cada leitura. Não podemos doar a nossa leitura, mas podemos compartilhar a consciência do direito de ler, porque, assim como a linguagem, os direitos são construções sociais, estabelecidos e conquistados em conjunto, no coração das lutas sociais. Como não se luta pelo que não se conhece, é necessário dar a conhecer as infinitas possibilidades da leitura. A experiência da linguagem, e a da leitura especialmente, não é solitária, é um produto construído na interação em que os participantes atuam de forma ativa. Ela exige procedimentos mentais complexos que são construídos pela mediação do outro: o pensamento abstrato, a memorização, a atenção voluntária, o comportamento intencional, as ações conscientemente controladas, a generalização, as associações, o planejamento, as comparações, ou seja, as funções superiores da mente que nos fazem humanos, como afirma Vygotsky. Por ser assim tão complexa, a leitura nem sempre é um procedimento fácil. Ela faz inúmeras solicitações simultâneas ao cérebro e é necessário desenvolver, consolidar e automatizar habilidades muito sofisticadas para pertencer ao mundo dos que lêem com naturalidade e rapidez. Desde a decodificação de signos, interpretação de itens lexicais e gramaticais, agrupamento de palavras em blocos conceituais, identificação de palavras-chave, seleção e hierarquização de idéias, associação com informações anteriores, antecipação de informações, elaboração e reconsideração de hipóteses, construção de inferências, compreensão de pressupostos, controle de velocidade, focalização da atenção, avaliação do processo realizado, até a reorientação dos próprios procedimentos mentais para a compreensão efetiva e responsiva, há um longo e acidentado percurso. Há procedimentos específicos de seleção e hierarquização da informação como: observar títulos e subtítulos; analisar ilustrações; 72

Politica Democratica 17 - 25 de 72 72

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:24


A Educação entre nós: do diagnóstico à solução

reconhecer elementos paratextuais importantes; reconhecer e sublinhar palavras-chave; identificar e sublinhar ou marcar na margem fragmentos significativos; relacionar e integrar, sempre que possível, esses fragmentos a outros; decidir se deve consultar o glossário ou o dicionário ou adiar temporariamente a dúvida para esclarecimento no contexto; tomar notas sintéticas de acordo com os objetivos. Há também procedimentos de clarificação e simplificação das idéias do texto como: construir paráfrases mentais ou orais de fragmentos complexos; substituir itens lexicais complexos por sinônimos familiares; reconhecer relações lexicais/ morfológicas/ sintáticas. Utilizamos ainda procedimentos de detecção de coerência textual, tais como: identificar o gênero ou a macroestrutura do texto; ativar e usar conhecimentos prévios sobre o tema; usar conhecimentos prévios extratextuais, pragmáticos e da estrutura do gênero. Um leitor maduro usa também, freqüentemente, procedimentos de controle e monitoramento da cognição: planejar objetivos pessoais significativos para a leitura; controlar a atenção voluntária sobre o objetivo; controlar a consciência constante sobre a atividade mental; controlar o trajeto, o ritmo e a velocidade de leitura de acordo com os objetivos estabelecidos; detectar erros no processo de decodificação e interpretação; segmentar as unidades de significado; associar as unidades menores de significado a unidades maiores; auto-avaliar continuamente o desempenho da atividade; aceitar e tolerar temporariamente uma compreensão desfocada até que a própria leitura desfaça a sensação de desconforto. Além disso, a leitura não se esgota no momento em que se lê, mas se expande por todo o processo de compreensão que antecede o texto, explora-lhe as possibilidades e prolonga-lhe o funcionamento para depois da leitura propriamente dita, invadindo a vida e o convívio com o outro. Como se vê, trata-se de uma atividade exigente, que vai na contramão dos apelos da nossa sociedade veloz. As iniciativas práticas vão desde a formação de um acervo e a criação de oportunidades de leitura e de expressão das interpretações e emoções, até o acompanhamento dessas leituras. O educador pode atuar como um interlocutor privilegiado, um parceiro mais próximo, um companheiro de caminhada, mas não como doador, como o dono do significado, como o que detém a leitura correta, uma vez que cada indivíduo constrói a sua própria trajetória pessoal de leitura. Esse guia apenas estimula, orienta, apóia e facilita a superação dos obstáculos que, muitas vezes, desencorajam o leitor iniciante e podem desviá-lo para um ciclo de fracassos sucessivos que, certamente, virá a condená-lo à aridez do silêncio, da mudez, da ignorância. O verdadeiro educador não se improvisa; necessita de qualificação contínua e prolongada para enfrentar esse desafio. 73

Politica Democratica 17 - 25 de 73 73

26/3/2007 17:38:24


IV. No compasso das reformas

Contribuir para a construção de leitores seguros, confiantes, competentes e autônomos é participar da democratização do acesso a um bem simbólico essencial, pois leitura e escrita são necessidades básicas, instrumentos imprescindíveis para o exercício da cidadania. Naturalmente, a gestão da escola, as condições de trabalho, o projeto pedagógico, o apoio e a disponibilidade de meios tecnológicos, os salários, a segurança são fatores que contribuem para a eficiência do ensino. Mas sabe-se que grande parcela referente à qualidade do ensino está nas mãos do professor. Zeferino Vaz, quando criou a Unicamp, aproveitando os galpões de uma granja, disse: “a educação se faz em primeiro lugar com cérebros, em segundo lugar com cérebros e em terceiro lugar com cérebros, depois com bibliotecas e por último com prédios.” Então, a partir dos resultados das avaliações, já passa da hora de tratar melhor os nossos cérebros, valorizar, dignificar e fortalecer os nossos professores. Qualquer profissional se sente mais entusiasmado quando está em permanente crescimento, quando é apoiado e estimulado a vencer com criatividade os desafios do dia-a-dia, quando se sente necessário e capaz de solucionar problemas, quando se sente parte integrante e importante de um processo maior de modificação, transformação e crescimento. Não é isso que tem ocorrido com os nossos professores. Desestimulados, se sentem incapazes de vencer dificuldades, se mostram impotentes diante dos desafios que a escola coloca. Muitas vezes, desistem do empreendimento educacional, cumprindo apenas o dever burocrático de comparecer às aulas, sem o menor envolvimento com o processo de aprendizagem dos alunos. Circunscritos à sua formação inicial, muitas vezes precária e insuficiente, ignoram que qualquer profissão exige atualização contínua. O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) divulgou em janeiro, uma pesquisa que mostra que 40% dos alunos que abandonaram a escola o fizeram por desinteresse, ou seja, a escola não é estimulante, ela não responde às necessidades reais dos alunos, ela não é um ambiente em que os jovens gostem de permanecer. As relações professor-profissão e professor-aluno têm uma significativa parcela de responsabilidade nessa situação.Professores bem formados e comprometidos com o processo educacional tornam as aulas mais interessantes e atraentes, provocam o envolvimento do aluno e, muitas vezes, servem de modelo de comportamento e de visão do mundo. O poder de influência dos professores é infinito e sua atuação pode ajudar a direcionar opções de vida dos alunos. O MEC tem todos os instrumentos necessários para promover uma radical modificação nesse cenário. Foram criados e patrocinados pelo

74

Politica Democratica 17 - 25 de 74 74

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:25


A Educação entre nós: do diagnóstico à solução

MEC nas Universidades Federais, há cerca de três anos, Centros de Formação Continuada de Professores, nas áreas de linguagem, matemática, ciências sociais e artes. Esses centros têm como objetivo produzir material para formação continuada à distância para professores e disponibilizar a metodologia para Secretarias de Educação dos municípios e dos estados. O material para o ensino semipresencial foi produzido e está disponível. Falta a articulação entre as secretarias e as universidades. Foi criado, com a participação de professores dos vários Centros de Linguagem, sob a coordenação da Secretaria de Ensino Básico, um material para formação continuada de professores de séries iniciais chamado Pró-letramento. O Fundescola, agência integrante do MEC financiada com recursos do Pnud, tem tradição em elaborar e aplicar cursos de formação continuada, como o Gestar (para professores de 5ª à 8ª série) e o Praler (Formação para professores de séries iniciais). São materiais compostos de cadernos de teoria e prática e material de apoio à aprendizagem para uso na sala de aula. Além de embasamento teórico adaptado às necessidades dos professores, no Praler há mais de 500 sugestões de atividades para serem implementadas nas séries iniciais, na consolidação do processo de alfabetização. Esse programa foi testado com êxito na Bahia e em Formosa, no interior de Goiás. Foi empreendido muito empenho, muita dedicação, a massa crítica das universidades deu sua colaboração. Agora é necessário um esforço conjunto do Ministério da Educação, das Secretarias de Educação dos estados e municípios, das direções das escolas, das coordenações de ensino e dos próprios professores no sentido de oxigenar, revitalizar as práticas pedagógicas, por meio de processos consistentes de formação continuada. O que é necessário é que esse impulso pela formação continuada, ainda rarefeito, passe por uma universalização e que essa prática venha a fazer parte do cotidiano de todos os professores de todos os níveis de ensino. A reflexão do professor sobre a própria ação educativa, durante a ação, é o caminho para o aperfeiçoamento do trabalho. O que ensinar? Quais as habilidades e competências devem ser desenvolvidas? Por que ensinar? Como ensinar? Que estratégias de aprendizagem devem ser implementadas? Como motivar os alunos? Como melhorar os resultados? Como resolver problemas específicos de aprendizagem? São questões que devem permear as discussões e orientar os trabalhos dos professores de forma persistente. Essa é a essência do trabalho do professor, e o trabalho de formação continuada deve manter acesa essa chama.

*** 75

Politica Democratica 17 - 25 de 75 75

26/3/2007 17:38:25


Educação e PDE: . transformação ou ilusão? Marcelo Aguiar e Carlos Henrique Araújo

Introdução Após quatro anos de Governo Lula e três ministros da Educação, o MEC lançou um pacote de medidas para, segundo ele, transformar a Educação nacional. Este pacote é denominado de Plano de Desenvolvimento da Educação e foi lançado pelo presidente da República, no dia 13 de março último. São medidas que vão desde a pré-escola ao ensino superior, com investimentos em insumos educacionais e a introdução de metas a serem seguidas pelos municípios e estados, bem como a montagem de uma avaliação da alfabetização de crianças. Também, inclui projetos para formação de professores, ampliação do acesso ao ensino superior e técnico e dos mecanismos de avaliação da educação nas redes estaduais e municipais. Além disso, prevê mudanças no programa de alfabetização de adultos e um projeto de melhoria da produtividade das universidades federais. Causa estranheza o fato de que somente após quatro anos de gestão de governo é apresentado à sociedade um conjunto de medidas que pretendem a melhoria da educação nacional. Nada de substancial mudou nestes quatro anos na área da educação no Brasil. Os mesmos problemas permanecem desde a posse de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003. Talvez as eleições, período em que o debate sobre a educação pública aflorou, inclusive tendo um candidato à Presidência da República com uma campanha centrada neste tema, tenha induzido a necessidade do Partido dos Trabalhadores a fazer algo de mais consistência na área. Entretanto, a consistência destas medidas parece frágil e fora do alvo principal. Um plano consistente deveria associar medidas de correção do fluxo educacional e melhoria da qualidade à distribuição de recursos e incentivos. Pelas matérias de jornal e pelos documentos publicados até então, isto não aparece de forma explícita. Fala-se de metas e incentivos genéricos. Não há um plano de responsabilização dos gestores municipais e estaduais nos sistemas de ensino. Parece não haver, inclusive, recursos para a execução do PDE. Ain-

76

Politica Democratica 17 - 25 de 76 76

26/3/2007 17:38:25


Educação e PDE: transfomação ou ilusão?

da, o foco deveria ser, sem sombra de dúvida, o ensino fundamental e a melhoria da qualidade do aprendizado. Sem foco claro, os parcos recursos existentes se perderão na imensidão de problemas da educação nacional. Pode-se perguntar, da mesma forma, porque medidas que estão no PDE não foram incorporadas, pelo MEC, na elaboração do novo Fundo de Financiamento da Educação Básica, o Fundeb, há mais de um ano em tramitação no Congresso Nacional, depois de passar quase três anos nas gavetas do Planalto. Aliás, perder tempo é típico na gestão da educação no Brasil. Este foi o caso da não instituição até hoje de uma Lei de Responsabilidade Educacional, à semelhança da Lei de Responsabilidade Fiscal, por meio da qual os gestores públicos seriam responsabilizados pela correta aplicação dos recursos, bem como pelos resultados que o sistema educacional alcançasse no aprendizado dos estudantes. Historicamente, no Brasil, pacotes são meros factóides, utilizados para chamar a atenção da opinião pública. De fato, temos um governo “dos trabalhadores” que investiu ao longo de quatro anos mais recursos no ensino superior do que na educação do povo, que é a educação básica, mantendo uma política excludente, que vem sendo utilizada ao longo de décadas. Propôs inclusive, na reforma do ensino superior, parada a meses no Congresso, que 75% dos recursos do MEC fossem aplicados no ensino superior público federal, perpetuando ainda mais as desigualdades. É louvável, embora tardio, que se tenha algo minimamente estruturado como um plano, mas não se podem criar expectativas a partir de ações de propaganda e marketing, como tem sido visto no caso do lançamento de pacotes. Hoje, se o país fizer tudo certo em termos educacionais, levaremos no mínimo 30 anos para vermos resultados concretos. Isto, seguindo os exemplos da Irlanda, da Coréia, da Espanha e de outros países que investiram na educação de forma estratégica.

Importância da Educação Investir em educação básica é uma das coisas mais importantes e vitais a serem feitas por um governo. Isto porque com mais desenvolvimento educacional e cognitivo os indivíduos estarão mais bem preparados para aproveitar as oportunidades de emprego, maior renda e, mesmo, desenvolver maior empreendedorismo. Esta é a teoria do capital humano, que apresenta evidências empíricas em todo o mundo. Ao

77

Politica Democratica 17 - 25 de 77 77

26/3/2007 17:38:25


IV. No compasso das reformas

mesmo tempo, a educação pode contribuir com a difusão e solidificação de importantes valores que funcionam na base do fortalecimento de uma sociedade democrática. Quanto ao tema da desigualdade, cabe citar que há uma longa trajetória de estudos, com farta evidência empírica, demonstrando que as principais variáveis explicativas para a desigualdade de rendimento do salário no Brasil são a má distribuição dos ativos educação, terra e crédito, além das desigualdades regionais, as desigualdades de gênero e fatores decorrentes da legislação trabalhista e do mercado de trabalho. Estes são os principais fatores. O mais forte fator é a educação que contribuiu com 40% da variabilidade dos rendimentos. Se o país consegue, portanto, atingir uma escolaridade média de 12 anos, e com qualidade, estará conseguindo reduzir de forma acentuada a estabilidade indesejada que é a desigualdade entre os indivíduos. Diversos estudos têm demonstrado que no Brasil a retribuição de rendimentos pela educação é uma das mais altas do mundo. Isso quer dizer que um ano a mais de educação pode representar 10% a mais, em média, no salário dos indivíduos. Muitos argumentam que a educação então é promotora de desigualdade. Na verdade este entendimento é equivocado. O problema é que o país não conseguiu pagar a sua divida social na educação. Desde os anos 40 a urbanização e o progresso industrial foram acentuados. Mas, não se atingiu um nível educacional condizente a uma nação moderna. Este é um dos principais fatores de produção de desigualdades. Os agentes econômicos são racionais em contratar uma mão-deobra com mais escolaridade. Em geral, esses trabalhadores desenvolveram mais habilidades que são importantes para o ambiente do trabalho. O que é irracional e inaceitável é que o país não ofereça de forma equânime a oportunidade das pessoas se educarem. Nossas crianças e jovens têm aprendido pouco na escola. As informações sobre o nível de aprendizado mostram estudantes concluindo o ensino fundamental com baixa competência em leitura e matemática. Inevitavelmente os analistas atribuem a culpa pela caótica situação à má gestão dos sistemas de ensino e das escolas, à má aplicação de recursos e da insuficiência do orçamento destinado à educação. Sem dúvida, as políticas públicas para a educação padecem de sérios defeitos e insuficiência no país. Diante do quadro ruim e da aparente pequena preocupação da sociedade com o tema, cabe questionar se no Brasil predomina uma cultura refratária ao saber formal. Temos poucos intelectuais, poucos

78

Politica Democratica 17 - 25 de 78 78

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:25


Educação e PDE: transfomação ou ilusão?

artistas de renome, poucos cientistas, nenhum Nobel, um mercado editorial pequeno, quase nenhuma formação técnica para os jovens que não fazem universidade, uma imensa exclusão digital e estonteantes desigualdades regionais. Os professores são mal preparados em sua formação inicial, geralmente freqüentando cursos sem nenhum critério científico de preparação, sem um estágio que dê condições efetivas de trabalho, participando de concursos, no mínimo, suspeitos. Temos até professores de português que não têm o hábito da leitura e mestres de Matemática que não sabem Matemática. Ou seja, improvisamos onde deveríamos ser profissionais. A falta de qualidade da educação nacional afeta integralmente a vida cotidiana no Brasil. Ela pode ser vista nos meios de comunicação, no trânsito das grandes cidades, nas relações pessoais, no trato das famílias com os seus filhos, na falta de esperança de ascensão social e na falta de qualidade do voto, portanto, na falta de um futuro promissor para a nação e seus indivíduos. O país precisa de uma revolução na educação, mas precisa antes de uma revolução cultural. Esta revolução deve perseguir o desejo por uma educação básica de qualidade, garantindo aprendizado efetivo, avanço cultural e econômico. Outra questão de fundamental importância, quando se fala do tema, é o financiamento da educação pelo setor público, que polariza as análises. De um lado, estão os que avaliam como insuficiente o montante de recursos. Muitas vezes, eles reduzem o problema educacional brasileiro a uma questão de financiamento. Por outro, há os que alertam para a necessidade de se avaliar a eficiência na alocação dos recursos, bem como os resultados dos investimentos. Consideram, em suas análises, os problemas de gestão do setor educacional, e estes não são poucos. É claro que o Brasil enfrenta um imenso problema de gestão. Isto se torna evidente ao observar os indicadores de fluxo e de desempenho escolar. É necessário e urgente buscar a eficiência e eficácia nos resultados nacionais do sistema educacional. Diante de números que envergonham o país, o Governo Federal anunciou, há poucos meses, mais um ano para o ensino fundamental, agora seriam nove. Mais um ano, com os mesmos professores e com as mesmas escolas. A LDB aumentou o número mínimo de dias letivos para 200. O que aconteceu? Quase nada. Com nove anos, o que acontecerá? A resposta depende da adoção de um projeto pedagógico conseqüente e eficiente para justificar o ano a mais. Caso contrário, as crianças continuarão sem aprender os mínimos necessários e patina79

Politica Democratica 17 - 25 de 79 79

26/3/2007 17:38:25


IV. No compasso das reformas

rão nesse funil educacional. De cada 100 crianças que se matriculam na 1ª série do ensino fundamental, somente 56 vão completar essa fase e menos de 1/3 chegará ao final do ensino médio.

O que deve ser feito Eis algumas medidas que constituem uma verdadeira reforma educacional, muito além do que poderá ser o PDE. É preciso dar prioridade para a educação de base e garantir que haja equilíbrio na distribuição do orçamento da educação. Os investimentos e o foco principal devem ser o ensino fundamental. Não dá para gastar dinheiro com o ensino superior em volume per capita próximo ao dos países integrantes da OCDE e destinar ao ensino básico valores dez vezes menores. Observando-se o percentual de investimento no ensino básico ao ano por aluno, relativamente ao produto per capita, constata-se que a Finlândia, em sua educação primária, investe 18%, a Coréia 19%, o Chile 23% e o Brasil 11%, como média nacional. Estamos, portanto, em termos de gasto por aluno, considerando-se o nível primário, praticando um investimento aquém dessas nações. Por outro lado, quando se analisam os investimentos em educação superior, por meio do mesmo indicador, observa-se que a situação se inverte. O Brasil aplica por cada aluno de seu sistema público de ensino superior algo próximo a 135% do produto per capita, ao passo que a Finlândia gasta 42%, a Coréia do Sul 33% e o Chile 72%. Portanto, fica evidente que, em se tratando do ensino superior, o Brasil atinge um patamar próximo e superior a nações mais ricas. É um claro desequilíbrio e uma forma, eficiente, de perpetuar as desigualdades sociais. O país precisa ofertar, pelo menos no fundamental, escolas em horário integral e institucionalizar carreiras docentes, baseadas no mérito e na profissionalização. O investimento na formação inicial dos professores precisa dar ênfase a conteúdos e métodos. As universidades federais necessitam formar professores aptos a encarar os desafios da sala de aula e precisam diminuir a sua vocação ao filosofar vazio. Para transformar a educação nacional é necessário investir na formação inicial dos professores, reformar os currículos do ensino superior e levar a sério os cursos de licenciatura. Um professor deve ser o portador de conhecimento sólidos, de caráter universal, e da didática, testada e comprovada em sua eficiência. Os diretores escolares pre-

80

Politica Democratica 17 - 25 de 80 80

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:25


Educação e PDE: transfomação ou ilusão?

cisam orientar e monitorar o trabalho dos professores e contribuírem para que a escola esteja voltada ao aprendizado. Os docentes devem conhecer os avanços mundiais na pesquisa em torno do ensino da leitura, por exemplo. Devem ter clareza sobre as implicações de tais estudos para o ensino da língua escrita. Para além dos modismos pedagógicos, é preciso ter capacidade de crítica e de argumentação, superando posições ideológicas arraigadas ou a adoção de modelos não científicos em sala de aula. Ainda, é preciso definir quais os objetivos educacionais pertinentes a um possível ciclo inicial do ensino fundamental. Por questão de bom senso, não há como escapar da prioridade da alfabetização. Ou seja, o primeiro ciclo deve perseguir de forma competente o ensino da leitura e da escrita, o pleno domínio pela criança do sistema de escrita alfabético. E para tanto, é vital que o MEC faça um forte investimento no ensino de linguagens, como a matemática, a língua materna, outra língua e a educação digital. Como já se disse, outro ponto definitivo, sem o qual não haverá mudanças verdadeiras, é garantir uma alfabetização infantil eficiente com a adoção de métodos adequados e testados cientificamente. Métodos que promovam o desenvolvimento das habilidades de decodificação, de fluência adequada na leitura, da consciência fonêmica e fonológica, que são cruciais para a formação do leitor hábil. O professor pode até ter liberdade de escolha dos métodos de trabalho. Porém, deve ter clareza e capacidade de justificar os métodos empregados. Sobretudo, deve saber que será avaliado nos resultados de seu trabalho. E mais: deve-se adotar de forma urgente e pactuada um curriculum mínimo nacional de conteúdos a serem ministrados a todos os alunos brasileiros, findando a balbúrdia e a inépcia. Secretários de Educação devem estar dispostos a adotar os procedimentos de avaliação. Para tanto, devem contar nas escolas com gestores orientados a criar um clima escolar favorável ao aprendizado, baseado numa estrutura de relações entre os atores escolares e a comunidade voltados para o sucesso das crianças. Por fim, pode-se pensar em uma estrutura de premiação e valorização dos docentes e gestores baseada em critérios objetivos de desempenho individual e institucional. Ainda é necessária a implementação de processos de responsabilização do trabalho docente, além de sua valorização, refletida em salários maiores. Esta é uma condição para atrair bons professores que se dirigem para o ensino privado ou para outras áreas.

81

Politica Democratica 17 - 25 de 81 81

26/3/2007 17:38:25


IV. No compasso das reformas

Um plano de desenvolvimento da educação deveria estar subordinado à ampliação da oferta, à regularização do fluxo educacional e à efetiva melhoria do aprendizado. Por fim, todas as escolas de educação básica devem possuir equipamentos mínimos, salas de informática, bibliotecas, laboratórios e material didático. Aliás, uma escola sem biblioteca nem deveria ser considerada uma escola. E para aumentar as chances de qualquer plano ser bem sucedido, são necessários os mesmos investimentos durante muitos anos e uma estabilidade mínima para os dirigentes educacionais e suas políticas. É também crucial alcançar um consenso parlamentar de que é preciso mudar e urgentemente. Com eles seria fundamental fazer uma ampla reforma da educação básica. A educação no Brasil vem sendo um terreno fértil para revoluções a cada mudança de governo ou nova eleição. Geralmente, as mudanças fracassam, pois são adotadas sem critérios e sem uma correta avaliação dos impactos provocados. São pertinentes também ações de fortalecimento das sociedades municipais e da tradição comunitária, com impactos na cobrança de qualidade das escolas por parte das famílias. O Estado brasileiro e a sociedade devem direcionar sua energia para o desenvolvimento de uma consciência social em prol de uma educação de qualidade, com o envolvimento das famílias na cobrança de melhorias e no incentivo aos estudos dos filhos. Há que se discutir o envolvimento da sociedade e das famílias com a educação. Cabe, de imediato, explicitar uma premissa: enquanto a sociedade brasileira não abraçar a meta de uma educação básica de qualidade, pouco se pode esperar por mudanças. Um bom começo para que todos adotem uma postura diferente frente à necessidade de melhor educar as pessoas em todo o Brasil é alertá-las para o fato de que sem uma educação básica de qualidade pouco se avançará para reduzir as desigualdades e a pobreza. Além disso, o país irá, cada vez mais, perder a corrida pelo desenvolvimento e o crescimento sustentável. Precisamos elevar a percepção do povo brasileiro em relação à importância da escola pública. Esta é uma questão central. Os pais, os professores, a sociedade, as comunidades precisam assumir o problema da falta de qualidade da educação básica como algo que lhes afeta de forma dramática e passar a pressionar os poderes públicos em busca da melhoria da qualidade da educação no país. Cobrar, cobrar e cobrar. Há um evidente paradoxo, um beco sem saída, no país. A educação básica carece de qualidade, de aprendizado, e, ao mesmo tempo, a grande maioria dos pais dos alunos do ensino fundamental público aprova o que ai está. Da mesma forma, aprovam a bolsa-família, de

82

Politica Democratica 17 - 25 de 82 82

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:26


Educação e PDE: transfomação ou ilusão?

alguns tostões. A perpetuação da pobreza é conseqüência direta dá má distribuição das oportunidades para os mais pobres. E o meio mais potente de buscar eqüidade é garantindo mais e melhor educação. Os dados da pesquisa nacional qualidade da educação contendo a opinião dos pais, realizada, em 2005, pelo Inep, são estarrecedores, mostram que os pais, no geral, estão satisfeitos pelo simples fato de haver vagas perto de suas residências na escola pública. Não há dúvidas de que isso é muito pouco, em contraste com as necessidades e os indicadores educacionais: 55% de crianças de 4ª série praticamente analfabetas, quase 15 milhões de analfabetos absolutos, mais de 70% da população formada por analfabetos funcionais, 72% dos alunos nordestinos de 4ª série sem saber ler com competência, um terço dos estudantes de 1ª série do ensino fundamental sendo reprovados, estados investindo medíocres 700 reais aluno/ano, confusão administrativa e falta de prioridade para a educação, professores desvalorizados, desmotivados e auferindo salários vexatórios, alunos em escolas de lata, sem nem sequer ter quatro horas de aula todos os dias, investimento na universidade pública 11 vezes maior do que o investimento per capita nos alunos da educação básica, somente 54% dos alunos completando o ensino fundamental, com uma imensa distorção idade-série. A falta de qualidade é evidente: quase 50% das escolas deste Brasil não têm biblioteca, não poderiam sequer ser consideradas escolas. Não há nenhum indicador de alguma evolução do sistema de ensino além do já falado e exaustivamente comemorado 97% de crianças e jovens de 7 a 14 anos na escola. Caso essas providências não sejam tomadas, o país vai, cada vez mais, ficar refém de falsas questões. É preciso investir mais, porém mais urgente é investir melhor e controlar os custos desse investimento, sempre buscando eficiência e eficácia. Não adianta aumentar recursos e anos de estudo em um sistema educacional carente de recursos humanos qualificados, objetivos claros, metas, e planos consistentes. A situação educacional brasileira chegou ao limite. Ou se implementam mudanças significativas ou se padecerá ainda mais, comprometendo o futuro da nação. Não há país desenvolvido sem uma educação básica laica, moderna, inclusiva e com qualidade de aprendizado. No Brasil, a ineficiência tornou-se insuportável. É necessário concentrar esforços do poder público e da sociedade para lidar com a situação, pois este é um dos temas vitais para a formação de uma nação.

*** 83

Politica Democratica 17 - 25 de 83 83

26/3/2007 17:38:26


Politica Democratica 17 - 25 de 84 84

26/3/2007 17:38:26


V. Batalha das idĂŠias

Politica Democratica 17 - 25 de 85 85

26/3/2007 17:38:27


Autores Edison Bariani Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia pela Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista – Unesp/Araraquara-SP – e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp)

Inez Lemos Psicanalista, sócia do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Belo Horizonte e consultora em Educação.

Lúcio Flávio Pinto

Editor do Jornal Pessoal, de Belém, e autor de Guerra Amazônica (2005)

Ariosto Holanda Engenheiro, ex-secretário de Ciência e Tecnologia do Ceará e deputado federal (PSB-CE)

86

Politica Democratica 17 - 25 de 86 86

26/3/2007 17:38:27


A solidão dos intelectuais: . entre a moralidade . e o compromisso Edison Bariani Ser conseqüente é a maior obrigação de um filósofo e a que mais raramente se encontra. I. Kant (1994: 35)

A

relação entre os pensadores e a política tem sido marcadamente conflituosa, expressando-se por meio do fascínio e da recusa, sedução e exílio, adesão e revolta, ação e resignação.

Na Antiguidade Clássica, entre pensadores gregos, as posturas se diversificavam. Sócrates, com sua pedagogia pública, procurava levar aos indivíduos – cidadãos ou não – a possibilidade do conhecimento e, assim, a consciência da existência social e aspiração política; tornou-se dessa forma uma ameaça à democracia ateniense, uma ‘má influência aos jovens’ e encontrou na morte a mesma motivação da vida: fez do magistério público seu martírio, fundou uma posição do homem de saber e deixou como herança o próprio infortúnio, a incompreensão do ato de pôr o saber a serviço da igualdade, de destroná-lo como apanágio de poucos e arma dos dominadores. Estava desvelada a periculosidade do saber em relação à política. Com Platão, entretanto, o rei-filósofo – por suas habilidades – requisita seu lugar (elevado) na política:

87

Politica Democratica 17 - 25 de 87 87

26/3/2007 17:38:27


V. Batalha das idéias

Mas a vós outros pusemos nós no mundo para serdes chefes da colméia, reis de vós mesmos e do resto da cidade, melhor e mais completamente educados que aqueles e mais capazes, portanto, de participar dos assuntos públicos e da Filosofia. Tereis, pois, de descer cada um por seu turno à vivenda subterrânea dos demais e acostumar-vos a enxergar no escuro. Uma vez acostumados, vereis infinitamente melhor que os habitantes da caverna e conhecereis cada imagem e o que representa, porque já tereis visto o belo, o justo e o bom em sua verdadeira essência. E assim, nossa e vossa cidade viverá à luz do dia e não entre sonhos, como vive hoje a maior parte delas, onde os homens lutam uns com os outros por sombras sem substância ou se disputam o poder como se este fosse um grande bem. (PLATÃO, [s.d.]: 157) Assim, cabe ao filósofo descer aos subterrâneos e levar a luz do conhecimento aos ignaros, obra – ao mesmo tempo – de privilégio e abnegação, pois que o sacrifício de voltar ao encontro dos que habitam as trevas é imposto pelas responsabilidades (políticas) do saber. Todavia, tal missão do filósofo não deve lhe inspirar satisfação no domínio, mas ser desempenhada como obrigação, sob a pena de perderem o sentido dessa missão. “Ora, os que governam não devem ser amantes do poder, porque se o forem encontrarão amantes rivais e lutarão com eles.” (PLATÃO, [s.d.]: 157)

Entretanto, não deve ser esquecido que o mesmo Platão, que soprou vida ao rei-filósofo (e sua missão de levar o conhecimento), também fundou a Academia, local de formação e também fortaleza dos filósofos que ainda não galgaram o lugar pretendido no governo da cidade. Com Aristóteles, todavia, a academia, agora Liceu, de fortaleza torna-se refúgio. Na própria trajetória de Aristóteles a participação política, a aproximação do poder, de privilégio torna-se a própria desgraça, e o reconhecimento dá lugar ao exílio. Entre os romanos, a proximidade do saber com os negócios públicos chegou ao ponto de a própria filosofia se confundir com a política e a retórica, o que trouxe, por um lado, uma atitude mais conseqüente à política e certo realismo político à filosofia, e, por outro, uma superficialidade do saber em relação às (outras) grandes questões da existência humana e a proposição de uma atitude cívica que – pretensamente – serviria de código universal de pensamento e conduta. Na Idade Média, com a hegemonia da Cristandade, a posição dos pensadores evolui historicamente para a ampliação do distanciamento para com o povo por meio do sacerdócio, do claustro, da apologia da verdade revelada, da procura da graça em detrimento da experiência, 88

Politica Democratica 17 - 25 de 88 88

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:27


A solidão dos intelectuais: entre a moralidade e o compromisso

da divisão social do trabalho, da criação da Universidade (a Academia e o Liceu hermeticamente protegidos), da assunção de um ofício específico e, sobretudo, da necessidade de pagamento para obtenção do conhecimento – a efetivação da mercantilização do saber. Mais tarde, os humanistas do final da Idade Média promovem um divórcio entre a razão e a fé, mas enlaçam-se com o poder ao servir ao poder nas cortes. (LE GOFF, 1988) O Renascimento trouxe à cena a figura do gênio, do artista, do ‘livre-pensador’, do homem que – mesmo submetido aos ditames do poder por meio do mecenato – torna possível certa autonomia da criação, ainda que muitas vezes sob subterfúgios, pelos próprios méritos da cultura; escapa (nem sempre) ao julgamento do poder e da inquisição dissimulando suas finalidades, afirmando certo desinteresse pelas coisas ostensivamente mundanas e colocando-se sob o pretexto da criação do belo ou da inofensividade das questões. Por vezes, quando percebidos os favores do poder, é ostensivamente político, porém, quando não faz simplesmente apologia do poder, disfarça suas criações mais subversivas sob o manto da cultura e, quando mal-sucedido nessa dissimulação, cai em desgraça e perde as bênçãos do poder ou mesmo a vida. No Iluminismo, o individualismo do homem de saber (e arte) pleiteia, baseado na razão, uma completa vocação e autonomia de criação, mesmo que sua independência custe-lhe a malquerença do poder – como Mozart (ELIAS, 1995). Ainda assim, seu individualismo e, por vezes, distanciamento da notória finalidade política, ao guiá-lo na busca da abertura de um terreno de existência social não imediatamente submetido ao Estado, a sociedade civil (burguesa), leva-o a pavimentar um largo caminho para a ascensão política da burguesia, até então submetida ao Absolutismo. O segredo político do Iluminismo consistia no fato de que todos os conceitos, de maneira análoga à tomada indireta do poder, só eram opacamente políticos. No anonimato político da razão, da moral, da natureza etc. residiam uma peculiaridade e uma eficiência políticas. Ser apolítico é seu politicum. (KOSELECK, 1999: 129) A herança do Romantismo, filtrada pelo Iluminismo, proporcionou o surgimento dos pensadores contrários ao poder, tornou possível a aberta contestação, não só pela relativa garantia de autonomia de criação, mas também pela dificuldade de cooptação dos homens de saber que, alijados de posições no poder ou prestígio social, aproximaram-se do povo e passaram a conspirar abertamente para a libertação de forças oprimidas que promoveriam – segundo eles – uma

89

Politica Democratica 17 - 25 de 89 89

26/3/2007 17:38:27


V. Batalha das idéias

redenção histórica, já não mais somente em termos de liberdade, mas primordialmente de igualdade. Nasce aí a intelligentsia, o socialismo, o anarquismo, o comunismo etc. É a vingança do saber contra o poder, a revolta dos sábios com as armas que o próprio poder forjou para implementar sua própria dominação. Logo depois, surgem os intelectuais, que não mais se identificam com os homens de saber (pensadores e sábios), mas com uma categoria social específica, cuja assunção de um lugar no modo de produção capitalista e uma posição específica na divisão social do trabalho (inclusive intelectual) impõe a determinação/delimitação racional de sua função. Passam os intelectuais a procurar pelo sentido e objetivo de sua função, seu papel social, e, por vezes, mais que exercê-los. Se J.G. Fichte, por volta de 1794, já definia a missão do erudito como o exercício da suprema supervisão do progresso efetivo da humanidade em geral e o constante fomento desse progresso, os intelectuais, ao longo do século XX, buscaram explicar de diversas formas sua função: para Ortega y Gasset o intelectual deve penetrar as convicções das massas e provocar as vontades; para Julien Benda deve incorporar a inteligência desinteressada, cultuar a justiça, a verdade e a razão, valores universais da Humanidade; para Elio Vittorini a cultura (e seus representantes) deve ocupar-se de pão e trabalho, pois que isto é ainda se ocupar da alma; para Jean-Paul Sartre o homem (e o intelectual em particular) é obrigado a fazer escolhas, já que não escolher já é uma escolha, abraçar com força sua época, engajar-se; Norberto Bobbio afirma que o intelectual – nas sociedades modernas e funcionais - influi na política de modo operativo, técnico, pragmático; para Umberto Cerroni a institucionalização da cultura talvez tenha eliminado a missão do sábio e seu pedagogismo social e político; Domenico Losurdo assevera que o intelectual tem como dever particular refletir sobre sua real posição no mundo, questionando ações e conseqüências, e assumindo responsabilidades; por fim, Salvatore Veca preocupa-se já com os limites do poder dos intelectuais. (BASTOS e RÊGO, 1999) No Brasil, nos tempos de colônia, os primeiros homens de saber cuja atuação é disseminada socialmente são os ordenados religiosos (mormente jesuítas). Estavam imbuídos de uma missão: expandir o catolicismo por meio da cultura escolástica e da conversão dos ‘gen O termo intelectual provém do francês intellectuel, assim pejorativamente chamados os signatários do manifesto em apelo aos valores humanistas no Caso Dreyfus (ocorrido entre 1894-1906), como Charles Péguy, Anatole France, Émile Zola etc. Inicialmente, o termo traduzia a intenção de depreciar aqueles homens de cultura como figuras destituídas de consciência crítica das necessidades políticas nacionais.

90

Politica Democratica 17 - 25 de 90 90

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:27


A solidão dos intelectuais: entre a moralidade e o compromisso

tios’; a atuação aguerrida deu-lhes certo monopólio cultural e, sobretudo, educacional, entretanto, custou-lhes também desafetos no poder, perda de prestígio e até a expulsão (por Pombal, em 1759). Após a Independência, no Império, a exclusividade da educação e cultura em convergência com a plutocracia política, criou uma elite de homens de saber que eram eminentemente políticos (CARVALHO, 2003). Ilustração e poder se confundiam num liberalismo tão pouco impessoal e racionalista quanto despreocupado das profundas desigualdades entre os homens livres e, caracteristicamente, entre estes e escravos. No final do século XIX, a inicial contestação republicana deu lugar – muito rapidamente – à adesão governista e à dissensão dos homens de saber com o poder, frustrados com os rumos da República. Significativo desse momento é a grande influência do positivismo – comparável somente ao caso do México e, talvez, do Chile –, que pregava uma profunda reforma das instituições e, simultaneamente, proclamava o apego a formas fixas e certo horror ao fluido, ao vago – logo, à própria realidade política brasileira. (HOLANDA, 1995, p. 158) O processo de institucionalização social do saber e de criação da Universidade – tardiamente nos anos 1930 – criou nossos primeiros ‘intelectuais’, sem – entretanto – criar um campo cultural (BOURDIEU, 1983) próprio (PÉCAUT, 1990). 1930 marca aí um momento de particular inflexão a partir do qual os intelectuais – em sua maioria alijados de uma condição autônoma, em parte devido à insipiência ou inexistência desse campo cultural – aproximaram-se do Estado. A partir de 1945, o engajamento e a proximidade com o Estado marcam a diferenciação dos intelectuais em dois campos não muito distintos, ambos reformadores e norteados por diferentes formas de intelligentsia: uma mais próxima do Poder Central e determinada a promover a mudança social a partir do Estado como organizador da sociedade, e identificada no Ibesp (Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política) e no Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros); outra, distanciada do Poder Central e inicialmente ligada a um projeto alternativo de circulação de elites, pleiteando um papel determinante da sociedade civil, identificada na sociologia paulista e na USP (Universidade de São Paulo) (VIANNA, 1997). Para os ibespianos/isebianos, o intelectual deve engajar-se nas tarefas e valores nacionais, sintetizando interesses; para a sociologia paulista, o papel do intelectual consubstancia-se no distanciamento com relação aos interesses e valores imediatos, identificando posições de classe anteriormente às tarefas nacionais. Nesse percurso, 1964 será – mais uma vez – um ponto de viragem, afora as adesões ao poder, grande parte dos intelectuais brasileiros posta-se na contestação do regime ditatorial. A partir de 1985, com a

91

Politica Democratica 17 - 25 de 91 91

26/3/2007 17:38:27


V. Batalha das idéias

distensão política, os grandes temas nacionais e o engajamento passam a dar lugar à luta institucional por prestígio e posições. A missão cede lugar à profissão. (LAHUERTA, 1999) Já da década de 1990 em diante se esvai o ressentimento com o Estado (agora democrático) e considerável parte dos intelectuais se alinha politicamente aos partidos, mais ainda, agarram-se às oportunidades de obtenção de posições, cargos e privilégios. Todavia, frustradas as reformas sociais no sentido de dar novos rumos ao país, mormente as experiências promovidas pelo PSDB e PT, engalfinhamse novamente os intelectuais brasileiros na ânsia de culpabilizar uns e outros pelos insucessos nacionais, servilismo ao poder, flexibilização de uma suposta moralidade política e deslizamento para fora do balizamento de uma ‘ética intelectual’.

Moralidade e compromisso Em meio a muitas posições e funções sugeridas e auto-impostas pelos próprios intelectuais, duas notoriamente se destacam na agenda brasileira atual: a moralidade e o compromisso. A moralidade como forma eticamente aceitável de desempenho das funções do intelectual e o compromisso como posicionamento público e responsável frente às questões prementes na sociedade. Saem de cena ou tomam lugar lateral – talvez em parte pela crise das utopias – o realismo político em sua crua amoralidade e o engajamento como forma de atuação politicamente orientada e totalizante com base numa convicção profunda e/ou posição ideológica arraigada. Todavia, a própria relação entre moralidade e compromisso reflete ainda os dilemas da relação tensa entre os intelectuais e a política. Toda atividade política implica conflito, a própria política, como a vivemos atualmente, tornou-se a forma social institucionalmente construída para lidar com os conflitos de interesse sem apelar necessariamente à força ou a eliminação do adversário, do outro; a política tornou-se o inverso da guerra, a relação amigo-inimigo (SCHMITT, 1992) foi substituída pela de correligionário-adversário. Ainda assim, mesmo que a atividade política implique a aceitação de regras comuns ao jogo, e não há regulamento perfeito ou consenso ideal sobre tais regras, certas ações eventualmente são vistas como ilegítimas por parte de alguns, que contestam o uso ou (mau uso) de determinados expedientes. Todo compromisso impõe ações políticas que são, no limite, passíveis de questionamento ou negação por parte dos adversários, que tentam impugná-las. Daí, devido à não-aceitação desses mesmos ex-

92

Politica Democratica 17 - 25 de 92 92

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:28


A solidão dos intelectuais: entre a moralidade e o compromisso

pedientes, advém a denúncia da imoralidade contida ou motivada na atuação do adversário. Como então lidar com tal tensão conflituosa? Como tornar defensável a moralidade de compromissos que não são tacitamente aceitos pelo outro? Se a idéia da política como antítese da moral e da religião – como queria Maquiavel (1987) – for abandonada e se houver socialmente disseminada a idéia de que a política e a ética devem ser formas convergentes, tais questões se tornam particularmente embaraçosas. O intelectual sente assim o conflito dilacerante entre a razão pura da teorização sobre a realidade em que vive (e interpreta) e os condicionantes da razão prática, da efetivação das ações que supõe serem necessárias para implementar ou operacionalizar um projeto político adequado à eliminação das iniqüidades sociais. Suas ações, entretanto, segundo a moral kantiana, só seriam morais se aceitas como imposição das regras de convivência civilizadora. O essencial de todo o valor moral das ações depende de que a lei moral determina imediatamente a vontade. Se a determinação da vontade acontece de acordo com a lei moral, mas unicamente mediante um sentimento, seja de que espécie for, que deve ser pressuposto para que aquela se torne um princípio determinante suficiente da vontade, por conseguinte, não por amor da lei: então a ação conterá certamente legalidade, mas não moralidade. (KANT, 1994: 87) A moralidade, de tal ponto de vista, advém da aceitação racional das necessidades de – tais regras para a convivência social e para o razoável desenrolar do jogo civilizatório – logo, político. Impõe-se assim como dever e não como conveniência, como racionalidade e não como circunstância. Para os homens e todos os seres racionais criados, a necessidade moral é constrangimento, isto é, uma obrigação, e toda ação aí fundada deve ser representada com um dever, mas não como um modo de procedimento que já nos agrada ou nos pode agradar por si mesmo. (KANT, 1994: 97). Admitido que o conhecimento é práxis, que a função intelectual aspira – no limite – a efetivação (em recíproca influência) das metas pleiteadas na construção teórica, e que a moralidade é uma construção racional e universal, a preponderância – já apontada por Kant – da razão prática Os bolchevistas defenderam tal posicionamento, L. Trotski (em particular), embora não negasse a possibilidade de uma moral política, definiu – a partir de seu campo ideológico – como moralmente aceitável toda ação que fosse absolutamente necessária ao sucesso da revolução, o que – obviamente – suscitou duras críticas. Lênin, o realista político por definição, sequer preocupou-se com tal questão, preferindo viver a própria revolução e deixar à história o julgamento ético.

93

Politica Democratica 17 - 25 de 93 93

26/3/2007 17:38:28


V. Batalha das idéias

frente à razão pura aponta para o intelectual a necessidade de um imperativo categórico, que Kant já havia formulado como a lei fundamental da razão pura prática: “Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal” (KANT, 1994: 42). Mas, qual imperativo categórico poderia nortear a ação do intelectual? Seria mesmo possível tal alicerce ético? O intelectual que não se reconhece absolutamente na distinção entre intelectual orgânico e tradicional (GRAMSCI, 1995), sofre – mais intensamente – a ansiedade de fazer uma escolha primeira: se o compromisso supõe decidir – segundo N. Bobbio (1997: 99) – por um campo político, qual lado escolher? É possível que essa primeira escolha já inviabilize a moralidade do compromisso, como a opção de alguns intelectuais pelo nazismo? Haveria posições políticas intrinsecamente morais ou imorais? Como determiná-las? A partir de qual perspectiva? N. Bobbio assinala que o campo cultural (donde o intelectual é oriundo) e o político possuem distintas formas de ação e racionalidade, o que se reflete no comportamento dos indivíduos. A prática tem suas razões que a teoria pode não conhecer. Mesmo a teoria mais perfeita, completa e coerente, para se transformar em uma decisão, deve ser adaptada às circunstâncias. (BOBBIO, 1997: 83) Seria possível dizer, no limite, que o homem político tem razões que o homem de cultura não conhece ou não reconhece. (BOBBIO, 1997: 63) As distinções, no que diz respeito às formas de ação e racionalidade, podem conduzir – ao final – a distintas éticas. Max Weber (1983) remete a duas éticas: uma ética da convicção, na qual o indivíduo conduz suas ações com vistas ao atendimento de princípios que têm origem em suas convicções, sua crença em certos valores; e uma ética da responsabilidade, conforme a qual conduz suas ações de forma a atender a uma racionalidade dos fins pretendidos, orientando-se para o uso dos meios necessários para alcançar determinado fim. O intelectual enquanto cientista, homem de saber, rege-se pela ética da convicção, pela orientação para uma pretensão de verdade como valor final; já o político, enquanto homem de ação, rege-se pela ética da responsabilidade, calculando os meios efetivos para alcançar os fins pretendidos, mesmo que circunstancialmente tais meios sejam conflituosos com suas crenças e valores últimos. Todavia, para Weber, essas éticas são tomadas como tipos ideais e não comportamentos unilaterais arraigados, em última instância, é a conjunção dessas éticas que confere inteireza ao sujeito político. “Vemos assim que a ética da convicção e a ética da responsabilidade não 94

Politica Democratica 17 - 25 de 94 94

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:28


A solidão dos intelectuais: entre a moralidade e o compromisso

se contrapõem, mas se completam e, em conjunto, formam o homem autêntico, isto é, um homem que pode aspirar à ‘vocação política’” (WEBER, 1983: 122). Apesar de Weber afirmar que a verdadeira vocação política contempla também uma vocação intelectual, adverte que a ciência não pode definir valores ou apontar rumos políticos, apenas elucidar meios para o alcance dos fins (e valores) anteriormente propostos. O intelectual torna-se então um operador da política possível, jamais um propositor de valores. Resta ao intelectual (como homem de ciência) – segundo Weber (1983: 52) – “[...] encontrar e obedecer ao demônio que tece as teias de sua vida”. Como poderia – afinal – o intelectual certificar-se da moralidade de seu compromisso e do sentido de sua função ou missão? Como reconciliar o entendimento racional do mundo com uma prática adequada e eticamente aceitável? Marx não traz nenhum conforto nessa questão, para ele – segundo um comentarista – “[...] a função social da intelectualidade é a sempre frustrada intenção de reconciliar, ao nível do logos um mundo não reconciliável, na vã tentativa de resolver os conflitos reais ao nível dos valores fictícios” (Michel Mazzola, citado por MACHADO NETO, 1968: 52). Urge – segundo Sartre (1994: 30-1) – ao intelectual viver suas contradições. Assim, o intelectual é o homem que toma consciência da oposição, nele e na sociedade, entre a pesquisa da verdade prática (com todas as normas que ela implica) e a ideologia dominante (com seu sistema de valores tradicionais). Essa tomada de consciência – ainda que, para ser real, deva se fazer, no intelectual, desde o início, no próprio nível de suas atividades profissionais e de sua função – nada mais é que o desvelamento das contradições fundamentais da sociedade. Para o intelectual, a experiência dessa contradição dilacerante não o desobriga da escolha e não o exime de suas responsabilidades. “O ofício de intelectual é viver sua contradição por todos e vencê-la por todos através do radicalismo (ou seja, pela aplicação das técnicas de verdade às ilusões e às mentiras)” (SARTRE, 1994: 53). É mister, assim, que cumpra sua função vivendo intensamente e coerentemente as escolhas que faz, tornando-se sujeito e objeto das contradições sociais. Produto de sociedades despedaçadas, o intelectual é sua testemunha porque interiorizou seu despedaçamento. É, portanto, um produto histórico. Nesse sentido, nenhuma sociedade pode se queixar de seus intelectuais sem acusar a si mesma, pois ela só tem os que faz. (SARTRE, 1994: 31)

95

Politica Democratica 17 - 25 de 95 95

26/3/2007 17:38:28


V. Batalha das idéias

Impelido a posicionar-se incontinenti, obrigado a prestar contas da coerência e assumir a responsabilidade de suas escolhas, o intelectual vive solitariamente a difícil condição – que lhe é exigida – de perfilar-se como consciência racional e universal de uma sociedade cindida por lutas de classe e fragmentada pela diversidade de interesses conflitantes. Não bastasse, não dispõe de nenhuma prerrogativa de representação desses interesses sociais, é ainda o “exilado” (SAID, 2005). “O intelectual está só porque não tem mandato de ninguém” (SARTRE, 1994: 41). E ainda que viva numa sociedade organizada pela dominação, sua extrema solidão dá-lhe ilusões de autonomia, autonomia essa que é só solidão. Solidão essa que incita sua vaidade e acentua sua fraqueza.

***

96

Politica Democratica 17 - 25 de 96 96

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:28


Fé em tempo de consumo Inez Lemos

Q

ual a interlocução que a psicanálise estabelece com o mundo externo? Como relacionar realidade e fantasia? O que vemos e percebemos é parte de uma série de olhares contaminados por nossas fantasias e nossa realidade psíquica. O real é inacessível, mas a realidade resulta da versão imaginária que jogamos sobre ela. Como percebemos a realidade que vivemos? Esta sempre dependerá de nossa Weltanschauung (visão de mundo). Freud, em seus textos sobre a cultura, intensificou o debate entre ciência e religião. Freud reconhece que o que a ciência pode oferecer para a humanidade é irrisório frente às certezas que a religião promete. Diante do desamparo original do homem, de sua perplexidade frente à morte, a religião atende melhor aos anseios inconscientes de proteção e amor. Já a ciência, em sua severidade, não acena com nenhum alívio imediato. Pelo contrário, a psicanálise (tomada como um campo do conhecimento), aponta para a dimensão infantil e regressiva do desejo de proteção, e coloca o homem como responsável pela sua felicidade. O homem se implicando em suas condições sociais e existenciais de vida. O século 20 levou a sério o projeto de ordem, controle social e disciplina como estrutura da vida civilizada. Todos esses rituais fizeram parte do ideal progressista da modernidade, ideário que se inicia na sociedade oitocentista, mas que se consolida na segunda metade do século 20, com o avanço da ciência e do processo de industrialização. A ordem, como todos os outros rituais, entra como compulsão à repetição, compulsão que muito interessou às sociedades industrializadas, higienistas, que se estabeleceram por meio de regulamentos definidos, horários a serem cumpridos e locais a serem freqüentados. Nessas sociedades, não existia espaço para hesitações e indecisões. É nesse imaginário social e econômico que a religião se consolida, com seus rituais repetitivos e obsessivos. Ela surge como grande aliada no projeto de controle social de desenvolvimento industrial. Lembramos que o consumo está essencialmente ligado à repetição. Entre eventos estilizados, repetitivos e estereotipados, entre regras litúrgicas e seqüências de falas e atos, encontramos nos cultos religiosos algum ritual das esferas produtivas. Ao produzir um modo de vivenciar a fé, produz-se também uma forma de controle social. 97

Politica Democratica 17 - 25 de 97 97

26/3/2007 17:38:28


V. Batalha das idéias

Quando as sociedades industrializadas do pós-guerra decidiram dominar o mundo, para que este consumisse seus produtos, a religião passou a ser pensada, mais que nunca, como um produto que deveria fazer parte desse complexo imaginário. Nesse momento, a fé passa a ser explorada como mercadoria – sabe-se que o que se vende não é o produto, mas o que ele sugere – ideal de felicidade que se transmite. Na Idade Média, vendiam-se, junto às indulgências, a esperança do perdão e a remissão dos pecados. É nesse pressuposto que a religião vai atuar como fetiche, como algo revestido de sonhos, ilusão e promessas. A religião passou a ser vendida dentro de um mundo cada vez mais marcado por imagens, um mundo infantilizado, no qual interessa mais o efeito da crença do que a própria crença. Interessa o efeito da idéia, e não o seu sentido, tampouco como ele acessa a realidade. O mundo das patologias narcísicas é largamente alimentado pela imagem. A televisão impõe padrões narcísicos irrealizáveis e irrealísticos, provocando uma forma perversa de pensar e desejar. A perversão do desejo é isso, vender uma possibilidade de desejo fora da realidade, produzindo efeito nocivo, pois o indivíduo passa a desejar algo exótico, extraordinário, que foge à sua real condição de vida. Diante das agruras da vida, os indivíduos buscam abrigo nas promessas de que um dia as coisas vão melhorar. E acabam se empanturrando de ilusões. Muitos anseiam por uma forma de serem iludidos. Isso tudo revela a necessidade que o homem tem de ser enganado. A cultura do simulacro assume que o importante não é o fato das pessoas estarem sendo enganadas, mas criar formas delas serem enganadas. O que interessa é criar mecanismos que, mesmo quando os indivíduos sabem que tudo aquilo é uma ilusão, agem mesmo assim. Freud, em O futuro de uma ilusão, alertou a humanidade para os perigos do uso da religião como crença descabida, como sistema doutrinário que não permite críticas, e propõe trocar o espírito religioso, fanático, pelo espírito científico: “Não, nossa ciência não é uma ilusão. Ilusão seria imaginar que aquilo que a ciência não nos pode dar, podemos conseguir em outro lugar”. Como explicar a necessidade de auto-engano - a perda de fé em tudo, o niilismo? Muitos desacreditaram da capacidade do trabalho como sistema produtivo, ou no trabalho como princípio educativo (o fazer como vivência interior). Desacreditaram da política, da ciência, e da própria religião como objeto espiritual a ser investido. E passaram a investir na “bolsa de valores das religiões”, onde apostam tudo em troca de muito mais. A religião que estamos destacando é a que 98

Politica Democratica 17 - 25 de 98 98

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:28


Fé em tempo de consumo

atua como embuste, entretenimento, e não mais como instância de fé e vida interior. O que ganha relevo é a religião explorada pela mídia como mercadoria, que propagandeia seus cultos, e que acabou por colocar a fé entre os bens de consumo. O cinismo das igrejas que atuam no mercado, transformando a desesperança do outro – desempregado, sofrido, humilhado – em oportunidade de enriquecimento fácil, é alarmante. Exploram a promessa de felicidade, e a transformam em mercadoria fashion – exibindo-se nos carros as grifes de fé. O ato de exibir uma escolha de fé, inclui as religiões entre os bens de consumo, e coloca as igrejas e seus pastores, entre empresários ambiciosos, ávidos por dinheiro! E é parte do sintoma de sociedades pouco profundas: efêmeras, descartáveis, desacreditadas e amorais. O cinismo pós-moderno difere do conceito de cinismo da filosofia clássica. O cinismo que vende é aquele que surge preso ao gozo individual, quando cada qual quer cultivar o seu, revelando um declínio no conceito de ética e responsabilidade social. O objeto do desejo é um objeto perdido. O que eqüivale dizer que o objeto perdido se constitui sobre um fundo de falta. Daí a busca incessante por novos objetos. Sempre novos objetos serão investidos, na esperança do reencontro com o primeiro objeto (perdido). Novos objetos e novas insatisfações. A questão está na escolha dos objetos a serem investidos. É diferente escolher investir em profissão, ou relações afetivas e consistentes, do que em um objeto-droga. Vários são os objetos que podem ocupar o lugar droga na vida do sujeito. O mal reside no tipo de relação que o sujeito estabelece com o objeto. Se este exercer sobre ele um poder que o supere, o domine, a relação torna-se patológica. O fetiche é inerente à mercadoria. A religião, como atestamos, ocupa, cada vez mais, o lugar de mercadoria. As igrejas, por meio de seus cultos performáticos, exercem um efeito fetiche nos indivíduos. É quando a fé perde seu potencial de espiritualidade, e seu valor de troca revela-se maior que o seu valor de uso. A religião como desrazão reforça condutas totalitárias e massificadas, como o fanatismo religioso, o fundamentalismo. Depois do cativeiro, o exercício da liberdade torna-se difícil. No shopping eclesiástico, consome-se de imagens de padres pop star a filmes. Vende-se, junto ao benefício da crença e ao medo do inferno, a desinteligência. Os EUA introduziram o protestantismo evangélico como exemplo de religião democrática, vernácula, entusiástica e pouco hierárquica. Estamos vivenciando um corte na concepção de mundo e de ser humano. Ao não mais pensarmos o homem e a contemporanei99

Politica Democratica 17 - 25 de 99 99

26/3/2007 17:38:29


V. Batalha das idéias

dade, a partir de Deus, do sentido bíblico, mas pensarmos Deus a partir do mundo atual – efetuamos um corte epistemológico. O mundo muda, e com ele os paradigmas epistemológicos de religiosidade. Sem Deus, a morte do homem autêntico faz-se iminente. Os americanos, ao imporem ao mundo a lógica do dinheiro, nos afundaram na cultura da acumulação. E ao se posicionarem como os donos do mundo, transformaram a exploração e o desrespeito pelo outro, em um direito. A exploração do mais forte sobre o mais fraco, do capital sobre o trabalho que, quando usada na plenitude de sua consciência, torna-se banal. Um direito que se fundou no exercício de uma prática, numa idéia de nação, e que fez parte do projeto civilizatório da América. Da república de colonizados, nos resta barrar o destino manifesto que reforça, cada vez mais, nossa colonização psíquica – em que o supérfluo e o consumo entram como marca de superioridade – um ser moderno, avançado, arrogante e superior. A necessidade de escamotear a realidade para perpetuar uma posição de privilégio, como de vender ilusões e mistificações, é antiga. A tendência em transformar a dor em gozo aponta para uma grande incidência dos distúrbios narcísicos. As disfunções narcísicas revelam uma falha na castração simbólica – colocam o sujeito numa atitude de adição frente aos suprimentos narcísicos – sem os quais ele não conseguiria viver. A religião, como a droga, atua como um desses suprimentos, uma vez que ambos vêm recebendo adeptos cada dia mais. Ao concluirmos que os sintomas narcísicos são incentivados e alimentados pela “cultura do escape”, concordamos com Freud, quando, em O mal estar na civilização, confessa que os indivíduos apelam para alguns suprimentos ou aditivos, para suportarem o mal-estar que os acomete, por estarem inseridos numa cultura. Freud apostou na sensibilidade, na inteligência e na razão - a esperança nos homens de buscar saídas sublimes frente às dificuldades da condição humana. Ao defendermos a psicanálise, colocamos o homem como responsável pela própria felicidade – quando as saídas para seus problemas devem ser por ele construídas – o sujeito se implicando em sua história de vida. Acreditamos que a solução para a crise do mundo atual deve vir do próprio mundo. Cabe a cada qual buscá-la em sua interioridade.

*** 100

Politica Democratica 17 - 25 de 100 100

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:29


A Amazônia já não é nossa Lúcio Flávio Pinto

A

geopolítica costuma ser uma fonte de interpretação estrábica sobre a Amazônia. Como a região é muito grande, muito diversificada, insuficientemente conhecida e pouco habitada (por causa de áreas ainda isoladas), esse é um espaço intelectual que aceita qualquer especulação, especialmente os desvios conspirativos. Sempre cabe um apetite imperialista no cenário, ele exista ou não, seja potencial ou real. E isso prejudica – e muito – não só o entendimento, mas, sobretudo, o domínio sobre a região, o “como fazer bem” nela. Ficamos sempre atribuindo a culpa ao explorador, especulador, missionário, ONG, etc. É mais agradável, mais oportuno e reconfortador do que enfrentar o problema interno, ainda que nunca deixando de manter um olho vivo sobre o além-mar. O acadêmico Hélio Jaguaribe reabasteceu esse depósito de conceitos e temores ao escrever na grande imprensa nacional sobre a ameaça de internacionalização da Amazônia, que é um misto de fantasia e realidade. Um leitor atento e bem informado do seu texto concluirá confirmando a máxima de que nada é pior do que a quase-verdade, ou a meia-verdade. Esse tipo de abordagem sobre a Amazônia induz a procurar descobrir o dedo do gigante sem ter na devida conta o próprio gigante. Num primeiro artigo (A perda da Amazônia), publicado na Folha de S. Paulo, Jaguaribe alertou para o “absoluto abandono a que está sujeita a Amazônia”, que, consideradas suas dimensões territoriais e riquezas, “é simplesmente inacreditável”. Ele está convencido de que, por diversas maneiras, a região “está sendo submetida a acelerada desnacionalização, em que se conjugam ameaçadores projetos por parte de grandes potências para sua formal internacionalização com insensatas concessões de áreas gigantescas – correspondentes, no conjunto, a cerca de 13% do território nacional – a uma ínfima população de algo como 200 mil índios”. A esse perigo ele acrescenta “inúmeras penetrações, freqüentemente sob a aparência de pesquisas científicas e a atuação de mais de cem ONGs”, que já apresentam “os mais alarmantes dados”. Para dar uma idéia do significado da ameaça, o mestre recorre aos dados costumeiramente citados em ocasiões semelhantes, dando como 101

Politica Democratica 17 - 25 de 101 101

26/3/2007 17:38:29


V. Batalha das idéias

verdade científica, categórica e absoluta, que só a Amazônia brasileira, “representando 85% da Amazônia total, constitui a maior floresta tropical e a maior bacia hidrográfica do mundo, com um quinto da água doce do planeta, sendo, concomitantemente, a maior reserva mundial de biodiversidade e uma das maiores concentrações de minerais valiosos, com um potencial diamantífero na reserva Roosevelt 15 vezes superior ao da maior mina da África, reservas gigantescas de ferro e outros minerais na região de Carajás, no Pará, de bauxita no rio Trombeta, também no Pará, e de cassiterita, urânio e nióbio em Roraima”. Abordando uma das muitas riquezas da região, que agora tem seu valor incrementado, o intelectual carioca lembra que o dendê, nativo da Amazônia e nela facilmente cultivável, “constitui uma das maiores reservas potenciais de biodiesel. Em apenas 7 milhões de hectares, numa região com 5 milhões de km2 [ou 500 milhões de hectares], é possível produzir 8 milhões de barris de biodiesel por dia, correspondentes à totalidade da produção de petróleo da Arábia Saudita. Esse destaque foi considerado em maior detalhe em outro artigo, em O Globo de cinco dias depois (“A saída é pela Amazônia”), motivado pela divulgação do relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas das Nações Unidas. O relatório, assinado por dezenas de cientistas de muitos países, alertou sobre dramáticas mudanças climáticas em curso no planeta, que poderiam a acarretar, muito mais cedo do que até então se imaginava, uma catástrofe ecológica de tamanho planetário. Por causa da poluição na atmosfera, 77% dela na forma de gás carbônico, causada pela queima dos derivados de petróleo e outros energéticos industriais, a temperatura média da Terra poderia se elevar em 3º (ou, em hipótese mais remota, mais de 6º) até 2100, derretendo geleiras polares e dos altos picos, e elevando o nível do mar. Esse cenário – tão próximo e tão funesto – está exigindo que a sociedade adote novas formas de produção e de consumo. Uma das recomendações é a substituição dos energéticos atuais por fontes mais limpas e renováveis, como os biocombustíveis e (vejam só) a energia nuclear. Esse novo quadro, da energia verde, colocaria o Brasil num patamar muito mais elevado do que o de hoje, pela sua rica disponibilidade de recursos naturais e sua experiência em fontes alternativas. Nessa conjuntura, Jaguaribe dá o brado (made in Rio, claro): “Está na hora de uma radical revisão de nosso relacionamento com a Amazônia, que tem sido, até agora, de criminosa desatenção e ameaça, pelo que foi divulgado pelo governo, se converter, insensatamente,

102

Politica Democratica 17 - 25 de 102 102

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:29


A Amazônia já não é nossa

numa ainda mais criminosa alienação de toda essa região e de sua gigantesca reserva de recursos naturais”. Para Jaguaribe, “é absolutamente evidente que o Brasil está perdendo o controle da Amazônia”, sendo “urgentíssima uma apropriada intervenção federal” na região, especialmente através de “formas eficazes de vigilância da região e de sua exploração racional e colonização”. Cita como referência “um importante acervo de dados, contidos em relatórios” entregues à Abin (a agência de informações que sucedeu o SNI). Lamenta que “as autoridades superiores, entretanto, não vêm dando a menor atenção” a esses relatórios. “Sem prejuízo das medidas neles sugeridas e de levantamentos complementares”, considera “indiscutível a necessidade de uma ampla revisão da política de gigantescas concessões territoriais a ínfimas populações indígenas, no âmbito das quais, principalmente sob pretextos religiosos, se infiltram as penetrações estrangeiras”. Diz que enquanto a Igreja Católica “atua como ingênua protetora dos indígenas, facilitando, indiretamente, indesejáveis penetrações estrangeiras, igrejas protestantes, nas quais pastores improvisados são, concomitantemente, empresários por conta própria ou a serviço de grandes companhias, atuam diretamente com finalidades mercantis e propósitos alienantes”. Está certo o novo padrasto da Amazônia que o objetivo dessa ação é “criar condições para a formação de ‘nações’ indígenas e proclamar, subseqüentemente, sua independência – com o apoio americano”. Em “última análise” (permitindo-se, contudo, excluir “a eliminação dos índios adotada no século 19 pelos EUA”), o novo guru amazônico vê “duas aproximações possíveis da questão indígena: a do general Rondon, de princípios do século 20, e a atual, dos indigenistas”. Na interpretação jaguaribeana (ou jaguaribista), “Rondon, ele mesmo com antecedentes indígenas, partia do pressuposto de que o índio era legítimo proprietário das terras que habitasse. A um país civilizado como o Brasil, o que competia era persuadir, pacificamente, o índio a se incorporar a nossa cidadania, para tanto lhe prestando toda a assistência conveniente, dando-lhe educação, saúde e facilidades para um trabalho condigno”. Já os indigenistas, diversamente, “querem instituir um ‘jardim zoológico’ de indígenas, sob o falacioso pretexto de preservar sua cultura. Algo equivalente ao intento de criar uma área de preservação de culturas paleolíticas ou mesolíticas no âmbito de um país moderno”. O resultado final, no diagnóstico do acadêmico, “além de facilitar a

103

Politica Democratica 17 - 25 de 103 103

26/3/2007 17:38:29


penetração estrangeira, é converter a condição indígena em lucrativa profissão, com contas em Nova York e telefone celular”. Há, acrescenta o demiurgo, “urgente necessidade, portanto, de rever essas concessões, submetendo-as a uma eficiente fiscalização federal, reduzindo-as a proporções incomparavelmente mais restritas e instituindo uma satisfatória faixa de propriedade federal, devidamente fiscalizada, na fronteira de terras indígenas com outros países”. Já quanto a um plano de produção, em escala internacional, de etanol e biodiesel, “além de urgente estudo, inclusive no que se refere aos futuros consumidores”, é preciso ter “um apropriado regime de financiação”:

Asseguradas as necessárias condições de preservação de nossa soberania, um programa dessa natureza abre um amplíssimo espaço para a aplicação de capitais estrangeiros, atraindo-se para a bioalternativa, entre outros empreendimentos, as companhias de petróleo. Importa organizar, dentro de uma conveniente política de conjunto, diversas empresas brasileiras, com adequada participação de capitais estrangeiros, que assegurem o atendimento, em ampla escala, da futura demanda internacional desses combustíveis.

Suspeitar de tudo, indistintamente, sem uma ponderação elucidativa, conforme critérios realmente analíticos, significa não ter certeza de nada. Como ser afirmativo? Não podemos: a culpa é do estrangeiro maquiavélico, perverso, sugador, insaciável, cuja onisciência, onipotência e onipresença anula nossas possibilidades de escrever uma história diferente daquela que ele nos impõe. Sempre teria sido assim, a julgar pelas sucessivas teorias geopolíticas. Se a Fundação Rockefeller, através da camuflagem do Summer Institute of Linguistics, é quem mais financia ações em tribos indígenas, sobretudo para traduzir-lhes as línguas (e aprisionar-lhes as culturas), por que não fazemos o mesmo e suplantamos os Rockefeller, sem precisar incorporar-lhes os males, por sermos todos brasileiros, irmãos? Não fazemos porque não queremos gastar o mesmo dinheiro. Somos o país do tal do bloco do Bric (Brasil, Rússia, Índia e China) que menos investe em ciência e tecnologia, sendo que, desse raquítico orçamento, o que cabe à Amazônia é menos do que 1%. E São Paulo, que fica com 39%, quer se achar no direito de definir o que é certo e errado na Amazônia, fazendo quase sempre o errado. 104

Politica Democratica 17 - 25 de 104 104

26/3/2007 17:38:29


A Amazônia já não é nossa

Os estudos lingüísticos do Summer Institute podem servir aos fins evangélicos dos seus promotores diretos (traduzir a Bíblia em todas as línguas), aos negócios da família Rockefeller, aos interesses da corporação econômica americana e às políticas da Casa Branca (ou, mais especificamente, do Pentágono). Um país soberano tem o direito (e o dever) de impedir que a presença dos missionários do SIL seja uma ponta de lança (ou cabeça-de-ponte) desses interesses em território nacional. Mas tentando manter o serviço de utilidade para o próprio país, que é o conhecimento e a tradução de línguas condenadas ao desaparecimento, mas que são, hoje, o único caminho de acesso às informações e saberes produzidos em séculos ou milênios de convivência com a natureza (e com outros povos indígenas), sem a interferência dos europeus (ou “civilizados”). Se as reservas indígenas estão sendo criadas em áreas estratégicas com o objetivo de serem “balcanizadas”, criando quistos raciais e étnicos que serão embriões de nações autônomas, a obrigação do governo é instaurar procedimento regular, conforme as leis adjetivas do país, e provar tudo, dando os devidos nomes aos bois. Ficar na desconfiança só faz multiplicar desconfianças, sem levar a uma atitude positiva. Todas as teorias conspirativas têm esbarrado, até agora, num fato: não se conhece nenhuma tribo indígena que se tenha manifestado pela independência como povo autônomo. Nossos índios querem ser bons brasileiros. O governo é que, sem entendê-los e respeitá-los, não deixa. Sem a cooperação internacional o Brasil não dará o salto necessário para colocar a ciência e a tecnologia à frente do madeireiro, do garimpeiro, do minerador ou da empresa (nacional e multinacional), nem, ele próprio, poderá ocupar a posição de comando que lhe cabe nas frentes pioneiras. Não só por não dispor dos recursos necessários para a tarefa, gigantesca: também por não ter disposição de assumir esse desafio, com todas as suas conseqüências. Ao invés de simplesmente mandar relatórios para a Abin ou criar romances que materializam as mais inventivas teorias conspiratórias, o governo, que é dono, guardião e gestor da maior das Amazônias do continente, precisa ter musculatura, ossatura e inteligência para convocar cada um dos suspeitos e obrigá-los a se explicar publicamente. Os dados todos precisam estar à mesa, o mais próximos da verdade científica. Não é verdade que a Amazônia tem 20% de toda água doce identificada no planeta: em sua bacia estão uns 12% da água superficial doce da Terra. É muito (embora uma mínima fração da água total, esmagadoramente salgada), mas é apenas uma estrela no

105

Politica Democratica 17 - 25 de 105 105

26/3/2007 17:38:29


V. Batalha das idéias

céu de um povo que não sabe manejar água. Pelo contrário: a polui, a assoreia, não a utiliza como caminho saudável. Esse valioso capital é elemento hipotético até que, contando inclusive com a ajuda de bons parceiros, como os canadenses ou holandeses (que têm pouca água doce e por isso a usam tão bem), mudemos a prática desse desperdício e dessa destruição. É relação infrutífera comparar o “potencial diamantífero na reserva Roosevelt” à “maior mina da África”, esta produzindo e aquele ainda na condição (ao menos hoje, depois de combatido o garimpo predatório) de reserva, capaz de atrair todos os interesses, mas sem medição certa. Intelectuais como Jaguaribe listam palavras e números atribuídos à Amazônia sem uma exata noção de grandeza e com pouco compromisso com a realidade, como se fossem pracistas de explicações pré-aquecidas, prontas para aplicação em qualquer situação de fato. À distância, podem tudo e estão dispostos a tudo. Não consideram, porém, o in situ. Daí haver tantos aprendizes de feiticeiros e tão pouco daqueles capazes de manejar o tal do know-how dos pragmáticos irmãos do Norte. A Amazônia é uma fantasia nessas tábuas da lei, descidas sobre nós, a partir do Sul-Maravilha. Se não é possível separar o joio do trigo, nem estabelecer parceria em associação verdadeiramente paritária, sob o controle nacional, então que o governo realize, por meios próprios, o que a instituição internacional realizava. Mas, como diria o compositor Noel Rosa: com que roupa? O jeitinho brasileiro não é suficiente. Muito menos a presunção de que Deus nasceu aqui. Se não tornarmos a Amazônia uma prioridade real, pra valer (e pagar o preço necessário), capaz de nos permitir inibir, condicionar ou redirecionar o evidente interesse estrangeiro pelo conhecimento real e o domínio operativo da (e na) região, vamos continuar a ver visagens ao meio-dia. A Amazônia continuará sob a proteção da soberania nacional, mas terrivelmente empobrecida. Brasileirinha da silva e pobre.

***

106

Politica Democratica 17 - 25 de 106 106

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:30


Atalhos para o resgate da cidadania Ariosto Holanda

E

ntendemos que a verdadeira cidadania só será alcançada quando pudermos garantir educação e oportunidades de trabalho aos milhões de excluídos.

Esse, para mim, é o maior desafio que o país enfrenta. Ele é grande porque, com a economia globalizada e com as freqüentes inovações tecnológicas, as oportunidades de trabalho são cada vez mais seletivas e o mercado mais exigente, no tocante à atualização permanente de conhecimentos por parte dos trabalhadores. Trata-se, portanto, de um problema complexo porque temos pela frente um avanço tecnológico crescente e uma grave questão social traduzida pela pobreza, analfabetismo e concentração de renda. Nas regiões deprimidas, a cadeia do conhecimento, que integra as ações da educação fundamental, ensino médio e profissionalizante, graduação, pós-graduação, pesquisa, desenvolvimento tecnológico e extensão tecnológica, encontra-se degradada. Identificamos com muita clareza, que nas regiões de baixo IDH, as ações da educação, ciência e tecnologia, envolvendo a população, quando não ausentes, são tímidas e inexpressivas, ou melhor dizendo 90% dos municípios brasileiros desconhecem, no seu território, ações da Ciência e Tecnologia, voltadas para a inovação tecnológica ou para novos conhecimentos. Quando surgem, são pontuais ou isoladas e não de alcance da população. Fala-se muito em cluster, empreendedorismo, arranjos produtivos, empresa de base tecnológica, incubadoras de empresa, agronegócios mas, não se fala em acabar com o analfabetismo tecnológico da população, das pequenas empresas e dos pequenos negócios. Carl Sagan já dizia que é preciso acabar com o analfabetismo científico da população trabalhadora; advertia ele: “é preocupante que o cidadão continue a ignorar o perigo do aquecimento global, a diminuição da camada de ozônio, a poluição do ar, o lixo tóxico e radioativo, a chuva ácida, a erosão da camada superior do solo, o desflorestamento tropical, o crescimento exponencial da população e muitos outros perigos que rondam a humanidade” Por outro lado, o que se observa é que o avanço da tecnologia tem resultado no aprofundamento do conhecimento de poucos e no au-

107

Politica Democratica 17 - 25 de 107 107

26/3/2007 17:38:30


V. Batalha das idéias

mento da ignorância de muitos. Como novos conhecimentos surgirão com velocidades cada vez mais crescentes, as camadas sociais mais pobres correm o risco de sofrer a mais perversa das exclusões: a do conhecimento, que se caracteriza pela sua marginalização em relação às fontes de informação e do saber. Entre os países emergentes, onde estão incluídos China, México, Rússia, Índia, o Brasil, segundo técnicos do Banco Mundial, ocupa o último lugar no tocante ao cumprimento das metas para inserir-se na sociedade do conhecimento. Concorreu para essa classificação o seu sofrível desempenho na área da educação. Vejamos alguns aspectos: a) A escolaridade média do Brasil é de 4,9 anos, da Costa Rica 6,1 anos, da Argentina 8,8 anos, dos EUA 12,1 anos. b) O ensino médio completo no Brasil atinge somente 22% da população, na Argentina 51%, na Coréia do Sul 82%, nos EUA 91%. c) O Programa de Avaliação Internacional de Estudantes (PISA) classificou o Brasil em último lugar em leitura, matemática e ciências.

Segundo estudo da Unesco, o Brasil, mantido esse ritmo, só alcançará o nível educacional dos países desenvolvidos daqui a mais de 30 anos. Com certeza, a educação é o melhor caminho para diminuirmos a distância entre o Brasil que tem o 12º PIB mundial e o Brasil que ocupa o 63º Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Diante desse quadro, podemos assegurar que o Brasil, na área da Educação, tem uma dívida muito grande com o seu povo. Vamos rever alguns cenários: I. Em 1992, o Congresso Nacional, por meio de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, procurou identificar as causas e dimensões do atraso tecnológico do país. Como causa principal foi apontada a degradação de sua base educacional. Naquele ano, o número de analfabetos era da ordem de 30 milhões, o ensino fundamental e médio era carente de professores de matemática, física, química, biologia e ciências, e havia uma clara ausência de ensino técnico de nível médio. Enquanto nos países desenvolvidos havia uma relação, considerada ótima, de um técnico de nível superior para cinco técnicos de nível médio, no Brasil 108

Politica Democratica 17 - 25 de 108 108

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:30


Atalhos para o resgate da cidadania

essa relação estava invertida: era de dois técnicos de nível superior para um de nível médio, sendo que nas regiões norte, nordeste e centro-oeste, essa relação era de quatro técnicos de nível superior para um de nível médio. II. Recentemente, o Instituto Paulo Montenegro, do IBOPE, ao publicar o 3º Inaf (Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional), mostrou um quadro preocupante. Ao analisar a população na faixa etária de 15 a 64 anos identificou que existem 114 milhões de brasileiros com os seguintes graus de instrução, segundo tabela a seguir. Evolução dos níveis de alfabetismo entre 15 e 64 anos (População: 114 milhões de brasileiros) Anos: 2001 e 2003

NÍVEL

Leitura e escrita

Usam computadores

2001

2003

2001

2003

9%

8%

1%

0

Alfabetismo Nível 1

31%

30%

4%

4%

Alfabetismo Nível 2

24%

37%

15%

19%

Alfabetismo Nível 3

26%

25%

41%

47%

Analfabeto

Fonte: 3º INAF – Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional Instituto Paulo Montenegro – Ação do Ibope pela Educação “Um diagnóstico para a inclusão social” – Ano: 2003

Classificação do Inaf para os diferentes níveis de escolaridade: •

Analfabeto: o que não sabe ler nem escrever

Alfabetismo Nível 1: têm um nível de habilidade para leitura e escrita muito baixo; só são capazes de localizar informações simples em enunciados com uma só frase; num anúncio ou capa de revista, por exemplo.

Alfabetismo Nível 2: conseguem localizar uma informação em textos curtos (uma carta ou notícia, por exemplo); poderia se considerar como sendo um nível básico de alfabetização.

109

Politica Democratica 17 - 25 de 109 109

26/3/2007 17:38:30


Alfabetismo Nível 3: demonstram domínio pleno das habilidades testadas; são capazes de ler textos mais longos, localizar mais de uma informação, comparar a informação contida em diferentes textos e estabelecer relações diversas entre elas.

Outras considerações do Inaf: •

Só 25% dos brasileiros entre 15 e 64 anos demonstram habilidades plenas de leitura e escrita, ou seja: 25% de 114.000.000 = 28.500.000.

60% da população estudada não têm a escolaridade mínima obrigatória de 8 anos.

A educação básica (ensino fundamental + ensino médio) é privilégio de apenas 20%.

20% dos que não completaram sequer uma série aprenderam a ler e escrever por outros meios que não a escolarização;

32% dos que completaram de uma a três séries escolares se encontram ainda na situação de analfabetismo absoluto – não sabem ler e escrever. Outros 51% podem ser considerados analfabetos funcionais.

Mesmo entre pessoas com 4 a 7 anos de estudo, pouco mais da metade atinge os níveis básico e pleno (níveis 2 e 3). Os demais também poderiam ser considerados analfabetos funcionais.

Segundo o Inaf são considerados analfabetos funcionais: Analfabetos + Alfabetizados Nível 1 + Alfabetizados nível 2 = 75% Essa soma representa 75% de 114 milhões = 85.500.000 de brasileiros

Análise da conjuntura e questionamentos Os indicadores sociais que apresentamos apontam para números preocupantes. Resumiria dizendo, que hoje, existe uma população de 17 milhões de analfabetos, 50 milhões de pobres e 85 milhões de analfabetos funcionais. Como o trabalho é a única forma digna de se combater a miséria, devemos, com urgência, encontrar respostas para os seguintes questionamentos: 110

Politica Democratica 17 - 25 de 110 110

26/3/2007 17:38:30


Atalhos para o resgate da cidadania

• Como fazer ingressar num sistema produtivo essa população de analfabetos? • O que fazer com milhões de trabalhadores cuja força de trabalho é cada vez menos exigida, ou nem mais o é? • Como distribuir renda com pessoas sem qualificação profissional, principalmente, nesse momento em que a explosão tecnológica que ocorre no mundo está a exigir cada vez mais das pessoas atualização permanente de seus conhecimentos? • Como superar as desigualdades regionais quando se tem a consciência de que elas aumentam com a concentração do conhecimento?

O discurso do crescimento econômico como fórmula de geração de trabalho, diante dessa massa de excluídos, torna-se inócuo, porque poderemos ter aumento significativo do PIB sem que isso implique em geração de um grande número de empregos (O Brasil tem o 12º PIB mundial e o 63º IDH). Hoje, se houvesse um reaquecimento da economia, com novos investimentos em áreas de alta tecnologia, esses trabalhadores estariam fora do mercado de trabalho. Tal é o avanço tecnológico que, em breve, poderemos nos deparar com situações nas quais teremos, de um lado, pessoas procurando emprego e, na contra mão, trabalho procurando profissional. Segundo o professor José Soares Teixeira, da Universidade Estadual do Ceará (UECE), “a instabilidade da ocupação e as elevadas taxas de desemprego são uma verdadeira negação do direito elementar à vida, na medida em que condenam a grande maioria dos trabalhadores a um estado de pobreza e de miséria que chega a beirar a indigência material e até mesmo espiritual”. O que fazer então, com esses trabalhadores sem esperança de emprego porque lhes falta a devida qualificação profissional? Temos que criar com urgência mecanismos, ágeis e flexíveis, de transferência de conhecimentos para a população, a partir de atalhos que avancem sobre os mecanismos tradicionais da educação, e que tenham ação de massa, porque os excluídos são muitos.

111

Politica Democratica 17 - 25 de 111 111

26/3/2007 17:38:30


V. Batalha das idéias

Os indicadores sociais que acabamos de ver estão a exigir das instituições que detêm o conhecimento, ações que venham contribuir de modo decisivo no processo de educação para o trabalho, em todos os níveis. Certamente, a geração de emprego e a distribuição de renda só acontecerão quando investirmos no capital humano e procedermos a uma profunda transformação na lógica do desenvolvimento. Temos que definir com urgência: a) Desenvolvimento para que e para quem? O modelo que temos de discutir é o que esteja pautado numa visão de crescimento socioeconômico, que esteja baseado numa economia que leve em conta as pessoas. Na minha visão, qualquer alternativa de desenvolvimento só é real quando está voltada para resolver os problemas da população. Como bem questionado no trabalho: Tecnologia, Educação e Saber, de Carlos Rodrigues Brandão e Samuel Aarão Reis, não podemos aceitar como indicadores de desenvolvimento apenas números ou índices que expressem aumento de PIB, volume de exportações, superávit primário, sem considerar por trás de tudo isso o homem – com oportunidade para uma vida melhor, justiça social, elevação do nível e qualidade de emprego, garantia de salários dignos, ampliação dos serviços de educação e saúde, saneamento básico e alimentação. Por outro lado, o investimento no capital humano deve ser feito por meio de um sistema educativo eficiente e de qualidade. O salto de qualidade só virá se tivermos a capacidade de realizar mudanças profundas no sistema de transferência de conhecimentos e que seja capaz de envolver toda a sociedade. Temos que ousar e partir para um processo de interação com a sociedade do tipo Educar Trabalhando e Trabalhar Educando. Ao lado do mecanismo educacional deve ser perseguida a implantação de um amplo sistema de informação tecnológica no sentido de proporcionar aos pequenos segmentos produtivos, hoje, mergulhados num verdadeiro analfabetismo tecnológico, condições de conhecer e de apropriar novas tecnologias. As ações a serem desenvolvidas devem ser tais que integrem todos os segmentos da sociedade; elas não podem ser estanques e isoladas, e devem ter como objetivo o Homem no seu estágio atual de conhecimentos e no seu contexto social.

112

Politica Democratica 17 - 25 de 112 112

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:30


Atalhos para o resgate da cidadania

O analfabeto fora da escola, o analfabeto tecnológico dentro da escola, a escola fora da realidade atual, a universidade sem interagir com os problemas do meio, o setor produtivo isolado dos problemas educacionais e tecnológicos são verdadeiros desafios para qualquer governo que queira promover uma revolução educacional, científica e tecnológica. O programa que ora apresentamos e defendemos, tem como finalidade principal a implantação de projetos voltados para vencer esses desafios e atingir o objetivo maior que é o de Capacitar para o Trabalho. b) O que poderiam se constituir em bons atalhos? 1. Implantação, nos municípios, de centros vocacionais tecnológicos equipados com laboratórios, tendo a gestão de universidades, centros federais tecnológicos, instituições de pesquisas ou outros, para realizarem um grande trabalho de extensão ou de transferências de conhecimentos para a população, observando a vocação da região. 2. Criação de bolsas de desenvolvimento regional a cargo do CNPq e Capes para remunerar os extensionistas desses centros. 3. Instalação de infovias com os instrumentos da internet e da videoconferência como suporte aos projetos de educação a distância e banco de soluções e informação.

Se equacionarmos o problema da educação e do trabalho muito do que se cobra da segurança pública estaria resolvido. A grave questão social da concentração da renda ameaça famílias que, ainda hoje lutam pelo direito à vida animal. E surge o homem animal. Esse homem revoltado, analfabeto e desempregado torna-se uma ameaça. E muitos estão a lançar mão da prostituição, da droga e do banditismo para sua sobrevivência. E por falar em concentração de renda analisem as tabelas a seguir, com os dados do Ipea:

113

Politica Democratica 17 - 25 de 113 113

26/3/2007 17:38:31


V. Batalha das idéias

Observe no gráfico acima, do Relatório Ipea – Ano 2000, que o coeficiente Ginni, que mede a concentração da renda, vem se mantendo ao longo dos últimos 20 anos no patamar 0,6. Nos países onde existe uma boa distribuição de renda esse número fica em torno de 0,25.

O gráfico acima do Relatório Ipea – Ano 2000 mostra que 50% da renda está concentrada em 10% da população, enquanto 50% da população detém somente 10% da renda. 114

Politica Democratica 17 - 25 de 114 114

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:33


Atalhos para o resgate da cidadania

Ações a serem desenvolvidas Como colocamos no início, duas ações básicas devem se dar no resgate da cidadania: educação e trabalho. O combate à pobreza deve partir da idéia de que o grau de escolaridade é um dos fatores, senão o mais importante, na determinação do nível de emprego e de renda das pessoas. Existe uma certa correlação, embora não facilmente demonstrável, entre escolaridade, qualificação e emprego. O fato é que não se pode negar que, num mundo submetido a rápidas mudanças tecnológicas, o emprego depende, em grande parte, do acesso fácil, por parte dos trabalhadores, às inovações tecnológicas e às novas habilidades exigidas pelo mercado. Nessa luta de combate à pobreza considero como premissas importantes: • Pensar numa economia que leve em conta as pessoas. • Sair da lógica do desenvolvimento com base no mercado para a lógica da social-democracia, na qual o Estado deve exercer o papel regulador do processo de desenvolvimento. • Massificar as ações da extensão tecnológica via universidades, centros de ensino tecnológico e instituições de tecnologia. • Implantar linhas de crédito voltadas para fundo de aval e micro crédito. • Abrir mercado na área de serviços e de produtos que contemple os pequenos negócios tipo compra e serviços governamentais. O que o governo (municipal, estadual e federal), compra ou contrata, que pode ser feito pelo pequeno?

Somente por meio de uma ação, de massa, de apoio aos trabalhadores e aos pequenos negócios poderemos chegar a uma sociedade mais justa, mais humana e mais equilibrada. Hoje, em pleno século XXI, constatamos que temos conhecimento e tecnologia, com base na engenharia genética, na química fina, na biotecnologia e em outras ciências, que seriam capazes de assegurar uma superprodução de medicamentos ou de alimentos para curar a maioria das doenças e matar a fome de milhões de famintos.

115

Politica Democratica 17 - 25 de 115 115

26/3/2007 17:38:33


V. Batalha das idéias

Se não o fazemos, é porque vivemos num mundo onde a lógica do desenvolvimento é perversa; lógica que está alicerçada na ambição, no egoísmo, na ganância e na luta pelo poder. E nesse cenário o homem é atropelado, esquecido, ou visto como agregado de máquina. Concluindo e dentro desse contexto, trago para reflexão considerações do sociólogo belga F. Houtart, quando analisa a civilização atual. Diz ele:

Torna-se cada vez mais claro, teórica e praticamente, o que indubitavelmente é também o caso do Brasil, que há uma enorme contradição entre o sonho de um mundo livre da pobreza e as políticas executadas para combatê-la. Elas se inserem numa lógica econômica global que não é inocente, porque beneficia uns e prejudica outros, criando sempre de novo desigualdades e antagonismos. São observações importantes: 1) A pobreza é um problema social historicamente construído que só pode ser entendido quando consideramos as relações sociais existentes numa economia de mercado capitalista, tanto no interior de cada sociedade como em âmbito mundial; 2) No mundo atual, a pobreza e a miséria são domináveis. Portanto, não tem sentido sua reprodução ao infinito como se tratasse de um dado do destino, nem o estabelecimento de prazos tão longos para sua erradicação. A riqueza, que somos capazes de produzir, já pode satisfazer as necessidades. O que não resolve nada é que ela continue sendo produzida apoiando-se na pobreza e, pior ainda, condicionando-se o crescimento à redução das proteções sociais, à privatização dos serviços e ao aumento das desigualdades; 3) Não se pode defender políticas de combate à pobreza estruturalmente desvinculadas do contexto global. Há muitas iniciativas em execução que podem trazer certos benefícios, mas que possuem somente uma eficácia aleatória uma vez que as políticas macroeconômicas têm como efeito aprofundar a precariedade das condições de vida dos trabalhadores, concentrar a riqueza, destruir a previdência social, destinar os recursos públicos a gastos rentáveis para o capital, deixando intocada a máquina que fabrica os pobres.

*** 116

Politica Democratica 17 - 25 de 116 116

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:33


VI. Mundo

Politica Democratica 17 - 25 de 117 117

26/3/2007 17:38:34


Autores Delio Mendes Doutor em Ciência Política e Sociologia pela Universidade de Deusto, Espanha, e professor adjunto da Universidade Federal Rural de Pernambuco.

Fernando de la Cuadra Sociólogo chileno, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará.

Dina Lida Kinoshita Membro da Cátedra Unesco de Educação para a Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerância, junto ao Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo.

118

Politica Democratica 17 - 25 de 118 118

26/3/2007 17:38:34


O mundo globalizado, a hegemonia americana e o fundamentalismo Delio Mendes

S

e todos analisassem a situação da sociedade mundial na atualidade e compreendessem a natureza de suas contradições, por certo estariam profundamente abalados quanto ao futuro da humanidade. Qualquer reflexão que se faça sobre a situação atual, complica a compreensão da mente humana na medida em que o balanço internacional encontrado aponta para um mundo em descontrole. Compreender o século XX, onde nasceram ou se desenvolveram os elementos que compõem o cenário do mundo atual é, não só importante, como fundamental. O século XX, o século de todas as dificuldades, exige, antes de tudo, a compreensão da sua pequena extensão e das contradições vividas no interior da sua passagem. “O século XX, em sua realidade histórica, não durou mais de 75 anos. Inaugurado com um tiro de revólver, ele termina com uma pá de cal. O tiro de revólver foi dado em 28 de abril de 1914, em Sarajevo, pelo estudante sérvio Prinzip, de 29 anos, assassino de François-Ferdinand, arquiduque herdeiro do Império Austro-Húngaro. Este acontecimento desencadeou, como se sabe a Primeira Guerra Mundial, em que o mundo antigo foi engolido. Quanto à pá de cal, foi, por sua vez, lançada aos oito dias do mês de novembro de 1989, sobre o concreto “grafitado” do muro de Berlim, cuja destruição simbolizou a implosão do projeto comunista. Setenta e cinco anos... Tudo se passou a seguir como se o fim prematuro deste “século perdido” nos tivesse permitido melhor compreender seu desenrolar; como se hoje pudéssemos reconstituir, com uma lucidez nova, as idas e vindas de um longo desencaminha-

119

Politica Democratica 17 - 25 de 119 119

26/3/2007 17:38:34


VI. Mundo

mento.” Este século, tomado no contraditório, é, em sua pequena duração, o século de todos os avanços tecnológicos. Contraditoriamente, entretanto, este século menor é ainda o espaço tempo de grandes conquistas e de grandes tragédias sociais. No início do terceiro milênio pode-se olhar para o passado recente e ver as atuais contradições sociais debitando-as à conta de um processo de globalização modificador das condições de desenvolvimento, dentro de uma perspectiva de tempo e espaço. Todavia, não se pode falar de um processo de globalização datado do mundo atual. A globalização é parte do desenvolvimento histórico que acompanha o gênero humano na sua ânsia de criar uma cidadania do tamanho e da natureza do tempo e do espaço mundo. O gênero humano luta desde o seu momento primeiro para ir mais além. Mais além de suas próprias possibilidades. Se isto é verdade, o é também o fato de que, desde há, muito e, principalmente, após a queda do muro de Berlim, o processo de globalização avança, e avança sob a égide do capital financeiro, despregado do capital produtivo colocado sob o domínio do mundo financeiro. E, desta forma, fecha-se este tipo de globalização ao desenvolvimento social, criando e ampliando espaços cada vez mais significativos de exclusão e de desigualdade. Neste espaço real, coloca-se para a sociedade mundial a questão de subsumir a globalização sob a direção da cidadania, permitindo o deslocamento da soberania do capital internacional (hegemonicamente financeiro) para a vontade geral do povo do mundo. Diga-se que a vontade geral trabalhada por Rousseau e ampliada por Gramsci no conceito de vontade coletiva, coloca o domínio do mundo social por uma vontade produzida coletivamente de maneira democrática pela via transformadora da política. Este processo de republicanização global propiciaria o reconhecimento dos direitos civis a todos os membros da sociedade, dado o caráter fundante dos mesmos, reconhecendo ainda o fato de que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Algo da maior importância neste quadro de avanço é o descolamento que vem sendo feito por recentes concepções democráticas, as quais dissociam completamente a cidadania da nacionalidade. “A cidadania teria, assim, uma dimensão puramente jurídica e política, afastando-se da dimensão cultural existente em cada nacionalidade. A cidadania teria uma proteção transnacional como os direitos humanos. Por esta concepção, seria possível pertencer a uma comunidade política e ter par-

GUILLEBAUD, Jean-Claude. A reinvenção do mundo, Bertrand Brasil: Rio de Janeiro, 2003, p. 35.

120

Politica Democratica 17 - 25 de 120 120

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:34


O mundo globalizado, a hegemonia americana e o fundamentalistmo

ticipação independente da questão de nacionalidade”. Produz-se nesta perspectiva o cidadão do mundo, para além do cidadão da nação, desde logo um novo cidadão posto de acordo com uma modernidade que se reconstrói positivamente. Uma modernidade pós-tradicional, que nasce contraditoriamente criando novas instituições e, ao mesmo tempo, conservando e transformando instituições tradicionais e, deste modo, produzindo as condições necessárias para dar conta de uma nova natureza de problemas, em que se incluí uma nova sociedade civil, a Sociedade Civil Mundial. Para a humanidade, coloca-se neste mundo uma realidade que se põe em toda inteireza nos atentados perpetrados em 11 de setembro de 2001 e em seus posteriores desdobramentos até os dias atuais, algo muito distante e muito perto de todo o mundo social da atualidade. Estes acontecimentos trágicos transformaram a realidade e puseram de relevo a magnitude maléfica do fundamentalismo, na medida em que levam mulheres e homens a pensar e agir de forma perversa, colocando seus mesquinhos interesses acima do bem e do mal e, sobretudo, acima da vida. Isto coloca a humanidade diante de uma crise, principalmente, no campo da realização do gênero humano, colocado em seu nível mais baixo de perversão. Desde que o terrorismo apontado contra vítimas inocentes e, em última instância contra toda a humanidade, (pois desde o 11 de setembro, somos, humanidade inteira, reféns dos terroristas de todo o tipo, e estamos vivendo sob um fundamentalismo desprovido de qualquer racionalidade a nos colocar à mercê de um Deus que exige sangue para a redenção dos infiéis) imobilizada na busca da defesa de sua integridade. E assim toma forma a crise da temporada de abertura do terceiro milênio. “Para enfrentar uma crise desta natureza, que será longa e difícil, é preciso inteligência política, nervos sólidos, uma grande maturidade. A mesma maturidade que uma grande parte da opinião pública na Itália e na Europa, mostrou possuir, rejeitando a idéia de uma represália cega”. Desde à compreensão dos fundamentalismos, é necessário tecer comentários especiais sobre o fundamentalismo americano em sua metamorfose de transformação. “Própria do fundamentalismo americano é a tendência de ultrapassar as fronteiras do âmbito intraeclesiástico e evangélico para criar movimentos agrupados em torno de concepções políticas conservadoras. Uma vez VIEIRA, Liszt. Cidadania e globalização. Record: Rio de Janeiro-São Paulo, 2000, p. 31 GIDDENS, Anthony. Admirável mundo novo: o novo contexto da política, in: MILIBAND, David (org.) Reinventando a esquerda, Unesp, São Paulo, 1997, p. 39. D’ALEMA, Massimo. Contra o terrorismo, pela democracia, in: Política Democrática. Ano 1, n. 2, Jun./Set. 2001 Fundação Astrojildo Pereira: Brasília, p. 75 a 81.

121

Politica Democratica 17 - 25 de 121 121

26/3/2007 17:38:34


VI. Mundo

consolidados, estes movimentos tentam impor sua vontade de forma organizada, recorrendo a formas políticas e institucionais.” Desde este ponto de vista, o fundamentalismo americano se coloca como um movimento de natureza político-institucional e sob a égide de W. Bush encontra-se no poder dos EUA.

W. Bush e a política americana Completando este quadro e, ao mesmo tempo, assumindo um alto grau de centralidade, situa-se – apesar da proximidade ideológica entre republicanos e democratas –, a ação política republicana, que representa um maior acirramento das contradições ao nível da política internacional, haja visto o compromisso do presidente W. Bush II, com o estado de beligerância existente no mundo, no mundo árabe e, principalmente, no Iraque. Este estado de beligerância remonta há 25 anos, decorrente que é da Doutrina Carter, adquirindo maior relevância atualmente com a busca incessante dos EUA em dominar as áreas de produção do petróleo. Tudo o que se pode argüir desde esta doutrina, exarcebada com a presença na direção dos EUA do presidente W. Bush, é que a mesma se abre para a intervenção militar americana onde for necessário para assegurar os acessos desta nação a fontes produtoras de petróleo e para proteger um pretenso patrimônio americano no espaço mundo. Neste ponto a Doutrina Carter, nos remete a Lênin, lembrando o papel dos monopólios no mundo sob o domínio do imperialismo corporificado no Estado Americano. “O monopólio, logo que se tenha constituído e reúna milhões, penetra forçosamente em todos os domínios da vida social, independentemente do regime político e de todas as outras contingências.” Desde esta compreensão, o Estado americano se faz defensor dos grandes monopólios americanos e faz de suas forças armadas instrumento destas corporações.

Fundamentalismos de todas as ordens É verdade que tudo se faz sob o pretexto de defender os fracos e oprimidos e colocar o mundo fora da rota do terrorismo. Tudo sob a égide de um fundamentalismo que coloca a Casa Branca como a casa de defesa de Deus, e os americanos como os novos Cruzados Moder KIENZLER, Klaus. El fundamentalismo religioso. Alianza Editorial: Madrid, 2000, p. 33. Lênin, V. Imperialismo fase superior do capitalismo, Global Editora: São Paulo, 1982, p. 44.

122

Politica Democratica 17 - 25 de 122 122

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:35


O mundo globalizado, a hegemonia americana e o fundamentalistmo

nos, guardiãs de um único caminho para a salvação. A sopa no mel. Assalta-se o mundo mulçumano de fundamentalistas de outro tipo, e se põe a mão no ouro negro necessário à reprodução da acumulação do capital em todas as partes do mundo capitalista. Atende-se, deste modo, a Deus e ao Diabo nas terras do mundo todo. Necessário que se ponha em relevo o fato de que as potências dominadas, dirigidas por oligarquias sem compromissos com as suas nações e que se consideram importantes e fortalecidas pelos seus aliados alémnacionais, assaltam autoritariamente as estruturas políticas e as fazem funcionar à imagem e semelhança dos seus pequenos interesses e dos grandes interesses de seus dominadores internacionais. Elas vendem a alma do seu povo, que o fundamentalismo e o terrorismo caem-lhe como uma luva, na medida do encontro de um álibi perfeito para suas ações de lesa cidadania. Certamente o pano de fundo conservador que se alarga com a presença no poder do presidente W. Bush, colocado no posto de comandante real do mundo e Chefe Supremo das Forças Armadas dos Cruzados, tem um caráter cristão fundamentalista e, para maior felicidade, seus inimigos estão representados por ricos terroristas e dirigentes estatais mulçumanos que contrariam as ordens do Senhor. Estes sentados não à mão direita de Deus Pai, mas sobre lençóis de petróleo, indispensáveis à Casa Branca no cumprimento de suas funções terrestres-transcendentais, devem e são tratados como inimigos do Senhor Deus. A casa Branca, a casa dos escolhidos, para as quais foi escolhida por obra e graça das formações político institucionais dos fundamentalistas, tão escolhida que ataca primeiro para justificar depois, pois, é infalível e cumpre uma ação divina, de salvar o velho ouro negro das mãos dos infiéis. Esta imbricação entre o capital e o fundamentalismo religioso deve ser compreendida dentro da perspectiva desta obra magistral a ética protestante e o espírito do capitalismo. Dentro de uma perspectiva pós-tradicional, a modernidade tem colocado para o mundo atual à racionalização da vida social e da política, de modo a permitir a construção de uma democracia baseada na generalização da cidadania. Todavia, o que não estava na perspectiva dos modernos era a transição no fim do século passado e que se estende pelo atual de uma sociedade industrial de bases nacionais para uma sociedade global informatizada, onde nos EUA já hegemônico, toma forma e assume a direção política de uma coalizão WEBER, Max, A ética protestante e o espírito do capitalismo, Pioneira, São Paulo, 1967.

123

Politica Democratica 17 - 25 de 123 123

26/3/2007 17:38:35


VI. Mundo

onde no comando lado a lado encontram-se grandes empresas e o populismo fundamentalista. Somos – liberais, homens de esquerda e outros, etc. – obrigados a constatar que foi necessário a produção de sérios acontecimentos contra a paz e o desenvolvimento social, para que se ter consciência que o mundo do progresso e da transformação, tão decantado pela modernidade, ainda está contido nos sonhos e nas utopias, perdendo espaço no mundo atual para os apelos de obvia imbecilidade do fundamentalismo cristão americano e de outros povos. Tudo leva a crer que busca os EUA uma outra realidade, a da construção de um mundo com uma, e somente uma direção, a direção dos EUA, onde todos os outros serão dominados, não a partir de alianças políticas, mas, desde a força do seu aparato militar, a partir do qual, pode-se, evidentemente, ratificar a submissão em tratados de caráter político. A ação político-militar do presidente W. Bush coloca todo o mundo diante de uma realidade nova, ou cria-se uma forte frente internacional de caráter liberal-democrático, liderada por blocos como o Mercosul a Comunidade Européia e outros, onde se alinhem os mais diversos países da comunidade mundial ou todos serão incluídos em um Projeto Político Religioso de natureza econômica que visa separar os homens em escolhidos, a elite americana e poucas outras no mundo, e os excluídos, todos os outros, feitos para contar nas estatísticas e, ao mesmo tempo, para servirem de justificativas para manutenção de ONGs de duvidosa eficácia. Neste momento coloca-se para a humanidade que a segunda parte do segundo mandato de W. Bush, iniciado com um aumento do efetivo de americanos no Iraque, onde a recente chacina cometida contra Sadan e outros líderes menos importantes, aponta para uma guerra suja, onde todos são literalmente iguais, e praticam suas brutalidades a luz do dia ou no escuro da noite, estejam sob o manto de um Estado Oficial, ou na clandestinidade das lutas econômicas encobertas em mantos fundamentalistas. Um e outros, na diversidade de suas igualdades fundamentalistas, prontos para que o mundo caia destruído, desde que do lado de lá.

* * *

124

Politica Democratica 17 - 25 de 124 124

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:35


Democracia, conflito social . e participação: a rebelião . dos jovens no Chile* Fernando de la Cuadra

A

chegada ao poder em 1990 do primeiro governo da Concertación de Partidos por la Democracia (CPD) se fez depois de 17 anos de ditadura militar. No entanto, a transição democrática não se deu em nenhum contexto de crise econômica – como no caso de outros paises da região – e o novo governo que tomou posse em março daquele ano, herdou não somente uma grande massa de excluídos deixada pelo modelo econômico neoliberal implementado de forma pioneira pelos militares, mas também ficou refém de um emaranhado de restrições institucionais impostas pela Constituição vigente e aprovada em plena ditadura (1980), assim como da existência de enclaves autoritários presentes no próprio sistema político. A saber: senadores designados, sistema eleitoral binominal, Conselho de Defesa do Estado, inamobilidade dos comandantes em Chefe das Forças Armadas etc. Ou seja, ainda que o Chile não apresentasse, stricto sensu, problemas de governabilidade (legitimidade, eficácia e eficiência), mostrava os limites impostos pelo tipo de passagem empreendido, chamado de transição pactuada. Este tipo de transição representou a consagração de uma política de negociação de “consensos” que levou os diversos atores políticos à procura de acordos pontuais sobre temáticas específicas e de forma muito gradual, negando, no entanto, o espaço para a discussão de aspectos substantivos para a construção de uma democracia plena. Portanto, já desde os inícios da transição democrática, ficou em evidência a timidez por parte de alguns sectores democráticos em desmontar a estrutura institucional e a Constituição herdada dos militares. Esta atitude teria sua origem na “aprendizagem traumática” da classe política chilena, que optou por uma saída negociada e instrumental, livre das dimensões de confronto do passado. A síntese do ideário segundo o qual deve avançar-se para a plena democracia em *

Excertos de um longo ensaio do autor sobre a atual realidade do Chile após a retomada do processo democrático naquele país andino. Seleção feita pela Editoria de PD.

125

Politica Democratica 17 - 25 de 125 125

26/3/2007 17:38:35


VI. Mundo

forma “lenta e gradual” (como costumavam afirmar os generais brasileiros) obedeceu a uma atitude negativamente negociadora na qual se está, finalmente, disposto a abdicar de valores caros à democracia, tais como a representação das minorias, participação ampla da cidadania, subordinação das forças armadas ao poder civil, etc. Esse estilo de fazer política – segundo os termos definidos pela transição – e que procura finalmente a consagração de acordos harmônicos e ordenados, recebeu o nome de democracia dos consensos. A aversão de um enfrentamento decorrente da aplicação de um novo projeto nacional contribuiu poderosamente para não impulsionar desde o começo do governo Aylwin, aquelas reformas constitucionais necessárias para superar os enclaves autoritários. Assim, a Concertación decidiu superar as “feridas” do passado para dedicar-se à tarefa de construir uma nova nação, sustentada nos valores da reconciliação e o perdão, tal e como vinha sendo sugerido por alguns setores da Igreja Católica. Os diversos governos da CPD incorporaram não somente este roteiro de conciliação e reencontro, mas, no seu bojo, consagraram também um projeto minimalista de pequenas transformações econômicas, políticas e sociais para o país. Na sua totalidade, o projeto neoliberal quase não foi alterado, salvo algumas ações específicas e pontuais, que lhe concedem um papel de maior relevância ao Estado. Em poucas palavras, poderia dizer-se que os governos da CPD têm marcado uma continuidade com relação aos feitos do governo militar, principalmente em matéria econômica: manutenção dos equilíbrios macroeconômicos, estabilização monetária, geração de superávit fiscal, abertura para o exterior, aproveitamento das vantagens comparativas, flexibilização do trabalho, etc. No âmbito político, salienta a vigência da Constituição promulgada em plena fase ditatorial (1980) e a existência do sistema binominal pelo qual se institucionaliza a ausência de representação dos partidos de menor tamanho. Se bem a atual mandatária tenha assinalado a possibilidade de convocar um plebiscito para dirimir este problema que arrasta a democracia, até agora não se vislumbram os termos concretos nos quais se realizaria este plebiscito nem os prazos estabelecidos na agenda do governo. Com respeito à esfera das políticas sociais, os últimos governos da CPD tampouco têm respondido às grandes expectativas que tinha a maioria do povo chileno. Se bem o gasto social aumentou no último qüinqüênio, ele se orienta pelo princípio da focalização, mantendo uma parte importante do funcionamento da educação, saúde, previ126

Politica Democratica 17 - 25 de 126 126

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:35


Democracia, conflito social e participação: a rebelião dos jovens no Chile

dência, moradia e serviços sociais em geral, em mãos do setor privado, reforçando o caráter neoliberal de tais políticas que, por último, só vão sofrer mudanças visando sua maximização e não para proceder a sua reestruturação. A falta de resolução dos problemas sociais e especialmente da persistência da desigualdade social e o vácuo deixado pelos governos concertacionistas, criou um fato tanto paradoxal quanto inédito: conseguir a façanha de pôr nas mãos da direita o levantamento da bandeira da justiça social como sua principal proposta para o país. Por sua parte, é precisamente o fracasso demonstrado pelos governos da CPD para superar os problemas de desigualdade que finalmente acabou convocando e mobilizando os estudantes secundaristas, num primeiro sinal de alerta para o governo Bachelet.

A marcha dos pingüins: uma breve síntese Dentre os conflitos sociais enfrentados pelo novo governo sob a presidência de Michelle Bachelet, o gerado pelo movimento estudantil secundarista é, sem dúvida, o mais significativo. No período da transição democrática iniciado em 1990, o movimento estudantil secundarista avocou-se principalmente à tarefa de reconstruir seus centros de alunos no interior dos estabelecimentos educacionais, devido ao férreo controle exercido sobre estes pelas autoridades dos liceus nos anos da ditadura militar. Mas essa reconstrução não vinha do zero. Dito movimento evidenciou bastante vitalidade nos anos da maior repressão do regime de Pinochet, acumulando uma rica experiência de participação no processo de luta pela recuperação da democracia no país. Depois de algumas manifestações de certa monta nos últimos anos do governo Lagos, os secundaristas iniciaram, no final de abril de 2006, marchas e protestos pela gratuidade do passe escolar (vale transporte) e pela diminuição do valor de inscrição da Prova de Seleção Universitária (PSU). No inicio das mobilizações, calcula-se que participaram 10 mil estudantes. Ante este cenário, o governo reagiu da pior forma: começou a desqualificar seus artífices. O conjunto de atitudes e atos do governo tornou evidente sua falta de tino para enfrentar o conflito. Membros do governo definiram estas mobilizações como o produto de mentes alucinadas ou imaturas de jovens rebeldes e que as sucessivas convocatórias só seriam acatadas por um grupo bem minoritário. Não só desconheciam a legitimidade das reivindicações dos estudantes, mas também criminalizaram seus atos, chamando-os de vân127

Politica Democratica 17 - 25 de 127 127

26/3/2007 17:38:35


VI. Mundo

dalos e violentos, discurso que foi amplamente difundido e apoiado pela imprensa conservadora. A partir desse exame, se criaram as condições para justificar a ação das forças policiais que reprimiram ferozmente as manifestações de rua, com o consentimento ou a omissão do Executivo. Deste modo, o diagnóstico que faziam as autoridades, amplificado pelos meios de comunicação, era que se estava frente a um movimento estudantil permeado de ações com o objetivo de delinqüir e cujos dirigentes estavam sem capacidade de organização e legitimidade para deter os atos de violência produzidos nas principais cidades. Após 10 dias de manifestações massivas e do recrudescimento da repressão policial, com centenas de estudantes detidos, o conflito explodiu no interior do governo que, como medida de emergência buscando sair da crise, determinou o afastamento do chefe da Polícia Metropolitana. Durante o mês de maio, os estudantes mudaram de táctica. No início, as mobilizações se realizavam na rua, mas devido à desordem crescente e principalmente ao grande número de feridos e detidos, os jovens passaram a ocupar as escolas. Desta forma, o movimento ganhou inusitada força e os alunos paralisavam suas atividades escolares, com mais de 100 mil entrando em greve e em torno de 100 colégios ocupados. Segundo informações da imprensa, em fins desse mês, a rebelião dos jovens se estendeu por todo o país e foi agregando também o apoio de outros setores (estudantes universitários, professores, profissionais) chegando a mobilizar aproximadamente um milhão de pessoas (30/5), no maior protesto estudantil de que se tem memória nos últimos anos. Finalmente, e devido ao fracasso nas conversações com o governo os estudantes decidiram convocar uma jornada de paralisação nacional para começos de junho (dia 5), à qual se somaram os estudantes universitários, Sindicato dos Professores, Central Unitária de Trabalhadores (CUT), Associação Nacional de Empregados Fiscais (ANEF), Confederação Nacional de Trabalhadores da Saúde (CONFENATS), Associação Nacional de Funcionários de Impostos Internos (Receita) e outras organizações de diversas categorias. Nesse momento se produziu uma virada estratégica. Na medida em que o conflito começou a se alastrar pelo país e que novos atores foram somando-se ao movimento, as demandas ampliaram-se em prol de reformas de caráter estrutural, como a reformulação da Jornada Escolar Completa (JEC) e a extinção da Lei Orgânica Constitucional do Ensino (LOCE) promulgada (literalmente) no último dia do regime militar (10/03/90). Esta lei permitiu, entre outras coisas, que a educação estatal fosse transferida dos liceus públicos, sob controle do governo central, capaz de manter boa qualidade do ensino, para os municípios. 128

Politica Democratica 17 - 25 de 128 128

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:36


Democracia, conflito social e participação: a rebelião dos jovens no Chile

A ineficácia e a falta de recursos demonstrada pelos governos locais atuam diretamente no detrimento da qualidade do ensino das escolas municipais, frente aos colégios privados. Por esse motivo, um dos principais slogans que surgiu no calor das mobilizações foi: “exigimos maior intervenção do Estado no sistema de educação; a educação é um direito e não um privilegio.” Ele representa claramente o apelo dos estudantes por uma educação gratuita e de qualidade, visto a enorme brecha entre o ensino privado e o municipal. A relevância e dimensão crescentes adquiridas pelos protestos colocaram em xeque o governo, tendo este finalmente decidido negociar com os “revoltosos” e convidá-los a participar na formação de um “Conselho Assessor Presidencial para a qualidade da Educação”, cujo objetivo foi elaborar uma proposta que conciliasse os diversos setores em conflito, avaliando a pertinência de fazer mudanças na Lei Orgânica Constitucional do Ensino. Este Conselho foi integrado por 74 membros, sendo que 12 deles foram representantes dos estudantes. No entanto, como foi exposto na oportunidade por um dirigente dos secundaristas: “Em torno de 70 por cento dos membros “adultos” do Conselho não compartem nossas idéias”. Este Conselho também foi questionado em repetidas oportunidades tanto pelos alunos como por outros setores da sociedade, em parte, pelo excessivo número de membros que comprometeu sua capacidade operativa, mas, sobretudo, pela desídia e indolência com que muitos integrantes do Conselho enfrentaram os trabalhos necessários para elaborar a proposta final. Em parte por essa falta de compromisso de muitos membros do Conselho, afetando o desempenho deste, e, especialmente pela ausência de perspectiva com relação ao seu documento final, os estudantes começaram a se mobilizar novamente no mês de outubro, dias depois que se deu a conhecer o informe do Conselho. Este segundo surto de agitação secundarista deveu-se ao descontentamento provocado entre os estudantes pela falta de progresso nas propostas. No entanto, a tática utilizada em maio, que consistia fundamentalmente na ocupação dos estabelecimentos educacionais, teve que ser revertida pela força dos fatos. A segunda onda de protestos foi marcada pelo ingresso das forças policiais nos liceus e colégios e o desalojamento dos alunos. Muitos foram detidos, ameaçados ou expulsos dos colégios, de forma que a assembléia estudantil determinou novamente ocupar as ruas para expressar suas demandas. Esta mudança de tática teve conseqüências imediatas em torno do grau de confrontação gerado entre os estudantes e as “forças da ordem”, reiterando-se as cenas de violência e repressão já ocorridas em maio. 129

Politica Democratica 17 - 25 de 129 129

26/3/2007 17:38:36


VI. Mundo

Finalmente, dias antes de sair à luz o informe final deste Conselho Especial, os secundaristas – logo seguidos pelos estudantes universitários e professores – decidiram não assinar a versão final que seria entregue à presidente Bachelet no dia 11 de dezembro. O argumento foi simples e direto: os alunos não se sentem representados pelos resultados expostos no texto final que, segundo eles, acaba por consagrar a visão mercantil da educação.

Buscando entender a réplica do governo A explosão das mobilizações estudantis que se iniciaram no mês de abril, continuadas em maio e reativadas em outubro, colocou em questão a capacidade da administração Bachelet de lidar com o conflito, sendo que, em primeira instância, a reação do governo foi a de negar o conflito e atribuir-lhe um caráter mais bem de expressão natural de rebeldia da “molecada”, que se extinguiria também naturalmente com o passar dos dias. No entanto, como é quase unanimidade nos dias de hoje, o tom displicente da autoridade e o especial trato que deu aos estudantes secundaristas (garotos sem experiência), se cristalizou finalmente numa errática combinação de política repressiva e paternalista, provocando, como se sabe, o efeito contrario do esperado: seu acirramento. Portanto, a aversão expressa pela administração chilena de lidar com seu primeiro conflito, derivou finalmente em sua negação. A tese do apaziguamento do conflito por meio de causas naturais e seu posterior esquecimento por parte dos estudantes e da comunidade nacional, fez com que o governo em lugar de assumir a iniciativa e acatar as reivindicações estudantis, ficasse esperando que o conflito se resolvesse por si mesmo, como se aqui também pudesse operar a “auto-regulação” do mercado. Expostas as medidas tomadas pelas autoridades para responder a estas mobilizações, surge imediatamente a pergunta: Por que um governo socialista que se sustenta no discurso da cidadania e da participação acabou reprimindo com violência policial os estudantes? O que explica essa espécie de paralisia decisória que teve o governo com relação a um conflito já declarado? Como é que diversas autoridades enfrentaram esse conflito de maneira tão errática? A seguir tentaremos responder estas questões a partir da formulação de algumas chaves explicativas que nos permitam entender, ainda que tentativamente, a conduta assumida pelas autoridades.

130

Politica Democratica 17 - 25 de 130 130

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:36


Democracia, conflito social e participação: a rebelião dos jovens no Chile

A brecha geracional Uma primeira e mais óbvia indicação que podemos tirar da resposta do governo ante as expressões do movimento secundarista, é que a forma de compreender o conflito por parte do governo revela uma profunda brecha de concepções e visões de mundo entre as autoridades, as instancias decisórias de políticas públicas e os estudantes, que se traduz na negação da qualidade de sujeitos políticos e de interlocutores válidos por parte dos secundaristas e com isso a incapacidade para entender a ação coletiva por eles empreendida. Esta incapacidade demonstrada pelas autoridades do governo e pela classe política não é exclusividade deles. Esta percepção dos jovens como “moleques” que gostam de provocar barulho é também compartida por outros setores da sociedade. Se bem que os jovens desempenharam um papel importante nas lutas pela democratização do país, por meio de inúmeras manifestações e protestos, na fase de transição democrática, este setor foi estigmatizado por parte importante da sociedade chilena como um ente passivo e apático. Desta maneira, virou um lugar comum dizer que os jovens da era Pós-Pinochet era um grupo anódino de sujeitos que “não estavam nem aí” com o que acontecia no país e não demonstrava nenhum interesse pelas questões sociais e por participar nos assuntos políticos. O indicador indiscutível de tal assertiva era a expressiva quantidade de jovens que não estavam inscritos nos registros eleitorais: um milhão e meio de jovens, que representavam quase 70% do eleitorado com menos de 25 anos (18-25).1 A constatação estatística do desinteresse eleitoral foi lida como sintomática da indiferença política que encarnavam estes jovens, e diversos setores sociais e políticos consideraram que a solução para o problema da participação estaria na alteração (inversão) do sistema até agora vigente, quer dizer, fazer a inscrição nos registros eleitorais de forma automática (no momento de obter a cédula de identidade) e transformar o sufrágio em um ato voluntário. Se os jovens estão inscritos, a lógica indica que eles vão comparecer ao sufrágio por uma espécie de inércia cidadã. Outra leitura desta apatia juvenil foi interpretar que a própria rebeldia sintomática desta fase da vida encontrava-se submergida no apelo a condutas que procuram o prazer individual ou de grupos pequenos (o chamado hedonismo da vida contemporânea). 1 O sistema que atualmente vigora no Chile consiste na inscrição voluntária nos registros eleitorais, mas com a obrigatoriedade de acudir as urnas para todos os inscritos, salvo expressa solicitação em contrário por razões de saúde, viagem, etc.

131

Politica Democratica 17 - 25 de 131 131

26/3/2007 17:38:36


VI. Mundo

No entanto, por outra parte, sabia-se que esta abulia era só aparente e diversos estudos empíricos demonstravam que os jovens sim queriam participar, mas não se encontravam interpretados pelos partidos políticos e pela classe política em geral. A ausência de inscrição nos registros não é um fiel reflexo do “estado de espírito” dos jovens, mas sim uma forma de expressar o descontentamento com a forma como a classe política e os partidos têm conduzido o processo de transição democrática.2 Os temas decorrentes deste tipo de preocupações são muito vastos e iriam desde a educação aos padrões de consumo, à família, à moral, à religião, à estética, aos meios de comunicação e às tecnologias do conhecimento. Mistura de rupturas com a herança de uma sociedade amedrontada e marcada pelo trauma ditatorial, esta juventude também é produto das lutas sociais e das tentativas de mudanças da história política nacional que, no fundo, representam uma homenagem da cultura política de seus pais, paulatinamente perdida no marasmo da vida moderna e no desmedido esforço e luta cotidiana pela sobrevivência.

A perspectiva economicista Uma segunda perspectiva de análise sobre a réplica das autoridades, se relaciona à dimensão econômica do problema. Quer dizer, para os funcionários do governo a emergência do conflito se deveria principalmente à ineficiente e imperfeita alocação de recursos destinados à educação, ou seja, na deficitária relação custo/beneficio. Para os economistas defensores desta idéia, o governo deveria maximizar o uso dos recursos alocados na execução da política social e dentre eles na educação, de forma que o resultado da matriz insumo/produto seja sempre positivo. O critério geral que orienta este ponto de vista é que os alunos são concebidos como um output do sistema, o produto necessário em termos de formação profissional e capacidades técnicas, de maneira que esses futuros trabalhadores qualificados possibilitem que nossas empresas sejam mais eficientes e capacitadas para competir em melhores condições nos mercados internacionais e que, em decorrência disso, a economia nacional cresça estável e sadia.

2 Alias, a crise de representação dos partidos não é um fenômeno recente nem exclusivo do Chile, ele se insere dentre das transformações operadas nos regimes políticos da região e nas novas formas de fazer política (dimensão técnica/profissional).

132

Politica Democratica 17 - 25 de 132 132

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:36


Democracia, conflito social e participação: a rebelião dos jovens no Chile

A partir desse marco de análise, o problema radicaria na má definição dos critérios para conferir os subsídios às escolas municipais e aos colégios particulares subvencionados, como das formas de controle sobre o uso desses recursos. Também explicariam o conflito os erros cometidos na designação e entrega dos créditos e bolsas de estudos aos estudantes das universidades, que também se somaram às manifestações. A solução surge então quase simultaneamente como o diagnóstico. Se o problema reside na melhor alocação dos recursos, o Estado deve velar para que o uso dos fundos públicos destinados à educação sejam bem gastos e para isso é preciso melhorar tanto as formas de transferência dos recursos quanto os métodos de fiscalização e monitoramento do orçamento destinado à política setorial de educação.

A sina da hiper-governabilidade Uma última – mas não menos importante – tentativa de explicar a falta de tato e de eficácia na resposta do governo tem a ver com o que, a nosso entender, pode-se chamar de hiper-governabilidade. Esta noção é construída a partir da idéia de que numa “democracia de consensos” não pode haver espaço para o dissenso, sobretudo quando este é expresso por vozes não “legitimadas” como interlocutores relevantes. A existência de experiências traumáticas no passado recente levou a que significativos e conspícuos atores da arena política expressassem que o melhor é sempre evitar o conflito, visto que as ditas frágeis democracias que estão transitando para sua plenitude, podem vir a ser ameaçadas pela existência da ingovernabilidade. A apreensão sentida pelo governo na participação e na explosão das demandas dos jovens pode ser entendida, em grande parte, como um produto do desmedido esmero depositado pelo governo na manutenção da governabilidade. A governabilidade, que emerge neste caso, possui mais bem um senso resolutivo. O governo tem se dedicado a sublinhar que os problemas da população são em sua grande maioria cobertos pelos órgãos competentes da máquina do Estado. Dando a entender que todas as demandas da cidadania podem ser resolvidas por um governo “legítimo e eficiente”, que não requer mobilizações da sociedade civil. Em tal caso, para alguns representantes do governo as pressões realizadas pelos movimentos sociais poderiam afetar tanto as finanças públicas como o bom desempenho da economia, e em conseqüência exercer um impacto direto sobre o índice de riscopaís. Assim colocada, a questão se apresenta como uma espécie de 133

Politica Democratica 17 - 25 de 133 133

26/3/2007 17:38:36


VI. Mundo

falso dilema entre a satisfação de necessidades imediatas e a participação cidadã, dado que se torna prescindível esta última, uma vez que as carências da sociedade são detectadas e quantificadas com antecipação e posteriormente “tratadas” por quadros técnicos de alta competência. Por tanto, a principal preocupação do Estado parece orientar-se para a sustentação da capacidade de governar estimulando os movimentos sociais a manter um baixo perfil na sua demanda ou ação contestatória. Diferente da noção conservadora, neste caso não existe nenhuma intenção explícita de limitar a expressão de dita demanda, agora se enfatiza o caráter “impróprio” que ela possui, em virtude da capacidade que tem a autoridade de se antecipar às necessidades do povo e desta forma oferecer as soluções mais rápidas e adequadas a cada situação particular. Assim, o governo está premunido de equipes de expertos e de um conjunto de estudos que permitem abordar com efetividade e eficiência, as carências e dificuldades que atingem a população. É a manifestação mais perversa das boas intenções. Tal parece que o caráter da inclusão democrática da cidadania se restringiria a sua credencial de “beneficiários” de programas sociais, onde a dimensão política dessa cidadania fica reduzida em seu apelo social e por essa via plenamente satisfeita. Ainda que no discurso oficial o governo central reconheça a importância da participação cidadã, nos fatos ela é muito reduzida. No papel, assinala-se que os cidadãos devem comparecer ativamente na execução dos diversos programas e projetos, que os sistemas de controle e de prestação de contas das autoridades representam um componente fundamental da democracia ou que não se pode construir democracia sem a ingerência dos cidadãos, mas na realidade os governos da CPD não têm estimulado sob nenhuma circunstancia a participação efetiva, – e muitas vezes incômoda – das pessoas nas diversas arenas onde ela deve-se expressar. Em rigor, a autoridade tem propiciado o desânimo por parte dos atores para representar seus interesses, baseando-se para isso na falsa concepção de que a participação é dispensável.

Reflexões finais Esta rebelião dos pingüins constitui uma importante chamada de atenção e, porque não dizer, uma oportuna remexida nessa espécie de pasmaceira auto-complacente em que se encontra a sociedade chilena. Os jovens hoje estão se rebelando contra essa ordem social elitista imposta “desde cima” e sua mobilização não só pode 134

Politica Democratica 17 - 25 de 134 134

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:36


Democracia, conflito social e participação: a rebelião dos jovens no Chile

ser pensada como uma luta por introduzir melhoras na educação, mas, sobretudo, como uma critica radical ao projeto de país que se vem construindo. Como acertadamente assinalavam os próprios estudantes a solução a suas demandas não pode limitar-se ao âmbito da educação. Qualquer tipo de solução deve partir necessariamente por estabelecer, um questionamento global da estrutura econômica, cultural, social e política existente no Chile. Assim, as mobilizações e demandas expressas por este grupo de jovens que não superam os 18 anos podem representar uma forma de luta contra-hegemônica que não somente questiona o modelo educativo mercantil que impera no país, mas que fundamentalmente passa a interrogar o conjunto do paradigma neoliberal imposto pela ditadura e administrado com “êxito” pelos sucessivos governos da Concertación. Por outro lado, a perseverança mostrada pelos estudantes em participar na elaboração de propostas que visam solucionar o problema da educação põe em dúvida não apenas a capacidade governamental de resolver a crise educativa mediante o concurso de “expertos”, como também recoloca a importância da participação política e da emergência do conflito como valores inalienáveis da democracia. O que virá a acontecer daqui para a frente é uma incógnita e ainda o conflito pode-se estender por muito tempo. Mas ainda assim nos atrevemos a pressagiar que a semente lançada por este movimento pode significar o início de um processo germinal de elaboração de uma alternativa perante o modelo hegemônico existente, por meio de sucessivas mudanças moleculares num cenário de guerra de posições, transformando sua luta particular num processo de mobilização geral que envolva finalmente o conjunto da sociedade chilena na construção de um novo projeto nacional, mais eqüitativo, mais inclusivo e mais democrático.

***

135

Politica Democratica 17 - 25 de 135 135

26/3/2007 17:38:37


O socialismo venezuelano . do século XXI Dina Lida Kinoshita

A

s oligarquias venezuelanas foram responsáveis pela incrível corrupção e desperdício nos vultosos ingressos oriundos da exportação do petróleo nas décadas de 70 e 80 (“bonanza petrolera”) do século passado. No fim dos anos 80, o presidente Carlos Andrés Perez teve que negociar com o FMI um pacote econômico muito duro para fazer frente à queda dos preços do petróleo no mercado internacional. Isto acarretou o aumento interno dos preços da gasolina e dos bens de consumo o que irritou as massas e, em fevereiro de 1989, ocorreu uma revolta popular em Caracas que ficou conhecida como o Caracazo. Esta rebelião foi esmagada pelo exército com um saldo de 300 mortos segundo dados oficiais e mais de 1.00 segundo dados de ONGs e partidos políticos de oposição. Na esteira deste processo o coronel Hugo Chávez encabeçou em 1992 um frustrado golpe militar contra Carlos Andrés Perez que lhe custou alguns anos de prisão. Na ocasião, o senador Rafael Caldera (pouco depois seria presidente da República) proferiu um discurso condenando a tentativa golpista, e alertando, porém, que não podia haver uma democracia na Venezuela enquanto perdurasse a fome e a miséria e as pessoas tivessem que assaltar os supermercados. Nas eleições presidenciais de 1998, o povo venezuelano defrontouse com o vazio político devido à corrupção, mas também ao esgotamento do projeto político dos partidos tradicionais, a saber: a Acción Democrática (AD), partido social-democrata, que ao passar do tempo foi adquirindo características populistas, e o Comité de Organización de Política Electoral Independiente (COPEI), partido social-cristão. Havia ainda candidatos singulares como a ex-miss venezuelana. Foi neste contexto que Hugo Chávez foi eleito por uma avassaladora maioria embora relativa uma vez que o voto é facultativo e só uns 30% dos eleitores realmente votam. Logo após a posse, o Congresso promulgou uma nova Constituição e Chávez foi reeleito em 2002; houve uma tentativa frustrada de golpe em 2003. Em seguida,a oposição convocou o referendo revogatório em 2004.

136

Politica Democratica 17 - 25 de 136 136

26/3/2007 17:38:37


O socialismo venezuelano no século XXI

O triunfo de Chávez no referendo deu-se graças aos excedentes da exportação de petróleo que têm sido destinados a programas sociais semelhantes aos implantados pelo governo Lula no Brasil. O petróleo continua sendo até o presente a maior fonte de divisas na economia venezuelana (da ordem de 80%) sem que bases materiais mais sólidas estejam sendo construídas e, apesar da retórica antiimperialista e antiamericana, os EEUU continuam sendo o maior comprador do petróleo venezuelano. Logo após o referendo de 2004, a esquerda democrática mundial reconheceu o triunfo de Chávez, mas não lhe deu um cheque em branco. Exortou-o “a superar a aguda polarização social e política vigente, e a demonstrar que governaria para todos os venezuelanos. Isto exigiria muitas negociações e acordos reiterando o compromisso democrático e os princípios essenciais do Direito Internacional...”, foram criticadas “as formas caudilhescas e populistas de governar, o desprezo às instituições republicanas e a ausência de um partido político que lhe desse sustentação e governabilidade”, conforme carta recebida pela autora, do deputado Cuauthemoc Sandoval Ramírez, do Partido de la Revolución Democrática (PRD), do México que havia sido observador internacional naquela ocasião. Por sua vez, em 2005, nas últimas eleições parlamentares, a oposição cometeu um grande equívoco estratégico ao boicotar o pleito alegando falta de garantias. Em dezembro de 2006, Chávez foi eleito com uma maioria expressiva num processo eivado de irregularidades. Nesta oportunidade, fui observadora internacional do processo eleitoral e a presença de militares armados em todos os locais de votação me pareceu muito intimidadora e antidemocrática. Só havia visto situações semelhantes nas zonas ocupadas da Palestina e nas zonas de conflito colombianas. Os militares brasileiros não ousaram fazê-lo no período ditatorial de 1964-85. Chávez acabou assumindo a presidência por um terceiro mandato. O centro e a direita venezuelana criaram novos partidos para apresentar-se no pleito de cara nova. Os votos dos dois partidos tradicionais migraram para Un Nuevo Tiempo e Primero Justicia que tiveram votações muito expressivas. A esquerda venezuelana dividiu-se nesta eleição: a Izquierda Democrática (ID), e o Movimiento al Socialismo (MAS), partido socialista, recém-ingresso na Internacional Socialista num processo de renovação desta entidade internacional, apoiaram o candidato oposicionista, Manuel Rosales, e sofreram uma derrota acachapante; enquanto isso os partidos da esquerda tradicional que não prezam a democracia como valor universal tiveram um grande crescimento. 137

Politica Democratica 17 - 25 de 137 137

26/3/2007 17:38:37


VI. Mundo

A esquerda democrática venezuelana vem denunciando o cerceamento à liberdade de expressão e os traços militaristas e fascistóides além das políticas compensatórias da Escola de Chicago que atingem vários milhões de pessoas sem tirá-las da pobreza, ao contrário, mantendo-as na pobreza. Pavimentado por um Congresso totalmente favorável a ele, o ato mais recente do presidente Chávez foi solicitar à Assembléia Nacional plenos poderes para passar a governar por decretos e construir o “socialismo do século XXI”, uma mistura eclética de várias teorias sem definição. Este pleito já foi aprovado pela Assembléia Nacional em dois turnos. A experiência do “socialismo real” evidenciou a impossibilidade de construir o socialismo sem liberdade e democracia. A superação do capitalismo por uma sociedade pacífica, mais justa, libertária e solidária deve ser uma construção das grandes massas e não um processo de cima para baixo. Por outra parte, Salomão Malina, último presidente do PCB e presidente de Honra do PPS, afirmava que “os processos autoritários na América Latina podiam assumir novas formas distintas dos regimes implantados nos anos 60 e 70 do século passado”. Aliás, o regime de Alberto Fujimori, no Peru, pode ter sido um primeiro exemplo. Mas, nunca é demais lembrar que, apesar da Constituição democrática promulgada em 1936 na URSS, Stalin pôde perpetrar os Processos de Moscou dos anos 30 e todos os demais crimes posteriores. A outra experiência totalitária que não se pode esquecer, ocorreu na Alemanha em crise nos anos 30. Hitler, apoiado pelo grande capital e pelo lumpen proletariat, base social semelhante às de Chávez e Lula, assumiu o poder depois que o seu partido, que também tinha socialismo no nome (Nazional Sozialismus – NAZI), ganhou as eleições. Hitler tinha grande apoio popular até a virada na II Guerra Mundial, jamais revogou a Constituição de Weimar e só governava por decretos e pôde perpetrar os crimes mais hediondos. Marx afirmou que a História só se repete como farsa, mas sempre é bom lembrar dos fatos para saber onde nos encontramos e para onde caminhamos.

***

138

Politica Democratica 17 - 25 de 138 138

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:37


VII. Vida Cultural

Politica Democratica 17 - 25 de 139 139

26/3/2007 17:38:38


Autores Regina Dalcastagnè

Professora de Literatura da UnB e pesquisadora do CNPq

Marcus Alves

Antônio Marcus Alves de Souza é doutor em Sociologia (UnB). Autor de Cultura no Mercosul: uma política do discurso (ed. Plano/FAP) e Cultura rock e arte de massa. Ed. Diadorim. maalves@terra.com.br

140

Politica Democratica 17 - 25 de 140 140

26/3/2007 17:38:38


A construção do feminino . no romance brasileiro Regina Dalcastagnè

O

corpo feminino é um território em permanente disputa. Sobre ele se inscrevem múltiplos discursos – vindos dos universos médico, legal, psicológico, biológico, artístico etc. – que não apenas dizem desse corpo, mas que também o constituem, uma vez que normatizam padrões, sexualidade, reprodução, higiene. A questão é que esses lugares legítimos de enunciação ainda são ocupados predominantemente por homens, instalados, é claro, em sua própria perspectiva social. A dificuldade surge porque, mesmo que sejam sensíveis aos problemas femininos e solidários, os homens nunca viverão as mesmas experiências de vida e, portanto, verão o mundo social a partir de uma perspectiva diferente. E, como “o olhar não dobra a esquina”, alguma coisa sempre se perde. Isso não é diferente na literatura. Segundo pesquisas realizadas na Universidade de Brasília – que se debruçaram sobre todos os romances publicados pelas principais editoras brasileiras da área (Companhia das Letras, Record e Rocco) nos últimos 15 anos – não chega a 30% o número de escritoras editadas. O que vai dar também em uma sub-representação das mulheres como personagens em nossa ficção. As pesquisas mostram que menos de 40% dessas personagens são do sexo feminino. Além de serem minoritárias nos romances, as mulheres também têm menos acesso à “voz”, isto é, à posição de narradoras, e estão menos presentes como protagonistas das histórias. Há uma diferença significativa entre a produção das escritoras e dos escritores. Só como exemplo, em obras escritas por mulheres,

141

Politica Democratica 17 - 25 de 141 141

26/3/2007 17:38:38


VII. Vida cultural

52% das personagens são do sexo feminino, bem como 64% dos protagonistas e 77% dos narradores. Para os autores homens, os números não passam de 32% de personagens femininas, com 14% dos protagonistas e 16% dos narradores. Fica claro que a menor presença das mulheres entre os produtores se reflete na menor visibilidade do sexo feminino nas obras produzidas. É possível especular que a maior familiaridade com uma perspectiva social determinada leva as mulheres a criarem mais personagens femininas e os homens, mais personagens masculinas – e o mesmo valeria para protagonistas e narradores. Resta explicar por que a discrepância é tão maior no caso dos escritores homens, que contam com menos de um terço de personagens femininas, enquanto as mulheres criam quase a metade de suas personagens no sexo masculino. A resposta talvez esteja na própria predominância masculina na literatura (e, imagina-se, em outras formas de expressão artística), que proporciona às mulheres um contato maior com as perspectivas sociais masculinas. Outra hipótese é que, diante dos avanços promovidos pelo feminismo, os homens se sintam cada vez mais “deslegitimados” para construir a perspectiva feminina. Quando nos aprofundamos no modo como as personagens femininas são representadas – e esse foi um segundo momento das pesquisas realizadas na UnB –, notamos disparidades ainda mais significativas, especialmente nas questões relacionadas ao corpo da mulher. Aqui, é preciso fazer um intervalo, e lembrar que a personagem do romance contemporâneo é objeto bastante escorregadio. Desde o início do século 20, ela vem se tornando, a um só tempo, mais complexa e mais descarnada. Deixou de ser descrita; perdeu, como disse a romancista francesa Natalie Sarraute, “todos os seus atributos e prerrogativas”, aí incluídos “suas roupas, seu corpo, seu rosto; e, sobretudo, o bem mais precioso de todos, a personalidade que é só sua”. Sendo assim, qualquer pesquisa que tenha a pretensão de traçar um perfil das personagens contemporâneas, vai esbarrar em um grande número de “sem indícios” – o que também é relevante, se nos dispusermos a analisar as razões para a ausência de determinadas descrições ou de temáticas no romance atual. Antes de entrar em detalhes, uma primeira observação que se pode fazer é que as mulheres constroem uma representação feminina mais plural e mais detalhada, incluem temáticas da agenda feminista que passam despercebidas pelos autores homens e problematizam questões que costumam estar mais marcadas por estereótipos de gênero. Tudo isso, é claro, quando as personagens são brancas; caso contrário as marcas de distinção são bastante reforçadas, até mais do que nas 142

Politica Democratica 17 - 25 de 142 142

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:38


A construção do feminino no romance brasileiro

obras masculinas. De acordo com a pesquisa que fez o mapeamento do romance brasileiro recente, 80% das personagens são brancas; negros, mestiços, orientais e indígenas, juntos, não chegam a 16%. E entre o total de 1.245 personagens analisadas há apenas 6% de mulheres não-brancas. Esses números são congruentes com o perfil do escritor e da escritora brasileiros, que são, em sua quase totalidade, brancos. Além da nítida diferença na representação de personagens brancas e não-brancas, às quais estão reservados os espaços mais subalternos na narrativa, há também uma variação grande entre protagonistas e coadjuvantes – tanto naquelas escritas por homens quanto por mulheres. As protagonistas sempre são mais complexas e trazem mais especificações do que as personagens secundárias, que costumam se aproximar mais dos estereótipos. Claro que para ter destaque em uma trama a personagem tende mesmo a ser melhor caracterizada, mas há aí um outro aspecto a ser levado em conta: o romance brasileiro contemporâneo é, em sua maioria, curto, não chegando a 200 páginas, o que dificulta a introdução e desenvolvimento de muitas personagens.

. Descrição Restringindo, então, a análise às protagonistas brancas – retiradas de uma amostra aleatória do total de personagens nessa posição dos últimos 15 anos –, é possível dizer que, quando escritas por homens, elas são em sua grande maioria jovens, não chegam sequer à meia idade, e têm como principal qualidade a beleza. São menos escolarizadas, dominam menos a norma culta, ocupam menos a posição de intelectuais e dependem mais dos homens financeiramente: são quase sempre donas-de-casa. Há poucas descrições de seu corpo, mas quando elas aparecem, identificam a mulher brasileira presente nas narrativas como relativamente magra, loira e com cabelos mais longos. Já as autoras representam mulheres em variadas faixas etárias, da infância à velhice, abarcando, portanto, diferentes experiências de vida. A principal característica de suas protagonistas é a inteligência – a menos que não sejam brancas, quando são apresentadas principalmente como belas –, o que faz subir todos os índices relacionados. Assim, as personagens femininas têm formação superior, e aparecem muitas vezes como mais escolarizadas do que seus cônjuges, o que não se verifica entre os autores masculinos. São mais independentes, embora, também em sua maioria, sejam donas-de-casa, e têm como principal talento a escrita – outra vez, é preciso destacar que essas são as mulheres brancas; nenhuma personagem não-branca escreve, elas

143

Politica Democratica 17 - 25 de 143 143

26/3/2007 17:38:38


VII. Vida cultural

têm como “talentos” a cozinha, a costura e a dança, o que demarca com clareza os espaços ocupados por cada grupo. O corpo da personagem é descrito com muito mais detalhe quando a autoria é feminina – elas estão dentro do peso ou são magras também, mas têm cabelos escuros e mais curtos. São mais preocupadas e descontentes com o próprio corpo do que aquelas construídas pelos homens. E são, principalmente, muito mais saudáveis. Aqui a diferença é impressionante, há um número muito grande de personagens doentes e com dependência química entre aquelas escritas pelos autores homens. O que aponta para uma representação mais fragilizada da mulher e combina com outros índices que as fazem mais dependentes.

Sexualidade Dentro dessa mesma linha, as autoras descrevem mais cenas sexuais e com maior detalhamento – talvez a necessidade de marcar um espaço de liberdade de expressão, quem sabe uma tentativa de, finalmente, mostrar o sexo pela perspectiva feminina. Se isso é alcançado é uma outra pergunta a ser feita. Suas protagonistas não só fazem sexo com mais freqüência, como possuem um número maior de parceiros do que aquelas escritas pelos homens (mas a homossexualidade praticamente não aparece como opção). Também fazem mais sexo com amantes. Aliás, entre as autoras, as mulheres traem mais e são mais traídas. O dado curioso é que, apesar da freqüência e da variedade, as protagonistas das mulheres se sentem bem mais insatisfeitas, em relação ao sexo e à própria sexualidade, do que as dos homens. Mais uma vez, há discrepância em relação às personagens não-brancas escritas por mulheres, que, ao contrário das brancas, gostam muito mais de sexo e estão mais satisfeitas com sua sexualidade. O índice de satisfação com a situação estabelecida é sempre muito maior entre as personagens de autores masculinos. Insatisfação, nesses termos, pode estar apontando para uma problematização maior da personagem, que não se reconhece em meio ao discurso dominante sobre si.

Maternidade E um dos discursos mais recorrentes sobre as mulheres é aquele que lhes atribui o papel de mãe, já normatizado e fixado em torno da noção do instinto materno, que serve para a naturalização dos pa-

144

Politica Democratica 17 - 25 de 144 144

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:38


A construção do feminino no romance brasileiro

péis de gênero e elimina a idéia do amor como algo a ser construído em uma relação. Entre os autores homens as personagens ocupam bem mais a função de mães, têm um número maior de filhos do sexo masculino, e mais filhos biológicos. As autoras mulheres, por outro lado, se diminuem o “fardo” da maternidade para as brancas, o impõem em dobro para as não-brancas, aumentando-lhes inclusive o número de filhos. O tipo de relação que a mãe estabelece com seus filhos também varia bastante de acordo com sexo do autor e a cor da personagem. Entre os homens, os sentimentos envolvidos são basicamente responsabilidade e plenitude, passando ainda pela indiferença. As mulheres trabalham em uma gama mais variada de sentimentos, que transitam entre responsabilidade, cansaço, fracasso e culpa, para as brancas. Já as não-brancas se dividem apenas e igualmente entre plenitude e cumplicidade, mais próximas portanto ao ideal do instinto materno. Indiferença não é, absolutamente, uma opção possível para as personagens escritas por mulheres. O mesmo não se pode dizer sobre os pais das crianças. Nos romances femininos, os pais estão quase sempre ausentes, ou, pior, não passam de estorvos para as personagens – números esses que se acentuam muito entre as não-brancas. Já nas narrativas masculinas, os pais estão, em sua grande maioria, presentes na vida dos filhos, tanto financeira quanto emocionalmente.

Ausências e desejos Mas é outro tipo de ausência que chama a atenção nos romances contemporâneos: aborto, problemas com fertilidade e violência doméstica são temas silenciados, inclusive pelas autoras. Parece ser mais fácil atacar os tabus relacionados à sexualidade feminina, o que já é feito, de algum modo, na mídia em geral, do que representar, por exemplo, o sentimento de perda causado por um aborto involuntário ou mesmo voluntário, bem como o estigma que pesa sobre aquelas que passaram pela experiência, comum entre tantas mulheres. Encerrando, há dados reveladores sobre o que querem as mulheres em nossa literatura, ou pelo menos sobre o que se espera que elas queiram. Se para os autores masculinos elas continuam sonhando com a constituição de uma família, indício congruente com vários outros que isolam as personagens femininas no espaço doméstico, entre as autoras há um deslocamento interessante: elas sonham é com tranqüilidade. A constituição de família aparece bem atrás, dividindo

145

Politica Democratica 17 - 25 de 145 145

26/3/2007 17:38:39


VII. Vida cultural

espaço com a ascensão profissional, a satisfação física, as mudanças sociais e a riqueza. Apenas as personagens não-brancas estão, na grande maioria, preocupadas com a constituição de uma família.

Enfim Diante desses dados, resta esclarecer que o romance brasileiro contemporâneo possui caráter preponderantemente referencial. As pesquisas indicam que as personagens dessas narrativas se deslocam por um chão literário em tudo semelhante ao da realidade brasileira atual – são raríssimas as obras que se voltam para o passado. O efeito de realidade gerado pela familiaridade com que o leitor reconhece o espaço da obra acaba por naturalizar a ausência ou a figuração estereotipada das mulheres, ou de diferentes grupos étnicos. Daí o descompasso, especialmente presente nas obras masculinas, entre a posição que as mulheres vêm conquistando na sociedade e a sua representação literária. Como foi visto, as autoras mulheres se mostram mais receptivas à complexidade da condição feminina, que é, sempre, plural. Se é legítimo entender que as mulheres formam um grupo social específico, na medida em que a diferença de gênero estrutura experiências, expectativas, constrangimentos e trajetórias sociais, por outro lado a vivência feminina não é una. Variáveis como raça, classe ou orientação sexual, entre outras, contribuem para gerar diferenciações importantes nas posições sociais das próprias mulheres – e elas, ao buscarem fazer suas próprias escolhas, ao aderirem a conjuntos de crenças e valores diversos, vão também perceber-se no mundo de maneiras diferenciadas. Os problemas e desafios que enfrentam são em parte comuns ao “ser mulher”, em parte específicos, em parte, até mesmo, opostos entre si. A riqueza desta condição feminina plural se estabelece exatamente na tensão entre unidade e diferença, e a questão que se coloca aqui diz respeito a quanto dessa riqueza está presente na narrativa brasileira contemporânea.

***

146

Politica Democratica 17 - 25 de 146 146

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:39


A “gramática Chico Alvim” do diálogo Marcus Alves

E

m uma foto doméstica, o poeta aparece com toda sua singeleza. Pernas cruzadas, riso leve, cabeça levemente inclinada como quem escuta um convidado da família para algum jantar. Talvez o poeta converse com alguém; talvez fale com a Clara ou talvez lembre de passagens da irmã, Mariângela, também poeta e admirada por Carlos Drummond de Andrade. O retrato descrito é do poeta Chico Alvim e revela um dado importante em uma possível interpretação de sua poesia: Chico está na maior parte das vezes em posição de escuta. É um homem que procura ouvir e vem desse gesto a força de sua poesia, construída como pequenas conversas na sala de jantar, na repartição pública, na fazenda ou na rua. Em uma leitura transversal de seu livro Poemas – coletânea editada pela Sete Letras/Cosacnaif - nos deparamos com variados exemplos desse tipo de poema. Vejamos, do livro Elefante, o poema “Também, Aliás, Apenas”: Sai Passeia Faz o que quer Depois volta Eu lá sentada Nunca mais Se eu fosse homem Também queria morar junto Alguém que cuide de mim Não apenas de si Se encontrar um assim também caso. A economia e a precisão do poema aumentam a visibilidade do diálogo, da fala íntima em tom de queixa e de fofoca, que muitas vezes escutamos. Ouvimos, mas o nosso sentido não está totalmente liberto para escutar em sua profundidade. Presos ao emaranhado de ruídos urbanos, não realizamos a velha lição dos modernistas: ver 147

Politica Democratica 17 - 25 de 147 147

26/3/2007 17:38:39


VII. Vida cultural

com olhos livres; ouvir com sentido. Chico consegue fazê-lo e amplifica a significação da conversa. Até os diálogos infantis ganham uma nova perspectiva em sua poética: Tetéia Quem te deu esse brinquinho? Comprei lá na feirinha do Gaminha. Múltiplas vozes ganham uma perspectiva, uma existência, na poesia desse mineiro de Araxá: temos a figura da mulher, da amante, da criança, do político corrupto, do burocrata, do diplomata, do serviçal, do oportunista de plantão. Até as coisas e a natureza mostram suas vozes, capturadas por um microfone sem fio. “Em muitos poemas é como se houvesse um microfone circulando”, nos lembra o crítico Roberto Schwarz. (SCHWARZ, 1999, p. 205) Nessa atitude de capturar uma cena, uma fala e documentá-la, o poeta torna-se invisível e apenas a idéia, a coisa falada, sussurrada, ganha forma. Às vezes uma forma de poema piada. Em outros momentos não são os versos que têm riqueza, mas o título do poema. Uma palavra na qual repousa a maior densidade do poema. O título é estrutural na sua poesia e cria um deslocamento de sentido. Os versos não têm território definido. Não têm um lugar preciso, nem uma linha geográfica circunscrita. São falas que circulam soltas como em um salão de festas, porém fáceis e de rápida comunicação. Escreve Schwarz:

O que é dito é facílimo e quase nada, mas o conjunto, formado pelas vozes que contracenam, tem a complexidade da própria vida e esboça algo como uma fragmentária comédia nacional, interior e exterior. (SCHWARZ, 1999, p. 205)

Fragmentadas vozes, falas de um Outro disperso, anônimo - mas quando embasadas em um título se iluminam. Os títulos dessas falas lhe dão um sentido, avolumam o alcance e convidam o leitor para um jogo de discurso da própria sociedade. Vejamos: Olha Um preto falando Com toda a clareza e simpatia humana. 148

Politica Democratica 17 - 25 de 148 148

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:39


A “gramática Chico Alvim” do diálogo

É uma descrição de uma cena – lembro que Chico Alvim uma vez chegou a declarar que gostaria mesmo é de ser pintor – de um diálogo humano. Mas o imperativo “Olha”, desloca-o para o diferente e revela o não dito do ambiente pintado, descrito. O titulo do poema funciona como um mecanismo revelador entre o Indivíduo e a sociedade. Vemos algo semelhante em um outro “poeminha”, de apenas um verso, denunciador de toda uma tradição de um certo modo de agir na política brasileira: Argumento Mas se todos fazem.

Os títulos de Chico Alvim estão em uma espécie de justaposição com o verso e aumentam sua precisão. Chico é um poeta que se construiu sobre a idéia de exatidão, articulada contemporaneamente à angústia pela falta de tempo. Profissionalmente ligado à carreira diplomática, que ainda hoje é alvo de mitificações de toda espécie, o poeta aparece como um homem comum em sua lida com o tempo. Na entrevista citada ele diz:

O tempo do diplomata atualmente é uma coisa muito medida. Na verdade, temos hoje pouco tempo para tudo. O fato de eu escrever poemas tão curtos é um pouco fruto disso. É porque não tenho tempo. E o ritmo do poema e da vida contemporânea é distinto, você está sempre arrancado de um lado para outro, com aquela ansiedade, aquela angústia de que não dá continuidade a um tipo de produção mais calmo.

Duas questões chamam nossa atenção na fala do poeta. A primeira está associada à idéia de ausência de tempo criativo do indivíduo que o levaria à escrita de poemas curtos. O fim de uma era da contemplação, de uma vida burguesa, de um estilo boêmio. A segunda marca do discurso migra do indivíduo para um eu poético que assume a ausência de tempo enquanto ritmo e como estruturação do poema. A palavra sintética e o verso econômico ganham novas perspectivas porque ficam encerrados na lógica de uma vida subjetiva acelerada. Conforme entrevista de Chico Alvim a Carlos Marcelo e Sérgio de Sá “Chico passa tempo” in: jornal Correio Braziliense. Brasília, 26 de julho de 2003.

149

Politica Democratica 17 - 25 de 149 149

26/3/2007 17:38:39


VII. Vida cultural

Sua concretude não surge da procura pela palavra exata, como um exercício concretista, mas de uma fuga, de um deslocamento da subjetividade, de uma pressa, de uma fragmentação e de um registro do provisório. É Chico Alvim que completa: “No fundo é uma coisa de ritmo, que não é apenas o ritmo da fala. É o ritmo psicológico, da subjetividade.” Aqui é necessário observar que esse tipo de discurso não pode ser associado à idéia de uma poesia ingênua e sentimental porque centrada na subjetividade. Não é este o caso. Penso mesmo que a constatação feita pelo poeta repousa em um campo de pesquisa que pode nos dar pistas sinceras sobre os processos subjetivo-psicológicos e a criação. Lembro que Bakhtin, estudando o discurso do outrem, nos conduz à idéia de que o mecanismo desse processo não repousa na alma individual, mas na sociedade. Escreve Bakhtin, em determinado momento:

A língua não é o reflexo das hesitações subjetivo-psicológicas, mas das relações estáveis dos falantes. Conforme a língua, conforme a época ou os grupos sociais, conforme o contexto apresente tal ou qual objetivo específico, vê-se dominar ora uma forma ora outra, ora uma variante ora outra. (BAKHTIN, 1997. p. 147)

Trata-se, portanto, de entendermos a língua, a palavra, a escrita e o diálogo – discursivo ou poético – dentro de um quadro referencial histórico e dialógico. Na poesia de Chico Alvim identificamos uma possibilidade de estabelecimento de uma aproximação entre cultura e política que valoriza (ou exige) uma certa disposição do leitor para o diálogo. É como se existisse um dispositivo, na própria “gramática Alvim”, para aquilo que Bakhtin chamava “uma recepção ativa do discurso do outrem”, sendo que é essa recepção fundamental para o próprio diálogo.

***

150

Politica Democratica 17 - 25 de 150 150

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:39


VIII. Documento

Politica Democratica 17 - 25 de 151 151

26/3/2007 17:38:40


Politica Democratica 17 - 25 de 152 152

26/3/2007 17:38:40


I Congresso (de fundação) do PCB

O

nascimento do PCB se deu por meio de um congresso iniciado na cidade do Rio de Janeiro, no dia 25 de março de 1922, e concluído em Niterói, no dia 27, reunindo delegados dos grupos comunistas de Porto Alegre, Recife, São Paulo, Cruzeiro e das cidades-sede do evento. Seus fundadores foram nove trabalhadores (um barbeiro, dois funcionários públicos, um eletricista, um gráfico, dois alfaiates, e um operário vassoureiro, à frente o jornalista Astrojildo Pereira). Este fato histórico foi conseqüência natural da formação do proletariado e do desenvolvimento de suas lutas no Brasil, iniciadas na segunda metade do século 19, e ocorreu em decorrência da implantação da indústria no Sudeste. Sua fundação respondeu a uma exigência do movimento operário que já mostrara a carência de um partido político operário revolucionário. Seu objetivo, publicado no Movimento Comunista, periódico nacional mensal do partido, era “atuar como organização política do proletariado e também lutar e agir pela compreensão mútua internacional dos trabalhadores. O partido da classe operária é organizado com o objetivo de conquistar o poder político pelo proletariado e pela transformação política e econômica da sociedade capitalista em comunista”. Como se sabe, as condições de vida e de trabalho do operariado, em seu período de formação, eram bastante difíceis, com a jornada chegando a 13/15 horas por dia, sem direito a repouso semanal remunerado, aos domingos e feriados, nem direito às férias anuais; não havia contrato de trabalho, nem assistência médica. Para resistir a tudo isso, os trabalhadores começaram a se organizar. Inicialmente nas Associações de Socorro Mútuo, com fins assistenciais e de ajuda mútua em casos de doença, acidentes, velhice etc. Com o passar do tempo, essas associações foram se desenvolvendo e evoluindo para a formação das Uniões e Ligas Operárias que, no início do século XX, deram origem aos sindi153

Politica Democratica 17 - 25 de 153 153

26/3/2007 17:38:40


VIII. Documento

catos. Na medida em que a classe operária vai se organizando, as lutas por aumentos de salários e melhores condições de trabalho tornam-se mais freqüentes e sua principal arma é a greve. Ao lado das organizações sindicais e das lutas econômicas travadas, começam a surgir as organizações políticas. Em 1889, aparece, em Santos, o Círculo Socialista, que elabora o Manifesto Socialista ao Povo Brasileiro, baseado nas idéias de Marx e Engels. No ano seguinte, surge no Rio de Janeiro o Centro das Classes Operárias, que faz movimento pelo direito de greve. Ainda em 1990, o Centro Artístico do Rio de Janeiro transforma-se no Partido Operário. Em Fortaleza, no mesmo ano, surge também um Partido Operário. Em 1892, realiza-se no Rio o I Congresso Socialista, cujos participantes fundam o primeiro Partido Socialista Brasileiro, de vida efêmera. Em 1897, é lançado manifesto de um novo Partido Socialista Brasileiro, no Rio Grande do Sul. E, em 1902, surge, em São Paulo, o segundo Partido Socialista Brasileiro. Daí em diante, surgiram outros partidos, todos com vida curta. Em 1906, reúne-se o I Congresso Operário Brasileiro, no Rio, aí se defrontando duas tendências: a anarco-sindicalista, que negava a importância da luta política, privilegiando exclusivamente a luta dentro da fábrica através da ação direta. Repudiava ainda a constituição de um partido para a classe operária e via nos sindicatos o modelo de organização para a sociedade anarquista. A outra tendência era composta pelo socialismo reformista, que buscava a transformação gradativa da sociedade capitalista, lutava pela criação de uma organização partidária dos trabalhadores, e no nível do Estado, utilizava-se da luta parlamentar. Eram, pois, tendências em si bastante distintas, sendo mais forte a dos anarco-sindicalistas. De 1917 a 1920, houve uma grande quantidade de greves em várias cidades e estados, como a de São Paulo, que paralisou a capital por completo. Eram lutas mais ou menos espontâneas, isoladas uma das outras. Os trabalhadores foram constatando, na sua experiência de luta, a necessidade de um centro coordenador, uma direção política, que só um partido independente de classe poderia imprimir a todo o movimento. Quebrado o ímpeto combativo das massas, patrões e governantes desencadearam uma onda de terror visando à liquidação do movimento. E, naquele então, tanto o anarquismo como o socialismo reformista – que direcionavam o movimento operário – revelaram-se incapazes de oferecer uma saída aos problemas postos, isto é, transformar as lutas de fundo econômico e as mobilizações espontâneas em um movimento político organizado.

154

Politica Democratica 17 - 25 de 154 154

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:40


I Congresso (de fundação) do PCB

Nesse sentido, começaram a surgir – principalmente em decorrência das repercussões da Revolução Russa no Brasil -, no seio das direções operárias, originárias do anarquismo, a discussão e a formação dos primeiros grupos comunistas que, em março de 1922, realizam um congresso e fundam o PCB. Era a ligação entre lideranças e ativistas do movimento operário com visão política nova que possibilitava o surgimento de um partido verdadeiramente revolucionário. Em seu período inicial, ele teve uma vida difícil e irregular (em julho, o partido é jogado na ilegalidade), indo aos poucos adaptando-se às duras condições da clandestinidade. E, ao mesmo tempo, travou renhida luta político-ideológica com o anarquismo, que tentava intrigar os comunistas com os trabalhadores ao chamar-lhes de políticos, como se fosse uma pecha de fundo negativista, e condenava o esforço do partido em unificar as ações dos sindicatos qualquer que fosse a orientação ideológica da liderança destes. Neste congresso fundador não houve uma resolução política, mas foram aprovadas pelos seus delegados as vinte e uma condições apresentadas pela Internacional Comunista, iniciando assim as relações entre o Brasil e o movimento comunista internacional. A seguir, o texto integral deste documento histórico. As 21 condições da Internacional Comunista: 1° A propaganda e a agitação quotidianas devem ter um caráter efetivamente comunista e conformar-se ao programa e às decisões da Terceira Internacional. Os órgãos da imprensa do partido devem ser redigidos por comunistas seguros, que tenham dado provas de devotamento à causa do proletariado. Não convém falar de ditadura do proletariado, como de uma fórmula aprendida e corrente; a propaganda deve ser feita de maneira que a necessidade dela resulte, para todo operário, para toda operária, para todo soldado, para todo camponês, dos fatos mesmos da vida quotidiana, sistematicamente anotados por nossa imprensa. A imprensa periódica ou diária, todos os serviços de edição devem ficar inteiramente submetidos ao Comitê Central do partido, seja este legal ou ilegal. E inadmissível que os órgãos de publicidade abusem da autonomia para sustentar uma política não conforme com a política do partido. Nas colunas da imprensa, nas reuniões públicas, nos sindicatos, nas cooperativas, por toda parte em que os partidos da Terceira Internacional tenham acesso, estes deverão combater sistematicamente e impiedosamente não só a burguesia, como também seus cúmplices, os reformistas de todas as gradações, mesmo sem experiência.

155

Politica Democratica 17 - 25 de 155 155

26/3/2007 17:38:41


VIII. Documento

2° Toda organização desejosa de aderir à Internacional Comunista deve regular e sistematicamente afastar dos postos de responsabilidade, pequena ou grande, no movimento operário (organizações de partidos, redações, sindicatos, frações parlamentares, cooperativas, municipalidades) os reformistas e os centristas e substitui-los por comunistas provados – sem temer a substituição, sobretudo no começo, de militantes experimentados por trabalhadores mesmo sem experiência. 3° Em quase todos os países da Europa e da América, a luta de classes entra no período de guerra civil. Nestas condições, não podem os comunistas fiar-se na legalidade burguesa. É de seu dever criar por toda parte, paralelamente à organização legal, um organismo clandestino, capaz de no momento decisivo cumprir o seu dever revolucionário. Em todos os países em que, por motivo do estado de sítio ou de lei de exceção, não tenham os comunistas possibilidade de desenvolver legalmente toda sua ação, a concomitância da ação legal e da ação ilegal torna-se indubitavelmente necessária. 4° O dever de propagar as idéias comunistas implica a necessidade absoluta de sustentar uma propaganda e uma agitação sistemática entre as tropas, onde a propaganda aberta se torna difícil, em virtude de leis de exceção, deve-se fazê-la ilegalmente; recusar-se a isso seria uma traição ao dever revolucionário e por conseqüência incompatível com a filiação à Terceira Internacional. 5° Uma agitação racional e sistematicamente entre os camponeses é de toda necessidade. A classe operária não pode vencer se não for sustentada ao menos por uma parte dos trabalhadores dos campos (jornaleiros agrícolas e lavradores mais pobres), e se não conseguir neutralizar, por sua política, ao menos uma parte da camada mais atrasada do campo. A ação comunista nos campos é de uma importância capital neste momento. Ela deve ser feita principalmente por operários comunistas em contato com os camponeses. Recusar-se a cumpri-la ou confia-la a semi-reformistas duvidosos é o mesmo que renunciar à revolução proletária. 6° Todo partido desejoso de pertencer à Terceira Internacional tem por dever denunciar tanto o social-patriotismo confesso como o socialpacifismo hipócrita e falso; trata-se de demonstrar sistematicamente aos trabalhadores que, sem a destruição revolucionária do capitalismo, nenhum tribunal arbitral internacional, nenhum debate sobre a redução dos armamentos, nenhuma organização democrática da Liga das Nações poderão preservar a humanidade das guerras imperialistas. 7° Os partidos desejosos de pertencer à Terceira Internacional têm por dever reconhecer a necessidade de uma ruptura completa e defini156

Politica Democratica 17 - 25 de 156 156

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:41


I Congresso (de fundação) do PCB

tiva com o reformismo e a política do centro e preconizar essa ruptura completa entre os membros das organizações. Só com esta condição se torna possível a ação comunista conseqüente. A Internacional Comunista exige, imperativamente e sem discussão, essa ruptura que deve ser consumada no mais breve prazo. A Internacional Comunista não pode admitir que reformistas comprovados, tais como Turati, Kautsky, Hilferding, Longuet, Macdonald, Modigliani e outros tenham o direito de considerar-se como membros da Terceira Internacional e estejam nela representados. Semelhante estado de coisas emparelharia a Terceira Internacional à Segunda. 8° Na questão das colônias e das nacionalidades oprimidas, os partidos cuja burguesia possui colônias ou oprime nações devem observar uma linha de conduta particularmente clara e nítida. Todo partido pertencente à Terceira Internacional tem por dever: desvendar impiedosamente as proezas de seus imperialistas nas colônias, sustentar, não por palavras, mas de fato, todo movimento de emancipação nas colônias, exigir a expulsão das colônias, dos imperialistas da metrópole, alimentar no coração dos trabalhadores do país sentimentos verdadeiramente fraternais em relação à população laboriosa das colônias e das nacionalidades oprimidas e manter entre as tropas da metrópole uma agitação continua contra toda a opressão dos povos coloniais. 9° Os partidos desejosos de pertencer à Internacional Comunista devem sustentar uma propaganda perseverante e sistemática no seio dos sindicatos sobre o comunismo. Será do seu dever revelar a cada instante a traição dos social-patriotas e as hesitações do centro. Esses núcleos comunistas devem ficar completamente subordinados ao conjunto do partido. 10° Todo partido pertencente à Internacional Comunista tem por dever combater com energia e tenacidade a Internacional dos sindicatos amarelos, fundada em Amsterdã. Devem espalhar tenazmente no seio dos sindicatos operários a idéia da necessidade da ruptura com a internacional amarela de Amsterdã. Paralelamente devem concorrer com todo seu poder para a união internacional dos sindicatos vermelhos aderentes à Internacional Comunista. 11° Os partidos desejosos de pertencer à Internacional Comunista têm por dever proceder a uma revisão na composição de suas frações parlamentares, afastando os elementos duvidosos, submetê-los, não por palavras, mas de fato, ao Comitê Central do partido, exigindo de todo deputado comunista a subordinação de toda sua atividade aos interesses verdadeiros da propaganda revolucionária e da agitação.

157

Politica Democratica 17 - 25 de 157 157

26/3/2007 17:38:41


VIII. Documento

12° Os partidos pertencentes à Internacional Comunista devem ser edificados sob o princípio da centralização democrática. Na época atual de guerra civil encarniçada, o partido comunista não poderá executar seu papel se não for organizado da maneira mais centralizada, se não admitir uma disciplina militar e se seu organismo central não estiver munido de largos poderes, exercendo uma autoridade inconteste e gozando da confiança unânime dos militantes. 13° Os partidos comunistas dos países onde os comunistas militam legalmente devem proceder a depurações periódicas de suas organizações a fim de afastar os elementos interessados e pequenos burgueses. 14° Os partidos desejosos de pertencer à Internacional Comunista devem sustentar sem reservas todas as repúblicas sovietistas em suas lutas com a contra-revolução. Devem preconizar firmemente a recusa dos trabalhadores a transportarem munições e equipamentos destinados aos inimigos das repúblicas sovietistas, e sustentar, seja legal ou ilegalmente, a propaganda entre as tropas enviadas contra as repúblicas sovietistas. 15° Os partidos que ainda conservam os antigos programas social-democráticos, têm por dever proceder a uma revisão imediata dos mesmos e elaborar um novo programa comunista adaptado às condições especiais de seus países e concebido segundo o espírito da Internacional Comunista. É de regra que os programas dos partidos filiados à Internacional Comunista sejam confirmados pelo congresso internacional ou pelo Comitê Executivo. No caso em que este recuse sua sanção a um partido, este terá o direito de apelar para o congresso da Internacional Comunista. 16° Todas as decisões do congresso da Internacional Comunista, bem como as do Comitê Executivo, são obrigatórias para todos os partidos filiados à Internacional Comunista. Agindo em período de guerra civil encarniçada, a Internacional deve ser muito mais centralizada que a segunda internacional. A Internacional Comunista e seu Comitê Executivo devem ter em conta as condições de luta tão variadas nos diversos países e só adotar resoluções gerais e obrigatórias nas questões em que aquelas sejam possíveis. 17° Conforme a tudo o que precede, todos os partidos aderentes a Internacional Comunista devem modificar sua denominação. Todo partido desejoso de pertencer à Internacional Comunista deve intitular-se: Partido Comunista – S.X.I.C. – seção X (nacionalidade) da Internacional Comunista.

158

Politica Democratica 17 - 25 de 158 158

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:41


I Congresso (de fundação) do PCB

Esta questão de denominação não é uma simples formalidade; assume uma importância política considerável. A Internacional Comunista declarou uma guerra sem tréguas a todo o velho mundo burguês e a todos os velhos partidos social-democratas / amarelos. Importa, pois, que a diferença entre os partidos comunistas e os velhos partidos social-democratas ou socialistas oficiais que veneram a bandeira da classe operária seja mais nítida aos olhos dos trabalhadores. 18° Todos os órgãos dirigentes da imprensa dos partidos de todos os países, são obrigados a imprimir todos os documentos oficiais importantes do Comitê Executivo da Internacional Comunista. 19° Todos os partidos pertencentes à Internacional Comunista, ou que solicitam sua adesão, ficam obrigados a convocar (o mais depressa possível), o mais tardar, no prazo de quatro meses após o segundo Congresso da Internacional Comunista, um congresso extraordinário para pronunciar-se sobre estas condições. Os Comitês Centrais devem cuidar em que as decisões do segundo congresso da Internacional Comunista sejam conhecidas de todas as organizações locais. 20° Os partidos que queiram atualmente aderir à Terceira Internacional, mas que ainda não modificaram radicalmente sua tática, devem previamente cuidar em que os dois terços dos membros do seu Comitê Central e das instituições centrais mais importantes sejam compostos de camaradas que já antes do segundo congresso se tinham abertamente pronunciado em favor da adesão do partido à Terceira Internacional. Exceções podem ser feitas com a aprovação do Comitê Executivo da Internacional Comunista. O Comitê Executivo se reserva ao direito de estabelecer exceções para os representantes da tendência centrista, mencionados no parágrafo 7°. 21° Os aderentes ao partido que rejeitam as condições e as teses estabelecidas pela Internacional Comunista, devem ser excluídos do partido; da mesma forma os delegados ao congresso extraordinário.

***

159

Politica Democratica 17 - 25 de 159 159

26/3/2007 17:38:41


Politica Democratica 17 - 25 de 160 160

26/3/2007 17:38:41


IX. Ano Caio Prado Jr

Politica Democratica 17 - 25 de 161 161

26/3/2007 17:38:42


Autor Raimundo Santos

Autor do livro Caio Prado Jr. na Cultura PolĂ­tica Brasileira. Ed. Mauad: Rio de Janeiro, 2001.

162

Politica Democratica 17 - 25 de 162 162

26/3/2007 17:38:42


Na trilha de Caio Prado Jr. Raimundo Santos

N

este ano de 2007 celebramos o centenário do nascimento de um dos clássicos do pensamento social brasileiro. O que dizer de Caio Prado cujas dissertações sobre o Brasil, desde o seu primeiro ensaio de materialismo histórico (Evolução Política do Brasil, 1933), têm por tema nossas revoluções? Neste quinto ano seguido de governo das esquerdas militantes, recordemos, como uma homenagem ao ensaísta, o sentido publicístico da sua obra e o campo privilegiado de destino dos seus textos: o PCB e por extensão as demais esquerdas. Impressiona a disciplinada militância comunista do historiador ao tempo que ele mantinha independência intelectual (e política) em relação a não poucas teses do seu partido, dele discordando em vários momentos. Mencione-se o desencontro por ocasião dos acontecimentos de novembro de 1935, quando, à hora dos levantes militares, vicepresidente da Aliança Nacional Libertadora (ANL) – a mobilização de frente única que então se formava para intervir no pós-1930 –, Caio Prado viajava pelo Sul do país onde seria preso e depois deslocado para São Paulo. Especialmente expressivo é o affaire do chamado Comitê de Ação, nova saída à superfície, após as prisões de 1940 que haviam dizimado o PCB; articulação da qual Caio Prado foi um dos principais protagonistas. Recorde-se ainda sua atuação na Assem Em suas memórias, Manuel Batista Cavalcanti relatou que o Comitê de Ação fora uma iniciativa para retornar à ação política de frente única em torno da União Democrática Nacional (UDN), no ocaso do Estado Novo. Na bibliografia, o Comitê de Ação aparece como um movimento “liquidacionista” influenciado pelo PC americano que tivera àquela época áreas suas postulando a substituição da forma-partido comunista por outro tipo de associação.

163

Politica Democratica 17 - 25 de 163 163

26/3/2007 17:38:42


IX. Ano Caio Prado Jr.

bléia Constituinte do Estado de São Paulo, em 1947, quando experimentara a resistência da direção partidária a iniciativas reformistas que encaminhava no exercício parlamentar. Como intelectual de partido, Caio Prado interpelou as teses dos três principais congressos comunistas: no IV Congresso, à época da sua primeira convocatória de 1947 (o congresso só se reuniria em 1954); no V congresso de 1960 e, já sob ditadura, no VI congresso realizado entre 1966-67. Inclusive, desta feita, o historiador publicou uma espécie de síntese da sua obra, o opúsculo A Revolução Brasileira (1966), no qual justamente avaliava o sentido geral da teoria pecebista. Caio Prado manteve essa qualidade interpelativa operando em duas frentes – ao tempo que se movia dentro do mundo comunista, sempre construía vida publicística de superfície. Passados os piores anos da Guerra Fria, logo após o suicídio de Getulio, o historiador novamente emergiria à frente da Revista Brasiliense, em 1955. Durante quase todo o decênio seguinte, o empreendimento marcará a opinião pública de esquerda, firmando a boa tradição de publicações de intelectuais comunistas e não comunistas. Essa tradição será bem seguida depois pela Civilização Brasileira, de Ênio Silveira, e, por fim, pelas revistas Temas de Ciências Sociais e Presença, a última publicação de raiz comunista a trazer temário desafiante à nossa cultura política de esquerda entre 1983 e 1993, quando o socialismo real chegava ao fim. No entanto, as dissertações que o historiador produziu durante quase meio século não eram lidas como partes da interpretação de Brasil com a qual ele fundamentava sua teoria da revolução. A dissertação sobre o Brasil-Colônia, o seu capítulo mais aceito, desenvolvida em Evolução Política do Brasil (1933) e em Formação Contemporânea do Brasil (1942), não era vista como uma narrativa que conferia o sentido geral reestruturador que a revolução assumiria no Brasil. Os excursos sobre a revolução burguesa (em História Econômica do Brasil, 1945) também encontraram dificuldade em serem reconhecidos como partes do constructo de um ensaísta que se debruçou sobre nossa formação social com intenções revolucionárias. A esses excursos Caio Prado acrescentou instigantes, embora poucas, alusões ao por ele chamado capitalismo burocrático e ao Estado cartorial, na acepção de Hélio Jaguaribe (em A Revolução Brasileira e no seu adendo de 1977): referências que, em certo sentido, atualizavam sua imagem de Brasil originária. Lembrando esse seu tipo de interpelação, qual o lugar do historiador no PCB e nas demais esquerdas? Não obstante a trilha seminal que o converte num clássico da revolução, Caio Prado Jr. terá sua obra formulativa apropriada de maneira irregular. Ao mesmo tempo 164

Politica Democratica 17 - 25 de 164 164

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:42


Na trilha de Caio Prado Jr.

em que fundamentava o agrarismo com o qual o PCB construiria uma rede sindical no mundo rural, a partir da União dos Lavradores e Trabalhadores da Agricultura do Brasil (Ultab) e, depois, da Contag, e também oferecia – sem muita recepção – argumento a um reformismo que poria o PCB em melhores condições discursivas naqueles anos nacional-desenvolvimentistas, o militante era mantido à margem do pecebismo oficial. Doutra parte, Caio Prado teve alguns textos – especialmente A Revolução Brasileira – recolhidos por áreas, inclusive de dissidências comunistas, que depois de 1964 se radicalizaram e viram naquele opúsculo amparo à luta de confronto armado com o regime militar no qual iriam se envolver com alto custo. São essas passagens dissertativas – e não a posse de exclusividade marxista, para fins ideológicos ou científicos, como se viu em algumas áreas de esquerda nos anos 1960 e 1970 – que habilitam Caio Prado como ensaísta de nossa modernização de incorporação seletiva, classes e vida associativa débeis e cena política, como ele também dizia, superficial. É num terreno nacional como este onde teria curso nossa revolução, brasileira, como a chamava Caio Prado; formulada com base nas dissertações sobre nossa estruturação sob a forma da colônia de produção, sobre o desenvolvimento agrário-burguês e nosso industrialismo e sobre o renovamento do mundo rural por ele entendido como questão nacional. Nesse sentido, pode-se falar da obra caiopradiana como uma busca de uma teoria revolucionária, desde os primeiros escritos publicísticos (se já não nos artigos que escreveu em 1935, bem visível em “Os Fundamentos Econômicos da Revolução Brasileira”, de 1947, escrito para o IV Congresso já citado) até os textos referidos A Revolução Brasileira e o seu adendo). O marxista de São Paulo debruçar-se-ia sobre uma formação social que não se constituíra – esta marca percorre toda sua obra – com base em um processo de criação no próprio povo do mercado para sua produção, primeiro mercantil, depois burguesa moderna. Iria discernir que, diferentemente do industrialismo europeu e americano, aqui, o mercado se tornara a questão básica, enquanto a produção o fora para a Economia Política da industrialização clássica e para Marx. De acordo com Caio Prado Jr., essa circunstância mereceria toda atenção, como passo indispensável à tematização do desenvolvimento dos O clássico pensava na renovação do mundo rural como avivamento do nosso capitalismo débil ao modo americano, no sentido de que aqui também era possível buscar dinamismo em um Oeste (o rural) complementar a um Leste insuficientemente industrializado. Diferentemente da sua tradição, Caio Prado atribuía essa função a um protagonismo não-camponês assentado em reivindicações trabalhistas da força de trabalho dos grandes setores da agropecuária mobilizada por sindicatos.

165

Politica Democratica 17 - 25 de 165 165

26/3/2007 17:38:42


IX. Ano Caio Prado Jr.

países que se haviam formado, como o Brasil, na periferia capitalista, marcados por aquele traço primordial. Caio Prado chegaria a calibrar o marxismo brasileiro – abrindo sua Economia Política ao tema do consumo considerado numa acepção, digamos, nacional-popular – assim visando explicar uma formação social, ao mesmo tempo dependente (construída naquele sentido da colônia de produção) e contemporânea (industrializada de modo “superficial” e pouco incorporador). Dessa gênese e evolução, ele extrairá uma imagem do Brasil como uma formação social de modernização tardia e incompleta, particularmente de classe econômica débil e campo popular pouco coeso; tema este último inclusive já presente em Evolução Política do Brasil (1933) e descrito em Formação do Brasil Contemporâneo (1942). No entanto, a bibliografia crítica daquele realce “circulacionista” (no consumo, na população) não discernia que era ele que distanciava o marxismo de Caio Prado da sua tradição marxista-leninista. É esse marxismo que orienta as dissertações sobre o Brasil com as quais o historiador delinearia não só um programa de reformas reestruturantes do nosso capitalismo, como ainda, fiel à tradição leninista, enraizaria sua teoria revolucionária na economia, na luta de classes e no Estado, tomando-o, porém, como esfera de uma generalidade chamada a processar os “interesses da maioria da população”; noção esta última – repita-se – intercambiável com o tema da nacionalidade tal como ele o derivava daquele padrão civilizatório. Tampouco o publicista se confunde com a demiurgia muito freqüente no nosso primeiro ensaísmo clássico. Mesmo sem ter formalizado completamente o seu constructo, o historiador procuraria divisar impulso transformador em atores cujo potencial estaria dado pela dinâmica da vida nacional, deitava raízes no terreno dos interesses econômico-sociais e no associativismo permanente. Ao recortar o campo da ação revolucionária na interseção daquelas três dimensões – economia, classes e poder –, Caio Prado, por conta da fraqueza da vida produtiva nacional e da debilidade dos protagonistas, atribuía relevo à opinião pública, a qual ganharia força à medida que se desenvolvessem os “grandes debates nacionais” e manifestaria seu sentido renovador, quando tais debates se polarizassem em função dos “interesses da maioria da população”. Caio Prado mantém o argumento ao longo do tempo (pelo menos desde 1945, em História Econômica do Brasil) até 1977 (visível tanto em A Revolução Brasileira quanto no seu adendo desse ano). Chamam a atenção os artigos publicados na Revista Brasiliense, nos quais Caio Prado examinara a conjuntura dos anos nacional-desenvolvimentistas até o golpe de 1964 sob o prisma das dissertações sobre nossa contemporaneidade. É notável ver como em A Revolução Brasileira Caio 166

Politica Democratica 17 - 25 de 166 166

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:43


Na trilha de Caio Prado Jr.

Prado retoma o argumento: sob evolução espontânea, a industrialização substitutiva não alargaria “social e territorialmente” sua capacidade de incorporação já muito seletiva. Daí, aliás, o tema da integração percorrer todo esse volume. Esta visão de uma grande reestruturação da vida nacional diferia o pensamento do historiador dos padrões da esquerda daquela época cujas áreas mais militantes estavam fortemente marcadas pela idéia de revolução diruptiva e socialista em tanto alteração radical do regime de propriedade. Os publicistas que, a partir da Declaração de Março de 1958, iriam fundamentar no PCB a orientação de frente única permanente não advertiram que, além da sua visão do mundo rural, havia no clássico comunista outros suportes para o empreendimento do reformismo democrático. Não concediam valor teórico às dissertações caiopradianas que convergiam: a) na afirmação da idéia de revolução como um processo concretizável por meio da reestruturação do capitalismo brasileiro; e b) especialmente na substantivação de um reformismo forte, como se pode ver na argumentação exposta em Diretrizes para uma Politica Econômica Brasileira (1954), texto que, por assim dizer, preparara a plataforma da Revista Brasiliense. Recorde-se que, nesse opúsculo, interpelando aqueles tempos keynesianos e cepalinos, Caio Prado “traduziu” o sentido geral das reformas da revolução brasileira com base nas teses da interpretação de Brasil que disponibilizava a seu partido. Inclusive quando tematizava a postura do ator revolucionário na circunstância brasileira, até mesmo nas variações da conjuntura que aprecia nas páginas da Revista Brasiliense, Caio Prado sempre levava em conta as marcas da nossa modernização econômico-social inconclusa e as debilidades do campo popular. Nisto estaria próximo da ressignificação que a hipótese prussiana – como se sabe, a conceituação leniniana que estimulava o PCB a valorizar a política e a democracia política – experimentaria depois quando melhor se recebeu os conceitos gramscianos entre nós (revolução passiva, segmentação social e corporativismo; hegemonia, guerra de posições etc.). Essas são conjecturas com as quais queremos revisitar o marxismo político de Caio Prado, neste ano de celebração do seu centenário; marxismo político ao qual o historiador chegara tendo que remontar a mentalidade marxista-leninista e a adesão ao socialismo real que partilhava com o seu mundo comunista como ideologia ao tempo que as mantinha suficientemente longe das suas dissertações sobre o Brasil.

*** 167

Politica Democratica 17 - 25 de 167 167

26/3/2007 17:38:43


Politica Democratica 17 - 25 de 168 168

26/3/2007 17:38:43


X. Mem贸ria

Politica Democratica 17 - 25 de 169 169

26/3/2007 17:38:44


Autores Efraim Davidi Professor da Universidade de Tel-Aviv, Israel. davidi@sea.org.il

José de Alencar (1829-1877) Escritor do período romântico – como o atestam suas obras Lucíola e Senhora, de acentuado perfil urbano – é, ainda, o precursor do chamado indigianismo na literatura brasileira, tendo seus livros Iracema e Ubirajara alcançado extraordinário sucesso. Foi ainda político, poeta, dramaturgo e cronista fecundo.

170

Politica Democratica 17 - 25 de 170 170

26/3/2007 17:38:44


A crise do Canal de Suez em 1956: . o fim de uma época no Oriente Médio e o começo de outra Efraim Davidi

A

crise do Canal de Suez protagonizada pelos exércitos do Egito, Israel, França e Grã-Bretanha pode ser reduzida à descrição e análise das ações bélicas que começaram com a invasão, por parte das tropas israelenses, da Península do Sinai e da Faixa de Gaza nos últimos dias de outubro de 1956. Nos breves dias de beligerância e suas subseqüentes ações políticas e diplomáticas podemos encontrar todos os elementos para poder afirmar que o ano de 1956 significou para todo o Oriente Médio (e não só para os países envolvidos nos combates) uma mudança que denominaremos “histórica”. Há quem afirme que esta mudança, como em todos os processos históricos, não começou no dia e na hora em que o primeiro soldado israelense cruzou a fronteira do cessar fogo que separa Israel do Egito neste vasto deserto que de um lado se denomina Neguev (em árabe: Nakab) e do outro: Sinai. Este processo se iniciou, para estes historiadores, no dia 26 de julho de 1956, quando na cidade de Alexandria, o líder egípcio, o coronel Gamal Abdel Nasser proclama a nacionalização do Canal de Suez. O historiador e economista libanês Georges Corm, inclusive, afirma que, para os árabes, o século XX não começou com a derrubada do Império Otomano nos anos 1918-1919, nem sequer com os processos de descolonização a partir do fim da II Guerra Mundial em 1945, e que até a criação da Liga Árabe é fato de menor importância. 171

Politica Democratica 17 - 25 de 171 171

26/3/2007 17:38:44


X. Memória

“O século XX árabe começa nesse 26 de julho de 1956, em Alexandria, uma cidade de extrema importância na história mediterrânea, quando Nasser anuncia aos egípcios que o Canal de Suez foi nacionalizado e que os técnicos egípcios que substituíram os estrangeiros, asseguram com êxito a passagem dos navios... A nacionalização do Canal de Suez é um feito histórico incomparável e é como um manancial do qual surgiram muitos acontecimentos cuja influência persiste até hoje”, escreveu Corm. Portanto, a crise do Oriente Médio de 1956 tem como epicentro a nacionalização do Canal de Suez. Mas este foi o ponto culminante de uma etapa histórica que se inicia em 1916. Em maio de 1916, Sir Mark Sykes, deputado britânico e representante oficial de seu país, concluiu com o diplomata francês CharlesGeorges Picot, um acordo para repartir os territórios árabes do já moribundo Império Otomano. Este pacto de caráter secreto e que contou com o apoio da Rússia Czarista, veio a público logo após a Revolução de Outubro pela nova República Soviética, para grande surpresa da opinião pública da época e especialmente para os atores políticos do Oriente Médio.

Um pacto secreto para um destino colonial O acordo Sykes-Picot, firmado há 90 anos, significa o começo da hegemonia colonial da Grã-Bretanha e França pelo espaço de mais de 30 anos e a repartição do Oriente Médio árabe em duas zonas de influência. É preciso assinalar que o acordo secreto de SykesPicot foi firmado dois anos antes do final da I Guerra Mundial e do desaparecimento do Império Otomano. De acordo com este pacto, à França correspondia a costa Síria (Líbano e grande parte da Síria atual incluindo uma parte do território turco), a Grã-Bretanha se adjudicava a maior parte do Iraque e a Palestina seria dirigida por um condomínio das duas potências. A Rússia czarista também deveria receber a sua fatia: a Armênia, parte do Curdistão e uma saída para o Mediterrâneo, através do Mar Negro. A Itália, a última a se engajar na Grande Guerra do “lado certo”, receberia de acordo com o que foi firmado, várias ilhas defronte à Turquia e uma parte da Anatólia, também em território turco. Quando os britânicos emergiram como os grandes vencedores da guerra, especialmente na frente do Oriente Médio, os termos de repartição foram modificados. Como efeito da Revolução de Outubro, a Rússia saiu do pacto. A Grã-Bretanha se adjudicou a maior parte da Palestina e a região iraquiana de Mossul, onde o petróleo já era a causa dos crescentes apetites coloniais ingleses. 172

Politica Democratica 17 - 25 de 172 172

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:44


A crise do Canal de Suez em 1956: o fim de uma época no Oriente Médio e o começo de outra

A Conferência de San Remo, que se realizou seis anos depois de firmado o Acordo Sykes-Picot, redesenhou finalmente com a ajuda da régua colonial, o mapa do Oriente Médio. A região foi dividida em cinco mandatos sob a égide da Liga das Nações (a malograda antecessora das Nações Unidas); a Grã-Bretanha se adjudicou a Palestina, a Transjordânia (o Reino da Jordânia atual) e as províncias otomanas de Mossul, Bagdá e Basra (Iraque). À França coube o Líbano e a Síria. O Egito converteu-se em um Estado independente (ainda que a GrãBretanha continuasse dirigindo seus assuntos). O estratégico Canal de Suez continuaria sob controle inglês. Esta é a ordem geopolítica que se manteve até depois da II Guerra Mundial, até fins da década de 40 do século passado. A guerra que se desatou depois da nacionalização do Canal de Suez, em 1956, significou o seu ponto final.

O Canal de Suez, o petróleo e os interesses ocidentais Até que ponto o Canal de Suez era estratégico? De acordo com um estudo oficial do Conselho Nacional de Segurança dos Estados Unidos, realizado em 1952, intitulado “As políticas e os objetivos dos Estados Unidos para os países árabes e Israel” (e rotulado: “Top Secret –Security Information”) nos anos 50 do século passado, dois eram os “interesses básicos do Ocidente na região: os recursos petrolíferos e o Canal de Suez”. Esta era a opinião oficial dos EEUU em meados do século passado. Mas o Canal de Suez começa suas operações oito décadas antes, no ano de 1869. Pelo acordo firmado entre franceses e egípcios, o Canal deveria passar ao controle egípcio em ... 1968, ou seja, doze anos depois da nacionalização efetuada por Nasser. Por essas ironias da história, em princípio, a Grã-Bretanha se opôs à construção do Canal de Suez. A coroa inglesa via no canal impulsionado pela França uma ameaça a seus interesses coloniais na África, Ásia e no Oriente Médio. Mas já em 1875 os egípcios se viram na obrigação de ceder suas ações na Companhia do Canal à Grã-Bretanha. Em uma manobra brilhante de despojo colonial, a Grã-Bretanha ficou com 44% das ações e na prática transformou-se na sua verdadeira dona, administrando e arrecadando os valiosos pagamentos devidos ao direito de passagem por suas águas, deixando de lado a franceses e particularmente a egípcios. De ameaça, o Canal se transformou rapidamente em outra jóia do Império. O Egito contribuiu, durante o século XIX, com quase a metade do capital necessário para a realização das obras do Canal e quatro de 173

Politica Democratica 17 - 25 de 173 173

26/3/2007 17:38:44


X. Memória

cada cinco trabalhadores que ficaram construindo o canal durante dez anos(!), eram de origem egípcia. Os camponeses (falakhin) recrutados para as obras eram os mais mal pagos e deviam realizar as obras mais pesadas. Milhares deles pagaram com suas vidas a ousadia de unir o Mediterrâneo ao Mar Vermelho. Inclusive nos anos 70 do século XIX foram utilizados escravos nas diversas atividades, inclusive portuárias. Britânicos e franceses negaram aos “nativos”, e por dezenas de anos, qualquer possibilidade de chegar a postos de responsabilidade no manejo destes assuntos. Apesar de ter contribuído com a mão-de-obra, a metade do capital e entregue terras e lagunas, o canal não rendeu maiores frutos aos egípcios. Ademais, devido às grandes dívidas contraídas, o Egito se viu obrigado a “ceder” suas ações à potência imperialista inglesa. A “questão do Canal” transformou-se em um dos maiores debates políticos internos no Egito do final do século XIX e na primeira metade do século XX, quando quase todas as forças políticas (sejam estas liberais, independentistas islâmicas ou de esquerda) reivindicavam simplesmente e sem subterfúgio a nacionalização do canal. Em 1922, com a instauração da monarquia constitucional (ainda que sob estreito controle britânico sob a forma de “protetorado inglês”), se reavivou a polêmica. Pese a célebre “independência”, a Grã-Bretanha, fora algumas concessões formais, continuou usufruindo o Canal. Periodicamente estouravam nas maiores cidades egípcias manifestações e demonstrações exigindo “o retorno do Canal”, particularmente depois do fim da II Guerra Mundial. Entre 1945 e a retirada de dezenas de milhares de soldados britânicos em 1956, as relações britânicoegípcias foram se deteriorando gradualmente. Isto, apesar da parte egípcia ter logrado alguns êxitos na luta, como a redução dos efetivos nas importantes bases britânicas, ou em 1949, quando os egípcios acederam pela primeira vez a cargos de direção no Canal. Mas a Grã-Bretanha que emerge vencedora da II Guerra Mundial não podia continuar dominando um império no qual “o sol nunca deixava de brilhar”. Ou nas palavras do citado informe preparado em 1952 pelo Conselho de Segurança Nacional dos EEUU:

A Grã-Bretanha exerceu um papel central na manutenção e na defesa dos interesses ocidentais no Oriente Médio. Mas a rápida decadência do Império Britânico na última década e sua insuficiência para garantir estes interesses em vários países da região têm impelido os EEUU a exercer um papel mais ativo e importante e tem criado as condições para uma revisão e o estabelecimento de uma nova política norte-americana

174

Politica Democratica 17 - 25 de 174 174

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:44


A crise do Canal de Suez em 1956: o fim de uma época no Oriente Médio e o começo de outra

para a região. Em alguns países, como na Grécia, quando os britânicos não foram capazes de assumir suas responsabilidades, foram os EEUU que o fizeram. A influência dos EEUU tem crescido e tem substituído a Grã-Bretanha em lugares onde possuem grandes interesses militares e econômicos, como na Arábia Saudita.

A visão de um jornalista egípcio de esquerda da época, Kahiry Aziz, é paradoxalmente complementar:

Com as grandes mudanças que ocorreram depois da II Guerra Mundial abre-se uma nova e importante etapa na história do Egito e do Canal. O novo rival pela dominação do Canal são os EEUU, que programaram uma nova divisão dos mercados e das zonas de influência no mundo. Com a finalidade de assegurar a dominação do Canal de Suez, os EEUU trataram de retirar a passagem aos britânicos enquanto podem, mas continuaram apoiando a Grã-Bretanha em todas as oportunidades em que crescia o perigo da restituição do Canal a seu legítimo proprietário: o Egito.

Nasser entre os Estados Unidos e a URSS Em julho de 1952, ocorreu um golpe de Estado no Egito que destronou o corrupto rei Faruk. Os “oficiais livres” encabeçados pelo general Nagib não possuíam um perfil ideológico ou político claro, e entre eles se encontravam aqueles que por oposição ao colonialismo britânico adotaram, durante a II Guerra Mundial, uma clara postura filo-nazista. Além disto, forças de esquerda também opostas a Faruk, viam o golpe de Estado como um “motim fascista” e até atacaram o verdadeiro “homem forte” dos golpistas, o jovem coronel Gamal Abdel Nasser, denominando-o “coronel Jimmy”. Na verdade, no princípio, o novo governo militar buscou algum tipo de acordo em plena Guerra Fria com a superpotência emergente da II Guerra Mundial, os EEUU. Mas por miopia política ou por oposição às novas diretivas políticas do regime egípcio que propugnaram a formação de um bloco não alinhado no Terceiro Mundo, os EEUU se negaram notadamente a entabular qualquer tipo de colaboração com o Egito. Em um documento de avaliação interna do Departamento de Estado dos EEUU, datado de 23 de dezembro de 1953 e intitulado “Possíveis efeitos de uma crescente ajuda econômica ao Egito nas atitudes dos árabes e especialmente da Síria, Líbano, Jordânia e Iraque no marco da Guerra Fria” (documento classificado como “Confidential Security Information”) se assinala: 175

Politica Democratica 17 - 25 de 175 175

26/3/2007 17:38:44


X. Memória

O governo egípcio tem se envolvido, nestes últimos tempos, em uma postura política ativa denominada “de neutralidade” e no último mês vem desenvolvendo uma campanha de propaganda antiocidental. O tema central da campanha propugnava que os árabes em geral e o Egito em particular devem somar-se a uma “terceira força” que “não dependa nem do Ocidente nem do Oriente” para extirpar todas as influências imperialistas nesses países... Não há nada de novo nisto. Estas posições foram tomadas pelo Egito meses depois de consumar-se o golpe de Estado em julho de 1952. Existem tendências semelhantes no Iraque, na Jordânia e no Líbano. A única diferença é que nesses países são as correntes extremistas, e não os governos, as que propugnam esta campanha antiocidental e de neutralidade. Se nestas circunstâncias outorgamos uma ajuda econômica maior para o Egito, antes de solucionar o conflito do Canal de Suez e como conseqüência da campanha violenta contra os interesses ocidentais, os efeitos da mesma serão contraproducentes com relação aos nossos objetivos políticos nesse país e em outros Estados árabes... Nenhum país árabe nem sequer Israel é tão vital para os objetivos dos EEUU como o Egito (O Secretário de Estado deixou claro durante uma visita ao Cairo em maio de 1953 que toda solução do conflito de Suez deve contemplar os interesses ocidentais e que em todo momento o Canal deve estar ao serviço do “mundo livre” em caso de agressão).

Mas Nasser, que assume o controle efetivo do Estado num “autogolpe” contra o general Nagib, em novembro de 1954, tinha outras preocupações além das atitudes de neutralidade e o terceiro-mundismo. O jovem coronel queria desenvolver a economia e fomentar a justiça social, depois de um século de dominação econômica semicolonial inglesa. A Grã-Bretanha dominava a economia egípcia e fomentava especialmente a monocultura do algodão, a matéria prima que servia à indústria têxtil de Manchester. A industrialização limitada do princípio do século XX não conseguiu modificar esta economia fundamentalmente agrária, na qual as possibilidades de subsistência dos falakhin dependiam das flutuações no mercado mundial de algodão. Em 1955, Nasser quis acabar com esta situação dramática onde dezenas de milhões de camponeses viviam na extrema pobreza, com uma série de medidas como a reforma agrária, uma campanha de alfabetização e a modernização dos meios de produção. Entre outros projetos, Nasser queria construir a represa de Assuã, um projeto hidroelétrico de enorme proporção que deveria regular as águas do Nilo em proveito de milhões de lavradores da terra. Este recurso hídrico

176

Politica Democratica 17 - 25 de 176 176

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:45


A crise do Canal de Suez em 1956: o fim de uma época no Oriente Médio e o começo de outra

principal que cruza o Egito do Sul para o Norte é essencial para assegurar a vida da população. O Nilo tem sido descrito por vários viajantes da Antigüidade como “o dom do Egito”. Os pedidos de ajuda econômica aos EEUU e Grã-Bretanha, para solucionar os enormes gastos de construção, não prosperaram. A 19 de julho de 1956, Nasser anuncia em um dramático discurso que os países ocidentais não têm interesse em financiar o projeto. Dois dias depois a URSS também anunciou que não possuía os meios para tal obra. Cinco dias depois, Nasser anuncia em Alexandria a nacionalização do Canal.

Ben Gurion entre Grã-Bretanha e França O líder trabalhista e virtual fundador do Estado de Israel, David Ben Gurion, sempre teve claro que no marco da Guerra Fria, seu país não devia seguir nenhum “terceiro caminho” ao estilo nasserista, e claro está, tampouco ligar seu destino à estratégia internacional da URSS. Mas as opiniões do “Velho” (Hazaken) como o denominavam popularmente amigos e inimigos em Israel nos anos 1950, nem sempre eram compartilhadas por seus pares. Inclusive Moshe Sharet, que foi primeiro ministro e ministro de Relações Exteriores durante a época, criticava abertamente muitas das opiniões estratégicas de Ben Gurion. Particularmente sua extrema propensão a utilizar as armas como meio para saldar suas disputas com o mundo árabe e um espírito revanchista, que o levaram pouco depois da nacionalização do Canal a pactuar secretamente com a antiga potência colonial da Palestina: Grã-Bretanha e com a nova aliada de Israel: a República Francesa. Os artífices deste pacto secreto foram o chefe do Estado Maior, o General Moshe Dayan e o jovem diretor geral do Ministério da Defesa, Shimon Peres. Com o anúncio da nacionalização, três dirigentes, o trabalhista israelense Ben Gurion, o conservador britânico Anthony Éden e o socialista francês Guy Mollet viram neste ato uma oportunidade histórica para mudar o rumo do Oriente Médio. Israel afirmar-se-ia como a principal potência regional, a Grã-Bretanha voltaria como vencedora ao Canal de Suez e a França, potência colonial que estava soçobrando, reafirmaria seu papel no Norte da África. Esta aliança entre as duas potências coloniais e o novo Estado judeu foi consolidada durante os encontros secretos em nível muito alto protagonizado por Ben Gurion em uma mansão localizada em Sèvres, nos arredores de Paris, que foi cristalizado no Protocolo de Sèvres, documento reservado que não foi levado a público e foi firmado por Ben Gurion, primeiro ministro e ministro da Defesa. Os artífices deste pacto foram o então general Moshe Dayan e o jovem diretor geral do Ministério da Defesa, Shimon Peres. O Protocolo de Sèvres (nem os membros do gabinete israelense

177

Politica Democratica 17 - 25 de 177 177

26/3/2007 17:38:45


X. Memória

conheciam sua existência) foi um verdadeiro complô colonial contra o Egito, urdido por Ben Gurion e o Estado Maior das Forças Armadas israelenses. Firmado no fim de outubro de 1956, este estabelecia em que momentos deveriam atuar os exércitos de cada país atacante, a ocupação do Sinai por parte das tropas israelenses e proibia Israel a atacar o Reino da Jordânia (na época tinha uma relação estreita com a Grã-Bretanha). O ponto nº 6 estabelece claramente que “este protocolo deverá permanecer estritamente secreto”.

A França entre a Grã-Bretanha e Israel Ben Gurion levou adiante esta política de alianças antiegípcia que devia servir aos interesses estatais israelenses, Eden queria vingar-se da “afronta egípcia”. Mas quais foram as verdadeiras motivações da França? Por que a França se somou a uma aventura militar que terminou em um desastre político, contra um país do Oriente Médio? O comandante das forças expedicionárias francesas na campanha do Sinai, o General André Beaufre explica em suas memórias publicadas em 1967 quais foram as causas da participação francesa. “O affaire de Suez tem três origens: a guerra da Argélia, a nacionalização do Canal de Suez e a questão israelense. Esta última situação foi muito complexa. A guerra da Argélia vinha se desenvolvendo desde novembro de 1954. A rebelião que no princípio tinha um caráter local, se estendia como um incêndio em uma planície seca... esta rebelião de origem indiscutivelmente argelina, era apoiada pelos serviços de inteligência egípcios e o quartel general dos rebeldes estava localizado no Cairo. Em 1956, o governo francês encabeçado por Guy Mollet dedicou-se a tomar uma posição mais firme e comprometeu-se a tomar medidas de contenção frente aos rebeldes e, entre elas, uma firme reação francesa frente à atitude egípcia. É nesta situação que estoura o grave incidente da nacionalização do Canal de Suez... os locais da companhia são ocupados militarmente pelos egípcios. Este fato produz uma comoção em Londres (onde se considera que o prestígio inglês está em jogo) e também em Paris, pois o Canal de Suez é visto como uma empresa francesa. É preciso assinalar que quase imediatamente em Londres, o primeiro ministro e dirigente conservador Eden, decide empreender uma ação militar e distribui as ordens. Eden acreditava que podia empreender uma ação militar conjunta com os EEUU e com uma simbólica participação francesa. Em Paris, os direitistas que apoiavam a fórmula da “Argélia francesa” se unem com a tendência pró Israel da esquerda para fomentar uma operação militar. Enviados militares israelenses convenceram a seus pares franceses que os combates seriam curtos e bem sucedidos. O general Beaufre escreveu em suas memórias:

178

Politica Democratica 17 - 25 de 178 178

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:45


A crise do Canal de Suez em 1956: o fim de uma época no Oriente Médio e o começo de outra

Eles nos disseram que venceríamos e que pouco importava o tipo de ação militar que empreenderíamos. Também não deveria ter importância a quantidade de efetivos a empregar, de toda maneira o regime de Nasser desaparecerá.

Uma vitória militar e uma derrota política Tropas israelenses irromperam no Sinai a 29 de outubro de 1956, e rapidamente avançaram até ao Canal de Suez. A superioridade era acachapante, embora os defensores egípcios tenham conseguido causar dezenas de baixas. Na manhã do ataque, o Estado Maior israelense informou que se tratava de uma resposta aos repetidos atentados perpetrados por tropas irregulares palestinas (fedayin) contra a população civil de Israel. Fedayin que atuavam desde os campos de refugiados localizados na Faixa de Gaza sob administração egípcia. Outra meta, de acordo com o declarado oficialmente por Israel, era a de garantir a liberdade de navegação sob bandeira israelense nas águas do Canal e do Mar Vermelho. Embora o bloqueio tenha existido, a “causa” que deu origem à incursão israelense foi a captura de um comando de fedayin na região de Erez junto à fronteira da Faixa de Gaza. De acordo com o publicado pelo matutino pró governista israelense Lamerkhav (30 de outubro de 1956) o comando composto de quatro combatentes (um deles presumidamente um oficial de inteligência egípcio) se encontravam a caminho de Israel para realizar “atos de sabotagem e terrorismo”. Os combatentes capturados falavam árabe e vestiam uniformes egípcios. Na realidade se tratava de quatro soldados israelenses nascidos em países árabes, que foram trajados e apetrechados como combatentes palestinos e embora tenham sido presos e interrogados pela polícia israelense (que não estava a par do que realmente estava ocorrendo) estes foram libertados discretamente alguns dias depois de iniciada a ofensiva israelense no Sinai. A ofensiva foi efetivamente desatada horas depois da “captura” e como “única resposta possível às repetidas provocações de Nasser”, como escreveram alguns matutinos em Tel-Aviv, no dia seguinte. A notícia foi publicada ao mesmo tempo que Grã-Bretanha e França tornavam público um comunicado exigindo a retirada das tropas egípcias e israelenses de ambos os lados do Canal e um cessar fogo nas próximas doze horas. A parte israelense respondeu afirmativamente e a egípcia se negou a aceitar o ultimato anglo-francês. Como conseqüência disto, as tropas inglesas e francesas entraram em combate, ocupando o Canal de Suez e bombardeando instalações militares egípcias. A intervenção anglo-francesa se deu sem um mandato das Nações Unidas, e ante a “surpresa” (pelo menos em termos oficiais) dos EEUU e da URSS. O governo israelense também publicou uma declaração na qual se indicava “o assombro”

179

Politica Democratica 17 - 25 de 179 179

26/3/2007 17:38:45


X. Memória

diante da ação da Grã-Bretanha e da França, apesar da maior parte dos dirigentes estatais israelenses e o alto comando terem previamente coordenado em segredo a agressão contra o Egito. Como resposta ao triplo ataque, as tropas se retiraram da Faixa de Gaza (que de acordo com a resolução das Nações Unidas adotada em 29 de novembro de 1947, deveria fazer parte do Estado Palestino que nunca foi criado) e da Península do Sinai. Mas paralelamente se afundaram navios e se puseram obstáculos que tornaram impossível a travessia do Canal de Suez por muitos meses. A situação internacional complicou-se em questão de dias quando a URSS e a República Popular da China ofereceram enviar voluntários para combater junto às tropas egípcias, a interrupção por parte da Síria do fluxo de petróleo que circulava pelo oleoduto traçado entre o Iraque e... Israel e o veto às propostas de resolução no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Pese os obstáculos, a Assembléia Geral das Nações Unidas se reuniu em sessão de emergência e se pronunciou por um imediato cessar fogo e a retirada das tropas inglesas, francesas e israelenses do território egípcio. Graças às pressões conjuntas, especialmente das duas superpotências, as tropas britânicas e francesas se retiraram do Canal, junto às tropas israelenses estacionadas no Sinai, mas somente em 4 de março de 1957. Quase meio ano depois da agressão armada. Israel continuou ocupando a Faixa de Gaza até dias depois. Isto apesar de Ben Gurion ter assegurado no Knesset (o parlamento israelense) no princípio de novembro de 1956, que a Faixa de Gaza é “uma parte histórica do território pátrio, que não foi ocupada – foi libertada!”. Estas declarações foram acompanhadas por uma “ordem do dia”, no final de 1956, e lida pelo general Dayan às tropas estacionadas no Sinai, na qual o “Velho” assegura: “regressamos à nossa pátria histórica, reconstituímos o Reino Hebreu”. Na realidade, Ben Gurion estava eufórico desde o começo da guerra. De acordo com os poucos materiais oficiais publicados por Israel, em uma reunião realizada na sua casa particular dois dias após o início do ataque e, depois de ter escutado os altos oficiais presentes, ordenou aplicar as leis israelenses à ocupada Península do Sinai, mudando os nomes das diversas localidades e pontos de interesse do árabe para o hebraico, iniciar o turismo em grande escala para o Mar Vermelho e suas costas e se interessou particularmente pelo petróleo na região de A-Tur. De acordo com o protocolo da reunião reservada, Ben Gurion disse: “Poderemos explorar o petróleo do Sinai, levá-lo a Haifa, dali embarcá-lo e exportá-lo ao exterior. Desta maneira não dependeremos mais das importações, Teremos petróleo!” As declarações de claro viés messiânico – “Reconstrução do (bíblico) Reino Hebreu”, embora Ben Gurion fosse laico – causaram comoção

180

Politica Democratica 17 - 25 de 180 180

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:45


A crise do Canal de Suez em 1956: o fim de uma época no Oriente Médio e o começo de outra

na opinião pública israelense, que majoritariamente apoiou a guerra, mas não entendeu a razão pela qual poucos meses depois se abandona a pátria histórica” devido à pressão dos EEUU. É preciso assinalar que, no dia em que Israel invadiu o Egito, a polícia militar israelense massacrou 49 camponeses árabes (palestinos de cidadania israelense) que estavam voltando a seu povoado Kafar Kassem (a 20 km a leste de Tel-Aviv) e que foram abatidos pela terrível Guarda de Fronteira, por ter “violado o toque de recolher imposto”. Estes camponeses não souberam que o toque de recolher foi imposto porque abandonaram seus lares de madrugada, antes da guerra ter começado, regressando das fainas agrícolas à tarde ou à noite sem sabê-lo. Os oficiais e suboficiais responsáveis pelo massacre foram julgados, porém, rapidamente perdoados. O massacre de Kafar Kassem fazia parte de um plano militar de expulsão do território israelense de dezenas de milhares de árabespalestinos... cidadãos de Israel. O plano não foi levado adiante, mas os massacres que não se efetivaram estavam destinados a este objetivo, no momento em que a opinião pública local e internacional estava focalizada na guerra contra o Egito. A tripla aliança britânica-francesa-israelense se desfez poucos dias depois de iniciada a invasão. Entre britânicos e franceses existiu algum tipo de entendimento durante os meses da disputa diplomática nas Nações Unidas. Israel, que gradualmente passava para a órbita dos EEUU no marco da Guerra Fria, teve que abandonar até o último centímetro do território egípcio ocupado. Nasser, o jovem coronel, perdeu a batalha de Suez, mas venceu no terreno político: o Canal foi nacionalizado e afiançando sua aproximação à URSS, foi construída a represa de Assuã. A Argélia conquistou a independência da França cinco anos depois. A crise de Suez de 1956 significou o ocaso das velhas forças coloniais e o surgimento de novas superpotências que marcariam o destino do Oriente Médio por dezenas de anos: os EEUU e a URSS. Período que findou com o desaparecimento desta última na década de noventa do século passado. Nota do Editor: Traduzido do espanhol da revista eletrônica Historia Actual on line, nº 10 (primavera de 2006), 145-153, por Dina Lida Kinoshita

***

181

Politica Democratica 17 - 25 de 181 181

26/3/2007 17:38:45


Porque sou romancista José de Alencar

F

oi essa leitura contínua e repetida de novelas e romances que primeiro imprimiu em meu espírito a tendência para essa forma literária que é entre todas a de minha predileção? Não me animo a resolver esta questão psicológica, mas creio que ninguém contestará a influência das primeiras impressões. Já vi atribuir o gênio de Mozart e sua precoce revelação à circunstância de ter ele sido acalentado no berço e criado com música. Nosso repertório romântico era pequeno; compunha-se de uma dúzia de obras, entre as quais primavam a Armanda e Oscar, Saint-Clair das Ilhas, Celestina e outros de que já não me recordo. Esta mesma escassez, e a necessidade de reler uma e muitas vezes o mesmo romance, quiçá contribuiu para mais gravar em meu espírito os moldes dessa estrutura literária, que mais tarde deviam servir aos informes esboços no novel escritor. Mas não tivesse eu herdado de minha santa mãe a imaginação de que o mundo apenas vê as flores, desbotadas embora, e de que eu somente sinto a chama incessante, que essa leitura de novelas mal teria feito de mim um mecânico literário, desses que escrevem presepes em vez de romances. [...] IV. O primeiro broto da semente que minha boa mãe lançara em meu espírito infantil, ignara dos desgostos que preparava a seu filho querido, veio dois anos depois. Entretanto é preciso que lhe diga. Se a novela foi a minha primeira lição de literatura, não foi ela que me estreou na carreira de escritor. Esse título cabe a outra composição, modesta e ligeira, e por isso mesmo mais própria para exercitar um espírito infantil. O dom de produzir, a faculdade criadora, se a tenho, foi a charada que a desenvolveu em mim, e eu teria prazer em referir-lhe esse episódio psicológico, se não fosse o receio de alongar-me demasiado, fazendo novas excursões fora do assunto que me propus. [...]

182

Politica Democratica 17 - 25 de 182 182

26/3/2007 17:38:45


Porque sou romancista

Um ano depois parti para São Paulo, onde ia estudar os preparatórios que me faltavam para a matrícula no curso jurídico. V. Com a minha bagagem, lá no fundo da canastra, iam uns cadernos escritos em letra miúda e conchegada. Era o meu tesouro literário. Ali estavam fragmentos de romances, alguns apenas começados, outros já no desfecho, mas ainda sem princípio. De charadas e versos, nem lembranças. Estas flores efêmeras das primeiras águas tinham passado com elas. Rasgara as páginas dos meus canhenhos e atirara os fragmentos no turbilhão das folhas secas das mangueiras, a cuja sombra folgara aquele ano feliz de minha infância. Nessa época tinha eu dois moldes para o romance. Um merencório, cheio de mistérios e pavores; esse, o recebera das novelas que tinha lido. Nele a cena começava nas ruínas de um castelo, amortalhadas pelo baço clarão da lua; ou nalguma capela gótica frouxamente esclarecida pela lâmpada, cuja luz esbatia-se na lousa de uma campa. O outro molde, que me fora inspirado pela narrativa pitoresca de meu amigo Sombra, era risonho, loução, brincado, recendendo graças e perfumes agrestes. Aí a cena abria-se em uma campina, marchetada de flores, e regada pelo sussurrante arroio que a bordava de recamos cristalinos. Tudo isto, porém, era esfumilho que mais tarde devia apagar-se. A página acadêmica é para mim, como para os que a viveram, riquíssima de reminiscências, e nem podia ser de outra forma, pois abrange a melhor monção da existência. Não tomarei dela, porém, senão o que tem relação com esta carta. Ao chegar a S. Paulo era eu uma criança de treze anos, cometida aos cuidados de um parente, então estudante do terceiro ano, e que atualmente figura com lustre na política e na magistratura. Algum tempo depois de chegado, instalou-se a nossa república ou comunhão acadêmica à rua de São Bento, esquina da rua da Quitanda, em um sobradinho acachapado, cujas lojas do fundo eram ocupadas por quitandeiras. Nossos companheiros foram dois estudantes do quinto ano; um deles já não é deste mundo; o outro pertence à alta magistratura, de que é ornamento. Naqueles bons tempos da mocidade, deleitava-o a litera-

183

Politica Democratica 17 - 25 de 183 183

26/3/2007 17:38:45


X. Memória

tura, e era entusiasta do Dr. Joaquim Manuel de Macedo, que pouco havia publicara o seu primeiro e gentil romance – A Moreninha. Ainda me recordo das palestras em que o meu companheiro de casa falava com abundância de coração em seu amigo e nas festas campestres do romântico Itaboraí, das quais o jovem escritor era o ídolo querido. Nenhum dos ouvintes bebia esses pormenores com tamanha avidez como eu, para quem eram eles completamente novos. Com a timidez e o acanhamento de meus treze anos, não me animava a intervir na palestra; escutava à parte; e por isso ainda hoje tenho-as gravadas em minhas reminiscências, a estas cenas do viver escolástico. Que estranho sentir não despertava em meu coração adolescente a notícia dessas homenagens de admiração e respeito tributadas ao jovem autor da Moreninha! Qual régio diadema valia essa auréola de entusiasmo a cingir o nome de um escritor? Não sabia eu então que em meu país essa luz que dizem glória, e de longe se nos afigura radiante e esplêndida, não é senão o baço lampejo de um fogo de palha. [...] Naquele tempo o comércio dos livros era como ainda hoje artigo de luxo; todavia, apesar de mais baratas, as obras literárias tinham menor circulação. Provinha isso da escassez das comunicações com a Europa, e da maior raridade de livrarias e gabinetes de leitura. Cada estudante, porém, levava consigo a modesta previsão que juntara durante as férias, e cujo uso entrava logo para a comunhão escolástica. Assim correspondia S. Paulo às honras de sede de uma academia, tornando-se o centro do movimento literário. Uma das livrarias, a que maior cabedal trazia à nossa comum biblioteca, era a de Francisco Otaviano, que herdou do pai uma escolhida coleção das obras dos melhores escritores da literatura moderna, a qual o jovem poeta não se descuidava de enriquecer com as últimas publicações. Meu companheiro de casa era dos amigos de Otaviano, e estava no direito de usufruir sua opulência literária. Foi assim que um dia vi pela primeira vez o volume das obras completas de Balzac, nessa edição em folha que os tipógrafos da Bélgica vulgarizam por preço módico. [...]

184

Politica Democratica 17 - 25 de 184 184

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:46


Porque sou romancista

Tendo meu companheiro concluído a leitura de Balzac, a instâncias minhas, passou-me o volume, mas constrangido pela oposição de meu parente, que receava essa diversão. Encerrei-me com o livro, e preparei-me para a luta. Escolhido o mais breve dos romances, armei-me do dicionário, e tropeçando a cada instante, buscando significados de palavra em palavra, tornando atrás para reatar o fio da oração, arquei sem esmorecer com a ímproba tarefa. Gastei oito dias com a Grenadière, porém um mês depois acabei com o volume de Balzac; e no resto do ano li o que então havia de Alexandre Dumas e Alfredo de Vigny, além de muito de Chateaubriand e Victor Hugo. [...] VI. Foi somente em 1848 que ressurgiu em mim a veia do romance. Acabava de passar dois meses em minha terra natal. Tinha-me repassado das primeiras e tão fagueiras recordações da infância, ali nos mesmos sítios queridos onde nascera. Em Olinda, onde estudava o meu terceiro ano, e na velha biblioteca do Convento de S. Bento a ler os cronistas da era colonial, desenhavam-se a cada instante, na tela das reminiscências, as paisagens do meu pátrio Ceará. Eram agora os seus tabuleiros gentis; logo após as várzeas amenas e graciosas; e por fim as matas seculares que vestiam as serras como a ararróia verde do guerreiro tabajara. E através destas também esfumavam-se outros painéis, que me representavam o sertão em todas as suas galas de inverno, as selvas gigantes que se prolongam até os Andes, os rios caudalosos que avassalam o deserto, e o majestoso S. Francisco transformado em um oceano, sobre o qual eu navegara um dia. Cenas estas que eu havia contemplado com olhos de menino de dez anos antes, ao atravessar essas regiões em jornada do Ceará à Bahia; e que agora se debuxavam na memória do adolescente, e coloriam-se ao vivo com as tintas frescas da palheta cearense. Uma coisa vaga e indecisa, que devia parecer-se com o primeiro broto do Guarani ou de Iracema, flutuava-me na fantasia. Devorando as páginas dos alfarrábios de notícias coloniais, buscava com sofreguidão um tema para o meu romance; ou pelo menos um protagonista, uma cena e uma época.

185

Politica Democratica 17 - 25 de 185 185

26/3/2007 17:38:46


X. Memória

Para saber mais: Bibliografia Obras: Cartas sobre a Confederação dos Tamoios (1856); O Guarani (1857); Cinco minutos (1857); Verso e reverso (1857); A noite de São João (1857); O demônio familiar (1858); A viuvinha (1860); As asas de um anjo (1860); Mãe (1862); Lucíola (1862); Os filhos de Tupã (1863); Escabiosa (sensitiva) (1863); Diva (1864); Iracema (1865); Cartas de Erasmo (1865); As minas de prata (1865); A expiação (1867); O gaúcho (1870); A pata da gazela (1870); O tronco do ipê (1871); Sonhos d’ouro (1872); Til (1872); O garatuja (1873); A alma de Lázaro (1873); Alfarrábios (1873); A guerra dos mascates (1873); Voto de graças (1873); O ermitão da Glória (1873); Como e porque sou romancista (1873); Ao correr da pena (1874); O nosso cancioneiro (1874); Ubirajara (1874); Senhora (1875); Encarnação (1893, póstumo). Obra completa, Rio de Janeiro: Ed. Aguilar, 1959.

***

186

Politica Democratica 17 - 25 de 186 186

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:46


XI. Resenhas

Politica Democratica 17 - 25 de 187 187

26/3/2007 17:38:47


Autores Cláudio de Oliveira Cartunista com Curso de Belas Artes em Praga, na República Tcheca. Foi militante do PCB, de 1982 a 1989.

Pedro Paulo Rezende

Jornalista e ensaísta, um dos responsáveis pelo caderno semanal Pensar!, do Correio Braziliense.

Alberto Aggio

Professor livre-docente da Unesp/Franca, autor e organizador de Gramsci: a vitalidade de um pensamento. São Paulo: Unesp, 1998, e Pensar o século XX: problemas políticos e história nacional na América Latina. São Paulo: Unesp, 2003 (com Milton Lahuerta).

188

Politica Democratica 17 - 25 de 188 188

26/3/2007 17:38:47


Luiz Maranhão, o Santo da Democracia Cláudio de Oliveira

U

m dos muitos méritos do livro de Heloneida Studart Luiz, o Santo Ateu, lançado pela Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Edufrn), é o melhor esclarecimento das posições políticas de Luiz Maranhão dentro do antigo Partido Comunista Brasileiro. Segundo a escritora, ele era adepto de um caminho democrático e gradualista das transformações sociais. Tais posições o aproximavam do chamado eurocomunismo. Nos anos 1960, os líderes do PC Italiano, inspirados em seu fundador Antônio Gramsci, preconizavam que, na Europa ocidental, a conquista do poder se daria dentro das regras do jogo democrático, em contraposição ao pensamento comunista tradicional, que defendia a tomada de poder pela via revolucionária de uma insurreição. Este último pensamento baseava-se nas idéias do líder da Revolução Russa de 1917, Vladimir Ulianov, mais conhecido como Lênin. No Brasil, um dos líderes da corrente leninista foi o secretário-geral do PCB, Luiz Carlos Prestes. Conta Heloneida Studart que Luiz Maranhão era um leitor freqüente de Pietro Ingrao, um dos teóricos do eurocomunismo. Se fosse vivo, Luiz talvez se regozijaria com a evolução política dos italianos. Em 1976, o secretário-geral do PCI, Enrico Berlinguer, propôs o “compromisso histórico”, uma aliança com o Partido Democrata-Cristão para juntos governarem a Itália. Esta aliança só viria a se formar, em parte, nos anos 1990, sendo reeditada recentemente nas últimas eleições italianas. Hoje, o pesidente daquele país é Georgio Napolitano, um ex-comunista do Partido dos Democratas de Esquerda, que governa em aliança com o primeiro-ministro Romano Prodi, católico do Partido

189

Politica Democratica 17 - 25 de 189 189

26/3/2007 17:38:47


XI. Resenhas

Popular, partido surgido da ala progressista do extinto Partido Democrata-Cristão. O livro de Heloneida reproduz artigo de Luiz Maranhão, publicado em 1968, na revista Paz e Terra, em que defende a união entre marxistas e cristãos pela construção de um mundo mais justo. O livro traz ainda uma sintomática foto de Luiz Maranhão dos anos 1950, então deputado estadual, ao lado do presidente da República, Juscelino Kubitscheck. Heloneida Studart deixa claro que o potiguar foi um batalhador pela renovação da esquerda brasileira. Nos anos 1930, 1940 e 1950, o PCB adotou posições de extrema-esquerda. Pediu o voto em branco nas eleições presidenciais de 1950, apesar de suas bases operárias em todo o país votarem na chapa de Getúlio Vargas e Café Filho. Nas eleições de 1955, o PCB mudou de posição e apoiou Juscelino Kubitscheck à Presidência. Uma nova política foi aprovada pelo Comitê Central em 1958 e no V Congresso partidário, de 1960, definiu-se por um caminho pacífico e democrático das transformações sociais no país. Propôs uma frente nacional reunindo os trabalhadores, as classes médias, o empresariado nacional, os partidos e personalidades desejosos de um desenvolvimento independente para o Brasil. A formulação desta nova política contou com a participação do norte-rio-grandense. Recordo uma conversa com o médico Vulpiano Cavalcante, fiel companheiro de Luiz Maranhão, para corroborar com o livro de Heloneida Studart. O dr. Vulpiano contou-me que Luiz lhe falou, certa vez, das diferenças entre ele e o secretário-geral Luiz Carlos Prestes, inclusive na dificuldade de relacionamento pessoal. Lembro-me também de um diálogo com o ex-vereador natalense Juliano Siqueira, em 1989, no Rio de Janeiro. Juliano havia sido da corrente prestista e colaborador próximo de Prestes. Em entrevista com o secretário-geral, Juliano lhe pediu uma opinião sobre Luiz Maranhão. Prestes o classificou de “reformista”. Apesar de, entre os comunistas tradicionais, o termo ter uma conotação negativa, Prestes tinha razão. Luiz Maranhão defendia as mudanças sociais pelo caminho democrático. Como ele, muitos intelectuais marxistas, no Brasil e no mundo, via na democracia não um mero recurso tático para a chegada ao poder. Mas um valor permanente, intrínseco ao pensamento socialista. Com o golpe de 1964, aquele debate ideológico de fundo, que opunha a corrente leninista a outra de inspiração gramsciana, foi suspenso dentro do PCB. As duas correntes conciliaram as suas posições para enfrentar, de um lado, a dura repressão da polícia política do regime, e de outro, as dissidências internas que originaram os grupos de guerrilha. Tais grupos advogavam a luta armada, contrariamente à diretriz partidária de resistência democrática numa frente ampla 190

Politica Democratica 17 - 25 de 190 190

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:47


Luiz Maranhão, o Santo da Democracia

como caminho para vencer a ditadura e os obstáculos que impediam o desenvolvimento. Frente da qual Luiz Maranhão foi um dos seus principais articuladores nacionais. O livro nos mostra a extraordinária atualidade das posições políticas de Luiz Maranhão. Elas são válidas ainda hoje, quando parte da esquerda brasileira chega ao poder e apresenta dificuldades de compreender as relações entre as instituições democráticas e de estabelecer uma política de aliança conseqüente, capaz de unir a sociedade em torno de um projeto nacional de desenvolvimento com justiça social. Aprendi a admirar Luiz Maranhão ainda menino, à época da ditadura. Seu nome proibido era pronunciado baxinho, com respeito e admiração, pelo meu pai, Lavanere Renovato. Luiz fora seu professor de Geografia no Atheneu, bem como do meu tio, desembargador Elias Borges. Ainda hoje meu tio guarda um livro com a dedicatória do mestre, presente pela formatura do curso de Direito. Contava meu pai que, em fins dos anos 1940, ao deixar o Atheneu, descia diariamente com outros estudantes a ladeira da antiga avenida Junqueira Ayres, hoje Câmara Cascudo, em direção às Rocas, onde morava, sempre acompanhado de Maranhão, que se dirigia à redação do Diário de Natal. Dizia meu pai que o professor jamais tentou impor aos seu alunos as suas idéias socialistas. Esta postura democrática está exposta no livro, nos capítulos em que a escritora narra a disposição permanente de Luiz Maranhão para o diálogo, até mesmo com pessoas de pensamento oposto ao seu, como o do jornalista Manoel Rodrigues de Melo, que nos anos 1930 havia simpatizado com o integralismo, a variante brasileira do fascismo. Após a leitura do livro de Heloneida Studart, podemos concluir que Luiz Maranhão é um símbolo não só para os que, como ele, são socialistas. As convicções democráticas daquele professor do Atheneu o fazem símbolo também de social-democratas e liberais. Enfim, de todos os homens e mulheres que acreditam no Estado de Direito, pelo qual Luiz Maranhão deu a vida.

Sobre a obra: Luiz, o Santo Ateu, de Heloneida Studart, Edufrn, Natal, 2006.

***

191

Politica Democratica 17 - 25 de 191 191

26/3/2007 17:38:47


As contradições do marechal Pedro Paulo Rezende

O

marechal Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958) ocupa um lugar único na nossa história. Poucas pessoas contribuíram tanto para a formação do Brasil contemporâneo. Graças ao seu trabalho pioneiro, o interior do país foi explorado e conhecido, abrindo espaço à ocupação econômica. A situação atual dos povos nativos, para o melhor e o pior, resulta, também, do seu esforço em preservar (e ao mesmo tempo integrar) as sociedades e as culturas autóctones, vítimas de séculos de exploração e escravização. Por tudo isso, o velho pioneiro atrai admiração e ódio entre historiadores, antropólogos e sociólogos. Rondon, o marechal da floresta, editado recentemente pela Companhia das Letras, examina as duas correntes de maneira crítica, traçando um retrato neutro do explorador. Para isso, o brasilianista Todd Diacon, 48, pesquisador e vice-reitor da Universidade do Tennessee, analisou a atuação e o ideário do marechal sem perder de vista os parâmetros sociais da época. Ex-aluno de Thomas Skidmore na Universidade de Wisconsin, Diacon escreveu, em 1991, Milenarian vision, capitalist reality, importante trabalho sobre o Contestado, conflito messiânico que afligiu parte dos estados de Santa Catarina e Paraná, entre 1912 e 1916. Para montar a biografia de Rondon, lançada nos Estados Unidos, em 2004, mudouse para o Brasil e hoje está casado com uma brasileira. Para Diacon, o espírito de Rondon foi forjado pelo positivismo, corrente filosófico-religiosa criada por Auguste Comte (um dos pais da sociologia), que estabelece o predomínio da razão e da ciência. Como verdadeiro missionário do progresso, executou sua missão com fervor. À frente da Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas (CLTEMTA), conhecida como Comissão Rondon, entre os anos de 1907 e 1912, encabeçou explorações que resultaram no mapeamento de grande parte do cerrado e da floresta úmida, ao mesmo tempo em que tentava colocar as culturas nativas, vítimas de séculos de espoliação, sob a proteção do Estado. A partir de 1910, tornou-se diretor do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), criado a partir de suas idéias e conceitos. A proposta era integrar os ameríndios ao processo produtivo, sem que houvesse um rompimento de suas raízes. 192

Politica Democratica 17 - 25 de 192 192

26/3/2007 17:38:47


As contradições do marechal

Implacável com os comandados, complacente com as nações indígenas (por mais hostis que fossem à aproximação com os brancos), Rondon acreditava que o ideário positivista civilizaria os grotões. Enfrentou a burocracia implacável, malária, ataques de índios, deserções em massa de oficiais e soldados que temiam a doença e os perigos da floresta. Ao mesmo tempo, não descuidava das relações públicas. Divulgava seu trabalho por meio de palestras, cartas aos jornais e documentários, na tentativa de seduzir uma sociedade avessa ao processo de interiorização e hostil aos grupos nativos, vistos como estorvo ao progresso e alvos ideais de extermínio. Dentro do esforço de sedução, em 1914, Rondon guiou a expedição do ex-presidente norte-americano Theodore Roosevelt pelo interior da Amazônia. Em lugar de um aprazível safári, o ex-chefe de Estado norte-americano envolveu-se numa aventura perigosa, que procurava traçar o curso exato do Rio da Dúvida, hoje Theodore Roosevelt. Só quando o filho do ex-presidente ficou seriamente abatido pela malária é que Roosevelt convenceu Rondon a levá-lo de volta à civilização. Outro ponto alto do livro é o retrato da sociedade carioca do início do século 20 e a descrição dos ritos e discussões que ocorriam no templo positivista — que ainda está ativo, o único existente, além do de Paris. Diacon apresenta com brilhantismo a maneira como surgiam e se espraiavam as diversos movimentos que forjaram o ideário político-militar e o Brasil moderno. Elas permaneceram vivas até a década de 60 e terminaram por influenciar o golpe de 31 de março e a atuação dos governos militares entre 1964 e 1985. O trabalho da CLTEMTA não pode ser medido por seus resultados a curto e médio prazos. A idéia era integrar o país por meio de 1.400 quilômetros de linhas de telégrafo, uma tecnologia já obsoleta desde o final do século 19, quando a telegrafia sem fio foi inventada por Guglielmo Marconi. Em 1956, depois da morte do marechal, o território do Guaporé, criado em 1943, foi rebatizado como Rondônia que, 14 anos depois, seria palco de um processo migratório descontrolado. Entre os anos de 1970 e 1974, a população local dobrou. Cidades surgiram ao longo de uma rodovia construída no curso da velha linha plantada no meio da selva. Ao lado desse processo daninho, um contraponto positivo: os quatro últimos censos do IBGE mostram que a população indígena, apesar de todos os problemas, cresceu de maneira constante. São frutos diversos do trabalho de Rondon. Sobre a obra: Rondon, o marechal da floresta, de Todd Diacon, Comanhia das Letras: Rio de Janeiro, 2006.

193

Politica Democratica 17 - 25 de 193 193

26/3/2007 17:38:47


A esquerda européia . e a construção democrática Alberto Aggio

E

mbora não integralmente identificáveis, os vínculos entre esquerda e socialismo são historicamente incontestáveis. O socialismo foi um programa de mudança social e um movimento político que mobilizou milhões de pessoas na Europa durante os séculos XIX e XX. Ele marcou profundamente a história da esquerda européia, e é praticamente impossível se referir a ela sem levá-lo em consideração. O socialismo foi, pelo menos até a década de 1990, a referência central da esquerda européia, e os partidos socialistas e comunistas a hegemonizaram de maneira integral. Pode-se argumentar que aquilo que se entende por socialismo também variou desde o século XIX e, hoje, o seu significado é, sem dúvida, bastante diferente daquele que se postulava no passado. Nos últimos 20 anos, a hegemonia de comunistas e socialistas também se desvaneceu e, hoje, a esquerda européia vem buscando novos caminhos. Assim, narrar, analisar e refletir a respeito da história da esquerda e do socialismo europeu – uma tarefa cada vez mais monumental para qualquer investigador – implica mobilizar e estabelecer um domínio suficientemente claro tanto dessa dinâmica de largo prazo quanto das muitas outras referências que permeiam as históricas relações entre socialismo e esquerda na Europa. É essa a trilha que segue Geoff Eley no seu livro Forjando a democracia, cujo propósito é o de explicar a potência, as virtudes, os caminhos e descaminhos, as vicissitudes e os desafios históricos e atuais que marcam a esquerda européia. Ainda hoje a palavra “socialismo” continua a ser empregada para se fazer referência ao conjunto de partidos políticos oriundos historicamente do movimento operário europeu que emergiu e ganhou força na segunda metade do século XIX, mesmo que se reconheça que esse conjunto seja formado mais por diferenciações de seus componentes do que por uma homogeneidade clara. Como Geoff Eley afirma logo no início do seu livro, o socialismo é, antes de tudo, um referente histórico da esquerda européia – na verdade, o “núcleo da esquerda européia” –, ainda que esta tenha sido “sempre maior do que o socialismo” (p. 28-9). 194

Politica Democratica 17 - 25 de 194 194

26/3/2007 17:38:48


A esquerda européia e a construção democrática

Mas há uma referência maior em toda essa história e que Geoff Eley assume como central em seu trabalho. Procurando sintetizar o argumento nuclear do livro, poder-se-ia dizer que a democracia européia – e não um regime de tipo socialista – representa a grande construção histórica do socialismo e da esquerda naquele continente. A partir desse argumento central – que se expressa inclusive no título do livro –, Eley procura compreender o socialismo não como uma doutrina abstrata ou metafísica e, sim, como um movimento histórico que buscou permanentemente construir a democracia, tornando-a cada vez mais social e, portanto, ampliando seguidamente o seu escopo. Essa mesma perspectiva o faz analisar o papel da esquerda na luta e na construção de consensos democráticos nas diversas conjunturas que marcaram dramaticamente a história européia, especialmente no desenrolar do século XX. Eley evidencia uma visão precisa da situação histórica da democracia na Europa: ela não é uma “dádiva” nem está “assegurada”. No passado e no presente, a democracia “exige conflito, a saber, o desafio corajoso da autoridade, a assunção de riscos e atos de coragem temerária, o testemunho ético, confrontações violentas e crises gerais em que se rompe a ordem político-social dada” (p. 24). Na Europa, seu advento não representou, portanto, um fato natural nem derivou da prosperidade econômica, não sendo tampouco “subproduto inevitável do individualismo ou do mercado”. Para Eley, a democracia se estabeleceu e se consolidou, “porque uma grande quantidade de pessoas se organizou coletivamente para reivindicá-la” (p. 24). Somente depois de 1945 é que a democracia na Europa conseguiu se sustentar com base em um consenso amplo e profundo, capaz de garantir uma lealdade popular à ordem instituída no pós-guerra. Forjando a democracia insere-se, portanto, na linha historiográfica que procura analisar as práticas e a cultura política do socialismo europeu a partir dos seus significados concretos, assumidos no embate político de cada momento. Essa linha historiográfica tem gerado contribuições significativas para a história do socialismo e da esquerda, sempre a partir de questionamentos que antes eram desprezados ou sequer levantados. Forjando a democracia expressa, assim, uma espécie de visão reformista da história da esquerda, extremamente valorizadora da trajetória de conflito e de lutas do socialismo europeu. Nesse sentido, seria importante refletir brevemente aqui a partir do fato de que, na sua construção política, o socialismo não nasce como um ato teórico iluminado e, sim, como um movimento sociopolítico e cultural que assimilou concepções e valores de outros movimen195

Politica Democratica 17 - 25 de 195 195

26/3/2007 17:38:48


XI. Resenhas

tos e concepções de mundo, além de ter desenvolvido uma concepção própria. O socialismo havia nascido com o capitalismo industrial e teve suas origens nos estratos mais profundos da sociedade européia. Compartilhou com liberais, radicais e cristãos conservadores a visão de que o proletariado industrial era o setor social mais prejudicado pelo capitalismo, que lhe roubava a possibilidade de viver o que havia de positivo na existência humana. Como uma faceta já reconhecida por inúmeros historiadores, o socialismo obtém sua força motora espiritual tanto na razão do Iluminismo quanto na paixão do Romantismo. Se este engendrava visões revolucionárias nascidas de um mundo cheio de energia, sentimento e liberdade, aquele trazia ao socialismo, além das idéias, dois exemplos concretos de revolução: a Revolução da Independência norte-americana e a Revolução Francesa de 1789. Desta última, os socialistas se consideravam os herdeiros mais legitimados por defenderem intransigentemente a consigna liberdade, igualdade e fraternidade, não apenas do ponto de vista coletivo e público como também do ponto de vista privado e cotidiano. Como se sabe, o socialismo combinou uma concepção de liberdade nascida do Iluminismo com as demandas da igualdade nascidas do mundo do trabalhador pobre do século XIX, uma concepção que pode ser traduzida pela idéia de emancipação presente tanto no seu discurso quanto nos seus movimentos sociais. Marx havia registrado, com imensa agudeza de raciocínio, que a Revolução Francesa havia criado um novo ser histórico, expresso na figura do citoyen, e que caberia ao movimento operário a tarefa histórica de criar um novo homem. Esse viria a ser um desafio crítico do socialismo. A Revolução Francesa havia estabelecido a luta frontal contra a loi civil vigente, tanto no plano de uma loi politique, que dava base ao Antigo Regime absolutista, quanto no de uma loi de famille, que o sustentava no plano privado, perpetuando o domínio patriarcal. A dimensão política alimentaria as noções de liberdade e igualdade, enquanto a dimensão privada da família trazia à tona a questão da fraternidade entre os homens. No século XIX, essas duas dimensões se distanciaram e se desencontraram. O socialismo do século XIX, de acordo com um outro autor (Antoni Doménech. El eclipse de la fraternidad. Barcelona: Crítica, 2004), não soube avançar pela trilha da fraternidade, e isso acabou tolhendo a ampliação da sua perspectiva emancipadora. A avaliação de que, entre a consigna da Revolução Francesa e o socialismo, não 196

Politica Democratica 17 - 25 de 196 196

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:48


A esquerda européia e a construção democrática

existem apenas continuidade e desdobramento evolutivo, mas também uma certa descontinuidade introduz um elemento crítico na análise, que demandaria dos estudiosos uma “revisão republicana da tradição socialista”, para usarmos aqui uma expressão de Doménech. O que devemos registrar como altamente interessante é que, num certo sentido, há um reconhecimento implícito desta ponderação por parte de Eley, no momento em que ele enfatiza que, no século XX, a fixação dos socialistas no terreno da “política de classes” parece ter mantido o problema nos mesmos termos, afastando parcelas importantes da população, especialmente as mulheres, da área de influência do socialismo (p. 29). Em outras palavras, o socialismo perdia sua integridade no sentido de um programa radicalmente moderno em troca de uma ação cada vez mais concentrada nos interesses do mundo do trabalho, que encontravam ressonância especialmente na noção de igualdade social. Não se tratou objetivamente de um “erro teórico”, mas, sim, de limites de uma prática contingente, de uma opção pela ação que redundaria mais direta e facilmente em apoios para o movimento e, eventualmente, para os partidos do socialismo. Este é apenas um dos planos de que aqui lançamos mão para expressar que, além do livro de Eley, existe um conjunto de investigações que assume e justifica plenamente uma releitura crítica da história do socialismo, uma vez que os limites, as restrições e as exclusões conformavam-se como a outra face das opções estratégicas adotadas pelo socialismo europeu. Em outras palavras, a política também foi, para o socialismo, um caminho de racionalidade voltado para fins de poder e de transformação. E, como afirma Eley, “se as transformações contemporâneas expuseram as fraquezas do socialismo no presente, especialmente as conseqüências excludentes de concentrar a estratégia democrática na ação progressista da classe operária, então essas idéias têm muito a nos ensinar sobre as limitações do socialismo também em épocas anteriores” (p. 28). Contudo, a política não foi apenas negativa e ensinou algo de positivo aos socialistas. Eley confirma que os socialistas, desde os primórdios, evitaram levar uma política isolacionista no interior das sociedades onde atuaram, e encontraram, especialmente nos liberais e nos radicais de outros setores sociais, aliados para suas ações. Os socialistas sempre precisaram de aliados e nunca alcançaram seus objetivos por si mesmos, quer fosse para difundir suas idéias publicamente e fazer suas agitações, quer para se afirmarem 197

Politica Democratica 17 - 25 de 197 197

26/3/2007 17:38:48


XI. Resenhas

institucionalmente, organizando greves, concorrendo às eleições ou mesmo formando governos. Em sua trajetória de afirmação política, o socialismo possibilitou às massas uma integração ao sistema da ordem que, após a grande guerra civil européia de 1914 a 1945, acabaria por produzir aquilo que, certa vez, J. Habermas chegou a qualificar como a grande construção da modernidade ocidental: o Estado de Bem-Estar social. Muito já se escreveu sobre o Estado de Bem-Estar social, e as críticas a seu respeito parecem respeitáveis. Contudo, é importante levar em conta que, apesar de não ter elaborado um projeto de emancipação coerente, o Estado de Bem-Estar social produziu, de fato, os cidadãos autônomos e críticos que o socialismo pretendia gerar. Mais do que isso, foi a partir da sua construção que o socialismo se vinculou direta e profundamente com a democracia, oferecendo à sociedade européia um sentido de futuro. Somente a partir desse momento, afirma Eley, “a democracia iria se tornar genuinamente universal, porque finalmente as mulheres teriam o direito de votar” (p. 560). Entretanto, o tempo não passou em vão. As três últimas décadas do século XX produziram mudanças de tal ordem na estrutura do mundo que as bases de referência do socialismo ruíram integralmente: a estrutura produtiva foi alterada de maneira drástica, reduzindo muito a necessidade de mão-de-obra; um cenário pós-fordista foi se estabelecendo, ao mesmo tempo em que diminuíam a auto-organização coletiva, a vida associativa e diversas dimensões que davam sustentação ética à cultura política do socialismo. Essas mudanças, de acordo com Eley, proporcionariam a destruição do “entorno de que a tradição socialista havia necessitado para crescer” (p. 560) e talvez tenham sido mais profundas e decisivas, assim como seus efeitos mais desmoralizantes, do que o colapso final do comunismo (p. 549). O resultado foi o estabelecimento de uma situação crítica para o socialismo e para a esquerda, o que acabou por colocar em questionamento profundo alguns aspectos da sua tradição, entre estes a própria concepção que os socialistas construíram da história. Como um dileto filho do Ocidente — que levou ao paroxismo a busca de uma sociedade diferente, a qual funcionasse com base no planejamento —, o socialismo se pensou como uma utopia. Hoje, resta muito pouca coisa a propósito da noção de que o socialismo poderia ser concebido como uma sociedade cujos fundamentos estariam assentados na direção que tomava o avanço progressista da

198

Politica Democratica 17 - 25 de 198 198

Política Democrática · Nº 17

26/3/2007 17:38:48


A esquerda européia e a construção democrática

história, bem como na crença de que se poderia não apenas conhecer como controlar o mecanismo e a dinâmica dessa história. Se, como afirma Eley, “o socialismo começou com a ambição de abolir o capitalismo, de construir uma democracia igualitária a partir da riqueza que o capitalismo oferecia”, no final do século XX “o socialismo havia se transformado num ideal ainda mais difuso, numa ética política abstrata baseada na justiça social” (p. 549). Eley não considera o seu livro um epitáfio da esquerda e do socialismo europeu e procura sustentar a sua chave de leitura num ponto crítico: “se o socialismo foi essencial para as melhores conquistas da democracia, insisto, o fato é que as possibilidades da democracia sempre superaram o alcance do socialismo” (p. 571-2). O capítulo conclusivo de Forjando a democracia tem como epígrafe um fragmento de texto de Stuart Hall, de 1989, que vale a pena aqui reproduzir: Gramsci disse: “Volte violentamente o rosto na direção das coisas que existem hoje”. Não como você gostaria que elas fossem nem como você imagina que elas eram dez anos atrás, não como são descritas nos textos sagrados, mas como realmente são: o terreno contraditório e pedregoso da conjuntura atual (p. 559). É cristalino o fato de que, hoje, o socialismo não se configura mais como um programa de ação revolucionária, tal como pretendeu ser ou, de fato, foi nos séculos XIX e XX. Não se sustenta tampouco como uma tradição. Para o socialismo, não parece haver futuro a ser buscado no passado. Resta a ele encontrar a melhor maneira de colher os frutos de uma necessária e real contaminação cultural que alargue o campo de afirmação de um novo reformismo, estratégia que poderá lhe dar um novo sentido histórico. Ler criticamente o livro de Eley ajuda a refletir nessa direção. Sobre a obra: Forjando a democracia: a história da esquerda na Europa, 1850-2000, de Geoff Eley, Editora Fundação Perseu Abramo: São Paulo, 2005.

***

199

Politica Democratica 17 - 25 de 199 199

26/3/2007 17:38:48


Produção Editorial

Projeto e Edição Final Tereza Vitale CLSW 302 • Bloco B • Sala 123 • Ed. Park Center CEP 70673-612 • Setor Sudoeste Fone (61) 3033-3704/9986-3632 tereza@intertexto.net

Ficha Técnica Corpo do texto: Bookman Old Style (10/12, 8) Títulos: Bookman (20/24) Papel Reciclado 75g/m2 (miolo) Papel offset 100% reciclado, produzido em escala industrial, a partir de aparas pré e pós-consumo.

Distribuição:

Fundação Astrojildo Pereira

Fone: (61) 3224-2269 · Fax: (61) 3226-9756 e-mail: contato@fundacaoastrojildo.org.br www.fundacaoastrojildo.org.br

Politica Democratica 17 - 25 de 200 200

26/3/2007 17:38:49


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.