Inflação?
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Política Democrática Revista de Política e Cultura www.politicademocratica.com.br
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Ficha catalográfica Política Democrática – Revista de Política e Cultura – Brasília/DF: Fundação Astrojildo Pereira, 2008. Nº 21, julho de 2008 200 p. 1. Política. 2. Cultura. I. Fundação Astrojildo Pereira. II. Título. CDU 32.008.1 (05) Os artigos publicados em Política Democrática são de responsabilidade dos respectivos autores. Podem ser livremente veiculados desde que identificada a fonte.
Política Democrática Revista de Política e Cultura Fundação Astrojildo Pereira
Inflação?
Julho de 2008
Sobre a capa
A
capa e a contracapa desta edição são reproduções de belos trabalhos do escultor, desenhista, gravador e ceramista Abelardo da Hora. Nascido em São Lourenço da Mata/PE, no ano de 1924, é irmão do cantor Claudionor Germano e do médico e escritor Bianor da Hora. Depois de freqüentar o curso de Artes Decorativas no Colégio Industrial, fez o curso livre de Escultura na Escola de Belas Artes, em Recife, ali chamando a atenção do industrial Ricardo Brennand que o contratou e para quem realizou vários trabalhos em cerâmica, jarros florais e pratos com motivos regionais em relevo e em terracota. Em 1945, foi para o Rio de Janeiro onde trabalhou num atelier improvisado na garagem da casa de Abelardo Rodrigues. De volta ao Recife, preparou uma mostra dos seus trabalhos, a qual teve grande repercussão pelo conteúdo e forma, mas também porque foi a primeira exposição de esculturas realizada na capital pernambucana. Nesse ano de 1948, criou, com Hélio Feijó, a Sociedade de Arte Moderna, da qual foi presidente por dez anos. Elaborou, entre 1955 e 1956, a pedido da prefeitura recifense, esculturas de tipos populares que hoje ainda encantam quem passa por algumas das praças da cidade. Foi eleito delegado de Pernambuco na Seção Brasileira da Associação Internacional de Artes Plásticas, da Unesco, em 1956. Na década de 60, exerceu várias atividades em Recife, dentre elas: diretor da Divisão de Parques e Jardins, secretário de Educação e diretor da Divisão de Artes Plásticas e Artesanato, além de ter sido um dos fundadores do Movimento de Cultura Popular. Dentre as inúmeras exposições de que participou, destacam-se: Salão de Arte Moderna, no Recife, 1949 (Prêmio Fídias); Salão Nacional de Belas Artes (RJ) (Menção Honrosa, 1949, e Medalha de Bronze, 1950); Salão Nacional de Arte Moderna (RJ), entre 1957 e 1966; Oficina Pernambucana, no MAC/USP, 1967; Panorama de Arte Atual Brasileira, no MAM/SP, entre 1975 e 1981; A Escultura Brasileira no Século XX, no Masp/SP, 1980; Tradição e Ruptura: Síntese de Arte e Cultura Brasileiras, na Fundação Bienal de São Paulo, 1984; Bienal Internacional de São Paulo, 1985. Lançou, em 1962, o álbum de desenhos Meninos do Recife e, em 1967, a coleção de desenhos Danças brasileiras de carnaval, na Galeria Mirante das Artes, em São Paulo. Após o golpe de 1964, ao ter seus direitos políticos cassados pela condição de comunista, o artista começou a explorar com maior vigor a sensualidade, criando uma série de mulheres em concreto armado, encerado e polido. Em 2005, funda-se em Olinda o Instituto Abelardo da Hora, com o objetivo de preservar sua obra e manter o acervo do artista disponível ao público, além de promover a cultura a todas as camadas sociais, bandeira levada à frente pelo próprio artista.
Sumário
I. Apresentação Caetano Araújo........................................................................................................... 11
II. Tema de capa – Inflação? Chegando nos limites – Um diagnóstico da economia brasileira
Tony Volpon................................................................................................................ 15
Considerações sobre o atual quadro inflacionário brasileiro
Marco Lemgruber........................................................................................................ 22
Fome dá lucro
Jorge Romano............................................................................................................. 29
III. Batalha das idéias O desenvolvimento exigente
Marco Aurélio Nogueira............................................................................................... 39
De organizações populares e movimentos sociais brasileiros
Rudá Ricci................................................................................................................... 45
A sucessão de Lula e o retorno do nacional-popular
Luiz Werneck Vianna.................................................................................................. 49
IV. Observatório Político O “momento Allende”: Entre reforma e revolução
Alberto Aggio............................................................................................................... 59
Uma nova cosmópolis européia e mundial
Giorgio Baratta........................................................................................................... 68
5
Ainda há lugar para a ditadura do proletariado?
Fernando Magalhães.................................................................................................. 74
V. O Social e o Político Movimentos sindicais e corporativos como atores da democracia
Francisco de Sousa Andrade...................................................................................... 83
O controle social da administração pública brasileira
Antonio Silva Magalhães Ribeiro................................................................................ 94
O desenvolvimento local na era da globalização
Agnaldo de Sousa Barbosa....................................................................................... 101
VI. Os 120 anos da Abolição da Escravatura A Abolição como revolução social
Mário Maestri............................................................................................................ 111
Racismo antinegro, um problema estrutural e ideológico das relações sociais brasileiras Henrique Cunha Junior............................................................................................. 118
O desenvolvimento wconômico e o tema das relações raciais no Brasil Marcelo Paixão.......................................................................................................... 128
VII. Mundo O voto italiano e o Partido Democrático
Alfredo Reichlin . ...................................................................................................... 139
As causas da crise no PRD
Jesús Ortega Martínez ............................................................................................. 143
6
América Latina: A política social sem politica Fernando de la Cuadra............................................................................................. 151
VIII. Vida Cultural Transformações do popular na cultura contemporânea: tradição e inovação na Recife dos anos 90 Anna Paula de Oliveira............................................................................................. 163
IX. Memória Nos quarenta anos de 1968 Eugênio Mattos Viola................................................................................................ 171
Celebrando os 90 anos de Armênio Guedes Luiz Sérgio Henriques e Raimundo Santos............................................................... 174
Intelectuais, política e cultura: Breve análise sobre Caio Prado Júnior e Alberto Passos Guimarães no PCB Ricardo Oliveira da Silva.......................................................................................... 181
X. Resenha Entre afinidades eletivas e escolhas pragmáticas André Botelho........................................................................................................... 191
Estado e cinema no Brasil Jean-Claude Bernardet............................................................................................. 195
Por uma nova cultura política Clayton Romano....................................................................................................... 197
7
I. Apresentação Caetano E. P. Araújo Professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília – UnB e consultor legislativo do Senado Federal caetano@senado.gov.br
O
tema de capa desta edição de Política Democrática é a ameaça da volta da inflação. O tema retorna, com razão, ao debate político e às manchetes da mídia. Após anos de controle relativamente bem sucedido, e do bônus político que isso representa em termos de popularidade e dividendos eleitorais, o governo Lula vê-se às voltas com pressões inflacionárias resistentes, de origem interna e externa. Os riscos, econômicos e políticos, são grandes, o que justifica o destaque que este número da revista confere ao tema. Importa analisar o caráter do surto inflacionário atual, suas possíveis causas e as medidas necessárias à sua superação. Esses os objetivos dos três artigos dedicados ao assunto, assinados respectivamente por Tony Volpon, Marco Lemgruber e Jorge Romano. No entanto, a leitura dos três textos revela outra temática latente, misturada aos diagnósticos feitos e soluções propostas, que cada um dos autores explicita a seu modo, de forma sempre parcial: qual o papel do Estado hoje, numa perspectiva de esquerda, progressista e democrática? Nesse plano de generalidade, vemos que os artigos sobre inflação debatem questões que também estão presentes em muitos dos demais artigos aqui publicados. Na discussão das idéias e da conjuntura, da política do passado e do presente, do Brasil e do mundo, a mesma pergunta perpassa os argumentos: que é do Estado hoje, na perspectiva da mudança? Desenvolvimento local, controle social sobre o Estado, movimentos populares e sindicais são facetas dessa discussão. Da mesma forma, as dificuldades da esquerda na Itália, América Latina ou no caso específico do México. Luiz Werneck Vianna discute a sucessão de Lula na perspectiva do retorno do nacional-popular. Ambos os conceitos procuram caracterizar, entre outras coisas, tipos e formas de atuação do Estado, assim como tipos e formas alternativas. Mesmo nos artigos em que a história encontra-se mais presente, na seção de memória ou na análise de Alberto Aggio do “momento Allende”, o pano de fundo inescapável é a perspectiva do presente, que confere significados novos às lutas políticas do Chile (à reforma e à revolução) do início da década de 1970 e à história política e intelectual dos militantes e dirigentes do PCB. 11
Emergem da discussão alguns pontos de consenso, bem como lacunas igualmente significativas, lacunas que apontam, a meu ver, o rumo que o debate deve tomar, de modo a, pelo menos, dar visibilidade às ambigüidades e eventuais divergências que o permeiam. O consenso maior parece residir na constatação do fracasso do receituário desenvolvido pela esquerda tradicional. Fracasso que atingiu não apenas as sociedades representativas do socialismo real, evidenciado nos acontecimentos que se seguiram à queda do muro de Berlim, mas o processo mesmo de sua construção, ou seja, os caminhos revolucionaristas de alcance do poder. Nessa linha, Marco Aurélio Nogueira constata uma falência ainda mais ampla, que teria condenado simultaneamente o capitalismo clássico predador de recursos humanos e materiais, a tentativa neo liberal de conferir-lhe uma sobrevida e o desenvolvimentismo pastoreado pelo Estado, à moda latino-americana das décadas de 1930 a 1970. Esse processo de falência múltipla teria arrastado a esquerda ao naufrágio. Na situação presente precisamos construir pactos, condições de cooperação, um Estado de novo tipo, mas não sabemos ainda como exatamente atender essas demandas. A discussão de Tony Volpon exibe um paralelo interessante com o argumento de Marco Aurélio Nogueira. É apresentado um diagnóstico amplo do ciclo de estabilidade com crescimento moderado que caracterizou o atual governo. Com ele, são expostas também as razões da prosperidade e seus limites internos e externos. A oportunidade de iniciar uma etapa de desenvolvimento mais acelerado e constante é considerada perdida, porque as reformas necessárias para aumentar a capacidade de poupança do país e a produtividade da economia não foram realizadas. Em suma, a bonança nos caiu do céu, com a melhora dos preços de produtos agrícolas e minerais. Não fizemos força para enriquecer e voltaremos à pobreza (ao crescimento medíocre) quando os limites externos ou internos ao ciclo atual forem atingidos. Também aqui, a receita do reformismo aparece como ponto de consenso partilhado com a maior parte dos demais autores. Contudo, que reformismo é esse? Para qual Estado queremos ir? Qual a estratégia para um desenvolvimento exigente, para retomar a expressão de Marco Aurélio Nogueira? Nossa lacuna aqui é semelhante: sabemos do que precisamos, mas o caminho político para chegar lá não está claro para nós. Esse é o caminho, no entanto, do debate politicamente frutífero e as próximas edições de nossa revista a ele voltarão.
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II. Tema de capa Inflação?
Autores Tony Volpon
Economista, com graduação na Universidade McGill e mestrado na Universidade de Western Ontarion, no Canadá. Autor de A globalização e a política: de FHC a Lula (Editora Revan, 2003), atualmente é economista-chefe da corretora CM Capital Markets, em São Paulo.
Marco Lemgruber
Mestre em Ciência Política e Economista. Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, é diretor de Relações Institucionais da Associação Brasileira de Produtores de Discos – ABPD.
Jorge Romano
Doutor em Ciências Sociais pelo CPDA da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, é membro da ActionAid Brasil.
Chegando nos limites – Um diagnóstico da economia brasileira Tony Volpon
C
omo qualificar as recentes mudanças na economia brasileira? Teria o Brasil, ao receber recentemente o selo de “grau de investimento”, achado o caminho do desenvolvimento sustentável? Seria a gestão da economia da “era Lula” uma mera continuação daquilo visto com FHC, ou houve uma guinada relevante em direção a um novo modelo desenvolvimentista? Vamos argumentar que houve importantíssimas mudanças na economia e na política econômica da “era Lula”. O bordão, infelizmente muito repetido, que a gestão econômica de Lula é uma continuação “neoliberal” das políticas de FHC não somente não se sustenta perante os fatos, mas impede uma avaliação crítica que identifique caminhos alternativos. Apesar de todas as mudanças que ocorreram em relação à época FHC, não há como negar que existe um elo de continuidade importante entre esses dois momentos que precisamos qualificar. Hoje virou lugar comum ver no Plano Real o marco zero da estabilização da economia brasileira. A verdade, porém, foi um tanto mais complicada. Como analisamos extensivamente1, o Plano Real acabou, por razões mais ideológicas do que econômicas, tomando uma estrutura interna altamente instável, especialmente no que tange à política cambial. Somente depois de sofrer seguidos golpes com uma 1 Ver Globalização e a Política: de FHC a Lula (Ed. Revan, 2003).
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II. Tema de capa – Inflação?
sucessão de crises e vencendo o desafio da reeleição é que se chegou a um novo, sustentável, formato. A verdade é que podemos falar em uma economia brasileira estável a partir do ano 2000. Chegando na segunda parte do segundo mandato de FHC, a economia brasileira se achava estável, mas altamente endividada (apesar do “maior programa de privatização do mundo”) e com níveis de crescimento muito abaixo de países com semelhantes graus de desenvolvimento. De fato, devemos aqui lembrar que o início do governo Lula não parecia trazer grandes perspectivas para a economia brasileira. Ter aceitado, na famosa “Carta ao povo brasileiro”, as principais teses econômicas do mercado salvou o Brasil da bancarrota, mas fechou as portas a qualquer mudança mais ousada na política econômica. Para acalmar o mercado e debelar um forte surto inflacionário causado pelo ataque especulativo deflagrado contra a sua eleição, Lula se viu forçado em pleno início de governo a aumentar o nível dos juros e do superávit primário, ambas medidas recessivas. Fora do Brasil, a economia mundial ainda sofria os efeitos do estouro da bolha acionária e dos ataques terroristas a Nova York, como o início das guerras de George W. Bush. Em resumo, tudo parecia conduzir à continuidade do baixo crescimento econômico visto no governo FHC. Ou quase tudo. Pouco notado na época, até porque sua real causa estava geograficamente bem longe daqui ou das economias centrais, os preços das commodities atingiram suas cotações mínimas em 2002 para, a partir daí, iniciar uma das maiores escaladas de alta da história. As razões para esse incrível, e totalmente inesperado, movimento são hoje bem conhecidas. O ciclo de crescimento asiático, liderado pela China, entrou naquela época em uma fase de intensiva industrialização que, junto com fortíssimo crescimento do perímetro urbano e migração das áreas rurais, gerou uma demanda exponencial por commodities básicas de todos os tipos, fundamentalmente alterando a relação entre oferta e demanda em diversos mercados. Qual a importância econômica básica desse evento para o Brasil? Correndo um certo risco de simplificar demasiadamente as coisas, podemos dizer que o boom das commodities fez o Brasil ficar mais rico sem ter que fazer nada. O mecanismo econômico que explica isso é fácil de entender. O custo da extração mineral ou produção agrícola é basicamente estável, com o lucro sendo função da intercessão de uma oferta relativamente inelástica (isto é, pouco sensível a mudanças de preço) 16
Política Democrática · Nº 21
Chegando nos limites – Um diagnóstico da economia brasileira
contra uma demanda flutuante e muitas vezes instável. Uma súbita escalada de preços gera fortes lucros nessas atividades, já que a oferta tem muito pouco o que se ajustar. Vemos então a geração de um forte excedente econômico, uma “mais-valia” extraída dos consumidores para os produtores. Os benefícios macroeconômicos de tal “choque exógeno positivo” são hoje conhecidos: forte aumento das exportações, acúmulo de reservas, apreciação cambial etc. Notamos que tudo isso ocorre naturalmente em qualquer economia capitalista, basta “deixar o mercado funcionar”. Porém, queremos aqui enfatizar efeitos mais sutis do que os macroeconômicos. Vemos nesses efeitos a chave para explicar as políticas econômica e social lulistas, o que aconteceu e o que deve acontecer com a economia brasileira. Para tal devemos começar perguntando: Com quem fica esse excedente econômico? Diretamente esse excedente passa para os donos e trabalhadores do setor, mas um quinhão não desprezível vai para o governo. Se olharmos a variação de arrecadação do imposto de renda das pes soas jurídicas, depois do ajuste econômico promovido em 2003-2004 superar 20% ao ano, houve muito mais que o crescimento da renda nominal da economia. Os efeitos para os donos desses recursos podem ser medidos pela meteórica alta nos preços das ações das empresas ligadas a esse setor. Em dólares, os preços de algumas ações como Gerdau, CSN, Vale do Rio Doce, Petrobras etc. chegam a variar em até quarenta vezes os preços de 2002, gerando fortunas fabulosas em um concentrado espaço de tempo. Quais os efeitos dessa súbita geração de riqueza? Aqui precisamos apreciar dois efeitos distintos, que podemos denominar de “efeitos de renda” e “efeitos patrimoniais”. Efeitos de renda representam o resultado mais óbvio da revalorização dos recursos naturais, o fato de cada unidade vendida gerar uma receita imediata maior. Mas é no menos transparente efeito patrimonial que temos o fator causal mais importante. Isso porque a súbita revalorização do patrimônio ligado ao setor de commodities possibilita o início de um processo de acumulação e diversificação de capital via operações de crédito (usando o patrimônio como colateral) e alienação de parte do patrimônio (via, por exemplo, operações de lançamento de ações na bolsa, ou IPOs). O eventual efeito multiplicador na atividade do efeito patrimonial, muitas 17
II. Tema de capa – Inflação?
vezes, supera o efeito de renda, porque efetivamente essas operações possibilitam monetizar no presente (ou, usando o jargão do mercado, “trazer a valor presente”) a alienação futura desses ativos. Enquanto o efeito renda engloba os benefícios imediatos, o efeito patrimonial engloba todo o futuro que, em parte, se torna presente. É por isso que podemos ver os preços das ações do setor subirem de forma tão explosiva como aconteceu nesses últimos anos. Esse novo ciclo de acumulação gera efeitos secundários de forte impacto sobre consumo, investimento e receita tributária/gastos do governo. Sobre os investimentos, a nova atratividade do setor direciona recursos para desenvolvê-lo, por grupos nacionais e internacionais. Os canais aqui são investimentos diretos e recursos levantados na bolsa de valores. Além disso, a parcial ou total alienação do patrimônio ligada a esse setor efetivamente “liquidifica” patrimônio antes fixo, o que possibilita novos investimentos (como maior consumo). Esses efeitos não são restritos a setores ligados diretamente à produção de commodities. Na medida em que esse setor inicia um novo ciclo de acumulação, outros setores se beneficiam igualmente por atender essas novas demandas, o que gera neles também, em menor grau, é verdade, um novo ciclo de atividade e de acumulação. Vemos então fortes impactos sobre toda a economia a partir do “choque” de preços inicial. Que este choque se acumulou durante anos e somente agora começa a dar alguns sinais de esgotamento explica boa parte do que ocorreu de positivo do início do governo Lula até hoje. Mas os efeitos desse ciclo das commodities por si só não explicam a recente exuberância econômica. Sem esse choque externo, sem dúvida, as muitas melhoras que hoje observamos não teriam ocorrido, e, de fato, muito provavelmente a economia brasileira continuaria sua performance medíocre dos anos FHC. Houve sim uma grande inovação com Lula, em termos da economia. Quase sempre monopolizado pelo Estado, e grandes empresas do setor privado, começamos a ver um novo ciclo de endividamento direcionado aos consumidores. Isso acontece por um conjunto de fatores. Primeiro, a consolidação da estabilidade econômica, atingida no final da era FHC, seria condição necessária, mas não suficiente. Segundo, houve algumas importantes inovações, como o crédito consignado e outras mudanças nas leis, que deram maiores garantias aos credores. Terceiro, os muitos efeitos benéficos do boom das commodities, tanto no nível macroeconômico como no microeconômico, como um maior crescimento 18
Política Democrática · Nº 21
Chegando nos limites – Um diagnóstico da economia brasileira
da renda e do emprego, levaram o setor financeiro, antes contente a se beneficiar do endividamento crônico do Estado, a finalmente perseguir a pessoa física. Com isso, o crédito total em relação ao PIB, que foi de 24% em 2004, hoje já chega a ser 36% do PIB. Isso adiciona novo fator de acumulação e aceleração da atividade econômica. A concessão de crédito é, como o “efeito riqueza” descrito antes, outra forma em que uma renda futura pode ser “trazida a valor presente” e utilizada hoje. O trabalhador, antes restrito a gastar seu salário ganho, hoje pode gastar seu salário futuro. Com tantos efeitos positivos e multiplicadores, teria então o Brasil finalmente iniciado um ciclo duradouro de desenvolvimento econômico e social? Infelizmente, a resposta parece ser não, por razões internas e externas. No ambiente externo, a economia internacional se acha em um momento de forte contradição. Os efeitos cumulativos do ciclo atual de globalização, agora liderado por países “emergentes” tendo a China em primeiro lugar, estão hoje empurrando a capacidade produtiva do sistema capitalista mundial ao seu limite. É que não há formas de milhões de pessoas, antes pobres, subitamente alcançarem padrões de consumo ocidental sem gerar fortes desequilíbrios econômicos, hoje mais evidentes no aumento da inflação mundial. E isso sem discutir os danos sobre o meio ambiente que esse modelo de globalização implica. Temos, nesse momento, também que pensar a questão geopolítica e suas conseqüências. Hoje, a ascensão econômica dos países emergentes representa uma perda relativa de poder pelas potências centrais, especialmente os EUA. A quase contínua queda no valor do dólar americano é a face mais evidente desse declínio. Mas apesar disso, hoje os EUA ainda têm o poder de impor, se assim desejar, um ajuste econômico sobre o mundo, como aconteceu no início dos anos 80 em uma conjuntura que muito lembra a de hoje. Não é desprezível o risco de, talvez de forma aguda, podermos ver uma virada na postura americana implicando forte restrição monetária, aumento no valor do dólar, queda na atividade mundial e forte queda nos preços das commodities. O gigante pode estar machucado, mas continua sendo gigante. Além das contradições externas, temos também um conjunto de desafios estritamente locais. A grande contradição da era lulista na economia, turbinada por ciclos coincidentes de commodities e crédito, é a incapacidade da economia brasileira em gerar a poupança para sustentar o atual ciclo de acumulação. Apesar do forte incre19
II. Tema de capa – Inflação?
mento de renda e riqueza dos últimos anos, a expansão simultânea do consumo do governo e dos trabalhadores, como forte demanda por investimentos, tem esgotado a ainda esparsa oferta de poupança. O que vemos nesses últimos anos é um ciclo “monetário”, baseado na expansão nominal dos balanços das instituições financeiras financiando consumo e investimento. A contrapartida dessa expansão monetária é uma maior utilização dos recursos domésticos e a utilização de poupança externa, com a volta dos déficits em conta corrente e a inflação. Temos, então, dois horizontes limites para o atual ciclo de expansão da economia brasileira. Do lado do boom das commodities, quando houver a eventual acomodação dos preços (nem estamos falando em queda), chegará a seu fim a habilidade dos donos de recursos de extrair novos excedentes. O sistema financeiro, ciente que o valor dos ativos parou de subir, imediatamente limitará a expansão do setor. O que devemos ter em mente, exceto na impossível tese que os preços nunca vão parar de subir, é que o impulso inicial se esgote. De fato, a história brasileira é farta em tais exemplos, e é um mistério, porque os analistas de hoje esquecem o óbvio e tão fartamente ilustrado fato do nosso passado que ciclos de commodities nunca duram para sempre. No ciclo de crédito também há limites. Sem uma oferta contínua e de igual magnitude de poupança (como ocorre nas economias asiáticas e explica a longa duração dos seus ciclos de crescimento) a expansão à base de crédito implica uma alavancagem crescente do setor financeiro. Essa dinâmica leva, eventualmente, ou a uma queda natural na oferta de crédito ou, o que não é nada incomum, a uma crise de crédito devido à superexpansão durante os tempos de otimismo. Em ambos os casos, o impulso inicial também se esgota. Quando e em qual seqüência esses diferentes limites vão se concretizar, é impossível dizer. Certamente o perigo mais iminente é o externo. Mas é possível ver uma situação em que um choque externo provoca uma aceleração dos limites internos. Um cenário possível seria um forte aperto monetário internacional, levando a uma queda nos preços das commodities. Em tal cenário, haveria uma retração natural, e talvez caótica, na concessão de crédito, o que causaria um forte efeito contracionista sobre a atividade econômica. Mas os limites internos aqui discutidos não precisam de nenhum grande choque externo para serem alcançados. O que aconteceria no caso da crise se iniciar lá fora? Dependendo do tamanho do choque, tendo os preços e demanda por commodities como índice mais evidente, a economia brasileira poderia até enfren20
Política Democrática · Nº 21
Chegando nos limites – Um diagnóstico da economia brasileira
tar uma recessão. Algo pior só deve acontecer se a crise externa tomar proporções inéditas. Mas independente do eventual tamanho do ajuste inicial, o grande problema para o Brasil é que, passando esse ajuste, voltaríamos, sem esses impulsos extraordinários do mercado de commodities e crédito, a, mais uma vez, ter níveis de crescimento medíocres e insatisfatórios do ponto de vista econômico e social. A grande tragédia da “era Lula”, algo que a posteridade vai reconhecer, foi a incapacidade do governo de usar essa grande oportunidade histórica, esses anos de sorte, para construir os alicerces de uma economia com o potencial de crescer de forma mais independente do ciclo das commodities. Para tal, teríamos que ter realizado reformas para aumentar, de um lado, a capacidade de poupança nacional e, do outro, a produtividade dos setores não ligados ao consumo ou à produção de commodities. O que vimos foi basicamente uma forte expansão do consumo. Isso certamente torna qualquer um politicamente popular no curto prazo. Porém, quando os limites aqui discutidos forem efetivados, essa popularidade pode subitamente evaporar. Devemos lembrar que não é somente a economia que sofre de ciclos.
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Considerações sobre o atual quadro inflacionário brasileiro Marco Lemgruber
N
ão há dúvidas de que o atual quadro de subida da inflação é uma realidade com a qual nós deveremos conviver por, pelo menos, mais alguns meses. Entender a magnitude desta elevação dos preços, suas causas e conseqüências são os objetivos deste artigo. A projeção dos principais analistas aponta para uma inflação superior a 6% para o ano de 2008, o que seria 1,5p.p. acima do centro da meta (4,5%) fixada pelo Conselho Monetário Nacional1. Os últimos dados divulgados pelo Banco Central apontam para uma elevação contínua da inflação ao longo do trimestre encerrado em maio. O IPCA, como podemos verificar na Tabela 1, acumulou alta de 2,88% nos cinco primeiros meses do ano. As atuais previsões indicam que a alta do IPCA em 2008 será da ordem de 6,3%, enquanto que em 2007 ela foi de 4,5% e em 2006 de 3,1%. Se as previsões se confirmarem, a inflação deste ano seria 40% maior do que a do ano passado. Tabela 1 Variação no Índice Nacional de Preços ao Consumidor – IPCA (acumulado jan-mai) em % Ano
Elevação Percentual
Variação Percentual em relação ao ano anterior
2008
2,88
60,89
2007
1,79
0,43
2006
1,75
Fonte: Bacen
Outros índices também mostram a elevação nos preços que o país está enfrentando nos últimos meses2. A Tabela 2, a seguir, mostra a
1 Um regime de metas de inflação é aquele no qual as ações da política monetária, sobretudo a fixação de taxa de juros básica, são guiadas com o objetivo explícito de obtenção de uma taxa de inflação (ou de nível de preços) previamente determinado. 2 Uma análise detalhada sobre a inflação atual encontra-se no Relatório de Inflação do Banco Central, de junho de 2008.
22
Considerações sobre o atual quadro inflacionário brasileiro
variação nos preços ocorrida nos últimos doze meses que terminaram em dezembro de 2007 e maio de 2008. Tabela 2 Variação Percentual da Inflação Acumulada no Brasil (dez 2007 e mai 2008) – Diversos Índices Inflação acumulada nos doze meses com final em dezembro de 2007
Inflação acumulada nos doze meses com final em maio de 2008
Incremento da Inflação acumulada maio de 08/ dezembro de 2007
IGP-DI
7,89
12,14
53,86
IPC-BR
4,60
5,59
21,52
INCC
6,15
8,06
31,05
Índice
Fonte: Bacen
Apesar de alguns problemas endógenos, que citaremos adiante, é consenso que a atual pressão nos preços surge, sobretudo, de variáveis exógenas. Uma economia pode ter inflação importada do exterior dependendo da variação de preços dos produtos importados ou da variação nominal da taxa de câmbio. A taxa de câmbio não tem sofrido variações significativas que resultem em pressão sobre os preços internos. No entanto, alguns preços de produtos comercializados internacionalmente têm influenciado a nossa inflação. Podemos listar os elevados preços das commodities agrícolas e do petróleo, como causas fundamentais na elevação dos preços internos. Esta inflexão ascendente na curva da inflação é um fenômeno que não está restrito ao Brasil. A média da inflação mundial está em seu maior nível desde 19993. Na União Européia, a inflação dos últimos 12 meses em euro será a maior desde que os dados estatísticos começaram a ser coletados, em 1997. Na América Latina, o quadro é o mesmo, inflação em alta em quase todo o continente. Segundo o Fundo Monetário Internacional, a taxa média de inflação na região aumentou para 7,5% em abril de 2008, em comparação a 5,2% no mesmo período do ano passado. O principal fator de pressão sobre os preços tem sido o preço dos alimentos. Esta elevação é fruto do crescente desequilíbrio entre oferta e demanda por alimentos. Do lado da demanda, houve uma significativa elevação devido à inserção de milhões de pessoas ao consumo de alimentos por causa do robusto crescimento da economia internacional nos últimos anos e ao aumento populacional. Por 3
Uma boa análise sobre a inflação internacional foi elaborada pelo The Economist, em 22 de maio, sob os títulos de “Inflation’s back” e “Inflation in emerging economies: An old enemy rears its head”.
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II. Tema de capa – Inflação?
outro lado, este aumento da demanda por alimentos, infelizmente, não foi acompanhado por um aumento da oferta. Parte desse problema deve-se ao fato da crescente utilização de grãos para a produção de bioenergia. Segundo dados divulgados no F.O. Licht’s World Ethanol and Biofuel Report, de abril de 2008, o etanol produzido a partir de grãos, principalmente milho, nos EUA e na China, consumiu cerca de 4,5% da oferta global de grãos em 2007. Um dado é bastante ilustrativo do descompasso crescente entre a oferta e a demanda por alimentos. De 1990 até 2007, a população mundial cresceu cerca de 26%, enquanto isso, a elevação da produção foi de cerca de 13%. Esse crescente desequilíbrio entre demanda e oferta tem causado profunda pressão nos preços internacionais das commodities agrícolas afetando os preços no Brasil. Para termos uma idéia da magnitude deste avanço, o índice de preços de alimentos da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (ONU/FAO), que engloba 55 commodities agrícolas, apresentou alta de 57% entre março de 2007 e março de 2008. Devemos, ainda, citar o aumento nos preços dos derivados do petróleo. Os preços do barril que se situavam em torno dos US$55, em janeiro de 2007, pularam para mais de US$145 em julho do presente ano. Com isso, tivemos um aumento considerável nos custos de produção e transporte impactando os preços de diversos produtos, entre eles os fertilizantes agrícolas. No entanto, a recente alta nos preços não tem causado, pelo menos até o momento, diminuição significativa no ritmo da atividade econômica em nosso país. A Tabela 3 mostra a variação acumulada das vendas em diversos setores do varejo ao longo do período de abril de 2007 a abril de 2008. Os dados nos mostram que tanto no que se refere ao aumento da receita quanto à elevação do volume, a variação acumulada das vendas de abril de 2007 a abril de 2008 foi enorme. Tabela 3 Índice de vendas no varejo – Brasil (abril de 2008) Variação % acumulada no ano Comércio varejista
Receita nominal
Volume
Preços
15,8
11,0
4,3
Combustíveis e lubrificantes
4,6
6,0
- 1,3
Hipermercados, supermercados
16,8
6,4
9,8
Tecidos, vestuário e calçados
19,4
15,0
3,8
Móveis e eletrodomésticos
14,9
19,8
- 4,1
Comércio varejista ampliado
19,3
15,0
3,7
Automóveis e motocicletas
26,2
23,4
2,3
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Política Democrática · Nº 21
Considerações sobre o atual quadro inflacionário brasileiro
Índice de vendas no varejo – Brasil (abril de 2008) Variação % acumulada no ano Material de construção
Receita nominal
Volume
Preços
19,2
13,0
5,5
Fonte: IBGE
Outro dado interessante que podemos extrair da Tabela 3 diz respeito à variação nos preços dos alimentos nos hipermercados e supermercados. A variação de abril de 2007 a abril de 2008 foi de 9,8%, confirmando a elevação nos preços dos alimentos e a conseqüente pressão que ela está exercendo sobre a alta da inflação. O aquecimento da economia pode ser verificado, também, pela crescente elevação do PIB, elevação esta que chegou a 5,8% no primeiro trimestre de 2008. A Tabela 4 nos mostra a variação trimestral do PIB do início de 2007 até o primeiro trimestre de 2008, comparando a variação de crescimento no trimestre com o trimestre anterior. Esta mesma Tabela nos mostra o vigor do crescimento da Formação Bruta de Capital Fixo – FBCF4 e do Consumo das Famílias. Tabela 4 Produto Interno Bruto – Trimestre ante trimestre imediatamente anterior 2007 PIB – preços de mercado Consumo famílias Consumo governo Formação Bruta de Capital Fixo
I Tri 1,0 1,6 1,9 2,5
II Tri 1,5 1,7 0,6 4,8
III Tri 1,8 1,6 0,3 4,8
IV Tri 1,6 3,4 -0,2 3,3
2008 I Tri 0,7 0,3 4,5 1,3
Fonte: IBGE
Felizmente, esta expansão da economia tem se mostrado consistente e o aumento da oferta de produtos seja pela expansão da produção seja pelo aumento das importações tem conseguido manter o equilíbrio entre demanda e oferta com pouca pressão sobre os preços. Outro dado importante a ser salientado diz respeito ao receio em relação à expansão do crédito. Os dados mais recentes referentes aos índices de inadimplência nos permitem inferir que não há, pelo menos até o momento, o perigo de estarmos vivenciando um período 4 FBCF é o montante dos investimentos em bens de capital, ou seja, em bens que produzem outros bens como máquinas e equipamentos. Ele é importante porque mensura o aumento da capacidade produtiva e evidencia o humor dos empresários com as perspectivas da economia.
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II. Tema de capa – Inflação?
de “bolha de consumo”, visto que os indicadores de inadimplência estão estáveis. A análise dos dados nos permite afirmar que a grande fonte de pressão sobre os preços tem sido os fatores exógenos. No entanto, duas fontes endógenas que exercem pressão sobre a inflação merecem ser observadas, são elas os gastos públicos e os preços administrados5. Diferentemente do que ocorria desde 1999, quando foi implantado o Regime de Metas para a inflação, os preços administrados, em 2007, registraram variação inferior à dos preços livres. Esta tendência parece estar se revertendo causando preocupação, especialmente com os preços indexados, já que eles projetam para o futuro uma expectativa de elevação nos preços que pode contaminar outros preços. Ou seja, a atual elevação nos índices do IGP além de uma má notícia para o presente causa preocupação em relação à inflação futura. A tendência de alta do IGP-M iniciada em 2007 acentuou-se no primeiro semestre de 2008, chegando a 6,81%, índice bastante elevado em comparação com os 3,84% de 2006 e os 7,74% de 2007. Outro grande agregado que exerce influência na inflação são os gastos públicos. Nos últimos anos, os gastos públicos no Brasil têm crescido mais do que a média de crescimento da economia. Desde 2004, período de crescimento recente mais acentuado da economia brasileira, os gastos do governo crescem a uma velocidade maior do que o crescimento do PIB. Nesse período, como podemos observar na Tabela 5, a variação nominal dos gastos do governo foi, em média, 4,6p.p. acima do PIB. Tabela 5 PIB e Despesa do Governo Federal (2004/2007) – Variação Nominal Anual em % Ano
Variação Gastos Governo
Variação PIB
Expansão Gastos/PIB
2004
17,7
14,2
19,7
2005
16,2
10,6
34,5
2006
14,3
8,6
39,8
2007
13,3
9,7
27,0
Fonte: Ministério da Fazenda 5 Os preços administrados são aqueles preços autorizados pelos governos (federal, estaduais e municipais) e aqueles que são reajustados segundo regras contratuais de indexação, como os de energia e a telefonia. A indexação com base no Índice Geral de Preços (IGP) é a mais comum das regras dos contratos com as empresas que tem seus preços autorizados pelo governo.
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Política Democrática · Nº 21
Considerações sobre o atual quadro inflacionário brasileiro
Infelizmente, pelo recente padrão de comportamento, é ingênuo supor que o governo federal irá adotar uma política fiscal contracionista em ano eleitoral. Devemos, portanto, acreditar que estas são as condições macroeconômicas que irão pressionar a inflação nos próximos meses e que deverão requerer da autoridade monetária uma ação enérgica para que o quadro não se deteriore em demasia. A questão que se coloca é: qual instrumento mais adequado? Existem dois grandes instrumentos de combate à inflação, a política monetária6 e a política fiscal7. No atual ciclo de crescimento da economia brasileira, uma política monetária restritiva, com aumento das taxas de juros, deverá limitar os investimentos muito mais do que se poderá esperar em relação a uma redução no consumo. Estudo recente divulgado pela Confederação Nacional da Indústria8 estimou o efeito da elevação nas taxas de juros iniciada em setembro de 2004. Naquele período, iníciou-se um processo de aumento na taxa de juros como forma de contenção da demanda e re dução da pressão sobre os preços. Ao aumento de 0,25p.p. na taxa de juros em setembro, seguiram-se seis outras elevações mensais de 0,50p.p. Segundo a pesquisa, o impacto da elevação dos juros sobre os investimentos foi imediato, como pôde ser visto pelo recuo de 0,2% na formação bruta de capital fixo no quarto trimestre de 2004 e, adicionalmente, pela queda de 1,4% no primeiro trimestre de 2005. Essas quedas contrastaram com a acelerada expansão registrada nos quatro trimestres precedentes que foram, em média, de 3,1% ao trimestre. O ritmo de expansão dos investimentos recuou de 13,4% ao ano, que tinha sido a expansão acumulada nos quatro trimestres que antecederam à elevação dos juros, para 3,9%, que foi o ritmo de expansão acumulada nos quatro primeiros trimestres após o início do período de elevação dos juros. Por outro lado, o padrão de expansão do consumo das famílias pouco se alterou. Os gastos familiares que cresciam 1,1% por trimestre, na média dos quatro trimestres que antecederam ao início da elevação de juros, passaram a expandir 1,2% ao trimestre na média dos quatro trimestres que sucederam ao início da elevação dos juros. Ou seja, a demanda interna caiu em 2004, muito mais pelo recuo dos investimentos do que pela redução do consumo das famílias. 6 Analisaremos aqui somente a Taxa de Juros como instrumento de política monetária para combater a elevação de preços. 7 Diante da elevada carga tributária no Brasil desconsideramos a possibilidade de utilizar o aumento de impostos como forma de reduzir a demanda. 8 CNI – Notas Econômicas, Ano 9, n. 1, abril de 2008.
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II. Tema de capa – Inflação?
A mesma preocupação nos parece ser pertinente no atual momento. Como afirmam Vianna, Modenesi e Bruno9 (2008), em seu estudo sobre a elevação preventiva da taxa de juros no atual momento da economia brasileira: Uma contração monetária seria um tremendo banho de água fria no espírito empresarial, o que pode reduzir drasticamente a sustentabilidade do atual ciclo de crescimento. Ainda que uma elevação da Selic não interrompa os investimentos já em curso, ela certamente inibiria novos investimentos. Aí, sim, a expansão da demanda poderia comprometer a estabilidade dos preços.
A alternativa que nos parece a mais adequada para conter a pressão sobre os preços, com menos custos, é a utilização de uma política fiscal contracionista, mediante a redução nos gastos públicos associada a uma variação residual e eventual nas taxas de juros. Os gastos do governo deveriam crescer menos que o PIB, em períodos de mais forte crescimento econômico, de forma a não impor pressão adicional sobre a demanda e sobre os preços, preservando os investimentos privados e, conseqüentemente, o dinamismo da economia. Não se trata da defesa do Estado mínimo, mas sim da defesa da utilização mais eficiente dos recursos públicos. Não devemos pregar o afastamento dos investimentos públicos em infra-estrutura, saúde, educação, segurança, entre outras esferas que são de responsabilidade pública. Trata-se de estruturar com mais racionalidade a administração pública, avaliar as políticas públicas de modo a poder orientá-las com maior precisão, enfim, buscar maior eficiência nos gastos públicos de modo a oferecer serviços de melhor qualidade. Falamos, por exemplo, em estimular algumas iniciativas que tenham impacto sobre os gastos públicos, entre elas: diminuir o desperdício e as iniqüidades das políticas públicas, implementar uma política de recursos humanos no âmbito dos três Poderes; acentuar os projetos de parceria do setor público com a iniciativa privada, focalizar e priorizar políticas públicas que dêem maiores retornos sociais; acabar com as emendas parlamentares, entre outras. Esta é a contrapartida que o Estado deve à sociedade e essa discussão é central não só para a escolha da política econômica mais adequada para conter preços e promover o desenvolvimento econômico, mas, principalmente, para a consolidação da democracia e a construção de uma sociedade mais justa.
9 Nota Técnica “Reversão Preventiva Na Política Monetária”, IPEA, Rio de Janeiro, abril de 2008.
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Política Democrática · Nº 21
Fome dá lucro1 Jorge Romano
O
noticiário em todo o mundo aponta para uma alta generalizada de preços, dando especial ênfase ao aumento do petróleo e dos alimentos de consumo generalizado. As manchetes destacam que, em 2007, a inflação nos Estados Unidos foi de 4,1% e nas nações em desenvolvimento, 6,69%. Em 2008, atingiu 3,7% na Comunidade Européia, o maior nível dos últimos 15 anos. No Brasil chegou a 5,41%. Assim, a inflação, e não o crescimento, está se transformando na principal preocupação em nível macroeconômico global. “O dragão que parecia domado nos anos 1990 escapou da jaula”, destacava a revista Carta Capital, em 28 de maio.
Nas commodities minerais, o aumento do petróleo superou todas as expectativas. Em junho de 2008, o valor do barril atingiu U$140,00, o quádruplo de 2003. Por sua vez, os principais grãos como trigo, milho, arroz e soja, em média, duplicaram o seu preço no mercado internacional entre a safra de 2006 e hoje. A “aginflação”, ou seja, a influência do aumento dos alimentos na aceleração inflacionária no mundo, é destacada por vários analistas. De acordo com reportagem da Folha de São Paulo,2 na China, Japão e em alguns países da África Central, o aumento dos preços dos alimentos contribuiu em até 75% com a inflação no ano passado. A tendência de alta no custo da comida continua forte. O índice de preços dos alimentos do Banco Mundial subiu 57,5% no primeiro trimestre deste ano, destacando-se o crescimento de itens básicos da dieta de populações de baixa renda, como o arroz. Este aumento tem sido motivo de protestos populares – muitos deles com mortes – na Costa do Marfim, Egito, Camarões, Bangladesh, Índia, Filipinas, Haiti e México. São 33 países sofrendo com a crise e a instabilidade social, correndo o risco de não conseguir mais alimentar o povo com o atual modelo de agricultura. O já enorme contingente de 854 mi-
1 Este artigo originalmente foi publicado em Le Monde Diplomatique Brasil, ano 1 n. 12, julho de 2008, e aqui republicado com a anuência do autor. 2 Folha de S.Paulo, 07/06/2008
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II. Tema de capa – Inflação?
lhões de pessoas que passam fome no mundo pode crescer em mais 100 milhões, alerta o Programa de Alimentos das Nações Unidas. Por isso, a fome volta a ter destaque entre os fatores que geram instabilidade. A crise pode alterar a geopolítica mundial, com os alimentos se tornando catalisadores de outros conflitos e instrumentos de pressão política. Os países mais vulneráveis são os importadores líquidos de alimentos. O Ocidente, com suas empresas transnacionais, controlam quase todo o comércio mundial do setor. Autoridades governamentais e de organismos internacionais, agentes financeiros, representantes do agronegócio, acadêmicos, jornalistas e militantes dos movimentos sociais e de organizações nãogovernamentais têm atribuído o aumento dos preços dos alimentos a diversas causas. Assim, apontam-se fatores relativos à demanda, como: •
o aumento do consumo das populações saídas da situação de pobreza em países emergentes como China e Índia. Esse crescimento vem acompanhado da mudança do padrão de consumo. As pessoas não só comem mais, como procuram mais carne, ovos, laticínios. Já que um quilo de alimento animal implica em dez quilos de alimento vegetal na forma de rações, a demanda por grãos cresce;
•
o incremento do processo de urbanização tem feito que antigos camponeses, enquanto novos habitantes de favelas ou subúrbios, deixem de produzir seu próprio alimento, tendo que garantir seu sustento no mercado.
Ou fatores relacionados à oferta, como:
30
•
quebras de safra em países como Austrália e China, devido a mudanças climáticas que vêm afetando regiões agrícolas em todo o mundo;
•
o aumento dos preços dos fertilizantes e fretes, em decorrência da forte elevação dos preços do petróleo;
•
a utilização de bens alimentares para a produção de agrocombustíveis, como a beterraba e a canola na Europa, a soja no Brasil e, particularmente, o milho nos Estados Unidos, onde se gasta 10% da produção mundial desse grão para obter etanol;
•
a redução dos estoques internacionais de trigo, milho e soja, apesar de a produção agrícola mundial ter crescido em 4% na safra de 2006/07;
Política Democrática · Nº 21
Fome dá lucro
•
a desvalorização do dólar enquanto unidade de conta do mercado internacional. Como Delfim Netto destacou,3 comparando o “The Economits Commodity Price Index” medido em dólares com o medido em euros, a mesma cesta de produtos está 70% “mais cara” em dólar.
Ou elementos mais estruturais como: •
três décadas de acordos de livre comércio e políticas neoliberais que, nas palavras de Peter Rosset, do Centro de Estudos para a Mudança no Campo Mexicano (Ceccam), desmantelaram a capacidade da maioria dos países de produzirem o seu próprio alimento enquanto promoviam a agricultura de exportação e o crescimento das empresas transnacionais. Dessas grandes companhias com sede principalmente nos EUA e Europa, quarenta compõem o cartel das seis transnacionais de grãos (Cargill, Continental CGC, Archer Danields Midland, Louis Dreyfus, André e Bunge and Born), que passaram a controlar a produção e o comércio dos principais produtos. Segundo a organização não-governamental ActionAid, nos meses recentes a Cargill teve um aumento de 86% em seus lucros e a Archer Daniels Midland, um aumento de 700% nos ganhos de sua divisão de serviços agrícolas;
•
a insuficiência de investimentos na agricultura pelos estados, particularmente em função do impacto das políticas neoliberais nos países em desenvolvimento. Comparado com outros setores, a situação da agricultura é grotesca. Por exemplo, o gasto militar global cresceu 45% nos últimos dez anos. Em 2007, a despesa com defesa equivaleu a U$202 por habitante, alcançando a cifra astronômica de U$1,34 trilhões, o que representa 190 vezes mais do que os participantes da recente cúpula sobre Segurança Alimentar da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação) prometeram investir no combate à fome no mundo;
•
o jogo duplo dos governos das nações desenvolvidas. Por um lado, dão subsídios e colocam barreiras para garantir sua própria produção agrícola com preços que causam dumping em outros países (são U$50 bilhões anuais de subsídios na União Européia). Por outro, exigem a liberalização dos mercados dos países em desenvolvimento, desestruturando, em muitos casos, a soberania alimentar dos mesmos. Até 1960,
3 Folha de S.Paulo, 14/05/2008
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II. Tema de capa – Inflação?
a grande maioria dos países era auto-suficiente na produção dos alimentos. Hoje, 70% das nações do hemisfério Sul, onde vivem 4,8 bilhões de pessoas, se transformaram em importadores desses produtos; •
a catástrofe em câmara lenta apontada por especialistas em agricultura e desenvolvimento. Como Ladislau Dowbor ressaltou,4 a expansão da monocultura extensiva, das sementes caras e monopolizadas, dos circuitos comerciais cartelizados, das tecnologias pesadas, da esterilização dos solos por excessiva quimização (a cada ano perdem-se 1,5 milhões de hectares cultivados pela salinização das terras) e da irrigação em grande escala com esgotamento dos aqüíferos (hoje a agricultura consome 70% de toda a água potável) estão provocando um círculo vicioso de desestruturação que ameaça o planeta;
•
a especulação nas bolsas de futuro, que transforma a fome do mundo na nova fonte de lucro do capital financeiro.
Como se pode ver, o debate sobre as causas do aumento do preço dos alimentos não é neutro. Em função dos seus interesses e concepções, diversos atores têm destacado alguns fatores ou diluídas as suas responsabilidades no conjunto deles. Tomemos só uns poucos exemplos. Para o presidente do Banco Mundial, Robert Zoellick, exministro de relações exteriores do governo Bush, “a culpa” da crise seria “de todo mundo”. E por isso a saída é fazer um novo acordo, nos marcos da Organização Mundial de Comércio, visando um outro patamar de preços e produção. Já para o governo Lula, “a culpa” seria dos subsídios à agricultura dos países ricos. Se eles não existissem, os agricultores do Sul poderiam aumentar sua produção e exportar a menor preço. Para empresas transnacionais de alimentos e bebidas como a Nestlé, Unilever, Kellogs, Danone, Cadbury, Mars, Heineken e Pepsi-Cola, em carta recente ao Conselho Europeu que reúne os 27 presidentes do bloco, os agrocombustíveis são o principal fator da alta dos preços agrícolas. Solicitam assim que a UE desista da meta de misturar 10% de etanol aos combustíveis até 2020, pois isso implicaria numa “mudança dramática” do uso da terra na Europa. A produção de agrocombustíveis, acreditam, é “eticamente indefensável”.5 4 Em entrevista para o IHU Online, em 19/05/2008. Para ler, acesse http://www. unisinos.br/ihuonline/ 5 Valor Econômico, 20/06/08.
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Política Democrática · Nº 21
Fome dá lucro
Vários acadêmicos e militantes dos movimentos sociais e de organizações não-governamentais reconhecem o conjunto de causas, mas apontam que para explicar o aumento exponencial dos preços dos alimentos é preciso dar mais atenção à especulação. Segundo Boaventura de Sousa Santos,6 estes aumentos especulativos – como também os do petróleo – seriam resultado do capital financeiro (bancos, fundos de pensões, fundos de alto risco e rendimento) ter começado a investir fortemente nos mercados internacionais de produtos agrícolas depois da crise no setor imobiliário. Articulado com as empresas transnacionais que controlam a comercialização de sementes e a distribuição mundial de cereais, o capital financeiro investe no mercado de futuros na expectativa de que os preços continuarão a subir. E, ao fazê-lo, reforça essa expectativa. Peter Rosset concorda com a avaliação e lembra que 61% de todos os contratos futuros de trigo dos Estados Unidos estão detidos por fundos de risco multimercados. Estudos da ActionAid apontam que a especulação nos mercados futuros movimentou US$1 bilhão diários entre fevereiro e março deste ano, volatilizando os preços e afastando-os da realidade da produção. O mercado agrícola internacional apresenta novos perigos em termos de imprevisibilidade e irracionalidade. “No passado, oferta e demanda, chuva e seca direcionavam os preços futuros de grãos”, segundo Fernando Muraro, da Agência Rural. Nos últimos anos, se perdeu essa formação básica e a volatilidade dos preços que historicamente era de 20% chegou a 50%. Essas novas tendências do mercado agrícola são promovidas, em boa parte, pela entrada de novos fundos. E o ritmo acelerado do mercado futuro chega a negociar 22 safras anuais de soja. Só os fundos são responsáveis por 8 delas. Em 2007, o mercado futuro agrícola da Chicago Board of Trade negociou 7.3 bilhões de toneladas de milho, 4.3 bilhões de soja e 2.7 bilhões de trigo. Enquanto a produção física desses produtos em 2007 foi de 780 milhões, 220 milhões e 606 milhões de toneladas, respectivamente.7 Novos milhares de fundos se especializam em nichos. Quando o governo americano reduziu a taxa de juros, as aplicações de renda fixa ficaram menos atraentes e os fundos ampliaram os investimentos com ações na Dow Jones, passaram pela Nasdaq, inflaram o mercado imobiliário americano e europeu, migraram para as commodities minerais como o petróleo e chegaram nas agrícolas.
6 Revista Carta Maior, maio de 2008 7 Folha de S.Paulo, 26/05/08
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II. Tema de capa – Inflação?
Na visão tradicional de alguns analistas, os fundos não criariam mercados, mas apenas iriam onde existia liquidez. Quem criaria os mercados seriam os hedgers (cooperativas, grandes atacadistas, exportadores e outros interesses comerciais que produzem ou utilizam as commodities). Os investidores nos mercados de ações conhecidos, como os day traders – que em muitos casos são os fundos –, apenas aumentariam ou diminuiriam a febre dos preços, a volatilidade que viria do desencontro entre a oferta e a demanda. Mas sob uma visão crítica, os preços atuais escondem muito mais que o jogo da oferta e da demanda. Segundo Muraro, o mercado experimentou, no ano passado, os maiores estoques de soja da história e mesmo assim os preços explodiram. Em agosto de 2007, a saca do produto na bolsa de Chicago estava a U$17,60. Em fevereiro de 2008, havia aumentado a U$35 e em abril, recuava para U$24. Mais que oferta e demanda, o que existe é uma financeirização do mercado que veio para ficar e está gerando um novo boom para as commodities. Os riscos aumentaram, porém não desagradaram os participantes dessa ciranda especulativa. Para os produtores pode significar preços maiores. Para os investidores, a possibilidade de incrementar lucros. Para as bolsas, uma liquidez mais atraente. Para os pobres, fome. O aumento das transações agrícolas não se dá só no exterior. No Brasil, a BM&F Bovespa vem duplicando anualmente as operações. Em 2005, foram U$12.5 bilhões; em 2007, U$24.3 bilhões; e em 2008 poderão ser negociados U$45 bilhões. Os capitais estrangeiros já representam 17% de seus negócios.8 Até em Washington a atuação dos especuladores financeiros está sendo questionada. Os senadores Karl Levin e Joseph Lieberman têm criticado as autoridades regulatórias do governo por não estarem reprimindo a especulação. Lieberman está trabalhando numa proposta que proíbe a atuação dos grandes investidores institucionais no mercado de commodities.9 Enquanto isso, alguns investidores institucionais estão fazendo apostas mais ousadas e de longo prazo, adquirindo terras aráveis, depósitos de fertilizantes, silos para armazenar grãos e equipamentos de transportes. Fundos como Black Rock são proprietários de terras aráveis na África sub-saariana, no Brasil e até na Inglaterra, e a Calyx Agro está adquirindo milhares de hectares brasileiros. Investidores chineses, americanos, franceses, holandeses e ingleses estão comprando usinas no Brasil e formando um estoque de terras que rende uma valorização acelerada semelhante à especulação típica das 8 Folha de S.Paulo, 26/05/08 9 Folha de S.Paulo, 17/06/08
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zonas urbanas. A Braemar Group está investindo em terras no Reino Unido que, segundo executivos da empresa, têm “atraso” nos preços, já que custam 50% menos que as da Irlanda e da Dinamarca.10 Com o controle da terra e outros negócios agrícolas, os fundos ficam livres das regras que visam a limitar as apostas especulativas no mercado de commodities. Através dos silos, seriam capazes de comprar e vender grãos físicos, e não apenas seus derivativos financeiros. Quando os preços agrícolas estão em alta, manter estoques para a venda futura pode oferecer lucros maiores do que atender às demandas correntes. Ou, caso haja preços divergentes em outras partes do mundo, os estoques podem ser despachados ao mercado mais lucrativo. Com estas aquisições, os investidores financeiros estariam em condições de reproduzir a especulação através do bloqueio da oferta com retenções de estoques para forçar uma alta artificial dos preços.11 Como afirma Boaventura de Sousa Santos, o que há de novo na fome do século XXI diz respeito não só às causas, mas principalmente ao modo como as principais delas são ocultadas. A diluição da responsabilidade da especulação é um claro e perigoso exemplo. A fome hoje é a nova grande fonte de lucros do capital financeiro. “É preciso acabar com a especulação financeira e com o mercado futuro de alimentos, que joga roleta russa com nossas vidas”, arrisca, esperançosa, a ativista iraniana Maryam Rahmanian, da organização Cenesta. Mais pragmática, a ActionAid aposta em algumas medidas a serem apresentadas, debatidas e adotadas na Conferência das Nações Unidas, que ocorre em setembro deste ano. Elas visam a difícil tarefa de inibir a especulação financeira que aflige a produção de alimentos: estoques regulatórios maiores, limite para as posições de compra e venda, aumento da margem de depósitos requeridos e taxação de transações especulativas. As dificuldades são enormes, mas é ainda maior a luta pelo direito elementar à vida que é o acesso aos alimentos.
10 Folha de S.Paulo, 06/06/08 11 Folha de S.Paulo, 06/06/08
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III. Batalha das IdĂŠias
Autores Marco Aurélio Nogueira
Professor de Teoria Política da UNESP, autor dos livros Em defesa da política (Senac, 2001) e Um Estado para a sociedade civil (Cortez, 2004). E-mail: m.a.nogueira@globo.com
Rudá Ricci
Doutor em Ciências Sociais, membro da Executiva Nacional do Fórum Brasil do Orçamento e do Observatório Internacional da Democracia Participativa
Luiz Werneck Vianna
Sociólogo e professor do Iuperj, autor dos livros Liberalismo e Sindicato no Brasil (Editora UFMG,1999) e Esquerda brasileira e tradição republicana: estudos de conjuntura sobre a era FHC-Lula (Revan, 2006)
O desenvolvimento exigente Marco Aurélio Nogueira
P
arece haver no país um consenso, segundo o qual não teremos chance de avançar como sociedade – ou seja, de eliminar a desigualdade, a miséria, a fome – e como Estado democrático sem taxas vigorosas de crescimento econômico. São muitas as esperanças associadas ao desenvolvimento, como se dele dependesse tudo: emprego, renda, igualdade, a felicidade mesma dos cidadãos.
Paradoxalmente, isso ocorre num momento em que o próprio desenvolvimento se mostra difícil, controverso, até mesmo indesejável. Há, é verdade, uma forte pressão – da economia mundial, dos organismos internacionais, dos governos de outros países – para que se acelere o crescimento e se dissemine a mentalidade do catch-up, como se existisse um padrão ótimo de renda ou PIB que devesse ser alcançado por todos os países. Fala-se até em “ditadura do desenvolvimentismo” como critério a ser seguido na construção do futuro, que deveria ser o mesmo para o mundo todo. Esta pressão, no entanto, não traz consigo nenhuma idéia consistente de desenvolvimento, nem faz qualquer projeção a respeito de suas vantagens ou de seu custo social. Sua estratégia e suas metas são definidas a partir da experiência dos países mais desenvolvidos ou de economias que conseguiram sucessos estrondosos em curto espaço de tempo, sem que se esclareça se isso pode ser tomado como medida universal. Para compensar, admite-se que o desenvolvimento desejado só se completará mediante uma “combinação adequada de ingredientes” e que ele precisa produzir efeitos em termos de redução da pobreza e de melhoria de alguns indicadores sociais. 39
III. Batalha das Idéias
O desenvolvimento continua a ser o principal motor do capitalismo e é uma necessidade real das comunidades humanas que se inserem neste sistema. É a partir dele e com ele que se poderá promover a ascensão social das massas e fazer a ocupação inteligente dos múltiplos espaços vazios ou mal aproveitados existentes no mundo. Mas não é razoável que tudo seja feito ou defendido em seu nome. É ainda menos razoável qualificar o desenvolvimento (o que se tem e o que se pretende ter) a partir de índices econômicos e financeiros, regra geral fixados abstrata e arbitrariamente. Saltos do PIB ou da renda per capita não trazem necessariamente melhoria nas condições de vida, a não ser de modo indireto. Podem não implicar maior igualdade ou bem-estar. Não são de modo algum confiáveis como indicadores de sucesso. Estamos discutindo o tema num contexto condicionado pelas conseqüências do padrão de desenvolvimento das últimas décadas, que assistiram a uma expansão desenfreada do capitalismo e das forças produtivas em todo o globo. Vivemos sob a sensação de que o desenvolvimento em curso, graças à sua lógica cega e “irresponsável”, ameaça a reprodução das sociedades humanas, reitera a desigualdade e agrava o desequilíbrio ambiental. Também por isso, é difícil saber quando se pode falar de fato em desenvolvimento.
Esgotamentos, crises, ausência de projetos Estamos sentindo as dores e os prazeres de um tríplice esgotamento. Esgotou-se, antes de tudo, o modelo de desenvolvimento que fez a glória do capitalismo no correr dos últimos dois séculos: agressivo, devorador do trabalho humano, predador da natureza, impulsionador da produção intensiva de bens de consumo supérfluos, baseado na subordinação da ciência e da tecnologia aos ditames da produção mercantil, cronicamente incapaz de produzir, ao mesmo tempo que progresso técnico e mercadorias, novos e melhores padrões de vida coletiva, trabalho e distribuição de renda. Por mais que esse modelo continue a se reproduzir em escala mundial, ele não parece mais dar conta de suas contradições e ambigüidades, e perde consensos de modo generalizado. Sequer a passagem do modelo de uma fase “fordista-taylorista”, marcada pela rigidez e pelo trabalho-intensivo, para uma fase de “acumulação flexível”, marcada pela tecnologia intensiva e pelos impulsos eletro-eletrônicos, melhorou sua sorte. Aliás, são muitos os indícios e os indicadores de que o capitalismo flexível e informático produz ainda mais barbárie e hor-
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ror do que antes: nunca foi tão grande o contraste entre opulência concentrada e miséria disseminada, entre o estoque extraordinário de conhecimentos científicos e a progressão de doenças epidêmicas primitivas etc. Esgotou-se também, em segundo lugar, o modelo neoliberal com que se tentou, dos anos 1970 em diante, responder à falência do modelo taylorista-fordista, contornar a crise do Estado de Bem-Estar e repor a centralidade do mercado, a partir de políticas de desregulamentação e de ajustes de clara orientação monetarista. Ainda que o programa neoliberal persista de forma dissimulada nas agendas governamentais que abriram o século XXI, ficou ostensivamente patente a sua inadequação aos ideais de uma “boa sociedade” ou mesmo de uma economia capaz de realizar a essência do capitalismo. Os estragos acumulados, o aumento da miséria e da desigualdade, a tragédia do desemprego, deixaram evidente que os mercados, por si sós, não têm condições de levar a resultados socialmente justos e economicamente eficientes. Os próprios fundamentos éticos e intelectuais do laissezfaire, que haviam ensaiado um retorno triunfal nos anos 1980, chegaram ao início do século XXI em estado de penúria lógica e moral. O reformismo neoliberal não oferece alternativa real aos problemas do capitalismo. Se se pode aceitar que o neoliberalismo conseguiu “ajustar” a economia capitalista e conter a hiperinflação, não há como negar que agora ele se tornou um perigo, ameaçando paralisar o enfermo e condená-lo a morrer curado. Os cenários mais facilmente percebidos não autorizam visões otimistas. A despeito dos ininterruptos avanços tecnológicos, das descobertas da ciência e das conquistas produtivas, a desigualdade continua viva e operante. O espectro da crise agiganta-se por toda a parte, produzindo turbulências no plano societal e no individual, no mercado e no Estado, pondo em risco equilíbrios e direitos. A nossa é uma época tomada pelo medo e pela insegurança. Na esteira deste processo, esgotou-se também, em terceiro lugar, nos países do “extremo ocidente”, o modelo desenvolvimentista construído entre as décadas de 30 e 60, sustentado pela regulação e pela intervenção do Estado, pela “substituição de importações” e, mais tarde, pelo endividamento das economias, por milagres econômicos que aceleraram artificialmente a industrialização e não promoveram avanços simultâneos no plano social. Sobre a base deste tríplice esgotamento, explicitou-se e avançou a crise da esquerda, que bem ou mal acompanhou as vicissitudes do neoliberalismo, recebeu o impacto das mudanças estruturais que
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afetaram as sociedades contemporâneas e sentiu os efeitos da desagregação do sistema socialista do Leste europeu. A crise da esquerda certamente não representa o fim da contestação social, nem a redução à passividade dos interesses sociais ou a desativação das lutas democráticas e de emancipação. Mas é inegável que tira de cena ou enfraquece – em grau variável, conforme o país – parte importante dos protagonistas especializados em politizar o conflito social. Tal crise reduz a esquerda a uma idéia desprovida de operacionalidade política e, portanto, sem potência para elaborar sínteses ou coordenações societais. Há muito movimento no mundo e no interior das diferentes sociedades, muitos esforços de reinvenção que envolvem antigos alinhamentos partidários, comunidades virtuais, organizações civis, movimentos sociais e instituições governamentais. O descontentamento e a insatisfação não são vividos de forma passiva ou em silêncio. Explodem de modo regular, produzem uma opinião e infiltram-se pelos interstícios da vida contemporânea. Anunciam com clareza um aumento do desconforto global e da disposição cívica de lutar por “outro mundo”. Não há, porém, como fechar os olhos para as determinações, os efeitos e os desdobramentos potenciais da situação. Há muito movimento, mas pouco resultado político. A agitação também indica que se vive um momento de expectativa, dúvida e indefinição, como se se estivesse a esperar a irrupção de um sujeito alternativo que efetivamente promova e consolide um salto para frente. Se considerarmos de modo particular o Brasil, podemos dizer que da década de 1990 para cá, estamos às voltas com um ciclo sem projetos nacionais, como costumamos falar. A globalização capitalista, ao promover certa “desconstrução” dos Estados-nação, levou a que os aparelhos de Estado adquirissem maior preeminência do que o Estado como comunidade de destino. A reforma do aparelho de Estado subiu ao palco e arrastou consigo, para os bastidores, a idéia mesma de Estado e, por extensão, de comunidade nacional. O Estado-nação perdeu força no sistema mundial, no qual é obrigado a disputar espaço com conglomerados transnacionais e movimentos que o ultrapassam em potência ou agilidade e o desafiam. A unidade nacional, por sua vez, que lhe dava sentido e viabilidade, tornou-se uma meta a ser atingida, uma construção, deixando de poder ser tratada como um dado. Também por isto o Estado-nação não tem mais como se proclamar “senhor do território”, expressão de uma soberania absoluta e de uma comunidade política coesa e consciente de si. O Estado como aparelho de 42
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intervenção não perde capacidade de agir, nem se torna personagem secundária, mas é forçado a negociar mais, a compartilhar decisões e a se auto-reformar administrativamente, o que o afasta da interação com as sociedades e ajuda a envolvê-lo em operações voltadas para si mesmo, presas a uma lógica interna. O desenvolvimento, com isso, perdeu seu maior personagem, fato que se torna dilemático quando se associa a ele a situação geral de “desconstrução” social, de desorganização dos interesses, de mergulho das coletividades nos mares fugidios da “vida líquida”. Como pensar em desenvolvimento sustentável neste contexto?
Pactos de sustentabilidade Devemos querer desenvolvimento no Brasil, mas não podemos querer qualquer desenvolvimento. Um desenvolvimento sustentável precisa ser proposto com firmeza. Não pode ser proclamado exclusivamente no plano doutrinário, como mera abstração, nem servir de base para que se bloqueiem projetos de crescimento econômico que se dediquem a melhorar as condições de vida da população. Mas a idéia de sustentabilidade não é em si mesma uma abstração. Surgiu como um grito de alerta e funciona tanto como parâmetro de moderação e regulação do crescimento, quanto como critério de preservação ambiental. Uma perspectiva sustentável de desenvolvimento é indispensável para que se estabeleça uma sintonia fina entre expansão das forças de produção, apetites do mercado, necessidades coletivas e justiça social e, ao mesmo tempo, para que a economia interaja amigavelmente com a natureza. Não se trata, pois, de simples recurso preservacionista, mas de algo bem mais complexo e abrangente, que supera tanto a indiferença produtiva do ambientalismo tradicional quanto a volúpia do produtivismo incondicional. Justamente por isso, trata-se de uma perspectiva exigente, bem mais complexa que qualquer outra do passado. Ela necessita tanto de idéias claras e arrojadas, que concebam o desenvolvimento de forma multidimensional e como projeto regulado politicamente, quanto de um pacto social que dê fundamento prático, moral e político às idéias. O desenvolvimento desejável não pode ter as mesmas metas de antes (concentradas no econômico), nem muito menos partir dos atores de sempre – o Estado, os empresários, os trabalhadores. Precisa envolver o conjunto da sociedade e implicar uma série de ações que reformem, dinamizem e articulem os diferentes sistemas sociais (a 43
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educação, a saúde, os transportes, a infra-estrutura etc.) e alterem, portanto, a institucionalidade existente, a começar do próprio aparelho de Estado e atingindo os partidos políticos, a universidade e a comunidade científica. O desenvolvimento hoje não depende somente do Estado, mas é inconcebível sem ele. Mas para coordenar o desenvolvimento, o Estado precisa ter capacidade de intervenção, ou seja, ser capaz de fazer política (econômica e social), regular o mercado, enfrentar a prevalência do sistema financeiro e liderar um pacto social substantivo. O problema é que estes requisitos são de difícil obtenção nas circunstâncias atuais. Não porque faltem políticos dedicados ou operadores técnicos qualificados, as instituições não prestem ou o país não esteja preparado para vivenciar um novo ciclo de expansão sem ameaças à estabilidade e à segurança da população. Temos tudo isso, ainda que não em doses ideais. Temos até mesmo algumas folgas de caixa e continuamos a nos beneficiar de uma natureza pródiga e farta. Melhoramos muito em diferentes áreas – da gestão pública e privada à distribuição de renda, do conhecimento tecnológico à democracia eleitoral – e há no país uma poderosa base material para o desenvolvimento. No entanto, carecemos do fundamental, ou seja, de boas condições para o estabelecimento de um pacto social que seja simultaneamente desenvolvimentista e aberto para a sustentabilidade, que olhe o país como um todo e dê ao mercado o peso relativo que a sociedade pode suportar, que impulsione e forneça balizes para uma reforma institucional integrada e sobretudo que condicione o avanço em termos de produtividade a uma consistente agenda distributivista. Pactos são produtos políticos e intelectuais. Não caem do céu. Dependem de sujeitos, atos de vontade, lideranças, batalhas de persuasão, convencimento e argumentação. Não avançam sem projetos socialmente referenciados, sem forças sociais minimamente mobilizadas, sem coalizões políticas inteligentes e generosas. Pactos são ferramentas de criação de vida coletiva, mas também são criaturas sociais, ou seja, necessitam pelo menos de uma disposição social para agir em conjunto e de atores constituídos para impulsioná-los. Por não termos como produzir pactos deste tipo, corremos o risco de assistir a um ciclo expansionista muito mais propenso ao reforço unilateral do mercado que ao aumento da igualdade ou à democratização da sociedade. Se assim ocorrer, continuaremos sem desenvolvimento efetivo e entregues à progressiva colonização do futuro pela economia.
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De organizações populares e movimentos sociais brasileiros Rudá Ricci
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literatura especializada caracterizou os movimentos sociais brasileiros dos anos 80 como antiinstitucionalistas. Recusaram relações políticas perenes com qualquer instituição política, de governos a parlamentos. Marcados pela “legitimação pela mobilização social” ou “mobilismo”, tais movimentos adotaram e aprofundaram o ideário das comunidades eclesiais de base, do seu horizontalismo organizativo (em oposição às estruturas verticalizadas das organizações populares dos anos 60) aos mecanismos de democracia direta (o assembleísmo) para tomada de decisão. Nos anos 80, as organizações não-governamentais (Ongs) caminharam, até determinado momento, para apoiarem tecnicamente os movimentos sociais emergentes. Recebiam financiamento externo, de organizações vinculadas à socialdemocracia ou igrejas progressistas, que apoiavam o processo de redemocratização do Brasil. Mas tudo se alterou no final dos anos 80. Por vários motivos. Destaco três, em especial: a) a queda do Muro de Berlim; b) a Constituição de 88 e um conjunto de leis que a sucederam e que aprofundaram mecanismos de co-gestão pública; c) a imposição de monitoramento e agendas européias como contraponto ao financiamento externo. A queda do Muro de Berlim gerou uma nova leitura da geopolítica de investimentos externos. O Leste europeu passou a demandar ajuda para consolidação de sua tênue democratização, tema similar ao Brasil do início dos anos 80. Com o fortalecimento de toda uma nova institucionalidade pública, do novo papel do Ministério Público aos conselhos de gestão pública, do fortalecimento das centrais sindicais à municipalização de inúmeras políticas sociais, a África despontou como continente mais necessitado de apoios financeiros. O fato é que houve queda acentuada de financiamentos às Ongs a partir do final dos anos 80 e início dos 90. A Constituição de 88 foi acompanhada de um corpo legislativo (Lei Orgânica da Saúde, Lei Orgânica da Assistência Social e Estatuto da Criança e Adolescente) que gerou uma importante teia de cogestão de políticas sociais no Brasil. Hoje são 30 mil conselhos públi45
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cos (setoriais e de direitos) espalhados por todo o território nacional, muitos deles administrando fundos especiais de investimentos, além de muitas iniciativas municipais de consulta ou participação na definição de investimentos orçamentários municipais (75% dos municípios adotaram mecanismos desta natureza, segundo o IBGE). Quase 200 municípios adotaram o orçamento participativo. Forjou-se, a partir de então, uma rede de fóruns de Ongs e movimentos sociais, Inter-redes temáticas, que abrangeram bandeiras e demandas de políticas públicas (educação pública democrática, saúde pública, saúde mental, fórum de entidades de defesa dos direitos da criança e do adolescente), reforma política democrática, fórum nacional de participação popular, enfim, uma gama imensa de temas antes adstritos às agências estatais. Enfim, Ongs e movimentos sociais ingressaram no mundo das técnicas e tecnalidades da administração pública. Saberes específicos, como acompanhamento e execução orçamentária, elaboração de projetos, elaboração de indicadores de monitoramento de execução de políticas públicas, produção de leis de iniciativa popular foram alguns dos novos temas da pauta das organizações populares do país. Obviamente que o impacto sobre as lideranças sociais foi imenso. Passaram a adotar um discurso mais técnico, a se debruçar sobre a lógica errática do orçamento público e da execução de ações governamentais. Tudo ficou ainda mais complexo com o monitoramento progressivo das agências de financiamento externo. A palavra de ordem passou a ser a observação de resultados concretos, de mudança da qualidade de vida da base social atingida por ações de Ongs financiadas por entidades européias, em especial da Alemanha, França e Holanda, mas também do Japão, EUA, Canadá, entre tantas. Ações de impacto sobre a auto-estima, ou seja, de caráter simbólico, passaram a ser questionadas. Este é o caso das romarias de agricultores familiares que, em muitas situações, foi questionada pelas agências financiadoras externas, identificadas como ações de baixa efetividade na mudança social. Agendas até então tipicamente européias, como as agendas ambientalistas e direitos da mulher, passaram a fazer parte obrigatória dos projetos de entidades brasileiras. Tais mudanças de rumo geraram alterações importantes. Uma delas foi a aproximação organizacional de ONGs e movimentos sociais. Muitos movimentos sociais se estruturaram, criaram um corpo técnico permanente, adotaram a figura do porta-voz oficial, aparelharam-se de uma parafernália tecnológica. Ficaram mais ONGs. As 46
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De organizações populares e movimentos sociais brasileiros
ONGs, por sua vez, esboçaram teorizar sobre as novas formas de representação social, num mundo cada vez mais fragmentado. Silvia Maria Roesch, num artigo intitulado “Gestão de ONGs”, sugere: A gestão das organizações não-governamentais passou a despertar interesse nos meios acadêmicos nos últimos anos, tendo em vista o crescimento e a diversificação do setor e as mudanças organizacionais observadas nestas instituições. Por um lado, a descentralização na gestão de políticas sociais pelo Estado abriu espaço para a expansão do setor. Por outro lado, a redução dos financiamentos de agências internacionais provocou a busca de alternativas de auto-sustentação destas organizações, ora por meio de atividades comerciais, ora parcerias com o setor privado, ou com o Estado. [...] Marçom & Escrivão Filho (2001) referem tendências diversas apontadas na literatura: por exemplo, Mendes (1997) constata em pesquisa junto a ONGs que seus modelos organizacionais não estão ajustados nem para o presente, nem para o futuro, enquanto Diniz (2000) relata a transposição de técnicas gerenciais empresariais, via a atuação de ex-executivos da área privada, consultores e empresas financiadoras. Ainda, vários outros (citados em Marçom & Escrivão Filho, 2001) mencionam a relutância destas organizações em adotar modelos gerenciais, havendo como que uma aversão ao modelo burocrático. [...] O papel das ONGs está em transformação no Brasil. Elas nasceram nos anos 70, como movimentos sociais relativos a direitos civis e combate à pobreza, operando fora do establishment, com uma atitude altamente crítica em relação ao Estado e ao setor privado (BAILEY, 1999, p.110). Hoje, sofrem pressões para buscar novas formas de sustentação financeira e reduzir sua dependência das agências financiadoras internacionais (cujos recursos estão sendo redirecionados para outros contextos), e, para tanto, têm necessidade de fortalecer relações com outros organismos privados ou estatais. Por outro lado, há, agora, mais espaço para a sua expansão, dada a tendência de descentralização na gestão das políticas sociais (desde a Constituição de 1988) pelo Estado, sendo a proposta mais recente, a parceria com o Estado no tratamento de questões sociais, formalizada pela Lei Nº 9.790, de 23 de março de 1999, que define as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscips). Comenta-se sobre o risco das parcerias virem a desvirtuar os papéis originais de representação e defesa de interesses, perda de independência política, além de causar excessiva burocratização. O desafio, portanto, é encontrar formas de gestão que se adequem às particularidades destas organizações, sua história, seu papel na sociedade, e que “…lhes permitam fazer o seu trabalho, mantendo seus próprios valores e prioridades”. (LEWIS, p.138)
Outro artigo apresenta as contradições relacionadas à representatividade social das ONGs (“Movimentos Sociais, as ONGs e a militância que pensa, logo existe”, de Adilson Cabral, Universidade Estácio de Sá/RJ): 47
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O fato é que, ao mesmo tempo em que se autonomizam, criando seu discurso próprio de identidade e sustentação, as ONGs também afirmam uma estrutura que se assemelha à de uma espécie de “pequenas empresas que funcionam no contraponto do mercado”, onde a cooperação para o desenvolvimento se transforma em mercadoria. Seus trabalhadores, por sua vez, aqueles que sustentam os projetos, a cooperação para o desenvolvimento, e em conseqüência, a própria continuidade das ONGs, estabelecem com elas uma relação de troca de dinheiro pela força de seu trabalho, que exige, além de um conhecimento específico, uma dedicação quantificada em horas de atuação e resultados. [...] Como dissemos anteriormente, as ONGs não substituem politicamente, nem mesmo falam em nome dos movimentos sociais, mas sim incorporam a representação do social para a opinião pública através da mídia e institucionalmente em alguns espaços multilaterais, tais como fóruns e conselhos em nível estadual e nacional. Passam a ser vistas pelos governos e órgãos multilaterais como interlocutores privilegiados para a implementação de projetos sociais. Desta forma, cooperar num projeto oriundo das diretrizes de um determinado governo resulta na cumplicidade com este, prática que não é conveniente para um setor que se pretende autônomo no interior da sociedade civil.
Enfim, as ONGs se profissionalizaram e iniciaram uma importante disputa pelo mercado, mesmo se opondo ideologicamente a esta possível sina. E o mercado de captação de recursos foi se oligopolizando. As ONGs também se fragmentaram. Este é o problema central, a pauta mais complexa de movimentos sociais e ONGs brasileiras. Em primeiro lugar, a aproximação organizativa entre ONGs e movimentos sociais, transformando aos poucos muitos movimentos sociais em organizações e afastando a possibilidade das ONGs se vincularem aos movimentos sociais como meras assessorias (já que os próprios movimentos sociais possuem as suas assessorias permanentes). Segundo, porque o ideário de engajamento social vem se rompendo com a busca de sobrevivência financeira. Terceiro, em virtude da acelerada fragmentação social, de pautas e agendas, que dificultam mais e mais a elaboração de uma agenda nacional, a despeito das possibilidades abertas pelos fóruns nacionais e redes temáticas. Vivemos, enfim, um momento especial, uma encruzilhada política e existencial. ONGs e movimentos sociais têm, hoje, mais a compartilhar que antes. Mas, paradoxalmente, enfrentam dificuldades de aproximação por conta de um “mercado” político e de financiamento cada vez mais complexo e impessoal.
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A sucessão de Lula e o retorno do nacional-popular Luiz Werneck Vianna
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ora de discussão que a experiência de afirmação do capitalismo vive, entre nós, um de seus melhores momentos. Atestam esse processo a diversificação do parque industrial, o comportamento dos indicadores econômicos, a sofisticação do agronegócio, a modernização do vasto mundo agrário, antes percebido como um lastro a empenhá-lo ao tradicionalismo e às relações précapitalistas. Contudo, esse registro de êxitos não se mantém quando o foco da observação abandona o cenário da economia de mercado e se fixa no da política. Com efeito, o confronto entre essas duas dimensões revela a assincronia dos seus movimentos, embora o comando de ambas esteja situado no interior do mesmo governo Lula: enquanto na primeira se cultua e se procura praticar o modelo capitalista de livre mercado, na outra, predomina viés oposto, valorizador do Estado e do seu papel na condução da vida econômica e social. A tensão que naturalmente deriva da disputa entre elas, cada qual presente na máquina do governo, senhora de frações da vida social organizada e com significativa representação na formação da opinião pública, não lhes faculta o exercício de uma ação hegemônica. Essa tensão, vivenciada no interior do Estado e arbitrada pelo presidente Lula com a autoridade que lhe concede o apoio popular que detém, quando recai sobre a sociedade, em razão da força política dessa arbitragem, já lhe chega moderada pelos filtros que atuaram sobre sua carga conflitiva. A sociedade se apresenta, então, sob o ângulo falso de que se recusa à política e se mantém avessa a seus conflitos, apesar de estar recortada, de alto a baixo, em torno de dois projetos bem delimitados sobre o seu destino, que, historicamente, dramatizaram a cena política brasileira. Daí que o Estado de compromisso vigente, reunião de contrários, tem sua sorte ligada à resolução das suas disputas no interior da própria máquina governamental, permanentemente ameaçado de ruína se uma das partes ignora a arbitragem presidencial e convoca a sociedade como elemento de decisão. 49
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A presumida apatia da sociedade não resiste ao rico inventário das ações dos seus movimentos sociais, nos centros urbanos e no mundo agrário, inclusive do seu empresariado, embora, em geral, se manifestem topicamente, sem ambição de escalar a esfera propriamente política. Essa desambição também é enganosa, uma vez que procede do cálculo estratégico dos diferentes atores sociais em preservarem suas posições no Estado de compromisso que a todos procura contemplar. De outra parte, o sistema de orientação dos atores da sociedade civil, longe de estar descolado dos valores da sua informal “representação política” em postos governamentais, é muito próximo deles, tal como se patenteia na agenda do MST, em que a ênfase na questão nacional rivaliza com a da luta pela terra, e na do empresariado, como notório quando da votação da CPMF, em que a tônica foi a de condenar o papel do Estado na sociedade brasileira. Assim, as disputas que recortam os “dois partidos” no interior do governo encontram plena correspondência nos movimentos sociais e na sociedade civil organizada, todos guardando, sempre que possível – no caso da CPMF não foi –, uma prudência calculada na vocalização de suas posições. A ilusão de imobilidade da cena política provém, portanto, do cálculo dos atores envolvidos na “guerra de posições”, cujo teatro de operações tem sítio no interior do Estado e dos seus aparelhos de governo: uma eventual mobilização das forças sociais que lhes são afins comprometeria o delicado e frágil compromisso que os tem reunido, sem que ainda se possa antecipar qual lado sairia vencedor. A importação das categorias gramscianas é, no caso, obrigatória, pois não se pode mais negar o clássico andamento de revolução passiva que caracteriza a cena brasileira, decerto que com a marca singular de os controles institucionalizados da atividade política serem detidos por um governo com origem na esquerda e apoiado por uma ampla base sindical e movimentos sociais. Contudo, a administração política de um governo que é, a rigor, uma coalizão de contrários, tende a escapar de controle à medida que estes, cada qual no seu campo, reforçam suas posições na sociedade civil. Para os empresários, o grande teste de auto-avaliação de suas forças esteve na campanha e na votação da CPMF, igualmente medida, no cotidiano, pelos seus êxitos econômicos; para os sindicatos e movimentos sociais, no seu poder de veto, até então efetivo, às iniciativas que ferem seus interesses, como em matéria de legislação trabalhista e previdenciária. Mas esse complicado cálculo tem data marcada no calendário político, e tenderá a deixar de atrair os atores envolvidos à medida que a próxima sucessão eleitoral começar a entrar na ordem do dia. 50
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A sucessão de Lula e o retorno do nacional-popular
A “guerra de movimentos” ronda, por detrás da aparente imobilidade do quadro e da apatia social reinante, a estabilidade do Estado de compromisso. Tal ameaça, pelo seu potencial diruptivo, tem sido suficientemente forte para conter, se não todos, ao menos alguns dos principais atores em dissídio. Sem Lula, porém, que é o seu garante real, a reedição do Estado de compromisso que aí está não é obra fácil, particularmente em razão da base de massas que escora a reunião de contrários no seu ministério, satisfazendo-os em parte e sem negar a cada um legitimidade nas suas pretensões, mesmo sob uma versão reformada. Seu terceiro mandato pode nascer de um contexto em que a incerteza impere – a ambição de todos em ganhar tudo vindo a amea çar o que cada um já tem – surgindo como a via possível para que se evite o confronto entre as duas matrizes que disputam primazia, combinando-as, como tem sido seu estilo de governo, a partir das suas “áreas temáticas” – o social para os sindicatos e movimentos sociais organizados, o econômico para os empresários. Sem ele, único árbitro socialmente reconhecido para julgar as controvérsias que se originam da convivência no governo de projetos tão díspares, um ajuste de contas, mesmo que não radical, parece inevitável. Essa eventualidade parece oportuna para os que sonham, em setores da esquerda, com uma guerra de movimentos, tal como a conhecemos nos idos do começo da década de 1960, desde já ensaiada pela audaciosa política de ocupações do MST não só de terras, como também de empresas estratégicas para o mundo do mercado. De outra parte, é altamente previsível que, dessa vez, a agenda das relações internacionais, em particular no nosso subcontinente, se fará presente na próxima sucessão presidencial, e com bastante ênfase caso a atual crise venha a se agravar. O cenário de beligerância emergente na América do Sul, evidentes as tentativas da Venezuela em tornar sua “proposta bolivariana” instrumento de ação hegemônica no subcontinente, e a presença das Farc, na Colômbia, uma potencial força a ser mobilizada por essa proposta, tem posto em evidência a posição do Brasil como força de equilíbrio e de paz entre políticas nacionais radicalizadas. No caso, o fato do plano externo replicar cenário semelhante ao existente no seu plano interno, confrontando, a partir das especificidades nacionais dos países envolvidos, em particular a Venezuela, a Colômbia e o Equador, o mesmo dissídio Estado vs. mercado, não deverá ser indiferente aos atores internos e externos na hora da sucessão presidencial, que reconhecem no governo Lula tirocínio na administração dessa controvérsia. Contraditoriamente, o terceiro mandato – por natureza, uma crise 51
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institucional em si – depende mais dos riscos, internos e externos, já manifestos no atual contexto, do que propriamente dos seus êxitos na economia e no social. Não há nada de inevitável nesse quadro, que registra apenas possibilidades e tendências. Os riscos, internos e externos, podem ser minimizados e postos sob controle. A eleição de um dos dois candidatos do Partido Democrata à sucessão americana pode implicar uma distensão na conjuntura internacional, e a candidatura à Presidência do governador de São Paulo atua no sentido de que as regras do jogo sejam preservadas. Mantidas essas regras, porém, onde se situará a fração majoritária da esquerda, hoje ocupando posições no governo? Sem Lula, coligada ou não com o PT, a administração de um governo de contrários não estará ao seu alcance, caminho, é de se presumir, a ser contestado, com propósitos eleitorais, pelo próprio PSDB, no caso de Serra se apresentar à disputa e for fiel à sua plataforma programática de 2002. O nacional-popular, em uma versão democratizada, como resposta a essa circunstância, pode vir a se fazer presente, mais uma vez, no imaginário político brasileiro, alternativa contida in nuce nos dois mandatos de Lula, especialmente no segundo. Não cabem surpresas, nem denunciar esse retorno como farsa: uma história que adotou o “andamento passivo” como recurso para introduzir mudanças e que tem horror à linha reta, a ponto de a efígie de Vargas, cuja herança foi estigmatizada pelos criadores do PT – o “populismo”, o “nacionaldesenvolvimentismo”, o “sindicalismo atrelado ao Estado” – já quase caber no perfil de Lula, não costuma ser generosa para com as propostas novas. Por sua natureza, a concepção de uma política nacional-popular, mesmo sob uma forma fraca, tende a ser mobilizadora e a definir o campo dos amigos e dos inimigos. O Estado de compromisso atual é uma invenção de Lula, criada como resposta ad hoc às críticas circunstâncias do começo do seu governo, e não pode subsistir sem ele. A esquerda, incluído o PT, conhece, agora, uma alternativa de atividade, entrevista pontualmente nos entreveros no interior do governo e na arena da sociedade civil. Na esfera pública, tais entreveros têm sido vocalizados e ganham densidade pela ação da fração mais influente dos intelectuais brasileiros – os economistas. São deles que partem, em suas múltiplas formas de intervenção sobre a opinião pública, a mais aguda reflexão sobre o estado de coisas atuais e a precisa fixação dos temas que compõem a controvérsia, ainda abrandada e contida pela vigência do Estado de compromisso que aí está,
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mas certamente destinada, na próxima sucessão presidencial, a tomar conta dos debates públicos. O peso da influência desse tipo de intelectual deriva naturalmente da natureza da controvérsia, que versa, no principal, sobre matéria econômica, embora não omita preferências por modelos do que deva ser uma boa sociedade. Em boa parte, os protagonistas mais evidentes nessa polarização têm inscrição direta ou indireta no mundo sistêmico, e procuram traduzir suas análises e posições em matéria especificamente econômica a fim de que elas exerçam atração sobre as dimensões da política e do social. São, na verdade, essas lideranças intelectuais que apresentam os termos da disputa em jogo, disciplinando os interesses contraditórios que emergem da vida social; são elas que apresentam a alternativa de um projeto inclusivo para os campos que pretendem representar. Aí, também, um retorno, valendo lembrar o papel determinante de lideranças intelectuais desempenhado, no curso dos anos 1950, por economistas como, de um lado, Eugênio Gudin e Roberto Campos, e, de outro, Celso Furtado e Ignácio Rangel. Decerto que naquela quadra, inclusive em razão da carga ideológica trazida pela Guerra Fria e pela própria debilidade do capitalismo brasileiro de então, a expressão de um projeto de desenvolvimento autônomo, em que o Estado se comportasse como agência indutora e de direção política, continha um potencial conflitivo desconhecido nos dias presentes. Muitas das questões que dramatizavam a política daqueles anos ou saíram de cena ou foram domesticadas – a questão agrária somente em parte, conforme o demonstra o MST –, e os êxitos recentes do capitalismo na economia do país esvaziaram o antigo argumento de que, aqui, não haveria condições favoráveis à criação de uma moderna economia de mercado. Mas essas mudanças não provocaram um alinhamento das instituições – exemplo maior, o da Carta de 1988 –, da política e da sociedade, a valores e práticas que sejam homólogas a essa economia, importando, segundo os intelectuais da matriz de mercado, se não ameaças, ao menos obstáculos a seu melhor desempenho. Removêlos implicaria a obra de reformas estruturais – com sinal trocado, a mesma retórica dos nacional-desenvolvimentistas dos anos 1950 e 60 –, no sentido de liberar o mercado de entraves prejudiciais, como a estrutura previdenciária e a legislação trabalhista, e, sobretudo, a destituição da forte presença do Estado na vida social. Para eles, a instituição de uma boa sociedade deveria ter como tema central a formação da poupança, insuficiente, nos níveis atuais, 53
III. Batalha das Idéias
para promover um salto de tipo asiático no desenvolvimento econômico do país a fim de aumentar a riqueza social. No país, os gastos sociais, como os previdenciários, aliados aos custos de manutenção de uma pesada e ineficaz máquina estatal, onerariam a poupança, afetando a taxa de investimento e a mantendo aquém do necessário para uma vigorosa alavancagem do sistema produtivo. A via real para um futuro de afirmação, a inserir de modo vantajoso a economia brasileira no processo de globalização, dependeria da dura imposição de reformas estruturais que não temessem impor sacrifícios a atual população ativa, flexibilizando a legislação trabalhista a fim de reduzir os custos das empresas e reduzindo os gastos públicos, inclusive em matéria social, no sentido de permitir uma queda na carga tributária a fim de estimular as atividades empresariais. Na ponta oposta, se encontram aqueles para quem o desenvolvimento não pode prescindir da participação ativa do Estado, lugar onde tomam corpo a idéia de nação e se concebem as instituições aplicadas à indução da solidariedade e da coesão sociais. Dessa perspectiva, a economia não pode ser considerada como uma dimensão isenta a processos externos a ela, devendo estar referida a interesses nacionais e a objetivos de inclusão social de caráter universalista, especialmente nas áreas da saúde e da educação, situados, por definição, ao largo da lógica mercantil. O planejamento e a determinação dos fins estratégicos do desenvolvimento econômico devem partir da iniciativa da esfera pública política, dando expressão à vontade de todos, enunciada nas deliberações e pleitos democráticos. Com as tensões originárias da diversidade dessas matrizes intelectuais, que não estão soltas de representação e de vínculos com a sociedade civil, o céu de brigadeiro da atual política brasileira não resiste a uma sucessão sem Lula. As concepções e projetos de sociedade que se confrontam, já desconfortáveis neste Estado de compromisso que tem abafado as divergências entre eles, deverão ir às urnas em torno de programas políticos definidos. No caso, é de se contar com o fato de que essa disputa não é nova, e se arrasta, ao menos, desde o primeiro governo Vargas. Os argumentos contrastantes têm história e muitos dos personagens que os vocalizam estão marcados por ela. Mascarada pela política de falsa união nacional, que conduziu a tudo e a quase todos para um compromisso sem programa no interior do Estado, o desvendamento livre dos conflitos, até então surdos, tende a dissolver o pragmatismo de alianças sem princípio, celebradas a fim de viabilizar um governo que desertou do seu programa. Antigas identidades e agendas, tradicionalmente presentes na vida 54
Política Democrática · Nº 21
A sucessão de Lula e o retorno do nacional-popular
republicana brasileira, começam a ressurgir, entre elas a dos sindicatos, reforçados pelo novo papel de suas centrais de trabalhadores, dos militares, a da questão agrária e a da nacional. Elas retornam recicladas, limadas pelo tempo, com outros intérpretes e à luz de uma nova interpretação, embora ainda ecoem algumas palavras fortes do passado, como a de um ministro do atual governo, meses antes de tomar posse em suas funções, ao conceituar que “uma questão ultrapassa em importância todas as outras no Brasil: a questão nacional”. Não se trata de vestir a roupagem do passado porque, aqui, ele não ainda não transitou em julgado, preservado pela patologia nacional de somente aceitar a mudança se ela trouxer consigo a marca da conservação, tradição que se reitera com este governo originário do campo da esquerda. Se o enredo não conhece o ator que investe contra os fatos e o destino, que apenas se adapta a eles, não há farsa em continuar a viver a mesma história. É a possibilidade do fim da reiteração de que a condição para mudanças está na preservação do que existe, que se divisa no horizonte de uma sucessão sem Lula, o que pode trazer de volta para a sociedade o mundo da política como lugar de encontro entre os ideais e os interesses, depois de tantos anos contida nos aparelhos da Administração. Para a esquerda, romper com ela importa seguir caminho novo, fazendo ouvidos moucos ao canto de sereia que, mais uma vez insistirá nos encantos da “guerra de movimentos”, e se aplicando a traduzir o nacional para a linguagem das grandes maiorias, a serem mobilizadas em torno das instituições e procedimentos da democracia política, bem como fazendo da história uma matéria-prima para a invenção e não um simples acervo de práticas a serem repetidas.
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IV. Observat贸rio Pol铆tico
Autores Alberto Aggio
Graduado em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (1982), tem mestrado (1990) e doutorado (1996) em História Social pela mesma faculdade. Realizou estudos de pós-doutoramento na área de História da América Contemporânea na Universidade de Valencia (Espanha), entre 1997 e 1998. É atualmente professor adjunto da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, campus de Franca
Giorgio Baratta
Presidente da International Gramsci Society–Itália e autor, entre outros, de As rosas e os Cadernos. O pensamento dialógico de Antonio Gramsci (Rio de Janeiro: DP&A, 2004)
Fernando Magalhães
Professor de filosofia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
O “momento Allende”: entre reforma e revolução Alberto Aggio
O
que aqui chamamos de “momento Allende” visa demarcar e enfatizar os aspectos de originalidade e inediticidade, além dos elementos de difusa insuficiência e limites, que estiveram presentes na prática e na formulação política de Salvador Allende, especialmente no contexto em que ele se tornou personagem emblemático e central do que ficou historicamente conhecido como “a experiência chilena”, o processo histórico que expressou concretamente a perspectiva de se construir o socialismo por meio da democracia num país latino-americano como o Chile do início da década de 1970, e que, como sabemos, terminou no cruento golpe militar de 11 de setembro de 1973. O processo tinha como referência principal o conhecido projeto da “via chilena ao socialismo”, formulação específica que acabou conciliando inapelavelmente uma nova concepção da relação entre democracia e socialismo com a retórica convencional do discurso tradicionalmente vocalizado pela esquerda chilena agrupada na Unidade Popular (AGGIO, 2002). O “momento Allende” deve ser compreendido como a expressão máxima – porque teórica e prática – da perspectiva de construir o socialismo pelo caminho democrático. Concebê-lo como um lugar histórico não apenas faz justiça a Allende como também nos permite exercitar o olhar sobre o passado a partir de uma perspectiva justificadamente crítica. Salvador Allende foi, sem dúvida, a liderança política que mais abraçou aquele projeto e que mais se amparou nele como sustentá59
IV. Observatório Político
culo de suas convicções mais profundas bem como de sua prática política como presidente da República do Chile. Socialista por opção pessoal desde jovem, Allende sempre se caracterizou por ser mais uma liderança do socialismo chileno do que um dirigente partidário de perfil organizativo. Sua identidade política é mais a de um político de convicção em torno a um ideário de caráter universal e civilizatório do que a de um operador ou burocrata partidário. Allende manifestava essencialmente uma luminosa vocação no sentido de dedicar suas ações e sobretudo sua energia na construção de um novo projeto de sociedade. Isso fez com que ele pudesse ser tomado por seus contemporâneos e partidários como uma liderança que apontava para o futuro numa época de sonhos libertários e revolucionaristas. Um homem do século XX e um pai do século XXI, como ele gostava de se referir a si mesmo, o líder socialista e presidente da República aparecerá na imaginação expressa por um cartaz de Roberto Matta, em 1972, nos seguintes termos: Allende quiere decir ir sempre más allá. La tradición del futuro (MOULIAN,1993). Vinculado a esse universo e aos sistemas ideológicos que estruturavam a cultura política da esquerda mundial naquela quadra histórica, ao contrário do que se afirma comumente, Allende tinha efetivamente suas convicções teóricas e as viveu de maneira profunda buscando colocá-las em prática, a despeito de todas as suas insuficiências e debilidades que a retórica de crenças da década de sessenta se encarregava de encobrir. Allende foi geralmente qualificado como um político “realista e pragmático”, qualidades apreciadas nos políticos de hoje, mas vistas como flagrantemente negativas pelas lideranças da esquerda latinoamericana dos anos sessenta. Contudo, essa imagem nem sempre corresponde à verdade. No contexto da Presidência da República, Allende foi simultaneamente realista e temerário. Foi realista em muitos momentos no intuito de preservar as instituições que davam sustentação política ao seu governo. Mas também foi temerário em muitas de suas declarações, como a de “ser presidente de uma parte dos chilenos” e não de todos, ou ao se vincular a alguns miristas ou insurrecionalistas do Partido Socialista ao montar, no início do governo, uma guarda pessoal da Presidência da República – para mencionar brevemente alguns dos aspectos de condutas temerárias de Allende no plano político e pessoal (LABARCA, 2007). Essa atitude muitas vezes temerária se explica pelo fascínio de Allende pela Revolução Cubana, algo que marcaria a sua sorte, a despeito da sua insistência no caminho democrático ao socialismo para a situação chilena. De toda forma, àqueles dois qualificativos se agregava, como acima mencionamos, a avaliação também depreciativa de que Allende 60
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O “momento Allende”: entre reforma e revolução
era desprovido de qualquer visão teórica a respeito do socialismo e, mais ainda, de uma teoria que alicerçasse sua perspectiva de construção do socialismo pela democracia. Lamentavelmente, essas visões, muito influenciadas pela crença dos protagonistas da época, especialmente aqueles vinculados às principais correntes ideológicas que dominavam a esquerda chilena, impedem que se busque compreender mais profundamente as idéias políticas de Allende a partir da trajetória de sua elaboração e especialmente do contexto dramático de suas proposições finais, visando alocá-las num determinado lugar da cultura política de esquerda daquele contexto. Allende efetivamente não foi um teórico como se pode dizer que alguns líderes políticos do socialismo internacional acabaram se tornando. Entretanto, não há muita dúvida de que, de forma geral, o seu discurso estava inserido e expressava, ainda que tangencialmente, as formulações ideológicas e políticas que marcaram o chamado “teoricismo” marxista da década de 1960. Todavia, há que se chamar atenção para o fato de que ele também ocupou uma posição especial nesse cenário e, mais do que isso, postulou a realização prática de uma das formulações que marcaram aquele momento histórico, a saber, a perspectiva de realizar a revolução por meio de reformas estruturais de caráter radical. Acertadamente, Tomás Moulián registra que “Allende era um político que concebia a revolução como um momento culminante da aplicação de sucessivos programas realistas; mas ele teve que governar em outro cenário, no de uma revolução na qual não tinha o poder necessário e que, depois de desencadeada, tratou de a moderar em vão”(1998:119). O “momento Allende” configura-se efetivamente como uma simbiose entre revolução e reforma, nos termos em que essas duas proposições encontravam os seus limites no final da década de sessenta e início da década de setenta. Entretanto, a posição de vanguarda assumida por Allende era claríssima, ainda que ele fizesse parte daquela “realidade híbrida” que caracterizava a esquerda do país (MOULIAN, 1988:43). O que diferenciava Allende no conjunto da esquerda chilena era a concepção de que a questão da democracia não poderia mais ser trabalhada como se a esquerda fosse um ator externo à ordem política e institucional. Nesse sentido, a diferença com o processo revolucionário cubano era cabal. É no governo que a estratégia que Allende perseguiu desde a década de 1950 (a unidade entre socialistas e comunistas) assume um lugar cada vez mais autônomo, identificando-se com o próprio projeto da via chilena ao socialismo. Tal projeto e a cultura política que o informava garantiam a autonomia de Allende e definiam a sua liderança como um elemento de equilíbrio e afirmação do eixo 61
IV. Observatório Político
comunista-socialista. Claro está que essa autonomia era relativa e, por essa razão, sua estratégia não se afirmou política e teoricamente por meio de uma qualificação própria, nos termos de uma “via allendista ao socialismo”. Tal formulação, além de compreender a autonomia de Allende como integral, toma como referência muito mais os elementos de comportamento político e de horizonte estratégico (um socialismo democrático muito rarefeito no seio da própria esquerda chilena da época) do que propriamente as elaborações de Allende atinentes à problemática das vias de transição (AGGIO, 2002). Atuando objetivamente como expressão e equilíbrio do eixo comunista-socialista, a estratégia política de Allende rejeitava tanto a noção de revolução por etapas (comunista) quanto a idéia de um “Estado Paralelo” (socialista), alocando o tema da transição pela via socialista no interior da legalidade existente. O distintivo na via socialista de Allende era a sua defesa de uma transição que aprofundasse e concretizasse o conteúdo democrático e formal do Estado burguês e fosse sustentada pela mobilização de massas e pelos institutos legais do Estado. Como processo, Allende supunha que esta transição se encaminharia para uma situação de ruptura, transformando o Estado vigente em Estado antagônico ao capitalismo. Na sua visão, portanto, a resolução do problema do poder não era anterior à construção socialista, mas sim uma questão de simultaneidade no interior da via socialista. Poder político dos trabalhadores e criação socialista eram abordados por Allende como processos construtivos e não destrutivos, como processos de desarticulação da dominação capitalista (AGGIO, 2002). Para Allende, as circunstâncias de um processo tão original como o chileno não encontrariam respostas prontas na teoria. Mas podese supor também que Allende intuía que a esquerda chilena não havia desenvolvido uma perspectiva cultural que pudesse superar o imaginário redentorista das revoluções e, por conseguinte, poder discutir com profundidade “os problemas teóricos e históricos das revoluções e de sua trajetória posterior”, aquilo que o mesmo autor qualifica como “o peso da fatalidade, a tragédia das revoluções” (Moulián,1988:52). A presença destacada de alguns intelectuais de esquerda vinculados àquilo que se poderia chamar de “socialismo de esquerda europeu” – uma linhagem política posta em permanente debate entre as estratégias revolucionárias e reformistas da época – pode, a nosso ver, agregar alguns elementos importantes no desvendamento da relação de Allende com o mundo teórico da revolução e da reforma daquela conjuntura. O acesso a alguns daqueles intelectuais que as62
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O “momento Allende”: entre reforma e revolução
sessoraram ou influenciaram Allende nesse campo pode indicar que o problema não esteve na ausência de teoria, mas sim numa determinada abordagem desta ou, mais precisamente ainda, nos limites de tal abordagem, quando levada à prática no contexto particular do processo chileno. É o que se depreende especificamente dos trabalhos de Joan Garcés (1972; 1976), cientista político valenciano e assessor direto da Presidência. Gárcés foi o principal formulador da chamada “via político-institucional”, uma “tática revolucionária” coerente com o desenvolvimento político chileno e com a idéia de revolução como conquista do aparelho de Estado. Por meio dela se sustentaria a forma política da vontade geral que caracterizava o ordenamento constitucional, preenchendo-lhe o conteúdo com os valores de uma nova classe social. Tratava-se de configurar, mediante a intervenção dos atores políticos vinculados aos trabalhadores, um conteúdo proletário e popular às avançadas instituições da democracia política vigente no Chile. Porém, era de fundamental importância dar sustentação ao governo da UP, através da iniciativa política constante, o que deveria culminar na conquista da hegemonia no interior do aparelho estatal. Importava fundamentalmente à esquerda, então, saber utilizar os recursos operativos que lhe fornecia o Estado para trabalhar favoravelmente as situações políticas com vistas a um fim bastante determinado: manter funcionando o governo para que este ganhasse, cada vez mais, força política e legitimidade social, e pudesse promover as mudanças constitucionais que dariam suporte à institucionalidade da transição socialista. Pode-se dizer que Garcés concebia a revolução socialista como uma espécie de “revolução processual”, concentrada em vitórias táticas. Se a sua “via político-institucional” não se encontrava integralmente fundada na ortodoxia marxista-leninista, guardava dela o elemento forte de intervenção tática, ativa e ruptural. Nela, o tempo político da tática não podia sofrer reveses de qualquer natureza, sob o risco de emergir no cenário o tempo da estratégia, no qual, segundo o próprio Garcés, forçosamente a “via político-institucional” cederia lugar à “via insurrecional”. Nessa concepção, a nosso ver, o tempo da tática aprisionava o tempo da estratégia. O seu elemento de previsão era apenas defensivo e por isso centrava-se fortemente na análise conjuntural. Por essa razão, a “via chilena” de Garcés não conseguiu configurar-se como um novo “programa”, afirmando-se tão-somente como uma espécie de realização operacional da via chilena defendida por Allende.
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IV. Observatório Político
Das referências dessa corrente política e intelectual, o trabalho do teórico socialista italiano Lelio Basso (1972) parece ter sido o de maior relevância para Allende, com a apresentação de um texto de debate num seminário em Santiago, em 1971. Basso rejeitava a noção de que qualquer processo revolucionário definia-se pela conquista violenta do poder e enfatizava que, para Marx, a revolução era entendida como um longo processo, diferenciando-se da noção de insurreição e do ato da tomada do poder. A noção de revolução deveria ser formulada a partir do próprio desenvolvimento histórico suscitado pelo capitalismo. O caráter social da produção capitalista, de acordo com Basso, gerava uma tendência socializadora que lhe era inerente. A ação revolucionária do movimento operário seria aquela que penetrasse e interferisse neste processo de socialização, dominando gradativamente as leis de desenvolvimento do capitalismo, introduzindo os elementos da nova sociedade e preparando a crise revolucionária que iria explodir as relações capitalistas de produção. O meio para a realização dessa ação revolucionária seria a adoção de uma estratégia permanente de reformas. Dentre as reformas mais significativas, Basso citava a legislação social, a universalização do sufrágio e a crescente intervenção do Estado na economia com as nacionalizações e as diversas formas de planificação. Ao se adotar essa estratégia, o movimento operário realizaria uma intervenção revolucionária, orientando conscientemente, a cada momento, o processo em direção a uma lógica antagônica de socialização. A revolução seria, então, o que Basso, citando freqüentemente passagens de Marx, chamava de um “conflito dialético” entre duas “lógicas antagônicas”: a do sistema e a socializante. O “núcleo profundo do processo revolucionário”, de acordo com Basso, seria o resultado final do choque de “lógicas antagônicas” ou o conflito nascido em decorrência deste antagonismo, o que poderia gerar situações de crise política “suscetíveis de se concluírem com a tomada do poder por parte do proletariado”. Por outro lado, uma transição socialista não ocorreria em “vazios históricos” e por isso era preciso relevar as raízes históricas particulares de cada país. Assentado nas raízes históricas e culturais de cada país, o elemento ruptural nesta estratégia estaria na direção política implementadora das reformas. Se tais reformas fossem pensadas e executadas de forma desligada da lógica antagonista – a lógica socialista – , o processo redundaria em reformismo ou no compromisso social-democrata entre capitalismo e classe operária. Uma intervenção política consciente supunha, então, a subordinação dos elementos táticos e parciais das reformas a uma visão de totalida64
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O “momento Allende”: entre reforma e revolução
de, que deveria criar ou reforçar no interior da sociedade capitalista “uma lógica integradora e coordenadora de todas as tendências e de todos os elementos socialistas”, lógica que poderia, a partir de certo momento, operar automaticamente. A força do eixo comunista-socialista na sociedade chilena pareceu ser e evidenciar a lógica antagonista de que falava Basso, e criou a ilusão de que esta, por sua pura e simples existência, seria capaz de conduzir uma revolução concebida nestes moldes. Convergir para a meta socialista todas as forças que brotavam no interior da sociedade capitalista, utilizando-se os instrumentos legais para isso, seria, portanto, a grande tarefa da direção política. Residiu nesse ponto, precisamente, o essencial do problema que nem as reflexões de Basso nem a estratégia levada à prática por Allende conseguiram equacionar: como relacionar a ativação de massas que a estratégia supunha e a estrutura política do regime liberal-democrático existente no Chile, assentada em partidos e num Parlamento forte? As reflexões de Basso e a estratégia adotada por Allende supunham uma “transferência de poderes” na sociedade chilena. A afirmação e a prevalência da lógica antagônica admitiam a criação de novos organismos de poder popular, sendo que o maior problema não era a sua criação, mas sim o seu sentido e a sua função no interior da institucionalidade. A confrontação com o Parlamento existente, não se definindo muito claramente este aspecto, mostrou-se inevitável, assim como o envolvimento do Executivo neste confronto. A ênfase da argumentação de Basso, no que se refere à dimensão política, procurando “salvar” a estratégia do reformismo e colocá-la no campo da revolução, configurou-se na utilização da legalidade como instrumento para afirmar a lógica antagônica no interior da sociedade – a institucionalidade colocada a serviço dos trabalhadores e do socialismo, como diria Allende – e na mobilização de massas conduzida pelo movimento operário, única garantia para a continuidade e o êxito do processo de transição ao socialismo. Aparece aqui claramente uma linha intermediária entre avanzar ou consolidar, tendências praticamente opostas no interior da Unidade Popular. “Avançar continuamente”, dizia Basso, “para que não caia a pressão popular, mas, ao mesmo tempo, reforçar e consolidar cada conquista”. Em termos sintéticos: movimento versus passividade, tendo exclusivamente como eixo e fator de sustentação a mobilização de massas. Movimento que, segundo Basso, dirigido e fundado nas classes populares, com sensibilidade para suas demandas, teria capacidade de alterar profundamente a correlação de forças no espectro político, ao ponto de as maiorias parlamentares perderem “todo o significado”. A 65
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utilização da legalidade estava colocada em termos claros: “[...] uma permanente colaboração entre o Executivo, que promove as reformas, e a massa popular que as respalda”, submetendo “a resistência parlamentar a uma dupla pressão”. Não eram integralmente distintas as formulações de Allende, a despeito da sua ardorosa defesa do pluralismo e das instituições democráticas. A sua duplicidade, para se situar como ator político na Unidade Popular e garantir-lhe equilíbrio, foi sempre a tônica da sua política. Tudo se justificava porque a procura de um caminho democrático ao socialismo configurava-se, de fato, como uma busca incerta e tateante. Uma coisa encontrava-se, porém, bastante definida: este caminho seria, certamente, trilhado pela crescente e ativa participação política de massas, mas isso mostrou-se inteiramente insuficiente. Mergulhada nesses dilemas, a via chilena apenas conseguiu anunciar-se como uma via democrática. Porém, devido ao fato de ter enfrentado uma situação limite, constituiu-se no ponto e no posto mais avançado que a cultura política da esquerda, não apenas latino-americana, conseguiu atingir a respeito do que se concebia, àquela altura, como uma via democrática ao socialismo. Por isso, o seu valor como experiência histórica é incomparável. Em síntese, retomar uma reflexão sobre Allende hoje, no momento em que se relembra os 100 anos do seu nascimento, não é um ato intelectual ocioso e desprovido de conseqüências. Compreender o “momento Allende” em sua inteireza e essencialidade – e, com isso, superar o risco de anacronismo – é estabelecer um justo lugar para aquele líder socialista na história da esquerda mundial. A figura de Allende está hoje em disputa. Mas ela não merece uma exumação política orientada por um mimetismo sem sentido para os dias que correm. É o caso de muitos daqueles que o criticaram duramente e hoje se apressam em afirmar que aquele projeto não fora bem compreendido no seu tempo e que o programa que lhe dava sustentação ainda hoje expressa sua validade para uma América Latina invadida pela perspectiva neoliberal. Essa forma de trabalhar com o passado massacra a história e, pior, impede uma reflexão mais fecunda e inventiva sobre o presente. Mantendo a sua roupagem retórica de outros tempos ela é, contudo, sedutora ao propugnar um “reformismo revolucionário” no qual o allendismo seria uma espécie de floração histórica e, via essa operação, resgata-se o personagem por meio de uma mitologia às avessas: de um bastardo reformista na época, Allende é transformado num revolucionário digno de ser resgatado.
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O “momento Allende”: entre reforma e revolução
Similar a essa proposição, há também outras perspectivas analíticas que pensam em apresentar Allende como um ator externo ao desafio do governo. É algo difícil de compreender. Dizem essas formulações que “o reformismo revolucionário de Allende fracassou no passado mas é o mais lúcido caminho de uma esquerda crítica nos dias de hoje”; por isso, “os seguidores de Allende não deveriam buscar o governo, mas sim um espaço de ação crítica na sociedade” (Moulian, 1998). Há seguramente um reducionismo nessa visão: Allende é visto como um político cuja missão maior foi a de unificar a esquerda a partir de um “trabalho de formiga” em relação aos setores populares. Essa visão, a nosso ver, visa resguardar o mito e não olhar criticamente os próprios limites de Allende frente ao desafio inédito que assumiu enfrentar. Inventar uma imagem de Allende distante da sua “agonia” (em sentido mariateguiano) é idealizar uma herança que pode ser fecunda. O que defendemos aqui é precisamente o contrário: o “momento Allende” deve ser entendido como o núcleo da herança de Allende, formado pelos sentidos e significados produzidos a partir do ponto máximo a que ele chegou como líder e dirigente político.
Referências AGGIO. Alberto. Democracia e socialismo: a experiência chilena. São Paulo: Annablume, 2. ed., 2002. BASSO. Lelio. “La utilización de la legalidad en la fase de transición al socialismo”. VV.AA. Transición al socialismo y experiencia chilena. Santiago: Ceso/Ceren, 1972, p. 15-73. GARCÉS. Joan. Allende y la experiência chilena. Barcelona: Ariel, 1976. GARCÉS. Joan. Chile: el camino político hacia el socialismo. Barcelona: Ariel, 1972. LABARCA, Eduardo. Salvador Allende – biografia sentimental. Santiago: Catalonia, 2007. MOULIAN. Tomás. “Campo cultural y partidos políticos en la década del sesenta” In Forja de Ilusiones: el sistema de partidos (1932-1973). Santiago: Universidad ARCIS/FLACSO, 1993, p. 233-264. MOULIAN. Tomás. Conversación interrumpida con Allende. Santiago: LOM/ Arcis, 1998.
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Uma nova cosmópolis européia e mundial
Giorgio Baratta Existe, hoje, uma consciência cultural européia e existe uma série de manifestações de intelectuais e políticos que sustentam a necessidade de uma união européia: até se pode dizer que o processo histórico tende para esta união e que existem muitas forças materiais que só com esta união poderão se desenvolver: se em x anos esta união se realizar, a palavra “nacionalismo” terá o mesmo valor arqueológico da atual “municipalismo”1.
O
desaparecimento do socialismo real, o alastramento do americanismo, a globalização econômica e midiático-cultural provocaram em várias partes do mundo o despertar de interesse pelo pensamento de Gramsci. Num sentido paradoxal, mas não extraordinário, seu modo-método de pensar mostra-se mais atual hoje do que no período em que escrevia.
A investigação diacrônica recente sobre os Cadernos evidencia (Frosini, Vacca e outros) a minuciosa consideração da evolução (ou involução) da União Soviética que neles pulsa2. Mas a substância internacional do pensamento está em outra parte: fica evidente a forte consciência da mundialização da política sob domínio americano, diante da certeza de que o materialismo histórico ou filosofia da práxis, animado por um autêntico “filósofo democrático” ou “pensador coletivo”, produz, ou pode produzir, um horizonte prático-teórico novo e portador de futuro possível, no momento em que aquele primeiro e primitivo socialismo perde sua força propulsora. 1 A expressão que dá o título a este texto está no Caderno 19, § 5, sobre o Risorgimento italiano. Cf. A. Gramsci. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, v. 5, p. 41. O trecho em epígrafe encontra-se em Id., ib., p. 249. 2 Cf. F. Frosini. Una “religione laica”. Verità e politica nei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci (em curso de publicação); A. Rossi e G. Vacca. Gramsci tra Mussolini e Stalin. Roma: Fazi, 2007.
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Política Democrática · Nº 21
Uma nova cosmópolis européia e mundial
De resto, desde o Caderno 1 Gramsci propõe a análise do americanismo no contexto da internacionalização da questão meridional, em que o emblemático, para a Itália e a Europa, “mistério de Nápoles” se liga àqueles países asiáticos, como a Índia ou a China, onde se apresenta a “estagnação da história”3. E, no entanto, já no Caderno 2 – como ressaltam os estudos de Boothman4 – Gramsci delineia um possível Trânsito Pacífico, que poderia pôr de joelhos o Primado Atlântico. É bem compreensível a grande prudência político-programática de Gramsci revolucionário-reformador num “mundo grande e terrível”, que se revela, “especialmente para quem está no cárcere, cada vez mais incompreensível”5. A insistência de Gramsci na categoria “mundo” – uma insistência até mesmo lingüística, metafórica e expressiva – não deixa dúvidas sobre a centralidade do cosmopolitismo = novo internacionalismo, no ritmo do seu pensamento. Teste decisivo é a questão européia. Também aqui se registra um paradoxo: nunca como hoje a União Européia pareceu tão frágil e politicamente inconsistente; nunca como hoje, entretanto, a busca de uma alternativa à “nova ordem mundial” “de marca americana” demonstra uma necessidade urgente de iniciativa da Europa, capaz de conferir crédito ao que Gramsci chamava de “uma moderna forma de cosmopolitismo”. Nos Cadernos, a abordagem gramsciana daquilo que, para ele, representava a “necessidade evidente” e já inadiável de “união européia” (ainda que só realizável “em x anos”6) é esporádica e, no entanto, reveladora do horizonte geopolíticocultural do seu pensamento. O ponto delicado, ora em questão, é o nexo que Gramsci estabelecia entre Europa e Nova Cosmópolis. Gramsci não é um filósofo da política, mas um filósofo político, no sentido de que sua concepção da política deve ser enquadrada no esforço de repensar questões filosóficas gerais, a partir do que ele considerava “a primeira e principal pergunta da filosofia”: “o que é o homem?”7. 3 Caderno 22, § 2. Cf. A. Gramsci. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, v. 4, p. 247. 4 D. Boothman. “Gli appunti del 1930 sulla geopolitica”. In: R. Medici (Org.). Gramsci, il suo e il nostro tempo. Bolonha: Clueb, 2006. 5 Carta a Tania de 20 de outubro de 1928. In: A. Gramsci. Cartas do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, v. 1, p. 294. 6 Caderno 19, § 5, cit., p. 42. 7 A. Gramsci. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, v. 1, p. 411.
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IV. Observatório Político
O indivíduo é um “centro estruturante de relações” e, como tal, “passa a fazer parte de organismos, dos mais simples aos mais complexos”. O homem é um “sujeito múltiplo”, assim como múltiplas são “as sociedades das quais um indivíduo pode participar: são muito numerosas, mais do que possa parecer. É através destas ‘sociedades’ que o indivíduo faz parte do gênero humano”8. O organismo mais complexo é, evidentemente, “a unificação do gênero humano”, produzida pela “colaboração de todos os povos” e realizada sob formas atormentadas, permeadas de violência, mas nem por isso menos evidente e rica de potencialidades (Marx havia falado de “comunismo do capital”). A gramsciana dialética do contraponto entre formas múltiplas de pertencimento e participação comum dos indivíduos representou, e representa, um grande desafio contra o trágico vezo identitário que em grande parte caracterizou, na falta de perspectivas concretamente internacionalistas, a história do século XX e desta mudança de século9. Assim, Gramsci pôde argumentar sobre o valor político do seu enraizamento na Sardenha (uma região caracterizada pela presença de uma “língua” e de uma “cultura” específica) e, ao mesmo tempo, sentiu e explicitou a exigência de uma radical saída do seu original “provincianismo ao quadrado e ao cubo”, a fim de abraçar uma “consciência européia”10. Daí surgiu, por um lado, uma contribuição original para uma concepção dinâmica da autonomia regional, entendida, como disse Antonio Pigliaru, seu principal aluno sardo, não como “barreira”,
8 Id., ib., p. 413. 9 Aqui me permito remeter ao meu recente livro Antonio Gramsci in contrappunto. Dialoghi col presente. Roma: Carocci, 2007. 10 Sobre o modo de pensar dialético e “contrapontista” de Gramsci, é exemplar o § 19 (de uma só redação) do Caderno 15, de 1933, em que, tomando como modelo de escrita os Ricordi politici e civili, de Guicciardini, que “recapitulam […] ‘experiências’ civis e morais”, ele recorda sua “permanente tentativa de superar um modo atrasado de viver e de pensar, como aquele que era próprio de um sardo do princípio do século, para apropriar-se de um modo de viver e de pensar não mais regional e ‘paroquial’, mas nacional, e tanto mais nacional (aliás, justamente por isto nacional) na medida em que buscava se inserir em modos de viver e de pensar europeus ou, pelo menos, comparava o modo nacional com os modos europeus, as necessidades culturais italianas com as necessidades culturais e as correntes européias […]. Se é verdade que uma das necessidades mais fortes da cultura italiana era desprovincianizar-se até mesmo nos centros urbanos mais avançados e modernos, tanto mais evidente deveria se revelar o processo ao ser experimentado por um ‘provinciano ao quadrado e ao cubo’, como decerto era um jovem sardo do princípio do século” (Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, v. 4, p. 134-5).
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mas como “fronteira”11; por outro, a consciência de que, para abandonar radicalmente qualquer tentação residual de “jogar os continentais ao mar”, o ponto de chegada – para ele que, em Turim, aos vinte anos começara a ir “à escola da classe operária” – devia ser não só e nem tanto a identidade nacional, por mais que fosse vital e importante, mas a consciência européia. E por quê? Porque esta consciência é que podia assegurar a capacidade de viver, de modo moderno e aberto, tanto o ser sardo, quanto o ser italiano. E aqui chegamos ao núcleo do problema. A questão das relações entre identidade regional, meridional, nacional e européia é um dos temas ainda hoje mais significativos da investigação histórica sobre o “ritmo do pensamento” de Gramsci: diria sobretudo hoje, depois que Said enfatizou a grande novidade espacial e territorial do método de pensamento gramsciano no âmbito da tradição marxista (e não só)12. O juízo de Gramsci sobre Croce (assim como sobre Gobetti) está fundamentalmente atravessado por esta questão: Croce surge, aos olhos de Gramsci, como um pensador em primeiro lugar europeu e, neste sentido, mundial; e só nacional em termos subordinados a tal horizonte, tanto é verdade que ele, à diferença de Gobetti, parece-lhe um intelectual substancialmente desinteressado, não permeável à especificidade da questão meridional, a qual, como sabemos, representava para Gramsci uma questão nacional. Pode-se argumentar que, para Gramsci, o caráter europeu-mundial do pensamento de Croce representava certamente um motivo de abertura e modernidade, mas ao mesmo tempo de conservação e reação. De fato, o cosmopolitismo crociano reproduzia o cosmopolitismo tradicional das “classes cultas italianas”, que desde o Renascimento implicara um distanciamento intelectual e moral do território e da sociabilidade da própria vida cotidiana. Neste sentido, cosmopolitismo = recusa–desprezo preconceituoso do senso comum, isto é, de um senso (structures of feeling, dizia Williams) comum aos “simples” de uma dada realidade territorial. Compreendese então como e por que Gramsci (que reivindicava vigorosamente o “ser sardo”) percebia como decisivo para a filosofia da práxis o embate com Croce. 11 Antonio Pigliaru. “L’eredità di Gramsci e la cultura sarda”. In: Pietro Rossi (Org.). Gramsci e la cultura contemporanea. Atti del Convegno internazionale di studi gramsciani tenuto a Cagliari il 23-27 aprile 1967. Roma: Editori Riuniti–Instituto Gramsci, 1975, v. 1, p. 516. 12 Cf., por exemplo, Edward W. Said. Cultura e imperialismo. Letteratura e consenso nel progetto coloniale dell’Occidente. Roma: Gamberetti, 1998, p. 74-6.
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IV. Observatório Político
A Sardenha era vivida por Gramsci como um capítulo da luta mais geral pela autonomia dos “grupos sociais subalternos”. A Itália representava o terreno decisivo de luta com o fascismo, que tornara ridícula e exasperara a “consciência nacional-popular”. A Europa (vê-se bem da citação posta no início) significava a aquisição de um pertencimento mais amplo e mais moderno do que o nacional, e sobretudo um antídoto ao nacionalismo, que, segundo Gramsci, era o maior fator de crise em nível mundial, na medida em que marchava contra a corrente em relação ao objetivo “internacionalismo da vida econômica”. Para delimitar melhor a posição de Gramsci sobre a Europa, deve-se considerar a posição da Europa em face da centralidade que ele reconhecia à América e ao americanismo, no quadro do processo de progressiva “unificação do gênero humano”. Segundo Gramsci, os Estados Unidos da América, que empunhavam o bastão da corrida de revezamento mundial, abandonado pela Grã-Bretanha, constituíam “um prolongamento orgânico” e uma “intensificação” da Europa, e, no entanto, implicavam para a Europa “a transformação da forma de civilização existente”, isto é, uma transformação radical da própria historicidade, a começar pela perda do primado mundial13. No seu conjunto, os Cadernos (e o complexo e até tortuoso emaranhado diacrônico que os caracteriza) podem ser lidos como a investigação, ao mesmo tempo histórica e política, analítica e projetual, de um ponto de vista que ponha em movimento a perspectiva da superação da hegemonia americana no mundo, posta em crise, mas não decisivamente comprometida, pelo advento do socialismo num só país. É este o problema que, segundo Gramsci, requer um pensamento novo, ao mesmo tempo europeu e mundial. Se a grande novidade dos Estados Unidos da América era a conexão tendencial entre economia e hegemonia, isto é, a infiltração social e política da produção industrial no tecido social, a Europa era portadora de uma instância político-hegemônica caracterizada – hoje podemos dizê-lo, mas era o que pensava o próprio Gramsci –, para o bem e para o mal, por uma exigência de universalismo, vale dizer, de espírito de mediação, de unificação cultural, de reconhecimento das diferenças, ainda que, ao mesmo tempo, de arrogância e agressividade colonial, de racismo, de imperialismo.
13 Antonio Gramsci. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, v. 4, p. 279-81.
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Gramsci pensa e escreve, substancialmente, antes de Hitler e de Stalin. Hoje nos encontramos depois de Hitler e de Stalin. Eis a raiz da sua atualidade. Não se trata, certamente, de recuar, mas de fazer com que frutifique, com base em quase um século de experiência, um certo modo e método de pensamento. Ainda hoje, devemos acertar contas com a necessidade – cada vez mais viciada de dilemas terríveis, identidades enraizadas e vontade de domínio — de viver e conviver com as passagens entre região, nação, continente e mundo.
(Fonte: Gramsci e o Brasil. Tradução: A. Veiga Fialho)
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Ainda há lugar para a ditadura do proletariado? Fernando Magalhães
A
bril/maio de 1871. Marx escreve uma série de manifestos sobre a primeira experiência dos trabalhadores no poder, em Paris, e apresenta-os ao Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores. O conjunto de artigos, intitulado A Guerra Civil na França, descreve a luta do proletariado parisiense durante seus três meses de vida. Num célebre trecho desse texto, Marx (1975, 1, p. 199) diz que a Comuna de Paris é a forma política finalmente encontrada para levar a cabo a emancipação econômica do trabalho. Esta é, provavelmente, a única obra em que há uma referência relativamente explícita ao processo de transição do capitalismo para o socialismo que Marx chama, em outras ocasiões, de “ditadura do proletariado”. Digo relativamente porque, neste trabalho específico, Marx não a denomina enquanto tal, embora receba a chancela de Engels na Introdução que faz para a publicação alemã em 1891. Após uma longa explicação a respeito do malogrado experimento socialista, Engels (1975, 1, p. 167) encerra seu prólogo com as famosas palavras: “Pois bem, senhores, quereis saber que face tem essa ditadura? Olhai a Comuna de Paris: eis aí a ditadura do proletariado!”. Aparente exposição de um fenômeno jamais explicado em sua inteireza. Categoria citada em diversas oportunidades, mas não definida ou conceituada. Oposição inequívoca à opinião de Lênin (1979, p. 97) de que Marx detalhou exaustivamente seu significado. Posição, por sua vez, contrária à de Kautsky (1979, p. 30).
Com efeito. À exceção dos artigos de 1871, Marx em nenhuma ocasião explicita concretamente o que denota a ditadura do proletariado. Por duas vezes, em 1850, refere-se a ela de forma sucinta. A primeira quando as reivindicações burguesas cedem lugar “à palavra de ordem revolucionária: Derrubada da burguesia! Ditadura da classe operária!”1 A segunda, no final dos escritos (último artigo), quando contrapõe a ditadura dos exploradores (a República Constitucional) à ditadura dos trabalhadores aliados, isto é, à República vermelha ou 1 Destaques no original.
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Ainda há lugar para a ditadura do proletariado
social-democrata (MARX, 1977, 3, p. 131 e 177). Dois anos depois, o tema retorna, numa carta a Weydemeyer, com uma ligeira alusão à transição para uma sociedade sem classes (1977, p. 25). O mesmo ocorre em 1875 ao fazer a crítica ao Programa de Gotha (MARX, 1971, p. 30), momento em que a identifica ao Estado. Esta última referência é responsável por uma variada gama de interpretações que atribuem ao conceito de ditadura do proletariado uma identificação com a concepção de Estado. Não sem uma certa razão. No 18 Brumário de Luís Bonaparte, Marx associa o Estado de sua época à ditadura da burguesia em suas duas variantes: ao bonapartismo e à república constitucional composta por um regime político representativo. Isso conduz à idéia de que a ditadura do proletariado representa um “estado de coisas” ou uma “situação” e não uma forma de governo. Constitui-se ela, então, a materialização do Estado de classe. Implicação lógica: enquanto existirem as classes o Estado, quer dizer, o poder político organizado de uma classe sobre a outra, como se encontra no Manifesto Comunista (MARX e ENGLES, 1977, p. 104), persistirá. Em uma palavra, a ditadura do proletariado não se extinguirá enquanto as classes mantiverem-se atuantes como unidades contrapostas. Uma questão, porém, permanece indefinida. Seria adequado chamar a Comuna de Paris, acontecimento que leva Marx a exclamar que enfim fora descoberta a forma política da emancipação econômica do trabalho, de ditadura? É a Comuna um Estado? Indagações que nada têm de casual. Simples, a razão. Se o esforço de Marx e de Engels é demonstrar que a Comuna nada tem de despótica, por que o empenho, ainda hoje, por parte de muitos marxistas, de conservar atual uma categoria que perde sua força de atração após o surgimento do fascismo e do stalinismo, das ditaduras latino-americanas ou mesmo dos países europeus autoritários como Portugal, Espanha e Grécia nos anos 70 do século passado, por exemplo? É possível no presente manter como estatuto básico da teoria de Marx o princípio da ditadura do proletariado? Qual o seu significado? Ditadura é um conceito que tem sua origem na dictatura romana. Trata-se de um órgão extraordinário, utilizado como último recurso em situações de emergência (guerras, catástrofes naturais etc.), e seu representante, o ditador, nomeado pelo Senado. A despeito da amplitude dos poderes do ditador, eles não são ilimitados. Não podem, sequer, revogar ou mudar a Constituição. Maquiavel é um dos primeiros autores modernos a compreender o sentido desse instrumento. Nos Comentários Sobre a Primeira Década de Tito Lívio, Maquiavel (1979, 34-35, p. 117-122 e 1992. 34-35, p. 117-122) assinala 75
IV. Observatório Político
que ela representa um sustentáculo para a república e se mantém dentro das formas legais. A designação dos ditadores romanos é limitada no tempo e seu poder não ultrapassa as circunstâncias que obrigam sua instituição. Trata-se de um período excepcional em que um meio incomum tem a função de “quebrar a máquina do Estado” – pelo menos no pensamento de Maquiavel (e depois no de Marx) – com o intuito de, posteriormente, instaurar um regime republicano (ou socialista, no caso da teoria marxiana). Ao que parece, Marx bebe, igualmente, nas fontes romanas para formular sua concepção de ditadura, mas concede-lhe uma natureza diferenciada, às vezes híbrida, um misto de democracia e despotismo provisórios, ora limitados pelas próprias leis do processo revolucionário, ora destituídos de qualquer freio legal. Em todo caso, para ambos este período é momentâneo e não tende a ser duradouro – embora Marx não precise o tempo de sua duração. O certo é que o termo ditadura confunde-se, não raro, com o de democracia. Na Crítica ao Programa de Erfurt, Engels (1971, p. 48) afirma com clareza: “Uma coisa absolutamente certa é que nosso Partido e a classe operária só podem atingir a dominação sob a forma de república democrática. Esta última é mesmo a forma específica da ditadura do proletariado[...]”. Isso é facilmente explicável pelo fato de que para Engels, tanto quanto para Marx, todo Estado é simultanea mente uma democracia e uma ditadura: a primeira, para as classes dominantes; a segunda, para os demais membros da sociedade. Kautsky (1979, p. 30 e 37) nota isso perfeitamente ao escrever que em Marx a ditadura não se restringe a um único indivíduo, mas a uma classe e que “não podemos entender outra coisa senão o reinado do proletariado à base da democracia”. Objetiva-se enquanto um estado de coisas, um estado político e não como forma de governo (Id. p. 83). Podemos configurá-la como um estado de exceção que termina com as circunstâncias que lhe deram origem: a propriedade privada dos meios de produção e as lutas de classe. Para todos os efeitos, a ditadura do proletariado é conseqüência, e não causa, do processo de transição ao socialismo. Creio que a veneração pela figura de Lênin contribui em muito para que essa categoria marxista seja alçada à condição primeira da concepção materialista da história. Na polêmica estabelecida com Kautsky à época da revolução na Rússia, Lênin (1979, p. 96-97) considera a ditadura do proletariado “o fundo da doutrina de Marx”, porquanto estava contida nela a enunciação mais concreta e científica do pensamento comunista. O fato é que Lênin confunde um conceito 76
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substancialista (o modo de operar do domínio de classe) com a maneira pela qual o poder é exercido (forma de governo). Lênin associa, simultaneamente, a ditadura à revolução transformando o meio para alcançar um objetivo no próprio objetivo. Já não existe distinção entre revolução e ditadura do proletariado. Não é necessário ser marxista, contudo, para reconhecer a diferença conceitual. Autores fora dessa tradição, mas de extração socialista, são capazes de oferecer à construção de Marx elementos esclarecedores que iluminam o tema. “Tanto a ditadura quanto o despotismo não são empregados por Marx para assinalar formas específicas de governo, de acordo com seu sentido técnico, mas unicamente para indicar com particular força polêmica o ‘domínio’ de uma classe sobre outra”[...]”Se, uma vez limpo o terreno da confusão terminológica, está claro que nem ‘ditadura’ nem ‘despotismo’ são empregados no sentido tradicional de forma de governo, mas com o significado de domínio de classe, então permanece aberto o tema das formas de governo verdadeiras e próprias e de sua correspondente relevância. Certamente, Marx não elaborou uma teoria completa das formas de governo; todavia delineou bem a diferença entre duas constituições, o Estado representativo e o bonapartismo no curso de um idêntico domínio de classe”. Assim fala Bobbio (1997, p. 88). Palavras que repercutem os comentários de Stoppino (1991, 1, p. 378) quando diz que Marx nunca especificou a peculiar forma política que a ditadura deve assumir. A despeito dessas interpretações que têm como tronco comum as observações de Kautsky sobre a experiência soviética, em 1918, prevalece entre a grande maioria dos partidos comunistas e de seus teóricos a versão leninista da ditadura, o que reflete bem o mito da autoridade. Afinal, o chefe político russo triunfa onde os demais partidos haviam fracassado. Quem mais autorizado para definir e difundir a verdadeira versão sobre a ditadura do proletariado? Não diz ele que o critério da verdade é a prática? Esse argumento, porém, serve para justificar o predomínio de uma interpretação sobre outra, mas não explica – nem soluciona – a dificuldade de se conceber um conceito menos problemático e mais consensual, nem mesmo indica as razões pelas quais a ditadura do proletariado toma um rumo inesperado. Inegável a imprecisão com que o conceito é trabalhado por Marx e Engels. Não obstante a orientação dirigida a uma fase intermediária entre duas formas de domínio de classe (arriscaríamos a dizer mesmo de dois tipos de Estado – o capitalista e o socialista) que tanto pode ser exercido democraticamente como de modo autoritário, Marx deixa informações duvidosas sobre os dois modelos apontados. O 77
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próprio 18 Brumário (MARX, 1968, p. 24, 26 e 125), obra paradigmática – juntamente com A Guerra Civil na França – para a compreensão desse conceito emblemático (e problemático) não é claro. A referência ao domínio de classe em suas duas modalidades – constitucional e ditatorial – é contraposta à ditadura pura em contraste à república, o que dá a entender que a primeira difere até mesmo da segunda enquanto conceito substancial. Marx vê, assim, duas formas de ditadura: uma associada exclusivamente aos mecanismos políticos pelos quais uma classe desenvolve seu projeto em benefício de seus próprios interesses – ainda que a maneira pelo qual o poder é exercido tenha como fundamento o voto; a outra refere-se explicitamente a um modelo autoritário de governo que ele chama de despotismo. Digamos que o primeiro modelo está vinculado ao modo direto de poder como é exercitado nos países europeus, ou mesmo nos Estados Unidos da época, e o outro aos Estados asiáticos ou à Rússia czarista. A ditadura do proletariado assemelha-se ao primeiro caso (em que pese a diferença de conteúdo entre duas espécies de sociedade: a capitalista e a socialista). Certamente, as primeiras formulações de Marx, por volta de 18481849, contêm elementos de ambas as formas (TEXIER, 2005, p. 191), à medida que o conceito faz sua aparição num contexto em que os trabalhadores ainda lutam pelo sufrágio. Ademais, a ditadura do proletariado é um meio para um fim, isto em um instrumento de opressão – o Estado, por assim dizer – que permanece ativo até sua extinção em decorrência do fim das oposições entre as classes. Contudo, o que dizer da Comuna de Paris? A ditadura do proletariado pressupõe a existência e permanência do Estado. Extinguindo-se este desaparece, necessariamente, aquela. Mas é a Comuna um Estado no sentido em que o entendemos verdadeiramente? Ou uma corporação de trabalho, como lembra Marx? Por isso Engels atribui o conceito de ditadura ao de democracia sem necessidade de maiores detalhes. A contemporaneidade, porém, encarrega-se de modificar os elementos teóricos conhecidos a partir das práticas vigentes. As formas de governo autoritárias não oferecem mais espaço para confundir os termos; e após a instauração dos sistemas ditatoriais puros – como o nazismo, o fascismo e outros tipos de governos despóticos – torna-se impossível pensar a ditadura em sua forma benéfica. Particularmente depois que a ditadura do proletariado esteve ligada aos regimes totalitários do Leste Europeu. O que deveria ser um estado de transição perpetua-se de maneira definitiva solapando, na raiz, o próprio conceito que inaugura a temática. A essa altura, não deveríamos voltar um pouco nossa atenção para o insight de Bakunin ao afirmar 78
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que o objetivo de uma ditadura é o de durar o máximo de tempo possível e rever aquilo que chamamos de “fortalecimento do Estado”? Falha de projeto. Deixa de realizar-se num Estado democrático avançado para concretizar-se no atraso do absolutismo russo; inscreve-se num único país, causando a ruptura com a revolução mundial e se perpetua enquanto Estado, produzindo uma “transição” duradoura sem perspectivas de extinção estatal ou de classes. A experiência dramática da dor e do sofrimento, além da imitação das ações revolucionárias por um regime que traz em seu seio fórmulas gêmeas de tragédia e farsa2, não permitem mais imaginar o conceito de ditadura em seu sentido original. O elemento trágico que comporta todo o processo ditatorial dos tempos modernos impede que a concepção de Marx permaneça recepcionando tal título. Ocorre com ele o mesmo que se dá com o termo maquiavélico. Independentemente da conotação primitiva, o clinamen (desvio) promovido pela associação entre marxismo e ditadura soviética contribui para que a terminologia sofra uma tradução negativa generalizada. Os acontecimentos que forjam o padrão social do “socialismo real” imprimem ao conceito de ditadura do proletariado o nome do mal, incompatível com qualquer espécie de socialismo atual ou futuro. Sabemos o que este estatuto representa para a teoria marxiana. Acima de tudo encontra-se nele a concepção de democracia proletária. Mas não importa. Tanto para o povo como para muitos intelectuais o vocábulo está impregnado por uma visão horrenda de crueldades e atrocidades alheias ao pensamento de Marx. Identifica-se, ela, ao que Lefort (1986, p. 74, 76-77) atribui ao termo maquiavélico e maquiavelismo. Encontra-se em desacordo com as pretensões de Maquiavel, mas já está incorporado ao vocabulário político e não há nenhuma perspectiva de alteração. O ciclo das ditaduras, como conceituação primordial, perde seu sentido. A democracia, particularmente de massas, é a única via para o socialismo. Como, porém, modificar o velho termo facilmente? Ou mesmo, de modo mais geral, como modificá-lo em sua própria constituição depois de cair nas malhas do senso comum? Naturalmente, as razões não se esgotam nesses aspectos e têm motivos até mais importantes consubstanciados nas peculiaridades das sociedades contemporâneas. Democracia é democracia 2 Penso aqui na concepção aristotélica que vê na tragédia imitações de caráter elevado (ARISTÓTELES, 1973, VI, p. 447), mas ao mesmo tempo influenciados pela natureza da repetição como simulacro, uma cópia imperfeita da imitação da imitação. As ações de 1917 sucedem as de 1871. Por sua vez, ambas são superadas pelo movimento posterior desencadeado pelo stalinismo.
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e não mais ditadura; seja qual for a conotação que lhe empreste. Mas isto é outra história, ou melhor, é assunto para outro tema.
Referências ARISTÓTELES. Poética. In: Os Pensadores. V. 4. São Paulo: Abril Cultural, 1973. BOBBIO, Norberto. Dictadura de la burguesia y dictadura del proletariado. In: SANTILLAN, José Fernández (org). Norberto Bobbio: El filósofo e la política (Antología). México: Fondo de Cultura Económica, 1997. ENGELS, Friedrich. Introdução à Guerra Civil na França, de Marx. In.: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Textos. V. 1. São Paulo: Edições Sociais, 1975. _____ Crítica ao Programa de Erfurt. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich e Lênin, Vladimir. Crítica ao Programa de Gotha, Crítica ao Programa de Erfurt e Marxismo e Revisonismo. Porto: Portucalense, 1971. KAUTSKY, Karl. A Ditadura do Proletariado. In: KAUTSKY e LÊNIN, Vladimir. A Ditadura do Proletariado e A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979. LEFORT, Claude. Le travail de l’oeuvre Machiavel. Paris: Gallimard, 1986 (Reprint de 1972). LÊNIN, Vladimir. A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky. In: KAUTSKY, Karl e LÊNIN, Vladimir. A Ditadura do proletariado e A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky. São Paulo: Livraria e Editora Ciências Humanas, 1979. MAQUIAVEL, Nicolau. Comentários Sobre a Primeira Década de Tito Lívio. Brasília: UnB, 1979. _____ Discorsi Sopra La prima Deca di Tito Livio. In: MACHIAVELLI, Niccolò. Tutte Le Opere. Florença: Sansoni Editore, 1992. MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Escriba, 1968. _____ Crítica ao Programa de Gotha. In: MARX, Karl, ENGELS, Friedrich e LÊNIN, Vladimir. Crítica ao Programa de Gotha, Crítica ao programa de Erfurt e Marxismo e Revisonismo. Porto: Portucalense, 1971. _____ A Guerra Civil na França. In: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Textos. V. 1. São Paulo: Edições Sociais, 1975. _____ As Lutas de Classe na França de 1848 a 1850. In: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Textos. V. 3. São Paulo: Edições Sociais, 1977. _____ Manifesto Comunista. In: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Cartas Filosóficas e Outros Escritos. São Paulo: Grijalbo, 1977. STOPPINO, Mario. Ditadura (verbete). In: BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Giangranco. Dicionário de Política. V. 1. Brasília, UnB, 1991. TEXIER, Jacques. Revolução e Democracia em Marx e Engels. Rio de Janeiro: UFRJ, 2005.
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V. O Social e o PolĂtico
Autores Francisco de Sousa Andrade
Formado em História e Geografia, é pós-graduado em Ciências Políticas (Instituições e Processos Políticos do Legislativo), pelo Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento da Câmara dos Deputados – Cefor.
Antonio Silva Magalhães Ribeiro
Administrador, mestre em Administração, professor universitário e consultor de Administração e Finanças
Agnaldo de Sousa Barbosa
Doutor em Sociologia, professor e pesquisador da Universidade de Franca – Unifran, onde coordena o Centro de Estudos do Desenvolvimento Regional – Ceder, publicou, entre outros, Empresariado Fabril e Desenvolvimento Econômico (Hucitec, 2006).
Movimentos sindicais e corporativos como atores da democracia Francisco de Sousa Andrade
A
história da construção das organizações sindicais no Brasil remonta a fins do século XIX, período em que já se registraram diversas manifestações de protesto, ainda que quase absolutamente desprovidas de um caráter político e orgânico mais elaborado. Segundo o relato de Marcelo Badaró Mattos assistiu-se na cidade do Rio de Janeiro, durante a segunda metade do século XIX, a uma transformação rápida e profunda no que se refere ao chamado “mundo do trabalho”, situando a greve dos tipógrafos de 1858, como fato bastante significativo daquele início de organização e de lutas classistas. Se esta foi a primeira greve ou não de trabalhadores livres ou assalariados no Brasil, isso é algo difícil de se comprovar, dadas as dificuldades historiográficas e, sobretudo, ao atraso cultural que caracterizou o país por séculos. Contudo, encontramos dados e relatos, conforme A História do Sindicalismo no Brasil que dão conta de uma greve realizada ainda em 1720, no Porto de Salvador, na Bahia, à época o maior das Américas. Mas o que se deseja ressaltar neste artigo e até como forma de reconhecimento, é pontuar os momentos e conquistas que os trabalhadores marcaram e obtiveram, no curso do processo tardio de industrialização brasileira, em jornadas as mais intensas e ásperas de lutas, contra patrões e governos, por reconhecimento de direitos elementares e pela conquista da cidadania política, assinalando as contribuições que, por intermédio de suas organizações representa83
V. O Social e o Político
tivas, de fato deram, em muitas oportunidades, para a construção da democracia política no Brasil. Do ponto de vista da sociologia do trabalho urbano e industrial, enquanto a Europa central experimentava verdadeiras agitações sociais e culturais no século XVIII, em face das transformações desencadeadas desde o início da revolução industrial na Inglaterra, ainda no século XVII, e impulsionadas talvez ideologicamente a partir dos acontecimentos decorrentes da Revolução Francesa, iniciada em 1789, o Brasil ainda se valia durante quase todo o período mencionado, de relações de trabalho escravo. Sendo o último dos países no continente americano a abolir a escravatura, o país e suas elites dominantes conservadoras restam como protagonistas de um atraso em quase todos os campos, cujo custo social ainda hoje se faz refletir e permeia de modo bastante negativo um retardado processo de desenvolvimento. É fato que as lutas e turbulências verificadas no período prérepublicano, ou antes ainda, nos movimentos pela independência, – ainda que muitos desses movimentos conduzidos pelas elites – tenham nos legado, talvez, se considerarmos as organizações secretas, os maçons, os clubes republicanos, a raíz primeira de uma perspectiva cívico-organizativa. Já do ponto de vista da massa de homens e mulheres que se pretendiam livres, mas despossuídos material e talvez espiritualmente, não se pode deixar de registrar os episódios que a historiografia oficial não fez com a devida precisão, como a história do beato Antônio Conselheiro, no sertão baiano e, no outro extremo geográfico do país, a chamado “guerra do Contestado”, ocorrida nas fronteiras de Santa Catarina com o estado do Paraná, como exemplos primeiros de lutas de libertação, se deles se abstraírem os aspectos de manipulação político-religiosa. Mas é, sem dúvida, aos imigrantes europeus, especialmente aos italianos e espanhóis, a quem devemos primeiro reconhecer o saldo contributivo de ousadia, por para cá terem trazido, além da força de trabalho, seus sonhos e experiências, porque já aqui chegaram, digamos “contaminados”, no melhor sentido, pelas lutas contra a exploração do trabalho brutalizado em seus países de origem e por condições de vida mais humanas e dignas. Os primórdios da Revolução Industrial e, por conseguinte, do estabelecimento do capitalismo como regime econômico, empurraram as populações do campo para as cidades e tiraram dos artesãos a condição de donos de seu próprio capital para transformá-los em coletivos de operários mal pagos e vivendo em condições de vida degradantes, enquanto a burguesia
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Movimentos sindicais e corporativos como atores da democracia
comercial e industrial – os protagonistas da nova Era – acumulavam a maior parte do capital produzido em benefício próprio. As primeiras greves de que se tem notícia, conforme já mencionado, datam ainda de fins do século XIX, contudo, afora a “aventura” grevista dos tipógrafos do Rio de Janeiro de 1858, movimentos organizados com caráter de classe e de reivindicações mais definidas e específicas somente vieram a ocorrer, de modo sistemático, por volta de 1906, ano da realização do I Congresso Operário Brasileiro (C.O.B.). Já em 1907, São Paulo foi paralisada por uma manifestação iniciada pelos trabalhadores da construção civil, da indústria de alimentos e metalúrgicos, que acabou atingindo outras cidades do estado, como Santos, Ribeirão Preto e Campinas. Todos esses movimentos reivindicatórios e agitações realizados no início do século XX e até o ano de 1922, foram conduzidos majoritariamente por trabalhadores imigrantes – os anarquistas – de cujas experiências, socialistas e outras correntes vão se utilizar para fundar o Partido Comunista do Brasil (PCB). Os anos 20 e 30, do século XX, constituem-se no período de definição político-ideológico do sindicalismo no Brasil, porquanto ressente-se impregnado do sentimento de mudanças e revoluções mundiais em curso. Em 1917, no compasso dos acontecimentos da revolução operária russa, uma onda de greves é deflagrada em São Paulo, especialmente nas fábricas têxteis. O movimento teria se espalhado por quase todo o interior do estado e alcançado uma adesão de mais de 50 mil trabalhadores e trabalhadoras e, como resultado, os patrões concederam um aumento imediato de salário e se propuseram a estudar as demais reivindicações. Destaque-se, contudo, que o ganho mais significativo daquele movimento foi o reconhecimento das instâncias sindicais e de representação do operariado. A superação do anarco-sindicalismo, de fato, nos anos 20, pode ser considerada um marco na organização e na luta dos trabalhadores brasileiros por liberdade e reconhecimento de direitos, haja vista um elenco de conquistas que a partir da década de 30 são instituídas e logo depois, de forma definitiva, institucionalizadas, com o DecretoLei de número 5.452, de 1º de maio de 1943 – a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Mas a primeira lei sindical brasileira, surgida no início do século XX, vem a ser o Decreto nº 979, de 6 de janeiro de 1903, feita sob inspiração da Igreja Católica, que pregava a união do capital e trabalho no campo; afinal, o Brasil era um país essencialmente agrícola, ainda, de acordo com José Carlos Arouca. Esta legislação adotava a 85
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forma de organização mista, de trabalhadores e empregadores rurais, para o estudo, custeio e defesa de seus interesses e representava muito mais uma corporação cooperativa do que sindical, na visão do referido autor. Seguiu-se o Decreto nº 1.637, de 5 de janeiro de 1907, com a mesma origem e natureza, contudo este já buscava contemplar o interesse de todos os trabalhadores, inclusive dos profissionais liberais, mas sem alterar o âmbito de representação das duas classes antagônicas, às quais atribuía, quando constituídas: [...] “com o espírito de harmonia, como sejam os ligados por conselhos permanentes de conciliação e arbitragem, destinadas a dirimir as divergências e contestações entre o capital e o trabalho”, feição de “representantes legais da classe integral dos homens do trabalho”, podendo como tais, “ser consultados em todos os assuntos da profissão”. (Arouca, Legislação sindical. Passado, presente e futuro).
Disso é possível se extrair as bases filosóficas em que as primeiras leis sindicais foram instituídas no Brasil, originadas, portanto, de um ambiente social dualista e politicamente bastante confuso. Com o calor das efervescências culturais e políticas iniciadas em 1922, da Semana de Arte Moderna, da fundação do Partido Comunista, entre outros, vai-se verificar um salto qualitativo na organização sindical brasileira. De fato, as agitações sociais, as lutas e jornadas de greves agora desencadeadas denotavam um outro aspecto de organização, em que o sentimento de pertencimento de classe dava o tom. Com esta perspectiva classista e objetiva agora os trabalhadores pressionavam patrões e o governo no sentido do reconhecimento de direitos e de melhores condições de vida. E assim, em 1916, é aprovado o Código Civil; em 1920, é criada uma Comissão Especial de Legislação Social, com a função de analisar toda e qualquer iniciativa legislativa na área trabalhista; em 1923, são instituídas as Caixas de Aposentadorias e Pensões, sendo que a lei que as criou é considerada a primeira lei de previdência social no Brasil, também conhecida como Lei Elói Chaves. Ainda em 1923, é criado o Conselho Nacional do Trabalho; entre os anos 1925 e 1927, são votadas diversas leis de proteção social, entre as quais, as que regulamentam as férias e o trabalho de menores; em 1931, é instituída a Lei Sindical (Decreto 19.770), que cria os pilares do sindicalismo oficial no Brasil; em 1939, é criada a Justiça do Trabalho e assinado o Decreto-lei nº 1.402, que disciplina o funcionamento dos sindicatos (enquadramento sindical), como órgãos 86
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de colaboração com o Estado; em 1940, são regulamentados os direitos trabalhistas dos trabalhadores urbanos: férias remuneradas, jornada de trabalho de 8 horas, salário mínimo, entre outros. Em 1º de maio de 1943, é assinado o Decreto-lei nº 5.452, regulamentando a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Desse período resulta, de acordo com as pesquisas realizadas, um acúmulo sociológico instigante e, sob o ponto de vista de uma efetiva autonomia, contraditório: a difusão ideológica de organizações sociocorporativas por meio das quais, numa ponta se reivindica autonomia e liberdade de ação, e na outra se aceita, como se num conluio, que seja delegada ao Estado a prerrogativa e os limites dessa liberdade, num comportamento que, conforme Boito Júnior (1991), será o elemento definitivo de atrelamento dos sindicatos ao Estado. Vale a pena refletir, a esse respeito, sobre as lições oferecidas pelo filósofo italiano Antônio Gramsci, descritas por Carlos Nelson Coutinho (1999), quando trata do Partido como “intelectual orgânico”: [...] Lênin, em O que fazer? menciona os elementos básicos universais, da sua concepção de partido. Entre tais elementos destaca-se sua compreensão de que ‘a tarefa básica do Partido Operário, do Partido da Revolução Socialista, é a de contribuir para superar na classe operária uma consciência puramente tradeunista, sindicalista’; isso implica fornecer os elementos teóricos e organizativos para que essa consciência possa se elevar ao nível de consciência de classe [...] (Gramsci – Um estudo sobre seu pensamento político. p.169.)
É, portanto, a partir desse longo ensaio corporativo-ideológico, desse recorte de acúmulos socioreivindicatórios, dessa profusão libertária-coletivista, de bandeiras e movimentos difusos e, às vezes, ambivalentes, gerados e substanciados na emblemática Era Vargas, que se vão definir as bases sociológicas – nacionalistas-conservadoras, socialistas-reformadoras, “revolucionárias” etc. – do protagonismo sindical e do associacionismo de classe no Brasil. A propósito, a recorrência às origens da formação sindical no Brasil, pode vir a explicar com elementos mais conclusivos a atual fase do nosso sindicalismo que, em mais de cem anos de história, parece encontrar-se estacionado, entre as conquistas que, de fato, alcançou, as inegáveis contribuições que com ousadia ofereceu para a perspectiva de consolidação da democracia, e o deslumbramento em que se encontra na fase atual, em sua grande maioria, por considerar-se parte importante do poder do Estado. A chegada ao poder de um ex-líder operário, oriundo de uma cultura político-partidária ainda pouco atinente à democracia, – democracia política, econômica e como valor
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universal – como a consideramos e por ela lutamos, para operarmos as transformações sociais ainda pendentes, ao invés de se consubstan ciar nesta oportunidade de mudanças duradouras, transparecem a todo momento traços obtusos de um corporativismo que avança oportunisticamente, a despeito de um país que ainda disputa as primeiras colocações no ranking mundial das desigualdades sociais. Participação dos sindicatos nas lutas contra a ditadura militar de 1964 e pela Constituinte de 1987/1988 Desde as primeiras associações profissionais até se consolidarem como instâncias de representação de classe legitimamente, os sindicatos, por meio de suas lideranças, deram incontestáveis contribuições, tanto para o reconhecimento e institucionalização dos direitos trabalhistas, cujo marco temporal e legal é o ano de 1943 (Lei nº 5.452, de 1º de maio), quanto para as lutas nacionalistas e populares dos anos 50 e início dos anos 60. Impossível não reconhecer que, mesmo com a maioria de seus dirigentes cassados e exilados, as entidades sindicais, enquanto estrutura, mantiveram-se de pé no último período ditatorial, como que amealhando a melhor oportunidade para retomar suas lutas. Conforme ampla pesquisa realizada para a consecução do trabalho de monografia exigido pelo Cefor – Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento da Câmara dos Deputados, entre os anos de 2006 e 2007, pude constatar que, nada obstante toda a aspereza do regime militar iniciado em 1964, não foram poucas as tentativas de reação empreendidas por algumas lideranças sindicais, ainda antes dos enfrentamentos sindicais ocorridos no ABC paulista em 1978. De acordo com Paulo Aguena, em 1968, eclodiram duas grandes greves, a dos trabalhadores da Siderúrgica Belgo Mineira, em Contagem (MG), movimento que teria se espalhado por outras fábricas, como a da Manesman, SBE e Acesita, e a outra foi a greve de ocupação da Cobrasma Autopeças, em Osasco (SP), que logo expandiu-se para outras regiões do estado, também na mesma época. Segundo Márcio Pochmann, após o êxito do período nacionalista e dos anos 50, inicia-se a segunda fase do sindicalismo brasileiro, que vai perdurar até a segunda metade da década de 1970, momento em que o modelo corporativista ou de verniz trabalhista e comunista será posto à prova e, logo a seguir sucumbirá, diante das clivagens estratégicas praticadas pelos articuladores e defensores intelectuais de um novo partido político de trabalhadores e, por conseguinte, de um “novo sindicalismo” O pós-autoritarismo e populismo da Era Var88
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gas foi seguido pela consolidação nacionalista dos anos 50, momento da construção da base da estrutura nacional-desenvolvimentista e industrial, que se iniciara com a criação, em 1941, das grandes fábricas e companhias nacionais (FNM, FNV e CSN). A partir desse momento, o país evoluiria de um modelo concentrador agrário e passaria, de fato, a edificar as bases econômicas e industriais urbanas e capitalistas. Os trabalhadores tinham como guia político o padrão corporativista anteriormente consolidado. As correntes sindicais em ação no início dos anos 60 eram, portanto, herdeiras do trabalhismo-corporativista e populista estatal incentivado por Vargas ou da concepção também autoritária, embora pretensamente revolucionária, dos comunistas que, somente a partir de março de 1958, principiaram uma crítica ao modelo centralizado que defendiam, mas ainda demasiado viciados nas práticas sindicais instrumentalizantes e cupulistas. É, pois, possível, que dessas duas vertentes ideológicas tenha vingado o que restou para fazer o renascimento sindical de fins dos anos 70 e início dos anos 80. O trabalho a partir do qual extraímos os elementos epistemológicos centrais para o presente artigo, “Os movimentos sindicais e corporativos como atores da democracia”, foi concebido especialmente sob o olhar empírico, reflexivo e autocrítico do autor, que buscou recuperar as substâncias históricas do período de sua militância no movimento sindical, ressaltando suas experiências no Sindicato dos Bancários de Brasília, desde o início dos anos 80 até sua participação como dirigente eleito na referida entidade entre os anos de 1986 a 1991. Com amparo em amplo referencial teórico, a pesquisa percorreu os instantes primeiros, ainda em fins do século XIX e início do século XX, das lutas diversas empreendidas pelos trabalhadores brasileiros por reconhecimento de direitos e institucionalização de políticas (leis e normas) que lhes assegurassem uma jornada mais humana de trabalho e condições de vida mais dignas. Entre os atores mais representativos identificados pelo estudo na formação dos sindicatos, sobressaem-se os anarquistas de origem italiana, principalmente, e a seguir o Partido Comunista Brasileiro (PCB), fundado em 1922, instituição que teve sua vida legal ao longo de cerca de 70 anos de existência, por várias vezes interrompida, quando as diversas ditaduras cassavam seus líderes e o mandavam para a clandestinidade. Ao ressaltar a importância da contribuição dos comunistas no curso de todo o período estudado, o autor pretende e, a rigor, estabelece, um contraponto, entre as práticas sindicais vigentes até 1964, momento em que esta corrente política ao lado dos 89
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trabalhistas era quase hegemônica no domínio das cúpulas sindicais, e o pretenso “novo sindicalismo”, modelo orientado por intelectuais não-comunistas e pela Igreja Católica, através das CEBs, com o objetivo, na visão do autor, de construção de uma outra hegemonia na direção do sindicalismo brasileiro. O saldo das entrevistas realizadas bem como o conteúdo de todo o referencial teórico percorrido, permitiu a este autor a construção de algumas premissas, e hipóteses, entre as quais: a) é questionada a tese defendida por alguns intelectuais do chamado “novo sindicalismo”, em que a despeito de reconhecer novas atitudes e estratégias de ação sindical, umas até então inéditas, como as greves feitas de dentro das fábricas, por exemplo, não considera, com efeito, essas posturas algo que justifique o termo pretendido. Refuta o autor que o que se desejou, e os fatos atuais podem corroborar, foi alcançar uma nova hegemonia sindical, notadamente de visão não-comunista; b) no mesmo capítulo insere-se a hipótese de que teria havido certa condescendência do regime autoritário, “mesmo antes de seus instantes finais” com o renascimento das organizações sindicais e com a postura de seus novos líderes, hipótese que se reforça em depoimentos de personalidades como o ex-ministro do Trabalho Murilo Macêdo, e de ex-dirigentes sindicais da época; c) no capítulo, que discorre sobre o papel do Sindicato dos Bancários de Brasília no governo da Nova República, o autor sugere que o viés antidemocrático por ele comentado e, de certo modo, autocriticado, pode ter raízes no surgimento do sindicalismo de Estado e corporativo dos anos 1930 e 1940; d) no enunciado do capítulo Desafios da Globalização, é formulada a hipótese de haver “um certo estacionamento das reivindicações políticas e de antigas bandeiras sociais, por parte do sindicalismo mais combativo”, por conta da adesão em grande número de dirigentes sindicais do Partido dos Trabalhadores ao atual governo, ocupando e desfrutando de altos cargos na máquina estatal. Defende a tese de que os sindicatos trabalhistas, de fato, surgiram no Brasil do mais veemente conflito de interesses e, por isso mesmo, foram, nas duas primeiras décadas de sua estruturação, instrumentos de luta de classes, e atuavam com plena liberdade e autonomia. É fato, e isso o trabalho reconhece, o leque de contribuições ofertadas pelos atores em comento ao longo desses cerca de cem anos de história sindical à construção da democracia, além de participar direta e indiretamente para normatizar um código de direitos materiais do trabalho, que já ultrapassa os sessenta e cinco anos de proteção trabalhista.
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Seguindo a onda nacional pelo restabelecimento da democracia no início dos anos 80, a imensa maioria dos dirigentes sindicais, especialmente de entidades de classe média ou de médio-assalariados, participou ativamente da campanha das “Diretas Já”, em todo o país. Como grupo de pressão legítimo, os sindicatos em meio de sua consolidação e das lutas economicistas que eram obrigados a travar no grave período inflacionário vivido entre o fim da ditadura militar até o início dos anos 90, agiram firme para fazer valer os direitos antes conquistados pelos trabalhadores na Constituinte de 1987/1988, ainda que os representantes no parlamento do chamado “novo sindicalismo” – bancada do Partido dos Trabalhadores –, tenham estranhamente se negado a assinar a nova Constituição. O trabalho, por fim, enumera, além das hipóteses formuladas e neste artigo comentadas, as nuances vividas pelo sindicalismo brasileiro ante a chamada “crise de reestruturação produtiva mundial”. O autor considera que o sindicalismo brasileiro vai se deparar com uma crise conjuntural sem precedentes em sua história. Na verdade, a quebra de paradigmas verificada no mundo do trabalho a partir do momento em que muitos historiadores chamam de revolução tecnológica, ou revolução tecnocientífica, da introdução nos meios de produção e nos demais setores da economia de tecnologias de ponta, da informatização, do uso da robótica etc. promoveu mudanças repentinas e espetaculares, nas relações de trabalho, causando desemprego em massa e colocando em risco a sobrevivência de milhares e milhares de trabalhadores, cuja formação era no geral inadequada e insuficiente para enfrentar os desafios desses novos tempos. Por sua vez, muitas lideranças sindicais ficaram sem as suas antigas referências de atuação e de visão de mundo, uma vez que, em sua imensa maioria, eram oriundos de partidos de esquerda ou formados numa concepção político-ideológica agora defasada em vista das bruscas transformações políticas de fins do século XX, como o esfacelamento da ex-União Soviética, a desintegração e as lutas nacionalistas nos países até então nominados como “do socialismo real”, fatos ocorridos, sobretudo, após a queda do muro de Berlim, em novembro de 1989. Enquanto nos países da União Européia e nos Estados Unidos os sindicatos buscavam alternativas para enfrentar a conjuntura adversa realizando fusões, no Brasil, por exemplo, os representantes dos trabalhadores encontravam-se atônitos diante da recessão econômica e da necessidade de defesa do emprego de seus representados. 91
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Desafios, resistência e necessidade de se reinventarem As novas estratégias empresariais de competitividade extremada, de enxugamento do quadro de pessoal, da chamada reestruturação, levaram os sindicatos em geral para a defensiva. Na verdade, foram forçados a uma quase inatividade política, o que se refletiu em perdas consideráveis no nível de sindicalização. Clássicas e antigas bandeiras de luta, portanto, foram colocadas de lado pelos sindicatos, ante à inércia imposta pela nova conjuntura econômica. Enquanto isso, as principais correntes sindicais não se dispõem a transigir para uma renovação de valores e para uma nova estratégia de ação coletiva. Ao contrário, persistem numa prática política viciada e a cada dia mais dividida, devido o engalfinhamento político histórico reinante no interior do movimento, em função das rotineiras disputas pela hegemonia das máquinas sindicais. E diante desse cenário, os trabalhadores foram ficando mais e mais distantes e descrentes de suas entidades de classe, o que resultou em enorme perda de representatividade e, muitas vezes, até no questionamento da sua necessidade. Os militantes e sindicalistas, de modo geral, se utilizaram – e assim ainda se comportam muitos deles – das máquinas sindicais como mero espaço de incremento de carreiras políticas, em detrimento de uma exigida reflexão e oxigenação nos métodos de ação. Desse modo, utilizam o dinheiro do imposto sindical para fins outros, (patrocínio de campanhas políticas e auto-promoção de alguns de seus dirigentes), sem o menor pudor, haja vista que não são fiscalizados pelo poder público, como deveriam. Do segundo semestre de 2007 para cá, foram fundadas mais 3 ou 4 novas centrais sindicais, na perspectiva de embolsarem uma fatia dos 10 por cento do imposto sindical que agora têm direito, e igualmente livres de qualquer fiscalização. Eis o quadro em que se encontram os herdeiros de uma tradição de atores sociais que, num passado recente, muito contribuiu não apenas nas suas lutas legítimas corporativas, mas também para o aprofundamento e a consolidação da democracia política em nosso país. Foi, e pode-se afirmar que ainda é, inquestionável a importância dos sindicatos de trabalhadores no Brasil, com o poder de pressão que ainda detêm, para agirem junto aos governos e ao Congresso Nacional. Isso se voltarem às bases e recuperarem a unidade e legitimidade de antes. No contexto atual, de desemprego, subemprego, precarização de mão-de-obra formal, informalidade, terceirização e
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exigência cada vez maior de melhor qualificação dos empregados, parece exigir-se uma postura inovadora e sobretudo democratizante das lideranças sindicais e de suas entidades no Brasil. Recuperar o elo perdido da solidariedade de classe, reconstruir um espaço mínimo de ações unitárias entre as diversas facções e centrais, e lutar notadamente pela redução da jornada de trabalho, para geração de novas vagas e para permitir uma vida mais digna aos trabalhadores são talvez algumas das bandeiras através das quais possam ser retomadas frentes amplas de mobilização, e, nesse sentido, reconquistar a confiança e a legitimidade. Por outro lado, as recentes e obtusas ações do conjunto de dirigentes e centrais sindicais, das pressões pouco legitimadas, exercidas junto ao Congresso Nacional e ao governo para manterem o imposto sindical e livrarem-se da fiscalização desses recursos públicos, são mostras arraigadas e estranhamente alienadas de um passado de histórias tão contributivas que tiveram. Em nossa visão, as lutas de classes não acabaram, mas ao contrário, elas se sofisticaram diante do desafio capitalista e globalizante, no sentido de exigir dos representantes, dos interlocutores do mundo do trabalho, outras qualidades, com autonomia e independência políticas, além de uma profunda revisão de métodos de ação e de gestão de suas entidades. Para serem os atores e protagonistas sociais respeitados como antes o foram, as lideranças sindicais de todas as correntes precisam antes de mais nada reinventar seus procedimentos, especialmente no sentido de dar transparência da gestão do dinheiro arrecadado dos trabalhadores, do uso mais adequado das máquinas sindicais em prol de suas categorias, e da democratização da gestão sindical. Devem levar em conta a pluralidade e a diversidade de pensamentos existentes no interior de suas bases, de modo a permitir uma necessária renovação nos seus quadros dirigentes, oxigenando lideranças e militantes, para enfrentar os desafios tecnológicos e socioeconômicos impostos ao mundo do trabalho pela atualidade global.
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O controle social da administração pública brasileira Antonio Silva Magalhães Ribeiro
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pesar da intensidade e freqüência com que os escândalos de corrupção invadem o nosso cotidiano, presentes na maior parte do tempo destinado aos noticiários, as atividades de controle da administração pública no Brasil, historicamente conduzidas como uma concessão do Estado, têm se mostrado insuficientes na produção de resultados em suas ações fiscalizadoras, particularmente por razões relacionadas à sua autonomia e independência, condições indispensáveis ao bom desempenho de suas finalidades. Partindo do princípio de que, para a sociedade, o melhor controle, na perspectiva da defesa dos seus interesses, é sempre aquele que por ela é exercido, afigura-se como de extrema importância a criação de instrumentos através dos quais ela possa exercer, de modo organizado, moderno e sistemático, o controle das ações do poder público em todas as suas extensões, cobrando melhores resultados dos recursos por ela disponibilizados. Tal afirmativa, no entanto, não impede o reconhecimento das imensas dificuldades para a criação de organismos sociais autônomos, dificuldades impostas pela classe dominante brasileira ao longo de décadas de regimes políticos atrelados à cultura patrimonialista herdada dos portugueses e que conformam práticas assistencialistas e clientelistas como mecanismos de manutenção do poder político. Mesmo nos períodos em que o poder central tentava imprimir mudanças de caráter “modernizantes” na economia, a exemplo dos governos de Getúlio Vargas e da ditadura militar, esses já com fortes traços de uma transição para um regime burocrático autoritário, os aspectos patrimonialistas jamais foram abandonados, na medida em que, na busca de vitórias eleitorais, consagravam-se as concessões aos políticos regionais, responsáveis pela manutenção de feudos tradicionais. Nessa perspectiva, a repressão a formas autênticas de organização social e outras manifestações da cidadania constituíam-se na fórmula necessária para evitar o crescimento das manifestações legí-
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O controle social da administração pública brasileira
timas da sociedade, alimentando uma cultura política marcada pelo centralismo e outras práticas responsáveis pelo atraso na conquista dos direitos mais elementares no Brasil. No decorrer da década de 70, no entanto, iniciou-se um processo de reorganização dos movimentos sociais no Brasil. Verificaram-se resistências expressas em reivindicações de natureza mais específica, inaugurando-se um novo momento nas relações Estado e sociedade, a partir de então. Entidades das mais diferentes origens foram formadas, tais como as Comunidades Eclesiais de Base ligadas à Igreja Católica, associações de bairro, de profissionais universitários e muitas outras. Todas essas organizações comungavam em um grande esforço pela redemocratização e davam passos largos no início dessa caminhada com vistas à conquista da cidadania em nosso país, embora ainda com as grandes limitações características do regime político em vigor. Dessa forma, só a partir de 1985, com o fim dos governos militares, se intensificou um processo dinâmico e complexo de construção da cidadania, consolidando-se os movimentos sociais já existentes e surgindo numerosos outros, contribuindo para elevar o nível de politização de seus atores. Demandas reprimidas durante anos foram expressas e manifestaram-se, pressionando o poder público. Verificava-se assim uma maior participação popular e, ainda que embrionária, uma certa noção de controle social da gestão governamental. Como corolário desse processo travaram-se efervescentes discussões na sociedade brasileira em torno dos postulados de uma nova Constituição, culminando com a Carta Magna de 1988 que, em muito, avançou no que diz respeito aos direitos individuais e coletivos. A noção de cidadania foi fortalecida, como se observa nos incisos IV, XVI e XVII do artigo 5º que asseguram o direito à livre manifestação do pensamento, à livre reunião e plena liberdade de associação, respectivamente, bem como no inciso LXXIII do mesmo artigo, que dispõe sobre ação popular: Qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência.
Vale destacar, ainda, a inserção, na Carta de 1988, de dispositivos constitucionais que viabilizam a criação de diversos conselhos, colegiados e outras instâncias de participação popular, o que tem resultado na multiplicação das demandas da sociedade civil e inten95
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sificado sua relação com o aparelho de Estado. Além dessas possibilidades diretas de participação popular, a própria descentralização administrativa e financeira, tornada possível pela atual Constituição, trouxe uma maior visibilidade de vários programas de governo. Reforçou-se a idéia do estabelecimento do controle – alguns idealizados e controlados pelo governo, tais como os conselhos municipais de saúde e de educação, por exemplo — nos próprios locais onde as ações são executadas. Embora essas iniciativas oficiais tenham representado um passo importante para a formação de uma maior consciência de controle social, temos a convicção de que este é mais eficaz quando concebido e organizado pelas próprias comunidades, na medida em que reforçam o sentimento de seus direitos de participação mais permanente na fiscalização dos atos governamentais e ficam menos sujeitos às manipulações, rompendo com as práticas populistas e clientelistas. Para que isso ocorra, afirma Jacobi (2000: 31), torna-se necessário o surgimento, na sociedade civil, de grupos e movimentos sociais que viabilizem uma participação ativa e representativa desvinculada de qualquer dependência financeira e administrativa do Estado. O avanço da cidadania em geral e a possibilidade de a sociedade civil formular políticas públicas e controlar sua implementação, em particular, estão diretamente relacionados à sua capacidade de elaborar novas formas democráticas e autônomas de organização coletiva. Nos últimos 23 anos de regime democrático, é por demais perceptível o avanço da sociedade quanto à criação dessas novas formas de participação e organização popular, o que não significa, porém, que esse processo tenha ultrapassado de fato sua fase de aprendizado. Desafiam-se os sucessivos obstáculos que se colocam ao seu efetivo crescimento qualitativo, obstáculos que não somente se originam das resistentes práticas inerentes ao patrimonialismo político, como do sentimento corporativo e utilitarista presentes também nas organizações comunitárias, como podemos testemunhar nas práticas de orçamento participativo em Salvador, nos anos 1993/1994. É, também, o que observa Genro (1997), referindo pesquisas realizadas no Rio Grande do Sul, que deram conta de uma forte disputa por recursos e práticas autoritárias e clientelistas por parte dos próprios líderes comunitários, o que denota uma real necessidade de um grande esforço voltado para uma educação direcionada às práticas de participação social. Nesse contexto, Jacobi (2000) aponta que a construção da cidadania no Brasil passa pela substituição das atuais práticas sociais, 96
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fundamentadas na dominação patrimonialista-clientelista, por outras formas de relação com base na participação. Ademais, impõemse novas formas de organização do Estado, particularmente no que diz respeito à sua capacidade de incentivar práticas pluralistas e integradoras. As possibilidades de controle social estão diretamente subordinadas, sem prejuízo de outras condições institucionais e políticas já mencionadas, ao conhecimento, por parte da comunidade, dos atos de governo. Ou seja, no caso do governo brasileiro, este, cumprindo o princípio de publicidade de seus atos previsto no artigo 37 da Constituição, deveria divulgar ao máximo possível todas as matérias de interesse público. Desse modo, cumpriria seu dever de informar, atendendo ao direito da sociedade de ser informada. É nesse quadro que, já há alguns anos, a literatura das finanças públicas vem se detendo sobre o significado do termo accountability, e qual seria sua tradução adequada na língua portuguesa – afinando-se, na sua preocupação com esse conceito, com as práticas de numerosos movimentos sociais e as formulações teóricas de estudiosos da nossa realidade social. Apesar de outras variantes menos convincentes, resulta como de ampla aceitação, principalmente para os especialistas em controle da administração pública, a exemplo do consultor internacional de gestão financeira e auditoria Malaxe‑Chevarria (1995), o seguinte conceito: “obrigação legal e ética que tem o governante de informar ao governado como se utiliza o dinheiro e outros recursos que lhe foram entregues pelo povo para empregá-los em benefício da sociedade e não em proveito do governante”. Para esse consultor, fica claro que o significado de accountability está relacionado à prestação de contas, por parte do governo, dos seus atos, devendo, para atingir os objetivos a que se propõe, proporcionar informações fidedignas e claras a respeito dos seus atos, por serem essenciais não apenas para o conhecimento dos cidadãos, em geral, mas pela importância que têm para o planejamento, coordenação e gestão governamental, bem como para organismos multilaterais de financiamentos internacionais e outras agências de cooperação econômica que necessitam de uma “radiografia econômico-financeira” dos governos com os quais operam, de modo a orientar suas decisões. Em conseqüência, esse processo de prestação de contas deve ser de grande abrangência, envolvendo informações que vão desde o déficit comercial de sua dívida pública, da situação da previdência social, aos verdadeiros custos da educação e saúde, das obras e serviços, e 97
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ainda dos cálculos que impuseram novo reajuste dos combustíveis, dentre outras. No caso brasileiro, a divulgação de dados relacionados às contas públicas estão quase que limitados às exigências contidas na Lei de Responsabilidade Fiscal, que, evidentemente, são insuficientes para se ter uma radiografia das decisões governamentais. O fato é que a accountability ainda é uma prática reduzida no Brasil. É também reconhecido que a sua existência e o grau de intensidade com que se apresenta em determinadas sociedades são conseqüência direta do nível de cultura política de um povo, do estágio de desenvolvimento de suas instituições, de sua estrutura econômica e do nível de autonomia das organizações sociais. Para Campos (1990: 36), “enquanto nas democracias mais amadurecidas a textura política é caracterizada por uma bem sedimentada rede de associações, nos países menos desenvolvidos tais estruturas denotam um alto grau de pobreza política”. Prosseguindo em sua argumentação, a autora acentua que a debilidade da fé democrática e a submissão dos brasileiros constituem-se em traço cultural que contribui para enfraquecê-la. Justifica ainda os níveis mínimos de participação popular, sobretudo a distância entre Estado e sociedade civil, como fruto de uma história política alternada entre autoritarismo e populismo. Efetivamente, as experiências de accountability ocorrem em países de elevados estágios de desenvolvimento político e econômico, com democracias consolidadas, como nos Estados Unidos, por exemplo. Nesse país, a garantia de transparência no serviço público é fruto do esforço de uma sociedade organizada, cuja participação popular se manifesta desde a formulação de políticas públicas, na reivindicação de direitos, à avaliação de desempenho das ações governamentais e à própria forma de organização do trabalho de determinados programas governamentais executados em diversas localidades norteamericanas (OSBORNE, 1995). Mas também no Brasil tais experiências vêm-se dando e a imprensa vem, para isso, de fato exercendo importante papel. Ademais, no terreno da sociedade civil avolumam-se as organizações não-governamentais voltadas para a cidadania. conformando um expressivo crescimento do nível de organização popular no Brasil. Apesar desses avanços sociais e ainda que se possa afirmar que, por maiores que sejam as limitações, o controle social já é, de algum modo, exercido no Brasil, é elementar reconhecer que ainda estamos distantes de um maior amadurecimento do sentimento de cidadania
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O controle social da administração pública brasileira
que possa permitir o exercício de maiores demandas relacionadas à transparência dos atos do governo. As falhas apontadas no que concerne à eficácia dos controles da administração pública brasileira, diante da agressividade com que se desenvolve a corrupção no Brasil, indicam a necessidade de implementação de medidas mais decisivas com vistas à reversão desse quadro ainda amplamente desfavorável. Assim, enfrentar a corrupção, no nosso entendimento, exige uma combinação de ações que abrangem desde reformas políticas e aperfeiçoamento dos instrumentos de controle oficiais até à implementação de medidas visando ampliar o acesso à educação e aos meios de comunicação – vale dizer, às novas tecnologias – e fomentar uma política salarial digna para os servidores públicos. Mas, sobretudo, exigem a promoção e o incentivo ao exercício do controle pela sociedade. Nesse sentido, e sem pretender esgotar a temática, entendemos ser necessário reiterar um dos principais aspectos abordados neste artigo, qual seja o do aperfeiçoamento dos mecanismos de participação popular. A implementação de medidas administrativas não garante, por si só, a eficácia total do controle da gestão pública. Sendo os recursos de origem pública, nada mais natural que a sociedade, através de suas organizações, se constitua em parte integrante do controle público. Urge, pois, a reformulação, aperfeiçoamento e modernização do atual modelo de controle da coisa pública em nosso país, sobretudo pela adoção de mecanismos de participação popular, aspiração que se manifesta com mais vigor com o crescente desenvolvimento do sentimento democrático entre os brasileiros. Com um esforço coletivo e nacional, acreditamos que possam vir a ser dados passos significativos para a superação dessa trajetória milenar de descaso, desperdícios, fraudes e vergonha.
Referências CAMPOS, Anna Maria. Accountability: quando poderemos traduzi-la para o português? Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, fev abr, 1990. CARVALHO, Getulio. Da Contravenção à Cleptocracia. In: LEITE, Celso Barroso (Org.). Sociologia da corrupção. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987. 176 p., p. 61- 82. CARVALHO, José Murilo de. República e ética, uma questão centenária. In: BOSCHI, Renato, R. (Org.). Cooperativismo e desigualdade: a construção do espaço público no Brasil. Rio de Janeiro: Rio Fundo/UPERJ, 1991.
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FLEISCHER, David. Além de Collorgate: perspectivas de consolidação democrática no Brasil via reformas políticas. In: ROSENN, Keith S.; DOWNES, Richard (Org.). Corrupção e reforma política no Brasil: o impacto do impeachment de Collor. Rio de Janeiro: FGV, 2000. 240 p., p. 81-110. GENRO, Tasso; SOUZA, Ubiratan de. Orçamento participativo. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1997. JACOBI, Pedro Roberto. Políticas sociais e ampliação da cidadania. Rio de Janeiro: FGV, 2000, 156 p., p. 31. LOPEZ, Jaime. O papel das novas tecnologias no combate à corrupção. In: REUNIÃO CENTRO-AMERICANA sobre anticorrupção. 6-7 abr. 2000, São José, Costa Rica. MALAXE-CHEVERRIA, Angel González. Os objetivos da informação financeira proveniente do governo nacional. 2º CONGRESSO INTERNACIONAL DE AUDITORIA INTEGRADA, 1995, Buenos Aires. OSBORNE, David; GAEBLER, Ted. Reinventando o governo: como o espírito empreendedor está transformando o setor público. Brasília: MH Comunicação, 1995. 436 p. RIBEIRO, Renato Jorge Brown. O enfoque do controle da administração pública no Brasil deve ser a dicotomia entre avaliação de desempenho ou controle da legalidade? 24º encontro da ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO, set. 2000, Florianópolis. Cd-Room, 2000. SCHLOSS, Miguel. Transparência Internacional defende combate preventivo à corrupção. Entrevista 12 mar. 2001. Disponível em http://www.sfc. fazenda.gov.br>. Acesso em: 16 jul. 2001. SILVA, Daniel Nascimento. Autoritarismo e Corrupção. s.d. Disponível em <http://www.epa.adm.br> Acesso em: 22 jul. 2001.
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O desenvolvimento local na era da globalização Agnaldo de Sousa Barbosa
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or mais que pareça paradoxal, a questão do desenvolvimento local tem assumido papel cada vez mais importante na pauta econômica dos governos de todo o planeta, tanto maior o aprofundamento dos efeitos da globalização econômica. E isso não se dá por acaso. O processo de relocalização industrial que tomou impulso com a reestruturação produtiva do capitalismo nas duas últimas décadas levou gestores públicos de cidades e regiões dos mais diversos lugares do mundo a se comprometer com maior determinação na promoção do desenvolvimento local. Deste modo, aqueles que assistiram à debandada de empresas de seu território empenharam-se em revigorar a economia local em face do choque causado pela saída de capitais; de outra parte, tantos outros se engajaram no esforço para tornar seu território atrativo aos investimentos em constante migração em busca de menor custo de produção e mão-de-obra qualificada – ou seja, maior competitividade. Em entrevista a um importante veículo da área econômica, a diretora de governança pública e desenvolvimento social da OCDE, Lamia Kamal-Chaoui, explica essa transformação: “Há uma mudança importante na competição mundial por investimentos. São as cidades, e não os países, que vêm liderando esse processo”1.
Nesse contexto, não é de se estranhar que nos últimos tempos a temática da eficiência econômica das aglomerações industriais, dos arranjos produtivos locais, tenha ganhado especial relevância tanto na ação dos governos, quanto na produção intelectual. Afinal, conforme analisa Christian Ketels, do Instituto de Estratégia e Competitividade da Universidade Harvard, os melhores exemplos de cidades que se destacaram na nova ordem globalizada são daquelas que souberam aproveitar sua vocação econômica; na visão desse pesquisador, a melhor estratégia para a governança do desenvolvimento 1 “As capitais da excelência”. In: Portal EXAME. Disponível em: http://portalexame. abril.com.br/revista/exame/edicoes/0893/negocios/m0129084.html (Acesso em 15.10.2007).
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local “é saber o que é que uma cidade ou região tem que nenhum outro lugar poderia reproduzir, e reforçar isso”2. A identificação – e o fortalecimento – da vocação das cidades passa, assim, a ser encarada como fator-chave para o seu desenvolvimento e, por conseguinte, para a competitividade de sua estrutura produtiva. A recente projeção econômica de inúmeras cidades ao redor do mundo é exemplar neste sentido, como ilustram os casos de Bangalore (Índia), Austin (EUA), Ulsan (Coréia do Sul) e São José dos Campos (Brasil), entre tantos outros. Os argumentos de Kamal-Chaoui e Ketels são corroborados pelo economista Gilson Schwartz (2006), para quem “nos últimos anos há evidências crescentes de que o foco prioritário deveria ser o desenvolvimento local – municipal ou mais restrito”. Segundo Schwartz “discutem-se modelos nacionais, porém, a ênfase hoje é nos arranjos produtivos locais”. Esta seria a marca distintiva do novo estilo de desenvolvimento da era da globalização; estilo este que exige não apenas uma maior articulação entre agente públicos e privados, mas níveis cognitivos que vão além da mera dimensão econômica: aspectos históricos, antropológicos e da psicologia social são igualmente importantes para a apreensão dos elementos da cultura local imprescindíveis à promoção do desenvolvimento sob bases sustentáveis. Do ponto de vista teórico, a questão do desempenho competitivo de arranjos produtivos localmente estruturados e do papel a ser desempenhado por agentes públicos e privados tem chamado a atenção de representantes do pensamento econômico e social desde Principles of Economics, trabalho pioneiro de Alfred Marshal escrito em fins do século XIX (1982; primeira edição: 1890). Ao analisar os distritos industriais ingleses, Marshal constatou os efeitos positivos resultantes da aglomeração territorial de empresas do mesmo ramo, representando ganhos de escala que são externos às firmas (externalidades positivas). Para o economista inglês, as vantagens de se ter em um espaço geográfico comum empresas do mesmo ramo ou similares se materializariam, entre os fatores mais importantes, na presença próxima de mão-de-obra especializada, de fornecedores de bens, serviços e insumos característicos da cadeia produtiva em foco, além do transbordamento de conhecimento e tecnologia. Durante todo o século XX esse assunto esteve presente – direta ou indiretamente – em trabalhos de reconhecida projeção. Na obra do alemão Alfred Weber (1957; primeira edição: 1909) uma localização industrial ideal seria produto do equilíbrio do custo de transporte, 2
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O desenvolvimento local na era da globalização
da mão-de-obra e de um fator local estimulante para aglomeração de empresas do mesmo setor. Já para o francês François Perroux (1977; primeira edição: 1955), criador da teoria dos “pólos de crescimento”, essa localização seria fruto das relações que se estabelecem entre as indústrias “motrizes” e aquelas que ele chama de “movidas”, consumidoras do processo de inovação. Por fim, Albert Hirschman (1961; primeira edição: 1958) seria o responsável por uma concepção claramente intervencionista que produziria círculos virtuosos de entrelaçamento, superando uma visão espontânea e naturalística do desenvolvimento econômico. Mas foi sobretudo nas duas últimas décadas que a temática começou a despertar interesse especial entre autores dos mais diferentes matizes, associado quase sempre a reflexões acerca das possibilidades de desenvolvimento local e regional em um cenário mundial globalizado. Entre economistas e geógrafos econômicos, estudos como os de Paul Krugman, Michael Porter, Hubert Schmitz e Allen Scott deram novo impulso à compreensão do potencial competitivo do conjunto de empresas que compõem arranjos produtivos localmente estruturados, especialmente no que diz respeito ao virtual desempenho de tais empreendimentos diante das transformações do universo produtivo decorrentes da globalização. De outra parte, entre os cientistas sociais, ainda que muitos não abordem diretamente a questão dos arranjos produtivos locais, a contribuição ao tema se deu pela emergência de análises que enfatizam o papel fundamental do associativismo, da constituição de redes sociais, enfim, da formação de capital social em âmbito local, para o sucesso econômico das empresas em aglomerações industriais. Trabalhos como os de Robert Putnam e Francis Fukuyama, entre outros, nos dão uma clara visão desta contribuição. A interpretação de Paul Krugman, que traz o problema da localização geográfica da produção outra vez para o centro das atenções da ciência econômica, é ponto de referência essencial dessa renovada preocupação com os arranjos produtivos localmente estruturados. Consoante aos pressupostos de uma nova geografia econômica (NGE), Krugman (1991) sustenta que um dos fatores cruciais para explicar as vantagens competitivas das empresas seria a sua capacidade de se apropriar de ganhos originados da aglomeração dos produtores, deslocando, assim, o foco da análise dos determinantes do comércio internacional para os níveis local e regional. A presença de economias externas locais se configura, para Krugman, como elemento decisivo a reforçar a capacidade de competição em determinado território produtivo, pois desencadeia um círculo virtuoso que 103
V. O Social e o Político
intensifica os retornos crescentes de escala. Tais externalidades são, porém, na visão de Krugman, incidentais, o que significa que resta pouco ou nenhum espaço para a gestão pública como forma de otimizar a eficiência das aglomerações. Na análise de Michael Porter também há pouco espaço para a atuação dos agentes públicos, que se restringiria simplesmente à provisão de recursos educacionais e de infra-estrutura física e à atuação legisladora. Porter (1990) enfatiza a capacidade do arranjo produtivo em atrair indústrias correlatas e de apoio ao seu território, fomentando as relações de aprendizagem e de aperfeiçoamento interativo, elemento-chave para o fortalecimento mútuo dos agentes econômicos e a conformação de vantagens competitivas duradouras. A abordagem de Porter vai, portanto, além da percepção das externalidades como meros componentes de caráter incidental, destacando o importante papel cumprido pela interação dos agentes privados (empresariado, sindicatos, associações, instituições de ensino e pesquisa etc.). Para autores como Allen Scott e Hubert Schmitz as economias externas locais de natureza incidental são importantes, mas não suficientes para explicar a eficiência concorrencial dos arranjos produtivos locais. Em suas análises, a atuação governamental aparece como fator essencial para a construção das vantagens competitivas das aglomerações, em conexão com a ação coletiva deliberada. Allen Scott (1996; 1998) argumenta que existe uma tendência intrínseca ao capitalismo para a organização da produção em aglomerações industriais e, neste aspecto, a ação governamental pode ser um forte instrumento de criação de vantagens competitivas locais e regionais. Scott ressalta que a formulação e aplicação de políticas públicas voltadas para a eficiência econômica do território, promovendo sobretudo estratégias que estimulem a cooperação mútua, pode ser observada ao redor de todo o mundo, como no caso dos German Länders, pautados pela colaboração público-privado, da Terceira Itália, cuja estratégia é a cooperação infra-estrutural, e as experiências de redes de comércio locais nos estados norte-americanos de Michigan, Massachussets, Califórnia e Pennsylvania, casos que, para Scott, são exemplares e podem servir de modelo para um padrão de ação política que necessita ser construído em escala global. Na ótica de Hubert Schmitz (1997), a cooperação consciente e planejada entre os agentes privados, e entre estes e os agentes do setor público, é a conjunção de forças que virtualmente se traduz na “eficiência coletiva” do arranjo produtivo. De acordo com este enfoque, a competitividade das empresas de uma aglomeração está 104
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associada à ampliação do fluxo de informações e ações integradas inter-empresas (indústria central e seus fornecedores, por exemplo), que pode resultar tanto na possibilidade de aprimoramento e diferenciação do produto quanto na redução dos custos de transação; segundo Schmitz, tal dinâmica não raro é secundada por políticas de apoio por parte da esfera governamental. O problema da cooperação e da circulação de informações nas relações sociais locais está no cerne da contribuição dos cientistas sociais ao estudo das aglomerações industriais. Neste aspecto, a reflexão de Robert Putnam acerca dos distritos industriais italianos é referência central para o assunto. Putnam procura demonstrar que uma maior propensão à associação e às práticas cívicas de uma determinada população leva a um desenvolvimento de longo prazo mais acelerado e, notadamente, mais duradouro; segundo Putnam, as regiões italianas que apresentam maior grau de “associativismo” e “civismo” são também aquelas nas quais surgiram o maior número de distritos industriais. A extensão do comportamento colaborativo do ambiente familiar para o da coletividade resulta, em grande medida, em redes sociais caracterizadas por um alto grau de confiança entre os agentes, fator importante para a redução dos custos de transação na economia e, por conseguinte, para o desenvolvimento, pois eleva a capacidade de competição. De acordo com este enfoque, parte da capacidade de competir das empresas se realiza extra-muros, advindo da qualidade do ambiente local, do coeficiente de capital social que caracteriza determinado território produtivo. Conforme assinala Putnam, “capital social diz respeito a características da organização social, como confiança, normas e sistemas, que contribuem para aumentar a eficiência da sociedade, facilitando ações coordenadas” (1996, 177). A análise de Francis Fukuyama é igualmente sugestiva para o problema em foco, ao interligar a questão das relações de confiança que se estabelecem entre os grupos em nível local e sua operacionalidade no conjunto das relações econômico-sociais. Conceituando capital social como um conjunto de valores ou normas informais, comuns aos membros de um grupo, que permitem a cooperação entre eles, Fukuyama observa o seguinte: “tais normas informais reduzem grandemente o que os economistas chamam de custos de transação – os custos de monitorar, contratar, julgar e forçar o cumprimento de acordos formais. Sob certas condições, o capital social também pode facilitar um grau mais elevado de inovação e adaptação ao grupo”. Fukuyama enfatiza que “se os membros do grupo passarem a esperar que os outros irão se comportar de forma 105
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confiável e honesta, eles irão confiar uns nos outros. A confiança é como um lubrificante que torna mais eficiente o funcionamento de qualquer grupo ou organização” (2000, 28). Da análise dos diversos autores aqui discutidos depreende-se que não se pode ignorar a sinergia produzida pelas variáveis locais ao pensarmos a questão do desenvolvimento; fatores gerados localmente por vezes superam medidas macroeconômicas e até mesmo as denominadas forças do mercado globalizado. Do mesmo modo, seu planejamento não prescinde do Estado, tampouco se processa tendo-o como o agente exclusivo. A interlocução permanente entre atores públicos e privados é imprescindível à governança do desenvolvimento local, por exigir a observação de critérios técnicos e econômicos, mas também sociais, culturais e ambientais, que necessitam ser equilibrados de maneira a garantir o respeito aos cidadãos e ao meio ambiente, sem, todavia, obstruir o progresso material. Com efeito, os imperativos de tal concertação demandam o aprimoramento do exercício democrático desde o nível local, de modo a não permitir que o poder decisório seja refém do jogo de interesses da política tradicional, nem uma fiel reprodução das aspirações restritas do mundo empresarial. Ciente da necessária presença do Estado na ativação de mecanismos institucionais que resultem em maior desenvolvimento local, assim como na promoção da cooperação entre os atores privados para esse mesmo fim, o governo brasileiro vem, nos últimos anos, se empenhando diretamente no estímulo ao fortalecimento econômico e ampliação do capital social de arranjos produtivos locais – atuação materializada, sobretudo, em ações do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Por meio de portaria interministerial foi instituído, em agosto de 2004, o Grupo de Trabalho Permanente para Arranjos Produtivos Locais (GTP APL), instância composta por 33 organismos governamentais e não-governamentais cuja principal atribuição é “elaborar e propor diretrizes gerais para a atuação coordenada do governo no apoio a arranjos produtivos locais em todo o território nacional”3. O esforço do governo federal em dar a esse assunto dimensão relevante na pauta de suas políticas públicas de promoção do desenvolvimento resultou na incorporação da matéria ao Plano Plurianual 2004-2007.
3 Portaria Interministerial n. 200 de 03/08/2004 (reeditada em 24/10/2005 e em 31/10/2006).
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O desenvolvimento local na era da globalização
A despeito do evidente compromisso do governo federal em privilegiar a dimensão local como a força motriz de sua política de desenvolvimento, seguindo a premissa de descentralização já recorrente em todo o mundo, não há como ignorar algumas questões fundamentais. No Brasil, os governos locais estão preparados para assumir seu papel nas tarefas de planejamento e execução de políticas de desenvolvimento? As agremiações partidárias, para além do cálculo meramente eleitoral dos diretórios locais, vêm se preocupando em capacitar recursos humanos com competência para conceber projetos de desenvolvimento que contemplem as especificidades de seu território? Os atores políticos locais estão aptos a compartilhar com os agentes privados parte do poder decisório essencial à governança da promoção do desenvolvimento? Estas indagações estão abertas à criação política do nosso tempo, e de cuja solução depende uma vigorosa política democrática do desenvolvimento. Sem atores políticos locais verdadeiramente capacitados e imbuídos da tarefa de potencializar a sinergia produtiva e cooperativa de seus territórios, além de realmente comprometidos com o envolvimento de todos os setores sociais na promoção do desenvolvimento, estaremos condenados a viver a surreal situação na qual o governo central, por meio de resoluções da macropolítica, define as orientações que determinarão o destino econômico das cidades. Poderão assim elas se tornarem competitivas?
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V. O Social e o Político
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VI. Os 120 anos da Abolição da Escravatura
Autores Mário Maestri
Historiador e professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo, RS. maestri@via-rs.net
Henrique Cunha Junior
Professor titular do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da Universidade Federal do Ceará e membro do Instituto de Pesquisa da Afro-Descendência – IPAD.
Marcelo Paixão
Economista, doutor em Sociologia pelo Iuperj, professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador do Laeser (Laboratório de Análises Econômicas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais). Endereço eletrônico: mpaixao@ie.ufrj.br Esse artigo é uma versão ligeiramente modificada de um texto escrito pelo autor e publicado pelo Instituto Ethos, em 2006, intitulado “Compromisso das Empresas com a Promoção da Igualdade Racial”.
A Abolição como revolução social Mário Maestri
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Brasil foi uma das primeiras nações americanas a instituir a escravidão e a última a aboli-la. A instituição escravista dominou 350 dos nossos mais de quinhentos anos de história. Não houve região do Brasil que se tenha mantido à margem da instituição negreira. Apesar da superação do escravismo constituir o mais significativo sucesso do nosso passado, em 13 de Maio de 2008, os 120 anos da abolição da escravatura no Brasil transcorreram quase olvidados. A Abolição já foi data magna do passado brasileiro, relembrada e festejada com destaque, como o ocorrido quando de seu centenário, em 1988. Nos últimos anos, devido às críticas radicais ao 13 de Maio por enorme parte de intelectuais e dirigentes do movimento negro brasileiro organizado, que deveriam desdobrar-se na celebração e discussão do sentido histórico real da efeméride, a Abolição tem sido objeto de radical desqualificação simbólica. O caráter cordial, transigente e pacífico do brasileiro já foi um grande mito nacional. A abolição da escravatura foi apresentada como prova dessa pretensa qualidade brasileira. No exterior, o fim da instituição motivara lutas fratricidas. No Haiti, em 1804, a destruição da ordem negreira ensejou a mais violenta guerra social conhecida pelo Novo Mundo. Em 1861-1865, a Guerra da Secessão causou mais de seiscentos mil mortos nos EUA. No Brasil, a transição ao trabalho livre teria ocorrido sem violências maiores devido a instituições nacionais sensíveis ao progresso, a lideranças políticas esclarecidas e à humanitária alma nacional. 111
VI. Os 120 anos da abolição da escravatura
Nesse cenário de concórdia geral, refulgiria a figura de Isabel, a Redentora. Apiedada com o sofrimento dos negros desprotegidos e despreocupada com a sorte do trono ao qual jamais se alçaria, precisamente devido ao ato magnânimo, teria assinado com pena de ouro o diploma que pôs fim ao cativeiro e, a seguir, à dinastia brasileira dos Bragança. Em 13 de maio de 1888, começaria a construção de sociedade fraterna e desprovida de barreiras intransponíveis de classe, separando ricos e pobres, ou de cor, afastando brancos, pardos e negros. As desigualdades existentes deveriam-se a deficiências não essenciais e sempre superáveis da civilização nacional, o que demarcaria a concórdia essencial da população brasileira. Ao menos, era o que se dizia e o que, ainda, alguns seguem dizendo. A Independência, em 1822, a Abolição, em 1888, e a República, em 1889, os acontecimentos pátrios mais excelentes, teriam se materializado sob o signo do pacifismo e transigência nacionais. A natureza magnânima do brasileiro teria suas raízes profundas entranhadas na refundação do mundo ocidental e cristão nos trópicos, a partir de instituição escravista de lídima essência patriarcal, que teria aproximado europeus, americanos e africanos em uma obra civilizacional comum, quebrantando abismos instransponíveis de credo, raça, língua, cultura e classe.
Só não via quem não queria Mesmo antes do fim da ditadura militar, em 1985, a organização e mobilização popular criaram as condições para que entidades negras combativas denunciassem as narrativas que procuraram sufocar a triste realidade objetiva subjacente à proposta apologética da democracia racial e de fraternidade social brasileira. A retórica laudatória sobre a Abolição, produto da magnanimidade imperial, sobre a escravidão patriarcal feliz e sobre o caráter democrático e fraterno nacional trincou-se inexoravelmente contra a triste realidade contemporânea desvelada. Em fins dos anos 1970, diante dos olhos dos mais míopes, desnudava-se situação em que grande parte do povo negro constituía uma das parcelas mais sofridas de população nacional fortemente carente e explorada. Desvelava-se sociedade na qual, por além das apologias beatificantes, a pele negra dificultava a conquista do trabalho e facilitava salários aviltantes e o acesso à prisão e, não raro, ao necrotério. 112
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A abolição como revolução social
Desde os anos 1960, as descrições fantasiosas sobre a democracia racial brasileira vinham sendo refutadas por estudiosos como Florestan Fernandes, Octávio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, que empreenderam detidas análises sobre a escravidão e o racismo no Brasil, sobretudo nos séculos 19 e 20. Porém, em geral, esses valiosos trabalhos negaram significado histórico à Abolição. Ainda que, por um lado, o importante movimento revisionista assinalasse em forma irrefutável a inusitada violência do escravismo no Brasil e a vigência contemporânea de suas seqüelas, no relativo às condições econômicas e civis da população afro-descendente, por outro, definia a superação da escravidão, em 13 de maio de 1888, como um verdadeiro “negócio entre os brancos”, em que os trabalhadores escravizados não teriam desempenhado papel significativo e obtido ganhos sociais e econômicos efetivos. Em fins dos anos oitenta, durante as celebrações do I Centenário da Abolição, comandadas pelo ministro de Cultura Celso Furtado, o movimento negro organizado retomou acriticamente essa tese, para melhor denunciar a situação da população afro-descendente. Quando das festividades, foi realizada a importante “Marcha conta a farsa da Abolição. 1888 – 1988. Nada mudou, vamos mudar”, na Candelária, no Rio de Janeiro. Para desqualificar o sentido histórico da Abolição, foi proposto que ela se efetuara sem indenização dos cativos; que ao libertar os trabalhadores negros o movimento abolicionista buscava essencialmente mão-de-obra barata; que a emancipação talvez piorara as condições de existência das massas negras, tese defendida por Gilberto Freyre, em Sobrados e mocambos, de 1936. Para melhor criticar as afirmações adulçoradas sobre a emancipação do povo negro em 1888, o movimento negro organizado propôs a abominação do 13 de Maio e a celebração do 20 de Novembro, data da morte de Zumbi, em 1695, o último grande chefe palmarino, como Dia Nacional da Consciência Negra no Brasil. Proposta retomada e difundida, a seguir, amplamente, pela grande mídia nacional, pela escola, sindicatos, partidos políticos populares etc. Apesar de politicamente bem intencionadas, essas leituras terminaram consolidando as interpretações do 13 de Maio dos ideólogos das classes dominantes do Brasil, do passado e do presente, que se desdobraram sempre para escamotear a Abolição como resultado do esforço dos trabalhadores escravizados aliados aos setores abolicionistas radicalizados. Paradoxalmente, o movimento negro organizado assentava assim a pedra final na construção do movimento pelo esquecimento do mais importante acontecimento histórico e social do passado brasileiro, a revolução abolicionista de 1887-8. 113
VI. Os 120 anos da abolição da escravatura
Memória da resistência O movimento negro organizado esquecia que celebrar a Abolição não significa reafirmar os mitos da instauração plena ou parcial de democracia racial no Brasil em 1888 e de Isabel como Redentora. Desconhecia que comemorar o fim da escravidão, em 13 de maio, permitia recuperar a importância daquela superação, através de, por um lado, frente política pluriclassista e, por outro, da ação exemplar dos trabalhadores escravizados, naquele que foi o primeiro movimento de massas revolucionário e democrático nacional brasileiro. Em forma alienada e imperfeita, o povo negro pobre sempre intuiu a importância fulgurante de 1888. Apenas nos últimos anos, essa consciência vem diluindo-se devido ao proselitismo anti-Abolição, verdadeira reinvenção da tradição, que tem resultado em grave perda da memória histórica objetiva pelas classes trabalhadoras, em geral, e afro-descendentes, em particular. Movimento corroborado pela adesão à leitura arbitrária e superficial, sem reflexão mais detida, de intelectuais, políticos, sindicalistas etc., progressistas. Foi o profundo impacto da Libertação, em 1888, na consciência e na vida dos cativos e, secundariamente, dos próprios libertos, que levou o povo negro trabalhador a rememorar o 13 de Maio com carinho e sentimento, por um século, batizando com a data e o nome da princesa seus clubes e associações. Uma ação que celebrava, assim, em forma não merecida, Isabel, a herdeira da dinastia maldita que, por longos séculos, representou sucessivamente os escravistas lusitanos, luso-brasileiros e brasileiros. Em inícios de 1980, Mariano Pereira dos Santos, ex-cativo centenário, que conhecera a miséria como homem livre, afirmava comovido semanas antes de morrer que, após a “Libertação”, o povo negro vivera “na glória”, em relação ao passado. Maria Benedita da Rocha, ex-cativa também centenária, recordava arrebatada o fim do cativeiro na fazenda em que trabalhara. Em 13 de maio de 1888, nas cidades e nos campos de todo o Brasil, os tambores e os atabaques ressoaram poderosos, festejando a vitória duramente perseguida, ferindo em derradeira vendeta os tímpanos dos negreiros derrotados. A visão do 13 de Maio, pelo povo negro, como concessão da Princesa Redentora, constitui cristalização alienada na memória popular, favorecida pela ação das narrativas ideológicas dominantes, de acontecimento de profundo sentido histórico e social para os cativos e para a nacionalidade brasileira. Alienação fortalecida pela operação de diluição consciente da memória do protagonismo dos trabalhadores escravizados naqueles sucessos, secundados pelo abolicionismo 114
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radicalizado. Diluição que segue sendo fortalecida, por um lado, por leituras apologéticas do sentido da ação da Redentora e de seu augusto pai e, por outro, pela assinalada desqualificação do sentido histórico daquele sucesso. Não há sentido em antepor Palmares, de 1695, à Abolição, de 1888. Mesmo historicamente, o sentido do segundo movimento é qualitativamente superior. A luminar epopéia palmarina, restrita à capitania de Pernambuco, jamais propôs a destruição da escravidão como um todo. Não foi e historicamente não poderia ter sido movimento nacional. A confederação dos quilombos de Palmares resistiu por décadas, determinou a história, mas foi finalmente derrotada. Apesar de seus limites, a revolução abolicionista, em 1888, ainda que tardiamente, foi vitoriosa e pôs fim em forma inapelável, para sempre, ao escravismo, o modo de produção dominante por mais de três séculos no Brasil. Desconhecer o sentido revolucionário de 1888 é olvidar a essência escravista de dois terços do passado brasileiro, é negar a contradição essencial que regeu por mais de trezentos anos a história do Brasil, ou seja, a que opôs trabalhadores escravizados aos seus escravizadores. O desconhecimento do caráter escravista dominante do passado brasileiro enseja a ignorância da singularidade da gênese do Brasil contemporâneo. São as raízes afro-escravistas de nossa formação social que determinam que, em um sentido sociológico, todo brasileiro que se encontre no campo do trabalho, objetiva ou subjetivamente, descenda de trabalhadores escravizados, não importando a sua ancestralidade. Nos anos cinqüenta, autores como o sociólogo negro e comunista Clóvis Moura e o francês e trotskista Benjamin Péret convergiram nas leituras do agir dos trabalhadores escravizados como lídima expressão da luta de classes no Brasil. Uma interpretação já esboçada por Astrojildo Pereira, em 1º de maio de 1929, ao definir, no jornal A classe operária, Palmares como uma “autêntica luta de classes”. Nos anos 1960 e 1970, historiadores como Stanley Stein, Emília Viotti da Costa, Suely R. R. Queiroz, avançaram no conhecimento essencial da história social da escravidão. Nos vinte anos seguintes, produziram-se numerosos estudos sobre a sociedade, a economia e as formas de resistência sob a escravidão, destacando-se entre eles a apresentação germinal do escravismo colonial como modo de produção historicamente novo, em forma sintética, por Ciro Flamarión Cardoso, em forma expandida, por Jacob Gorender. Trabalhos que desvelaram em forma incontornável do caráter dominantemente escravista da antiga formação social brasileira. 115
VI. Os 120 anos da abolição da escravatura
Nesses anos, estudos como o clássico Os últimos anos da escravidão no Brasil, do brasilianista Robert Conrad, apresentaram a Abolição como o resultado da insurreição nem sempre incruenta dos trabalhadores da cafeicultura, sobretudo paulista, que, nos últimos meses do cativeiro, abandonaram maciçamente as fazendas, reivindicando comumente relações contratuais de trabalho. Contra a vontade política e os interesses materiais do núcleo central da cafeicultura, mobilizada pela continuação, até onde fosse possível, da exploração do trabalhador escravizado. Tais estudos desvelaram parcialmente a extrema tensão sob a qual o movimento abolicionista radicalizado alcançou a vitória, em 1888, e sua ligação com a massa escravizada, grande protagonista dessas magníficas jornadas vitoriosas. Revelaram igualmente a amplidão da proposta de democratização da sociedade brasileira, esboçada pelo abolicionismo, com destaque para a popularização da propriedade da terra, através de sua distribuição entre os ex-cativos e brasileiros pobres. Em 13 de maio de 1888, a herdeira imperial nada mais fez do que, após o projeto abolicionista ter sido aprovado no Parlamento, sancionar a Lei Áurea, assinando o atestado de óbito de instituição agônica devido à desorganização da produção imposta pela fuga multitudinária dos cativos. Um ato que tendeu a diluir sobretudo na consciência da população a defesa renhida da escravidão, durante todo o Primeiro e o Segundo Reinados, pelos Bragança, representantes das classes proprietárias escravistas. Nos meses terminais da escravidão, os mais renitentes negreiros, que já reconheciam a crise final da instituição, defendiam ainda o cativeiro, sobretudo para prosseguir reivindicando a indenização pela propriedade libertada. No Ministério da Fazenda da República, Rui Barbosa, abolicionista de primeira hora, companheiro de luta de Castro Alves, o jovem poeta abolicionista radicalizado, mandou queimar corajosamente os registros de posse de cativos para dificultar a reivindicação da “lavoura andrajosa”. Ato pelo qual terminou sendo acusado de querer esconder o passado escravista brasileiro. Foi a ação estrutural das classes escravizadas, durante os três séculos de cativeiro, que construiu as condições que ensejaram, mais tarde, a destruição da servidão. A rejeição permanente do cativo ao trabalho feitorizado impôs limites insuperáveis ao desenvolvimento da produção escravista, determinando altos gastos de coerção e vigilância que abriram espaços para formas de produção superiores. Razões estruturais e conjunturais ainda não suficientemente eluci116
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A abolição como revolução social
dadas ensejaram o caráter tardio da superação da sociedade e produção escravista no Brasil, com graves seqüelas para a sociedade nacional, de ontem e de hoje. A revolução abolicionista foi o primeiro grande movimento de massas cidadão moderno, promovido pelos trabalhadores escravizados em aliança com libertos, trabalhadores livres, segmentos médios etc. Até agora, foi a única revolução social vitoriosa do Brasil. Se vivemos hoje no Brasil triste situação social, a responsabilidade não cabe aos nossos ancestrais, que souberam cumprir a sua revolução civil e democrática, ainda que em forma tardia e limitada. Cabe a nós reconhecer e não negar as lutas e conquistas já alcançadas, e seus significados profundos, para avançar e completar esse processo histórico, na sua etapa de emancipação social.
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Racismo antinegro, um problema estrutural e ideológico das relações sociais brasileiras
Henrique Cunha Junior As dificuldades de compreender a existência do racismo antinegro
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acismo antinegro é um assunto quase proibido na sociedade brasileira, visto que parte significativa da população tem dificuldade em reconhecer a sua existência e mais ainda em compreender as conseqüências do mesmo. Trata-se de um assunto tido como inapropriado, ou indigesto, quase sempre tratado de maneira causal e como se fosse um problema assistemático. Mesmos os preconceitos e discriminações contra a população afro-descendente são reconhecidos, mas vistos geralmente como sem grande importância no estabelecimento das relações sociais e na determinação da condição socioeconômica da população afro-descendente. Por outro, estes preconceitos e discriminações são tratados como sinônimos do racismo, e vistos como uma categoria geral e niveladora dos racismos sobre os diversos grupos sociais, sejam negros, indígenas, judeus, árabes, mulçumanos, armênios, ciganos, turcos e demais grupos vitimados por praticas étnicas de restrições sociais. Neste trabalho tratamos da situação social, econômica, cultural e política da população afro-descendente como um problema estrutural da sociedade brasileira, tal como as determinações de classe social ou de problemas de grupos sociais. Desde que estrutural é um problema que afeta uma porcentagem elevada da população, está inserido no processo histórico de longa duração e permeia todas as instituições e organizações da sociedade. Nesta abordagem o racismo antinegro é tratado como um problema específico e particular que afeta a população afro-descendente devido às contingências da formação histórica do país e dado as relações de dominação elaboradas entre os grupos sociais de origem africana e européia. Precisamos que a elaboração desenvolvida aqui não trabalha com as categorias de raça social ou biológica, mas sim como a história sociológica. 118
Racismo anti-negro, um problema estrutural e ideológico das relações sociais brasileiras
Sendo nesta os afro-descendentes definidos como grupos sociais subalternos aos grupos sociais euro-descendentes. Tendo ainda como palcos das histórias destes grupos sociais e das relações estabelecidas à localidade (CUNHA JUNIOR; RAMOS, 2007)1. Os africanos e descendentes submetidos às relações de imposição de dominação na sociedade brasileira são considerados como membros dos grupos sociais afro-descendentes. Existem entre grupos sociais situações de generalidades como também de particularidades, desenvolvendo identidades específicas grupais relacionadas com a localidade e a história sociológica desta localidade. Por outra, temos que o marxismo clássico pode ser considerado como condição necessária, mas não suficiente para análise das relações étnicas brasileiras. Também estamos preocupados em diferenciar as categorias de preconceito, discriminação e racismo. Ainda precisando o racimo não como categoria genérica, mas sim específica do racismo antinegro. Sabemos que os problemas sociais estruturais são de difícil abordagem quanto aos meios de solução. Eles emergem de relações sociais complexas consolidadas dentro de longos processos históricos. As relações estruturais são reflexos das desigualdades sociais persistentes e produzidas por relações sistematizadas de dominação, abrangendo todas as esferas das relações de dominação e de imposição de submissão entre grupos sociais. A idéia de persistência tem uma importância no processo, pois implica, na sua reprodução, a persistência na permanência ao longo de diversas gerações de uma população. Da mesma forma, a idéia de sistematizada implica na existência de desenvolvimento trabalhado, estudado e aperfeiçoado nas práticas sociais. Não se trata de nada especulativo, espontâneo ou passageiro, e sim de resultado de uma engenharia social de dominação. O sucesso deste, como processo de dominação, vem da sua persistência e da sua sistematização, que implica em uma constante atualização e acumulação de aprendizado, termina por abranger todas as esferas da vida humana com implicações diferenciais para cada setor e época desta. Assim, ele produz ou é parte de dois modos de produção na sociedade brasileira, o do escravismo criminoso e o de capitalismo racista. Aqui as relações sociais históricas entre as populações de africanos e descendentes e de europeus e descendentes são relações de dominação e subalternidade, formadoras das desigualdades sociais, que preenchem o núcleo mais significativo das relações de classe brasileira, entre pobres sistematicamente empobrecidos e ricos per1 CUNHA JUNIOR, Henrique; RAMOS, Maria Estela Rocha. Espaço Urbano e Afrodescendência. Fortaleza: Editora da UFC, 2007.
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VI. Os 120 anos da abolição da escravatura
sistentemente enriquecidos, entre despossuídos e proprietários, de bens materiais e imateriais na sociedade brasileira. As classes sociais no Brasil são decorrentes das relações sociais herdadas do escravismo criminoso segregacionista mal acabado e da reestruturação deste na formação de um capitalismo nacional em que as origens africana e européia da mão-de-obra contaram substancialmente. As políticas imigratórias para europeus está na base da formação capitalista brasileira com a conseqüente desqualificação da mão-de-obra nacional, de africanos, afro-descendentes, nortistas e nordestinos. As classes sociais formam etno-classes sociais com encaixes, papéis e direitos sociais diferenciados na hierarquia das classes sociais brasileiras. O processo de formação de classes sociais no Brasil é distinto do europeu e por sua vez também distinto de outros países do continente americano. Mesmo a mestiçagem ou miscigenação teve reduzida importância prática no processo de dominação visto que, os filhos das escravizadas como dos escravizadores, via de regra, viraram escravizados. A mestiçagem não alterou em nada as relações de propriedade e pouco as relações de qualificação social. A mestiçagem teve, entretanto enorme importância ideológica, visto que fez crer que as relações sociais teriam sido amenizadas ou resolvidas por este processo. Serviu para encobrir a compreensão da realidade histórica das relações sociais brasileiras entre afro-descendentes e euro-descendentes. Permitiu o encobrimento da relação persistente e sistematizada de dominação. Então, na nossa abordagem, o racismo antinegro é parte do processo de formação das classes sociais brasileiras, numa elaboração que não foi ainda suficientemente estudada. Esta situação de vida em condições de desigualdades sociais persistentes e sistematizadas da população afro-descendente brasileira é de complicada explicação teórica dentro dos patamares de classe social clássicos, nos quais interviram apenas a posse dos bens sociais e a venda livre do trabalho. Esta elaboração clássica não é suficiente para explicação da situação social da população afro-descendente, nela não figuram os processos de desqualificação social dos afrodescendentes e nem os de qualificação social dos euro-descendentes, ou seja, as relações de dominação acima das relações de propriedade. Ou a propriedade abrangendo bens sociais materiais e imateriais. A idéia de pensarmos os grupos sociais como grupos étnicos precisa ir além das definições da antropologia e da etnografia. Necessita ser pensada no campo da história sociológica e das relações de dominação estabelecidas desde a Idade Média e da elaboração da formulação ideológica da sociedade ocidental, que desaguaram na história do Brasil através das relações de escravização dos africanos
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Racismo anti-negro, um problema estrutural e ideológico das relações sociais brasileiras
como povos pagãos (CUNHA JUNIOR, 2006)2, mas também tendo em conta o interesse europeu na produção material e no conhecimento de tecnologias africanas em áreas como as de produções de ouro, ferro e cobre do continente africano (PARREIRA, 1997). Acreditando que deste conjunto emana o escravismo criminoso brasileiro e dele se constituem as relações sociais de base da sociedade brasileira. A oposição entre escravizado africano com religiões africanas e escravizador criminoso europeu cristão constitui a contradição que formula o trabalho e as relações de poder da sociedade brasileira. Existe a necessidade de aprofundarmos ainda este patamar das relações sociais advindas deste processo de dominação e das conseqüências para o tipo de capitalismo que construímos na transição da abolição para uma sociedade de trabalho livre, mas de inclusão com restrições de desqualificação e controle social estrito sobre os descendentes de africanos. No entanto, as decorrências da dinâmica das relações étnicas que são relações ao mesmo tempo de trabalho e de poder, entre grupos sociais subalternos e dominantes ainda esta descrito de maneira precária em nossa história. Aparece como relações de negros e brancos, dando a impressão que são apenas problemas de conflitos de preconceitos. Nas relações emprestadas da formulação de negros e brancos fica sempre reduzido o ênfase na história e nas relações de trabalho e de poder. Esta redução da ênfase na realidade é que a histórica abre espaço para o pensamento conservador. Permite estabelecer a ideologia de que as relações étnicas brasileiras são harmônicas e elas não seriam a explicação da situação social e econômica atual da população negra. Nas formas habituais de exposição das relações étnicas brasileiras, o ênfase nos processos de subalternização e de dominação não aparecem como persistentes e nem como sistematizados, o que redunda a impressão, ou seja, na ideologia da inexistência de conflitos importantes. Os inúmeros enforcamentos, linchamentos de negras e negros, as ações da polícia e do exército brasileiro contra populações negras é sempre encoberto na história nacional, dando a impressão que não existiram, e que aqui reinava a paz em comparação com os dados de outros países. Mesmo o constante controle social e fortíssima repressão policial que sofrem as populações afro-descendentes no período pós-abolição não são computados como práticas de racismo antinegro e como parte do antagonismo e dos conflitos das relações étnicas brasileiras. Assim, a ideologia da harmonia social, 2 Ver artigo na revista eletrônica Espaço Acadêmico. Cunha Junior, Henrique. 2006. Também ver PARREIRA, Adriano. Economia e Sociedade Angolana na Época da Rainha Jinga no século XVII. Lisboa: Editorial Estampa, 1997.
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como toda ideologia, produz o ocultamento da realidade, dos reais conflitos e das razões dos fatos históricos. Insisto que nas mentalidades brasileiras não está impressa nem mesmo a enorme violência do escravismo criminoso. De início, o escravismo não é considerado criminoso, pois se reveste como as leis de uma época. O escravismo não é também pensado como um sistema de amplo segregacionismo social, ainda muito recente, com apenas duas gerações anteriores a minha na minha família, por exemplo. A construção da ideologia traduz as relações apenas para o campo da casa grande e da senzala, deixando de lado o eito, onde se explica a razão do sistema que é exploração do trabalho. A ideologia encobre as atrocidades dos extermínios de quilombos e sobretudo o protagonismo histórico de africanos e afro-descendentes na busca pela liberdade e pelas condições de sobrevivência digna. O mito da adequação do africano ao escravismo e da passividade de aceitação deste completam a proposição que dá vida à ideologia da harmonia social, com base em certa bondade do escravizador e certa passividade dos escravizados. Nos clássicos conservadores da sociologia e da história brasileira, o nosso escravismo é brando. Não existem nas narrativas que ilustram o período os caçadores de quilombos trazendo as pencas de orelhas para computar a dimensão das ações de extermínio. Os crimes constantes e persistentes contra a população africana e afro-descendente não figuram na história oficial brasileira. Quando figuram não são considerados como ações criminosas de um estado de criminalidade do Estado. Os processos da violência e do extermínio antinegro são ocultados ou apagados da história brasileira. Sobre o apagamento é construída uma ideologia da convivência histórica harmônica, sem conflitos, ficando difícil a classificação ou a percepção da existência de racismo antinegro. Portanto, existem problemas para o reconhecimento de que a situação histórica de vida da população afro-descendente no Brasil é conseqüência de um sistema de produção capitalista racista. Existe uma dificuldade teórica e conceitual para explicar e permitir a decodificação das relações sociais brasileiras como decorrentes da existência do racismo antinegro. A dificuldade está em ultrapassar a ideologia que encobre o processo de dominação entre os grupos sociais brasileiros. A dificuldade aumenta, visto que os brancos pobres estão submetidos a um processo de dominação semelhante, e em muito tendemos vê-lo como processo igual, examinado quase sempre na superficialidade dos fatos sociais sobre a pobreza, e sem o vínculo da história. Nós temos dificuldade em compreender que a desqualificação social que a negra sofre é diferente da do negro, e deste difere 122
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da do branco pobre. A nossa história os uniformiza na pobreza nacional sem um detalhamento de como este estado de imposição das diferentes pobrezas se processa. O racismo vem sendo trabalhado como uma categoria geral, numa definição de ódio entre as raças, de preconceito ampliado apenas. O racismo precisa ser estudado como diferenciado entre os grupos sociais, pois há razões, ações e conseqüências diversas entre estes diversos grupos sociais. São, em suma diversos racismos, nem todos com a mesma formulação histórica, de mesma persistência e nem mesma sistematização. O racismo antinegro no Brasil tem um caráter estrutural na formação da sociedade brasileira. Da mesma forma, as ideologias que produzem as ocultações das problemáticas engendradas pelos racismos possuem formulações diferentes entre os diversos grupos sociais étnicos. No caso da população afro-descendente, as relações interpessoais têm sentidos diferentes nos diversos segmentos sociais e nas diversas instâncias das relações sociais. Nos campos da informalidade e onde as expressões da população negra não são competitivas, temos situações de cordialidade. No campo formal, existe um intensa e desigual competição, mascarada pela ideologia, vínculo da história. Hoje o racismo antinegro opera na desqualificação social cristã. Pelo processo de “satanização” a tudo que tem base na cultura africana. Entretanto, tal ação racista transcorre com aparente estabilidade e normalidade. Se a religião modifica o pensamento da sociedade, esta modifica as relações de poder social, econômico, cultural, as que definem a existência de estruturas sócias. Estas são relações étnicas de profundo antagonismo e constantes restrições às inclusões da população negra. Os episódios de cotas para negros nas universidades são significativos. Não é um fato isolado, nem faz parte de uma exceção casual, a negativa da inclusão ampla da população negra às instâncias formais de acesso aos bens sociais. Traduz a luta pela imutabilidade das relações sociais e também a sistematização da nossa tradição ideológica da inexistência de problemas importantes no campo das relações étnicas. No caso das cotas para negros e apenas nestas, emergiu um problema no campo considerado estável das relações étnicas. Assim, o problema foi considerado como fabricado por fatores exógenos à sociedade brasileira. Fazem constantes acusações que estariam inventando o racismo de negros contra os brancos (idéia do racismo às avessas), ou que estaríamos importando conceitos estrangeiros e perniciosos à sociedade brasileira. Mais uma vez, as formas das ideologias são alçadas com extremo vigor, extensivas e de ampla sistematização. Fazem parte da sistematização as novelas apresentadas pela televisão que fortalecem o imaginário social. Novelas que há dois anos passados não apresentavam negros e agora fabricam 123
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um negro “praticante intensivo” do designio da mestiçagem e exibem, em intervalos repetitivos, a frase de efeito publicitário de “não somos racistas”. Também ainda de forma não isolada, mas perfeitamente articulada e coerente como a sistematização, temos as igrejas cristãs “retrabalhando” o racismo religioso e associando as culturas e religiões africanas ao diabo cristão. Ou seja, revendo a integração social do negro, na sociedade cristã dominante, despido da cultura negra. Articulando a inclusão das figuras negras, desde que reprodutoras de uma mentalidade branca. Forma ideológica muito bem explicada por Fantz Fanon, no seu clássico dos anos de 1950 (FANON, 1983)3. O que exemplifica a construção do racismo brasileiro, no qual a inclusão é realizada de forma controlada, seletiva e condicionada aos princípios da marca eurocêntrica. “Inclusão desde que triunfe a dominação européia”. Importante que este euro-centrismo é a marca da República no Brasil e a ênfase desta na construção do Estado nacional. Marcas que são reforçadas, explicadas e compatibilizadas à suposta realidade nacional nos clássicos da invenção do Brasil, tais como: Raízes do Brasil, Casa Grande e Senzala e Formação Econômica do Brasil. Digo invenção, pois elas não traduzem a visão afro-descendente da realidade brasileira.
Percurso da história numa perspectiva afro-descendente Compreender a situação social da população afro-descendente no Brasil é entender a história desta população e a sua relação com os demais grupos sociais em relações não apenas de constante conflito nem de permamente harmonia, e nos quais a violência está sempre presente, quer na forma física ou na simbólica. Há uma tentativa constante da redução do africano e do afro-descendente ao não ser, ou não existir, ao existir desde que outras condições sejam preenchidas. Entender a nossa ótica na explicação da história precisa compreender a existência do racismo como processo de dominação persistente e encoberto por representações ideológicas. Partimos de o escravismo é um crime contra a humanidade e nele se baseou a formação histórica do país. Dolorosa que seja para as concepções de nação, esta idéia de crime e de violência está presente e condicionou nossa formação histórica. Os africanos foram trazidos em imigrações forçadas como prisioneiros e aqui transformados em escravos. Temos que ter em mente que o comércio 3 FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Rio de Janeiro: Fator, 1983.
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Racismo anti-negro, um problema estrutural e ideológico das relações sociais brasileiras
de seres humanos era realizado no passado da Europa e também da África, envolvendo diversos povos e diversas situações, mas a ampliação e a reelaboração deste sistema são realizadas quando da expansão portuguesa na colonização do Brasil. Introduzindo uma nova forma de produção e envolvendo características até então desconhecidas na história da humanidade. Embora hoje se insista em destacar que, em parte, este comércio de seres humanos teve a participação de reinos africanos, precisamos reconhecer que a instituição de venda só existiu pela imposição da instituição de compra, e da forma de exploração da mão-de-obra africana, e estas eram de dominação exclusiva dos europeus, somente em benefício da Europa. A participação de reinos africanos fez sempre parte da dominação européia em determinadas regiões africanas, em um clima de grande reação e resistência de parcela significativa do continente. São um ciclo de pelo menos quatro séculos de luta de africanos contra a dominação européia. Que se conclui pela dominação colonial européia, e pelo empobrecimento sistemático das nações africanas, tendo no outro extremo o enriquecimento persistente das nações européias. Partimos de um comércio de seres humanos, que é crime contra a humanidade, pois estamos fazendo a história neste momento e repensando o passado nas relações do presente, com conceitos do presente. Tal comércio apenas existiu devido aos receptadores portugueses estarem provendo a instituição do escravismo criminoso no Brasil. O sistema do escravismo criminoso foi todo baseado na exploração de mão-de-obra e do conhecimento africano, que se trata de uma decorrência, como já dissemos, das especializações no campo da produção material atingidas pelos africanos e em muitas vezes superiores às realizadas na Europa e nas Américas. Os tipos de agricultura tropical e de mineração realizadas na colonização do Brasil eram de amplo conhecimento da mão-de-obra africana. Mas os fatores do cristianismo europeu foram decisivos, uma vez que estes autorizavam e justificavam a empreitada criminosa do escravismo dos africanos devido estes serem, na ótica cristã, considerados povos pagãos. De acordo com os textos bíblicos cristãos, nas versões ocidentais, era natural a escravização dos inimigos do cristianismo ocidental. Os africanos de religiões africanas e muçulmanas foram denominados de pagãos, assim vitimados pela escravização. Hoje, argumentos similares continuam sendo utilizados por parte das igrejas cristãs no processo de “satanização” da cultura e das religiões africanas. Pastores evangélicos ainda afirmam que os africanos sofrem por adorarem o diabo.
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O Brasil foi o país de maior população de imigração de cativos africanos e o de mais longa duração do sistema de escravismo criminoso, como também o de maior dimensão da violência em todos os sentidos contra esta população. As propriedades agrícolas, como os engenhos de açúcar, chegavam a ter dois a três mil escravizados, para uma população livre de uma centena de membros nem todos brancos, mas todos sob a tutela do terror. A estabilidade do sistema de produção escravista não se deu apenas pelo chicote e pela força dos feitores, mas pela iminência da morte. As fugas e rebeliões foram sempre combatidas com excessivo rigor exemplar. O pelourinho e a forca foram instrumentos cotidianos da história do Brasil no combate à dita “rebeldia dos escravizados”, na forma de imposição da dominação e submissão. Não apenas uma história de violência de castigos, mas de matanças com mutilações e inutilizações físicas dos seres humanos. Temos que as polícias e o exército, ao longo de toda a história do Brasil, se especializaram na caçada e no combate às populações de quilombolas, na redução das revoluções e rebeliões de maioria negra, em uma imensa carnificina. Repetimos que a renumeração e o balanço feito pelos capitães do mato sobre suas incursões punitivas contra africanos e afro-descendentes rebeldes foram baseados em pares de orelhas apresentadas. A luta pela abolição é uma imensa obra de uma plêiade de rebeldias e quilombismos que inviabiliza o sistema de dominação e o coloca em perigo de extinção. Aparece, assim, a promoção da abolição dentro das normas da ordem e sufocando uma possível transição mais sangrenta. Mesmo os atos revolucionários de maioria afro-descendente se sucedem no pós-abolição e tendo como marca a mesma violência das forças armadas brasileiras. Exemplos conhecidos são os episódios de João Candido, na Rebelião de Marinheiros, no Rio de Janeiro; a Guerra de Canudos, na Bahia; e o Caldeirão, no Ceará. A abolição foi uma conquista da liberdade que ficou inacabada, devido a inexistência de políticas públicas de integração do ex-escravizado às instâncias novas da sociedade livre, e da população negra à produção capitalista. Estas políticas públicas de ações afirmativas não existiram, mas existiram outras contrárias à estabilidade social das populações afro-descendentes. As políticas de imigração européia tinham interesses contrários aos dos afro-descendentes. Foi uma política de inspiração racista, que propunha o europeu como apto à promoção do desenvolvimento nacional em detrimento e com mecanismo de desqualificação da mão-de-obra de afro-descendentes. Foi uma política de cotas e de afirmação dos imigrantes europeus e japoneses no Brasil, financiada pelo Estado brasileiro. As políticas 126
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Racismo anti-negro, um problema estrutural e ideológico das relações sociais brasileiras
contrárias aos interesses dos afro-descendentes se deram em todos os campos da educação e da cultura nacional devido à europeização sistemática destas. Também as perseguições e as invasões às habitações coletivas e aos terreiros religiosos se estenderam de forma contínua até 1940. Somam-se a este conjunto, ainda, os planos e as concepções de urbanismo que sempre deixaram os territórios de maioria afro-descendentes em segundo plano. Os resultados das políticas urbanas sempre foram desfavoráveis às maiorias afro-descendentes. A história do Brasil, quando revista na ótica dos afro-descendentes, é uma grande síntese do racismo antinegro à brasileira. Um processo de racismo estrutural, de formulação e disseminação de uma ideologia que sistematiza o encobrimento do racismo antinegro.
As conclusões A situação da população afro-descendente é enfocada neste texto como decorrente de problemas estruturais da formação socioeconômica brasileira. O racismo antinegro é tratado como uma forma particular de racismo, indo além de um problema de ódio entre grupos sociais e conferindo como que um elemento ativo no processo de estrutura de classes sociais. Sendo um processo de dominação, este elabora uma ideologia da sua ocultação. Esta ideologia é muito bem sucedida no Brasil e produz uma dificuldade social da aceitação da existência do racismo antinegro, do reconhecimento da sua importância no estabelecimento de hierarquias sociais e da aceitação das políticas públicas de combate ao racismo. A situação histórica da população africana e afro-descendente no Brasil foi formulada por processos de dominação étnica, desde o escravismo criminoso segregacionista, tendo continuidade no capitalismo racista. A desqualificação social sofrida pela população afro-descendente é um processo mais amplo que os dos preconceitos e das discriminações sociais baseadas na raça social, perfaz processos sistemáticos, institucionais, estrutural e ideológico particular da sociedade brasileira. Temos que destacar finalmente que racismo antinegro é um problema social inserido nas relações de classe típicas das sociedades do tipo da brasileira que se edificou com base no escravismo criminoso com mão-de-obra africana.
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O desenvolvimento econômico e o tema das relações raciais no Brasil Marcelo Paixão
H
á uma hipótese contida no pensamento desenvolvimentista e modernista brasileiro segundo a qual o processo de desenvolvimento da economia poderia carrear consigo, por livre e espontânea vontade, a resolução dos grandes problemas do país. Tal como relata, sem meias palavras, César Benjamin: (t)ivemos, até período recente, uma grande utopia, a da industrialização e do desenvolvimentismo. Ela conquistou os corações dos nossos pais, que experimentaram a sensação de que o Brasil era o país do futuro que estava sendo construído: daquele desenvolvimento industrial resultaria a superação do subdesenvolvimento e da pobreza1. Ou seja, por esse ponto de vista, ao se associar a industrialização à ruptura com os termos da antiga divisão internacional do trabalho, esta transição produtiva se faria acompanhar pela redução do peso relativo dos resquícios do antigo sistema colonial, tal como o latifúndio monocultor ou mesmo a dependência externa das praças internacionais. Assim, de acordo com tal hipótese, a modernização do país, por si só, poderia trazer a superação de nossas antigas mazelas sociais. Por outro lado, o modelo desenvolvimentista acabou sendo forjado utilizando como motor ideológico o próprio mito da democracia racial. Ou seja, o ideário mítico da morenidade, produto sincrético da fusão das três raças originárias formadoras do povo brasileiro, acabou sendo utilizado instrumentalmente pelas elites brasileiras como um instrumento mobilizador do desenvolvimento e do progresso. Esta concepção é cristalinamente apresentada pelo neo-desenvolvimentista Darc Costa: A mágica da mestiçagem é a propriedade que nós temos de deter diferentes graus de morenidade. Esta é uma valiosa qualidade do Brasil. Sobre esse tema, sobrepujando o pessimismo das gerações anteriores, que se julgavam condenadas ao malogro, pela sua condição de partícipes de um país sem futuro, em decorrência do caráter mestiço de sua população, vem, ao longo de 1 BENJAMIN, C. (1994:23-24). Decifra-me ou te devoro. In: SADER, E. (org). Alternativa de esquerda à crise brasileira. Rio de Janeiro: Relume-Dumará (p. 9-32)
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O desenvolvimento econômico e o tema da relações raciais no Brasil
todo este século XX, se sucedendo desde a descoberta antropológica de nosso pais, feita, principalmente, com FREYRE (caixa alta daquele autor), um orgulho, uma confiança e um arrebatamento expresso pela certeza das vantagens que a completa mestiçagem proporciona, na arena mundial, ao povo brasileiro. Fez-se com FREYRE a descoberta, nesta parte do mundo, que não há raças capazes ou incapazes de civilização. Mais do que isso, fez-se a constatação que toda trama da história resulta de um processo de fusão e que o Brasil é em si próprio o próprio espírito divino da fusão criadora (COSTA, 2003:59)2. O maior problema deste tipo de posição é o seu excessivo otimismo quanto a capacidade do processo de crescimento da economia por si mesmo gerar, fundado no mito da democracia racial, amplos benefícios civilizatórios para toda a sociedade. Dito de outro modo, posto a experiência brasileira ao longo da segunda metade do século XX é inaceitável que o tema do modelo de desenvolvimento continue sendo realizado apenas contando com variáveis de ordem financeira e econômica. Assim, tão importante quanto a mobilização destas variáveis é o entendimento dos mecanismos de permanente prorrogação das disparidades socioraciais existentes no Brasil. E aqui, posta a história passada e recente de nosso país, é inconcebível que a temática das desigualdades raciais não exerça um papel central. A economia brasileira é atualmente a 14ª mais pujante em todo o mundo, sendo que até bem pouco tempo ela ostentava o título de oitava economia mundial. Em 2004, o PIB brasileiro, de US$ 603,97 bilhões, era o segundo maior da América Latina, ficando atrás apenas do México, cujo PIB chegava a US$ 676,49 bilhões3. Tal dinamismo, porém, não elimina o fato de que, se considerarmos o PIB per capita, a economia brasileira demonstra ser menos portentosa, revelando um país de médio grau de desenvolvimento, que cai para a 69ª colocação no ranking dos países do mundo, de acordo com o Human Development Report 2003 4. Esse hiato em termos da colocação do Brasil nos rankings do PIB e do PIB per capita demonstra que, em nosso país, existe uma parcela da população vinculada aos setores formais e modernos ao lado de uma grande maioria vinculada aos segmentos informais e de reduzida produtividade. Tal constatação ganha maior relevo quando nos repor-
2 COSTA, D (2003). Estratégia nacional: a cooperação sul-americana como caminho para a inserção internacional do Brasil. Rio de Janeiro: Aristeu Souza. 3 Banco Mundial, 2004, em web.worldbank.org. 4 Human Development Report 2003, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud).
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tamos ao fato de que essa dualidade se associa com as próprias desigualdades socioraciais presentes no interior da sociedade brasileira. Segundo o mesmo Human Development Report 2003 (com indicadores sobre o ano de 2001), dos 97 países que disponibilizaram informações para o cálculo do coeficiente de Gini5, o Brasil era o que apresentava o quarto maior índice do mundo (em torno de 0,607), tendo ficado atrás somente da Namíbia (cujo índice era de 0,707), Botswana (0,630) e Swazilândia (0,609). O Brasil apresentava, portanto, um coeficiente de Gini superior ao de todos os países da América Latina e Caribe. Segundo a mesma fonte, em 2001 a proporção entre o rendimento médio dos 20% mais ricos da população brasileira em relação ao rendimento médio dos 20% mais pobres era de 29,7 vezes. Nos EUA, por exemplo, essa proporção era de nove vezes. Assim, comparando-se mais uma vez os mesmos 97 países, o Brasil apresentava a terceira mais acentuada desproporção entre o rendimento médio dos 20% mais ricos e o rendimento médio dos 20% mais pobres, ficando atrás apenas da Namíbia (56,1 vezes a mesma proporção), do Lesotho (50 vezes) e de Botswana (31,5 vezes). Por outro lado, é visível que este perfil da sociedade brasileira, notadamente desigual, está fortemente ligado com as assimetrias raciais. Por intermédio do Gráfico 1 podemos ver que a participação dos negros e negras na formação da renda disponível ao longo do período compreendido entre 1980 e 2000 permaneceu praticamente a mesma, correspondendo a não mais que 30% da formação da renda disponível das famílias. Gráfico 1 – Fonte, microdados do Censo 2000. Tabulações LAESER
No que tange à evolução dos indicadores de pobreza e indigência desagregados por raça/cor, vemos que, ao longo do tempo, eles 5 O coeficiente ou índice de Gini é usado para medir a concentração de renda em determinado grupo. Sua graduação vai de 0 (plena igualdade de distribuição de renda) a 1 (completa desigualdade).
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invariavelmente se apresentam mais impactantes sobre os negros e negras. Assim, de acordo com os dados contidos nos Gráficos 2 e 3 vê-se que entre os intervalos censitários de 1980 e 2000, a presença negra no interior da população abaixo da linha de pobreza permaneceu em torno de 60%; e no interior da população abaixo da linha de indigência no entorno de 65%. Gráficos 2 e 3 Fonte, microdados do Censo 2000. Tabulações LAESER / IE / UFRJ
Tabela 1 – IDH dos grupos de raça/cor Brasil, 2000
Fonte: Paixão (2005) – Crítica da razão culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil. IUPERJ: Tese de Doutorado. 435 p.
Finalmente, a partir da Tabela 1, podemos ver que os Índices de Desenvolvimento Humano de pretos, pardos, negros (soma de pretos e pardos) e indígenas, em 2000, apareciam nitidamente inferiores do que o mesmo Índice dos brancos e dos amarelos. Assim, caso formassem países diferenciados o hiato de brancos (IDH elevado) e negros
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(IDH médio) em termos do ranking internacional do IDH seria superior a 60 posições. No caso dos amarelos (IDH alto) e dos indígenas (IDH médio-baixo), a distância seria de mais de cem posições. Tendo em vista este conjunto, decerto incompleto, de indicadores não há porque dissociarmos o tema do desenvolvimento econômico da própria questão do modelo brasileiro de relações raciais. Se é verdade que no padrão local de contatos inter-raciais existem zonas de franco convívio entre os diferentes, no que diz respeito aos mecanismos de mobilidade social – acesso à educação de qualidade, mercado de trabalho em posições mais bem posicionadas e prestigiadas – tais espaços passam a ser quase inexistentes (C.f. SANSONE, 1992)6. Assim, posto os sistemas desiguais de prestígio atribuídos socialmente aos portadores das distintas marcas raciais (que Oracy Nogueira classificaria de preconceito racial de marca e Harold Hoetink chamava de normas somáticas de imagem); a população branca e mestiça clara seria aquela que no processo de modernização do país seria vista como ingenitamente capaz de incorpar uma mentalidade moderna, racional e estratégica. Enfim, este contingente formaria o país do futuro, portanto encontrando maiores facilidades (ou alternativamente, menores dificuldades) para acessar os melhores postos no mercado de trabalho e galgar posições mais relevantes em termos sociais e políticos. Já os negros, e indígenas; bem como todos aqueles portadores de marcas raciais mais notadamente africanas, seriam coletivos que, na ideologia racial vigente, portariam uma mentalidade pré-lógica, incapazes de uma ação estratégica, voltada à obtenção de finalidades, devendo, por isso, serem tutelados no interior do processo de seu longo findar posto o desiderato coletivo do branqueamento da nação, esta vista como uma etapa inevitável da modernização do país. Tal como diria, em uma obra escrita em pleno otimismo de meados da década de 1950, sobre o futuro racial da população brasileira, o prestigiado educador Fernando de Azevedo: “(a) admitir-se que continuem negros e índios a desaparecer, tanto nas diluições sucessivas de sangue branco, como pelo progresso constante de seleção biológica e social e desde que não seja estancada a imigração sobretudo de origem mediterrânea, o homem branco não só terá, no Brasil, o seu maior campo de experiência e de cultura nos trópicos, mas poderá recolher à velha Europa – cidadela de raça branca -, antes que passe a outras 6 SANSONE, L. (1998 [1996]) – As relações raciais em Casa Grande & Senzala revisitadas à luz do processo de internacionalização e globalização. In CHOR MAIO, Marcos & SANTOS, Ricardo (org) – Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: FIOCRUZ / CCBB 1ª reimpressão (p.p.207-218)
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mãos, o facho de civilização ocidental que os brasileiros emprestarão uma luz nova e intensa, – a da atmosfera de sua própria civilização” (AZEVEDO, 1963 [1955]:79-80)7. Decerto a retomada do crescimento da economia vem a ser o cenário ideal para a existência de políticas redistributivas de renda e de patrimônio e para a redução nos índices mais extremados de pobreza e indigência. É óbvio que neste contexto a distribuição da renda e do patrimônio imobilizado ocorreria concomitantemente ao seu incremento. De todo modo é preciso que esta estratégia seja definitivamente a linha mestra de todo o processo e não apenas uma espécie de subproduto espontâneo do desenvolvimento das forças produtivas, esperança esta que a nossa história já demonstrou cabalmente que por si só (ou antes, balizada no mito da democracia racial), jamais ocorrerá. Dito de outro modo, o conjunto de indicadores mobilizados ao longo deste texto é importante para demonstrar que, mantidos os tradicionais mecanismos de distribuição racial da renda, poder e prestígio social no Brasil, é de se esperar uma retomada de longo fôlego da economia brasileira, PIB, as desigualdades socioraciais possam mesmo a vir aumentar. O estudo dos principais indicadores sociais em nosso país nos revela que, em todos eles, a essência dos dilemas que enfrentamos se reportam ao seu pano de fundo racial. Em razão de um modelo de relações raciais discriminatório, que naturaliza e perpetua antigas clivagens no interior da hierarquia social (e não apenas pelo vetor do preconceito social), são os negros e negras os que mais padecem de problemas como o desemprego, o trabalho informal e precário e as piores condições de acesso aos bens de uso coletivo; são os que mais sofrem com o problema da violência e da violência policial; os que apresentam menor esperança de vida ao nascer e maior taxa de mortalidade infantil; os que têm menos acesso à terra e ao crédito; os que mais sofrem com o problema do trabalho infanto-juvenil; e os que mais intensamente estão ocupados em setores e funções de baixo prestígio e status, como a construção civil e o serviço doméstico. Portanto, será sempre inconsistente a crença de que vivemos a utopia de um país desracializado, enquanto sabemos (e todos nós sabemos) que o critério racial (conquanto por meios nem sempre explicitados) é suficientemente importante para determinar as trajetórias pessoais e profissionais dos distintos indivíduos em nosso país. Outrossim, não há o menor motivo para se considerar esta questão 7 AZEVEDO, F (1963 [1955]). A cultura brasileira: introdução ao estudo da cultura no Brasil. Brasília: UnB. 4ª edição revista e ampliada
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como irrelevante no interior das angústias presentes sobre a retomada de um modelo sustentável (econômica e ambientalmente) de desenvolvimento do Brasil. Finalmente, o debate sobre o futuro das políticas sociais não poderia ser realizado sem que fossem tecidas algumas considerações sobre o próprio significado das ações afirmativas hoje no país. Em primeiro lugar, as políticas de ação afirmativa estão fundamentadas num princípio filosófico que, em nome das exigências da incessante busca de superação das desigualdades existentes, acredita ser necessária a concessão de tratamento desigual a pessoas socialmente desiguais, buscando assim corrigir as históricas e cumulativas disparidades entre grupos (não necessariamente minorias) sociais, raciais, étnicos e de sexo no interior de uma determinada sociedade. Em segundo lugar, a defesa de semelhante política se imbrica com a defesa de uma concepção de conteúdo estratégico, qual seja, a da diversidade. Dito de outra maneira, na defesa das ações afirmativas, partimos da compreensão de que a humanidade, enquanto espécie, tem como um de seus principais patrimônios o amplo leque e variedade de tipos físicos e culturais que a formam. Por esse motivo, cremos que a permanente interação, convívio e diálogo entre os diferentes tipos de pessoas, em todos os espaços da vida social, são um valor em si mesmos, correspondendo aos melhores e mais justos anseios de luta por uma sociedade democrática, anti-racista e fraterna. Em terceiro lugar, as propostas de adoção de semelhantes medidas para os negros e negras obedecem a fatores históricos e sociais que fizeram com que, passados 118 anos da abolição da escravatura, os afrodescendentes se vejam invariavelmente nas piores posições em termos de acesso aos estudos, aos bons empregos, aos recursos públicos e às políticas sociais. Assim, este debate é especialmente crucial no Brasil, país que, acostumado a se ver como uma nação mestiça e hostil às práticas segregacionistas, terminou por naturalizar, de modo mais ou menos consciente, tradicionais assimetrias socioraciais. Destarte, as resistências que vêm brotando atualmente em nosso meio no que se referem às políticas de ação afirmativa, mormente quando direcionadas aos negros e negras, já eram esperadas, por serem coerentes num país que ao longo do tempo se acostumou a considerar justo e normal encontrar afrodescendentes em situações sociais subalternas. Por isso, consideramos que as políticas de ação afirmativa para a população negra correspondem a reclamos justos, 134
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sendo uma das formas possíveis de correção de antigas e novas injustiças que hoje, coerentemente, se expressam na totalidade dos indicadores socio-demográficos brasileiros sobre o assunto. Por outro lado, as políticas de ação afirmativa não se contrapõem, necessariamente, às políticas de cunho universalista voltadas para toda a população brasileira. Por exemplo, as ações governamentais relacionadas a vacinação, combate à fome, escolarização, combate ao analfabetismo, acesso a saneamento básico, acesso a água potável etc. devem ser feitas visando prover toda a população, e não tornarse uma espécie de concessão. Falamos isso porque sabemos que o motivo pelo qual esses serviços não foram efetivamente universalizados correspondeu a uma mais ou menos explícita política de Estado de não atender às necessidades sociais básicas da população negra. É por essa razão que, não coincidentemente, a insuficiência de tais serviços impacta de forma mais intensa justamente os negros e as negras deste país. Conforme salientamos ao longo deste texto, o ideal é que as políticas de discriminação positiva ocorram num contexto de crescimento da economia e do escopo das políticas sociais, de forma que as medidas distributivistas aconteçam no mesmo compasso do crescimento da renda e do bem-estar de toda a população brasileira. Assim, medidas focadas (no sentido bem compreendido do termo), devem ser associadas a medidas de caráter mais geral (universais), sabendo-se que estas últimas deverão elas mesmas ser feitas com plena noção de que dificilmente serão universalizadas da noite para o dia, mas adotadas sob restrições orçamentárias de diversos tipos e que incidirão num meio de gritantes abismos socioraciais. Ou seja, as ações afirmativas e as políticas de caráter universalista devem ser vistas como complementares, pois ambas devem concorrer para superar antigas assimetrias, tanto as sociais como um todo quanto aquelas entre negros e brancos no Brasil. Entendemos que o combate às desigualdades raciais faz parte da família (uma das principais) de temas que perfazem o conjunto do que poderíamos entender como uma agenda de consolidação e aprofundamento da democracia em nosso país. Assim, dialeticamente, o aprofundamento da democracia no Brasil passa pela promoção das condições de vida da população afrodescendente, do mesmo modo que o incremento da qualidade de vida dos negros e negras requer a realização de uma série de medidas que tragam o desenvolvimento econômico, a distribuição de renda, da terra e do acesso à mídia, o controle cidadão do aparato judiciário e repressivo e a soberania do país em relação aos organismos financeiros multilaterais. Por esse 135
VI. Os 120 anos da abolição da escravatura
motivo, as ações afirmativas voltadas para a promoção da qualidade de vida dos afrodescendentes entram pela porta da frente na História do Brasil, correspondendo a um muito justo reclamo das antigas e das futuras gerações desta nação. Afinal, espelhando a célebre frase de Flávio Gomes e João José Reis, no Brasil, foram os negros, e as negras, que fundaram a palavra, e o seu correspondente significado, de liberdade.
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VII. Mundo
Autores Alfredo Reichlin
Ex-membro da secretaria, da direção e do comitê central do PCI, além de responsável pelo Departamento Econômico e ministro do “governo sombra” daquele mesmo partido. Seria em seguida presidente da Direção Nacional dos DS e da Fondazione Cespe – Centro Studi di Politica Economica (função que desempenha atualmente). Presidiu a comissão responsável pela redação da recente “Carta de valores” do Partido Democrático.
Jesús Ortega Martínez
Ex-senador da República no México, quando presidiu a Comissão de Relações Exteriores (2000-2006), foi coordenador da campanha presidencial de Lopez Obrador, em 2006, e é candidato à presidência do PRD.
Fernando de la Cuadra
Sociólogo chileno. Membro da Rede Universitária de Pesquisadores sobre América Latina (RUPAL). www.fmdelacuadra.blogspot.com/
O voto italiano e o Partido Democrático Alfredo Reichlin
C
om o voto de 13 de abril, fechou-se um ciclo político. A simplificação do quadro político aconteceu, e isso é positivo. É boa coisa ter enxugado aquele enxame de 20-30 pequenos partidos, que haviam reduzido a decisão democrática a uma negociação infinita. E é fundamental que este terremoto, que também abalou uma velha esquerda que continua a se dividir, não tenha atingido o verdadeiro coração da esquerda italiana, aquele patrimônio político e moral que foi e continua a ser o mais forte baluarte de uma democracia difícil, bem como aquela cultura que sempre conjugou o caminho das classes trabalhadoras com o interesse nacional. Pelo contrário. Desta jornada — que certamente não foi uma boa jornada para a democracia — o Partido Democrático emerge como o partido que, com todos os seus limites e as dificuldades da situação, representa a força unitária, reformista e de governo que a Itália até hoje não teve. Agora, esta força existe. Amealhou um terço dos votos, implantou-se sobretudo nas cidades, mobilizou e organizou forças, suscitou paixões. Pode-se dizer o que se quiser, mas a realidade é que o PD não é um fato midiático e reencontrou sua gente. Agora, a atenção deve se concentrar na leitura do país tal como se revelou pelo voto. A realidade das coisas supera os esquemas dos politólogos. Começaria assim por observar que, quando um persona139
VII. Mundo
gem como Berlusconi, que surgiu no distante 1994, volta pela terceira vez ao Palácio Chigi, isso significa que não se trata de um episódio anômalo. É o sinal de uma época que, como tal, deve ser julgada (para fins de memória, o que os historiadores chamam “a era giolittiana” durou menos de dez anos, e o “degasperismo” durou menos ainda). É o sinal de uma condição do país. Mas tomemos cuidado com os lugares-comuns. Berlusconi não venceu no Norte. A verdade é que, no Norte (sem calcular a Emília), a distância entre PDL (Força Itália + Aliança Nacional) e o PD se reduziu a 32,1 contra 29,3%. Estamos quase empatados. No Sul é que o “senhor de Milão” triunfa (45 contra 31,5%). A grande novidade do Norte é a Liga, que dobra seus votos. Mas de quem os toma? Quase todos (mais de um milhão) do partido de Berlusconi. Além dos números, o fato verdadeiro, que dá muito o que pensar, é o sentimento das pessoas (inclusive os operários), é a desconfiança na esquerda e nos sindicatos que se percebe. E a razão disso, creio, não está só nos nossos erros, mas no fato de que uma parte crescente da sociedade não se sente ajudada pelo modo atual de ser do Estado democrático italiano, que não contribui para as pessoas enfrentarem os desafios e os custos da internacionalização. É, pois, o grande problema da democracia moderna que nos diz respeito e que, na Itália, se agrava com a particular ineficiência do nosso Estado. É evidente, pois, que devemos nos enraizar no território, mas um grande partido deve saber que a resposta ao desafio do mundo novo está em outra parte. Por isso, não creio que a situação tenha se estabilizado. O fato de que a Liga tenha tomado não os nossos votos, mas os de Berlusconi, está abrindo um sério conflito no Vêneto, onde as forças do PDL, da Liga e as nossas quase se equivalem. Mas a tudo isso deve-se acrescentar a situação do Sul, que é grave, porque o sistema de clientela e o de negócios escusos se reforçaram. Observo os recém-eleitos e me pergunto quem será capaz de não apenas demandar favores, e sim reapresentar a questão meridional não como um problema territorial, mas como a maior questão não resolvida da nação. Todos falam de competitividade. Mas continuo a me perguntar como os italianos (inclusive os do Norte) pensam em enfrentar os desafios do mundo novo e da finança global, se não tiverem por trás de si um Estado diferente, mas unitário. Este me parece o grande tema que emerge do voto. A crise da nação. Se é assim, o dilema — esclareçamos este ponto — não é se a Itália vai se integrar ao mundo (é lógico que sim: as exportações aumentam), mas como vai fazê-lo. Se o fará reorganizando o imenso 140
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O voto italiano e o Partido Democrático
patrimônio civil e cultural da nação, o papel do Estado moderno, as novas redes de conhecimento, dos serviços e do capital social, de Siracusa a Bolzano, ou então se será empurrada pela lógica dos “poderes fortes” no sentido de uma secessão silenciosa. Se, em resumo, esta é a situação, por que o voto deveria criar desorientação? Os problemas são difíceis, mas tornam ainda mais clara a razão histórico-política do PD. E, portanto, também a sua capacidade expansiva potencial além dos limites da soma DS–Margarida. Porque só se fazem alianças em torno das grandes questões. E não iremos a parte alguma, se não soubermos em que mundo grande e terrível se desenrola agora a política italiana. Fazem rir certas polêmicas sobre o moderantismo. Creio ser muito importante o fato de que exista no cenário italiano um partido da nação. Este não é um velho estribilho. Chamo de partido nacional uma força que não se fecha na província italiana e não se defende do mundo, mas, ao contrário, se considera parte integrante da construção da potência supranacional européia. E só o é, na medida em que for capaz de valorizar toda a grande península que se projeta sobre o Mediterrâneo e no sentido do Oriente. Só em tais bases é que se pode repropor um pacto unitário em Milão e em Palermo. Por isso, sejam bem-vindas as novas análises sobre a “questão setentrional”. Dêem-se ao partido estruturas federais. Porque, no fim das contas, só um forte pensamento histórico-político pode explicar por que se está esgarçando deste modo o tecido identitário da nação e se está esfarinhando o que era uma sociedade de cidadãos, certamente dividida entre ricos e pobres, mas reunida por leis e direitos iguais e por instituições respeitadas. Este não é um problema econômico ou territorial. E há anos o discutimos. É óbvio que a crise italiana também é econômica, mas continuo a pensar que é, essencialmente, a crise de uma nação. Esta perde identidade por uma razão muito séria: porque não conseguiu superar um desafio que dizia respeito à sua história. Este desafio tem uma data. É a entrada na moeda única e na economia globalizada. O país atravessava um limiar que punha em discussão toda a sua estrutura de economia mista e de forma estatal fraca. Atenção: não só os déficits das finanças públicas, mas toda a sua constituição material, tudo o que existe antes e depois da produção das mercadorias: desde os serviços, a administração pública, a escola, o tipo de compromisso entre Norte e Sul, entre quem está exposto ao mercado e quem está protegido pelo Estado, até a política exterior.
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VII. Mundo
Eis onde perdemos uma batalha fundamental na luta pela hegemonia. Era preciso fazer grandes reformas, produzir idéias originais e não só variantes do “pensamento único” imposto pelos bem-pensantes. Falo de idéias como as elaboradas por personagens de modo algum subversivos, como Beneduce, Mattei, Di Vittorio, Vanoni, Saraceno. Decerto, estes homens operaram em outro tempo. Mas eles não acreditaram nunca que, para fazer a Itália do “milagre”, bastava entregarse ao mercado. Nunca confundiram banqueiros com estadistas. A verdade é que se criou um vazio, e isso é que abriu o caminho seja para a Liga, seja para o voto siciliano. Mas o voto não criou uma nova hegemonia. O problema estratégico do reformismo italiano é como redefinir o perfil e a forma de Estado com que o país se integra ao mundo. Este problema continua aberto. Logo, é inútil ficar lambendo as feridas. Finalmente, temos um sujeito político pós-novecentista capaz de enfrentar este problema. Veltroni terá esta ambição? Acredito, espero que sim. De outro modo, assistiremos ao paradoxo de que Tremonti1*, e não a esquerda, é quem explicará às pessoas atemorizadas que o modelo liberista do capitalismo global já é coisa do passado. (Fontes: L’Unità & Gramsci e o Brasil. Tradução: Josimar Teixeira)
1 Giulio Tremonti, político e economista da direita italiana, autor de um best-seller econômico, La paura e la speranza. Europa: la crisi globale che si avvicina e la via per superarla (Milão: Mondadori, 2008).
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As causas da crise no PRD Jesús Ortega Martínez
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inguém, em sã consciência, poderia negar que as eleições do Partido da Revolução Democrática, com sua problemática amplamente assinalada e difundida, tornam evidente a existência de uma crise profunda no interior deste nosso partido. Vários elementos estão contribuindo para esta crise, tais como uma legislação estatutária obsoleta, inadequada para um partido de milhões de filiados; uma normatização eleitoral interna rudimentar e desconexa; a existência de uma presidência nacional, direções estatais e municipais débeis. Na maioria dos casos, sem autoridade, isoladas dos militantes e afastadas da institucionalidade partidária; um estatuto que, por ausência de vontade, não se aplica ou, mesmo com ela, em não poucos casos, impossível de aplicar (por exemplo: todos os filiados devem “militar” em um comitê de base). A existência de correntes políticas internas que, em não poucas ocasiões, se sobrepõem à institucionalidade partidária e que, ademais, estão insuficientemente regulamentadas; a ausência de ações e de espaços para a educação e a formação políticas dos filiados; o afastamento de muitos companheiros dos princípios éticos do partido e o viés, entre os funcionários e representantes eleitos, da aplicação de nosso programa. Tudo isto é real e seguramente existirão outras causas igualmente importantes. Mas acima de todas as anteriores e sem querer menosprezar alguma destas, existe outra causa fundamental da crise do PRD, que mesmo observada e apalpada no cotidiano, sabendo-se de sua existência, mas, por diversas razões, seu pleno reconhecimento é evitado. As diferenças profundas existentes entre os principais dirigentes sobre o tipo de organização que deve ter nosso partido, sobre sua estratégia e sobre o tipo de esquerda que o país necessita são a causa fundamental da crise do PRD. É preciso reconhecer que existem claramente duas perspectivas principais sobre estas definições cardinais e estas se encontram, agora mesmo e no marco de nossa eleição interna, numa franca e aberta confrontação. Tais contradições e diferenças, de fato, não são novas e todos sabem de sua existência desde as próprias origens do PRD, como também sabem que se haviam mantido silenciosas e subterrâ143
VII. Mundo
neas devido, principalmente, a duas razões: a primeira, a hegemonia quase inquestionável estabelecida indistintamente no interior do partido, durante quase 18 anos, pela liderança de Cuauhtémoc Cárdenas e Andrés Manuel López Obrador; e a segunda: a permanente esperança dos perredistas – renovada cada seis anos – de ganhar a Presidência da República. Agora, estes dois elementos, que antes eram fator de coesão, por diversas razões se enfraqueceram e as diferenças que se encontravam soterradas brotam, aberta e ruidosamente, confrontadas sem matizes, e cada qual com apreciações diferentes sobre a caracterização da natureza do partido, sobre o papel que este deve exercer na sociedade mexicana, sobre as estratégias a serem aplicadas e sobre o programa que deveria ser implementado. Essencialmente, é nestes pontos que se situam as diferenças e estas últimas, expostas, como fraturas abertas, são a causa de nossa crise. Uma destas duas concepções contrapostas, a dos democratas de esquerda com a qual eu me identifico junto com muitos dirigentes e militantes, tem pretendido, desde há vários anos, que o PRD se reconheça a si próprio como uma organização plural e democrática, em que participam e convivem mulheres e homens livres, que têm e defendem diversas idéias e posicionamentos políticos sobre a esquerda. Sabemos que o PRD, desde sua origem, rompeu com a ortodoxia dos partidos socialistas e marxistas anteriormente existentes em nosso país e conseqüentemente enfrentou, com tranqüilidade e audácia, qualquer propósito de uniformidade ideológica e doutrinária. Como se sabe, no processo de formação do PRD participaram dezenas de milhares de pessoas e múltiplos agrupamentos sociais e políticos com as mais diversas concepções da esquerda. É sabido que na origem do PRD estiveram presentes militantes de partidos e organizações que se assumiam como marxistas, maoístas, social-democratas, socialistas, comunistas, liberais democratas, nacionalistas revolucionários; participaram também cidadãos que, anos antes, haviam participado na luta armada e outros que não haviam participado de nenhum agrupamento político. O que motivou a todos eles, na formação do PRD, à margem de suas experiências políticas anteriores, foi o grande movimento cívico e democrático de 1988 e o alento da expectativa e da necessidade de mudanças profundas na vida do país. Assim, o PRD, mais que um partido constituído na ortodoxia, nasceu como uma grande frente de partidos, de organizações e de cidadãos, convencidos todos da urgência de transformações sociais e democráticas. 144
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Em vários sentidos, o nascimento do PRD, foi, e continua sendo, conseqüência de um longo e frutífero processo de unidade das mais diversas esquerdas mexicanas. O PRD, temos insistido, não é um partido “clássico”; é, melhor dizer, uma frente plural, uma organização horizontal, que agrupa e propicia a coesão de diversas esquerdas que têm atuado e atuam na luta e na ação política no México. Esta concepção original e nova do PRD, que foi a que permitiu e alentou seu crescimento extraordinário, está sendo confrontada agora sem rodeios, especialmente no marco da eleição interna, pela outra concepção radicalmente diferente: esta é uma visão, por um lado patrimonialista, hegemonista e, pelo outro, autoritariamente homogeneizadora. Seriam muitos as declarações e os comportamentos que confirmariam essa tentativa homogeneizadora e estreita, mas bastaria que recordássemos uma posição recente, quando dizem que no PRD não cabem aqueles a quem qualificam como “moderados”. Frente a essa posição, vale a pena nos questionarmos, todos os perredistas: O PRD é só para os que se assumem radicais? O PRD é um partido de pensamento único, homogêneo? Na esquerda internacional tem sido antigo e intenso o debate, por exemplo, entre “reforma” e “revolução”. Esse tema dividiu a esquerda no mundo e a partir disso se constituíram, principalmente, dois grandes blocos – os comunistas e os social-democratas – que durante mais de um século mantiveram posições irreconciliáveis. Isso, felizmente vem mudando, (a tolerância vem se impondo) e, durante as últimas décadas, agora podemos vê-lo freqüentemente, se estabelecem alianças políticas e eleitorais entre agrupamentos em que participa a centro-esquerda, os comunistas, os socialistas, o centro, etc. Muitas das frentes eleitorais de esquerda que têm triunfado em muitos países, da Europa e da América Latina, aglutinam tanto a “reformistas” como a “radicais” e, entre ambos, a um amplo mosaico de forças com posições ideológicas distintas. No México, o debate entre “reforma” e “revolução” aparentemente havia sido superado, quando a esquerda socialista, sensata e inteligentemente (nossa homenagem a Martínez Verdugo e a Heberto Castillo, entre muitos) se decidiu a participar na luta e no debate parlamentar e, conseqüentemente, a participar na luta pelo poder, pela via democrática e eleitoral. A partir disso, a esquerda saiu da marginalidade, do mero testemunho, para converter-se em uma força influente e determinante do rumo do país. Em apenas 25 anos, a esquerda mexicana se converteu, apesar das escandalosas fraudes de 1988 e de 2006, na segunda força política e com importantes 145
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posições de governo ao longo do território nacional. Esse antigo, e sobretudo agora, inútil debate de “reformistas” vs. “revolucionários” é restabelecido no PRD, ao tirar do sarcófago um debate ainda mais velho, entre os “puros” vs. os “moderados” do partido liberal do século XIX! E é bom, a propósito do século XIX, recordar o que dizia Karl Marx quando analisava as revoluções desse século. Este revolucionário e radical por antonomásia dizia: “A revolução (do século XIX, a do seu tempo) não pode extrair sua lírica do passado, mas unicamente do futuro. Não pode iniciar sua tarefa, antes de desfazer-se de toda adoração supersticiosa do passado. As revoluções prévias necessitavam remontar-se às recordações da história para admirar-se com seu próprio conteúdo. A revolução do século XIX deve permitir que os mortos enterrem a seus mortos, para conscientizar-se de seu próprio conteúdo. Ali a frase transborda o conteúdo, aqui o conteúdo transborda a frase”. A crise do partido e, de certo modo, também a do país, alguns querem resolvê-la escavando nas tumbas, conjurando os espíritos do passado, tomando emprestadas suas roupagens, suas frases, suas palavras de ordem. Uma parte dos atores políticos do partido, os conservadores de esquerda, padece de uma espécie de misoneísmo, isto é, de um transtorno psíquico que provoca terror e angústia frente ao inédito. Padecem, para dizê-lo de outra forma, de uma obsessão pelo passado que lhes impede encontrar respostas novas ante as novas realidades do país e do mundo. Nesse culto ao antigo (da mesma forma que no culto à personalidade) se encontra uma parte da explicação da crise do PRD. Existe uma facção profundamente conservadora que rechaça por palavra de ordem, mecanicamente, qualquer tentativa de contemporizar e de atualizar o partido frente às novas realidades. Por isso, quando se fala da necessidade de modernizar a esquerda, de adequar aos novos tempos seus conceitos e idéias, seu programa, a reação imediata desses conservadores da esquerda, sempre disfarçados de “radicais”, é qualificar dita modernização de “traição aos princípios”. Pretender um PRD só para os chamados ou autodenominados “radicais”, é precisamente encontrar a frase ou a palavra de ordem que abafa o conteúdo e só evidencia uma atitude sectária e excludente que, evidentemente, rompe com a natureza ampla e diversa do PRD e altera a própria razão de sua origem plural e democrática.
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Este sectarismo tem a ver com o fato de que alguns dirigentes do partido e da esquerda, em seu fundamentalismo, resistem em entender que nosso país, para além de uma esquemática e dogmática divisão em classes, é um mosaico de pluralidade e diversidade, em que convivem pessoas que têm interesses diferentes – a maioria legítimos -, culturas distintas, preferências, gêneros e origens diversas e, portanto, pensamentos políticos e religiosos heterogêneos. Isto que parece tão óbvio, não o é tanto para uma parte dos dirigentes do PRD, uma vez que entre estes persiste a intenção de impor um pensamento homogêneo para a sociedade e antes, naturalmente, para o partido. Assim, qualquer diferença com sua ideologia ou com sua inclinação política (e até com sua preferência sexual) a classificam como heresia e a qualificam como traição (ou desvio, conforme o caso, pois os intolerantes o são na política e em qualquer outro tema). Este assunto, o de não reconhecer, por parte de alguns dirigentes principais do PRD, a liberdade de pensamento e o direito à diferença, no partido e no país, é outro dos elementos que está no centro de nossa crise partidária. Por isso mesmo, estes intolerantes resistem ao confronto das idéias e ao debate das propostas no próprio seio do partido e com outros setores da sociedade. Um exemplo disso é a palavra de ordem dirigida aos parlamentares do partido e aos da Frente Ampla Progressista, de ausentar-se do debate no Congresso da União. A tese dos militantes da “Esquerda Unida” assume que participar nos debates congressuais – não importa o tema a ser tratado – “legitima Calderón” e, em sentido contrário, debilita a “presidência legitima.” Por isso, se negam a discutir e menos ainda a aprovar a reforma eleitoral, ainda que esta seja das mais avançadas e radicais; sua resistência em discutir ou aprovar, no caso, o Orçamento da Federação, ainda que neste se incluam demandas fundamentais do programa social de nosso partido e da esquerda; ao negar-se a debater a questão do petróleo, ainda que do ponto de vista da esquerda tenhamos, por assim dizer, melhores propostas (naturalmente não privatizadoras) para utilizar este recurso energético em benefício do país e para o bem estar do povo. Contrário a esta tese da autoexclusão e da automarginalização, a esquerda democrática deve participar em todos os espaços do debate, para a confrontação com a direita, das idéias e dos programas. O PRD deve opor-se, como o tem feito, de maneira enérgica, às injustiças que se cometem contra qualquer cidadão e contra os abusos que se efetuam contra o país. Mas isso não é suficiente nem a única maneira, para transformar, na luta democrática, ao PRD em verdadeira 147
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alternativa de governo frente à direita. A esquerda deve ser propositiva; deve apresentar, pontual e nitidamente, suas propostas para atender à problemática nacional e, igualmente, suas respostas para resolver as demandas da população. A esquerda está, criticamente, contra o status quo imperante de desigualdade, pobreza e corrupção, mas deve, se quer derrotar nas urnas a direita e aceder ao governo, derrotá-la também no terreno das idéias. Portanto, essas teses da autoexclusão e da automarginalização são claramente errôneas, não só do ponto de vista da estratégia política, mas, além disso são aberrantemente incongruentes com o ideário e o pensamento crítico e propositivo da esquerda. O PRD, para ganhar a simpatia e o apoio da população e dos eleitores, deve sacudir a imagem de um partido que só serve para destruir o imperante, para opor-se ao existente. É claro que a crítica ao status quo é parte da essência de ser de esquerda mas, também, talvez mais importante, deve ser uma esquerda moderna e democrática, que necessariamente contribui para construir o novo. A essência do revolucionário não está em só acabar com o antigo e o velho, mas em construir o novo. A esquerda não se abrevia ao rancor e à vingança, se sintetiza, pelo contrário, na crítica propositiva, na oposição alternativa. Essas duas forças do PRD também estão se enfrentando em um assunto fundamental, que é a democracia e o poder. Entre os conservadores do PRD, agrupados na “Esquerda Unida”, viceja a perniciosa idéia de que a democracia é apenas um objetivo para alcançar em algum momento, talvez (?) quando alcancemos o governo. Crêem, portanto, que a democracia é prescindível na vida interna do partido e na prática política diária. O importante, dizem estes conservadores, é chegar ao poder para transformar a realidade e não importam tanto os meios que se utilizem. Essa fórmula já foi utilizada antes pela velha esquerda autoritária e o resultado foi desastroso para o próprio prestígio da esquerda e o foi, em sentido amplo, para a humanidade. Depois de tanto tempo, a esquerda, e particularmente o PRD, deveria ter entendido de forma cabal que o stalinismo é uma ditadura do opróbio, ainda que em nome do povo. Não tem sido assim e não faltam, ativos e entusiastas seguidores do georgiano. Quantos militantes do extinto PCUS foram anatemizados, estigmatizados, censurados, exilados, assassinados, apenas pelo fato de pensar diferente do “líder sacrossanto”? Quantos injustamente castigados, pelo mesmo motivo, na revolução cultural de Mao? Quantos pelo impiedoso Pol Pot ou por Ceauceuscu? Pois bem, apesar de tão infausta expe148
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riência, alguns dos pequenos Stalin que temos no PRD insistem em reeditar, no próprio partido, sua versão perversa dos “processos de Moscou”, isto é, todo dirigente perredista que não concorda com o pensamento do líder, ou que se atreva a criticá-lo será, e assim o estão fazendo, considerado como sacrílego, apóstata, agente da direita e, em conseqüência, acusado como traidor. A esta concepção insana, autoritária, tão daninha para a percepção dos cidadãos sobre o PRD e sobre toda a esquerda, os democratas de esquerda estão se opondo desde já, sem mais concessões, o arrazoado e a noção de um partido no qual a democracia é parte substan tiva, formativa e organizativa, de nossa identidade de esquerda. A democracia que implica, necessariamente, a liberdade de pensamento, de expressão, de crítica, de associação, etc; que implica a criação e consolidação de instituições que tenham vigência permanente e reflexão coletiva para as definições políticas; a democracia que implica o rechaço a qualquer forma de discriminação e de intolerância; que implica o rechaço às formas de poder autoritário e unipersonalizado e que rechaça qualquer manifestação de caudilhismo (mesmo que se trate daquele que se apresente com “boas intenções”). Também no centro da atual disputa no interior do partido se encontra uma definição fundamental sobre o tipo de regime político para o país e o tipo de regime necessário para a condução do próprio PRD. Trata-se de decidir, para o país, entre um sistema republicano de verdadeiro equilíbrio de poderes ou manter o autoritário regime presidencialista que, sabemos, é essencialmente antidemocrático. Aos conservadores da esquerda, lhes continua pesando, do mesmo modo que à direita panista e priista, uma visão profundamente reacionária sobre o tema do exercício do poder. Não querem nenhuma mudança estrutural sobre o regime presidencialista atual e no fundo, todos eles, continuam pensando que o problema fundamental do país está circunscrito a quem é o personagem que ocupa o “poder supremo”. Esta visão conservadora esquece que o conteúdo substantivo de nossa problemática como país continua sendo a existência de uma crise estrutural do sistema político, de concentração unipessoal do poder político, do presidencialismo. Existe uma diferença fundamental no interior do PRD a respeito deste ponto. Para nós, os democratas de esquerda, a transição democrática do país passa pela construção de um novo regime político em que o poder se redistribua, se descentralize e se democratize. Esta diferença a respeito do poder no país se reflete, naturalmente, para o interior do partido.
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Enquanto a velha esquerda conservadora insiste em um tipo de partido com mando único e unipessoal e que nem sequer é o presidente formal do partido (“aqui despacha o presidente, mas o que manda vive em frente”), a esquerda renovadora e democrática propõe um PRD de instituições permanentes, atuantes, coletivas, respeitosas da legalidade interna e constitucional, ajustadas ao cumprimento de nossos princípios e programa. Por isso os conservadores no interior do partido rechaçam a proposta programática de que a transição democrática para o país implica, necessariamente, passar do presidencialismo autoritário ao regime republicano de equilíbrio e separação entre os poderes; implica passar à vigência de instituições democráticas e sujeitas à legalidade constitucional. Mas assim como rechaçam esta proposta verdadeiramente transformadora para o país, também o rechaçam para o partido, porque neste a mudança verdadeiramente substantiva significa passar do sistema do caudilho ao partido das instituições plurais, das direções coletivas, das normas democráticas e libertárias.
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América Latina: A política social sem politica Fernando de la Cuadra
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em nenhuma dúvida, a partir da consagrada falência do modelo neoliberal para resolver os entraves do desenvolvimento e melhorar as condições de vida da população latinoamericana mais carente por meio de políticas focalizadas e compensatórias, o empenho colocado para a erradicação da pobreza e os debates associados à problemática social têm-se reposicionado num lugar prioritário dentre os temas da agenda governamental da ampla maioria dos países da região. Este propósito resulta ainda mais relevante na medida em que nos últimos anos um número importante de coalizões de esquerda ou de perfil progressista foram eleitas para conduzir os destinos dos paises na América do Sul.1 Sem prejuízo das inúmeras tipologias que se puderam elaborar para caracterizar os governos que chegaram ao poder recentemente, podemos afirmar que um aspecto em comum a quase todos eles é sua declarada prioridade por resolver a iniqüidade e a pobreza que continua sendo, sem distinção, a principal causa da frustração e do descontentamento das populações. Em efeito, o aumento da proteção social representa um tema prioritário na agenda das variadas administrações, considerando precisamente esta “sensibilidade” de esquerda de um número expressivo de mandatários, excetuando-se o presidente colombiano Álvaro Uribe, que se autoqualifica de conservador. Esta ênfase na “questão social” ficou bastante evidente na declaração final da Cúpula Ibero-americana, em que se explicita que o motivo principal da reunião consistiu em pensar e elaborar coletivamente os caminhos para empreender ações integradas de luta contra a pobreza e a desigualdade. Além dos riscos demagógicos de praxe, esta definição constitui uma afirmação de princípios irreprocháveis em prol de sociedades mais justas e inclusivas no hemisfério. Ou seja, agora algumas afirmações que possuem um forte impacto 1 Afirmamos isto, sem entrar no mérito da discussão a respeito do que significa ser na atualidade socialista ou de esquerda no mundo e na América Latina, o que daria assunto para um outro artigo.
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comunicacional,2 assinalamos que, como nunca, o momento é tão propício para gerar expectativas positivas em torno dos esforços que deviam realizar tais governos no combate à pobreza e na procura de uma maior integração social. O passo agora é fortalecer o bloco de países através da formatação da União Sul-americana de Nações (Unasul), que terá sua sede em Quito, Equador. A postura inicial dos membros da Unasul é dar prioridade aos temas sociais, com uma iniciativa específica de criar o “observatório social” que brinde informação mensal precisa sobre indicadores sociais (pobreza, saúde, educação) de cada um dos doze países integrantes do bloco, para que esteja à disposição dos cidadãos. Reforçando esta expectativa, no mais recente informe do Panorama Social de América Latina, elaborado pela CEPAL, constata-se que na sua grande maioria os países têm mantido um volume expressivo de recursos destinados a cobrir as necessidades sociais da população. Segundo este organismo, a evolução recente do gasto público social indica que “a tendência a alocar maiores recursos públicos às políticas sociais se detém, mas não se reverte, o que oferece garantias de financiamento, estabilidade e maior legitimidade institucional à política social”. (CEPAL, 2007, p. 2). Os níveis de gasto público social aumentaram quase 10 % entre 2002/2003 e 2004/2005, alcançando a 660 dólares per capita. Há, porém, enormes diferenças entre países. O gasto por habitante é 15 vezes maior entre o país que mais gasta (Argentina) e o que menos o faz (Nicarágua). Doze dos vinte um países analisados gastam menos de 350 dólares per capita anuais, seis gastam entre 550 e 870 dólares per capita, e somente dois superam os 1000 dólares de gasto anual por pessoa. Se bem as cifras proporcionadas pela Cepal permitam constatar um aumento do gasto social durante os últimos 15 anos, elas também permitem vislumbrar que a situação de pobreza e indigência observada em quase todos os países não se tem modificado substancialmente. Daí surge a pergunta, se os governos em geral têm aumentado seus gastos sociais, por que os resultados na superação da pobreza são tão exíguos e a distribuição da renda continua sendo crescentemente desigual? Diferentes respostas se têm formulado a esta pergunta. Um primeiro argumento assinala que existem determinantes estruturais 2 Por exemplo, pode-se recorrer à difundida frase de Rafael Correa, que afirmou no seu discurso ao assumir a presidência do Equador que “a América Latina não está vivendo uma época de mudança, mas estamos vivendo uma mudança de época...”
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América Latina: A política social sem política
que impedem que os esforços realizados em termos de aumento do gasto social tenham um impacto significativo entre os grupos mais carentes. Restrições patrimoniais, educacionais, demográficas, ocupacionais e de remunerações são levantadas como obstáculos para a obtenção de resultados com sucesso nos programas de superação da pobreza e no acesso aos serviços sociais. Além do mais, os países não somente devem lidar com as diferenças de distribuição de renda expressiva de suas estruturas econômicas, como também a distribuição dos gastos sociais na saúde, educação e seguridade social se realiza de forma desigual, favorecendo as camadas de maior renda. Com efeito, de acordo com algumas pesquisas, a distribuição destes gastos não se dá em forma progressiva (quer dizer, é maior o gasto entre os percentuais mais pobres), com o que tal aumento não redundou em benefícios diretos às famílias mais necessitadas 3 Em segundo lugar, estes esforços continuam fortemente subordinados ao nível de desenvolvimento alcançado e, em muitos casos, associado às baixas cargas tributárias, o que torna insuficiente o volume de gasto público social em vários países da região. Além disso, a maioria dos governos continua sem aplicar políticas anticíclicas, o que não permite gerar uma dinâmica de compensação de riscos sociais ante situações de contração na atividade econômica e diminui a capacidade pública para manter um sistema de proteção social para a população mais vulnerável. Um terceiro argumento afirma que as políticas sociais não têm tido a repercussão desejada devido ao tipo de gestão tradicional e à aplicação concreta que se realiza do gasto social, colocando ênfase nas metas de execução do orçamento, a entrega de bens e/ou serviços a partir de parâmetros quantitativos, desestimulando a importância de determinar, em primeiro lugar, a quantidade e a qualidade dos produtos que devia contemplar um programa social. Junto com isso, aspectos relativos à ausência ou debilidade na avaliação de impacto das ações e na continuidade do gasto são considerados como um fator que compromete a efetividade dos programas. (Cohen, 2005).
Onde se encontra a dimensão política na política social? Sem subestimar a validade dos motivos apontados, nos inclinamos por uma interpretação diferente das anteriores. Em nosso entender, 3 Tal como demonstra o citado informe da Cepal ou a pesquisa realizada por Julia Sant´Anna, do Observatório Político Sul-Americano, “Governos de esquerda e o gasto social na América do Sul”, Iuperj, Observador On-line, vol. 2, n° 2, fev. 2007.
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o problema crucial está na ausência de conteúdo político da política social, quer dizer, o que está em debate é uma definição sobre qual é o locus do “político” na construção de respostas à problemática social e à luta contra a pobreza e a exclusão. Este desconhecimento da dimensão política concebe a solução da questão social como um exclusivo problema técnico de oferta de bens e serviços sociais a um grupo de “beneficiários”. Por isto é que se fala, em muitos casos, de gerência social, tratando de incorporar os critérios empresariais à gestão dos programas sociais, como se o êxito de tais programas dependesse da eficácia e eficiência na alocação do gasto. E os grupos “beneficiários” aparecem como entes passivos que devem ser objeto da política, reduzindo em definitivo os setores mais desprovidos a uma condição de meros receptáculos passivos dos programas sociais. Há exatamente cinqüenta anos, Hannah Arendt nos advertia sobre os riscos que traz a falta de distinção entre o espaço do social com o âmbito político. (ARENDT, 2005). Para esta autora, a origem da confusão encontrar-se-ia na tradução latina do conceito aristotélico de zoon politikon como animal social, a qual incorpora uma atividade própria do espaço laboral e familiar que, por certo, é diferente do lugar da polis onde o homem trata dos assuntos alheios ao estritamente privado e familiar, e passando a ocupar-se com questões que dizem respeito ao conjunto da comunidade que se congrega em torno de um território (Cidade-estado). Nesse sentido, o propósito da filósofa alemã é, sobretudo, definir uma especificidade do político que o diferencia em particular do “social”. Em síntese, a perspectiva arendtiana nos alerta para os perigos de misturar as duas esferas, pois dessa maneira o privado/ doméstico pode irromper na esfera da política, estabelecendo-se um problemático acoplamento entre ambas e gerando-se com isso um domínio do político-social que termina subordinando e pervertendo a política. (GARCIA DE LA HUERTA, 2003). O anterior nos pode levar a pensar erroneamente que os conflitos experimentados pelas sociedades modernas se extinguem com a simples solução da questão social, abdicando da dimensão política de todo o processo. Se os recursos da política se eliminam na solução da problemática social e nos programas de superação da pobreza, a própria dimensão política associada a dito esforço deixa de ter sentido. A solução do social passa a ser instrumental, uma questão de método, esvaziando-se em si mesma e depreciando seu caráter político. Em outras palavras, a questão social transformada em tema crucial leva o principio da demanda mercantil à esfera pública, transforma-o em
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instancia resolutiva sob a forma consolidada de gerenciamento social e prática administrativa. A partir desta concepção instrumental do social, o cidadão é percebido como um cliente da política, despojando-o de seu importante e imprescindível papel na construção do debate sobre os assuntos públicos. A dimensão política da sociedade se confunde com a emergência da política social destinada a responder aos apelos da cidadania, demandas que se encontram circunscritas ao âmbito das carências domésticas, privadas e familiares que enfrentam determinados setores da sociedade. Desta forma, a política é deslocada para outro campo (das necessidades econômicas) resolvido através da intervenção social, sendo que sua função como “abertura do mundo e lugar de debate sobre questões fundamentais, fica enclausurada, convertida em mero assunto de gestão e gerência, na simples administração das coisas.” (idem, p. 57). Adicionalmente, um desdobramento desta questão consiste na revogação das responsabilidades do Estado para com seus cidadãos, delegando para o mercado ou para o chamado terceiro setor muitas daquelas funções prioritárias para a superação da pobreza e da exclusão social. Tanto a estratégia baseada no empreendedorismo dos agentes, quanto a forma do assistencialismo misericordioso, representam, em palavras de uma autora, os alicerces de uma “nova concepção de política social que tenta substituir o papel a ser desempenhado pelo supostamente jurássico Estado de bem-estar social e seu padrão universalista de proteção social.” (WERNECK VIANNA, 2007, p. 62). Somada a esta redefinição do papel do Estado, com o processo de redemocratização iniciado na região a partir dos anos oitenta, se alçam vozes que, influenciadas pelas perspectivas funcionalistas, enfatizam o caráter harmônico e consensual da transição democrática. A própria Cepal, que foi palco importante no debate sobre o conflito social e econômico na realidade latino-americana, inaugura uma nova fase do seu pensamento com um posicionamento que estabelece uma espécie de renúncia a todos os postulados que marcaram sua reflexão nos anos 40 e 50. A ausência da temática do conflito aparece nessas posteriores elaborações como uma forma de estabelecer a diferença. Num documento desta nova etapa, a Cepal (1990) conclui que durante os anos 80 a região passou por uma época de “aprendizagem dolorosa” e que, portanto, a experiência acumulada demonstraria que as divergências entre os diversos grupos deveriam ser superadas por meio do acordo e da conciliação. Ou seja, no âmbito político-social, esta aprendizagem parece supor que o fim dos governos democráticos deveu-se fundamentalmente ao fato de que as instituições 155
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foram ultrapassadas pela irrupção de inúmeras demandas surgidas desde o universo social, as que não puderam ser processadas pelo sistema político, dando lugar a crises de governabilidade e à conseqüente instauração das ditaduras militares.4 É indubitável que os governos e os múltiplos atores sociais e políticos que viveram a experiência “traumática” das ditaduras militares sentem-se inclinados a adotar uma postura mais conciliadora e consensual a respeito do futuro das nossas sociedades e das formas de resolver as disputas políticas durante a denominada etapa de transição e consolidação democrática. Em outras palavras, considerando a situação dos países do hemisfério é muito provável que certa desconfiança na praxis política e o pouco apreço pela participação cidadã tenha suas raízes no pesadelo autoritário sofrido por quase todos eles nesse período tenebroso da história contemporânea. Mas pelo contrário, a evidência empírica recompilada por inúmeros estudos continua demonstrando que a emergência de lutas sociais, as disputas pela prevalência de determinados interesses e, em suma, a existência dos conflitos, fazem parte do cotidiano e da própria dinâmica observada em todas as sociedades, sem distinção. Portanto, como parâmetro teórico e referência histórica, compartilhamos a mesma visão daquela corrente das ciências sociais que vê o conflito não como um agente desagregador da sociedade, mas que, pelo contrário, concebe o conflito como um fator inerente e parte indissolúvel das relações sociais, o qual, na maioria das vezes, contribui para o estabelecimento e consolidação dessas mesmas relações. Tal como foi salientado, já faz algum tempo, por Georg Simmel, o conflito está presente na relação entre indivíduo e sociedade, na medida em que esta última aspira a ser uma totalidade e uma unidade orgânica, e exige que o indivíduo represente um papel e uma função determinada. Por sua parte, o indivíduo se revela contra a imposição desse papel: “ele quer ser pleno em si mesmo, e não somente ajudar a sociedade a se tornar plena.” (SIMMEL, 2006, p. 84). Quer dizer, o conflito possui um caráter socializador na medida em que estabelece um vínculo entre o indivíduo e a sociedade e também estimula 4 Ainda que não seja explicitado pela CEPAL, este tipo de interpretação se nutre da noção de governabilidade sustentada por Samuel P. Huntington para quem a estabilidade política de um país se rompe quando não existe um marco institucional capaz de suportar o nível crescente de demandas dos atores sociais e políticos. Tal institucionalidade acaba sendo superada por setores ou grupos que irrompem com novas reivindicações no cenário nacional, levando ao colapso do sistema democrático. Desta forma, o problema da governabilidade da democracia aponta para os limites que o sistema deve impor aos seus cidadãos, para que os decorrentes “excessos” sejam devidamente controlados pela autoridade estatal. (Huntington, 1968).
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as relações sociais entre os diversos oponentes, sejam indivíduos ou coletividades. No seu devir, as partes desenvolvem regras de conduta e formas de expressão de suas divergências, num marco que estabelece limites sociais ao uso da violência extrema, evitando desta maneira que tal violência seja aplicada com a finalidade de destruir moral, psicológica ou fisicamente o seu contrário. Nesta mesma linha situa-se o enfoque “agonista”5 de Chantal Mouffe, quando manifesta que conceber o objetivo da política democrática em termos de consenso e reconciliação não só é conceitualmente errôneo, mas também implica sérios riscos políticos. “A aspiração de um mundo no qual se tenha superado a discriminação nós/eles baseia-se em suposições falsas, e aqueles que compartilham esta visão estão destinados a perder de vista a verdadeira tarefa que enfrenta a política democrática: elaborar um projeto que reconheça o caráter ambivalente da sociabilidade humana e o fato de que reciprocidade e hostilidade não podem ser dissociadas”. (MOUFFE, 2007, p. 13). De fato, a crença de que é possível alcançar um consenso racional universal tem empurrado o pensamento democrático para um caminho errôneo, já que só o reconhecimento de que é possível erradicar a dimensão conflitiva da vida social permitirá compreender o verdadeiro desafio que se enfrenta na política democrática. Para isso é preciso reconhecer a natureza conflitiva de nossas sociedades e, nesse sentido, o papel a ser desempenhado pela política democrática não consiste em superar esta confrontação por meio de um consenso aprioristico, mas de reconhecer o confronto como parte da atividade da política democrática. Pensamos que esta forma equivocada de pensar a política democrática tem permeado a ação dos governos, o que por sua vez impossibilita que os atores políticos percebam a importância das mobilizações e dos movimentos sociais na construção democrática. Isto se reflete no apelo permanente à conservação da governabilidade, numa espécie de consagração da harmonia e reconciliação entre os homens, desconhecendo o importante papel que possa vir a desempenhar o conflito nas relações sociais e na própria dinâmica dos paises. O anterior é particularmente válido para o caso do Chile, onde finalmente se impôs uma modalidade de conservadorismo sistêmico, 5 O conceito agonista significa que o conflito não supõe necessariamente a existência de posturas antagônicas e irreconciliáveis, pois ainda que se reconheça a legitimidade da controvérsia, o “outro” é percebido como um adversário e não como um inimigo ao qual tem que se derrotar a qualquer custo. Daí surge o dualismo antagonismo/agonismo que pretende superar aquela concepção do conflito que remete necessariamente à destruição ou eliminação do outro.
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VII. Mundo
político e moral, baseado no temor a qualquer forma de manifestação ou expressão de descontentamento, que ameace transbordar os marcos institucionais. (de la Cuadra, 2007). Esta perspectiva, que se retroalimenta numa visão mercantil e asséptica da problemática social, se recusa a reconhecer que existe um campo legítimo de disputas e conflitos que são parte constitutiva da ação política e, mais do que isso, da própria dinâmica social. Assim sendo, parece extemporânea a pretensão de algumas autoridades e cientistas políticos de construir sociedades baseadas na ordem social e em uma artificial integração social amparada na gestão eficiente dos tecnocratas de turno que tentam se antecipar e resolver as demandas dos cidadãos. Sob essa ótica, finalmente a solução da problemática social passa pela administração eficiente dos recursos do Estado visando à execução de ações focalizadas que procuram atingir, em primeira instancia, aqueles grupos com necessidades mais prementes. Nesse sentido, a principal preocupação de alguns governos latinoamericanos (Chile, Peru, Uruguai, Colômbia e diria também Brasil) parece orientar-se preferencialmente para o fortalecimento da governabilidade, estimulando os movimentos sociais a manter um baixo perfil na sua demanda ou ação contestatória. Diferente da noção conservadora, neste caso não existe nenhuma intenção explícita de limitar a expressão de dita demanda, porém agora se enfatiza o caráter “impróprio” que ela possui, em virtude da capacidade que tem a autoridade de se antecipar às necessidades do povo e desta forma oferecer as soluções mais rápidas e adequadas a cada situação particular. Assim, tais governos estariam munidos de equipes de especialistas e de um conjunto de estudos que permitiriam abordar, com efetividade e eficiência, as carências e dificuldades que atingem a população. É finalmente uma manifestação um tanto perversa da política das boas intenções. Tal parece que o caráter da inclusão democrática da cidadania se restringiria à credencial de “beneficiários” de programas sociais, em que a dimensão política dessa cidadania fica reduzida em seu apelo social e, por essa via, plenamente satisfeita. A participação democrática fica restrita à aceitação e legitimação da ordem institucional, e nela o funcionamento das instituições democráticas formais representa uma garantia para a sustentação do sistema social.
Reflexões finais A partir do aqui exposto, surge a dúvida a respeito de se o paradigma gerencial do Estado que incorpora as práticas de um melhor desempenho, além de ajudar a resolver os problemas sociais 158
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acumulados pode-se transformar, simultaneamente, num fator de legitimidade para o conjunto do sistema político democrático de um país. Acreditamos que este possa ser uma condição necessária, mas não suficiente para adquirir tal legitimidade. Esta deve ser produto de um processo bastante mais amplo de inclusão da cidadania no âmbito das deliberações e decisões sobre os assuntos de interesse público (res publica) que afetam suas vidas e as de suas comunidades de destino. Ainda que nos discursos oficiais muitos governos reconheçam a importância da participação cidadã, em alguns casos ela é pouco estimulada. No papel, assinala-se que os cidadãos devem participar ativamente na execução dos diversos programas e projetos, que os sistemas de controle e de prestação de contas das autoridades (accountability) representam um componente fundamental das democracias modernas ou que não se pode construir democracia sem a ingerência dos cidadãos. Contudo, em muitas oportunidades, os governos não têm desenhado fórmulas e canais consistentes para impulsionar a participação efetiva – que muitas vezes resulta inconveniente – das pessoas nas diversas arenas em que ela deve se expressar. Em certas ocasiões, a autoridade tem propiciado o desânimo por parte dos atores para representar seus interesses, baseando-se para isso na falsa concepção de que a participação é dispensável. Contudo, estamos cientes que muitos governos da região têm realizado esforços importantes no sentido de incorporar ativamente o componente participativo nas políticas públicas em geral, e em particular nas suas políticas sociais, em que participar significa em essência a possibilidade da população assumir um papel ativo no processo decisório das políticas. Por exemplo, as experiências desenvolvidas – especialmente pelos municípios – através de mecanismos como o Orçamento Participativo, o Sistema Único de Saúde (SUS), os Conselhos de Saúde Comunitária ou os Conselhos de Segurança Alimentar demonstram que, no caso brasileiro, tem havido estímulo à participação da cidadania não somente na esfera consultiva e fóruns de discussão, mas também nos diversos âmbitos deliberativos e nas respectivas arenas decisórias concernentes a cada política específica. De fato, estudos realizados têm demonstrado que a participação da população no desenho, gestão e avaliação dos programas sociais tem propiciado resultados muito superiores aos daqueles programas em que estes se implementaram de cima para baixo, com um critério hierárquico, vertical e burocrático (KLIGSBERG, 2000). Resumindo, sustentamos afirmativamente que aquilo que vai legitimar não só a política social efetiva, mas também o conjunto das 159
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instituições democráticas das nações latino-americanas, é a possibilidade que os cidadãos participem na construção de um modelo inclusivo de democracia radical. Democracia na qual, a partir do reconhecimento das diversas identidades políticas e seus decorrentes conflitos de interesses, todos os setores se sintam, finalmente, partícipes e pertencentes a uma comunidade política em que possam exercer sua capacidade deliberativa e decisória num contexto de equidade, pluralismo, tolerância e liberdade.
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VIII. Vida Cultural
Autores Anna Paula de Oliveira
Doutora em Letras pela PUC do Rio de Janeiro, autora da dissertação “O encontro do Velho do Pastoril com Mateus na Manguetown” ou “As tradições populares revisitadas por Ariano Suassuna e Chico Science”. (Prêmio Sílvio Romero – 2006)
Transformações do popular na cultura contemporânea: tradição e inovação na Recife dos anos 90 Anna Paula de Oliveira
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m janeiro de 1995, o escritor Ariano Suassuna tomou posse do cargo de secretário de Cultura do estado de Pernambuco. Sua proposta para a política cultural do governo Miguel Arraes previa o apoio às manifestações populares tradicionais e o financiamento de espetáculos que tivessem estas manifestações como referência. Suassuna programou ainda a criação de vários grupos artísticos e contou com a colaboração de antigos aliados do Movimento Armorial, formado por ele na década de 1970 com o intuito de fundar uma arte erudita baseada na estética popular. Os critérios que deveriam ser adotados pela Secretaria iam ao encontro das intenções armoriais e foram explicitados no polêmico Projeto cultural Pernambuco-Brasil (CEPE Editora, 1995), de autoria de Suassuna. O projeto determinava que, para obter a adesão da Secretaria de Cultura, o artista e o espetáculo deveriam se enquadrar no que o secretário entendia como “expressão popular” (tradicional, nacional e autêntica), ou se inspirar nela para criar uma arte comprometida com a cultura local. Ao mesmo tempo, uma nova movimentação, pop e urbana, tomava conta da capital pernambucana. Uma reunião de jovens artistas e produtores atuantes nas mais diversas áreas e empenhados em agitar a vida cultural da cidade. Tratava-se dos mangueboys e manguegirls, 163
VIII. Vida Cultural
inventores do Manguebit, que apresentaram suas propostas no release intitulado Caranguejos com cérebro, impresso no encarte do CD Da lama ao caos (Sony Music, 1994), primeiro álbum da banda Chico Science & Nação Zumbi. Este texto compara a fertilidade dos manguezais com a riqueza cultural encontrada na cidade do Recife, alerta para as condições de degradação social e ecológica na qual se encontrava a “quarta pior cidade do mundo pra se viver”, e prescreve um choque de energia criativa para recuperar a auto-estima de seus moradores. O Manguebit havia iniciado sua história no início dos anos 90, e os homens-caranguejos começaram a botar as patinhas pra fora do Recife ainda em meados da década. Em 1994, as principais bandas da cena gravaram seus primeiros álbuns e estavam sendo requisitadas no Sudeste do país e no exterior. Chico e a Nação entoavam um maracatu envenenado por guitarras elétricas e efeitos eletrônicos e isso fez com que o secretário estadual de Cultura manifestasse seu desconforto com o que ouvia. “No que uma coisa ruim como o rock pode valorizar uma coisa boa como o maracatu?”, dizia Suassuna (Cadernos de Literatura Brasileira, Instituto Moreira Salles, 2000). O escritor já alertava, não iria dispensar a verba reservada à Secretaria aos projetos do Mangue. “Eu não vou dar apoio a um movimento que já tem apoio de outras coisas, deixando de lado a cultura popular, que está aí se acabando” (Diário de Pernambuco, 09/07/1995). Sua postura armorial não toleraria um maracatu profanado, deturpado, desviado da “pureza original” e rendido aos apelos da indústria da cultura. Quando se evoca o armorial, a imagem que vem à tona é a de uma arte movida pelo propósito de garantir a sobrevivência das tradições. Seus promotores se guiaram pelo ideal sistematizado por Suassuna no manifesto de 1974 – intitulado O Movimento Armorial -, que consistia em propor uma estética nacional autônoma. Neste manifesto, Suassuna defende que as formas da cultura popular tradicional – como a poética da literatura de cordel, as imagens que ilustram os folhetos e a sonoridade dos instrumentos que acompanham sua leitura -, deveriam orientar a criação de uma linguagem tipicamente brasileira. Só assim a arte conseguiria expressar nossa memória cultural e contribuiria para a construção de uma nação independente. Por isso o programa da Secretaria previa o fomento e a valorização das tradições populares e da arte erudita inspirada nestas tradições. Essa afirmação de uma cultura nacional é reconhecida como uma das principais tendências da arte produzida no Brasil até os anos 60. No caso do Movimento Armorial, as representações nacionais identi164
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Transformações do popular na cultura contemporânea: tradição e inovação na Recife dos anos 90
ficadas nas criações populares do sertão nordestino unem-se às referências da cultura clássica européia para gerar uma obra peculiar. Partindo dessa idéia, Ariano Suassuna concebe o Quinteto Armorial como expressão musical de seus princípios estéticos. O Quinteto era composto por artistas de formação acadêmica e tinha a intenção de criar uma música de câmara marcada pela melodia dos ponteios, loas e cantigas populares. Originalmente os músicos do grupo utilizaram instrumentos eruditos, logo substituídos, por sugestão de Suassuna, pelos instrumentos populares, mais apropriados para reproduzir a sonoridade que ele buscava. Com a pesquisa de instrumentos e de timbre, a intenção do Quinteto parecia ser de aproximar-se da “essência” da musicalidade popular, e não de realizar experimentalismos modernos. Entretanto, o contexto contemporâneo apresenta novas formas de diálogo entre as diversas matrizes culturais que compõem nossa sociedade. Em se tratando de música, as colagens sonoras, as intervenções eletrônicas e as misturas de gênero são algumas das configurações assumidas por este intercâmbio. A experiência urbana e a tecnologia musical ofereceram às bandas do Manguebit a possibilidade de citar performances pré-gravadas, reproduzir trechos musicais ou sonoridades características de variadas expressões e ambiên cias, adotar entoações, utilizar falas, sinais ou ruídos capturados no cotidiano da cidade. O Mangue absorve e reprocessa a arte das revistas em quadrinhos, os recursos estéticos e políticos do hip-hop, as estratégias publicitárias do punk, as possibilidades da tecnologia musical, o colorido das roupas compradas nas feiras, a inventividade dos pregões de camelô, a força do maracatu, a malícia e a ironia das emboladas, tudo a favor de uma arte pop criativa. E é com esta movimentação que o político Ariano Suassuna se depara ao tentar pôr em prática, na capital pernambucana, um projeto cultural descontextualizado. Pensando na cidade do Recife, podemos afirmar que o hardcore é tão tradutor da sua experiência cultural quanto o maracatu ou a embolada. Pensando nas grandes cidades do Terceiro Mundo, vemos crescer, entre jovens artistas, mais marcadamente entre os dedicados à música, a necessidade de expressar uma arte pop autônoma, neste caso, criada pela apropriação da música “estrangeira” e pela fusão desta sonoridade com os ritmos tradicionais locais. Esta outra realidade exige a inauguração de uma nova sensibilidade política, que consiga apreender melhor a multiplicidade e a complexidade das culturas contemporâneas. 165
VIII. Vida Cultural
Por um outro caminho, Ariano Suassuna fundou seu programa na oposição entre sertão e litoral e valorizou o interior do Nordeste como espaço de manifestação da cultura popular mais “autêntica”. Para Suassuna, as tradições sertanejas guardam as raízes mais profundas da nossa identidade cultural, por se encontrarem supostamente livres da “influência perniciosa” da cultura de massas que impera nos centros urbanos. Mesmo assim, a região metropolitana abriga manifestações por ele reconhecidas como legítimas, como o maracatu, por exemplo. E o programa da Secretaria Estadual de Cultura para a cidade do Recife consistia principalmente em apoiar a perpetuação destes folguedos em seus moldes tradicionais, livrandoos da ameaça de extinção que a indústria cultural apresentava. Daí a resistência do escritor em aceitar uma música que, segundo ele, descaracterizava as “expressões originais do povo brasileiro”, contaminando o maracatu com rock e o rap, e transformando-o em mais um dos produtos da cultura industrial. Sendo que, ao contrário do que previa Suassuna, o Manguebit despertou o interesse da juventude para as manifestações populares tradicionais dentro e fora de Pernambuco, além de chamar atenção da imprensa cultural e do público de música pop para as antigas agremiações de maracatu. Subverteu a idéia de um Nordeste puramente agrário e arcaico, afirmando a multiplicidade de formas culturais atuantes em uma cidade periférica como Recife. Expressou a coexistência entre tradição e modernidade e se apropriou da vitalidade das manifestações populares. O termo Manguebit nasceu justamente do interesse de seus fundadores em exprimir a convivência cotidiana entre o local e o global na capital pernambucana. Os manguezais são imagem marcante na paisagem recifense, e o mangue representa a fertilidade cultural da cidade na metáfora criada pelos “caranguejos com cérebro”. Já o bit simboliza a tecnologia que, manipulada pelos mangueboys, trabalhou em prol da inventividade artística. A imprensa acabou rebatizando esta movimentação cultural como Manguebeat, o que alterou o sentido original do termo. O “beat” reduz a experiência do Mangue à sua expressão musical e define esta música como um gênero ou um ritmo único. Sendo que a proposta inicial foi de fundar uma cena cultural que permitisse a manifestação dos mais diversos campos e estilos de arte, e não de delimitar um formato estético no qual os participantes teriam que se enquadrar. Diferente de muitos dos movimentos culturais que conhecemos, que se caracterizam por alguma forma peculiar de expressão, o Manguebit distinguiu-se pela
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pluralidade da arte que produzia e por sua proximidade crítica com a indústria cultural. Como foi visto, ao mesmo tempo em que surgem novas experiências na música pop, cresce, em todo o Brasil, um movimento forte de afirmação de “raízes” que defende a preservação das expressões tradicionais da cultura popular. Não estamos querendo negar aqui que as verbas públicas destinadas à cultura devem privilegiar as expressões que não se adequam aos moldes do mercado e que, portanto, não conseguem se sustentar sem o apoio do Estado. Sabemos também da importância da valorização do popular como alternativa à cultura hegemônica. O que o Manguebit pôs em questão, no estado de Pernambuco, foram os critérios adotados pela Secretaria Estadual de Cultura, que se basearam unicamente na tradição quando deviam atentar para a representatividade social das manifestações culturais. Hoje em dia tornou-se importante que as políticas direcionadas para os centros urbanos levem em consideração tanto a pluralidade e os hibridismos presentes nas cidades quanto a condição massiva da produção cultural. Mais do que lutar contra a proliferação dos meios modernos de criação e difusão de arte deve-se buscar a democratização do acesso a estes veículos. Passada mais de uma década da criação do Manguebit, podemos dizer que a experiência também foi válida na medida em que estimulou a criação de programas de rádio e televisão, produtoras de vídeo e cinema, festivais, selos e gravadoras independentes, cooperativas de moda, sites, revistas e fanzines. Os mangueboys movimentaram a vida cultural do Recife e deram visibilidade às mais variadas manifestações, tanto tradicionais quanto pop. Com o passar do tempo e o surgimento de novas gerações de artistas, a idéia de uma cooperativa cultural identificada como Manguebit foi se diluindo, o que é natural e até desejável. Esperamos, agora, que esta inquietação se perpetue como atitude.
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IX. Mem贸ria
Autores Eugênio Mattos Viola
Jornalista, ex-editor chefe de jornalismo da TV Educativa do Rio de Janeiro (atual TV Brasil)
Luiz Sérgio Henriques
Editor do site Gramsci e o Brasil, ensaísta, tradutor e um dos organizadores das obras de Antonio Gramsci em português, especialmente a nova edição das Cartas do Cárcere
Raimundo Santos
Possui graduação em Direito pela Universidade de Brasília (1967) e doutorado em Ciências Políticas pela Universidad Nacional Autonoma de Mexico (1984). Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de Ciência Política, com ênfase em Teoria Política
Ricardo Oliveira da Silva
Graduado em História pela UFSM, é mestrando em História pela UFRGS, com bolsa do CNPq
Nos quarenta anos de 1968 Eugênio Mattos Viola Procura-se incutir nos jovens a idéia de que não adianta querer mudar o mundo, exceto no que se refere à tecnologia e à ciência. Mas há os jovens que lutam por ‘um outro mundo possível’, que preferem injetar utopia na veia que drogas. (Frei Betto).
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o lembrarmos os 40 anos do maio de 1968, um dos anos mais marcantes do século XX, percebemos que uma realidade foi construída e desconstruída ao mesmo tempo. A ânsia por liberdade, por um mundo mais justo e fraterno, explodia em muitos países, das mais diferentes formas. Em verdade, foi toda uma década – a de 60 – em que se levantaram questionamentos, derrubando tabus, apontando novos horizontes. Os caminhos nem sempre eram os mesmos. Iam desde as flores – Flower Power – até as armas. No Brasil, com a Passeata dos Cem Mil; na Tchecoslováquia, com a Primavera de Praga; nos Estados Unidos, com Martin Luther King empolgando multidões ao proclamar “I have a dream” (Eu tenho um sonho), o sonho do fim da luta racial. Na França, os estudantes saíam às ruas: “A sociedade nova deve ser fundada sobre a ausência de qualquer egoísmo e qualquer egolatria. O nosso caminho será uma longa marcha de fraternidade”, desafiando o conservadorismo do governo De Gaulle e pedindo reformas trabalhistas e no ensino. A Igreja também promovia o seu aggionarmento quando João XXIII decidia abrir as janelas do Vaticano para os ventos da História soprarem a poeira do Trono de Pedro. 171
IX. Memória
Naquela década, o Homem também chegaria à Lua e talvez começasse a se esquecer da Terra. Como um filho que é severamente punido após uma atitude de ousadia, muitos paises mergulharam em seguida num profundo silêncio em conseqüência da onda de repressão. Tanto à direita, quanto à esquerda, o totalitarismo mostrava suas garras e a Guerra Fria passava a ditar os rumos. Aqui no Brasil, o “milagre econômico” levava a classe média à euforia nas Bolsas de Valores, enquanto a tortura era a resposta àqueles que não comungavam das mesmas idéias. A abertura política só viria a ocorrer muitos anos depois em toda a América Latina, que até hoje faz o inventário das cicatrizes. Do caos à ordem, da ordem ao caos. Começava a década de 90 e os muros da União Soviética caíam como castelos de areia. O Consenso de Washington determinava o Estado mínimo, provocando uma onda desenfreada de privatizações. Tudo o que era público passava a ser sinônimo de ineficiência. As instituições educacionais e de saúde eram sucateadas, enquanto o desenvolvimento tecnológico em todo o mundo ganhava impulso. O computador passava a ser o novo bezerro de ouro da juventude. A Internet aproximava as pessoas dos mais diferentes pontos do planeta, mas a globalização criava também o fluxo incontrolável do capital especulativo, levando em poucas horas muitas nações à bancarrota, para deleite dos especuladores. O capital e a cobiça passavam a criar uma química geradora de alienação, destruição e ganância. Novos ídolos surgiam. Bill Gates passava a ser reverenciado em todo o mundo pelo acúmulo de bilhões e bilhões de dólares. Desportistas e artistas se entregavam ao Deus Mercado – sem compromissos éticos, sociais e morais -, manipulados por contratos de milhões de dólares.Valores humanos e espirituais não aumentavam as contas bancárias.A mídia os tratava com glamour e os jovens eram seduzidos pelos falsos ídolos. O sexo era sinônimo apenas de prazer, sem afeto. A família deixava os velhos padrões no passado, mas não conseguia definir os novos. A natureza passava a ser apenas fonte de lucro. Os grupos de defesa do meio ambiente lançavam uma advertência: “Quando a última árvore tiver caído, Quando o último rio tiver secado, Quando o último peixe fôr pescado, Eles vão entender que dinheiro não se come”.
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Nos quarenta anos de 1968
Chegamos ao terceiro milênio com a competição entre os seres humanos reinando em lugar da fraternidade. É bem verdade que o quadro começa a se transformar em muitos países. Quem diria que um negro é hoje forte candidato à presidência da maior potência do mundo? Quem diria que um indígena e camponês chegaria à presidência da Bolívia? Quem diria que um operário subiria a rampa do Planalto? Quem diria que a preocupação com a ecologia se tornaria um assunto de primeira ordem? Mas os avanços ainda estão limitados ao plano humano. Ainda estão por levar à busca de respostas também na dimensão espiritual. A humanidade já não é mais um bebê, mas ainda não atingiu a plena maturidade. É jovem. E, numa leitura simbólica e real ao mesmo tempo, o jovem se perde no vazio entre o Velho e o Novo, entre o Ser e o ter, entre o efêmero e o Eterno. Todo vazio gera angústia e muitos só encontram nas drogas o falso alívio para suas aflições. Ainda não fomos capazes de criar pontes para superar os abismos criados por gerações anteriores e pela nossa. Ainda não fomos capazes de apontar o caminho de saída para o labirinto em que entrou a jovem humanidade. Recentemente, o Tribunal da Cúria Romana decidiu classificar como ‘pecado’ o uso de drogas. Mas, cabe a nós – construtores da apologia do Nada -, pedir perdão. Santo Agostinho dizia que “o Mal é apenas a ausência do Bem”. O vício não se combate com punição, mas com o estímulo da virtude.
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Celebrando os 90 anos de Armênio Guedes Luiz Sérgio Henriques e Raimundo Santos
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os 90 anos, completados em 27 de maio, Armênio Guedes exibe uma larga e rica trajetória no antigo PCB, como um dos intelectuais mais identificados com a tradição pecebista, que, desde 1958, afirmou-se entre nós, e não sem muita reação e resistência por parte de outras forças de esquerda, com o que então se chamava de “caminho democrático (ou pacífico) para o socialismo”. Homem de intensa vida partidária, foi um dos redatores-chave da “Declaração de Março de 1958”, um marco deste mesmo “caminho democrático”. Ainda em 1959, nota-se outro momento digno de nota, quando escreve na Voz Operária um artigo sobre a “ação positiva das forças nacionalistas”, o primeiro dos dois textos aqui reproduzidos. No rastro da nova política decorrente da “Declaração”, esta preocupação com uma “ação positiva” reflete o nexo com o qual os comunistas, a partir de então, buscaram conjugar as tarefas do presente com a perspectiva mais geral da democratização do país, inserindo-se assim na vida política real e evitando a fraseologia supostamente revolucionária, que se revelaria suicida na crise do regime democrático em 1964. (Não casualmente, em 1960, na revista Novos Rumos, um outro dirigente, Marco Antonio Coelho, publicaria “A tática das soluções positivas”, texto igualmente representativo de um comunismo que aspirava a romper com a capa de chumbo do dogmatismo stalinista.) A busca coerente daquele tipo de nexo faria de Armênio, entre outras coisas, o principal redator da resolução da Comissão Executiva do Comitê Estadual da Guanabara, em março de 1970, um dos textos mais interessantes do PCB. Nele, Armênio debruça-se sobre a conjuntura dos anos de chumbo, divisando linhas de resistência ao regime de 1964 que, a médio prazo, o levariam ao isolamento e à derrota. Armênio deixou o país por decisão partidária, passando longa temporada no exílio. Viveu o Chile de Allende e conheceu o eurocomunismo, seguindo-o de perto em função das relações do PCB com o PCI e o PCF. E deve-se lembrar que só por isso esteve a salvo da repressão desencadeada em 1974-75 contra os “socialistas desarma174
Celebrando os 90 anos de Armênio Guedes
dos” do PCB, quando, entre vários outros militantes, desapareceram onze dirigentes do Comitê Central. Ainda em Paris, às vésperas de retornar ao país e em meio aos graves conflitos que cindiram o grupo dirigente do PCB – uma parte do qual jamais abandonaria o vínculo com a URSS nem superaria uma concepção instrumental da democracia “burguesa” -, Armênio valoriza coerentemente a nova legalidade democrática que se avizinhava: “Quando desembarcarmos no Brasil, legalmente, é que a situação mudou. Esse desembarque tem em si mesmo uma significação. Significa que foram conquistados espaços democráticos no Brasil, ainda que nós consideremos que esses espaços não correspondem plenamente à democracia política a que todos aspiramos em substituição ao atual regime. Nosso objetivo, nosso objetivo imediato, vai ser o de nos incorporarmos à política para a ampliação dos espaços” (“O PCB encara a democracia”, Jornal do Brasil, 27 jul. 1979). É no contexto do final do regime autoritário que deve ser entendido o segundo texto a seguir reproduzido, retirado do semanário Voz da Unidade, em 1980, e dedicado ao balanço político daquele ano. Estávamos ainda no governo Figueiredo, e não se podia excluir a possibilidade de retrocesso, como o demonstraria o episódio do Riocentro, em 1981. Só no ano seguinte, em 1982, é que as forças oposicionistas conquistariam o governo de três estados fundamentais, como Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, viabilizando a sustentação política do grande movimento pelas diretas-já e, posteriormente, a eleição de Tancredo Neves, uma ação própria da grande política ao subverter o significado de um colégio eleitoral concebido originalmente para garantir a reprodução do regime de arbítrio. No seu conjunto, os dois textos, mesmo pertencendo a situações tão díspares, constituem breves, mas incisivos, exemplos dessa tentativa constante, por parte do veterano dirigente, de apreender na flutuação da conjuntura as determinações estruturais e de extrair da análise previsão e perspectiva. Para tanto, é sempre essencial levar acuradamente em conta o movimento do conjunto dos atores, inclusive e especialmente do adversário, e valorizar as mais sutis possibilidades da ação política. No fundo, a valorização da política, fora do esquematismo doutrinário, é a grande lição heterodoxa de Armênio Guedes; e ela nos é útil não apenas para capturar o sentido desta ou daquela conjuntura, mas, fundamentalmente, para enriquecer os termos em que se possa reconstruir a cultura política da esquerda democrática, num momento em que não são poucos os sinais de desalento e desorientação 175
IX. Memória
I. Uma ação positiva das forças nacionalistas1 A luta entre as forças interessadas no desenvolvimento do país e os grupos entreguistas é uma constante da situação política atual do Brasil. Trata-se de uma luta que tende a se prolongar ainda por algum tempo. Como em todo embate desse tipo, teremos sempre, no curso do seu desenvolvimento, períodos de calmaria e momentos de tensão. Nos momentos de tensão, as forças em choque adquirem contornos mais definidos e, o que é mais importante, ampliam ou restringem suas fileiras. Não há dúvidas que historicamente as possibilidades de avanço são das forças nacionalistas. Mas tais possibilidades só se tornarão algo real pela ação consciente das forças sociais de vanguarda. Daí a necessidade de destacar, do conjunto da ação política concreta, aquilo que é positivo e que representa, muitas vezes, o ponto de partida para uma direção política acertada ou que, pelo menos, constitui um importante elemento de uma tal direção. A situação atual, condicionada pelas dificuldades financeiras do país e pela pressão dos imperialistas norte-americanos para quebrar a resistência nacional aos seus planos da escravização, deu lugar a um novo período de tensão. Não sabemos se este período terminará com a recomposição ministerial em curso. E é difícil, por isso, dizer quem saiu ou sairá fortalecido do atual choque, se os grupos entreguistas ou o movimento nacionalista. Nosso objetivo aqui é destacar principalmente o que surge de novo e positivo na ação do movimento nacionalista. Parece que o fato mais positivo dessa ação foi o caráter da atividade desempenhada pelos nacionalistas em face dos últimos acontecimentos. A pressão nacionalista, exigindo soluções favoráveis ao desenvolvimento independente do país, soluções de resistência ao imperialismo, foi realizada fora e dentro do aparelho de Estado. Não se limitaram os nacionalistas a analisar esse ou aquele fato, como em outras ocasiões. E mais ainda, procuraram, embora em pequena escala, coordenar suas forças, suas ações tinham caráter convergente, ajudaram a esclarecer amplos setores populares sobre o sentido real das questões palpitantes do momento. Foi esse o sentido da ação da Frente Parlamentar Nacionalista, da “Ala Moça” do PSD, das organizações estudantis, da imprensa democrática e nacionalista, dos líderes sindicais, do Iseb, etc. Queremos citar, como um exemplo típico dessa ação, o memorial dos líderes sindicais de São Paulo ao Sr. Juscelino Kubitschek. Há 1 Voz Operária, 28/jun/1958.
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um trecho do memorial que reflete bem o caráter da intervenção das forças nacionalistas nos últimos acontecimentos: “Ao dirigirmo-nos a Vossa Excelência, na qualidade de intérpretes da vontade dos trabalhadores, coerentes com os princípios que juntos defendemos no curso da árdua e memorável luta pela eleição e posse de Vossa Excelência, ressaltamos que é inadmissível a recomposição do ministério com a inclusão dos setores entreguistas que representam a frustração da marcha da política de emancipação econômica nacional a que se propôs o governo de Vossa Excelência.” É sob a pressão do movimento nacionalista que os novos ministros ocuparão os seus cargos. Certamente alguns deles são nomeados por imposição dos setores entreguistas. Mas isso não é o bastante para que mudem os rumos da política governamental, no sentido de liquidar os elementos nacionalistas que ela encerra e fazer preponderar e vencer o seu lado entreguista e reacionário. Os últimos acontecimentos não levam à dedução de que uma das forças em choque já esteja em condições de impor uma decisão definitiva, isto é, empolgar o governo e imprimir sua fisionomia à política interna e externa do país. A atual instabilidade do governo – responsável pelos seus constantes vaivéns – prolongar-se-á por algum tempo, até que uma das forças em pugna imponha uma decisão que lhe seja favorável. O movimento nacionalista dispõe dos fatores essenciais para impor essa decisão, batendo os elementos entreguistas e reacionários. Já existem as premissas políticas essenciais para a formação de um governo nacionalista no Brasil. Mas é necessário vencer grandes e fortes obstáculos que se opõem a isso. Um dos primeiros passos a ser dado nesse sentido é terminar com a dispersão política e organizativa nas fileiras do movimento nacionalista. As forças nacionalistas, dispersas por vários partidos e organizações, não atingiram um grau de consciência e unidade de vistas que possibilite sua unificação no plano programático ou organizativo. Deve haver um esforço permanente no sentido de coordenar as ações em plano local e nacional das diferentes correntes nacionalistas. Não se trata de impor formas rígidas de organização, o que seria impossível e estancaria o movimento, mas de elaborar idéias claras, ter soluções concretas para enfrentar as grandes e as pequenas questões da luta antiimperialista e, nessa base, ir estruturando a frente única em bases sólidas. Uma medida que impulsionaria esse esforço organizativo seria talvez a realização de reuniões de contato,
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em que seriam debatidos problemas do movimento nacionalista e estabelecidas as respectivas soluções. Vencida a dispersão de suas forças, o movimento nacionalista cresceria rapidamente. Os comunistas, que já têm elaborado alguns pontos de vista sobre o movimento nacionalista, precisam colocar toda a sua experiência política a serviço da organização do movimento nacionalista. Esta a linha mestra que deve orientar nossa atividade no decorrer da atual campanha eleitoral.
II. O impasse político e a saída democrática2 O ano que acaba de terminar não foi nada pródigo para a política de abertura do governo. Nem também para a unidade de ação das forças da oposição. No começo do atual governo houve a atividade desenvolvida por Petrônio Portela. A linha por ele esboçada – e mesmo alguns dos passos que deu como ministro político do governo – deixavam ver sua intenção de conseguir, mediante acordo com certas forças intermediárias e a médio prazo, a formação de um governo de transição. Um governo que, ao alargar as bases políticas do atual Poder, se tornasse capaz de superar as instituições e hábitos autoritários criados pela ditadura e de tornar possível o aparecimento das condições essenciais para a reorganização democrática da vida brasileira. Nada nos garante, contudo, que, caso continuasse vivo, Portela fosse capaz de concretizar suas intenções, que fosse capaz de vencer os partidários do imobilismo no âmago do regime e das forças armadas. Mas é um fato – e o tomamos antes de tudo como um ponto de referência – que a morte do ministro marca um ponto de involução na política de abertura do governo Figueiredo. A partir desse momento, e sob a pressão dos “duros” do regime, o governo vem enveredando por caminhos que dificultam a ação das forças democráticas e de oposição e amortecem o ritmo do processo político iniciado com a anistia. Somam-se, na ação do Poder, os atos e medidas eivados de arbítrio e autoritarismo. Estão neste caso a suspensão das eleições municipais de novembro passado, a aprovação da lei contra os estrangeiros, a demissão de ministros que tentaram realizar uma política liberal, a política de recessão econômica nos moldes do FMI, etc. No meio de tudo isso, e como único ponto positivo, resta apenas a aprovação da eleição direta para governado2 Voz da Unidade, 31/dez/1980.
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res em 1982, conquista que deve ser defendida com unhas e dentes, principalmente no sentido de impedir que sua importância seja diminuída pela legislação eleitoral casuística pretendida pelo regime. Por sua parte, as oposições, caindo muitas vezes nas malhas da política divisionista do governo, nem sempre souberam dar continuidade e colocar num nível mais elevado o processo de convergência e unidade iniciado nos meados dos anos 70. O certo é que no ano que findou foi muito difícil um entendimento e aliança mais profundos entre as forças que se esforçam para dar fim ao regime autoritário. Chegamos assim em 1981, tanto pelo que ocorre no campo do governo como pelo que se passa no lado das oposições, a uma situação complicada. Uma situação de impasse político ou, quando menos, próxima disso. Além de tudo, seriamente agravada pela crise econômica em que vive o país. É dentro desse quadro complexo e carregado de tensões sociais que as oposições e as correntes democráticas terão que atuar no ano que agora começa. Antes de tudo, para evitar qualquer passo em falso, é preciso analisar e avaliar com precisão o caráter opressivo do regime. A resistência das forças democráticas, quando bem orientada, tem, em muitas ocasiões, atrapalhado a estratégia do regime, ajudando a avançar o processo de abertura. De qualquer forma, os dados de que se dispõe indicam que o período de transição, longe de ser linear, tende a continuar em ziguezague e pode se prolongar por um tempo mais longo do que seria desejável. As forças democráticas, para avançarem, precisam estar bem conscientes das possibilidades de recuo – de fechamento e de volta aos tempos do AI-5 – que o momento e as tensões atuais encerram. É uma situação que exige firmeza, habilidade e prudência. E em que as convergências e a unidade das oposições são indispensáveis. Mas esse esforço de unidade e convergência não deve, na conjuntura presente, limitar-se ao universo das oposições. Tem que ir mais longe e, num trabalho paciente e prolongado, abarcar correntes, grupos e pessoas que, apesar de ainda permanecerem no sistema de forças do governo, começam a questionar o autoritarismo do regime e a exigir a ampliação das liberdade públicas. Há uma outra observação que pode ser feita a partir da peculiaridade do momento político que atravessamos. É que, talvez no caso brasileiro, a superação do autoritarismo e a conquista de um regime democrático possam ocorrer sem mudanças bruscas e violentas. Re-
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sultarão antes de uma guerra de posições – no bom sentido da tese gramsciana. Mas haverá, necessariamente, um momento de ruptura das instituições autoritárias e repressivas, que se dará pela pressão conjugada da opinião pública e de um amplo movimento de massas. É com tal visão que hoje devemos trabalhar. E é por ela não estar presente, até aqui, no pensamento e na prática das forças democráticas e do movimento operário que os diferentes segmentos da oposição se perdem ou em propostas muito gerais, a médio e longo prazo, ou em reivindicações que se esgotam em questões particulares e corporativas. Toda a reflexão até aqui desenvolvida induz a afirmar que os grandes problemas do país situam-se hoje nos termos concretos de um período de transição, ainda que ambíguo e pouco definido. E é neste contexto, portanto, que terão de ser resolvidos. Não seria fora de propósito que as forças democráticas – que não têm interesse nem na continuação do impasse nem no confronto – comecem a pensar na oportunidade ou não de se trabalhar com a idéia de um governo de transição, integrado pelas mais amplas forças e capaz, por isso mesmo, de dar começo à reorganização política do país.
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Intelectuais, política e cultura: Breve análise sobre Caio Prado Júnior e Alberto Passos Guimarães no PCB Ricardo Oliveira da Silva Introdução
O
Brasil presenciou significativas mudanças socioeconômicas e políticas entre as décadas de 1930 a 1960. Nesse período, a economia do país, caracterizada pela exportação de produtos primários, em especial o café, gradualmente cedeu espaço ao processo de industrialização que ficou conhecido como substituição de importações. A sociedade começou a assumir uma feição marcadamente urbana e o Estado passou a investir em políticas que tinham por objetivo superar o que era identificado como atraso, ou seja, o passado colonial compreendido enquanto uma sociedade rural, subdesenvolvida e primário-exportadora. O conjunto de mudanças que o país vivenciou nessas décadas também foi acompanhado por um avanço no conhecimento das ciências sociais. Segundo Carlos Guilherme Mota, esse foi um momento marcado pelo “redescobrimento do Brasil”, ou seja, a história e a sociedade brasileira passaram a ser vistas sob um olhar que procurou conhecer e destacar as potencialidades da realidade social, rejeitando interpretações pessimistas, como, por exemplo, as análises que condenavam o país ao atraso devido à mistura de raças (MOTA, 1978). Para Romualdo Campos Filho, o avanço nos estudos sobre o Brasil acentuou, principalmente a partir da década de 1950, a indagação sobre as possibilidades de desenvolvimento econômico e de mudanças nas instituições políticas e sociais do país (CAMPOS FILHO, 1994). Diante desse contexto, consideramos oportuno apresentar, ainda que brevemente, a atuação de dois intelectuais na esfera política e intelectual da década de 1950 e início dos anos de 1960, ou seja, a trajetória de Caio Prado Júnior e Alberto Passos Guimarães. Por um lado, enquanto intelectuais, ambos os autores apresentaram um conhecimento histórico imbuído da perspectiva de conhecer a realidade brasileira e as possibilidades de sua transformação. Desse modo, ga181
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nhou destaque na produção desses autores o tema da questão agrária, um dos principais aspectos abordados nas discussões por ser compreendido o campo, através de sua estrutura fundiária concentrada, excludente e pouco mecanizada, um entrave ao desenvolvimento econômico e social. Por outro lado, politicamente esses dois intelectuais participaram das discussões enquanto membros do Partido Comunista do Brasil (PCB), fundado em 1922. Esse partido, com um programa político centrado na construção de uma sociedade igualitária e socialista, era uma das principais referências para os setores progressistas brasileiros que lutavam por transformações sociais.
A realidade brasileira em discussão: o debate agrário de Caio Prado e Alberto Passos no PCB A presença do PCB no debate político e intelectual brasileiro durante a década de 1950 ocorreu em um momento delicado de sua história. As denúncias sobre os crimes de Stálin, ocorridas no XX Congresso do PCUS, realizado em 1956, acentuaram a crítica interna existente no partido, em especial aos membros que defendiam o chamado passado dogmático, sendo considerados responsáveis pela subserviência do PCB ao pensamento soviético e ao isolamento perante a sociedade brasileira após a cassação do registro legal, no ano de 1947. Nessa circunstância, muitos membros reivindicaram uma renovação no partido, defendendo um olhar mais atento para a realidade nacional, a qual estaria sendo ignorada em nome da fidelidade ao marxismo-leninismo ditado pela União Soviética. Após a cassação do registro legal, em 1947, por exemplo, o Comitê Central do partido adotou uma postura política priorizando a necessidade imediata de lutar por uma revolução agrária a antiimperialista, base para a realização do seu projeto democrático-burguês, não descartando, para alcançar esse objetivo, a luta armada. Nesse sentido, o PCB se envolveu em lutas rurais ocorridas em Porecatu, no norte do Paraná, na Revolta de Trombas e Formoso, em Goiás, e no apoio inicial às Ligas Camponesas. Além disso, o partido passou a defender um sindicalismo urbano paralelo ao oficial, o que resultou no enfraquecimento de sua presença nas lutas dos trabalhadores urbanos na primeira metade dos anos de 1950 e no seu afastamento das lutas político-partidárias, no caso, em aliança com outros partidos, uma vez que seu registro estava cassado (ALMEIDA, 2003). Em face da postura do Comitê Central, a luta interna no PCB em meados da década de 1950 pressionou por mudanças tendo em
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vista, por um lado, maior inserção do partido na sociedade brasileira, sendo passo importante nesse sentido a participação partidária nas eleições presidenciais de 1955 apoiando Juscelino Kubitschek e, por outro lado, um diálogo mais próximo com a intelectualidade progressista do país (SEGATTO, 2003). Mediante esses objetivos, o partido se empenhou em algumas publicações, como Novos Tempos, Estudos Sociais e Novos Rumos, nas quais eram debatidos problemas referentes ao Brasil. Na revista Estudos Sociais, por exemplo, existia um ponto que costurava a preocupação dos comunistas: descobrir a causa do subdesenvolvimento nacional. Segundo Santiane Arias, essa preocupação contribuiu para a reflexão em torno do tema da questão agrária: [...] dentre as áreas mais abordadas na revista – economia e política, e, em certa medida, história – a preocupação não é outra. Os mais diversos temas perpassam o atraso brasileiro, a necessidade de desenvolvimento e emancipação do país. Internamente o que alimentava tamanho atraso era o monopólio da terra, sendo a questão agrária fundamental para se entender o problema nacional (ARIAS, 2003: 74).
O intelectual e comunista Alberto Passos Guimarães, voltado à área de história e economia, desempenhou importante papel nas reflexões do partido nesse momento, principalmente através do tema da questão agrária, mediante obras como Inflação e Monopólio no Brasil (1962) e Quatro Séculos de Latifúndio (1963). Nesses trabalhos, esse intelectual procurou destacar as raízes feudais da colonização portuguesa no Brasil e a necessidade de acabar com os resquícios do passado colonial mediante os pressupostos do projeto democráticoburguês, ou seja, consolidação do capitalismo no campo para sua posterior transformação socialista (PAULA, SOARES, 2006). Segundo Santiane Arias, Alberto Passos Guimarães e Nelson Werneck Sodré foram as principais referências teóricas do PCB. Nelson Werneck Sodré concentrou seu trabalho sobre o processo revolucionário brasileiro e, nesse processo, as possibilidades de viabilidade do projeto democrático-burguês. Alberto Passos Guimarães concentrouse em um aspecto desse projeto: a questão agrária. Esse fato esteve presente na revista Estudos Sociais: [...] embora a Estudos Sociais, até certo ponto, abrigue as diferentes nuanças sobre a tese central da questão agrária, isto é, sobre os restos feudais, deve-se destacar a predominância das idéias de Alberto Passos Guimarães. [...] Guimarães possui quatro artigos ao longo de sua circulação, inclusive no número dezenove (1964), seu último exemplar (ARIAS, 2003: 120).
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IX. Memória
O predomínio das idéias de Alberto Passos Guimarães sobre a questão agrária no PCB esteve relacionado, por um lado, ao seu trabalho intelectual. Por outro lado, esse autor, ao lado de Jacob Gorender, Armênio Guedes, Giocondo Dias e Mário Alves, foi um dos responsáveis pela redação da Declaração de Março de 1958, documento que definiu mudanças na conduta política do partido após a conjuntura do XX Congresso do PCUS, quando passou a ser defendido pelo PCB a transformação democrático-burguesa para o país com a consolidação do capitalismo, extinção do feudalismo e luta contra o imperialismo, pela via pacífica. Levando em consideração que o partido presenciou, nesse período, significativas disputas internas, a participação de Alberto Passos Guimarães no documento ligado à corrente que se impôs no processo de renovação política, revela outro aspecto que facilitou a circulação de suas idéias no partido (ARIAS, 2003). A trajetória de Caio Prado Júnior no PCB apresentou sensível diferença em relação à trajetória de Alberto Passos Guimarães. Enquanto Alberto Passos participou das atividades políticas do PCB ocupando importantes postos na hierarquia do partido, Caio Prado não ocupou posições de destaque na organização partidária. A vicepresidência na Aliança Nacional Libertadora, em São Paulo, no ano de 1935, e o cargo no legislativo paulista pelo PCB, em 1947, foram suas posições de maior relevo. Para Francisco Iglesias, contribuiu para essa situação o complexo antiintelectual do partido e a meta de proletarização que durante muito tempo afastou os intelectuais como suspeitos. A hipertrofia desse rumo levou ao obreirismo, fato comum que episodicamente também ocorreu em partidos comunistas de outros países (IGLESIAS, 1982). Além da questão do obreirismo, outro dado que contribuiu para a marginalização de Caio Prado na hierarquia do PCB foi o fato de ter sido um pensador marxista desvinculado do modelo interpretativo e político democrático-burguês. Enquanto o PCB seguia uma orientação leninista e vinculada à III Internacional, baseada em uma revolução por etapas para se chegar ao socialismo, Caio Prado rejeitou a análise do passado brasileiro fruto da reflexão da III Internacional a qual destacava, por exemplo, a existência de feudalismo no campo e a necessidade de consolidação do capitalismo através de sua extinção, estando esse autor próximo, inclusive, das orientações da IV Internacional. Para José Carlos Reis, diante dessa particularidade, Prado Júnior não falou em sua obra de feudalismo e não defendeu uma revolução democrático-burguesa, mas falou em subcapitalismo e em uma revolução permanente que desembocaria em longo prazo
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Intelectuais, política e cultura: Breve análise sobre Caio Prado Júnior e Alberto Passos Guimarães no PCB
no socialismo, sem a etapa intermediária de transição ao capitalismo defendida pelo projeto democrático-burguês do PCB (REIS, 2002). Caio Prado, diante das críticas à existência de feudalismo e necessidade de consolidação do capitalismo no campo, já perceptíveis no seu livro Evolução Política do Brasil, publicado em 1933, expondo, desse modo, as divisões internas do PCB, acabou marginalizado na hierarquia do partido no processo de luta interna (SANTOS, 2001). Afastado das posições de comando no partido, Caio Prado Júnior se envolveu em um projeto que se aproximou dos objetivos da revista Estudos Sociais, idealizada por membros vinculados ao projeto democrático-burguês e que contou com a participação de Alberto Passos, ou seja, a preocupação em estudar a realidade social brasileira. Esse projeto foi a Revista Brasiliense. Entre 1955 a 1964, ela figurou entre as principais fontes para o entendimento do debate político brasileiro. O lançamento do primeiro número da revista ocorreu nos momentos finais da campanha presidencial de 1955, tendo sido o manifesto de sua fundação uma decidida e clara defesa de princípios nacionalistas. Nesse sentido, também contribuiu o clima político criado com o suicídio de Getúlio Vargas. O manifesto de fundação procurou caracterizar a Revista Brasiliense independente de qualquer tipo de ordem política ou partidária, sendo orientada pelos seus próprios redatores e colaboradores. Mas em relação aos colaboradores, Fernando P. Limongi ressaltou: [...] no entanto, a consulta a lista de colaboradores revela uma nítida predominância de pessoas vinculadas ao PCB. [...] A pretensão de ser apartidária não se choca com este dado, isto é, com a nítida predominância de militantes do PCB nas páginas da R.B. Estamos diante de uma publicação dirigida por membros do PCB sem ser seu órgão oficial. É preciso, desde já, afastar hipóteses equivocadas sobre a natureza das relações PCB-R.B. A revista não é órgão oficial e tampouco é veículo de uma facção interna com pretensões de conquistar o poder (LIMONGI, 1987: 28).
Os membros do PCB que participaram da Revista Brasiliense tinham em comum um histórico de insucesso no interior do partido. Um exemplo foi a criação do jornal diário do PCB em São Paulo. O jornal funcionava no prédio da Editora Brasiliense e seu título, Hoje, fora doado por Caio Prado Júnior. No entanto, a despeito dessa colaboração, Caio Prado foi rapidamente marginalizado no interior do jornal, se incompatibilizando com seu diretor, Milton Caíres de Brito, dirigente do PCB em São Paulo. O mesmo ocorreu com Elias Chaves Neto, membro da Revista Brasiliense que, mesmo a despeito de ser um profissional na área do jornalismo, não foi levado em grande con185
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sideração pelos responsáveis do jornal Hoje, o mesmo acontecendo com Álvaro de Faria. Assim, poucos foram os comunistas da Revista Brasiliense que chegaram a ter peso nas disputas partidárias do PCB, e aqueles que participaram dessas disputas encontravam-se alijados dos centros de poder do partido quando ela se iníciou (LIMONGI, 1987). Caio Prado Júnior colaborou intensamente na Revista Brasiliense. Seus trabalhos totalizaram a soma de 31 artigos. Entre os artigos publicados por Caio Prado, figuraram seus principais trabalhos sobre a questão agrária. Os textos “Contribuição para a Análise da Questão Agrária no Brasil”, publicada em 1960 no número 28 da revista, e “Nova Contribuição para a Análise da Questão Agrária no Brasil”, publicada no número 43, no ano de 1962, foram as principais referencias de Caio Prado Júnior no debate político/intelectual com o PCB. Nesses textos, ele destacou o caráter mercantil das atividades agrárias, em oposição ao caráter feudal das atividades rurais defendidas pelo partido e por Alberto Passos. Esse debate de Caio Prado com o PCB efetuado na Revista Brasiliense prosseguiu após o fim abrupto da circulação da revista, a partir de abril de 1964, assumindo uma feição contundente e mordaz em 1966, com a publicação por Caio Prado do livro A Revolução Brasileira, forte crítica às correntes internas que controlavam o partido e defendiam a revolução democrático-burguesa.
Considerações finais A ação política e intelectual de Alberto Passos e Caio Prado, exposto nesse artigo, refletiu um momento da história do país quando muitos setores da sociedade se engajaram no processo de conhecimento da realidade social brasileira. Esse conhecimento esteve marcado por um desejo de mudança que permitisse a construção de uma sociedade mais igualitária e democrática. Alberto Passos e Caio Prado figuraram entre os intelectuais que participaram desse momento histórico, mediante inserção política no PCB. Na década de 1930, ambos ingressaram no partido em um momento em que seu projeto político se apresentava como uma possibilidade de realizar as mudanças desejadas no país. Na década de 1950 e no começo dos anos de 1960, uma série de situações, como a crise do stalinismo e o fomento do nacionalismo no Brasil, acentuaram divergências em torno da análise que o partido realizava sobre o país e as medidas que defendia para sua transformação social. Alberto Passos e Caio Prado participaram desse período de discussões, se posicionando no debate político e, desse modo, expondo as cisões que ocorriam no PCB. 186
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Intelectuais, política e cultura: Breve análise sobre Caio Prado Júnior e Alberto Passos Guimarães no PCB
Bibliografia: ALMEIDA, Lúcio Flávio Rodrigues de. Insistente desencontro: o PCB e a revolução burguesa no período 1945-64. In: MAZZEO, Antonio Carlos e LAGOA, Maria Izabel (orgs.). Corações Vermelhos: os comunistas brasileiros no século XX. São Paulo: Cortez, 2003. ARIAS, Santiane. A revista estudos sociais e a experiência de um “marxismo criador”. Dissertação (Mestrado em Sociologia) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, SP: [s.n.], 2003. CAMPOS FILHO, Romualdo Pessoa. Feudalismo, capitalismo e escravidão (na formação social brasileira). In: Princípios. Revista teórica, política e de informação. Nº 31. São Paulo: Anita Garibaldi, nov/jan, 1994. GUIMARÃES, Alberto Passos. Inflação e Monopólio no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963. ______. Quatro Séculos de Latifúndio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. IGLESIAS, Francisco (org.) Caio Prado Júnior. Coleção História, nº 26. São Paulo: Ática, 1982. LIMONGI, Fernando Papaterra. Marxismo, Nacionalismo e Cultura: Caio Prado Jr. e a Revista Brasiliense. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. Associação nacional de pós-graduação e pesquisa em ciências sociais. Vol. 2. nº 05. São Paulo: Revista dos Tribunais, LTDA, outubro de 1987. MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da Cultura Brasileira (1933-1974). 4ª ed. São Paulo: Ática, 1978. PAULA, Delsy Gonçalves de e SOARES, Paula Elise. Uma História Recôndita. A orientação socialista e as lutas no campo brasileiro. In: PAULA, Delsy Gonçalves de; STARLING, Heloisa Maria Murgel; GUIMARÃES, Juarez Rocha (orgs.). Sentimento de Reforma Agrária, Sentimento de República. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. PRADO JR., Caio. Evolução Política do Brasil e Outros Estudos. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1961. ______. A Questão Agrária. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. ______. A Revolução Brasileira. 6ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1978. REIS, José Carlos. Anos 1960: Caio Prado Jr. A reconstrução crítica do sonho de emancipação e autonomia nacional. In: REIS, José Carlos. As Identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. 5ª ed. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2002. SANTOS, Raimundo. Caio Prado Júnior na Cultura Política Brasileira. Rio de Janeiro: Mauad: FAPERJ, 2001. SEGATTO, José Antonio. O PCB e a revolução nacional-democrática. In: MAZZEO, Antonio Carlos e LAGOA, Maria Izabel (orgs.). Corações Vermelhos: os comunistas brasileiros no século XX. São Paulo: Cortez, 2003.
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X. Resenha
Autores André Botelho
Professor do Departamento de Sociologia da UFRJ e pesquisador do CNPq
Jean-Claude Bernardet
Diplomado pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris) e doutor em Artes pela ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP. Interessou-se por cinema a partir do cineclubismo, e foi crítico em O Estado de S. Paulo. Foi um dos criadores do curso de cinema da UnB, em Brasília, e deu aulas de História do Cinema Brasileiro na ECA, até se aposentar em 2004.
Clayton Romano
Mestre e Doutor em História na UNESP, campus de Franca
Entre afinidades eletivas e escolhas pragmáticas André Botelho
N
ão são simples as relações das ciências sociais com os seus clássicos, e no caso das ciências sociais praticadas no Brasil o dissenso é especialmente agudo quanto à tradição intelectual anterior à sua institucionalização como disciplina acadêmica identificada como “pensamento” social e político. Malgrado seu expressivo crescimento nas últimas décadas, o significado da pesquisa desta tradição para a busca contemporânea de conhecimento continua em aberto, não sendo incomuns visões segundo as quais as ciências sociais já deveriam ter solucionado as questões colocadas pelas interpretações mais antigas. Estamos, é claro, num dos campos de disputa pela própria definição da identidade cognitiva da disciplina. Nenhuma surpresa, pois, que certos exageros quanto à distância que nos separaria de nossos predecessores sejam cometidos, afinal, como há muito se sabe, esta é uma das estratégias mais eficientes e recorrentes sempre que uma “nova geração” busca afirmar-se. Estudando o fenômeno relativamente à reação dos jovens naturalistas ao romantismo, Machado de Assis já aconselhava a procurar divisar, na “chasqueia”, a inevitável continuidade, posto que nem mesmo “a extinção de um grande movimento literário não importa a condenação formal e absoluta de tudo o que ele afirmou; alguma coisa entra e fica de pecúlio do espírito humano” (Assis, 1962: 810). A ponderação realista de que continuidades e rupturas absolutas só são possíveis, mesmo no plano da metafísica, não parece ter sido muito acatada entre nós, afinal, prevalece ainda a impressão – nem sempre ingênua – de que nossa vida intelectual esteja sempre recomeçando do zero a cada nova geração (Schwarz, 1987). Como se tivesse ouvido o conselho machadiano, Linhagens do pensamento político brasileiro, de Gildo Marçal Brandão, persegue o fio que nos tem ligado na prática das ciências sociais, e nas suas formas correspondentes de pensar o Brasil e nele atuar, ao nosso passado intelectual, e desafiadoramente nos mostra que, também neste caso, os fios mais finos podem mesmo ser os mais firmes. 1 Trata-se 1 Adapto aqui a expressão utilizada por Gabriel Cohn (2003).
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de um programa de pesquisa consistente que, explorando a fundo as conseqüências do fato de que nenhuma inovação intelectual se realiza num vazio cognitivo, propõe nova inteligibilidade para o pensamento político-social brasileiro. Mais do que mera testemunha do passado, este constituiria o índice da existência de um corpo de problemas e soluções intelectuais – “um estoque teórico e metodológico” – a que autores de diferentes épocas são levados a se referir, ainda que indiretamente e guardadas as especificidades cognitivas e políticas de cada um, no enfrentamento de velhas questões postas pelo desenvolvimento social. Não se trata de minimizar o influxo cognitivo externo a que também as ciências sociais brasileiras estão sujeitas em sua prática cotidiana, e sim de reconhecer que, ainda assim, o pensamento político-social brasileiro tem representado “um afiado instrumento de regulação de nosso ‘mercado interno das idéias’ em suas trocas com o mercado mundial” (Brandão, 2007: 23-4). A hipótese geral do livro apresentada em seu primeiro capítulo é que os conceitos de “idealismo orgânico” e “idealismo constitucional” formulados por Oliveira Vianna possuem valor cognitivo heurístico para repensar a tradição intelectual brasileira do Império aos nossos dias, embora esses conceitos estejam referidos especialmente às relações entre Estado e sociedade. Assim, cotejando diferentes trabalhos e autores contemporâneos e do passado recente ou mais remoto, Brandão situa o liberalismo atual numa linha de continuidade que se inicia com a sugestão de Tavares Bastos sobre o caráter parasitário do Estado brasileiro, passa pela tese de Raymundo Fao ro sobre a permanência de um estamento burocrático-patrimonial e chega à proposta de Simon Schwartzman e outros “americanistas” de “(des)construção de um Estado que rompa com sua tradição ‘ibérica’ e imponha o predomínio do mercado, ou da sociedade civil, e dos mecanismos de representação sobre os de cooptação, populismo e ‘delegação’” (Brandão, 2007: 33-4). Do mesmo modo seria possível surpreender a atualização da crítica saquarema ao suposto utopismo dos liberais, malgrado seus sentidos distintos, nos trabalhos do visconde do Uruguai, do próprio Oliveira Vianna, Guerreiro Ramos, Wanderley Guilherme dos Santos entre outros. Os dois capítulos seguintes, o segundo e o terceiro, são dedicados à investigação do programa de pesquisa conservador e algumas de suas atualizações nas análises de, respectivamente, Oliveira Vianna e Oliveiros S. Ferreira. Uma questão metodológica importante suscitada pelo livro é saber se o pertencimento a uma “família” intelectual constitui um ponto de partida estrutural da análise, ou antes, um problema mais con192
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Entre afinidades eletivas e escolhas pragmáticas
tingente, cujo sentido sendo variável em relação à combinação com outros fatores internos e externos de composição das obras, somente a pesquisa comparativa poderá apontar caso a caso. Nas continuidades traçadas no livro, demonstradas especialmente no caso do “idea lismo orgânico”, as duas alternativas convivem em tensão. Afinal, apesar de algumas linhagens terem se tornado mais cristalizadas, como em qualquer família, também no caso da tradição intelectual brasileira, como bem lembra o autor, por vezes “os mais próximos são os mais distantes, e ninguém pode impedir que um Montecchio se apaixone por uma Capuleto” (Brandão, 2007: 39). Nesse sentido, um dos aspectos mais produtivos da proposta é justamente o de, ora perseguindo desenvolvimentos internos, ora cruzando diferentes linhagens, surpreender afinidades eletivas e escolhas pragmáticas onde elas não são evidentes, esperadas, intencionais – seja em termos cognitivos ou normativos. Resta observar se faz sentido – e qual é ele – dedicar-se às tarefas de pesquisas propostas em Linhagens do pensamento político brasileiro. Persuasivas respostas à questão são desenvolvidas nos três capítulos que compõem a segunda parte do livro, “Teoria política a partir da periferia”. Numa dimensão, parafraseando a justificativa de Antonio Candido quanto à investigação da formação da literatura brasileira, Brandão lembra que tal qual esta, embora galho secundário de um arbusto de segunda, pobre quando comparada às grandes etc., sendo ele que nos exprime se não nos dedicarmos ao pensamento políticosocial brasileiro ninguém mais, evidentemente, o fará por nós. Noutra, a resposta de Brandão desenvolve a sugestão segundo a qual, como idéias são forças sociopolíticas, as formulações do pensamento e das ciências sociais não são meras descrições externas, mas também influenciam a modelagem das práticas e das próprias instituições, operando ainda como um repertório a que diferentes atores sociais podem recorrer para buscar motivação, perspectiva e argumentos em suas contendas. Daí que, ultrapassando a definição minimalista de política centrada exclusivamente em seus aspectos institucionais, reconstruir as linhagens do pensamento político-social brasileiro e estabelecer relações entre elas e as nossas formas atuais de pensar acabe se revelando também uma condição do esclarecimento e redefinição das estratégias contemporâneas de atuação política. Perscrutando respostas particulares e muitas vezes descontínuas a problemas gerais, Linhagens do pensamento político brasileiro logra, enfim, reconstituir um processo de acumulação intelectual estruturado e de longa duração por dentro da tradição brasileira. Crucial para tanto é o entendimento de Brandão de que, apesar das 193
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mudanças ocorridas na sociedade brasileira, a estrutura básica sobre a qual nossos autores do passado refletiram e nós prosseguimos desafiados a refletir não foi exatamente alterada substantivamente do ponto de vista social e político e nem mesmo esgotada em termos intelectuais. Ou seja, a inteligibilidade das continuidades intelectuais encontrar-se-ia no próprio processo social, ele mesmo pouco marcado por rupturas. É que o passado, como o livro demonstra, talvez, só venha a estar “plenamente elaborado”, de fato, quando “estiverem eliminadas as causas do que passou”, para falar com Adorno (1995: 49). Por isso, a pesquisa do pensamento político-social pode, em meio ao labirinto da especialização acadêmica contemporânea, nos dar uma visão mais integrada e consistente da dimensão de processo que o nosso presente ainda oculta. Aqui justamente, ao lado das contribuições específicas à área de pesquisa na qual se inscreve, o interesse mais amplo de Linhagens do pensamento político brasileiro para as ciências sociais.
Bibliografia ASSIS, J. M. de. “A nova geração”. In: Obra Completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1962. ADORNO, T. W. “O que significa elaborar o passado”. In: Educação e emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 1995. COHN, G. “Fine differences: from Simmel to Luhmann”. Brazilian Review of Social Sciences. São Paulo: ANPOCS, vol. 2, 2003. SCHWARZ, R. “Nacional por subtração”. In: Que horas são? Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
* Sobre a obra: Gildo Marçal Brandão. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Editora Hucitec, 2007, 220p.
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Estado e cinema no Brasil
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Jean-Claude Bernardet
e meados dos anos 50 até o fim dos anos 70 aproximadamente, elaborou-se um discurso referente ao cinema brasileiro, que constitui hoje o que chamaria de historiografia clássica do cinema brasileiro. Esse discurso foi liderado por duas grandes personalidades, Alex Viany e Paulo Emílio Salles Gomes. Esta historiografia está dominada por algumas características, entre as quais se destaca a tarefa de dotar os cineastas brasileiros, em particular aqueles que iniciaram sua carreira nos anos 50, de uma tradição cinematográfica. As reflexões feitas em 1987 por Carlos Diegues a respeito da Introdução ao cinema brasileiro, de A.Viany, não deixam dúvida quanto ao papel assumido por essa historiografia, e ao seu sucesso. Este é um dos motivos pelos quais essa historiografia elaborou essencialmente uma história de cineastas, de realizadores e de filmes. Outras questões, como o mercado, a legislação, a distribuição, a exibição, o público, eram tratadas alusivamente, frequentemente a partir de fontes secundárias. Bom exemplo desse procedimento são os apêndices da Introdução ao cinema brasileiro, que reproduzem diversos textos legais, mas se eximem de qualquer análise. Outras questões, não menos relevantes para uma história do cinema, como às que dizem respeito às equipes, aos técnicos, às técnicas, ao equipamento, foram simplesmente desconsideradas. Isto não quer dizer que, vez ou outra, historiadores não sentissem que faltava alguma coisa. Paulo Emílio Salles Gomes, na Universidade de Brasília, andava insistentemente à procura de um economista que se interessasse pela economia do cinema. Uma tentativa de história econômica de um período do cinema brasileiro foi tentada por Paulo Emílio Salles Gomes, eu e um economista, no início dos anos 70, sem resultados satisfatórios. De forma que, apesar de alguns esforços, o que se acabou dominando foi esta história de cineastas e de filmes, com a rejeição de estudos econômicos, de legislação, etc. Esta historiografia, fecunda na época de sua produção, esgotouse nos anos 80, quando começou a se instalar a chamada crise da
1 Esta apresentação foi escrita para a primeira edição do livro de Anita Simis, em 1996.
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produção do cinema brasileiro. É provável que esta historiografia não tenha conseguido revelar de forma crítica o modelo sobre o qual se assentava a produção cinematográfica brasileira. De modo que, quando a dita crise se instalou, ficou difícil entendê-la, ou até impossível, e difícil também recorrer ao discurso histórico para apontar eventuais saídas. Por isso, a crise de produção gerou uma crise de discurso histórico e apontou para a necessidade de elaboração de um outro discurso. Novos objetos e novos recortes, presentes em estudos recentes realizados por pesquisadores como José Mário Ortiz ou José Inácio de Mello e Souza, indicam uma reformulação profunda da historiografia referente ao cinema brasileiro. Um dos livros que contribui decisivamente para tal reformulação é indiscutivelmente Estado e cinema no Brasil, de Anita Simis. O título já sugere um recorte diferenciado ao substituir o até agora usual adjetivo “brasileiro” por “no Brasil”. A outra parte do título “Estado e cinema” remete a um tema que, a não ser algumas reflexões rápidas em livros ou artigos ou em breves estudos pontuais, nunca tinha sido objeto de uma investigação sistemática. Penso ser necessário substituir as expressões “crise do cinema brasileiro” ou “crise da produção cinematográfica brasileira” pela expressão “decadência de um modelo de produção”, ─ se quisermos entender o que está acontecendo. Estado e cinema no Brasil é uma contribuição indispensável para a análise desse modelo. O trabalho desenvolvido por Anita Simis não constitui mais uma tese sobre cinema, mas se insere num momento difícil e conflituado de historiografia referente a cinema no Brasil, e aponta para perspectivas que acredito fecundas.
* Sobre a obra: Anita Simis. Estado e cinema no Brasil. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2008. 313p.
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Por uma nova cultura política Clayton Romano
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uase três décadas após ser deflagrado, ainda hoje pairam sérias dúvidas quanto à capacidade demonstrada pelo “processo de transição” no Brasil em consolidar uma cultura política democrática digna de tal adjetivação, com amplo lastro nas relações cotidianas da sociedade ou mesmo na condução das questões de Estado. Assim como, por exemplo, as noções de “consumismo”, “pragmatismo” e “individualismo” oferecem caminhos promissores aos analistas interessados em estudar nossa época, “corrupção”, “eleitoralismo”, “privilégios”, são os termos usualmente mobilizados para sintetizar a cultura política do nosso tempo, não sem razão. Fundado na díade democratização política versus democratização social, o progressivo distanciamento das massas em relação aos temas colocados no curso da consolidação democrática no país fez com que o sucesso desta se limitasse à eficácia na realização de pleitos eleitorais periódicos, enquanto indicadores apontam quedas sucessivas na evolução do apoio e satisfação dos brasileiros com a democracia. O Latinobarometro indica que, em 2007, apenas 30% dos brasileiros declaram-se satisfeitos com a democracia e apenas 43% apóiam esse regime político. Assim, relegado aos profissionais da política e oportunistas de plantão, o exercício democrático raramente é visto nas praças, em bandeiras e vozes, restringindo-se cada vez mais aos apertados corredores dos shoppings. E, se não há como afirmar de modo categórico a vigência de uma cultura política democrática substantiva, difundida em larga escala no interior da sociedade brasileira e de suas instituições, cabe indagar se também a esquerda e sua intelligentsia teriam abdicado daqueles valores democráticos tão ardentemente expressos cerca de trinta anos atrás. A leitura de Uma nova cultura política, de Alberto Aggio (Fundação Astrojildo Pereira, 2008, 146p.), permite aprofundar esta e outras questões. Nesse livro se reunem temas, idéias e opiniões colecionados durante o difícil trajeto da consolidação democrática no país, muito embora boa parte dos artigos e ensaios selecionados não seja dedicada apenas ao contexto brasileiro. “Ao velho estilo”, diz o autor, “esse é um 197
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livro de intervenção intelectual e o seu foco preferencial é o mundo da política, mais especificamente a política de esquerda” (p.11). Arguto, Aggio abre mão de ortodoxias e atitudes de vanguarda para “simplesmente registrar o saldo de uma reflexão pautada no diálogo, nos questionamentos, debates e posicionamentos que fazem parte de uma trajetória de afirmação de valores e práticas em defesa da democracia no campo da esquerda” (p.11). É o saldo desse debate que, em cores vivas, se registra em cada um dos capítulos nos quais se trata de personagens tão marcantes na política contemporânea, como Che e Chávez ou Allende e Pinochet. Há um espaço especial também para a importância das reflexões de Mariátegui e Gramsci, dois autores que, assimilados de alguma forma durante aquele arrebatador encontro entre comunistas e democracia, merecem sempre releituras criativas e férteis. Bastante ilustrativo, o capítulo “A revolução, seu mito e a democracia” é o texto mais antigo do livro. Publicado originalmente em 1989, num suplemento dedicado à Revolução Francesa do jornal Voz da Unidade – vale lembrar, então periódico oficial do Partido Comunista Brasileiro (PCB) –, nele o autor realiza “uma reflexão em torno do conceito de revolução, da mitologia que se formou em torno dele, e da relação nem sempre sincrônica e consonante que teve com o tema da democracia” (p 52). A partir da identificação do paradigma francês de 1789 enquanto modelo “imaginário e prático do que é ou deveria ser uma revolução” e de sua presença marcante nos horizontes da cultura ocidental e da esquerda, Aggio destaca a representação mitológica criada em torno do fato revolucionário e demonstra como as “revoluções que se seguiram, vitoriosas ou fracassadas, buscaram ou realizaram uma atualização deste mito” (p 53-54). E, de maneira desconcertante, indaga: “Ora, precisamente num contexto de modernização vivido pelo Ocidente – do qual a Revolução Francesa foi, sem dúvida, um fato decisivo, mas também o foram (e o são) o capitalismo, a industrialização e a democracia política, todos, marcas indeléveis da modernidade – seria possível a vigência de uma revolução nos moldes do paradigma oitocentista?”(p.57). Convenhamos, se nos dias de hoje tal indagação ainda é capaz de causar arrepios em militantes da esquerda brasileira, o que pensar então do impacto causado há vinte anos? E, tal como em 1989, é preciso admitir que o gesto de afirmação da democracia enquanto o combustível da revolução no tempo presente permanece sem um ator à esquerda. Como uma alma sem corpo, a cultura política democrática perambula por entre a esquerda 198
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Por uma nova cultura política
e seus partidos, sem no entanto ser incorporada integralmente por nenhum deles. Assim, a “revolução democrática” – essencial para a definitiva consolidação de uma cultura política democrática entre nós –, segue apenas como uma possibilidade, não como um fato. Mas, será possível construir uma cultura cívica democrática, como nos propõe Alberto Aggio em Uma nova cultura política, sem que haja um ator político que lhe dê forma e vazão? Enfim, será possível avançar na eliminação das desigualdades, no acesso ao mundo dos direitos, na promoção da cidadania e da justiça social, sem que haja um “intelectual coletivo” que organize a vontade coletiva das massas e seja legitimo portador de uma cultura política democrática? Com a palavra, a esquerda.
* Sobre a obra: Alberto Aggio, Uma nova cultura política, Edições Fundação Astrojildo Pereira, Brasília, 2008, 146 p.
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