As fragilidades da democracia e a urgĂŞncia das reformas
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Fundação Astrojildo Pereira SDS · Edifício Miguel Badya · Sala 322 · 70394-901 · Brasília-DF Fone: (61) 3224-2269 Fax: (61) 3226-9756 – contato@fundacaoastrojildo.org.br www.fundacaoastrojildo.org.br
Política Democrática Revista de Política e Cultura www.politicademocratica.com.br
Conselho de Redação Editor Caetano E. P. Araújo Editor Executivo Francisco Inácio de Almeida Editor Executivo Adjunto Cláudio Vitorino de Aguiar
Alberto Aggio Anivaldo Miranda Davi Emerich Dina Lida Kinoshita Ferreira Gullar George Gurgel de Oliveira
Giovanni Menegoz Ivan Alves Filho Luiz Mário Gazzaneo Luiz Sérgio Henriques Raimundo Santos
Conselho Editorial Alberto Passos Guimarães Filho Amarílio Ferreira Jr Amilcar Baiardi Antonádia Monteiro Borges Antonio Carlos Máximo Armênio Guedes Artur José Poerner Aspásia Camargo Augusto de Franco Bernardo Ricupero Celso Frederico Cícero Péricles de Carvalho Charles Pessanha Délio Mendes Denis Lerrer Rosenfield Fábio Freitas Fernando Pardellas Flávio Kothe Francisco Fausto Matogrosso Francisco José Pereira Gildo Marçal Brandão
Gilson Leão Gilvan Cavalcanti Joanildo Buriti José Antonio Segatto José Bezerra José Carlos Capinam José Cláudio Barriguelli José Monserrat Filho Luís Gustavo Wasilevsky Luiz Carlos Azedo Luiz Carlos Bresser-Pereira Luiz Eduardo Soares Luiz Gonzaga Beluzzo Luiz Werneck Vianna Marco Antonio Coelho Marco Aurélio Nogueira Maria do Socorro Ferraz Marisa Bittar Martin Cézar Feijó Michel Zaidan Milton Lahuerta
Oscar D’Alva e Souza Filho Othon Jambeiro Paulo Afonso Francisco de Carvalho Paulo Alves de Lima Paulo Bonavides Paulo César Nascimento Paulo Fábio Dantas Neto Pedro Vicente Costa Sobrinho Raul de Mattos Paixão Filho Ricardo Cravo Albin Ricardo Maranhão Roberto Mangabeira Unger Rose Marie Muraro Sérgio Augusto de Moraes Sérgio Bessermann Sinclair Mallet Guy Guerra Telma Lobo Washington Bonfim Willame Jansen Willis Santiago Guerra Filho Zander Navarro
Produção: Editorial Abaré Copyright © 2009 by Fundação Astrojildo Pereira ISSN 1518-7446
Ficha catalográfica Política Democrática – Revista de Política e Cultura – Brasília/DF: Fundação Astrojildo Pereira, 2009. No 25, dezembro/2009 200 p. 1. Política. 2. Cultura. I. Fundação Astrojildo Pereira. II. Título. CDU 32.008.1 (05) Os artigos publicados em “Política Democrática” são de responsabilidade dos respectivos autores. Podem ser livremente veiculados desde que identificada a fonte.
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Política Democrática Revista de Política e Cultura Fundação Astrojildo Pereira
As fragilidades da democracia e a urgência das reformas
Dezembro/2009
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Sobre a capa
A
carreira do cearense Nilo Firmeza, o famoso Estrigas, que ilustra a capa e a contracapa desta edição, confunde-se com a história recente de seu próprio estado natal. Seu casamento com as artes vem desde 1950, como um dos principais articuladores da Sociedade Cearense de Artes Plásticas (Scap). Desde então não largou mais o movimento artístico nacional, tornando-se vencedor de diversos salões de arte e participando de dezenas de exposições individuais e coletivas. Pintor e ilustrador consagrado, ele ajudou a escrever a história das artes plásticas no Ceará, no século XX. Não somente na qualidade de um dos seus protagonistas, mas também como memorialista e observador atento. A história de Estrigas passa pela Universidade Federal do Ceará, pois foi no Salão Nobre da Reitoria que, em dezembro de 1958, ele expôs pela primeira vez naquela instituição, já como referência da arte local. Passou a colecionar catálogos de exposições e a assinar críticas e resenhas nos jornais de Fortaleza. Daí adveio o acervo de altíssima qualidade sobre a arte cearense que mantém no seu sítio do Mondubim, onde vive com sua esposa Nilce, desde os anos 1960, e onde mantém o Mini Museu Nilo Firmeza, desde 1969.
Paralelamente a essas atividades, dedicou-se a registrar momentos da história da arte no Ceará em uma série de publicações. Ao longo de sua trajetória, também se dedicou à literatura, publicando, entre outros livros: Aspectos pré-históricos no Ceará (1969), A fase renovadora da Arte Cearense (1983), Contribuições ao reconhecimento de Raimundo Cela (1988), Barrica: o alquimista da Arte (1993), entre outros. No fim de 2008, fruto de cerca de seis horas de entrevista acerca de percepções múltiplas através dos seus olhos, nascia A Grande Arte de Estrigas, livro que adentra o universo deste grande artista de noventa anos de idade, com mais de dois terços de século dedicados à expressão artística brasileira. Como ele mesmo diz: “muita vida e muita arte”.
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Sumário I. Apresentação.............................................................................. 7 II. Tema de capa Para onde vamos?
Fernando Henrique Cardoso.......................................................................................13
Tópicos para um debate sobre conjuntura
Luiz Werneck Vianna..................................................................................................16
A crise do Congresso e das instituições
Roberto Freire............................................................................................................20
III. Os 120 anos da República Livres como nunca, desiguais como sempre, porém mais fraternos
Alberto Aggio..............................................................................................................31
IV. Observatório Político Lulismo: para além do PT
Rudá Ricci..................................................................................................................43
O diverso que nos mete medo. Por que a tolerância não nos basta mais?
Zigmunt Bauman........................................................................................................48
A presunção do Ocidente. Não existe uma civilização superior
Remo Bodei................................................................................................................51
V. Batalha das ideias A ofensiva teórica contra os direitos do homem
Ruy Fausto................................................................................................................57
Crescimento Econômico versus Desenvolvimento Social
Ariosto Holanda.........................................................................................................66
Notas sobre marxismo, intelectuais e democracia
Bruno Gravagnuolo ...................................................................................................72
VI. Comportamental Normalidade, pra que te quero?
Maria Cristina Ramos Britto........................................................................................79
VII. Economia e finanças Considerações e propostas por uma nova política econômica
Tony Volpon e Demetrio Carneiro................................................................................85
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Uma nova política pública de eletrificação rural em São Paulo
Paulo Ernesto Strazzi e Sinclair Mallet Guy Guerra......................................................97
VIII. Mundo Reflexões para avançar o Partido Democrático
Massimo D’Alema . ..................................................................................................105
Dez erros sobre a crise de Honduras
Raul Jungmann........................................................................................................111
IX. Ensaio Reflexões sobre prostituição na contemporaneidade
Almira Rodrigues . ...................................................................................................119
X. Vida Cultural Moby Dick: o antiFausto de Aderbal
Luiz Eduardo Soares ...............................................................................................133
XI. Resgatando a história Euclides da Cunha, o reformador do Brasil
Ivan Alves Filho........................................................................................................141
O PCB na Paraíba e a luta de massas democrática no pré-golpe militar
Rodrigo Freire de Carvalho e Silva............................................................................147
O papel de lideranças atuais do PT na transição para o pluripartidarismo (1978 -1980) – Marcos Evandro Cardoso Santi.......................................................156
XII. Memória Há 20 anos, um brasileiro na Revolução de Veludo
Cláudio de Oliveira...................................................................................................167
Um homem insubstituível
Rubens Bueno . .......................................................................................................174
Haj Mussi
Fábio Campana........................................................................................................176
Homenagem a um grande intelectual público –
Marco Aurélio Nogueira.............................................................................................178
XIII. Resenha As “ideias italianas” no Brasil – Luiz Sérgio Henriques........................................183 A análise da imigração, à luz de Sayad – Leonardo Cavalcante..........................188 Rui Facó e os pobres do campo – Dora Vianna Vasconcellos...............................190 Participação cidadã – Pedro A. Ribeiro de Oliveira.................................................196
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I. Apresentação Caetano Araujo Professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB), consultor legislativo do Senado Federal e presidente da Fundação Astrojildo Pereira (FAP). araujo.caetano@gmail.com
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A
presente edição de Política Democrática abre suas páginas com a discussão das fragilidades que nossa democracia apresenta, após 21 anos de operação da Constituição de 1988.
Não se trata, evidentemente, de negar os avanços, na perspectiva da democracia, que a nova Carta incorporou. A universalização do direito de voto, a relação de direitos e garantias individuais, a criação de mecanismos capazes de fazer valer esses direitos, mesmo no caso da omissão do Estado, novos instrumentos de participação popular, o sistema inclusivo de seguridade social, Ministério Público independente, são inovações na história das constituições brasileiras, muitas delas ainda pouco utilizadas pelos cidadãos e demais atores sociais. Trata-se, sim, de verificar, à luz da experiência dos últimos 21 anos, quais os elementos da arquitetura institucional construída na Constituinte que trabalham, muitas vezes à revelia da intenção dos participantes do processo, na contramão do rumo democratizante da Carta. O artigo de Fernando Henrique Cardoso identifica no horizonte político atual uma enxurrada de pequenas decisões, palavras e atitudes emanadas do governo que minam, dia a dia, as fundações da democracia. Esses grãos de autoritarismo, originados de uma concepção “autoritária-popular” da política, emperram e desgastam, dia a dia, as engrenagens da institucionalidade democrática que a Constituição abriga. O risco é o retrocesso: uma situação em que o acúmulo de pequenos entraves para por completo a máquina democrática, sem que a maioria dos cidadãos sequer aperceba-se inicialmente desse fato. Luiz Werneck Vianna, por sua vez, aproxima a conjuntura presente da tradição brasileira de modernização a partir do alto, centrada na aglutinação e harmonização de interesses no interior do aparelho de Estado, no qual a acomodação seletiva de determinados setores populares ocorre paralelamente a seu alijamento dos processos decisórios. Satisfação de demandas imediatas, apoio popular, heteronomia ao invés de autonomia do cidadão. Tudo alimentado pelo sucesso recente do capitalismo brasileiro, que agora transborda as fronteiras nacionais e caminha para uma inédita posição na economia globalizada. O texto de Roberto Freire tem como foco a crise vivida pelo Senado Federal ao longo dos últimos meses. Tem o mérito, incomum, de evitar a armadilha de pensar a crise de forma isolada, como se sua origem e solução estivessem contidas nas paredes daquela Casa. Expõe, pelo contrário, a relação umbilical da crise com a operação da
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I. Apresentação
política brasileira como um todo, em particular com a subordinação do Legislativo perante o Executivo e a consequente omissão daquele Poder no cumprimento de suas tarefas constitucionais, legislativas e fiscalizadoras. Os três autores ressaltam a centralidade de uma vontade política instalada no Poder Executivo para a produção do estado de coisas que descrevem e criticam. Não há como negar que a coalizão governista dá mostra pelo menos de cegueira face às questões levantadas. Comporta-se como se o apoio popular suprisse todo deslize democrático e varresse os problemas para debaixo do tapete. É preciso, porém, ir além dessa constatação. Há espaço e précondições institucionais que tornam esse comportamento possível. Não basta, nessa perspectiva, barrar o continuísmo, ou seja, simplesmente mudar os ocupantes do Palácio do Planalto. É indispensável tampar os buracos institucionais por onde circulam os grãos de autoritarismo, a produção da heteronomia do cidadão, a subordinação e paralisia do Legislativo. Na verdade, os três autores apontam o buraco, de maneira mais ou menos explícita. Fernando Henrique Cardoso diz claramente: os partidos estão desmoralizados. E a falta de partidos, poderia acrescentar, é condição para a fusão de Estado, sindicatos e movimentos sociais nos altos-fornos do Tesouro. Werneck Vianna bate na mesma tecla: partidos políticos cortam relações com a sociedade e tornam-se partidos de Estado. Apagam-se partidos, avultam representações de interesses de caráter corporativo e funcional. É o caminho da heteronomia. Também Roberto Freire vai nessa direção: cooptação do Executivo e delegação de poderes por parte do Legislativo. Que há por trás dessa configuração perversa para a democracia? Partidos fracos, legislativos que se defrontam ao Executivo pulverizados, debilidade da representação popular, na sua diversidade política e ideológica. Em suma, nas três perspectivas que Política Democrática divulga, hoje a fraqueza dos partidos pode ser identificada como o calcanhar de aquiles da democracia brasileira. Nela alimentam-se os germes do retrocesso, ali está a raiz das crises sucessivas que, inclusive antes do episódio do mensalão, minam a legitimidade do sistema perante o cidadão. Só uma conclusão política é possível: a reforma do sistema eleitoral e partidário continua premente e deve ser incorporada como primeira tarefa da agenda de todos aqueles interessados na consolidação da democracia brasileira.
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II. Tema de capa
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Autores Fernando Henrique Cardoso Sociólogo, ex-presidente da República
Luiz Werneck Vianna
Sociólogo e professor do Iuperj, autor de Esquerda brasileira e tradição republicana (Revan), entre outros
Roberto Freire
Advogado, ex-deputado federal e ex-senador da República, presidente nacional do Partido Popular Socialista (PPS)
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Para onde vamos? Fernando Henrique Cardoso
A
enxurrada de decisões governamentais esdrúxulas, frases presidenciais aparentemente sem sentido e muita propaganda talvez levem as pessoas de bom senso a se perguntarem: afinal, para onde vamos? Coloco o advérbio “talvez” porque algumas estão de tal modo inebriadas com “o maior espetáculo da Terra”, de riqueza fácil que beneficia a poucos, que tenho dúvidas. Parece mais confortável fazer de conta que tudo vai bem e esquecer as transgressões cotidianas, o discricionarismo das decisões, o atropelo, se não da lei, dos bons costumes. Tornou-se habitual dizer que o governo Lula deu continuidade ao que de bom foi feito pelo governo anterior e ainda por cima melhorou muita coisa. Então por que e para que questionar os pequenos desvios de conduta ou pequenos arranhões na lei? Só que cada pequena transgressão, cada desvio vai se acumulando até desfigurar o original. Como dizia o famoso príncipe tresloucado, nesta loucura há método. Método que provavelmente não advenha do nosso príncipe, apenas vítima, quem sabe, de apoteose verbal. Mas tudo o que o cerca possui um DNA que, mesmo sem conspiração alguma, pode levar o país, devagarzinho, quase sem que se perceba, a moldar-se a um estilo de política e a uma forma de relacionamento entre Estado, economia e sociedade que pouco têm a ver com nossos ideais democráticos. É possível escolher ao acaso os exemplos de “pequenos assassinatos”. Por que fazer o Congresso engolir, sem tempo para respirar, uma mudança na legislação do petróleo mal explicada, mal-ajambrada? Mudança que nem sequer pode ser apresentada como uma 13
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II. Tema de capa
bandeira “nacionalista”, pois se o sistema atual de concessões fosse “entreguista” deveria ter sido banido, e não o foi. Apenas se juntou a ele o sistema de partilha, sujeito a três ou quatro instâncias políticoburocráticas para dificultar a vida dos empresários e cevar os facilitadores de negócios na máquina pública. Por que anunciar quem venceu a concorrência para a compra de aviões militares se o processo de seleção não terminou? Por que tanto ruído e tanta ingerência governamental em uma companhia (a Vale) que, se não é totalmente privada, possui capital misto regido pelo estatuto das empresas privadas? Por que antecipar a campanha eleitoral e, sem qualquer pudor, passear pelo Brasil à custa do Tesouro (tirando dinheiro do seu, do meu, do nosso bolso) exibindo uma candidata claudicante? Por que, na política externa, esquecerse de que no Irã há forças democráticas, muçulmanas inclusive, que lutam contra Ahmadinejad e fazer mesuras a quem não se preocupa com a paz ou os direitos humanos? Pouco a pouco, por trás do que podem parecer gestos isolados e nem tão graves assim, o DNA do autoritarismo popular vai minando o espírito da democracia constitucional. Essa supõe regras, informação, participação, representação e deliberação consciente. Na contramão disso tudo, vamos regressando a formas políticas do tempo do autoritarismo militar, quando os “projetos de impacto” (alguns dos quais viraram “esqueletos”, quer dizer obras que deixaram penduradas no Tesouro dívidas impagáveis) animavam as empreiteiras e inflavam os corações dos ilusos: “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Em pauta temos a Transnordestina, o trem-bala, a Norte-Sul, a transposição do São Francisco e as centenas de pequenas obras do PAC que, boas algumas, outras nem tanto, jorram aos borbotões no Orçamento e minguam pela falta de competência operacional ou por desvios barrados pelo TCU. Não importa: no alarido da publicidade, é como se o povo já fruísse os benefícios: Minha Casa, Minha Vida; biodiesel de mamona, redenção da agricultura familiar; etanol para o mundo e, na voragem de novos slogans, pré-sal para todos. Diferentemente do que ocorria com o autoritarismo militar, o atual não põe ninguém na cadeia. Mas da própria boca presidencial saem impropérios para matar moralmente empresários, políticos, jornalistas ou quem quer que seja que ouse discordar do estilo “Brasil-po tência”. Até mesmo a apologia da bomba atômica como instrumento para que cheguemos ao Conselho de Segurança da ONU – contra a letra expressa da Constituição – vez por outra é defendida por altos funcionários, sem que se pergunte à cidadania qual o melhor rumo para o Brasil. Até porque o presidente já declarou que, em matéria de 14
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Para onde vamos?
objetivos estratégicos (como a compra dos caças), ele resolve sozinho. Pena que tivesse se esquecido de acrescentar l’État c’est moi. Mas não esqueceu de dar as razões que o levaram a tal decisão estratégica: viu que havia piratas na Somália e, portanto, precisamos de aviões de caça para defender “nosso pré-sal”. Está bem, tudo muito lógico. Pode ser grave, mas, dirão os realistas, o tempo passa e o que fica são os resultados. Entre esses, contudo, há alguns preocupantes. Se há lógica nos despautérios, ela é uma só: a do poder sem limites. Poder presidencial com aplausos do povo, como em toda boa situação autoritária, e poder burocrático-corporativo, sem graça alguma para o povo. Esse último tem método. Estado e sindicatos, Estado e movimentos sociais estão cada vez mais fundidos nos altos-fornos do Tesouro. Os partidos estão desmoralizados. Foi no dedaço que Lula escolheu a candidata do PT à sucessão, como faziam os presidentes mexicanos nos tempos do predomínio do PRI. Devastados os partidos, se Dilma ganhar as eleições sobrará um subperonismo (o lulismo) contagiando os dóceis fragmentos partidários, uma burocracia sindical aninhada no Estado e, como base do bloco de poder, a força dos fundos de pensão. Esses são estrelas novas. Surgiram no firmamento, mudaram de trajetória e nossos vorazes, mas ingênuos capitalistas, recebem deles o abraço da morte. Com uma ajudinha do BNDES, então, tudo fica perfeito: temos a aliança entre o Estado, os sindicatos, os fundos de pensão e os felizardos de grandes empresas que a eles se associam. Ora dirão (já que falei de estrelas), os fundos de pensão constituem a mola da economia moderna. É certo. Só que os nossos pertencem a funcionários de empresas públicas. Ora, nessas, o PT que já dominava a representação dos empregados, domina agora a dos empregadores (governo). Com isso, os fundos se tornaram instrumentos de poder político, não propriamente de um partido, mas do segmento sindical-corporativo que o domina. No Brasil os fundos de pensão não são apenas acionistas – com a liberdade de vender e comprar em bolsas –, mas gestores: participam dos blocos de controle ou dos conselhos de empresas privadas ou “privatizadas”. Partidos fracos, sindicatos fortes, fundos de pensão convergindo com os interesses de um partido no governo e para eles atraindo sócios privados privilegiados, eis o bloco sobre o qual o subperonismo lulista se sustentará no futuro, se ganhar as eleições. Comecei com “para onde vamos”? Termino dizendo que é mais do que tempo de dar um basta ao continuísmo, antes que seja tarde.
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Tópicos para um debate sobre conjuntura
Luiz Werneck Vianna 1. O capitalismo brasileiro é um experimento bem sucedido. Atestam isso o seu parque industrial diversificado, um mercado interno em expansão, um pujante agronegócio e um sistema financeiro racionalizado, que se mostrou capaz de atravessar sem maiores abalos a crise mundial de 2008. Seu sistema de justiça se encontra sob uma profunda reforma que o deixará mais previsível e racionalizado, os gastos públicos estão submetidos a controles que se tornam cada vez mais eficientes. Por meio de uma continuada política de Estado, foi formada uma base técnico-científica, que ora se amplia e se articula com o sistema produtivo, do que a Embrapa talvez se constitua no melhor exemplo, e já avança para formação de um complexo industrial-militar, em particular nas áreas da engenharia naval e aeronáutica. 2. A crise de 2008 serviu-lhe como um duro teste, quando ficou comprovada a sua solidez. Do êxito da sua estratégia de defesa face à crise, resultaram tanto a sua consolidação no plano interno quanto oportunidades para se projetar no mundo exterior. O capitalismo brasileiro vive uma circunstância que o conduz a um desbordamento para além dos limites nacionais. Mais do que burguesa, essa já é uma ordem grão-burguesa, não apenas escorada pela força expansiva do seu mercado, mas, a essa altura, também levada à frente por uma estratégia de Estado consciente dos seus objetivos econômicos e políticos de maximização de poder, em estreita articulação com o grande empresariado. 3. Essa projeção do Brasil vem sendo compreendida de modo benfazejo pelos principais protagonistas na cena internacional, que a tem favorecido, não só pela natureza emergente da sua economia, como também por sua história de paz com seus vizinhos e sua cultura de boa convivência entre religiões e etnias diversas.
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Tópicos para um debate sobre conjuntura
4. Não se pode, entretanto, ignorar que a crescente mobilização de recursos e fins da política para a condução da economia já indicam uma via de capitalismo politicamente orientado, velha conhecida da tradição republicana brasileira, a partir da qual, em conjunturas diversas – a de Vargas, a de JK, e a do regime militar – realizou-se o processo de modernização do país. 5. Se já havia elementos embrionários desse processo, aparentes em particular no segundo mandato do governo Lula, a crise, que denunciou a incapacidade do mercado de se autorregular, ao trazer de volta o tema do Estado e do seu papel como agência organizadora da economia, atualizou, imprevistamente, o repertório da tradição republicana brasileira. Assim com a ênfase que passa a ser concedida à questão nacional (desacompanhada da cláusula do popular, que importava uma luta pela hegemonia entre a fração da burguesia nacional e o movimento operário e sindical, que, na conjuntura da época, intensificava uma postura de autonomia diante do sindicalismo atrelado ao Estado); com os patéticos postulados de grandeza nacional que já se fazem ouvir; com o desenvolvimentismo, quando políticas estratégicas são conduzidas pelo Estado sem anuência explícita da sociedade civil e suas instâncias de deliberação. A mobilização de tal repertório tem ignorado a crítica que lhe foi feita pelos movimentos democráticos e populares, no curso de suas lutas contra o regime autoritário, consagrada institucionalmente na Carta de 1988, que, ao preservar a instância do público como dimensão estratégica, submeteu-a ao controle democrático da sociedade. 6. A apropriação repentina desse repertório pela esquerda que se encontra na chefia do governo, que, antes, com a teoria do populismo e com a denúncia da natureza patrimonial do Estado, foi uma das suas principais críticas – de acordo com a interpretação dos mais eminentes intelectuais que tiveram influência na formação do PT, o nacional-desenvolvimentismo teria sido uma típica floração autoritária da ordem patrimonial brasileira – parece significar, por ora, mais uma mudança provocada por motivos contingentes do que fundamentada em razões programáticas. Contudo, devem-se ter presentes os riscos de que tais práticas alcancem o enunciado de um discurso coerente. 7. A tradição da esquerda de pensar o todo pela perspectiva das partes é abandonada. É o todo, detentor das razões do bem comum, que, por meio de uma intelligentsia iluminada, constituída princiLuiz Werneck Vianna
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II. Tema de capa
palmente por economistas, deve cuidar da articulação dos diferentes interesses das partes, processando-os no interior do Estado. Daí tem derivado a percepção da sociedade como uma comunidade fraterna; o Estado pluriclassista não se apresenta como intérprete de qualquer classe em particular, mas como um intérprete de todos, ponderando-os segundo os cálculos racionais que responderiam aos objetivos do desenvolvimento. 8. Tem-se, mais uma vez, uma modernização a partir do alto, que abriga no seu núcleo diretivo as principais representações das frações burguesas do país, e que procura justificar suas ações em nome de uma imaginada comunidade fraterna. Dessa modernização não deve provir o moderno, que suporia autonomia dos sujeitos na trama do social, e sim heteronomia. 9. Mais que mudanças tópicas ou de ênfase, é toda uma forma de Estado que ressurge, em particular no novo papel concedido às corporações e à representação funcional, evidente nas funções delegadas ao Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES). O Estado se amplia com a incorporação de representantes das entidades classistas de empresários e de trabalhadores, e são guindadas à condução de ministérios estratégicos as lideranças das múltiplas frações da burguesia brasileira – a industrial, a comercial, a financeira, a agrária, inclusive estes culaques à brasileira, que começaram a sua história na pequena e média propriedade – lado a lado com as centrais sindicais e com os representantes do Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST). 10. A política é capturada pelo Estado; de outra parte, o presidencialismo de coalizão em vigência converte os partidos políticos em partidos de Estado e sem representação significativa na sociedade civil. Tal configuração veio a ser reforçada pela crise de 2008, levando a uma revalorização acrítica do Estado Novo e até mesmo de governos do regime militar. 12. Exemplo, entre tantos, da avocação do repertório da tradição republicana: a contribuição sindical. Com a incorporação das centrais sindicais à estrutura jurídica, elas foram credenciadas a terem direito sobre a contribuição arrecadada de toda a massa da população trabalhadora, independente de filiação sindical; dotadas de recursos próprios, as burocracias das centrais sindicais tendem a gozar de autonomia frente a seus filiados; tendência à verticalização e ao domínio das bases pela cúpulas.
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Tópicos para um debate sobre conjuntura
13. Por toda parte: centralização, verticalização. Pré-sal, Petrobras, o sistema financeiro estatal brasileiro, a Vale, grandes empreiteiras da construção civil, complexo industrial-militar, cooptação da intelligentsia, dos sindicatos e movimentos sociais. Não é um bom presságio para a democracia brasileira se apresentar sob a retórica de significar uma comunidade fraterna quando se encontra envolvida em uma política de vocação grã-burguesa. Como também não é o fato da sociedade, em sua diversidade, se deixar subsumir ao Estado, conferindo à liderança de um chefe de governo carismático a tarefa de cimentar a unidade dos seus contrários. Estamos conscientes dos riscos aí envolvidos? A pergunta deve incluir como destinatários os principais atores políticos que estão a dirigir esse processo. 14. É falso e anacrônico conceber a próxima sucessão eleitoral como a reedição dos embates entre a UDN e o PTB. Estado forte, sim, mas sob controle da sociedade, e não sobreposto assimetricamente a ela.
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A crise do Congresso e das instituições
Roberto Freire
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ampla e generalizada crise das instituições democráticas, sob o presidencialismo imperial que vige em nossa República, da qual a que tocou o Senado é tão somente um sintoma, exige dos brasileiros uma profunda reflexão. Pois, o que está em jogo é o próprio desenvolvimento e ampliação do processo democrático no país, tão arduamente conquistado, visto que um dos aspectos mais notórios dessa crise é a depreciação da política como importante elemento civilizatório, e de sua prática, como efetivo instrumento de mudanças. Se nos cingirmos à crise que dominou o Senado, podemos reconhecer duas origens básicas. Uma é interna, de caráter políticoadministrativo, que tem a ver com sua forma de gestão, envolvendo, no decorrer silencioso de anos, a cristalização do compadrio, do nepotismo, do patrimonialismo, das sedimentadas formas pouco republicanas de administração da coisa pública, “coroada” com a edição de mais de quinhentos “atos secretos”. Tudo isso configura uma verdadeira afronta ao princípio da lei, da publicização e da transparência de seus atos, ao beneficiar, de maneira sorrateira, vários senadores de diferentes partidos, em um verdadeiro conluio com funcionários responsáveis pela administração das várias diretorias – a maioria delas desnecessárias – da Casa. Outra origem, e apesar da gravidade das questões internas referidas, diz respeito à indevida intromissão do chefe do Executivo, o presidente Lula, em questões que dizem respeito exclusivamente ao Legislativo, o que conforma o aspecto externo da crise. Aí se encontra o seu caráter essencialmente político, seu aspecto mais saliente. Mirando, tão somente, seus interesses políticos eleitorais, na perseguição de uma aliança com o PMDB para dar suporte à sua já lançada candidata, a atual ministra da Casa Civil – aliás, em plena campanha ao arrepio da lei –, Lula subordina todo um Poder da República, em seu benefício, sendo o principal sustentáculo do
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atual presidente do Senado, José Sarney, o político que encarna, lamentavelmente, há algum tempo, inaceitáveis e odiadas práticas políticas, na condução da Câmara Alta. Sendo, inclusive, alvo de várias denúncias de imoralidades e ilícitos investigados pelo Ministério Público e pela Polícia Federal. É essa intrusão do presidente da República no Legislativo o elemento político central da crise que a cidadania assistiu estarrecida. Pois, por trás dessa diuturna “operação abafa”, no sentido de preservar a todo custo um presidente do Senado agastado e desmoralizado perante a opinião pública, houve também, não devemos esquecer, o desejo de subordinar o Senado aos ditames do Executivo, refletido na necessidade de desarticular a CPI da Petrobrás, para a qual o governo tem mobilizado todos os seus esforços. Sem esquecer, ainda, a pedagogicamente nociva declaração presidencial de que “Sarney não é um homem comum”, reveladora de que certas personalidades nacionais podem fazer as ilegalidades que bem desejarem. Podemos ainda levantar dois outros aspectos que devem ser lembrados, para termos uma ideia mais precisa do fenômeno que estamos observando. Um de caráter histórico, e outro geopolítico. Primeiro, o aspecto histórico. Como se sabe, o Senado brasileiro foi criado, segundo o modelo inglês, quando de nossa 1ª Constituição, em 1824, inclusive, com seus senadores vitalícios... Com o advento da República, em 1889, adotou-se o modelo inspirado nos Estados Unidos. Nesses dois períodos históricos, independentemente do regime político e do sistema de governo, a característica marcante do Senado sempre foi o de ser espaço das forças conservadoras, ligadas ao latifúndio, prioritariamente, e à burguesia mercantil. Esse mesmo traço característico é perceptível em todos os países latino-americanos, quando de seus processos de independência, momento em que se consolidaram seus parlamentos nacionais. O Senado era o espaço dos setores mais conservadores, os representantes da velha aristocracia, dos latifundiários e de velhos próceres do antigo regime... Padecemos, assim de uma característica comum, a de uma Câmara Alta infensa aos anseios e aspirações populares, desde quando nos constituímos como Estado-nação... Com a consolidação da República, a partir da Constituição de 1891, e a mudança do regime, agora presidencialista, como o modelo norte-americano, sedimentamos uma concepção de República Federativa, em que as velhas forças dominantes encontraram no Senado seu locus de influência política, durante o período, que se convencionou chamar de “República Velha”. Roberto Freire
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E é nesse período, que mais claramente isso pode ser observado, com a ação política de figuras como o senador Pinheiro Machado, então líder da bancada gaúcha, e presidente do Senado e da Comissão de Verificação de Poderes, ao constituir-se no mais poderoso e influente chefe político brasileiro, com ascendência, inclusive, sobre o próprio presidente da República. E o Senado, que é o que mais de perto nos interessa, destacou-se por ser um instrumento de consolidação de interesses regionais e estruturas de poder assentadas no latifúndio, nas oligarquias que comandavam, desde os estados, a política nacional. Essa característica, aliás, será um dos aspectos que os tenentistas de 1922 irão atacar, denunciando seu caráter retrógrado, em linguagem da época, em suas agitações, com grande acolhida no Brasil urbano e industrial, do período, até culminar na Revolução de 30, movimento civil e militar, que estabeleceu todo um novo horizonte de perspectivas, buscando superar a “política dos favores” e dos “conchavos” que marcaram essa quadra de nossa História republicana. Com a Revolução de 30, e a ascensão de Getúlio Vargas ao Governo Provisório, inicia-se um processo de funda agitação política – revolução constitucionalista de 32, Constituinte de 1934, Aliança Nacional Libertadora e o movimento comunista de 35, manifestações integralistas – tudo calado, em 1937, pela instituição da ditadura do Estado Novo getulista, de caráter claramente fascista. Foi um longo período que deixou um pouquíssimo tempo para a existência de um Parlamento e da liberdade. Apenas com a redemocratização, em 1945, o Poder Legislativo vai poder resgatar seu papel de mediador das aspirações difusas da cidadania junto ao Estado, no processo de construção de uma nova ordem institucional que a Assembleia Constituinte iria efetivar. O Senado volta a funcionar, com três representantes por estado, uma semana depois de promulgada a Constituição de 1946, em 24 de setembro. Voltamos, contudo, rapidamente à excepcionalidade, pois em 1947 um de seus senadores, Luiz Carlos Prestes, é cassado junto com todos os deputados federais comunistas, quando o Partido Comunista Brasileiro perde seu registro, e é empurrado para a clandestinidade. O fato é que até o golpe militar de 1o de abril de 1964, o Senado, mesmo com uma forte presença dos conservadores, torna-se uma arena das lutas políticas que agitavam o Brasil, mormente no período pós-JK, quando o movimento dos trabalhadores da cidade e do campo lastreava o profundo anseio nacional pelas “reformas de base”, e 22
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sua extensa pauta mudancista, em que se destacava a reforma agrária, histórica aspiração das massas camponesas, e maior intervenção do Estado na economia, com a luta pela estatização de importantes empresas estrangeiras. Com o golpe e a implantação da ditadura militar, o Senado foi um dos espaços de apoio do regime de exceção, na fase mais negra da repressão, inaugurado com o AI-5, em dezembro de 1968. Porém, foi também o Senado, depois de 1974, um espaço privilegiado para a luta de redemocratização. Não por outro motivo, a ditadura militar teve que fechá-lo com o “pacote de abril”, de 1977, no governo Geisel que, entre outros instrumentos e práticas discricionárias, adotou a escolha de senadores “biônicos”, escolhidos pelo regime militar, para garantir a maioria no Senado, visto que, na Câmara Federal, estava em vias de perdê-la. Por esta ligeira digressão histórica é possível perceber que o Senado foi fechado em épocas ditatoriais, como na implantação e vigência do Estado Novo getulista, em 1937, e no período da ditadura militar, 40 anos depois. Fechado, note-se bem, mas não desmoralizado! Infelizmente, hoje, a desmoralização é quase uma realidade por meio de uma série de ações comandadas pelo presidente da República, com o beneplácito de muitos de seus membros – famosa tropa de choque liderada por Renan Calheiros e Fernando Collor – que, na prática, ajudam a anular a ação do Legislativo e o torna refém dos interesses do Executivo. Outro aspecto que gostaria de referir diz respeito à conjuntura política do nosso continente que, após a assunção ao poder do coronel Hugo Chávez, na Venezuela, tem se evidenciado uma pressão cada vez maior dos executivos de alguns países sobre as outras instituições republicanas, tanto os legislativos como os judiciários. Essa pressão a que me refiro é função do esvaziamento dos outros poderes em benefício dos interesses dos chefes dos Executivos. Assim, depois de várias tentativas, o coronel Chávez conseguiu, finalmente, arrancar de um Legislativo submisso, a possibilidade de se reeleger quantas vezes quiser. O mesmo caminho trilhado pela Bolívia, com Evo Morales, pelo Equador, de Rafael Corrêa, pela Colômbia, de Álvaro Uribe, pela Argentina, sob Cristina Kirchner, sem esquecermos que a matriz desse movimento antidemocrático remonta a Fujimori, no Peru, no século passado. Não credito tal movimento a uma ação do acaso... Sabemos, desde Montesquieu que, em sua obra fundamental, O Espírito das Leis (1748), defendeu a repartição e autonomia dos poderes, que a ideia Roberto Freire
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de República é indissociável desse preceito. E que todas às vezes que ele é ferido, como sabemos na própria carne, abrimos as portas para todo tipo de autocracia. O mais grave é que não apenas estamos assistindo a uma clara tentativa de hegemonização do Executivo frente ao Legislativo, em que é perceptível o traço comum de uma postura voluntarista, de caráter bonapartista que, em sua adulação às massas, por meio de uma política clientelista e um discurso que se tinge de um nacionalismo primário, de caráter estatizante, busca consolidar formas cada vez mais sutis e autoritárias de governo. Não por outro motivo, depois da submissão dos legislativos, o alvo desses governos é dirigido contra os meios de comunicação e a opinião pública. Estamos, aqui no Brasil, testemunhando a volta da censura, como a que está sofrendo o jornal Estado de S. Paulo... Esse o percurso clássico de todas as ditaduras... Nesse aspecto, em particular, também não é fruto do acaso o apoio, velado ou não, de nosso presidente a essas ações que, em última instância, ameaçam a consolidação e o aprofundamento do processo democrático no continente. Agravado agora, com um sensível aumento da possibilidade de confrontação entre alguns países, fruto da crescente instabilidade desses processos políticos, e do preocupante de gastos com armamentos, como ora estamos assistindo. Se levarmos em consideração esses dois aspectos aqui destacados, fica evidente que a submissão do Legislativo faz parte de um contexto maior, com implicações que não podem ser negligenciadas. A recente crise do Senado teve como preâmbulo a tentativa de captura da Câmara Federal por meio do que se convencionou chamar de “mensalão”. Ali estava o germe da intervenção do Executivo sobre o Legislativo, no primeiro mandato do governo Lula. A prática fisiológica e o aparelhamento do Estado, como formas de se estabelecer “maioria”, têm nos causado, entre outras coisas, a crescente desmoralização da política e o desprezo do Parlamento como instância de representação da sociedade. A prática levada a cabo pelo governo Lula de cooptação de parlamentares para sua base, a qualquer custo, a partir de ações não republicanas, e o enorme número de Medidas Provisórias (MPs) para apreciação e deliberação do Congresso, fazem com que o Executivo, na prática, determine a pauta do Legislativo, impedindo esse Poder de exercer sua missão precípua de elaboração de leis e fiscalização dos atos do Executivo.
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Assim sendo, se considerarmos os interesses do governo Lula, no exato momento em que o mesmo não apenas atropela o calendário eleitoral, ao definir, à revelia de seu próprio partido, a candidata à sua sucessão, e a busca em consolidar uma aliança política com o PMDB, partido com a maior bancada no Congresso, fica claro que sua intervenção no Senado transformou uma crise eminentemente político-administrativa em séria crise política. Porque ao subordinar sua base política, nessa Casa, na desesperada defesa de seu presidente e principal aliado para a possibilidade da referida aliança política, entre seus respectivos partidos, estabeleceu uma intervenção “branca”, por meio do controle que exerce sobre sua base, o que a impediu de aceitar denúncia no Conselho de Ética contra José Sarney. Em todo caso, todas as forças comprometidas com o avanço do processo democrático, no país, devem também ter muito claro o significado da oportunidade que essa crise no Senado nos propiciou. Pois está cada vez mais evidente que temos que superar as mazelas de nosso Legislativo. E tal movimento só será possível com uma ampla mobilização da opinião pública e pressão da sociedade, e um consistente esforço desses poderes no sentido da transparência e publicização de seus atos. Em termos práticos, está claro que o Senado, dada sua importância para a consolidação do princípio federativo de nossa República, não pode funcionar sem a necessária transparência administrativa, que se exige de todo órgão público. Muito menos continuar sendo a Casa de mandatários sem votos, apreciando matérias importantíssimas sem ter que prestar contas a ninguém de seus atos e posicionamentos. Parlamentaristas que somos, temos absoluta clareza da neces sidade de redefinição do papel do Senado, quando do estabelecimento desse sistema de governo no país, como defendemos. Até lá, contudo, temos que nos debruçar sobre sua representatividade, adotando sempre o critério do voto como elemento decisivo da representação. Nesse sentido a figura do suplente seria episódica. Por nossa proposta, os senadores não poderiam assumir qualquer cargo no executivo, sem perda do mandato. Declarada a vacância do cargo, assumiria o suplente até a próxima eleição – temos eleições a cada dois anos – quando seria eleito um novo senador. Outro aspecto relevante para refrear a fúria legiferante do Executivo diz respeito à questão das Medidas Provisórias que o Executivo
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pode enviar para o Legislativo. Nesse sentido, parece-nos correta a interpretação que adotou o atual presidente da Câmara, Michel Temer, ao estabelecer que todo projeto de lei ordinária que não possuir poder conclusivo, havendo sobrestamento de pauta, só será apreciado pelo Plenário se o projeto versar sobre matéria relacionada no art. 62 da Constituição Federal. Sob esta ótica serão apreciados também as PECs, PLPs, PDCs e PRCs. De acordo com sua decisão, havendo MP trancando a pauta, as sessões ordinárias ficam reservadas para apreciação de Medidas Provisórias e as sessões extraordinárias examinam as outras proposições, desde que não concorrentes com as passíveis de MP. Diante desta decisão estão excluídos do trancamento de pauta e, portanto, passíveis de apreciação em sessões extraordinárias, o Projeto de Resolução, Projeto de Lei Complementar, Projeto de Decreto Legislativo, Proposta de Emenda à Constituição e Projetos de Lei Ordinária que versem sobre as matérias relacionadas no art. 62, §1o, I, visto que estas matérias não podem ser objeto de Medida Provisória. Uma consequência dessa postura que já se pode perceber é que os trabalhos nas comissões serão de suma importância, pois projetos de forte apelo popular, como os já descritos, só serão votados pela Casa, enquanto houver MP sobrestando a pauta, se for mantido o poder conclusivo. As MPs perderão sua eficácia, mas suas relações jurídicas serão mantidas. O conceito de ato jurídico perfeito, que é: “o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou” (Decreto-Lei no 4.657/42), resguarda os atos praticados durante a vigência da Medida. Aqueles que cumpriram os requisitos exigidos estariam assegurados. No entanto, a maioria das MPs preveem efeitos de longo prazo que podem gerar instabilidade ou mesmo insegurança jurídica visto que, findo o prazo de vigência, a Medida perderia sua eficácia. Um fato é certo, enquanto o Executivo puder editar quantas MPs quiser maior será a dificuldade de o Legislativo assumir suas prerrogativas constitucionais. Quanto às CPIs, instrumento fundamental de fiscalização dos atos do Executivo por parte do Legislativo, é fundamental que a oposição dela participe, seja na presidência, seja na relatoria. No governo do presidente Lula, por um acordo tecido nas sombras, a oposição foi alijada da CPI da Petrobrás! Se não se garante à oposição as condições mínimas para que ela possa exercer sua função fiscalizadora, não é possível se falar na vigência da democracia. A CPI, que se constitui um instrumento de minoria, é desrespeita26
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do pelas maiorias, o que se constitui um desserviço ao nosso sempre delicado processo democrático. Por fim, quanto ao arremedo de “reforma” política levada a cabo no Congresso, somos favoráveis que cidadãos condenados em segunda instância – onde o mérito da denúncia já foi apreciado – sejam proibidos de se candidatar. Acreditamos que seria uma sinalização importante do Poder Legislativo para a sociedade, no momento em que há uma generalizada desconfiança da cidadania quanto ao acobertamento de mal feitos de muitos, levado a cabo pelos parlamentares, qualquer que seja a instância. Talvez assim se evitasse que a política continue sendo albergue de certos meliantes. A crise institucional, ora vivida no país, tem que ser considerada como fonte de inspiração para que possamos enfrentar o desafio de construir uma democracia mais forte e mais representativa dos anseios do povo brasileiro.
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Doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, realizou estudos pós-doutoramento na área de História da América Contemporânea na Universidade de Valência/Espanha (1997-98). É professor da Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho, campus de Franca. Autor, dentre outros, de Uma nova cultura política, pela Fundação Astrojildo Pereira
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Alberto Aggio
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iberdade, Igualdade, Fraternidade, a tríade clássica da República nascida com a revolução francesa de 1789 continua a ser iluminadora para pensarmos a nossa República bem como a situação brasileira atual, especialmente motivados pela comemoração dos 120 anos de instalação do regime republicano entre nós. Mas a nossa referência aqui deve ser mais ampla e parte do princípio de que uma expressão real daquela tríade em uma determinada situação histórica garantiria o estabelecimento de uma “República democrática”, atestando que tal sociedade estaria a viver sob instituições e animada por uma cultura política democrática digna desse qualificativo. Infelizmente não é essa a situação brasileira, ainda que na atualidade estejamos seguindo um curso alentador naquela direção, a despeito de todas as nossas dúvidas, críticas e inseguranças. Depois de ultrapassarmos os pesados anos do autoritarismo, de estabelecermos as grandes referências para o exercício de uma cidadania moderna entre nós, com a promulgação da Constituição de 1988, e de conseguirmos vencer as complicadas teias da inflação e da estagnação econômica, a sociedade brasileira dá mostras efetivas de que pode ser capaz de avançar rumo a uma República efetivamente democrática, mas sabe que há ainda um longo e complicado caminho a seguir. De maneira provocativa, a reflexão que segue está concebida a partir da hipótese geral que dá título ao artigo. Nela, mais do que as 31
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contingências que marcam as conjunturas políticas atuais, interessa-nos o fio condutor de crenças e sentimentos que movimentam, legitimam e influenciam a consciência e as decisões tomadas pelos cidadãos. Trata-se, pois, de uma reflexão em torno da dimensão simbólica da sociedade brasileira, em torno de como pensamos e de como agimos politicamente ao reconhecermos e interagirmos com os principais componentes da tríade republicana. Nossa hipótese parte do seguinte pressuposto: se a democracia parece-nos inconclusa e incompleta – talvez porque, de alguma forma, ela sempre o será –, especialmente na sua dimensão social, a nossa República, a despeito de todas as nossas incertezas, parece viver um momento de vigorosa ampliação, dando sinais de que acompanhará, ainda que não no mesmo ritmo, os passos do exitoso movimento de estabelecimento das bases materiais proporcionado pela dinâmica do capitalismo que aqui vem se estabelecendo. Conscientemente ou não, nós brasileiros avançamos para uma situação na qual somos livres como nunca ainda que desiguais como sempre, porém mais fraternos. Esses são os termos na nossa hipótese. A questão central dessa reflexão pode ser colocada a partir do seguinte ponto. Utilizando os critérios do cientista político Zander Navarro (2009), haveria três dimensões importantes na composição de uma “democracia ampliada” – isto é, de uma República democrática, no sentido que estamos usando aqui – que se deveria pensar para definir o lugar alcançado por uma sociedade em termos democráticos. A primeira dessas dimensões seria o pluralismo, garantidor das liberdades individuais e civis, assegurando aos cidadãos tolerância e diversidade, em todos os sentidos. A segunda seria o civismo, que visa construir uma cidadania bem formada, consciente e exigente. Enraizado na prática social, o civismo daria uma consciência tanto de direitos quanto de deveres, conduzindo os cidadãos, de acordo com Navarro, à “pujança democrática”. A terceira seria o plebeísmo, responsável pela inclusão cada vez mais progressiva de indivíduos na esfera político-social dos direitos. As possibilidades de combinação dessas três dimensões são infinitas, o que torna algumas sociedades mais plebeias que cívicas, outras menos cívicas que plurais e assim por diante. É isso que explicaria as diferenças de níveis e de qualidade das democracias contemporâneas. Como se articulariam então essas três dimensões na atualidade brasileira? Pode-se concordar com Navarro que o Brasil é uma democracia na qual o pluralismo é “vibrante e forte” ainda que o civismo e o plebeísmo padeçam de anemia e desfiguração. Das elites 32
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aos pobres, as condutas cívicas são, em geral, deploráveis, e, por outro lado, nosso plebeísmo arrasta-se de maneira errática, sendo mais objeto de marketing político do que uma realidade em verdadeira e real expansão. O Brasil continua um campeão na extrema concentração de renda como atestam os últimos índices: cerca de 1% dos brasileiros mais ricos (1,7 milhão de pessoas) detêm renda equivalente à dos 50% mais pobres (86,5 milhões). Assim, conclui Navarro, mesmo que “os níveis de pobreza venham caindo, a desigualdade social parece uma rocha irremovível”. E, mesmo que seja assim, sabemos que a ênfase na resposta a respeito do grau ou da qualidade da democracia brasileira não é capaz de equacionar todas as questões a respeito do pacto republicano que foi se sedimentando entre nós. São dimensões que se cruzam, mas não são necessariamente as mesmas. Assim, da tríade republicana, o avanço seguro que a sociedade brasileira deu nas ultimas décadas foi efetivamente em relação à liberdade, enquanto a igualdade permanece problemática e a fraternidade – uma dimensão esquecida na maior parte das sociedades ocidentais – até bem pouco tempo sequer figurava como uma dimensão digna de nota. Nossa República guarda traços bastante particulares e aqui vamos explorá-los sumariamente. Como se sabe, a construção da “coisa pública” entre nós se fez no mais das vezes sem afirmar a “linha ascendente” de direitos, dos civis aos sociais, passando pelos políticos. Em alguns momentos da nossa história eles se invertem, em outros, alguns deles foram suprimidos, especialmente os políticos, num processo nem sempre fácil de reconhecimento. Inicialmente oligárquica, nossa República viveria um processo importante de ampliação de corte autoritário a partir da década de 1930 que marcaria sua trajetória até os dias que correm. Extremamente paradoxal, o caminho para a construção da nossa República democrática é, assim, bastante complexo e, no mais das vezes, pouco compreendido. A conexão entre modernidade e caminho democrático é algo que não fez parte da nossa construção republicana, a não ser em poucos e determinados momentos, mesmo que tenha apenas visitado a imaginação criadora dos nossos intelectuais e políticos mais vocacionados a enfrentar tal desafio. Poderíamos dizer, com Luiz Werneck Vianna, que o processo político que constrói o Brasil moderno se caracteriza por uma “ampliação autoritária da República”. Para esse autor, o Estado Novo varguista pavimentou, de fato,
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[...] o caminho para a modernização econômica do país, assim como refundou a República, “ampliando” o escopo do Estado a fim de abrigar os novos personagens sociais nascidos do mundo urbano-industrial. Mas o preço da modernização autoritária e da “ampliação” por cima da cidadania importará a perda de autonomia da sociedade quanto ao Estado e uma herança do autoritarismo político a pesar sobre a nossa história republicana – como no regime do Ato Institucional no 5 de 1969, que obedeceu, em linhas gerais, ao seu modelo –, deixando para trás, como um elo ainda a ser retomado, mas já facultado pelas instituições da Carta de 1988, as fecundas possibilidades, entrevistas na década de 1920, de um alargamento do pacto republicano sob condições democráticas (Vianna, 2001: 152).
Nossa República não se instalou nem ganhou os corações e as mentes dos brasileiros pela adoção de condutas e métodos da democracia política. Não conseguimos “conciliar política democrática com sociedade democrática”, isto é, a “vigência de um sistema de governo baseado em ampla representação e exercido em ambiente de liberdade” com uma sociedade na qual “as desigualdades sociais são reduzidas e em que há uma ampla mobilidade social”, na síntese muito bem formulada por José Murilo de Carvalho (2002). Por essa razão, há uma fratura entre democracia política e democracia social em nossa trajetória que passou a ser colocada em questão no período mais recente de superação do regime autoritário no Brasil. Nas últimas décadas, é inegável que a sociedade brasileira vem demonstrando disposição no sentido de encontrar um novo caminho para a construção democrática da nossa República. Nos dias que correm, parece aprofundar-se, entre os brasileiros, a consciência de que o esforço de cada um e da sociedade em seu conjunto para enfrentar esse desafio depende de como se comportam os indivíduos e as instituições públicas. Essa nova situação evidencia a necessidade cada vez mais presente de consolidação de uma nova cultura cívica valorizadora do espírito público, da conduta republicana, do respeito à lei e aos direitos individuais e coletivos. Mas essa vontade difusa não é capaz de se fazer valer integral e definitivamente. Pesam sobre ela o movimento dos atores políticos, a força das instituições e os valores assentados na vida sociocultural. Há, portanto, uma história política e cultural que atravessa o âmago desse desafio. Mesmo que em nosso país não se tenha reproduzido um cenário histórico similar ao da revolução francesa de 1789, não estivemos isentos da influência marcante da tríade republicana nascida nesse evento histórico. Nossa referência de valores políti34
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cos e culturais foi a europeia, marcantemente francesa e, por extensão, ibero-americana, sem nenhuma rejeição, contudo, da influência anglo-saxônica, particularmente norte-americana, mesmo que tais influências tenham sido vistas de maneira polarizada e, em alguns casos, até mesmo antagônicas. Essa disjuntiva é decisiva quando examinamos o tema da República e é a partir dela que começamos a desenhar a nossa hipótese. Deve-se anotar, antes de mais nada, o fato de que o republicanismo norte-americano, nascido com sua revolução de independência, em sua versão conservadora ou democrática, não necessitou mobilizar a tríade republicana na sua integralidade. Como afirma Jonh Rawls, Comparando liberdade e igualdade, a ideia da fraternidade teve um lugar menor na teoria democrática. Foi concebida para ser um conceito politicamente menos específico, que não define por si mesmo nenhum dos direitos democráticos, mas que canaliza precisamente determinadas atitudes mentais e formas de conduta, sem as quais perderíamos de vista os valores que são expressos nos direitos (2008, 125).
Nosso argumento se desenvolve no sentido de mostrar a distintividade da realidade brasileira diante da teoria democrática formulada a partir dos fundamentos expostos acima por Rawls. No interior da tríade republicana, parece-nos que, entre nós, há algo que faz transbordar o liso equacionamento liberal anglo-saxônico que solda o nexo entre liberdade e igualdade: trata-se da noção de fraternidade. É em torno dela que nos parece importante afiarmos nossa reflexão para jogarmos alguma luz no entendimento da nossa atualidade e buscarmos compreender a emergência de uma cultura política que tem demonstrado capacidade para dar sustentabilidade ao governo atual bem como um nível de apoio jamais visto à sua liderança maior, garantindo-lhe tão extraordinária quanto aparentemente indestrutível popularidade. A noção de fraternidade emergiu historicamente pela primeira vez em 5 de dezembro de 1790, na Assembleia Nacional Revolucionária, ao final de um discurso proferido por Robespierre no qual ele defendia a legitimidade de todos os franceses pertencerem à Guarda Nacional que então se reestruturava. A metáfora da fraternidade generalizou-se no processo da Revolução Francesa ao cristalizar o fato de que se havia estabelecido uma luta frontal contra a loi civil vigente. E isso se faria combatendo o absolutismo, no plano da loi politique, e o domínio patriarcal, no plano da loi de famille. No plano político, as noções de liberdade e igualdade foram os valores predominantes na
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luta contra o absolutismo real, enquanto no plano da família será a questão da fraternidade entre os homens o móvel mais expressivo da mobilização dos franceses. Esse é um aspecto relevante uma vez que demonstra que o movimento da revolução atravessava a dimensão pública e penetrava a dimensão social e até mesmo privada da sociedade francesa da época. No contexto revolucionário de 1789, os pobres – aqueles que eram vistos pelas elites como a “canalha”, nas palavras de Marat – “queriam se assumir, com plenos direitos, a condição de uma vida civil de homens livres e iguais”, em suma, a condição plena de cidadãos e, para isso, deveriam acabar com a “configuração senhorial, tutelar e paternalista característica da sociedade civil europeia do Antigo Regime” (Doménech, 2004:13). A metáfora da fraternidade se tornaria efetivamente o móvel pelo qual o enigma da completude e da integridade da República seria enfrentado em contexto revolucionário e se generalizaria como uma cultura política pelos confins da Europa e da América Ibérica. Mas, aqui nos interessa enfatizar a seiva que a compõe. A fraternidade está essencialmente assentada na dimensão familiar e privada da vida e, a partir dos acontecimentos franceses, se torna um signo fortíssimo da cultura política republicana, mesmo que posteriormente ela tenha sido esquecida por revolucionários de todos os quadrantes e ideologias. Tratava-se de “emancipar” – mais uma metáfora da vida familiar – a população humilde das várias situações de dependência patriarcal. Emancipar-se significava irmanarse com seus iguais em liberdade e direitos; emancipar-se enfim da dominação (que vem de domus, outra metáfora familiar) patriarcal, senhorial, privada e irmanar-se na nação e na pátria (mais uma metáfora familiar). Assim, a fraternidade torna-se inexplicável sem a compreensão da luta e do avanço histórico que significou esse embate contra a sociedade senhorial do Antigo Regime europeu. Como se sabe, seguindo Alexis de Tocqueville, uma questão que a sociedade nascida na América do Norte não teve que enfrentar. E, por isso, como dissemos, o republicanismo norte-americano não tinha razões para incorporá-la em seu pensamento democrático. Também se deve notar que essa é uma distinção importante entre a revolução de independência norte-americana e a revolução francesa, distinção mencionada de forma negativa por Hannah Arendt, já que, para essa autora, o ingresso da questão social, via manifestação de les malheureux, na revolução francesa de 1789 acabaria por complicar e, em certo sentido, inviabilizar por muitos anos a conquista de um patamar expressivo e estável de liberdade e igualdade na França. 36
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Pois bem, e o que isso tem a ver com a atualidade brasileira? A primeira observação é a de que, quase que integralmente eclipsada em toda nossa história republicana, a metáfora da fraternidade invadiu o imaginário político da sociedade brasileira a partir da vitória eleitoral de Lula, em 2002, e teve condições de sustentabilidade tanto em razão da situação socioeconômica conquistada até aquele momento quanto devido àquilo que se implementou em seguida como política social, soldando a figura e a liderança de Lula a esse avanço sem precedentes da nossa República. Haveria assim um movimento político-cultural de mão dupla a sustentar a emergência da fraternidade: ele é tanto uma representação que a sociedade constrói a respeito da ampliação dos direitos possibilitados pelo avanço da cidadania quanto uma identificação promovida pelo poder de comunhão entre líder e massas, ambos num contexto democrático que não pode ser desconsiderado. Nossa hipótese é que a cultura política que sustenta a altíssima popularidade de Lula está baseada nesse movimento. Com ele emerge a cultura política da fraternidade como um elemento integralizador da nossa República que até o momento da transição democrática havia sido sempre claudicante no que se refere à sua completude, recusando-se ou não sendo capaz de reposicionar, a partir da metáfora da fraternidade, os nexos entre liberdade e igualdade. O advento de Lula como presidente – por tudo o que ele é e representa – jogou a temática da fraternidade para dentro do processo de construção da nossa republica. Mas houve aí uma astúcia digna de nota: Lula derivou de um quase assumido jacobinismo de sociedade civil para um moderantismo instrumental que joga de muitas maneiras com a problemática da fraternidade. O contexto democrático exige isso do ator e é, ao mesmo tempo, a suprema garantia para impedir devaneios de corte autoritário que rondam o personagem e seu ímpeto discursivo. Apesar de não fazer parte do seu vocabulário (Kamel, 2009), ela é, contudo, central no seu discurso e um poderoso elemento de legitimidade política. Não é outra a razão para o discurso político lulista estar recheado de metáforas do mundo familiar e privado. Diuturnamente, desde que alcançou o poder, o presidente faz referências às figuras da família, nos filhos e na figura da mãe, realçando os sentimentos populares inclinados à ideia de irmandade. No seu discurso de posse, em 2003, esse chamamento não deixava dúvidas: “os homens e as mulheres, os mais velhos e os mais jovens estão irmanados num mesmo propósito de contribuir para que o país cumpra o seu destino histórico de prosperidade e justiça”. Trata-se de um disAlberto Aggio
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curso no qual se objetiva ressignificar o país como uma “comunidade fraterna”, num contexto de democracia. Como um coroamento dessa estratégia, Lula aparece agora, ele próprio, como “o filho do Brasil”. Outro elemento derivado da noção de fraternidade é a permanente oposição entre o “nós”, os irmãos, os pobres, o coração e alma do Brasil, e o “eles”, os “senhores”, os patrões, as elites, que nos governaram e nos dominaram por cinco séculos, embora seja forçoso reconhecer que aqui não se instalou e parece que não se instalará a disjuntiva amigo/inimigo, sob o critério da luta de classes, com sua consequente lógica de exclusão e supressão das liberdades. Assim, o discurso lulista não explicita um “pobrismo” de classe e sim uma operação simbólica eficaz que quer aludir à situação social geral dos brasileiros dando-lhes esperanças de melhoria. Analisado esse discurso no seu conjunto, trata-se de uma ruptura – não revolucionária, é verdade – com a nossa trajetória republicana; mas também se trata de uma continuidade já que estabelece um nexo com o nosso imaginário familiar e com a cordialidade brasileira que nos marca desde os tempos coloniais. A fraternidade lulista é vermelha (a cor do PT), mas ela é difusa. Certamente não é comunista e nem mesmo quer ser vista como de esquerda. Não é o Graal da utopia social, mas também não segue as frias linhas do interesse privado daquele “liberalismo dos de baixo” que frequentou a origem da sua trajetória. Amplia nossa República subordinando-se a processos políticos democráticos, socialmente pouco universalistas e estruturantes, mas está franqueada ao mercado e se sustenta numa legenda de estratégias inclusivas por meio de processos sociais moleculares de duvidosa eficácia. A hipótese que aqui se levanta argumenta, portanto, no sentido de que todo o arcabouço conceitual até agora mobilizado para qualificar o “poderio” lulista tem se mostrado incapaz de formular uma síntese convincente. O qualificativo populista é flagrantemente débil. Ele não é mais do que jornalístico e essencialmente não corresponde às características e possibilidades institucionais da democracia brasileira da ordem constitucional de 1988. Além disso, peca por mobilizar um conceito fracassado na ciência social brasileira e latino-americana. Por outro lado, o estigma do catolicismo contradita a capacidade de ampliação e de diversificação na composição de seus apoios e de sua legitimidade. Assim, Lula também não pode ser visto como expressão do catolicismo de esquerda à Teologia da Libertação e tampouco como um personagem subalterno politicamente à hierarquia da Igreja Católica, como alguma vez se cogitou. Lula rejeitou a “política de rebanho”, optando pela valorização de cada indivíduo como pessoa, 38
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no plano societário, e, no plano político-cultural, adotou a perspectiva de uma revalorização da tradição republicana brasileira: um Brasil de todos, um Brasil da fraternidade, onde todos somos irmãos na democracia que construímos, mas sem estarmos subsumidos a uma definição ideológica distintiva. Por fim, a inclusão de Lula na “nova esquerda” também peca porque não é possível qualificar claramente esse “movimento” sem riscos profundos de avaliação. Lula não pode ser equiparado a Chávez porque lhe é impossível aceitar e assimilar a beligerância política e ideológica com a qual o presidente venezuelano busca se legitimar todo tempo. Lula sabe que a sua legitimidade tem que passar pelo filtro das instituições da democracia brasileira e é nela que até agora tem apostado todas suas fichas. Não há como não concordar que temos avançado muito em termos de liberdade. A igualdade se faz ainda merecedora de um projeto coletivo mais aprofundado e contemporâneo que possa ser assumido como uma grande política compartilhada por todos os brasileiros e produzir resultados duradouros. Nesse campo de expectativas, faz sentido o slogan do atual governo: “Brasil um país de todos” ainda que não esteja assegurado que a “coisa pública” seja assimilada como uma dimensão afeta à responsabilidade “de todos nós”. Mas é precisamente a cultura cívica referente a esse “todos nós” que se apresenta agora como a grande questão da nossa República. Com Lula, a metáfora da fraternidade é tanto uma representação que se construiu quanto uma identidade que se construiu. Daí a sua força aparentemente inquebrantável. Com ele, sem revolução, a tríade Liberdade, Igualdade, Fraternidade, mesmo que não integralmente, passou a fazer parte da nossa República pela primeira vez. Sob o contexto democrático que o condiciona, Lula procura mobilizála para encontrar a solda com a nossa tradição de modernização. Mesmo com todo seu “poderio”, movimenta-se como um equilibrista, muitas vezes à beira do vazio. Não foi o paladino da construção institucional da democracia brasileira das últimas décadas, mas se serve dela como se a fizera nascer. Para isso mobiliza o que nenhuma engenharia institucional é capaz de operar: um sentimento difuso de fraternidade no qual ele tem sido um protagonista convincente. A fraternidade de Lula não é a mesma de Vargas, submetida aos ditames organicistas e solidaristas da ideologia nacional que dirigia o destino dos brasileiros como uma “comunidade fraterna”. Lula também quer o Brasil como uma “comunidade fraterna”, mas trata de ressignificá-la a seu modo conformando-se ao contexto que lhe possibilitou a fortuna por onde se move, avança e busca politicamente se sustentar e se reproduzir. Tudo parece ser igual mas não é. Alberto Aggio
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Na hipótese aqui desenhada há uma inovação em curso que precisa ser acompanhada atentamente e questionada de forma produtiva para que não se fixe a máxima negativa que marca nossa tradição política na qual “tudo muda para seguir como antes”. Ao final de dois mandatos, haverá que se perguntar se esse importante avanço terá continuidade, garantindo, no seio da nossa República, isonomia aos componentes da sua tríade original. Incompreendida, a fraternidade estará subordinada e se perderá no jogo aritmético das eleições. Conspurcada, ela não passará de um joguete na composição da mitologia que se quer fabricar para o grande líder. Ambas as coisas não servem nem à democracia nem à República.
Referências Bibliográficas CARVALHO, J. M., “Do patético ao tragicômico” In Folha de S. Paulo, 11/08/2002. DOMÉNECH. Antoni. El eclipse de la fraternidad – una revisión republicana de la tradición socialista. Barcelona: Crítica, 2004. KAMEL, Ali, Dicionário Lula – um presidente exposto por suas próprias palavras. São Paulo: Nova Fronteira, 2009. NAVARRO, Zander. Democracia brasileira: raquítica ou vibrante? Gazeta Mercantil, 04/03/2009. RAWLS, J., Uma Teoria da Justiça. Lisboa: Martins Fontes, 2008. VIANNA, L. W. O Estado Novo e a “ampliação” autoritária da República In CARVALHO, Maria Alice Rezende (org.) República no Catete. Rio de Janeiro: Museu da República, 2001.
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Autores Rudá Ricci
Sociólogo, doutor em Ciências Sociais, do Fórum Brasil de Orçamento e do Observatório Internacional da Democracia Participativa
Zigmunt Bauman
Filósofo e sociólogo polonês, atualmente é professor emérito de sociologia das universidades de Leeds e de Varsóvia. Tem mais de dez obras publicadas no Brasil, dentre as quais se destacam Amor Líquido, Globalização: as consequências humanas e Vidas Desperdiçadas
Remo Bodei
Filósofo italiano, autor de livros como História tem um sentido? e Política e a felicidade
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Lulismo: para além do PT
Rudá Ricci 1. O lulismo em sua versão acabada Durante a primeira gestão do governo Lula procurei construir os contornos do que denominei de lulismo (cf. Lulismo: três discursos e um estilo), como sendo um método de gerenciamento político que unia, paradoxalmente, o pragmatismo sindical metalúrgico, o burocratismo partidário e o liberalismo econômico. No final de seu sétimo ano de governo, o lulismo já se configura mais nitidamente. O pragmatismo sindical e a-ideológico parece evidente e casou completamente com o modelo de coalizão presidencialista, que envolve uma gama imensa de partidos. Algo que, na prática, formata uma espécie de gestão de tipo parlamentarista. Também se aproxima da federação de partidos, proposta natimorta da reforma política inscrita na PL 2.679/2003, que procurava superar as coligações eleitorais naquilo que tinha de efêmero, exigindo que se mantivessem no período pós-eleitoral. O pragmatismo foi além e desnorteou grande parte das organizações populares do país, porque não possui uma agenda de esquerda. O foco está na consolidação de direitos já garantidos em lei o que, na prática, amplia o espectro social daqueles brasileiros que podem ser considerados efetivamente cidadãos. Uma versão governamental do business union, o sindicalismo de negócios dos EUA que no Brasil recebeu a alcunha de sindicalismo de resultados. Lembremos que esta concepção foi introduzida no Brasil por Luiz Antonio Medeiros, em 1987, quando concedeu entrevista ao jornal 43
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O Estado de S. Paulo. Nesta entrevista afirmou: “Desde que saia um acordo bom para os trabalhadores, não interessa se ele foi conseguido por abraços com Mário Amato ou por uma greve de 40 dias.” Medeiros é, hoje, secretário de Relações do Trabalho, no Ministério do Trabalho. Luiz Werneck Vianna, se apropriando das teorias gramscianas, sugere que este movimento se aproxima do conceito de “revolução passiva” ou “modernização reacionária”. Retomarei este tema mais adiante. O legado da burocracia partidária sofreu algumas mutações. Havia, no início do lulismo, uma nítida influência do “habitus” das organizações clandestinas do período do regime militar, plasmado na liderança de José Dirceu, então dirigente da Casa Civil. As negociações para montagem da coalizão presidencialista assumiam um viés castrista, de controle progressivo sobre a base aliada. Por aí, toda lógica participacionista do petismo e da Constituição de 88 foi abandonada porque não dialogava com o centralismo da lógica burocrática. Mas com o ostracismo de José Dirceu, o burocratismo se transmutou. O participacionismo foi expurgado de vez da prática do lulismo. Mas o que era antes uma espécie de neoleninismo, uma simbiose entre Estado, governo e partido(s) – que o próprio Lênin admitiu e condenou em seu último texto, intitulado Vale quanto Pesa – foi redesenhado para uma lógica de governo, aproximando-se, mais uma vez, da lógica parlamentarista. Os partidos aliados, na prática, perderam sua energia crítica e inovadora. São governistas. Basta uma rápida análise sobre a propaganda partidária da base aliada: é a agenda do governo. O lulismo tentou construir uma agenda de Estado. Mas PAC, Bolsa Família (e outros programas de transferência de renda) e aumento de salário mínimo não chegam a constituir uma agenda de longo prazo, tratando-se mais de uma plataforma inicial para o desenvolvimento, um start. O lulismo não conseguiu alinhar-se ao conceito de sustentabilidade. Não conseguiu elaborar uma agenda educacional, que ficou restrita ao aumento do acesso e controle da qualidade do ensino universitário. Não relacionou projeto educacional à formulação do papel de liderança no continente. Nem mesmo inovou na formulação de currículos focados na consolidação de cultura cidadã, mesmo tendo à sua disposição várias experiências de Estado, como a Política Nacional de Educação Fiscal (PNEF). Não avançou porque para o lulismo o participacionismo não interessa. Por este mesmo motivo abandonou as audiências públicas para definir o Plano Plurianual (PPA) ou controlar o orçamento. Aumentou o número de conferências de direitos, mas fragmentou as 44
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pautas em temas específicos e raramente incluiu as deliberações deste ritual assembleístico em orçamentos e programas. As deliberações das conferências nunca foram prioridade da agenda lulista. A mudança mais significativa, contudo, foi o liberalismo econômico – traduzido na Carta ao Povo Brasileiro, de 2002 – para o desenvolvimentismo economicista (embora assessores de Lula procurem emplacar um meio aforismo: desenvolvimentismo social). O foco é a ampliação do mercado interno e da produção nacional. Uma plataforma já empregada pelo fordismo norte-americano, que o lulismo pega emprestado, reproduz e dá sua contribuição a partir dos itens destacados anteriormente. O Brasil cresce para a América Latina a partir do mercado interno. Recentemente, aumentou sua atuação e demonstração de força na região, assumindo parte do papel de garantidor de certa ordem democrática que era prerrogativa dos EUA. O Mercosul, neste sentido, perdeu predominância na política externa brasileira, mesmo com a campanha pelo ingresso da Venezuela no nosso mercado comum. O PAC é o carro-chefe do lulismo nesta dimensão econômica. Deverá ser prorrogado em diversas novas versões, pela lógica lulista, assim como já ocorre com o Bolsa Família (que gerou o Bolsa Cultura e deverá se desdobrar em outras políticas de fomento na construção do fordismo tupiniquim). E o estilo continua o do flerte com a dominação carismática. A melhor tradução do socialismo moreno, sonho de Leonel Brizola. É por aí que alguns fóruns e autores (com Luiz Werneck Vianna à frente) procuram comparar o varguismo ao lulismo. Seriam, lulismo e varguismo, início e fim de um mesmo projeto: o de administrar o atraso e promover uma agenda reformista que provoque a superação de uma sociedade arcaica (ou híbrida) na direção da sua modernização. Modernização tardia (porque originada de um capitalismo peculiar, híbrido) liderada por um partido de origem operário-popular (Gramsci chegou a destacar que o centro nunca daria lugar a um partido “histórico”, mas poderia servir a um partido deste tipo, mais uma coincidência com a prática lulista).
2. O lulismo seria o vetor da revolução passiva tupiniquim? Gramsci, ao criar o conceito de revolução passiva, pensava, obviamente, na sua Itália, um país que, como afirmava, possuía uma sociedade “gelatinosa”, onde as clivagens sociais não se expressavam nitidamente, onde tradição e laços feudais se misturavam Rudá Ricci
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ao mundo fabril e racional. Luiz Werneck Vianna, em “Revolução passiva e americanismo em Gramsci” (Cf. http://www.lainsignia. org/2007/marzo/cul_006.htm), ao explicar a origem do conceito em Gramsci, recorda que a peculiar modernização tardia da Itália criaria uma “forma do Estado derivada de uma solução de compromisso entre as elites industriais e agrárias, cada uma ocupando uma base territorial própria – as industriais, o norte; as agrárias, o sul. O domínio burguês não estaria dotado de capacidade de universalização, fusão de particularismos, faltando-lhe um “caráter unitário e uma função unitária” [...] Tal particularidade deixaria a periferia europeia do capitalismo sob uma dupla lógica: “russa”, pela perspectiva do “elo mais fraco” e da “vantagem do atraso”; e especificamente europeia, uma vez que os setores subalternos, principalmente no campo, por meio da mediação de estratos intermediários, mantinham vínculos político-sociais com as classes dominantes, estando sob a sua influência, interditando ao proletariado um acesso direto ao campesinato. [...] O caminho de afirmação do capitalismo europeu ter-se-ia dado em um ambiente “demográfico não racional”, expresso na existência de “classes numerosas sem uma função essencial no mundo da produção, isto é, classes totalmente parasitárias” (a nobiliarquia agrária e os estratos superiores da burocracia, nas elites dominantes, e o campesinato e a população urbana marginal) seriam incluídas nos sistemas da ordem por vias extraeconômicas, supraestruturais, quando a sua posição relativa quanto ao Estado seria determinante da forma de apropriação dos recursos sociais e do tipo de controle social a que estariam sujeitas: a hegemonia das classes dominantes seria obra fundamentalmente da política. Vianna sugere que enquanto a sociedade americana desenvolviase a partir de uma estrutura racional, nitidamente capitalista, onde a fábrica era o locus do desenvolvimento de toda a nação, nos países europeus com capitalismo tardio (Itália, Rússia e Alemanha, em especial) não havia tal associação entre estrutura social, dominação fabril-capitalista e Estado-política. O conservadorismo europeu se explicaria, em relação aos EUA, a partir daí, onde a cultura e a política “desde cima” dominariam o mundo social e econômico, bloqueando a livre expressão das classes produtivas “no sistema das agências privadas de hegemonia”. Daí a modernização capitalista ter que ocorrer “pelo alto”, gerando o que Gramsci denominaria de Estatolatria (em Claus Offe, adota-se o conceito de estatalização), um Estado sobreposto à sociedade civil: 46
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[...] a ‘estatolatria’ não deve ser entregue às suas próprias forças, nem deve, sobretudo, se converter em fanatismo teórico e se conceber como ‘perpétua’: ela deve ser objeto de crítica, precisamente para que se desenvolvam e se produzam novas formas de vida estatal, nas quais a iniciativa dos indivíduos e dos grupos seja ‘estatal’, embora não derivada do ‘governo dos funcionários’ (isto é, conseguir uma geração espontânea da vida estatal).
Num voo livre, o lulismo cumpriria tal papel? A resposta afirmativa explicaria a falta de identidade com o participacionismo porque assume declaradamente o papel de demiurgo da modernização. Também explicaria sua base discursiva que exerce este papel de “ponte” entre culturas e hábitos sociais, acabando com a ideologização da disputa partidária do período anterior, quando o lulismo nem mesmo se esboçava, encoberto pelo petismo, um amálgama entre teologia da libertação, marxismo revisado e teorias libertárias (como de Guatarri e outros autores citados pelos intelectuais filiados ao PT que, na origem do partido, mantinham grande destaque nas formulações programáticas). Neste sentido, lulismo e serrismo se aproximam em muito. Ambos são desenvolvimentistas e colocam o Estado acima da sociedade civil. O serrismo é mais racional-legal, para utilizar um conceito caro ao weberianismo. O lulismo é menos puro, embora o carisma seja mais uma estampa que uma estrutura programática ou política. O lulismo, por aí, é operacionalmente mais estruturado para fazer a transição do Brasil Profundo para o aggiornamento do nosso capitalismo tardio. O serrismo é o discurso do Brasil mais urbanizado e incluído no mundo globalizado. Ambos caminham na mesma direção. A diferença é a capacidade de construir um discurso hegemônico, que convença a todos ou à grande maioria do mosaico social e cultural brasileiro, este hibridismo cultural que adotou o mundo moderno sem superar efetivamente valores morais e estruturas tradicionais, tal como sugeriu Néstor Canclini. O problema é que nenhum dos possíveis sucessores de Lula têm, hoje, predicados que mantenham a lógica e a consistência discursiva do lulismo. O que pode sugerir o lulismo como obra inacabada. Assim como ocorreu com o getulismo. O velho problema da criatura se confundir com o criador.
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O diverso que nos mete medo. Por que a tolerância não nos basta mais?1
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iver com os estrangeiros – que é o fundamento demográfico e social da exposição às diferenças e a qualquer espécie de alteridade – não é de forma alguma um fato novo na história moderna. Mas antes a ideia era, grosso modo, a de que qualquer um que fosse estranho, estrangeiro, diverso de você perderia mais cedo ou mais tarde o seu caráter de estrangeiro. A política dominante em relação aos estrangeiros, durante a maior parte da história moderna, foi uma política de assimilação: “Vocês estão aqui, estão fisicamente vizinhos; tornemo-nos, pois, vizinhos também espiritualmente, mentalmente, eticamente”, o que quer dizer aceitar os mesmos valores universais, onde, porém, como “universais”, sempre eram entendidos os “nossos” valores. Assim, com essa perspectiva, na qual o ser estrangeiro era apenas um desagradável incômodo passageiro, não existia a ideia de dever aprender a viver com o diverso. Agora, pela primeira vez na história moderna, conseguimos nos dar conta de que as coisas não são bem assim. A modernidade sempre foi um período de migrações massivas de pessoas de um continente a outro, de uma extremidade do mundo a outra, de uma cultura a outra, e a migração aconteceu por necessidade nas circunstâncias modernas em que, para as pessoas assim chamadas em excesso, pessoas para quem não se podia encontrar uma colocação na sua sociedade de origem, não havia espaço na nova ordem, no novo estado avançado do progresso econômico, sendo forçadas a viajar. Todavia, há uma diferença: as migrações contemporâneas têm um caráter diaspórico, não assimilatório. As pessoas que vão para um outro país não vão com a intenção de se tornar como a popula-
1 Trecho da videoconferência pronunciada no congresso sobre “A qualidade da integração escolar”, na cidade de Rimini, publicado na edição do dia 16/11/09 do jornal italiano La Repubblica.
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O diverso que nos mete medo. Por que a tolerâncianão nos basta mais?
ção hóspede. E a população hóspede, nativa, não é particularmente interessada em assimilá-las. Existem cerca de 180 diásporas que convivem em Londres, 180 diversas línguas, culturas, tradições, memórias coletivas. E o problema é que se a política de assimilação não é mais facilmente percorrível, como podemos viver, dia após dia, com os estrangeiros? Como podemos comunicar, cooperar, viver em paz sem que nós percamos a nossa identidade e que eles percam a sua – portanto, em uma coabitação que não leve à uniformidade? Em outras palavras, a questão não é mais aquela de ser tolerante em relação a pessoas diversas. A tolerância, na verdade, é muito frequentemente uma outra face da discriminação. “Sou tolerante em relação aos teus hábitos e aos teus modos bizarros. Sou uma pessoa muito aberta, sou superior a ti. Compreendo que o meu estilo de vida é inaceitável para ti. Tu não podes alcançar o mesmo nível. Então, permito-lhe de seguir o teu estilo de vida, mas eu não o faria nunca se estivesse em você”. O desafio com que devemos nos confrontar hoje consiste em passar dessa atitude de tolerância a um nível mais alto, isto é, a uma atitude de solidariedade. Devemos nos resignar ao fato de que existem estrangeiros, mas também aprender a extrair vantagens. A maior parte de nós vive em grandes cidades. As cidades estão sempre cheias de estrangeiros e a sua presença é inquietante porque tu não sabes como se comportariam se não os mantivesse à distância – despertam suspeitas, causam horror simplesmente porque são entidades estranhas. Os estrangeiros metem medo. Chamei esse medo típico das cidades contemporâneas de mixofobia, a fobia de misturarse com outras pessoas, porque lá onde nos misturamos a outras pessoas em um ambiente pouco familiar tudo pode acontecer. Mas a mesma condição de mistura com os estrangeiros provoca também uma outra atitude. Existem duas reações contraditórias ao fenômeno, ambas observáveis nas cidades contemporâneas. A segunda é a mixofilia, a alegria de estar em um ambiente diverso e estimulante. Hannah Arendt foi provavelmente a primeira pensadora moderna que repensando Gotthold Ephraim Lessing, um dos pioneiros do iluminismo alemão, viu nele uma das figuras mais perspicazes entre os filósofos da primeira modernidade. Segundo Lessing, não é necessário limitar-se a aceitar o fato de que a diferença seja destinada a perdurar, mas é preciso efetivamente apreciá-la, reconhecer que há nesta um potencial criativo sem precedentes. O fato de colocar juntas experiências, recordações, visões de mundo muito diversas pode levar a uma prosperidade de desenZigmunt Bauman
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volvimento cultural. É muito cedo para dizer quais poderão ser os desenvolvimentos porque as duas tendências contrapostas, a mixofobia e a mixofilia, têm mais ou menos força igual. Às vezes prevalece uma, às vezes a outra. A questão é incerta e estamos ainda no meio de um processo que não sabemos bem como irá acabar. Aquilo que estamos fazendo nas ruas das cidades, nas escolas primárias e secundárias, nos lugares públicos onde estamos ao lado de outras pessoas é de extrema importância não somente para o futuro das cidades onde queremos transcorrer o resto da nossa vida, ou pelo menos onde vivemos no momento, mas é de suma importância para o futuro da humanidade. Vivemos em um mundo globalizado. A globalização alcançou um ponto de não retorno, não podemos andar para trás, estamos todos interconectados e interdependentes. O que acontece em lugares remotos tem um impacto formidável sobre as perspectivas de vida e sobre o futuro de cada um de nós. Então, chegou o momento de fazer aquilo que Lessing previu que deveríamos fazer, isto é, aprender a apreciar as oportunidades criadas pelas nossas diferenças. Confrontemo-nos com as consequências da globalização em cada estrada das cidades em que vivemos, em cada escola em que ensinamos. Mas, por outro lado, pela mesma razão, as cidades, as escolas são o laboratório em que desenvolvemos os modos para aprender, obter benefício, entesourar e alegrarmo-nos exatamente pela natureza diaspórica da realidade contemporânea. Não estou dizendo que se trata de um dever fácil. Confrontar-se com um desafio que os nossos antepassados nunca acolheram, nos põe de frente a um dever que coloca a dura prova a nossa mente e as nossas emoções, e que devemos conseguir enfrentar nos seus desdobramentos, no curso da obra, sem dispor de soluções pré-constituídas. Tradução: Marco Mondaini, professor da Universidade Federal de Pernambuco, autor dos livros Direitos Humanos e Direitos Humanos no Brasil, ambos publicados pela Editora Contexto (SP) em parceria com a Unesco. Atualmente, faz pós-doutorado no Departamento de Teoria e História do Direito da Universidade de Florença.
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A presunção do Ocidente. Não existe uma civilização superior1
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esde a queda do Império Romano, a Europa não conheceu mais nenhuma forma de unificação de longo prazo. Esta é constitutivamente a pátria da diversidade, sendo feita de diferenças: querer unificá-la é absurdo, assim como seria ridículo querer perseguir a integração cultural para obter um melting pot análogo àquele dos Estados Unidos. Ao invés disso, há necessidade, pelo menos no presente, de encorajar o compartilhamento de uma estrutura institucional e de um patriotismo constitucional, de modo que os velhos e novos Estados-membros sigam regras afinadas aos princípios democráticos, à difusão dos direitos humanos e à adaptação a novas estruturas econômicas. A estrutura inteira deve ser reforçada, especialmente para as gerações europeias mais jovens, por um sistema educacional propenso a criar uma cidadania europeia, cuja riqueza deve ser produzida catalisando as diferenças no interior de um projeto de crescimento compartilhado. Hoje, a Europa – sobretudo à luz de seu passado colonial – não pode apresentar-se simplesmente como um “farol”, exportando os princípios de liberdade e democracia. O seu dever é casar a exigência de liberdade com aquela de igualdade no interior dos próprios Estados, para impedir que a liberdade se torne um privilégio num mundo dilacerado por conflitos, e a igualdade um vazio slogan ideológico. Se assumimos o ano de 1989 como data-símbolo, não é somente pela queda do muro de Berlim, mas também pela falência, talvez não definitiva, de um grande projeto histórico que queria difundir a igualdade entre os cidadãos da Europa. Tal projeto faliu porque nos países socialistas a vontade de alcançar a igualdade acabou por produzir uma desigualdade maior, mas tal falência não pode ser a justificativa para o desenvolvimento de modelos de liberalismo assim chamados “selvagens”.
1 Artigo publicado originariamente no jornal italiano La Repubblica. Edição de 30/05/09.
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IV. Observatório Político
Cada país europeu tem a sua própria história, que deve poder interagir com a história dos outros. Cada cidadã e cada cidadão europeu têm as suas próprias características, que devem ser preservadas em vários níveis: se pode ser europeia/europeu, italiana/italiano, toscana/toscano ou napolitana/napolitano. A União Europeia não deve impedir nenhuma forma de ligação a pátrias locais, nenhum localismo, que de algum modo implique que o Estado, anel de ligação entre comunidades locais e Comunidade Europeia, deva desaparecer ou que a “identidade” venha a ser minada. Em substância, estão em jogo três tipos de identidade: a identidade “autorreferenciada”, baseada no esquema lógico a=a (espanhol enquanto espanhol, francês enquanto francês), como se a identidade fosse um fato de natureza. Em seguida, em contraste, há uma identidade que consiste em aceitar as deformações provocadas por séculos de opressão internas e externas, e em exaltá-las como sinais de identidade: “Eu sou assim e sou orgulhoso”. Penso, por exemplo, no caso da União Soviética dos anos 1920 e 1930, com o seu “culto do proletariado”, e em alguns poetas africanos e caribenhos, como Léopold Sedar Senghor ou Aimé Césaire, com as suas ideias de negritude: no dizer “sim, vocês brancos têm inteligência, mas nós temos imaginação e paixão” não se deram conta de que desse modo desvalorizavam a sua inteligência. Enfim, o terceiro tipo, que vê a identidade europeia como um work in progress, uma corda feita de fios diversos, que se reforça cada vez mais à medida que os fios são bem entrelaçados entre si. Essa construção que é a Europa poderá trazer benefício às relações entre as comunidades gregas e turcas de Chipre, ao problema dos húngaros na Transilvânia, ou dos romenos na Moldávia, e talvez, no futuro, dos sérvios na Croácia; talvez, indiretamente, poderá relaxar as tensões com as populações russas nos países bálticos. Mas aqui queremos, sobretudo, sublinhar que a ampliação da Europa deve ser entendida seja como uma grande oportunidade histórica, seja como um árduo dever. A identidade europeia – também em referência às identidades dos Estados europeus – é uma identidade em construção. Não há dúvida de que em toda Europa podemos ainda encontrar histórias escondidas, línguas deixadas à margem e em perigo, identidades rejeitadas e culturas que riscam desaparecer. Mas contra todas as formas de racismo ou de chauvinismo é necessário marcar uma distinção entre a rejeição de qualquer hierarquia entre culturas (no sentido de que cada cultura tem a sua própria dignidade) e a tentativa de culturas pequenas ou grandes de fechar-se em uma exasperada presunção de autoctonia. Ao contrário, as suas identidades deveriam definir-se não
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A presunção do Ocidente. Não existe uma civilização superior
somente por oposição, mas também na base de diferenças abertas ao processo de universalização, à interação com outras culturas, à elaboração de modelos alternativos de pertencimento e de cidadania. Por isso, é necessário sustentar conceitos como aquele de métissage de toda a humanidade, de recíproca fecundação cultural, e restabelecer as “diferenças”, rejeitando a presunção de um Ocidente que se proclama portador da única civilização digna desse nome [...] Por sorte, a história humana não para: as culturas no mundo misturamse e revivem depois em formas novas e não esperadas. Não é necessário esperar o futuro: podemos (e devemos) agir agora, para reforçar os laços de amizade e compreensão recíproca entre as diversas culturas. Devemos, se possível, eliminar a ideia preconcebida do estranho, do estrangeiro, como potencial inimigo ao invés de possível hóspede. Nós olhamos o estrangeiro com uma espécie de estrabismo: exatamente quando o globalismo impulsiona na direção do universalismo, nasce um impulso paralelo ao isolamento. Estamos preparados para encontrar, hoje, em escala internacional, formas de “universalismo” receptivo, aberto e não fundacionalista, pluralístico e constantemente em evolução, capaz de acolher culturas diversas, tornando compatíveis as diferenças sem jogá-las no gueto? Uma coisa é certa: temos necessidade de promover e desenvolver modalidades de pensamento preparadas para manter unida a corda da humanidade, que tanto mais se reforça quanto mais entrelace entre si os fios das histórias particulares. Hoje, as ideias de “civilização”, “humanidade” e “humanismo” são vistas com suspeita, acusadas de confundir irremediavelmente a essência da humanidade com aquela de uma sua forma histórica particular, a judaico-cristã. E a acusação é que o verdadeiro universalismo foi substituído por um universalismo imposto com séculos de violência e exploração. O desafio é duro e requer coragem sob duas frentes: de um lado, na determinação em considerar as críticas movidas pelas outras culturas, escutando as suas vozes; de outro, na vontade de escrutar o lado sombrio do universalismo europeu e ocidental, perguntando-se se e onde esteja errado. Tradução: Marco Mondaini, professor da Universidade Federal de Pernambuco, autor da coletânea Enrico Berlinguer – Democracia, valor universal, editada pela Fundação Astrojildo Pereira. Atualmente, faz pós-doutorado no Departamento de Teoria e História do Direito da Universidade de Florença.
Remo Bodei
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V. Batalha das ideias
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Autores Ruy Fausto
Doutor em Filosofia pela Université de Paris 1 (1981), e graduado em Filosofia (1956) e em Direito (1960) pela Universidade de São Paulo. Dentre sua obra destacam-se Marx: lógica e política e Os piores anos de nossa vida, pela Fundação Astrojildo Pereira
Ariosto Holanda
Engenheiro e deputado federal (PSB-CE)
Bruno Gravagnuolo
Jornalista de L’Unità, responsável pela página de cultura do jornal romano
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A ofensiva teórica contra os direitos do homem Em torno das teses de Alain Badiou e Slavoj Zizek
Ruy Fausto
A
proximadamente, a partir da última década do século passado, assiste-se à emergência de um discurso teórico, cuja característica principal é a crítica dos “direitos do homem”. Trata-se de uma filosofia e de uma política, cujo centro é a recusa da “democracia parlamentar” e, num plano mais especificamente filosófico, a defesa do que se costuma chamar de “anti-humanismo”. Crítica da democracia, crítica dos direitos do homem, reivindicação do anti-humanismo, é o tríptico dessa tendência que pretende renovar, a seu modo, a tradição filosófica e política da esquerda. Ocupo-me aqui só de dois autores dessa galáxia, Alain Badiou e Zlavoj Zizek. Por que Badiou e Zizek? Meu interesse por esses dois autores não vem do reconhecimento de uma suposta “importância” dos seus trabalhos, mas quase do contrário. Ambos vão ocupando uma posição de destaque não só nos meios de uma certa extremaesquerda, mas também no interior do establishment universítário da Europa e dos Estados Unidos, sem falar do espaço crescente que ocupam na mídia. A acrescentar a circunstância de que, progressivamente, vão sendo promovidos, no Brasil, como grandes representantes do pensamento teórico-político atual “da esquerda”. Ora, o que é perturbador nessa nova onda, que, sob vários aspectos, com
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roupa mudada, é um retorno ao anti-humanismo dos anos 60 e 70, é por um lado o teor das teses políticas que ela carreia (as quais abrem a porta à violência e ao terror, quando não os promovem pura e simplesmente), e por outro, suas insuficiências propriamente teóricas (insuficiências que, de resto, são relativamente distintas, para cada um dos dois autores). A acrescentar que, não só para a França, mas também para o Brasil, esse discurso é regressivo: vários trabalhos universitários, aos quais não se poderia negar pelo menos a seriedade, empenharam-se, aqui, dos anos 70 a 90, em desmontar o anti-humanismo althusseriano (essa atividade crítica – observo desde já – se fez não em nome do humanismo, mas, de um modo que só aparentemente é paradoxal, no interior de um movimento teórico que recusava tanto o anti-humanismo como o humanismo). Badiou e Zizek reivindicam, assim, o anti-humanismo, ou uma forma de anti-humanismo. Zizek, principalmente, volta a cada momento ao “inumano” como a uma pedra de toque. Que significa isto? (vou considerar as respostas de apenas um livro de cada um dos dois autores. Ética de Badiou (Éthique, essai sur la conscience du mal, Paris, Nous 2003 [1993]), e o livro de Zizek, Em Defesa de causas perdidas (in Defense of lost Causes, Londres, N. York, Verso, 2008). O que apresentarei aqui é um fragmento de um trabalho crítico maior, em elaboração). A tese central é formulada com clareza por Badiou. “Não faremos aqui nenhuma concessão à opinião segundo a qual haveria uma espécie de “direito natural” [...]. Posto em relação com a sua simples natureza, o animal humano deve ser situado sob a mesma etiqueta (“enseigne”) que os seus companheiros biológicos. Esse massacrador sistemático busca, nos formigueiros gigantes que ele edificou, interesses de sobrevivência e de satisfação nem mais nem menos estimaveis do que os das toupeiras ou das cicindelas [besouros de mau cheiro que se alimentam de insetos, RF]. Ele se revelou o mais astuto (“retors”) dos animais, o mais paciente, o mais obstinadamente submetido aos desejos cruéis da sua própria potência. [...] [...] Assim pensado (e é o que sabemos dele), é claro que o animal humano não remete “em si” a nenhum juízo de valor” (E., p. 87-88). Quanto a Zizek – sou obrigado a resumir muito – um romance serve de ilustração para a sua antropologia. O romance é O iluminado (The shining), de Stephen King, que conta a história de um escritor mal sucedido que se transforma gradativamente em assassino, e mata toda a família. Para Zizek, o antihumanismo é a única filosofia capaz de dar conta desses “fenômenos traumáticos”, e escapar do que ele chama de “gesto de renegação fetichista”, em que incorreriam as éticas não anti-humanistas. 58
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A ofensiva teórica contra os direitos do homem
Que pensar desses argumentos? A meu ver, uma resposta humanista ao anti-humanismo – que por exemplo negasse a presença desses elementos destrutivos no homem, ou pregasse o amor universal, ou recusasse de uma forma absoluta todo tipo de violência (inclusive a contra-violência) em qualquer situação – não se sustenta. Não por acaso, a argumentação de Zizek (que não posso desenvolver aqui) é em parte construída em torno da refutação do humanismo, como se, da refutação deste, pudéssemos, sem mais, concluir a legitimidade do anti-humanismo. Minha perspectiva – já sugeri – é a da crítica tanto do anti-humanismo como do humanismo, embora deva reconhecer que, tudo somado, este último é “bem melhor” do que o primeiro. A meu ver a dificuldade da tese de Badiou e Zizek, não está em ter falado da presença de um inumano no homem. Isto é incontestável. O problema é definir a modalidade desta presença. Se se quiser, a dificuldade está em interpretar a expressão – que é de Zizek – “o núcleo inumano do ser humano”. Ninguém duvida de que o homem, individual ou coletivamente, é capaz dos piores horrores, nem de que, no interior de cada um de nós haja (ou possa haver) algum impulso desta ordem. Mas esses impulsos constituem o “núcleo” do ser humano? O que me autorizaria a fazer essa afirmação? Diria duas coisas a respeito, mais um comentário de ordem lógica. Em primeiro lugar a possibilidade de se transformar em “serial killer” – que, admitamos, existe em qualquer ser humano –, não exclui, parece, outras possibilidades: a de condutas pacíficas, mesmo generosas, até de piedade, o que for. Em segundo lugar, trata-se precisamente de possibilidades. Todo indivíduo pode se transformar no personagem do filme em questão, mas muitos, a enorme maioria, não se transformam, e há boas razões para supor que essa possibilidade é em muitos casos, na maioria sem dúvida, muito pequena. Ora, entre o possível e o efetivo, a diferença é enorme. Uma característica do que poderíamos chamar de pensamento antidialético – a noção de “dialética” foi “desvalorizada”, mas ela é perfeitamente rigorosa, e essa desvalorização explica de resto que se possa escrever impunemente essas coisas – é, entre outras, precisamente a subestimação da diferença entre potência e ato, ou a confusão entre os dois. É absurdo definir o homem simplesmente pelo “humano”, como é absurdo, também, defini-lo apenas, pelo “anti-humano”. Resumidamente, se deve dizer que os dois elementos existem como potencialidades. Dessas duas potencialidades, há razões para preferir o lado “humano” ao lado “anti-humano”. O lado “anti-humano” é o do assassinato, da violência, de uma cultura de morte (uma cultura da “jungle”); o outro lado permite a coexistência dos indivíduos, a cooperação, a sobrevivência, a vida em suma. Dir-se-á que a violência em certos Ruy Fausto
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casos é necessária, o que é verdade. Esta é, de resto, uma das razões pelas quais o humanismo não é defensável. Mas, de uma forma geral, a violência só pode ser justificada como contraviolência, e deve-se discutir aí, com que teor, em que medida, e em que circunstâncias esta é legítima, – pois é essencial o exame de cada caso. Se, ao pensar assim, saimos a rigor do humanismo, não caimos por isso numa ética anti-humanista. Vejamos agora como se desenvolve a argumentação de Badiou. Como vimos, para ele, não haveria por que supor a legitimidade de quaisquer “direitos do homem”. O homem só entra na esfera dos valores em circunstâncias especiais, quando ocorre um Acontecimento (a distinguir de um simples evento), ocasião em que emerge um Sujeito (um processo subjetivo) de que ele, homem, é um suporte. Quais seriam esses Acontecimentos? “[...] a Revolução francesa de 1792, o encontro de Heloisa e Abelardo, a criação da física por Galileu, a invenção por Haydn do estilo musical clássico [...] Mas ainda: a Revolução cultural na China (1965-1967), uma paixão amorosa pessoal, a criação da teoria dos Topos pelo matemático Grothendieck...” (ib). Em todos esses casos, mudar-se-ia de registro, e o animal humano apontaria para a imortalidade. Vejamos em que implicam essas teses, quais as suas dificuldades, e que caminho alternativo seria possível propor. Em primeiro lugar, é preciso observar que Badiou põe no mesmo plano grandes rupturas artísticas ou científicas, e alguma coisa tão contestável como a chamada Revolução Cultural Chinesa (mesmo se ele a considera só num período ) que foi na realidade uma grande mobilização opressiva e um massacre (ver a respeito, a biografia de Mao por Philip Short, que não é o livro mais crítico que existe sobre Mao). (Observe-se, quanto à Revolução Francesa, que ele exclui o período 89 a 91, o que deixa fora, entre outras coisas, a primeira declaração dos direitos do homem). Mas façamo-nos de advogados do diabo, e, por ora, ponhamos entre parênteses os seus piores exemplos.. Perguntâmo-nos: teses como esta não legitimariam qualquer forma de violência? Ora, é interessante observar que Badiou se manifesta da maneira mais enérgica, quando trata da questão da Shoah: “[...] a exterminação nazista, [...] exemplifica o Mal radical, indicando aquilo cuja imitação ou repetição deve ser impedida a qualquer preço [...] (E., p. 92). Muito bem. Mas, à luz das passagens anteriores, como justificar essa atitude? Páginas antes, num texto que termina com uma referência a Chalamov, Badiou se refere às figuras do algoz e da vítima, à situação nos campos, e também à tortura. Ele escreve o seguinte a respeito: “Enquanto algoz, o homem é uma abjeção animal, mas é preciso ter 60
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a coragem de dizer que em quanto vítima, em geral ele não vale mais. Todas os relatos de torturados e de sobreviventes indicam com força: se os algozes e burocratas das masmorras e dos campos podem tratar suas vítimas como animais destinados ao abatedouro, e com os quais, eles, os criminosos bem nutridos, não têm nada em comum, é porque as vítimas se tornaram mesmo (“bel et bien”) animais como esses (“de tels animaux”). Fez-se o que tinha de ser feito (“ce qu’il fallait”) para [chegar a] isso.” (E., p. 32). Bom, os judeus liquidados nos campos hitlerianos não eram tal coisa – isto é, não tinham sido reduzidos a essa situação? E se é assim, em boa ética badiouista, mereceriam eles algum respeito, teriam eles algum direito particular à vida? Em termos da ética de Badiou, a resposta só poderia ser negativa, a menos que os prisioneiros tivessem se elevado à Imortalidade, e à Infinidade, pela revolta ou pelo protesto. Entretanto, Badiou condena a Shoah. Como? O seu argumento é o de que o nazismo é um simulacro da revolução, um processo que imita a “subjetivação”. E na medida em que o nazismo é simulacro de um Acontecimento, ele participa, mesmo se negativamente, do registro infinito dos valores. Isto é, só se pode condenar o nazismo como Mal, porque se trata do inverso do Bem, o que não ocorre em outras situações de violência, as quais, por envolver o simples animal humano, são indiferentes ao bem e ao mal. O que obriga Badiou a seguir de perto – ele o admite – a tese dos historiadores revisionistas alemães: a “revolução” nazista é essencialmente a contrapartida histórica, e no caso também lógica, da revolução comunista. Em resumo, deveriamos dizer: a Shoah é passível de julgamento ético porque é um simulacro da revolução; se não fosse, estaríamos diante de sete milhões de animais humanos cuja sobrevivência ou liquidação seria, a rigor, indiferente... Mas voltemos aos fundamentos. Aqui seria preciso retomar os argumentos que utilizei a propósito de Zizek, mas numa vertente um pouco diferente, para explicitá-los melhor, e tentar esboçar uma resposta alternativa. Se o homem é predador e cruel, é indiscutível que ele desenvolveu ao mesmo tempo uma característica que não deve ser estranha a todo o mundo animal, mas que no caso dele toma um lugar muito particular – o de ser capaz de respeitar, ou pelo menos de poupar, o outro homem, e a vida em geral. De fato, se a tendência à predação existe, em maior ou menor grau nos representantes da espécie, é inútil negar que para muitos homens pelo menos – milhões deles certamente – a ideia de destruir um outro homem lhes parece repugnante (embora eles possam legitimá-la em circunstâncias especiais), como parece repugnante também a própria ideia de destruir a vida (ou uma vida suficientemente articulada e desenvolvida, e não nociva ou em situação de ataque). Pensemos, num plano Ruy Fausto
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fenomenológico, na relação que temos diante de uma grande árvore. Há os que, diante dela, se dispõem a destrui-la e utilizá-la para tais ou tais fins, ou simplesmente pelo prazer de destruí-la. Mas há aqueles – também muitos – a quem repugna a ideia da destruição, e que condenariam ações desta ordem. Dir-se-á que a árvore é um mau exemplo, porque ela não ataca ninguém. Ponhamos no lugar da árvore, digamos, um animal doméstico, que já é um vivente menos pacífico. A atitude do homem diante deste último é, de novo, dupla, e mais ou menos a mesma: atacar e matar o animal, ou então protegêlo e acariciá-lo (ou pelo menos condenar toda violência contra ele). Não vou discutir de onde vem essa dupla reação, e em particular a reação postiva. Identificamos o objeto vivo com nós mesmos? ou é outra a razão? Não importa. O que importa é, em primeiro lugar, que ela existe. Ora, se esse impulso provavelmente não está ausente do mundo animal não humano – lá, quando não há agressividade, há em geral há indiferença, mas existe também, aparentemente, certo tipo de afeto, e não só dentro da mesma espécie –, o fenômeno toma, no homem (embora coexista com o seu contrário) uma importância, e uma intensidade particulares. Nessas condições, poder-se-ia dizer que essa sociabilidade positiva é um traço que distingue o homem da animalidade tout court. Dir-se-á que também certas formas de violência gratuitas, distinguem o homem do animal não humano. O animal humano é, digamos, ao mesmo tempo muito pior e muito melhor do que o animal não humano (o humanismo esquece o primeiro termo, o anti-humanismo, o segundo). Historicamente, se o lado negativo não deixou de se desenvolver – ele atinge um clímax no século XX –, o lado positivo foi se firmando como uma espécie de transcendental. De um modo que só aparentemente é paradoxal, dir-se-ia que houve um processo, ele mesmo histórico, de passagem do histórico ao transcendental. Os direitos do homem só se fundam na “natureza”, neste sentido e nestes limites: eles nascem de uma determinação humana (que é uma potencialidade) – a de recusar a violência contra o outro. Esta potencialidade foi se cristalizando como ideia no curso da história, coexistindo com um prática que a contradiz em geral, mas nem sempre, no plano coletivo, e que pode contradizê-la ou não, no plano individual. Passos importantes nesse sentido foram acontecimentos históricos como a Revolução Francesa, em especial as declarações dos direitos do homem, e antes delas a Revolução Americana, como também a moral kantiana e, em parte pelo menos, a filosofia clássica, embora os filósofos clássicos, como destacam criticamente os frankfurtianos, em geral não gostassem da “piedade”. Assim, se não se mostrou que “existe” num plano puramente transcendental um “direito do homem”, é possível 62
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mostrar – parece – que houve algo como uma constituição histórica de um transcendental (por estranha que pareça a formulação) ou a emergência de um quase [como se] transcendental. Isto nos dá os fundamentos, digamos, não do grau zero, mas do grau mínimo de respeito que merece o outro homem e, em medida diversa, também, o vivente em geral. Porém, é preciso ir mais longe. E aqui entra o problema da elevação do homem senão até o “infinito”, pelo menos para além da finitude do cotidiano. Como vimos, Badiou introduz, a esse propósito, as grandes rupturas na arte, na ciência, na política (não especifiquemos), e também no amor. Mas não faltaria nada aí? Será que entre esses saltos ao infinito, não se deveria incluir mais um caso? Refirome precisamente – trata-se de outra coisa, ou pelo menos de outro passo, em relação ao que foi dito – à elevação efetiva à postura ética, à capacidade que têm certos homens – não a simples capacidade de proceder de forma ética, porque, em princípio, é de supor que todos a têm – mas sim a capacidade de efetuar essa capacidade (digamos, de modo rebarbativo), a capacidade efetiva. De fato, se a potencialidade do respeito é universal, a efetivação dessa potencialidade não é. Há os que a efetivam, há os que não. Há por trás dessa banalidade, algo que, a meu ver, é muito sério, e profundo. Os indivíduos são éticamente desiguais. Se não há vontade santa, há indivíduos melhores ou piores. Diga-se de passagem, acho que essa aparente banalidade é um dado importante não só para a crítica de Badiou e Zizek, mas provavelmente, também para um trabalho que, em grande parte, ainda está por ser feito: a crítica da “ética” de Lacan, a quem eles devem alguma ou bastante coisa. Pois bem. A capacidade efetiva do respeito (digamos assim, meio rebarbativamente) deve ser incluída entre os voos em direção ao infinito. Por circular que pareça o argumento (não se trata evidentemente de um problema de “reciprocidade”), deve-se dizer que a efetuação da capacidade de respeitar merece respeito. Se todo homem pode (e deve) ser respeitado enquanto homem (respeito grau um, com as ressalvas necessárias), o homem que respeita deve ser respeitado com um grau superior. Esse, a meu ver, o caminho (um esboço de caminho) para fundar uma ética, ao mesmo tempo transcendental e histórica, ou histórico-transcendental. Assim, voltando aos nossos autores, Badiou e Zizek, erram duplamente. Primeiro, deve-se dizer que aquém do nível mínimo por eles fixado para a possibilidade de uma ética, já existe um registro de valores de universalidade. E, segundo, no nível mesmo em que, neles, a ética desponta, há um vazio que, não por acaso, reflete a primeira insuficiência. De fato, o preenchimento desse vazio remete à efetivação daquilo
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que eles não viram como potência, e potência já carregada de valor, num nível inferior. Termino – antes de uma pergunta final – com algumas considerações sobre certas diferenças que se manifestam entre os dois autores. Nas páginas finais da sua Ética, de um modo um pouco surpreendente, Badiou introduz, um elemento de “moderação” no seu discurso – se podemos dizer assim – ao falar da exigência do que ele chama de “reserva” (E., p. 126). Trata-se, na sua linguagem, de criticar os que pretendem “nomear a totalidade do real” para transformar o mundo. Ele dá o exemplo de guardas vemelhos que fizeram “imensas destruições” (id., p. 120), isto é, praticaram certos excessos, e sem dúvida pensa também no stalinismo. Enfim, ele introduz aqui um mínimo de crítica do dogmatismo e de certa violência revolucionária. Essa precisão não altera muito o caráter do livro e das suas teses gerais, mas foi suficiente para provocar uma crítica de Zizek. Este não tolera “reservas”; sua filosofia é sempre fiel ao “excesso”. Por isso recusa essa passagem de Badiou, advertindo que a verdade é sempre “uma imposição (“enforcement”) excessiva”, ela “é sempre imposta”. Quando não funciona, não é porque foi excessiva, mas porque “em si mesma não era uma Verdade” (id, p. 307). Essa crítica de Zizek a Badiou tem interesse, porque mostra que, se este último aparece como o mais “fiel” ao maoismo e à revolução cultural (além de ser o fundador de toda essa construção funesta...), é Zizek o teoricamente mais extremista dos dois (quanto às fidelidades, neste último o stalinismo em boa medida ocupa o lugar que, no outro, é o do maoismo). Essa postura de Zizek não só define um certo tipo de filosofia, mas tem efeitos no plano dos julgamentos práticos. Sem querer abusar desse exemplo, não poderia deixar de lembrar um caso extremo, referido por um crítico de Zizek. Trata-se da posição que ele assume no que concerne a certos fatos ocorridos na guerra do Vietnã. Tendo ocupado uma cidade, os americanos, provavelmente por razões de propaganda, vacinaram algumas crianças. A cidade veio a ser reconquistada pelos Vietcong. Para eliminar definitivamente a possibilidade de iniciativas como aquelas, que poderiam melhorar a imagem dos americanos perante as populações, os vietcongs cortavam o braço das crianças, onde se fizera a vacina. Zizek comenta essa medida: “[...] ainda que seja dificil sustentar como modelo literal a seguir, esta plena rejeição do Inimigo precisamente no seu aspecto de ajuda “humanitária” (“in its helping ‘humanitarian’ aspect”) qualquer que seja o seu custo, ela deve ser apoiada na sua intenção básica”.
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A ofensiva teórica contra os direitos do homem
Apesar da concessiva “mole” no seu início, como se dizia antigamente, não se sabe o que mais admirar nesse texto: se a ignomínia moral do apoio a um ato cruel e brutal contra uma criança, ou se a cegueira teórica e prática, de quem supõe – mas supõe mesmo, ou aprecia a violência pelo amor da violência? – que meios como este podem ajudar numa luta que, em princípio, seria um combate por uma sociedade emancipada. A anfibolia é, de novo, de tipo antidialético: não se entende que, a partir de certo limite, determinados meios entram em contradição com seus fins e os intervertem. Diante de tudo isto, cabe a pergunta final: que grau de confusão, no interior da esquerda – o que não significa, deixo claro, que a situação na direita seja melhor – explica esse fenômeno estranho da aceitação de um discurso como esse, por parte de muita gente – e não sempre medíocre – como modelo teórico “interessante” ou rigoroso de uma política para a esquerda?
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Crescimento Econômico versus Desenvolvimento Social
Ariosto Holanda
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pesar de o Brasil ter entrado no século XXI com um sistema industrial fortalecido e uma moderna estrutura de agronegócios, que lhe conferem liderança mundial em vários setores, no entanto, a sua política de geração de empregos, por não acompanhar as reais necessidades do país, tem resultado num preocupante atraso social. Se, de um lado, temos empresas modernas e eficientes na sua maioria distribuídas nas regiões Sul e Sudeste, concentrando renda e riqueza, de outro temos um sem número de micro e pequenas empresas de baixíssima produtividade espalhadas pelo país, que busca, na informalidade, a sobrevivência. O professor José Pastore, já observava: “o Brasil vive um tempo paradoxal: euforia no mercado financeiro e desespero no mercado do trabalho”. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (Pnad) 2007, o país em relação à População Economicamente Ativa (PEA), atualmente, com 90 milhões de trabalhadores, tem 35,3% dos empregados com carteira assinada, 23% sem carteira assinada e 21% trabalhando por conta própria. Os rendimentos da classe trabalhadora estão assim distribuídos: 29% têm rendimentos inferiores ou iguais a um salário mínimo, 38% têm de um a dois salários mínimos, 13% têm de dois a três salários mínimos e apenas 0,5% superam os vinte salários mínimos. Como o índice de desemprego é da ordem de 8,5%, o Brasil, para pagar a imensa dívida social que se acumula ao longo de 40 anos, na forma de concentração de renda, déficit educacional e desemprego, precisa encontrar os caminhos para executar uma política econômica, socialmente justa, que leve em conta as pessoas Como diz o professor Ignacy Sachs: “a luta contra a pobreza e pela integração social com criação de empregos produtivos deve ser contínua e presente. Não é aceitável que os progressos financeiros e
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econômicos sejam realizados à custa do desemprego ou subemprego estruturais, que resultam em exclusão social e pobreza”. Temos que discutir o que é desenvolvimento; desenvolvimento para que e para quem. Não devemos confundir crescimento econômico com desenvolvimento. Não são sinônimos. O crescimento está preocupado com os valores relacionados à riqueza, como p.ex., o aumento do Produto Interno Bruto (PIB); já o desenvolvimento está focado nos indicadores sociais relacionados com o emprego, renda, saúde, educação, justiça social e outros, ou seja, com o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Nessa discussão, ênfase deve ser dada à necessidade de considerar o emprego uma questão básica no equacionamento das estratégias do desenvolvimento. Propostas como a de geração de trabalho a partir das vocações regionais e locais surgem como elemento fundamental de políticas públicas desenvolvimentistas. Num Estado Democrático, regulador de uma economia mista, o objetivo do desenvolvimento deve ter o homem como ponto de partida, observando, sobretudo, a sua cultura e seu meio, e seu direito, enquanto cidadão, à educação e ao trabalho. O verdadeiro desafio está em romper essa lógica de crescimento, que resulta em desemprego e exclusão, substituindo-a por outra que garanta o emprego. A falta de trabalho constitui uma forma irreversível de destruição do homem, já que ele deixa de realizar o que é mais importante na sua vida: a sua profissão. Infelizmente, o que se observa é que os investimentos produtivos tendem a subtrair os empregos pela substituição de homens por máquinas, sem facultarem aos operários outras oportunidades de trabalho. A busca desenfreada da competitividade, com base no lucro máximo, em menos tempo e com menos mão de obra traz como consequência desemprego, concentração de renda, miséria, corrupção e violência. Entendo que as políticas sociais e econômicas devem visar não só a riqueza, mas, o bem-estar e a melhoria da qualidade de vida de todos. Observa-se, no entanto, que o progresso científico e tecnológico não tem proporcionado, a todos, melhoria da qualidade de vida. Atualmente, temos conhecimento e tecnologia com base na engenharia genética, na química fina, na biotecnologia e em outras ciências, que seriam capazes de assegurar uma superprodução de medicamentos ou de alimentos para curar a maioria das doenças e matar a fome de milhares de famintos. Ariosto Holanda
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Se não o fazemos, é porque vivemos num mundo onde a lógica do crescimento é perversa; lógica que está alicerçada na ambição, no egoísmo, na ganância e na luta pelo poder. E nesse cenário o homem é atropelado, esquecido, ou visto como agregado de máquina. Notar-se-á que as questões que temos de enfrentar são, antes de tudo, morais. Se houvesse mais fraternidade humana, se os valores éticos fossem realçados, não teríamos no mundo crianças com fome, subnutridas e doentes, nem teríamos famílias desesperadas buscando o seu direito à vida. Entendo que a qualificação profissional e a geração de trabalho são, atualmente, os principais desafios para a promoção da cidadania dos milhões de excluídos, Infelizmente, o diagnóstico que se tem sobre essas duas ações mostra um quadro preocupante. O que está agravando essa situação do desemprego é o analfabetismo funcional dos trabalhadores. Com o avanço tecnológico crescente e acelerado, eles não conseguem entrar nesse novo mercado de trabalho que exige conhecimento. Preocupado com essa situação, o Conselho de Altos Estudos da Câmara dos Deputados apresentou em dezembro de 2007 um estudo sobre a Capacitação Tecnológica da População. Elaborado em parceria com o Executivo e a comunidade, ele aponta para a necessidade urgente de promovermos ações voltadas para a qualificação profissional dos trabalhadores e assistência técnica aos pequenos negócios. Enfatiza o relatório que a educação é o melhor caminho para diminuirmos a distância entre o Brasil que tem o 12o PIB mundial e o Brasil que ocupa o 63o IDH. Seis motivações incentivaram o conselho a analisar a situação atual. 1. O elevado número de analfabetos funcionais – na faixa etária de 15 a 64 anos existem 115 milhões de brasileiros com os seguintes graus de instrução: 10 milhões são analfabetos, 35 milhões tem um nível muito baixo de escolaridade, 40 milhões estão no início da alfabetização e somente 30 milhões tem qualificação para entrar no novo mercado de trabalho que exige conhecimento. 2. A deficiência de ensino técnico profissionalizante no país – enquanto nos países desenvolvidos a relação é a de um técnico de nível superior para cinco técnicos de nível médio, no Brasil é de dois superiores para um nível de médio e no Nordeste é de quatro superiores para um nível médio.
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3. O analfabetismo tecnológico das pequenas empresas e pequenos negócios – a mortalidade das micro e pequenas empresas é alta porque sem condições de inovar e de apropriar novas tecnologias não conseguem sobreviver no mercado competitivo. 4. A deficiência de professores de matemática, física, química e biologia o programa de Avaliação Internacional de Estudantes (PISA) classificou o Brasil em último lugar em leitura, matemática e ciências. Esse quadro tem se refletido diretamente no atraso tecnológico do país. 5. O Brasil é o último lugar entre os países emergentes (China, México, Rússia, Índia) no cumprimento das metas para inserir-se na sociedade do conhecimento. São causas apontadas: o analfabetismo funcional e o baixo nível de escolaridade da população adulta. Ainda existem 15 milhões de analfabetos na faixa etária acima de 15 anos. Segundo o Inep/2002, de 100 alunos que entraram na 1ª série do primeiro grau, somente 48 concluíram o fundamental, 32 concluíram o médio, 17 entraram na universidade e somente 8 terminaram. Enquanto a taxa de escolarização de adultos, no Brasil é 6,3 anos, na Argentina é de 8,5, no Chile de 10 e na Europa de 11,8 anos. Estudos demonstram que as pessoas quanto mais instruídas tendem a cometer menos crime, a ter menos filhos, a cuidar melhor da saúde, a depender menos dos auxílios de governo, a sofrer menos com desemprego, a ter maior participação política e a melhorar a produtividade. 6. A curva da concentração de renda medida pelo coeficiente Ginni – vem se mantendo, há mais de 40 anos, no mesmo patamar de 0,6, isto é, 10% dos mais ricos detêm 60% da riqueza do país. Diante dessa realidade, a política de geração de emprego decorrente do atual modelo econômico torna-se difícil de ser equacionada, porque temos pela frente esse elevado número de analfabetos funcionais, e um mercado de trabalho que diante do avanço tecnológico crescente está a exigir dos trabalhadores novos conhecimentos. Já começamos a nos deparar com situações onde temos, de um lado, pessoas procurando emprego e na contramão trabalho procurando profissional. O que fazer, então, com milhões de trabalhadores cuja força de trabalho é cada vez menos exigida ou nem mais o é? Não estariam aí, as razões maiores do desemprego, da concentração de renda, da violência, da marginalidade e da corrupção?
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V. Batalha das ideias
O discurso do crescimento econômico como fórmula de geração de trabalho, diante dessa massa de excluídos, torna-se inócuo, porque poderemos ter aumento significativo do PIB sem que isso implique em criação de um grande número de empregos e diminuição de pobreza. Há, diante dessa situação, uma urgência em criarmos mecanismos ágeis e flexíveis de transferência de conhecimentos para a população, como verdadeiros atalhos que avancem sobre os procedimentos tradicionais da educação. Temos que discutir um modelo pautado na democracia que tenha como base uma economia que leve em conta as pessoas. A lógica atual do modelo neoliberal, que tem como carro-chefe o mercado, do ponto de vista social é perversa e concentradora de renda. Foi com base nesse diagnóstico que o Conselho de Altos Estudos da Câmara dos Deputados, na sua missão de pensar o Brasil decidiu aprofundar essa discussão. A conclusão dos trabalhos resultou num projeto de lei e num projeto de indicação que aponta para uma política de resgate da cidadania dos excluídos a partir de ações que tenham como fundamentos a educação em todos os níveis, a extensão e a informação. Entre as ações propostas destaca-se a da implantação de um grande programa de extensão tecnológica que contempla a instalação no país de 1.200 Centros Vocacionais Tecnológicos (CVT). Certamente a geração de emprego e a distribuição de renda só se darão, de modo efetivo, quando investirmos no capital humano e procedermos a uma profunda transformação na lógica do desenvolvimento. O salto de qualidade só virá se tivermos a capacidade de realizar mudanças profundas no sistema de transferência de conhecimentos e que seja capaz de envolver toda a sociedade. Como fazer ingressar num sistema produtivo esse grande número de analfabetos funcionais? Como distribuir renda com pessoas sem qualificação profissional, nesse mundo de economia globalizada? Como superar as desigualdades regionais, se temos a consciência de que elas aumentam com a concentração de conhecimentos? O analfabeto fora da escola, o analfabeto tecnológico dentro da escola, a escola fora da realidade atual, a universidade sem interagir com os problemas do meio, o setor produtivo isolado dos problemas educacionais e tecnológicos são verdadeiros desafios para qualquer governo que queira promover uma revolução educacional, científica e tecnológica.
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A fim de dar resposta a esses questionamentos, o Conselho de Altos Estudos, com o apoio do presidente da Câmara, deputado Michel Temer, e com a presença dos ministros da Ciência e Tecnologia, do Trabalho, da Educação, da Previdência e dos reitores e professores dos institutos federais, promoveram, no dia 7 de julho, um seminário com o objetivo de discutir as ações que venham resgatar e fortalecer a extensão tecnológica do país. Entendeu o conselho, que a Extensão seria o mecanismo mais ágil e flexível para levar o saber a todos os que não têm mais tempo de ir para uma escola formal, mas, que precisam adquirir novos conhecimentos. Na ocasião, identificamos como principais extensionistas os professores da rede formada pelos institutos federais que, até 2010, estarão presentes em 350 municípios. Essas instituições, ágeis, flexíveis, competentes e comprometidas com a missão de capacitar as pessoas para o trabalho, e que tiveram sua origem nas antigas escolas técnicas federais ao formarem uma rede, pela sua capilaridade, poderão assumir a missão da extensão tecnológica do país. Se interagirem com o meio levando conhecimento, informação e assistência técnica para os trabalhadores, microempresários e pequenos negócios, os institutos federais poderão mudar esse quadro do analfabetismo funcional dos trabalhadores e do analfabetismo tecnológico das micro e pequenas empresas. Mas, para o êxito dessa missão torna-se necessária a aprovação do projeto de lei no 7394/2006, elaborado pelo Conselho de Altos Estudos, que cria um fundo para financiar as atividades de extensão a partir de recursos do FAT e do FNDCT. Com a palavra o Congresso Nacional e o Poder Executivo.
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Notas sobre marxismo, intelectuais e democracia Bruno Gravagnuolo 1. Bobbio, um mestre de esquerda Agora, até Alberto Asor Rosa, na entrevista da ed. Laterza a Simonetta Fiori, o reconhece: Bobbio tinha razão contra Togliatti e Della Volpe sobre a relação política e cultura. Questão dos anos 1950, mas ainda válida, que vale a pena retomar cem anos depois do nascimento do filósofo turinense. Isto é: o intelecto crítico, laico e racional é soberano em relação à política e aos seus fins. E com ela mantém uma relação de autonomia, que não é de indiferença, mas de participação responsável, ativa e sem atos de fé. E que se renova em cada oportunidade: não orgânica e orgânica. Rebelde e leal, e voltada para interrogar os fundamentos da política, para melhor escolhê-la e quem sabe servila, mas em liberdade. Ao longo da história e dos seus conflitos. Mas não é só este o legado de Bobbio. Há muito mais. Da descoberta do direito como continente em si (técnicas, objetivos, funções, formas de governo) até a distinção fatos/valores e a crítica à inexistência de uma teoria marxista do Estado, com a correspondente redescoberta daquilo que faz de uma democracia uma democracia: procedimentos universais, garantias, não violência. E até chegar à lúcida elaboração do par direita/esquerda de 1994. Direita como desigualdade e hierarquia. Esquerda como igualdade, dinâmica e não niveladora. E mais: o antifascismo. Antifascismo como Grund Norm à Hans Kelsen. Isto é, o valor metajurídico que funda – por referências e implicações – o edifício jurídico da Constituição republicana. Por fim, a paz. Apreendida por Bobbio, e paradoxalmente, entre dois opostos: Hobbes e o Jusnaturalismo. Hobbes encarna a exigência da autoconservação civil, cada vez mais cosmopolita. O Jusnaturalismo, ao contrário, é o valor da pessoa humana, cristão mas laicizado e agora transconfessional (kantiano). Há muitas razões para voltar a Bobbio, laico, socialista liberal de esquerda. E defensor intransigente do nosso Estado parlamentar. Contra todo e qualquer populismo decisionista. De direita ou mesmo progressista moderado. 72
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2. Intelectuais, adeus. O pensamento é pó Há dias, olhando as ofertas turísticas no encarte de um importante jornal, dava-se de cara com um curioso anúncio. Um famoso historiador da filosofia iria trabalhar como guia de um cruzeiro no Egeu, entretendo os clientes sobre filosofia grega durante todo o tour. Preço módico. Nada mau. Mas se poderia começar por aqui para resenhar O grande silêncio, o livro-entrevista com Alberto Asor Rosa sobre o “silêncio dos intelectuais”, organizado por Simonetta Fiori. O exemplo, ao lado daquele de um outro grande estudioso, autor há anos de (verdadeiros) menus gastrofilosóficos, resume ironicamente um dos temas-chave do livro: o esgotamento do intelectual clássico. A liofilização do seu papel de outrora. Sintético e pedagógico, e baseado no nexo cultura e política. E também na ideia de uma cultura alta e crítica. Vocacionada para distinguir o que é relevante daquilo que não é. Logo, silêncio dos intelectuais ou entretenimento verboso, na era “pós-moderna”, termo ao qual Asor prefere o de “civilização ascendente” de massas. Volume de qualidade. Por variados motivos. Primeiro, é bem conduzido pela organizadora. Segundo, tem como protagonista pensante um insigne italianista, versado em política e cultura, cuja biografia é emblemática da intelligentsia italiana do pós-guerra. Terceiro, enfrenta um tema crucial. Quarto, trabalhamos com Asor nos tempos de Rinascita, e, por isso, falar dele significa também falar de coisas vividas em comum (de modo diverso). Por exemplo, a virada PCI-PDS [Partito democratico della sinistra], que nos surpreendeu a ambos, ao lançarmos, ele diretor, a última edição do semanário fundado por Togliatti. Mas vamos ao ponto central: os intelectuais. Asor descreve sua gênese entre iluminismo e revolução industrial. Figuras-chave da reprodução capitalista dentro da moderna sociedade civil, sempre foram de algum modo enciclopédicos, conflitivos ou orgânicos. E sempre “expressivos” de um salto: dos saberes especializados para o intelecto geral. Sociologicamente, para Asor, aquela função se extinguiu, em benefício de papéis técnicos, midiáticos ou gerenciais. E no quadro de uma mutação “pós-fordista”, que massificou camadas e classes, tornando inúteis mediações e conflitos, dos quais os clérigos foram portabandeiras através das tempestades ideológicas do século XX. Como pano de fundo, para Asor, existe agora a “civilização ascendente”, o “monstro moderado” de que fala Raffaele Simone, afim à “ditadura da maioria”, sobre a qual escreveu Tocqueville: sociedade da imagem, individualismo de massa, homologação, populismo light, Grande Irmão etc. Matrizes de uma gigantesca degradação, seja do Bruno Gravagnuolo
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progresso civil e democrático, seja da inteligência crítica. Apocalipse? Sim e não, para Asor. Embora exegeta no passado do Apocalipse de João, ele rejeita jeremíadas passadistas e, antes, busca os pontos de força para uma retomada da política e da cultura (vividos à Bobbio, em concórdia/discorde) e para um relançamento do melhor da tradição democrática ocidental. Asor teria razão? Tem muitas razões e talvez cometa alguns equívocos (mais no sentido de omissões). Desde logo, é correta a percepção geral da idade pós-fordista, com o corolário justíssimo da barbárie italiana berlusconiana, feita de desagregação da memória, prepotência carismática e ameaças à divisão dos poderes. Corretíssima, igualmente, é a crítica aos intelectuais italianos, inermes ou muitas vezes acima das partes, depois de terem estado à esquerda talvez de modo ingênuo e ortodoxo. E sobretudo tem razão sobre uma coisa: a falha na virada PCI-PDS. Esta, para Asor, afinal teria jogado fora a criança e a água suja, sem um balanço sério do que foi o PCI na história da Itália: um grande fator de progresso, apesar de limites e atrasos. Realidade liquidada sem pars construens, a ponto de privar as classes subalternas de organização, identidade e perspectivas. E com a consequência de ter desimpedido o campo para o bloco social e o senso comum da direita. E, no entanto, em conclusão, a análise de Asor peca em pelo menos dois pontos. A saber, não é verdade que a homologação seja afinal assim tão forte, a ponto de tornar quase desesperada a busca de pontos de ataque e resistência. De fato, o trabalho assalariado cresceu, em paralelo ao grande exército de reserva dos flexíveis, imigrados ou não. O contra-ataque – além da escola de massa – pode ser retomado a partir da redescoberta do trabalho moderno, avançado, infeliz e dominado. Potencialmente rebelde às receitas liberistas, que querem fazer dele uma coisa marginal e etérea, não mais garantido e “humano-relacional”. Enfim, o PCI-PDS. Operou-se mal a virada em 1989. Mas devia ser feita – dado o colapso do comunismo –, e não rejeitada, como o fez a frente do “não”, que agiria melhor tentando orientá-la de outro modo, em vez de recusá-la. Na verdade, depois do desconcerto e da recusa, Asor Rosa tentou com honestidade um caminho construtivo e positivo, que salvasse o núcleo racional da esquerda e do comunismo italiano. Mas foi derrotado, e todos nós ainda devemos recomeçar daí.
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3. Kolakowski e o Marx partido ao meio Leszek Kolakowski, um grande crítico do marxismo, de origem marxista. No entanto, incapaz de formular uma verdadeira “revisão” do seu objeto teórico, tendo terminado numa posição cética, entre a dúvida crítica e a transcendência religiosa. Foi esta a parábola do filósofo polonês, nascido em Lodz, em 1927, e falecido em Oxford, no último 17 de julho, depois de ter emigrado em decorrência das agitações polonesas de 1968, nas quais se destacou como líder do dissenso. O que nos deixa? Sem dúvida, uma crítica ao “totalitarismo” latente em certas zonas da lição marxiana. Por exemplo, no “mix” de filosofia da história e determinismo positivista, que se encontram na Crítica da economia política de Marx. Deste modo, em Nascimento, desenvolvimento e dissolução do marxismo (SugarCo, 1980-1985), Kolakowski desmonta com facilidade tal “mix”, referindo-o a Platão, a Plotino e também à “gnose” e ao profetismo bíblico. E criticando simultaneamente o aspecto de “necessidade” da estrutura econômicosocial, que se impõe sobre ideias e representações do mundo (sobre o fator subjetivo). Todavia, trata-se de críticas a Marx que não são novas e já estão presentes em gente como Weber, Bernstein, Croce, Gramsci. E críticas, as de Kolakowski, que cometem o erro de não tomar em consideração que existe também um outro Marx. O Marx da “subjetividade”, contra a economia alienada. O Marx que fala da consciência como fator resolutivo das “inversões dialéticas”. E que levanta a hipótese de um mundo novo no qual todos e cada qual possam desenvolver criativamente suas personalidades, sem as mutilações da dominação e da desigualdade, que transformam os indivíduos em mercadoria e joguete de um destino imposto. Talvez a questão verdadeira, que Marx não captou e Kolakowski também não fixa, seja outra: a democracia. Em outras palavras, a cotidiana libertação associada, dentro da sociedade civil e do Estado representativo. Contra o populismo e os mitos da democracia direta, que engendram ditadura e fanatismo, entre outras antigas mistificações demagógicas. Fonte: L’Unità & Gramsci e o Brasil Tradução: Josimar Teixeira
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VI. Comportamental
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Autores Maria Cristina Ramos Britto
Psicóloga graduadada pela Universidade Federal Fluminense, com especialização pela Universidade Estácio de Sá
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Normalidade, pra que te quero?
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iz a sabedoria popular que de perto ninguém é normal. A discussão sobre a normalidade parece ter sido superada, já que a área psi (psicologia, psicanálise, psiquiatria) nunca chegou a um consenso sobre o que é ser normal. Pode-se definir um padrão sociocultural sobre comportamentos aceitáveis e comportamentos desviantes. Sem mencionar que os ditos comportamentos aceitáveis podem cair nos estereótipos (como padrão de beleza), e os comportamentos desviantes podem ser criminosos (como a pedofilia, os assassinatos em série). Se é fato que se enquadrar é uma necessidade humana, que a sociedade precisa de limites claros do que é certo e errado, e o aparecimento de sujeitos que agem de acordo com as próprias regras é uma ameaça ao equilíbrio do grupo, também é fato que controles e modelos rígidos podem causar pressão psicológica insuportável. Em termos culturais, morais e éticos, muita coisa mudou nas últimas décadas. Direitos civis, direitos humanos, direitos das minorias, direito de escolha, livre-arbítrio, liberdade de pensamento e expressão, liberdade política, religiosa, ninguém pode negar as conquistas alcançadas, com as contradições, os excessos, o questionável, o duvidoso que as acompanham. Mas, afinal, assim é o ser humano, sempre em processo e evolução, nunca pronto, sempre em busca, testando limites e possibilidades. A informação foi democratizada, as distâncias foram superadas pelas novas formas de comunicação, o acesso à cultura se ampliou, e os valores mudaram concomitantemente. Mas o que isto significou ao nível micropolítico, 79
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VI. Comportamental
como mudanças e avanços se traduziram no cotidiano das populações, e, principalmente, na área da saúde mental? Além das neuroses e psicoses clássicas, a sociedade moderna produz novas síndromes e novos desviantes. Necessidades de que nem se suspeitava foram criadas, embrulhadas e entregues às pessoas, que chegam a pensar como podiam viver sem aquilo de que agora não prescindem. E isto vale para objetos e emoções, do aparelho de televisão de plasma ao sorriso recauchutado da atriz da novela, do celular multifuncional ao falso príncipe encantado que usa as pretendentes e é usado por elas no novo reality show. Novos desejos, novos amores, velhas decepções e tentativas num faz-de-conta que se passa por algo sério e real. Talvez grande questão seja em que as pessoas creem ou sejam levadas a crer, a própria crença em si pode estar sendo escolhida e dada a elas. A síndrome da pressa, que lembra o Coelho Branco de Alice no País das Maravilhas, sempre consultando o relógio e murmurando: “Ai, meu Deus, vou chegar muito atrasado!”, é observada no cotidiano com certa facilidade. Cada vez mais se veem pessoas irritadas e reclamando, nas filas de banco, supermercado, cinema, incapazes de relaxar; indivíduos infringindo as leis de trânsito, e de civilidade, desrespeitando sinais, faixas de pedestres, acostamento, dominados pela ideia de que esperar é perder tempo, e perder tempo é para os tolos; pessoas que parecem ter perdido a capacidade de simplesmente se divertir, tão tensas e preocupadas que estão em aproveitar cada minuto, atrás de quantidade em lugar de qualidade. Também denominada doença da pressa, não é reconhecida ou classificada pela medicina, mas é estudada desde a década de 1980. Ela pode causar ansiedade, frustração e estresse, que trazem consigo, além de problemas físicos, comprometimento psicológico e emocional, e sérios riscos à vida das pessoas. Esta pressa pode ser percebida em circunstâncias mais pessoais, levando a escolhas rápidas. Dietas radicais, responsáveis por problemas de saúde e muita frustração, porque depois de perder peso sem reeducação alimentar e exercícios, o corpo reage recuperando tudo de que foi privado, no chamado efeito rebote. As bancas de jornais exibem revistas que proclamam a última novidade milagrosa: dieta da lua, dieta da sopa, dieta da maçã, dieta do chá verde, dieta dos pontos. Há de tudo para todos os gostos, basta credulidade, e a mensagem é: não há garantias, seu dinheiro não será devolvido, você não conseguiu porque não tem força de vontade, veja a fulana risonha na capa, perdeu 24kg em três meses. Outro exemplo são os relacionamentos-relâmpago, quando etapas são queimadas e as 80
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Normalidade, pra que te quero?
pessoas se separam sem se conhecer realmente. A pressa de fazer e viver não permite que se usufrua o momento, pois corre-se o risco de queimar etapas fundamentais de experiência, aprendizado e, por que não?, prazer. Isto explica, em parte, que os jovens iniciem o abuso de substâncias (álcool e drogas) cada vez mais cedo, na ânsia de se socializar, pertencer a um grupo e ser aceito por ele, e ter tantas experiências físicas e sensoriais quanto possível no menor espaço de tempo, ou seja, rapidamente. A síndrome da magreza, que, em casos extremos, resulta em bulimia e anorexia nervosa, quando a pessoa chega ao ponto de não perceber o próprio corpo magro e acredita que ainda está gorda, fenômeno conhecido como distorção da autoimagem. Mulheres cada vez mais jovens sucumbem a uma imagem fabricada de glamour, perdem o controle da própria vida, do próprio corpo, das próprias emoções, e tentam recuperar este controle através de dieta restritiva e severa e mesmo jejum por vários dias, no caso da anorexia, e recorrem ao vômito, laxantes e diuréticos, no caso da bulimia, e praticam atividade física em excesso (passam horas na academia), conferem o peso várias vezes por dia, e analisam sua imagem corporal obses sivamente em qualquer circunstância, em ambos os casos. Os transtornos alimentares estão se tornando uma epidemia social. A síndrome do consumismo é uma das mais representativas da atualidade. Caracteriza-se pelo consumo compulsivo de produtos ou serviços sem consciência de que não se precisa deles. A pessoa pode até roubar ou furtar não por necessidade, mas pela vontade irrefreável de possuir o objeto e não ter condição financeira para comprá-lo. Já há grupos de apoio para os que compram demais e se endividam, nos moldes daqueles que auxiliam os jogadores compulsivos, os viciados em sexo, em pornografia, em álcool, em drogas. Outras compulsões deste tipo estão ligadas ao vício em televisão, internet, jogos eletrônicos, celular. A síndrome da estética, representada por cirurgias plásticas, lipoaspiração, implantes, silicone, botox, e até a utilização de fórmulas com formol, substância usada na preservação de cadáveres, para alisar os cabelos, e uma quantidade inacreditável de cremes, loções, pomadas antiidade, antirrugas, antigravidade, anti tudo que define um processo natural de envelhecimento, está escravizando as pessoas a modelos de beleza, ou a um conceito específico de beleza que não respeita as diferenças. Aqui e agora não há lugar para pequenas imperfeições que marcam a individualidade: um sinal no rosto, um dente um pouquinho torto, um nariz fora dos padrões, barriguinha, celulite, rugas, tudo isto é quase uma infração à ordem vigente. Maria Cristina Ramos Britto
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VI. Comportamental
A insatisfação com a própria imagem pode levar ao transtorno dismórfico corporal, quando a pessoa não se aceita, percebendo imperfeições pequenas ou inexistentes como defeitos inaceitáveis, e busca um modelo inalcançável através de inúmeras cirurgias plásticas e tratamentos ortodoxos ou não, que podem, inclusive, levar à morte pelas mãos de profissionais incompetentes ou de impostores. A síndrome de Peter Pan acomete homens que não querem crescer e fogem de compromissos e responsabilidades da vida adulta. Inclui também a não aceitação da velhice, ou a visão desta quase como doença. Sua contraparte é a síndrome de Cinderela, mulheres eternas adolescentes à procura do homem perfeito, e nunca satisfeitas com o homem possível e amável, representadas pelas participantes do reality show mencionado anteriormente. Com a diferença de que estas últimas apenas fingem que acreditam no príncipe e estão mais interessadas em outros prêmios. A doença é socialmente produzida com outras faces, catalogada, e então tratada com terapias, remédios e, se necessário, internação. É um desdobramento revisto e atualizado das antigas psicoses e neuroses, novas esquizofrenias, novas prisões do sujeito em desejos impossíveis, sem respostas. A grande questão é: o que fazer das demandas por modelos que esquecem o indivíduo (seu interior) e trabalham com imagens preconcebidas (o exterior)? A indústria farmacêutica financia pesquisas que visam ao desenvolvimento de drogas que minimizem o sofrimento emocional, contribuindo para a ideia de que é possível controlar e medicalizar distúrbios como, por exemplo, a depressão (são os chamados estabilizadores químicos). As drogas interessam por sua funcionalidade, e são periodicamente substituídas pelas chamadas “de última geração”. Em relação às angústias existenciais de quem não se enquadra em modelos aceitos, mas nem por isso pode ser considerado desviante, há opções de terapias tradicionais e alternativas para todos os gostos e problemas. Sem mencionar a possibilidade de, como num grande restaurante self service, misturar florais, cromoterapia e terapia reichiana, ou candomblé, psicanálise e radiestesia. Ou seja, o cardápio é variado, mas o indivíduo precisa ter ideia do que está fazendo e de quem é o profissional que o está atendendo. Afinal, sempre existiram os vendedores de sortilégio e ilusões, as poções mágicas e a promessa de fortuna, glória e felicidade. Nada disso é privilégio de nosso tempo, a mistificação sempre existiu. Assim como a eterna busca da felicidade, dentro ou fora de um padrão. Talvez um começo seja voltar à simplicidade e à reflexão, olhando para dentro de si, e não para fora. 82
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VII. Economia e finanรงas
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Autores Tony Volpon
Economista residente em Nova Iorque, estrategista para a América Latina do Nomura Security International Inc.
Demetrio Carneiro
Economista, especialista e pesquisador em políticas públicas, professor universitário no Distrito Federal. Coordenador do blog Alternativa Brasil. E.mail: demetriocarneiro@ yahoo.com.br
Paulo Ernesto Strazzi
Engenheiro eletricista, na Cesp desde 1982, trabalhou na Ceresp entre 1998 e 2008, seu coordenador no período de 2000 e 2008. Mestre em Planejamento Energético pela Unicamp e recém-doutor pelo PPGE/IEE/USP, com trabalho sobre políticas públicas de eletrificação rural em São Paulo
Sinclair Mallet Guy Guerra
Doutor em Economia da Energia – Université de Paris III (Sorbonne-Nouvelle). Atualmente é professor do Programa Interdisciplinar de Pós Graduação em Energia do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP, professor Livre Docente do Departamento de Energia da Faculdade de Engenharia Mecânica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
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Considerações e propostas por uma nova política econômica
Tony Volpon e Demetrio Carneiro Introdução As eleições presidenciais sempre sinalizam possibilidade de mudanças. Necessariamente elas não ocorrem uma vez eleito o presidente, mas é com essa expectativa de mudanças que lidamos. A crise que todos vivemos trouxe à tona muitas contradições que não estavam visíveis nos bons momentos vividos, mostrou certas tendências que, levadas ao limite, podem implicar em problemas graves para a nação. Também ficou mais clara a necessidade de se questionar as estratégias até aqui adotadas e as políticas públicas delas derivadas. Ficou bastante evidente que teremos que aprofundar questionamentos quanto ao modelo de desenvolvimento que pretendemos e como encaramos nossas possibilidades reais de crescimento. Para nós, que somos economistas, o desafio está em propor políticas econômicas que sejam capazes de atender as demandas impostas pela nova realidade. Temos que ser capazes de propor um novo estilo de gestão econômica que responda com mais eficiência às necessidades e momentos que estão por vir. Temos que poder olhar para a gestão pública e, no nosso campo de interesse específico, as políticas econômicas, entendendo que qualquer programa de governo deve ser sustentado num mundo real por um aparelho que é complexo e tem múltiplas interações, mas que também é, em última análise, o canal pelo qual as mudanças que propomos terão que ser implementadas.
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Impossível negar que, nos últimos anos, o Brasil tenha passado por um período de inéditas mudanças econômicas e que estão permitindo ao país uma oportunidade de, finalmente, vislumbrar um horizonte de desenvolvimento econômico com justiça social. Mas, por ora, e apesar de alguns avanços, estamos muito longe de onde podemos e devemos chegar. Apesar do discurso ufanista, avaliando o progresso de outros países emergentes nesse período, é fato que o Brasil não se destaca. A percepção de sucesso e de avanço é relativa e tem muito a ver com nossas baixas expectativas e não uma avaliação objetiva do que realmente foi feito dentro do campo de alternativas que hoje temos. A questão que se coloca agora, depois que passamos por uma crise que por muito pouco não destrói qualquer possibilidade de avanço econômico, é pensar quais as mudanças necessárias na política econômica para o Brasil traduzir essas oportunidades e potencialidades em progresso concreto. Nesse intuito vamos abordar quatro áreas de política econômica que se articulam e relacionam: política monetária, política fiscal, política cambial e política industrial. Esperamos mostrar que um conjunto de mudanças, muitas delas técnicas, pode melhorar a eficiência da aplicação dessas políticas. Esperamos mostrar também que o que deve nos preocupar não são somente questões de “políticas” no senso mais restrito (policy), mas sim a construção e a articulação institucional entre as instâncias que executam essas políticas. Esperamos mostrar que um dos grandes problemas dos últimos anos foi o quase total desencontro na formulação, coordenação e execução entre essas áreas. Vamos, também, ter como tema a necessidade de mudar políticas e instituições para um período de sucesso e abandonar atitudes que serviam para um período de crise.
1. Política monetária e fiscal Iniciaremos discutindo uma questão muito debatida nos meios acadêmicos e políticos: Porque as taxas de juros reais no Brasil são tão altas? Embora possa ser certamente uma simplificação, há nesse debate duas posições básicas. A primeira, defendida por um pensamento que se diz keynesiano, afirmando que as altas taxas de juros são fruto de um pacto entre uma classe rentista e seus agentes no mercado financeiro, os quais controlariam o Banco Central. Por essa lógica, parece que a solução seria a simples tomada – revolucionária? 86
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– do BC por pessoas alinhadas com os interesses contrários aos da classe rentista. Assim tudo se resolveria muito rapidamente e sem grandes complicações. É inegável que a captura de instâncias burocráticas por aqueles que eles as deveriam, pelo menos tentar, regulamentar é um problema sério que aflige todo o aparelho do Estado ao longo de nossa história. É também verdade que a atual composição do Comitê de Política Monetária (Copom) precisa ser reformulada. Vamos discutir isso mais à frente. Mas pensar que o problema dos juros altos se resume a uma conspiração de elites demonstra, além do desconhecimento da boa economia, enorme ingenuidade. Existe na verdade uma prova empírica elementar, capaz de demonstrar que a taxa de juros no Brasil é alta, mas que ser alta não é resultado do equilíbrio geral da economia, por mais perverso que esse equilíbrio seja. Apesar de alta, se os juros nominais determinados pelo Banco Central fossem tão altos, por conta de uma tentativa de premiar os rentistas, deveríamos observar uma queda continua da taxa de inflação. Se a taxa nominal estiver acima da de equilíbrio haveria efeito contracionista reduzindo a inflação. Não é o que observamos concretamente. De fato normalmente a inflação brasileira tem ficado acima da meta fixada pelo governo, já bastante alta pelos padrões das economias em desenvolvimento. Isto comprova que a taxa de juros nominal está meramente seguindo uma taxa de juros real determinada pelas condições estruturais da economia brasileira. O BC decide a taxa nominal, mas quem determina a taxa real é o resto da economia, dentro de condições objetivas que independem da “vontade” dos economistas ou dos gestores públicos. Uma visão, alternativa, a correta a nosso ver, é constatar o óbvio: A questão dos juros altos no Brasil tem fortes e complexas causas estruturais que, essas sim, devem ser atacadas. Dois pontos cruciais para a eficiência de uma solução que vise manter juros baixos de forma sustentável e de longo prazo: 1) Aumentar a eficácia da política monetária e 2) Diminuir a sobrecarga imposta à política monetária. Vamos discutir isto.
2. Aumentando a eficácia da política monetária Aumentar a eficácia da política monetária implica em atacar uma variedade de arranjos institucionais que diminuem o impacto da po-
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lítica monetária sobre a economia, e, portanto sobre a inflação. Um foco importante seria implementar uma ampla desindexação da economia. Contratos que regem tarifas públicas, regras que estabeleçam níveis mínimos de reajuste de salários, pensões e benefícios, ou quaisquer outros mecanismos que criem inércia inflacionária devem ser desmontados. Devemos notar que, apesar disso ser mais fácil em um período de inflação baixa e estável, muitos desses mecanismos refletem a habilidade de certos grupos impor sobre outros grupos, ou a sociedade como um todo, mecanismos para transferir renda em sua direção, em seu favor. Cabe sim ao Estado o papel de arbitrar e combater o resultado negativo desses conflitos e não criar mecanismos de solução automática e fácil, mas que acabam gerando inflação inercial. Além dos resquícios de nosso passado de indexação, que, insistimos, devem ser desmontados, há outra duas questões que precisam ser enfrentadas. A primeira é algo já bastante debatido: a ainda grande – apesar de cada vez menor – fatia da dívida pública atrelada à taxa Selic, os chamados papéis pós-fixados. Alguns economistas, que na realidade conhecem muito pouco os mecanismos de mercado e da relação Estado/mercado, tratam do assunto com certa mistificação. Segundo eles a existência dos papéis pré-fixados atrapalha o bom funcionamento da política monetária. Apenas não é verdade. O que a existência desses títulos faz é diminuir o efeito riqueza, tanto positivo quanto negativo, que as mudanças na taxa nominal causam em qualquer ativo que gere fluxos de caixa futuros. Dessa forma diminuem o poder desse canal de transmissão da política monetária e, portanto, geram a necessidade de uma taxa maior para levar ao mesmo efeito contracionista. A solução aqui deveria ser, apenas, uma determinação para que o Tesouro Nacional fosse mais agressivo nas operações de troca desses títulos por outros. Mas, como vamos discutir a seguir, existem mais coisas que o Tesouro deveria fazer para mudar o perfil da dívida pública e adequá-lo à nova situação vivida pela economia brasileira. Na mesma linha e tendo o mesmo efeito é a utilização da taxa TJLP pelo BNDES para financiar investimentos de longo prazo. A TJLP, como é hoje determinada, não sofre necessariamente nenhum ajuste quando a Selic muda. Isso “isola” aqueles felizardos que têm acesso à carteira de crédito do BNDES do efeito contracionista do aumento da Selic e assim, como no caso dos papéis “pós-fixados”, acaba forçando o BC a ter que aumentar ainda mais o nível dos juros
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sobre o resto da economia para obter o mesmo efeito, caso não existissem esses pontos de escape. O caminho deveria ser uma gradual, mas necessária, reforma da TJLP e dos moldes de operação do BNDES, para que essa taxa seja mais sensível à política monetária e possa ter um papel mais “anticíclico” na economia, sem que se abandone o importante, e necessário, papel de fomento que o banco tem hoje e terá no futuro.
3. D iminuir a sobrecarga colocada na política monetária Há outra razão para o Brasil ter uma taxa de juros real demasiadamente alta, sobrecarregando a capacidade da Política Monetária como instrumento de controle de ciclo econômico e inflação. Tanto a política fiscal como a de crédito contêm elementos fortemente prócíclicos, apesar da recente utilização do governo de toda uma falsa ideologia keynesiana para justificar forte incremento de gastos durante a crise. Aumentar gastos durante uma crise, especialmente os de investimentos, é um direito de países que demonstram responsabilidade na condução da política econômica e o Brasil, felizmente, ainda, é hoje um desses países. Mas no desempenho recente dessa gestão o que vimos foi aumento de despesas correntes do governo que, por lei e por pressão política, não irão ser reduzidas no momento que a economia se recuperar. O que vai causar, novamente, a necessidade do BC aumentar a taxa de juros, de forma forte, para impedir o aumento da inflação acima da meta estabelecida. O que temos tido no governo atual, a partir da saída do ministro Palocci, foi uma lógica que imagina que gastar mais é bom durante épocas de forte crescimento porque, primeiro, há receita para isso e, segundo, porque o gasto público é complementar ao investimento privado. Mas também é bom gastar mais em momentos de crise para implementar políticas “anticíclicas”. Enfim, sempre é bom gastar mais! Aqui o gasto não é instrumento de política pública, mas forma de manutenção de poder de grupos no aparelho do Estado. Tal lógica sempre gera pressão sobre a demanda agregada, estimulada pelo setor público. Isso pode ser especialmente nocivo, como foi durante o período 2006-2008, quando o investimento e consumo privado se encontraram em forte expansão, momento que seria ideal para o governo recuar na expansão de gastos do setor público. Mas, infelizmente, a lógica do “há receita, então temos que gastar” torna o gasto público Tony Volpon e Demetrio Carneiro
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outro fator de expansão de demanda, deixando à política monetária a ingrata tarefa de ser a ovelha negra da família e racionar a expansão da demanda via uma taxa de juros real mais alta. Um resultado dessa falta de sincronia entre as políticas monetária e fiscal são os permanentes e públicos, fartamente publicizados, com intenções claramente políticas, embates entre o Ministério da Fazenda e o Banco Central, que contam, eventualmente, com a equivocada participação do próprio presidente da República. A falta de coordenação entre ambas instituições é um pesado fator de incerteza para os agentes econômicos e que acaba apontando na direção do aumento do prêmio de risco sobre os ativos financeiros, elevando o custo do endividamento da economia, um fator hoje relevante, dadas grandes incertezas sobre a condução da política econômica no próximo ano. A solução, para ser permanente, deveria passar por um conjunto de reformas institucionais que garantissem a coordenação efetiva entre óticas e interesses de gestão pública que podem, até legitimamente a não apenas de forma oportunista, ser conflitantes. Uma segunda área de reforma deve ser aumentar a flexibilidade na área fiscal, tanto do lado das despesas como da arrecadação, para tornar a política fiscal mais sensível à questão cíclica. No aspecto relevante de uma maior coordenação, a proposta seria uma reformulação do, agora, relativamente abandonado Conselho Monetário Nacional (CMN), cujo nome talvez pudesse ser mudado para Conselho Econômico Nacional (CEN). Formatar seu papel como instituição encarregada de, periodicamente, alinhar as políticas monetária, fiscal e cambial, afinal tudo que está no âmbito dos ministérios da Fazenda e do Planejamento e do Banco Central. O CEN poderia estar ligado diretamente à Presidência da República, o que lhe daria status, e deveria ter corpo técnico próprio. Estaria encarregado de, em conjunto com os ministérios e o BC, apresentar uma análise periódica das condições cíclicas da economia e propor um conjunto de ações para garantir, ao longo do tempo, que o crescimento econômico esteja o mais perto possível do seu potencial. Sua meta seria esta: Buscar o nível máximo de emprego da economia, mas sem prejuízo de que as políticas monetária e fiscal sejam coerentes e equilibradas.
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É importante insistir que a função de uma estrutura como o CEN não seria impedir que o BC atuasse com independência operacional na sua política de juros. A função do CEN seria alinhar as políticas fiscal e monetária, dado um cenário econômico específico. Disso sairia uma ação coordenada e planejada para ambas as políticas, reativa ao cenário previsto. Na medida em que o cenário realizado diferisse do previsto, todos os agentes envolvidos, mas especialmente o BC, dado a maior facilidade relativa em mudar a política monetária, deveriam ter a liberdade de implementar mudanças na execução de suas políticas para atender às necessidades concretas do momento. Tal planejamento e coordenação, que deveria passar, por exemplo, por um processo de transparência e informação pública para melhor alinhar as expectativas dos agentes econômicos e ações do setor privado. Assim o planejamento coordenado geraria um ambiente onde a política monetária ficaria menos sobrecarregada na sua função de controlar a expansão da demanda agregada, garantindo uma queda certa e sustentada da taxa de juros real. Agora, isso só será possível e será mais eficaz na medida em que haja uma maior flexibilidade, nas duas direções: na execução da política fiscal e dos gastos públicos. Hoje naturalmente existe alguma flexibilidade via o controle que o Poder Executivo tem sobre a execução orçamentária, mas também, e é bom frisar, pelo papel naturalmente anticíclico da alta sensibilidade da arrecadação ao crescimento econômico, negativo ou positivo. O desafio aqui é conjugar o processo de planejamento orçamentário, que deve atender a um conjunto de fatores de mais longo prazo, com um processo de execução que deve estar em sincronia com questões do caráter cíclico, imediato, da economia. Neste caso a sugestão é que a decisão das estratégias de execução orçamentária sejam colocadas no âmbito do CEN, num sistema onde momentos de menor crescimento econômico possam levar a uma aceleração da execução, gerando assim apoio à demanda agregada pelo gasto público quando for necessário. Ou a redução da execução em momentos de intensa atividade. Da mesma maneira a execução da política tributária deveria também entrar no âmbito de planejamento do CEN, assegurando uma política de aumento autônomo da arrecadação em momentos de forte expansão econômica, especialmente onde há fortes chances dessa expansão estar acima do potencial atual da economia, e, ao contráTony Volpon e Demetrio Carneiro
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rio, corte autônomo de arrecadação frente ao menor crescimento. É um formato que dará papel mais efetivo de instrumento de política econômica à tributação, ao contrário do que acontece hoje. Através do BC o CEN também deveria monitorar o setor financeiro e bancário. A conseção de crédito e operações nos mercado de capitais têm forte caráter pró-cíclico. São importantes tanto na geração do ciclo econômico, como nas eventuais crises financeiras. Taxação de operações, limites prudenciais de reservas contra perdas e outras medidas podem também adquirir caráter anticíclico e podem exercer importante papel na produção da política econômica. Em resumo, podemos e devemos aplicar uma política de maior coordenação entre as diversas políticas macroeconômicas para garantir sua maior eficácia. Note-se que a maioria das propostas envolve mudanças da forma de gerenciamento e não complicadas mudanças na estrutura atual. Também não necessitam de mudanças complexas na legislação vigente. Uma última palavra sobre o Banco Central e o atual sistema de metas de inflação. Há, tanto no âmbito acadêmico, como no político, várias propostas de reformular o atual sistema de metas. Ao sistema de metas se imputam quase todos os males da economia. Algumas propostas concretas desse campo de pensamento, analisadas com cuidado mostram que acabarão gerando, conforme o contexto, resultados com inflação igual ou maior que o sistema atual, que é o criticado. Estas propostas incluem, por exemplo, ampliar o tempo usado para atingir a meta; mudar o objeto da meta do IPCA para um índice menos abrangente; e dar o direito ao BC de “cancelar” a meta, em certas circunstâncias. Nesses casos, dado que o mercado racionalmente precifica um prêmio pela inflação esperada, a adoção dessas mudanças levará o mercado a formar uma expectativa de maior taxa de inflação, exatamente quando o propósito seria fazer o contrário acontecer. Devemos, ou deveríamos, estar cientes que algumas mudanças no sistema de metas, quando são unidirecionais acabam gerando expectativa de mais inflação no futuro, o que acaba elevando o nível do prêmio pedido pelos investidores e aumenta o custo de captação da dívida pública. Também devemos ter cuidado para não criar um ruído exagerado no sistema atual com mudanças radicais e bruscas, que também acabam levando a uma alta do prêmio inflacionário nas taxas de juros. Um BC com modo operacional previsível, isso deveria ser ob-
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jetivo de política econômica, diminui o prêmio de risco do mercado. No conceito da boa economia as sinalizações do BC funcionam como indicadores, recados ao mercado e são acatados. Mudanças bruscas, impostas de forma autoritária, que tratam investidores, de forma ideológica, como “rentistas” e, portanto, inimigos que devem ser combatidos, são parte incorporada do discurso vigente de muitos economistas que se autodenominam keynesianos e que, nessa lógica estreita, pregam tais “reformas”. Propostas deste gênero terão como resultado último a desestruturação do mercado da dívida pública federal. Talvez seja um projeto revolucionário para o controle do aparelho do Estado pelas massas, mas não será uma forma sustentável de gestão pública. A verdade mais básica é que o Estado não só não controla o mercado, um de seus financiadores junto com os órgãos multilaterais e outros governos, como dele depende, no caso. Lidar com política monetária envolve um grau mínimo de compreensão dessa premissa. Muitos economistas embuídos em suas hipóteses pró-estatização parecem não se dar conta dessa verdade mais elementar. Por isso lançar mão de estruturas tipo FGTS, onde o governo controla o Conselho, para financiar o BNDES ou substituir um diretor do BB, para baixar por decreto o spread bancário, são atitudes atrativas para os atuais gestores públicos e seus formuladores. Isso não quer dizer que o sistema atual é “perfeito” e não mereça mudanças. Uma mudança que parece necessária e que não seria do tipo que iria garantir apenas um resultado inflacionário maior, seria reformular a composição do Copom, hoje bastante restrito, fechado, criandose um sistema que inclua outros conselheiros que não sejam apenas do BC. Poderiam ser escalados em rodízio e essa proposta abriria as decisões do BC a ideias e influências diferentes, enriquecendo o debate da fixação da política de juros. Deveriam ser escolhidos dentro de critérios rigorosos de conhecimento e experiência na área econômica e financeira, efetivo saber. Deveriam ser remunerados pela tarefa e passar pelo mesmo processo institucional de aprovação dos atuais diretores do BC. Incorporariam também as regras de obrigação de sigilo e intervalo mínimo de tempo para assumir funções no mercado.
4. Política cambial e industrial Devemos tratar da política cambial e industrial como um conjunto, pois hoje muito do debate sobre a política cambial passa pela afirmação que a tendência de apreciação cambial está levando à
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desindustrialização, no conceito acadêmico do termo, com a economia brasileira se especializando cada vez mais no setor primário de commodities e perdendo espaço para o setor industrial devido à reorientação dos investimentos de um segmento para o outro. Um forte exemplo seria o pré-sal. Isso seria nocivo para a economia como um todo, já que é na indústria que se encontra o setor mais moderno e produtivo, indutor de avanço tecnológico. Devido a isso seria vital que o governo adotasse medidas para desvalorizar o câmbio, como controle/taxação de entrada de recursos, uma política mais agressiva de intervenção do BC e até a constituição de mais um Fundo Soberano, para aquisição de dólares pelo Tesouro Nacional, mediante emissão de títulos de longo prazo. Provavelmente é aqui onde fica mais claro que existe quase que uma determinação de não entender como a situação do Brasil e sua inserção na economia internacional podem ter mudado. A afirmação que só a indústria agrega tecnologia não procede. Pode ter sido verdade no passado, mas hoje, com o avanço da economia de serviços, é um saudosismo um tanto inexplicável afirmar que a indústria tem um lugar especial e privilegiado para a acumulação de conhecimento técnico de ponta. A formação e produção de conhecimento são hoje o grande núcleo dinâmico da economia. São nos ativos intangíveis que deverá estar o foco de investimento e interesse. Claro, isso não elimina a importância do processo industrial, mas ele não é mais o referencial principal. É igualmente importante entender que há um novo lugar da economia brasileira nessa geopolítica mundial do pós-crise, cujo núcleo é a ascensão das economias asiáticas e o relativo declínio das economias do Atlântico Norte. É fato que o relativamente bom comportamento da economia brasileira durante a crise deu-se, em grande parte, devido a nossa relação cada vez mais importante com a Ásia. Basta comparar o Brasil com o México, economia que tem muitas semelhanças com a nossa e uma grande diferença: a quase total dependência dos EUA para suas exportações. A formulação da nossa política cambial e industrial tem que ser feita em relação a essa nova realidade e não um pensamento cujo tempo já passou. Na esfera cambial temos que entender que, na situação atual, onde ainda convivemos com taxa de juros reais altas e onde o Estado ainda tem grande déficit nominal, deve ser visto como estranho argumentar que devemos onerar o contribuinte com o custo de acumular um ativo
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de pouco rendimento, com uma tendência de queda de valor: o dólar americano. Isso está sendo feito pelo BC, com um certo ganho, já que as reservas funcionam como importante seguro contra crises internacionais. Seguro para o país poder implementar políticas anticíclicas em momentos de crise, como foi feito na última. Mas uma política de aquisição agressiva o suficiente para realmente impedir a apreciação do Real frente ao dólar teria que ser de tal tamanho que ficaria muito difícil justificar para o contribuinte o seu custo. Devemos entender, também, que controlar a entrada de capitais é algo igualmente ineficaz, pelo simples fato que, para ter a abrangência necessária, tais controles teriam que afetar e taxar a entrada de investimentos diretos e de portfólio. E isso num momento onde o país precisa pensar em como financiar projetos tipo “pré-sal” ou cumprir compromissos assumidos com Copa do Mundo e Olimpíadas. Tais controles também afetam, de forma desproporcional, o Tesouro Nacional, já que os investidores estrangeiros hoje estão entre os maiores compradores de dívida de longo prazo, ponto que os defensores da ideia de controle de capitais e que também pregam a necessidade de “acabar com as LFTs”, parece não compreender não reconhecendo que há uma contradição no conjunto de suas propostas. Devemos olhar não para a restrição da demanda por reais, algo que tende a crescer, na medida que a economia brasileira cresce em importância, mas o outro lado da equação cambial, o aumento da demanda por dólares e moedas estrangeiras como um todo. Isso sim tenderia a depreciar a taxa de câmbio, mas de forma positiva para a economia. Pode ser feito por várias maneiras, como, por exemplo, corte de tarifas de importação, mas vamos mencionar duas que se conjugam com a questão de uma política industrial. A primeira seria liberar nossos fundos de investimento e pensão para investir fora do país, diversificando suas carteiras. Tal movimento, hoje muito restrito, ajudaria na internacionalização desse setor, algo que devemos procurar como meta de política econômica. Na mesma direção devemos procurar incentivar a internacionalização das empresas brasileiras nos setores que hoje são mais complementares à demanda asiática por nossos produtos. Devemos procurar agregar valor verticalmente nos setores de exportação onde o Brasil detém vantagem comparativa. Isto envolveria agregar valor não somente na formulação do produto, mas na sua comercialização, inclusive. Nesse processo teríamos o envolvimento de setores industriais e de serviços em uma cadeia contínua de agregação de valor. Tony Volpon e Demetrio Carneiro
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É necessário entender a histórica mudança que está levando o deslocamento do eixo econômico mundial para a Ásia. Um tratado de livre comércio com os EUA seria não nocivo, mas irrelevante. Deveríamos sim ter como meta principal de política externa não bolivarianos ou árabes, mas um tratado de livre comércio com as potências emergentes asiáticas, buscando um processo de integração de nossas matrizes produtivas, via comércio e investimento direto mútuo de grandes grupos corporativos nas suas áreas de atuação específica. Há, nesse momento de declínio de consumo dos países do Atlântico Norte, a oportunidade de apresentar o Brasil, e o restante da América Latina, como, no plano global, um lugar de consumo da produção asiática. Mas, para que isto seja possível é necessária uma integração das cadeias produtivas das duas zonas, aumentando a renda e o potencial de consumo da região. Respeitando todo um debate teórico que estabelece a importância de mudanças de comportamento para os países emergentes: de poupadores para consumidores e integração de seus ciclos poupança-investimentoconsumo. Esta é uma decisão geoestratégica que afetará de forma positiva nosso futuro. Importante ressaltar que essa proposta não é necessariamente conflitiva com a busca de novos padrões de consumo/produção, mas deve ser compatibilizada a eles. Para finalizar, o que devemos formular não são políticas que tiveram o seu lugar num passado de falta de recursos, mas sim políticas para um presente e um futuro onde a abundância de dólares, e não sua escassez, será uma situação normal. Em vez de taxar a entrada de capitais estrangeiros, devemos incentivar a saída dos nossos capitais para buscar uma dimensão internacional para os negócios brasileiros. Esta é a hora e a vez de buscarmos um novo patamar. As janelas de oportunidade estão abertas. Compete aos brasileiros e brasileiras uma escolha e será esta escolha que orientará, para o bem ou para o mal, os próximos ano, afetando as futuras gerações. Temos sim alternativas de política econômica e podemos sim transformá-las em propostas concretas e coerentes com todo um conjunto de novos paradigmas que o processo civilizatório terá que assumir para se manter contínuo.
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Uma nova política pública de eletrificação rural em São Paulo
Paulo Ernesto Strazzi e Sinclair Mallet Guy Guerra
O
Estado de São Paulo possui longa experiência em programas de fomento à eletrificação rural, quer na gestão direta através das empresas de distribuição de eletricidade quando estatais, ou de forma indireta com o uso do Fundo Estadual de Eletrificação Rural – Feer, objetivando especialmente amparar as cooperativas de eletrificação rural do estado nas décadas de 60/70 do século anterior. O estado preocupado com o que aconteceria com os excluídos de eletricidade no meio rural paulista quando da privatização das distribuidoras criou a Comissão de Eletrificação Rural do Estado de São Paulo – Ceresp e também o programa Luz da Terra, através do Decreto Estadual no 41.187, de 25/09/1996. Os estudos para essa implantação foram feitos em conjunto com a Secretaria de Energia do Estado de São Paulo, a Escola Politécnica da USP e o BNDES. Em 2000, também o governo federal envidou esforços para criar o programa nacional de eletrificação rural Luz no Campo. Para fazer frente aos custos necessários, o interessado tinha que pagar pela conexão às redes elétricas das empresas. Isso requisitava do poder público ação de fomento junto a população, no sentido de prover o adequado recurso financeiro. Em geral, essa ação pública demandava um programa especifico de eletrificação rural. Sem as empresas de distribuição de eletricidade, perdia-se importante ferramenta para atender essa demanda. Os programas “Luz da Terra” e “Luz no Campo” procuravam focar conceitos de engenharia de baixo custo por meio da utilização de padrões técnicos simplificados o que tornava a ligação elétrica mais acessível ao morador rural de menor poder aquisitivo. Independentemente dos princípios e dos critérios adotados pelos programas de eletrificação rural desenvolvidos por meio de ações públicas, bem como, pelas concessionárias e cooperativas de energia elétrica, o eixo fundamental era basicamente o mesmo para todos: as ligações elétricas oneravam os interessados. A gestão do programa Luz 97
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no Campo no Estado de São Paulo ocorreu de forma simultânea ao desenvolvimento do programa Luz da Terra, ambos, então, geridos pela Ceresp. Este fato acabou sendo praticamente eliminado com a institucionalização da universalização do atendimento, por meio de Lei Federal no 10.438 de 26 de abril de 2002. A lei determinava que toda conexão às redes elétricas das empresas de eletricidade, deveria ser gratuita. A lei 10.762/2003 modificou parcialmente esse conceito, limitando o atendimento gratuito para consumidores com carga instalada de até 50 kW, pertencente ao grupo tarifário B. Isso equivale dizer que aproximadamente 90% das solicitações de acesso ao serviço público de eletricidade brasileiro são atendidos gratuitamente pelas empresas. Todos os custos decorrentes dessas conexões são repassados para as tarifas de eletricidade das empresas, mediante aprovação da Aneel. A eletrificação rural no Brasil tem na Lei no 10.438, de 2002, um divisor de águas. Antes havia a obrigação da participação financeira, quase que na totalidade, do interessado no custo da obra (diferença entre o limite de investimento obrigatório, pela concessionária e o custo total da obra necessária ao atendimento) e havia a relutância, por parte destas, visto a não obrigatoriedade de atendê-lo. A partir da entrada em vigor dessa Lei, ao se introduzir a obrigatoriedade por parte das concessionárias e permissionárias, em atender aos pedidos de ligação sem qualquer espécie ou tipo de ônus para o solicitante, surge o conceito de “universalização do serviço público de energia elétrica”. Segundo o MME, o programa “Luz para Todos” (LpT) foi criado através do Decreto Federal no 4.873, de 11/11/2003, para antecipar a universalização do atendimento pelo serviço público de energia elétrica, por meio do aporte de recurso financeiro a fundo perdido, bem como, de financiamento de longo prazo às concessionárias e cooperativas de eletrificação rural, de forma a mitigar o impacto dos custos decorrentes das obras necessárias na tarifa de todos os consumidores. O citado Decreto regulamentou o disposto nos arts. nos 13 inciso V, e 14, § 12, da lei no 10.438, de 26 de abril de 2002. Atualmente é o único programa de eletrificação rural em andamento em todo o Brasil. Para aderir, a distribuidora tem que assinar um contrato com a Eletrobrás contendo diversos detalhes: custos modulares e totais e o número de consumidores por atender. Estabeleceu, também, que no processo de universalização dos serviços públicos de energia elétrica no meio rural, seriam priorizados os municípios com índice de atendimento aos domicílios inferior a 85%, com base no Censo 2000 – IBGE, 98
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podendo ser subvencionada parcela dos investimentos com recurso da Conta de Desenvolvimento Energético, doravante CDE, e também com recursos subsidiados do estado, criando-se assim, condições legais para alavancar financeiramente a implantação do LpT. O Estado de São Paulo aderiu formalmente ao LpT em 11/2003 quando a então ministra de Minas e Energia e o governador paulista assinaram o Protocolo de Adesão. Após esse ato o estado providenciou todo o amparo legal para permitir o repasse de recursos subsidiados para as empresas e cooperativas de São Paulo. Os recursos estaduais foram definidos em aproximadamente 10% do custo total do programa LpT das empresas. Assim, o LpT no Estado tem, em dezembro de 2008, segundo dados da Secretaria de Saneamento e Energia através da Ceresp, a seguinte configuração, para 33 contratos formalmente firmados com a Eletrobrás: 71.956 ligações, R$ 327,8 milhões, sendo 58% financiados através de recursos da RGR – Reserva Geral de Reversão, 17% da CDE, 10% do estado e o restante 15%, aporte direto das empresas. Até o momento o Estado de São Paulo não assinou os convênios de repasse dos recursos financeiros para as empresas e cooperativas. O LpT no Estado de São Paulo é coordenado pelo CGE-SP, Comitê Gestor da Universalização em São Paulo, sob a coordenação de Fernando Selles Ribeiro. O LpT preserva aos interessados o acesso à eletricidade junto às moradias, incluindo os custos decorrentes do padrão de entrada e também de um “kit” de ligação interna, composto de 4 pontos de luz, 4 tomadas e o quadro de proteção elétrica. A lei da universalização segue o disposto na Resolução Normativa no 456/2000 da Aneel. A regulação atual determina que o solicitante dos serviços públicos de eletricidade tenham o seu atendimento restrito na divisa da propriedade, devendo o interessado instalar o padrão de entrada e também a rede elétrica interna até a moradia. O Luz para Todos define o ponto de consumo como a moradia do cidadão, sendo que lá deve ser instalado o padrão de entrada. Os custos decorrentes desses serviços alcançam, em média, R$ 2.000,00, segundo pesquisa da Eletrobrás e também informações das empresas, da Ceresp e do CGE-SP. Esse valor é significativamente alto para esse público, onde aproximadamente 90% das famílias têm renda familiar bruta de no máximo três salários mínimos. Em 2003, durante o planejamento da implantação do programa em São Paulo, estimou-se um déficit de 60 mil ligações rurais. Esse déficit foi considerado elevado à época, pelo então Secretário de Energia, Recursos Hídricos e Saneamento de São Paulo, em função
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VII. Economia e finanças
de terem sido realizadas, na época, mais de 48 mil ligações por meio dos programas “Luz da Terra” e “Luz no Campo” no estado. Até junho de 2009, segundo o Ministério de Minas e Energia, já foram beneficiadas em todo o país aproximadamente 2 milhões de famílias, ou seja, foram atendidas com energia elétrica aproximadamente 10 milhões de pessoas. É utilizada pelo MME e Eletrobrás a correspondência aproximada de cinco pessoas por família no meio rural. Em São Paulo, são mais de 60 mil famílias atendidas pelo LpT até o momento, superando a expectativa inicial da coordenação do programa Como há uma forte correlação entre o atendimento para ligações elétricas no meio rural e o surgimento de novas demandas, certamente será necessário supor a manutenção do déficit a ser atendido no decorrer dos próximos anos. Isto quer dizer que, se alguém imaginar que construir 60 mil ou 90 mil novas ligações poderá levar São Paulo à universalização do meio rural, pode estar incorrendo em sério engano. A experiência da Ceresp, retratada em trabalhos acadêmicos e artigos, mostra que são vários os fatores que contribuem decisivamente para a existência desse déficit de ligações no meio rural, a despeito dos milhares de ligações feitas. A prática da eletrificação rural aplaina as desigualdades sociais entre o campo e a cidade e a extensão das redes de eletricidade no campo faz surgir novas famílias que demandam por eletricidade, não apenas por falha do gestor em identificá-las previamente ou por simples exclusão dos cadastros. O entendimento vigente de que a regulação atual atenderia plenamente o interesse do cidadão que venha necessitar de energia elétrica, mostra-se ingênuo, simplório e descabido. Durante o LpT, o cidadão goza de alguns direitos e aguarda a ação do governo do Estado de financiar a concessionária para atendê-lo, conforme o compromisso do Estado. O desencontro entre esse compromisso e o não atendimento é expor-se a consequências jurídicas nebulosas – um cidadão tem um direito e uma não ação do Estado lhe retira esse direito – além do desgaste político quase explosivo: como explicar a uma comunidade assentada, por exemplo, que agora ela não pode mais concretizar um direito que foi tornado realidade no assentamento vizinho? O LpT no Estado de São Paulo, encerra as atividades em dezembro de 2010, e um contingente importante e significativo de famílias localizadas no meio rural paulista ficará sem o atendimento ao serviço público de eletricidade. Diversas são as situações em que isso ocorrerá, quer pelo impacto no surgimento de novas demandas, quer 100
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pelo surgimento de um novo modelo de ocupação do solo no entorno das cidades, onde o rural e o urbano se fundem, como no modelo proposto pelo “Projeto Rurbano”1 ou ainda pelo forte desenvolvimento das atividades do agronegócio no estado, o qual, certamente continuará a demandar uma expressiva quantidade de trabalhadores, quer nas atividades rurais clássicas, ou nas atividades de serviços já descritas anteriormente. Trabalho de Strazzi2 se propõe a oferecer caminhos que permitam ao Estado antecipar-se ao fim do LpT e as consequências advindas desse fato, juntando à pesquisa e seus resultados à experiência desse autor sobre o assunto, em especial quando esteve à frente das atividades da Ceresp. Certamente será desejável a existência de um parceiro a altura para desenvolver e implantar essa nova política pública, tarefa que poderá ser ocupado novamente por uma universidade paulista. Interesses do estado estão levando a programas especiais de fomento, permitindo a criação de Agência de Fomento e Desenvolvimento, assunto que esta em implantação no momento. Nessa linha e como conclusão, essa pesquisa de doutorado permite recomendar a reestruturação do Fundo Estadual de Eletrificação Rural (Feer). O novo Feer permitirá ao Estado se antecipar ao governo federal na questão, excluindo a dependência de revisão regulatória legal para fornecer aos moradores rurais excluídos de eletricidade uma oportunidade de igualar-se aos milhares de cidadãos paulistas já atendidos com eletricidade no campo. Cabe ao estado fornecer instrumentos apropriados às empresas e cooperativas de eletrificação rural, no sentido de continuar oferecendo aos moradores rurais interessados em energia elétrica, condições, no mínimo iguais àquelas existentes atualmente. A reestruturação do Fundo Estadual de Eletrificação Rural (Feer) proposta no trabalho vai ao encontro dessa atuação. Executar o que foi assumido como responsabilidade e liberar, a fundo perdido, recursos financeiros para os interessados e para as empresas distribuidoras, se mostrará uma poderosa ferramenta para combater a exclusão social e propiciar condições de alavancar projetos de geração de renda ao campesino. 1 É um projeto temático, denominado “Caracterização do Novo Rural Brasileiro, 1981/95” que conta com financiamento parcial da Fapesp e Pronex-CNPq, que pretende analisar as principais transformações ocorridas no meio rural em 11 unidades da Federação (PI, RN, AL, BA, MG, RJ, SP, PR, SC, RS e DF). 2 STRAZZI, Paulo Ernesto, Engenheiro eletricista, na Cesp desde 1982, trabalhou na Ceresp entre 1998 e 2008, seu coordenador no período de 2000 e 2008. Mestre em Planejamento Energético pela Unicamp e recém-doutor pelo PPGE/IEE/USP, com trabalho sobre políticas públicas de eletrificação rural em São Paulo sob a orientação do Sinclair Mallet Guy Guerra, da mesma instituição. Paulo Ernesto Strazzi e Sinclair Mallet Guy Guerra
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Autores Massimo D’Alema
Presidente da Fondazione Italianieuropei, em Roma. Entre 1998 e 2000, foi presidente do Conselho de Ministros; e, entre 2006 e 2008, ministro do Exterior dos governos da coalizão Oliveira
Raul Jungmann
Deputado federal (PPS-PE), membro da Comissão de Relações Exteriores da Câmara Federal e observador internacional para acompanhar in loco o chamado “caso Honduras”
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Reflexões para avançar o Partido Democrático1
Massimo D’Alema
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ensei em reunir neste livro os escritos e as intervenções mais significativas dos últimos três anos. Um período crucial na vida do nosso país: da vitória eleitoral da centro-esquerda em 2006, passando pela experiência de governo até a derrota do Partido Democrático (PD) e a afirmação do poder de Silvio Berlusconi. Todavia, a crônica da política italiana não é o centro da atenção e do esforço de reflexão dos escritos que se encontram nesse volume. O livro oferece, antes, indicações para uma avaliação em curso da extraordinária mudança do cenário internacional assinalado pela grande crise financeira e, portanto, econômica e social do mundo global, desde o declínio da era neoconservadora até o advento de Barack Obama à Presidência dos Estados Unidos da América. A minha convicção é que se deve partir também deste ponto para definir o horizonte estratégico, os valores constitutivos e as razões do novo partido que fundamos. Esta é a condição para oxigenar o nosso projeto, para falar às novas gerações e construir verdadeiramente um grande partido que vá além das razões contingentes do embate com Berlusconi. E é também a condição para vencer este embate. Está nascendo um mundo novo. Acabou, num despertar brusco, aquele que foi definido como “o sonho dogmático da perfeição do mer-
1 Trata-se do prefácio do livro Il mondo nuovo – riflessioni per Il Partito Democratico (Roma: Fondazione Italianieuropei, 2009).
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cado”. A crise do selvagem capitalismo global ou, como outros preferem chamar, do “mercadismo”, é uma crise política e cultural antes de ser econômica, da qual, estou convencido, emergirá um mundo completamente mudado. Qual será o lugar da Europa e da Itália no novo mundo? Parece que estamos diante de um paradoxo: há uma necessidade forte de política depois de anos nos quais o domínio da economia foi acompanhado pela antipolítica, pelo desprezo em relação às instituições internacionais, consideradas um inútil apêndice burocrático, e pela doutrina do declínio dos Estados nacionais. Volta hoje à cena a ideia kantiana de uma ordem jurídica internacional: uma grande ideia “europeia” que se encontra na base da própria construção da unidade da Europa. Mas a Europa parece titubear diante desse desafio, ao passo que o impulso para a inovação vem do país que foi o promotor do domínio neoliberal e é o epicentro da crise: os Estados Unidos da América. Voltando a pensar nisso hoje, ocorre-nos que já nos anos trinta do século passado, diante da grande crise, a América soube reagir com o New Deal, enquanto na Europa prevaleceram o nacionalismo, os regimes autoritários e a inclinação para a guerra. Hoje os cenários não são assim tão dramáticos, mas os riscos do populismo e de um entrincheiramento conservador em torno dos Estados nacionais estão bem presentes, num cenário europeu dominado mais pelo egoísmo e pelo medo do que pela esperança e pela coragem. Abre-se um grande desafio, decisivo para os democratas e para os reformistas. Qual deve ser a nossa resposta à crise? Como impulsionar um novo projeto? A minha convicção é que uma grande perspectiva de mudança se deva mover em torno de três ideias-força fundamentais: a democracia, a igualdade, a inovação. Democracia, porque a ausência de regras, de controles, de transparência e de legalidade, que a tempestade financeira colocou em dramática evidência, nasce sobretudo da assimetria entre o crescimento de um capitalismo global e a ausência de instituições com capacidade de regular seu desenvolvimento e de equilibrar seu peso e seu poder. Este papel foi assumido no século passado pelos Estados nacionais, que – como escreveu Ralf Dahrendorf – souberam fazer a quadratura do círculo, estabelecendo a compatibilidade entre desenvolvimento capitalista, democracia política e coesão social. Hoje nos encontramos diante de um vazio de democracia. Não será o retorno aos Estados nacionais que irá preencher esse vazio de democracia. Os Estados não exauriram sua função; continuam a ser nós essenciais das redes institucionais. Mas o verdadeiro desafio é o da construção de uma dimensão democrática supranacional. No fundo, esse 106
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tem sido o caminho da Europa, mesmo que hoje a Europa pareça frágil diante da crise, prisioneira de lideranças míopes e conservadoras, estando entregue substancialmente às escolhas de cada país e renunciando a fazer da crise uma ocasião para dar um salto de qualidade no terreno das políticas comuns de desenvolvimento, finanças e coesão social. O segundo tema central é o da igualdade. Igualdade de oportunidades, por certo. Mas também uma necessária ação pública para reequilibrar a distribuição da riqueza. O crescimento selvagem dos últimos anos gerou crescente desigualdade não só entre países ricos e países pobres; não só entre continentes vencedores – como a Ásia – e continentes marginalizados pela globalização econômica – como a África —, mas também dentro dos próprios países mais ricos. Estados Unidos e Itália estão entre os países nos quais o crescimento da desigualdade social foi maior nos últimos 15 anos. A excessiva desigualdade não é somente injusta; ela se torna também um impedimento ao crescimento econômico: concentrando a riqueza em poucas mãos, paralisa-se o crescimento do consumo e mina-se a coesão social. Frequentemente, como no caso da Itália, o crescimento da desigualdade é acompanhado de uma queda na produtividade do trabalho e da competitividade da economia. Mesmo porque, numa sociedade na qual existem pouquíssimas oportunidades de ascensão social e o trabalho não vem sendo valorizado e retribuído de modo adequado, desaparecem os estímulos à concorrência e à promoção dos talentos e da qualidade de cada qual. Em torno de novas políticas de welfare, de novas estratégias de luta contra a pobreza e a exclusão, que sejam capazes de se inspirar igualmente em valores de justiça social e de promoção da qualidade individual, se travará um importante embate para a cultura política de uma renovada força reformista. Por fim, a terceira condição para abrir uma nova fase é a que diz respeito à inovação. Nesses anos, o crescimento foi sustentado pela disponibilidade de uma massa enorme de trabalhadores com baixos salários nas economias emergentes. Nos países ricos, o mundo financeiro gerou o enriquecimento dos grupos dominantes independentemente da capacidade competitiva da economia. Hoje, o desafio decisivo volta a ser o terreno da competitividade e da inovação. Em particular, buscando – como fez Barack Obama nos Estados Unidos – a tecnologia ambiental, as fontes alternativas de energia, reduzindo a dependência do petróleo, a pesquisa biomédica voltada para o combate às doenças e a melhora da vida das pessoas. Em suma, o desenvolvimento se orienta para objetivos de qualidade, com a perspectiva de proteger o ambiente natural devastado pelo crescimento selvagem Massimo D’Alema
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dos últimos anos e de melhorar a vida das pessoas, combatendo a fome e as doenças. Para fazer isso, é necessário dedicar grandes recursos para a inovação, a formação e a cultura. A crise pode e deve ser, portanto, uma ocasião para uma grande mudança. Uma ocasião para reformas corajosas ainda mais necessárias num país como o nosso, há muitos anos bloqueado, incapaz de crescer no nível dos outros países europeus, de se expressar plenamente e de liberar suas potencialidades e suas energias. Ao contrário, para a direita italiana e para Berlusconi, a crise é substancialmente uma ocasião para consolidar o poder. A Itália é, entre as nações mais desenvolvidas, a que menos recursos emprega para responder à situação de emergência econômica e abrir uma nova fase de crescimento, contando com a possibilidade de que a retomada mundial nos leve a reboque. É o país que nada faz para reequilibrar a iníqua distribuição de riqueza entre os diversos estratos sociais. É o país que menos inova e, inclusive, reduz os recursos para a formação e a pesquisa, e no qual, não por acaso, mais acentuadamente se apresentam a queda da economia, o agravamento estrutural das contas públicas, o crescimento do mal-estar social e da pobreza. Ao contrário, reforça-se o poder político. Uma economia enfraquecida reduz a autonomia dos grupos financeiros e industriais, que passam a se apoiar nos poderes públicos. Reforçam-se, em consequência, a influência sobre a sociedade e o controle da informação, tornando assim mais aguda a concentração anômala de poder que caracteriza o caso italiano no quadro das democracias modernas. Assim, enquanto crescem a insegurança, os sentimentos de medo e de fechamento, as tendências contra os imigrantes ou as veleidades protecionistas, uma parte grande dos italianos parece cerrar fileiras em torno a uma liderança protetora. Mesmo que se trate mais de um símbolo de decadência da Itália do que de uma esperança de renascimento. Mas seria um erro considerar a Itália um país “berlusconizado”. A sociedade o é muito menos do que os jornais e os telejornais. E não só porque no auge da sua glorificação a centro-direita italiana alcança talvez quase a metade dos votos válidos, enquanto a outra metade do país fica desconfiada e hostil. Mas também porque a Itália não se resume à quotidiana fiction do chefe de governo ou às tenebrosas ou desastradas “rondas” contra os imigrantes. Há uma vitalidade de parte do mundo da pesquisa, da cultura, do trabalho e da empresa que enfrenta, sem temor e com sucesso, os desafios da globalização. Existe uma sociedade que, em parte, infelizmente, vê a política com 108
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desconfiança, distanciamento e intolerância, e não se sente mais representada. Uma Itália que não se reconhece na direção política atual, mas não vê em campo uma alternativa forte e confiável para governar o país. Aqui certamente pesam os erros da centro-esquerda, mas também a obra irresponsável de autodemolição, a expectativa de improváveis milagres geracionais, a espera messiânica dos novos “jovens” providenciais. Ao contrário, é preciso, de forma mais simples e com mais humildade, mas com orgulho da nossa história, partir mais uma vez das forças que estão em campo. Uma nova classe dirigente também não nascerá sem um partido operativo e com raízes na sociedade, capaz de selecioná-la, formá-la e de colocá-la à prova. A partir desta consciência, deve-se mover o Partido Democrático no seu nada fácil caminho. De resto, não tem sido cômodo o início de uma experiência marcada pela derrota eleitoral e pela penosa busca de um caminho na estreita faixa entre o preponderante populismo berlusconiano e o minoritarismo justicialista a la Antonio Di Pietro e seu partido pessoal [Itália dos Valores]. O que se apresenta incerto neste primeiro ano de vida é o fundamento do novo partido: o conjunto de valores e princípios que o constituem numa identidade compartilhada. E é precisamente essa incerteza que tornou mais difícil a convivência das diferentes almas dentro do PD, o que, por temor de abusos, levou cada qual antes a cristalizar a própria identidade do que a buscar uma síntese capaz de voltar-se para o futuro. Mas o projeto do PD permanece essencial para abrir uma perspectiva nova para a Itália. Este livro quer ser também uma contribuição ao Partido Democrático. Uma contribuição em termos de cultura política, em particular no que se refere à visão do papel da Europa e da Itália no mundo, mas também um convite para uma reflexão mais profunda sobre as características e os limites do bipolarismo italiano; sobre a necessidade de uma visão da evolução democrática do país que seja efetivamente alternativa ao plebiscitarismo e à simplificação personalista do embate político. Uma nova centro-esquerda deve deixar para trás a precariedade e a confusão da União [coalizão de centro-esquerda, reunindo não só a Oliveira como partidos da esquerda radical, nas eleições de 2006], assim como toda pretensão de autossuficiência do Partido Democrático. Uma nova centro-esquerda deve ser capaz de unir progressistas e moderados (como foi escrito), porque a sociedade italiana é mais complexa e as linhas de disputa são mais articuladas e não se reduzem à fratura direita-esquerda. Mas isso não significa que os partidos devam ser a nomenclatura das diversas inclinações existentes na sociedade ou dos interesses fragmentados Massimo D’Alema
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de uma sociedade tão complexa. Certamente, é possível existir um grande partido como o PD que tenha a ambição de unir no seu seio – sem nenhuma pretensão de exclusividade – progressistas e moderados em torno de um corajoso projeto de reforma para a Itália. Deste projeto é parte integrante aquela ideia de uma Itália empenhada na defesa dos direitos humanos nos Bálcãs, mesmo com o ônus das escolhas difíceis; uma Itália comprometida com a ONU na afirmação e proteção da paz entre Israel e Líbano e na proposição de novas esperanças para o Oriente Médio; uma Itália protagonista na batalha de civilização contra a pena de morte, na Assembleia das Nações Unidas. Esta foi e é a Itália da Oliveira [a coalizão Ulivo, da qual surge o PD] e da centro-esquerda, cujos resultados e cujo papel devemos reivindicar talvez com maior consciência. É a Itália que, não só no passado longínquo, mas também nestes anos com Romano Prodi, Carlo Ciampi e Giorgio Napolitano tem sido a portadora da visão ambiciosa de uma Europa unida, federal e democrática, que não se reduza à busca de um equilíbrio e de uma mediação entre os governos. A Europa de que necessitamos hoje, mais do que nunca, diante das agitações políticas e econômicas do mundo global. Espero que destas reflexões nasça um impulso no sentido de que a centro-esquerda retome consciência das suas razões e volte a exercitar plenamente a sua função para o futuro da Itália. Tradução: Alberto Aggio
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stive em Honduras no final de setembro, chefiando uma missão parlamentar da Câmara dos Deputados. Naquela oportunidade, encontrei-me com toda a cúpula política do país – Corte Superior de Justiça, presidente, mesa diretora e líderes da Assembleia Nacional, Comissão Nacional de Direitos Humanos, presidente da República e ex-presidente deposto, além de diplomatas, sociedade civil e jornalistas. Em fins de novembro, voltei à capital hondurenha, Tegucigalpa, como observador internacional do processo eleitoral, o único, entre centenas, do Brasil. Acho que aprendi algo sobre o que ali se passou e me chama atenção a repetição, como um mantra, de erros grosseiros, factuais ou de interpretação, sobre a crise em que foi mergulhado aquele país. Resolvi então selecionar os dez mais comuns e contestá-los, no intuito de desfazer equívocos e informar corretamente.
1. Em Honduras ocorreu um golpe Se por um golpe tomamos algo que se dá contra a Constituição de um país ou a margem dela, certamente não. A deposição do presidente Manuel Zelaya e a posse do presidente Roberto Micheletti se deram de acordo com a Carta hondurenha. Todas as instâncias legais foram observadas e todas as instituições – Corte Suprema, Procuradoria Geral, Advocacia da União e Congresso – se manifestaram como manda o rito constitucional. E em todas elas, Zelaya foi condenado jurídica e politicamente.
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2. Micheletti é um presidente de fato e golpista Presidente constitucional de Honduras, e não de fato ou interino, é Micheletti. Ele chegou à Presidência por comando claro da Constituição, dado que era o sucessor legal e que o vice se afastara para concorrer às eleições. Ele deverá passar o cargo ao seu sucessor no prazo previsto, 27 de janeiro de 2010. Golpista algum torna-se presidente e deixa de sê-lo de acordo com o que manda a Constituição.
3. O presidente Zelaya não teve direito de defesa Sigamos a cronologia dos fatos. Em fevereiro de 2009, Zelaya tornou pública a sua intenção de realizar um plebiscito, o que feria a letra da Constituição. Em abril, a Fiscalia de la República (Procuradoria Geral) lhe manda uma primeira carta alertando-o para a flagrante inconstitucionalidade de tal ato. Zelaya desdenha. Ainda em abril, uma segunda carta pública lhe é enviada pela Fiscalia com o mesmo resultado, pois o presidente, também publicamente, reitera suas intenções. Então, a Fiscalia oficia, em maio, para que se pronuncie o Advogado Geral do Estado, e este o faz reforçando a tese da inconstitucionalidade. Nesse momento, a Fiscalia requer à Justiça de primeira instância, que instaure processo, do qual resulta a condenação de Zelaya, que recorre ao Tribunal de Apelação, que igualmente o condena, com novo recurso à Corte Superior de Justiça e o mesmo resultado dos anteriores. É então que no dia 23 de março o presidente Zelaya publica um decreto convocando uma Constituinte, o que colide frontalmente com um outro artigo da Carta. Entra em cena o Congresso Nacional, que usando de suas prerrogativas, julga a conduta do presidente e por 123 votos a 5, incluso a maioria do seu partido, decide afastar o presidente Zelaya. Duplamente julgado e condenado, tendo tido amplo direito de defesa, ele é afastado, tem os seus direitos políticos cassados e sua prisão decretada pelo presidente da Corte Superior de Justiça, no dia 28 de junho. Aonde, portanto a ausência de contraditório e do amplo direito de defesa?
4. Zelaya é um homem de esquerda e popular Nada, na biografia e trajetória do presidente deposto, autoriza essa constatação. Filho de um rico fazendeiro (envolvido em uma 112
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chacina de sem terras), eleito pelo Partido Liberal, de direita, privatista e antiestatista, Zelaya se elegeu com um programa pró-mercado e de reformas. No poder, cai nas graças de Hugo Chávez, ingressa na Alba, a Alternativa Bolivariana para as Américas, assumindo posturas e projetos populistas e assistencialistas. Por essa “conversão”(?!) tornase um ídolo para uma certa esquerda de pouco tino e senso histórico.
5. Z elaya não voltou ao poder por conta da ditadura golpista Nada mais falso. Em primeiro lugar, todas as instituições hondurenhas estão abertas e funcionando normalmente, o que, convenhamos, é esquisitíssimo em se tratando de um golpe de Estado. Em segundo, contando com o esmagador apoio de toda a comunidade internacional, da OEA e da ONU, dizendo-se popular e com o apoio dos hondurenhos, por que “Mel” não retorna ao poder? Por dois motivos: a totalidade das instituições de Honduras está definitivamente contra ele e a maioria do seu povo também. Tivesse este último a seu favor, manifestações de massa – inexistentes – e uma greve geral, mais o apoio externo, teriam derrubado o atual governo.
6. O resultado das eleições não será aceito devido à ditadura As atuais eleições foram convocadas e datadas antes da atual crise. Todos os partidos puderam apresentar candidatos e debater seus programas nas praças, rádios e TVs. Quatro milhões e meio de hondurenhos estavam aptos a votar livremente e o Tribunal Superior Eleitoral, órgão independente, supervisionou e fiscalizou o pleito. Apenas 0,5% dos mais de 15 mil candidatos inscritos atenderam ao apelo de Zelaya para boicotarem as eleições e o principal partido de esquerda, a UD, esteve na disputa, rachando e minguando a base de apoio do ex-presidente deposto. Como o povo hondurenho acorreu às urnas e o pleito foi limpo, segundo os mais de 300 observadores internacionais, as eleições e seu resultado foram legítimos.
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7. O resultado das eleições não será reconhecido no exterior Será por uns e por outros, a maioria, não. Do lado do reconhecimento estão os EUA, Colômbia, Israel, Peru, Panamá, Canadá, Alemanha e Itália, até o momento. Contra, temos o Brasil, a Argentina, Venezuela, Equador, Uruguai, Chile, Paraguai, Bolívia, Suriname e, certamente, os demais países da comunidade europeia. Porém, com o passar do tempo, como as eleições foram limpas e bom o comparecimento eleitoral, o primeiro grupo poderá paulatinamente crescer e o segundo minguar. Lembrando que em Honduras o voto não é obrigatório e a abstenção é costumeiramente altíssima, atingindo mais de 50%.
8. O golpe em Honduras ameaça a democracia na América do Sul Como espero haver demonstrado, não houve golpe em Honduras. Houve sim, e isso não pode ser esquecido ou tolerado, uma abominável agressão a Zelaya. Quando ele já não era mais presidente, foi retirado de sua casa de madrugada e enviado para fora do país. Os responsáveis por isso têm que ser exemplarmente punidos, na forma da lei, para que tal crime jamais se repita, em Honduras ou em qualquer lugar. Agora, o que ameaça a cláusula democrática no subcontinente é o meio compromisso com a democracia. Se Zelaya foi apeado do poder segundo as regras constitucionais do país, e foi sucedido em linha com as mesmas regras pelo Micheletti, chamar a isso de golpe de Estado é atentar contra a democracia. E isso vale, em especial, para uma certa esquerda, para a qual, sendo o atual governo de direita, ele é inaceitável, como se a esta não fosse permitido chegar ao poder, no que incorre em duplo erro. Em primeiro lugar, porque foi a Constituição que colocou a “direita” na Presidência. Em segundo, é Manoel Zelaya o golpista de fato, ao atentar contra a Carta Constitucional e as instituições hondurenhas. Portanto, é ele quem ameaça a democracia na América do Sul, e não o contrário.
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9. L ula errou ao receber Zelaya na embaixada brasileira Não, ele agiu certo. É tradição humanitária do Brasil receber em nossas embaixadas quem nos procura em situação de risco. O erro foi dar status de “abrigado” a Zelaya, quando o correto, jurídica e diplomaticamente, seria lhe conceder asilo. Ao lhe dar abrigo e não asilo, o ex-presidente pode legalmente usar a embaixada brasileira como palanque político, interferindo na política hondurenha, o que constitui gravíssimo erro e desrespeito à soberania hondurenha. Imagine-se se, ao ser deposto, o presidente Collor se abrigasse numa embaixada de um país qualquer e de lá convocasse uma insurreição contra o governo de Itamar Franco. Como nos sentiríamos?
10. A posição do Brasil foi correta diante da crise Antes de mais nada, a América Central e Honduras, em particular, jamais foram importantes ou área de influência do Brasil, donde resulta em erro o calibre e engajamento da resposta. Em duzentos anos de relações diplomáticas, um único presidente nosso esteve lá, Luis Inácio Lula da Silva. Nossas relações comerciais são irrisórias e a região tem com os EUA 70% da sua pauta comercial. Sendo que Honduras fecha as suas contas nacionais com remessas que lhe são enviadas dos Estados Unidos pelos que para lá emigraram. Ao ver golpe onde houve desrespeito aos direitos humanos e, em seguida, ao defender o retorno de Zelaya ao poder, erramos de novo. Por fim, ao dar a este a condição de abrigado e não de asilado, permitimos o uso da nossa embaixada como palanque. Com essa sequência de equívocos perdemos a condição de mediadores, deixando de ser uma fonte de soluções para nos tornarmos parte do problema. Como as eleições foram limpas e relativamente alto o comparecimento às urnas e o Brasil teime em não reconhecê-las, estaremos errando de novo e em definitivo.
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Autores Almira Rodrigues
Doutora em Sociologia pela UnB, feminista, analista em formação pelo Instituto de Psicanálise de Brasília (SPB). Autora de Afetos e Palavras (poesias)
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Reflexões sobre prostituição na contemporaneidade
Almira Rodrigues
I
nicialmente é importante explicitar que este texto constitui um diálogo e uma articulação de perspectivas de cunho sociológico, psicanalítico e político. Nesse sentido, busco uma abordagem plural e aberta sobre relações afetivo-sexuais, processos psíquicos e projeto político acerca do fenômeno da prostituição. Os significados que perpassam tais acontecimentos são múltiplos e o meu objetivo é dar uma contribuição ao debate. Esta consideração torna-se mais expressiva se constatarmos que os significados não estão prontos, mas vão sendo construídos, solo e coletivamente, isto é, estão sempre em formação e transformação. Por fim, ressalto que se alguns significados ganham corpo e compartilhamento social, outros são próprios a cada sujeito com seu especial talento para criar seus significados e pô-los em circulação.1
1. Aproximações iniciais Podemos começar nossa reflexão perguntando-nos por que o tema da prostituição é cercado de tantas suscetibilidades. Sabemos que esta discussão está marcada por visões moralistas e religiosas, 1 Utilizo deliberadamente várias posições de fala: a primeira pessoa do singular para referir-me a compreensões muito pessoais; a primeira pessoa do plural, quando entendo poder compartilhar as ideias com leitores, e, finalmente, utilizo o pronome indefinido para contextos e movimentos mais gerais.
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que condenam a prática e particularmente as/os profissionais do sexo. Esta postura impede um aprofundamento do tema e confrontase com uma perspectiva laica que vem se afirmando ao longo do processo civilizatório. Apesar disso, o embate entre as perspectivas laica e religiosa continua na ordem do dia e transparece nas polêmicas sobre o aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a adoção de crianças por casais homossexuais, as cirurgias de mudança de sexo, as técnicas de reprodução humana assistida, as pesquisas com células-tronco, a eutanásia passiva e ativa. O fenômeno que estamos analisando, a compra e venda de serviços sexuais na contemporaneidade, envolve adultos, a partir de suas próprias decisões pessoais, implicando a assunção de responsabilidades, com seus ganhos e perdas. A prostituição não é legalizada nem criminalizada na legislação brasileira; considerada crime é a prática de exploração da prostituição por terceiros, intermediários e estabelecimentos comerciais (lenocínio). É necessário distinguir a comercialização de serviços sexuais, envolvendo adultos como compradores e vendedores, de dois outros fenômenos sociais, ainda que possam estar entrelaçados em situações específicas. São eles: a exploração/abuso sexual de crianças e adolescentes e o tráfico de mulheres/trabalho sexual escravo. Estes fenômenos estão cada vez mais visibilizados nas sociedades e são radicalmente diferentes da prostituição, por envolverem crianças e adolescentes – seres em formação e desenvolvimento biológico, psíquico e social –, e mulheres forçadas a trabalhar, sob ameaça e cárcere privado. As partes envolvidas em ambos os casos (crianças/adolescentes e trabalhadoras forçadas) são integralmente vulneráveis e se inserem em relações de poder constitutivamente assimétricas, de dominação e exploração, sendo ambos considerados crimes no ordenamento jurídico brasileiro. Feita esta caracterização preliminar, destacamos que a comercialização dos serviços sexuais apresenta importantes marcas de sexo/ gênero. Historicamente, as mulheres oferecem esses serviços e os homens os compram. Embora esta seja a equação social típica é importante considerar que mulheres também compram serviços sexuais (ainda que seja um fenômeno bem menos expressivo) e homens também vendem serviços sexuais, basicamente para outros homens, fenômeno em franca expansão nas sociedades ocidentais. Constata-se, concomitantemente, que a homossexualidade masculina, por muito tempo restrita a contextos de prostituição, tem adentrado de forma significativa o contexto das relações amorosas e das relações eróticas não comercializadas nas últimas décadas. 120
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Na cultura patriarcal as representações e práticas sociais são fortemente marcadas pelo gênero e no âmbito da sexualidade as mulheres são socializadas para “conter” suas pulsões sexuais e para “liberá-las” quando conectadas a uma “história de amor”. Nessa medida, essa cultura poderia contribuir para explicar a pouca expressão de mulheres como clientes de serviços sexuais e a “transgressão” das mulheres enquanto profissionais do sexo. Os homens, por sua vez, são estimulados a vivenciar sua virilidade, no imaginário social fortemente associada ao “escoamento” de suas pulsões sexuais que podem exercer seja na posição de clientes seja na de prestadores de serviços sexuais. Outra dimensão a considerar diz respeito à condição de classe e hierarquia dos serviços prestados. Reproduzindo a lógica de mercado, existem serviços e clientes de tipo A, B, C, D e E. Os espaços de comercialização do sexo expressam estas possibilidades: residências, hotéis, motéis, boates, bares, ruas, rodovias. Em tese, quanto maior o poder econômico de cada parte (profissional do sexo e cliente), maior a autonomia e a capacidade de negociação de decisões e de práticas sexuais. Embora certa delimitação do fenômeno seja fundamental para se avançar nas reflexões é importante pensar em outros significados do termo prostituição, para além de um trabalho e profissão. No imaginário e nas representações sociais, a nomeação de putas/ prostitutas é utilizada para mulheres que vivem sua sexualidade de forma livre, com múltiplos parceiros e/ou que dissociam amor e sexo. Em última instância, a nomeação tem a ver com o exercício da sexualidade das mulheres, diferentemente de um padrão social esperado e cultivado para elas, qual seja, o padrão conjugal e monogâmico. O exercício da sexualidade separado de uma história de amor é considerado majoritariamente como um território masculino, o que significa o controle social da sexualidade das mulheres, inclusive ou sobretudo, para garantir a segurança da linhagem paterna. Estes sentidos, embora passíveis de algumas transformações e podendo ser relativizados, parecem ser ainda predominantes na contemporaneidade.
2. R elação sexual comercializada como um tipo de relação afetivo-sexual Considerando um sentido estreito de sexualidade, enquanto interação e prática sexual, e um sentido amplo de afetividade, envol-
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vendo toda e qualquer emoção e sentimento, as relações sexuais comercializadas constituem uma das três formas básicas de relações afetivo-sexuais. São elas: a) relações afetivo-sexuais de reciprocidade e de iguais posições, onde os sujeitos se escolhem mutuamente como objetos amorosos e eróticos para vivenciar um projeto amoroso ou um encontro erótico sem continuidade e sem aprofundamento; b) relações afetivo-sexuais comercializadas, pressupondo no mínimo duas posições, compradores e vendedores de serviços sexuais, além da possibilidade de intermediários; e c) relações afetivo-sexuais de força (estupro e atentado violento ao pudor) envolvendo agressores e vítimas, estas majoritariamente mulheres. 2 Com base em uma visão ética, de respeito à autonomia e direito de escolha dos sujeitos, as relações de força constituem uma violação radical dos direitos humanos e, especificamente, dos direitos sexuais. Em termos psicanalíticos, os violadores/agressores são perversos à medida que coisificam o outro, e, pela força, o submete à sua satisfação e poder. Apesar de esta prática ser criminalizada por legislação específica no Código Penal brasileiro, são reduzidos os casos em que os agressores são efetivamente punidos e em que as vítimas têm assistência médica e psicológica adequadas pelo sistema público de saúde. Por outro lado, a reciprocidade nas relações de livre escolha não garante relações de respeito e de integridade das pessoas envolvidas. Assim é que existe legislação de proteção às relações de namoro, coabitação e casamento, mediante o combate à violência doméstica e familiar.3 Na sociedade brasileira, e em larga escala mundial, é comum a ocorrência de maus tratos, espancamentos e ameaças às parceiras, praticados pelos seus parceiros, sendo recorrente o assassinato de mulheres por (ex)namorados, (ex)companheiros e (ex)maridos por elas decidirem romper a relação que iniciaram de comum acordo em tempos passados. Considerando as três modalidades, as relações afetivo-sexuais comercializadas estão a descoberto, à exceção do dispositivo no Código Penal criminalizando a exploração e a manutenção de comércio se2
Desenvolvi esta classificação na minha Dissertação de Mestrado em Sociologia intitulada Relações amorosas: uma incursão sociológica no processo amoroso (1992) e na minha Tese de Doutorado, também em Sociologia, intitulada Cidadania nas relações afetivo-sexuais no Brasil contemporâneo: uma questão de políticas públicas (1998). 3 A Lei 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha, foi aprovada em 2006, depois de mais de trinta anos de denúncias da violência contra as mulheres e da luta dos movimentos feministas e de mulheres por políticas públicas de prevenção e combate à violência doméstica e familiar na sociedade brasileira.
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xual por terceiros. No entanto, os intermediários e os estabelecimentos onde se pratica a comercialização de serviços sexuais funcionam amplamente, fazendo uso de estratégias clandestinas, o que acaba favorecendo o funcionamento de negócios escusos e as práticas de corrupção ativa e passiva. A partir de uma perspectiva psicanalítica, o que podemos pensar sobre as relações afetivo-sexuais, comercializadas ou não, enquanto relações em que vigoram “escolhas e acordos”, independentemente de sua natureza e qualidade? No que se refere às relações recíprocas e de iguais posições – relações amorosas e eróticas – podemos constatar que embora apontem para uma simetria de posições, ambos são sujeitos e objetos amorosos e eróticos, trata-se de uma simetria formal. Os sujeitos envolvidos não dispõem de iguais recursos psíquicos, intelectuais, financeiros e nem sempre ou quase nunca negociam direitos, interesses e necessidades em igualdade de condições. Assim, tais relações podem configurar-se como relações de dominação, com comprometimento do diálogo e com predomínio de uma parte sobre a outra, seja recorrentemente ou alternadamente. Quanto à escolha do objeto amoroso e erótico, a psicanálise nos diz que esta não é uma escolha racional, desconstruindo a concepção do “eu” como unificado, estável e livre de conflitos; mas sim que é uma escolha permeada de fixações, traumas, recalques, identificações. Não só as escolhas amorosas e eróticas seguem este modelo, mas as decisões e escolhas existenciais de uma forma geral. Sigmund Freud enfrentou fortes resistências pela construção da teoria do inconsciente que explica que a maior parte da nossa vida psíquica transcorre para além de nossa consciência e controle. Elaborou a ideia de que o funcionamento psíquico ocorre sob os signos do princípio do prazer e do princípio da realidade e que cada um se defronta, desde o nascimento, com arranjos singulares de suas pulsões de vida e pulsões de morte. Freud construiu uma teoria da sexualidade como expressão complexa e conflitiva de um psiquismo em desenvolvimento. Afirma que meninos e meninas têm desejos e fantasias sexuais desde o nascimento. No texto Sobre una degradación general de la vida erótica (1912) que integra as Aportaciones a la Psicologia de la Vida Erótica (1910-1912) Freud fala de uma impotência psíquica para o amor. Afirma que o comportamento amoroso normal pressupõe a união da corrente afetiva e da corrente sensual, ressaltando, no entanto, que são poucas as pessoas que conseguem uni-las. Nos homens, a corren-
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te sensual procura apenas objetos que não rememorem as imagens incestuosas proibidas – como defesa, eles se utilizam da depreciação do objeto sexual e de uma supervalorização do objeto incestuoso e seus representantes. Já as mulheres, devido a uma longa contenção da sexualidade e de seu anseio de sensualidade em fantasia, ficam incapazes de desfazer a conexão entre a atividade sensual e a proibição, sendo a frigidez a expressão dessa impotência psíquica. Passado um século dessas considerações, que mudanças podemos constatar no campo da expressão amorosa e erótica dos sujeitos, mulheres e homens? Tudo indica que uma afirmação da diversidade sexual, a autonomização da sexualidade frente a outras dimensões da existência, além de uma maior publicização e politização de expressões amorosas e eróticas. Verificam-se, também, movimentos de expansão das fantasias sexuais e mesmo de sua atuação. Parceiros exploram juntos suas sexualidades, atentando mais para a satisfação de ambos, e a sensualidade das mulheres é objeto de intensa exploração na sociedade. A contemporaneidade favorece a expansão das fantasias sexuais, mediante a rede mundial de computadores, o comércio de produtos em sex shoppings, e a cobertura da mídia que estimulam a constituição de sujeitos de desejo próprio e, paradoxalmente, formatam sujeitos de desejo alheio. Quanto às relações afetivo-sexuais comercializadas serão analisadas em tópico específico, a seguir.
3. C omercialização de serviços sexuais – transação profissionalizada e especializada na realização de desejos, necessidades e fantasias sexuais? A comercialização de serviços sexuais abre um campo para a rea lização de fantasias e para a satisfação das necessidades e desejos sexuais do cliente, por parte das/dos profissionais do sexo: a fantasia é a de que o pagamento por tais serviços assegura a satisfação sexual total. A satisfação em pauta, exclusiva ou prioritária, é a do cliente. No entanto, uma aproximação das relações comercializadas com as relações sexuais não comercializadas pode ser pensada. As fantasias de plena gratificação sexual também circulam nas relações amorosas e eróticas, sendo que nestas a moeda de troca dos sujeitos amorosos e eróticos é mais equivalente estando em questão a satisfação de ambos. No entanto, é fundamental destacar que ambas as modalidades podem ser vivenciadas como espaços privilegiados de poder – enquanto produção do prazer e do gozo –, de preenchimento
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da falta constitutiva do existir e uma forma eficaz de tamponar temporariamente a angústia. Podemos nos perguntar que outros processos psíquicos podem se atualizar no contexto específico das relações afetivo-sexuais comercializadas, relações socialmente discriminadas e marginalizadas. Embora seja uma prática social comum, a prostituição tende a ser negada. Sua existência e diversidade são invisibilizadas como atestam a inexistência de regulamentação da prática. Quando reconhecida, constata-se uma cisão mediante a depreciação das/dos profissionais do sexo e a proteção dos clientes, via anonimato. Não se fala de quem faz uso de serviços sexuais, apenas de quem os vende. Quem faz uso são clientes, uma nomeação genérica que se adequa a quem compra quaisquer bens e serviços. Ou seja, a depreciação serve para quem vende serviços sexuais, mas não para quem os compra. Por fim, as representações sociais que depreciam e desqualificam as/os profissionais do sexo podem ser lidas como expressão de mecanismos de projeção. Os sujeitos projetam para as/os profissionais do sexo o que sentem como tendo de sujo, podre e destrutivo, liberandose de se defrontarem com determinados aspectos de si próprios. Nesse sentido, as/os profissionais do sexo constituem um campo não apenas para as necessidades e fantasias sexuais do outro, mas também um “saco de pancada” para a sociedade e, em especial, para os sujeitos com rígidos padrões morais, religiosos e ideológicos, que propõem a exclusão e o aniquilamento de “partes” que entendem corrompidas, perturbadas e perturbadoras do contexto social. Assim, quanto mais rígidos os sujeitos, mais precisarão fazer uso de mecanismos de defesa de feição esquizo-paranóide: negação, cisão, projeção (Klein, 1936, 1946).4 E, traçando interconexões, podemos pensar que quanto mais rígida uma sociedade, mais seus indivíduos farão uso desses mecanismos para se protegerem e ocultarem seus conflitos e desconfortos. Por outro lado, quanto mais as/os profissionais do sexo introjetarem as representações dominantes acerca de sua condição profissional, de escória social expressa no xingamento de maior gravidade “filho da puta”, mais ficam destruídas internamente, vivenciando profundos conflitos e sofrimentos psíquicos. 4
Melanie Klein formula a ideia desses mecanismos como recursos primitivos do desenvolvimento psíquico. A elaboração da posição esquizo-paranóide possibilita a entrada na posição depressiva, em que se coloca a integração dos objetos bom e mau, a perda, a culpa e a reparação. Durante a vida, os sujeitos vivenciam flutuações entre as posições esquizo-paranóide e depressiva.
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No que tange às motivações para a venda de serviços sexuais, a dimensão econômica é concreta tanto para quem sustenta neces sidades básicas e vitais, quanto para quem sustenta padrões de vida elevados. Esta diferenciação se mantém historicamente e tende a ser forte elemento de julgamento social das/dos profissionais do sexo: socialmente é menos reprovada a prestação de serviços sexuais como forma de garantia da sobrevivência básica, do que como forma de acesso a um alto padrão de vida. Isso alude à hipocrisia e ao absolutismo à medida que os sujeitos se sentem no direito de julgar em que condições “autorizam” os acontecimentos na vida dos outros. Seguindo a premissa de que nossas escolhas não são plenamente racionais, podemos levantar a questão: e o que tem a mais, ou junto com as motivações financeiras na “escolha” de vender serviços sexuais? Entendo não ser possível avançar nesse rumo, pois não creio em um psiquismo específico das/dos profissionais do sexo. Suas histórias são singulares e individuais: abandono, frustrações, violências, prazeres, idealizações e tudo o mais que constitui a vida de seres humanos. E quanto às motivações para a compra de serviços sexuais? Pode-se pensar que estes sujeitos (que têm permissão interna para a compra desses serviços) não têm outras formas de vivenciar relações sexuais além destas ou que têm satisfação exatamente em relações sexuais comercializadas. Para além dessas evidências, outros significados também têm que ser buscados nas histórias singulares de cada sujeito, que tem nessa forma uma possibilidade de gratificação assegurada.
4. P restação de serviços sexuais como campo profissional e de construção de sujeitos políticos A comercialização de serviços sexuais apresenta diferentes formas de institucionalização conforme os países. Existem países em que a prostituição é considerada crime, a exemplo dos Estados Unidos da América; outros que legalizaram a prática, como Suécia, Holanda, Alemanha, Dinamarca e Noruega. Em muitos outros países a legislação não legaliza nem criminaliza a prostituição, a exemplo do Brasil e da Espanha, abrindo flancos para abusos de toda ordem praticados contra as/os profissionais do sexo, por parte de clientes, de intermediários e de policiais (violência física, psíquica, sexual e extorsão).
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É interessante constatar que os países nórdicos são os que mais avançaram na discussão e legalização da prostituição. Na Suécia, desde 1982 a prostituição é considerada uma atividade comercial, sendo que em 1999 foi aprovada uma legislação proibindo a compra de serviços sexuais (mas não a venda) como forma de reduzir a comercialização. Na Holanda, desde 2000 a prostituição é considerada um trabalho com direito a seguridade social; os bordéis são legalizados e seus proprietários pagam impostos e o seguro social das prostitutas. Na Alemanha, a prostituição é legalizada desde 2002 e as profissionais têm direitos trabalhistas. Na Dinamarca as prostitutas pagam impostos, mas não têm direito a assistência médica nem a seguro desemprego. Na Noruega, desde janeiro de 2009, vem sendo aplicada uma lei como a sueca.5 No Brasil, existe uma proposição legislativa que tramita na Câmara dos Deputados visando a legalização e regulamentação da atividade de “Profissional do Sexo”: prevê o pagamento “pela prestação de serviços de natureza sexual”; e propõe a descriminalização da intermediação e da manutenção de estabelecimentos de exploração do sexo.6 O projeto conta com o apoio da Rede Brasileira de Prostitutas, criada no I Encontro Nacional de Prostitutas, em 1987, no Rio de Janeiro.7 A Rede, na Carta de Princípios divulgada em seu IV Encontro, realizado em fins de 2008 no Rio de Janeiro, defende a prostituição como profissão, desde que exercida por maiores de 18 anos; repudia a criação e existência de zonas de confinamento, o controle sanitário, a vitimização, a exploração, a discriminação e o preconceito, e defende o trabalho sexual como um direito sexual. Desde 1989, a Rede realiza parcerias com o Programa Nacional de DST/Aids, do Ministério da Saúde, que reconhece o seu importante papel na política pública de prevenção e combate ao vírus e à doença. Mediante a atuação da Rede, a atividade de profissional do sexo passou a ser considerada na Classificação Brasileira de Ocupações de 2002, do Ministério do Trabalho e Emprego.
5 Ver entre outras notícias constantes de sites especializados a matéria “Prostitutas legalizadas, clientes clandestinos” (http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/ elpais/2009/03/02/ult581u3071.jhtm). 6 Este projeto foi apresentado pelo Deputado Fernando Gabeira, em 2003. 7 A Rede Brasileira de Prostitutas (www.redeprostitutas.org.br) congrega atualmente quase trinta organizações no país, integra a Red de Trabajadoras Sexuales de Latinoamerica y el Caribe (www.redtraxex.org.br) e se articula com o movimento europeu e norte-americano. Uma de suas importantes referências é o jornal Beijo da Rua (www.beijodarua.com.br). Almira Rodrigues
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A missão da Rede, enquanto sujeito político, é a de “Promover a articulação política do movimento organizado de prostitutas e o fortalecimento da identidade profissional da categoria, visando o pleno exercício da cidadania, a redução do estigma e da discriminação e a melhoria da qualidade de vida na sociedade” (conforme consta da página inicial do site www.redeprostitutas.org.br). Em tese, as/os profissionais que politizam seu cotidiano têm melhores condições e recursos para lidar com seus conflitos, para construir suas identidades e se inserir de forma digna e produtiva na sociedade. Fica uma importante questão a ser colocada: as relações de compra e venda de serviços sexuais são constitutivamente relações as simétricas de poder, relações perversas, de coisificação e instrumentalização, ou podem assumir feições simétricas em que as partes se respeitem mutuamente e realizem acordos, com base em interesses e oportunidades? Penso que a comercialização de serviços sexuais não exclui a possibilidade de construção de relações mais igualitárias e de respeito. Mas esta é uma construção a dois, além de abranger o reconhecimento e a proteção de um coletivo muito maior, Estado e sociedade. Esta é a luta das entidades de profissionais do sexo em todo o mundo, e no Brasil, o movimento tem acumulado ganhos nas últimas duas décadas embora ainda tenha muitos desafios pela frente.
5. Considerações finais A partir das reflexões realizadas, podemos constatar a especificidade das relações afetivo-sexuais comercializadas bem como do projeto político das organizações de profissionais do sexo. Ou seja, em uma perspectiva sociológica e política essas relações e esse projeto se afirmam, buscando, respectivamente, um reconhecimento social e uma condição de cidadania. Como contraponto, realizamos uma desconstrução da ideia de psiquismos específicos de profissionais do sexo e de compradores de serviços sexuais. Embora descartemos essa ideia privilegiando a história singular de cada um, podemos evidenciar alguns processos psíquicos vivenciados pelos sujeitos frente ao fenômeno da prostituição. Neste texto evidenciamos que as relações de força e de violência sexual são as únicas constitutivamente perversas, por sua unilateralidade e impossibilidade de acordo e de troca em qualquer sentido. Já as relações sexuais comercializadas e as não comercializadas podem ou não assumir um caráter perverso, dependendo de como os sujeitos envolvidos se relacionam.
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Outros paralelos podem ser traçados entre as relações sexuais comercializadas e as não comercializadas. A comercialização de serviços sexuais favorece experiências parciais e cindidas, para ambas as partes envolvidas (profissionais do sexo e clientes), tanto no sentido da cisão corpo e psiquismo, quanto da cisão sexualidade e afetividade. Esta tendência parece ser bem expressiva por sustentar-se na mercantilização, sendo que ambas as partes têm suas vivências existenciais para além da compra e venda de serviços sexuais. Já as relações não comercializadas sob a feição de encontros eróticos sem continuidade e sem aprofundamento, se por um lado também apontam para essa tendência de parcialidade e cisão, por outro, apontam igualmente para uma equivalência entre os sujeitos que compartilham seus desejos e prazeres instantâneos. É interessante observar que se ambas as situações – relações sexuais comercializadas e encontros eróticos sem continuidade e sem aprofundamento – podem favorecer vivências parciais e cindidas, elas não impedem, entretanto, a possibilidade de desenvolvimento de um vínculo amoroso entre as partes envolvidas, ou uma vivência mais integrada entre corpo e psiquismo e entre afetividade e sexualidade, por uma ou ambas as partes. Porque, o que conta, fundamentalmente, é como cada sujeito, seja na posição de profissional do sexo, de cliente e de sujeito erótico, costura suas vivências, memórias, desejos, fantasias, projetos. O oposto de tais situações, em tese, são as relações amorosas, em que os sujeitos buscam a continuidade e o aprofundamento do vínculo, mediante a construção de projetos de futuro. Estas relações tendem a acolher outros mecanismos psíquicos, como o fusionamento e o medo da perda do objeto amoroso. Podemos nos perguntar, no entanto, o que significa a inexistência de uma lei social que regulamente a compra e venda de serviços sexuais. Este fato alude a um território sem lei, onde vigora a lei do mais forte, algo muito primitivo, selvagem. Um território onde as pulsões libidinais e agressivas têm livre curso, sem limites e sem cuidados e em que não há um terceiro a quem recorrer quando do descumprimento de acordos e da efetivação de abusos de todas as ordens. O terceiro neste caso, simbolizado pelo Estado e pela Justiça, também cumpre uma função especial, de mediação e de proteção às partes envolvidas; e para que cumpra este papel precisa estar investido de um poder efetivamente público e não privado. Essa linha de reflexão merece investigações e possibilita aprofundar as equivalências e os trânsitos entre as condições sociais, psíquicas e políticas.
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Outra questão substantiva com a qual concluo e paralelamente deixo em aberto nossas reflexões é a seguinte: podemos traçar algum paralelo entre a ação política do movimento de profissionais do sexo e o trabalho psicanalítico, na medida em que ambos propõem a superação de processos de vitimização e a assunção de escolhas e de responsabilidades, com ganhos e perdas? Creio que sim, que podemos traçar estes paralelos. Em uma perspectiva ética, ação política e trabalho psicanalítico possibilitam o desvelamento e a ruptura com processos de heteronomia e de submissão; e a construção de sujeitos autônomos com liberdade de escolha (a possível em contextos de realidade), a partir do reconhecimento de desejos e projetos, próprios e alheios. Mas, estes cenários são apenas possibilidades e não garantias. A distinção, no entanto, substantiva e decisiva, fica por conta de que apenas a psicanálise pode promover o desvelamento de ganhos e perdas inconscientes em nossas práticas cotidianas e em nossas escolhas existenciais.
Referências FREUD, Sigmund. Sobre una degradación general de la vida erótica (1912). Aportaciones a la Psicología de la Vida Erótica (1910-1912). Obras Completas, Vol. I. Editorial Biblioteca Nueva: Madrid. 1948. KLEIN, Melanie. Contribuição à psicogênese dos estados maníacodepressivos (1934). In Melanie Klein: psicologia. Orgs. Fábio A. Herrmann e Amazonas Alves Lima. São Paulo: Ática, 1982. (Grandes Cientistas Sociais; 32) ______. Notas sobre alguns mecanismos esquizóides. ( 1946). In Melanie Klein: psicologia. Orgs. Fábio A. Herrmann e Amazonas Alves Lima. São Paulo: Ática, 1982. (Grandes Cientistas Sociais; 32) RODRIGUES, Almira. Relações amorosas: uma incursão sociológica no processo amoroso. 1992. 144p. Dissertação (Mestrado em Sociologia). Instituto de Ciências Humanas, Universidade de Brasília – UnB, DF. ______. Cidadania nas relações afetivo-sexuais no Brasil contemporâneo: uma questão de políticas públicas. 1998. 272p. Tese (Doutorado em Sociologia). Instituto de Ciências Humanas, Universidade de Brasília – UnB, DF.
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X. Vida Cultural
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Autores Luiz Eduardo Soares
Antropólogo, cientista político, especialista em questões de Segurança Pública e autor de livros que fizeram sucesso, como Cabeça de Porco e Meu Casaco de General
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Moby Dick: o antiFausto de Aderbal
Luiz Eduardo Soares
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e me perguntarem o que é teatro político – se é que esta categoria faz sentido, uma vez que supõe um improvável teatro apolítico –, eu diria, sem hesitar: aquele que encena Fausto, em qualquer uma de suas ilimitadas encarnações. Porque este é o dilema político, ou melhor, o dilema, por excelência, da política pósmuro: o pacto com o diabo, entendido como a assimilação de condições e a mimetização de práticas cuja negação fundamentou a identidade do (anti)herói. Seu destino, no poder, é converter-se no outro que lhe dera sentido por antagonismo. Nas palavras sábias e céticas de Max Weber: a ética da convicção sucumbe ante os imperativos da ética de responsabilidade. Para governar, impõe-se renunciar aos valores e render-se aos limites ditados pela realidade, que se confunde com a lógica do capitalismo globalizado. Antes, visões de mundo e valores se chocavam e a luta pelo poder era imantada pela expectativa redentora de transformações estruturais. Assumir o governo correspondia à conquista do poder (quase demiúrgico) de desfigurar o Estado herdado e conformar o real à imagem e semelhança das ideologias. Hoje, a dinâmica do mercado é refratária aos espasmos do voluntarismo, às intervenções matriciais da política. No máximo, autoriza correções de rota e alguma regulamentação perfunctória, sob pena de fazer 133
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desabar sobre a sociedade uma tempestade devastadora, que a condenaria a anos de prostração, sofrimento, desemprego, desinvestimento, pobreza, colapso da ordem institucional e mais desigualdades. Eis a equação que não fecha: aplicar-se a cumprir convicções, sacrificando a governabilidade e fechando as portas para as mudanças desejadas, ou adequar-se ao realismo, postergar fantasias, negociar com Mefistófeles, aliar-se aos inimigos e resignar-se a gerenciar a máquina sem tirá-la dos trilhos, em nome da governabilidade? Na segunda hipótese, manter-se-ia o poder, entretanto esvaziado de substância e sentido. Na primeira, a fidelidade a princípios o desconstituiria. Que fazer? De novo, como sempre, a pergunta mais dura e decisiva? Estão aí, no meio de nós, no meio da rua: Fausto e suas trevas. O dilema hamletiano resolve-se na direção do que há de mais sombrio. Por isso, Ahab é o personagem contemporâneo mais extravagante, surpreendente, provocativo, intempestivo, inadaptável. Ele é Fausto às avessas e reina no teatro de Aderbal, representando a antítese do homem de poder contemporâneo. Teatro antipolítico, dentes nos nervos de nosso tempo: negando a política tal como hoje constituída, em seu círculo aprisionante, Ahab protagoniza a politização radical dessa antipolítica que dramatiza. Personagem fascinante dos absolutos inconciliáveis, faz da caça à baleia uma luta interna, externa, mitológica, teológica, arquetípica. Comandante de navegação infinita, cujo ponto de inflexão (a morte, enfim) não passa de artifício para um confronto que transcende sua própria vida. O combate é pessoal, mas também universal. A barca dos homens se dirige ao abismo insondável da violência sem cautelas, sem prudência, sem apelo às virtudes burguesas que se confundiriam com o espírito esclarecido da humanidade. Ahab afunda com seu inimigo. Não se apresenta como modelo. Resiste aos argumentos da razão, às sugestões do bom senso, aos conselhos dos amigos, às seduções da rotina apaziguada. Renuncia à vida na terra. Persegue os sinais de Moby Dick através dos oceanos. Enfrenta o monstro para destruir, com a baleia, as tenazes de seu próprio ódio que o atormentariam até o fim do mundo. Volto, então, à pergunta: o que é teatro político, hoje? Moby Dick, reiventado por Aderbal Freire Filho e encenado por um grupo de atores notáveis (Orã Figueiredo, Isio Ghelman, André Mattos), liderados por Chico Diaz em performance excepcional. Cenário, iluminação, figurinos, músicas: trabalhos preciosos, cada um à sua maneira.
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Moby Dick: o antiFausto de Aderbal
Ahab não nos ensina a resistir a Fausto. Apenas descreve a rota de um alucinado inconformismo. Mas a derrota de Ahab (ou o preço letal de seu triunfo) não redime Fausto, isto é, não salva a opção mefistofélica. Nada disso. Moby Dick de Aderbal desvela com a poesia de sua escrita dramatúrgica o caráter agonístico e insuperável das aporias políticas de nosso tempo, para homens e mulheres que têm o privilégio de testemunhar sua montagem do clássico de Melville, no teatro Poeira, no Rio de Janeiro. Mais uma viagem de Aderbal, depois das travessias imaginárias e memoráveis do Púcaro búlgaro. Antes, a navegação a país nenhum. Agora, ao fundo da noite líquida. A nossa. As viagens fascinam a imaginação humana porque dialogam1 com nossa condição elementar e arcaica, primitiva e radical2: o prosaico e misterioso estar-aí, em um lugar (entre outros, no tempo), qualquer que ele seja. O mistério está no fato de que esse lugar não é outro qualquer – o que o envolve em névoa mística porque lhe confere um caráter enigmático: expressaria algum desígnio, um destino oculto, uma vontade de quem dispõe das peças do xadrez cósmico? Por que aqui e não alhures? Ante bilhões de possibilidades de existir e não existir, por que exatamente hoje, aqui, existir entre estes seres? E se a própria pergunta é idiota,3 que inteligibilidade atribuir ao acaso (enquanto tal, sem conjurá-lo)? Sair, romper, deslocar-se, eis aí movimentos que implicam transformar-se e alterar os termos dos contratos sociais, situando em perspectiva ligações primárias e significados herdados. Crescer, afastar-se da mãe, distanciar-se da matriz, apontar o nariz em direção à morte, vivenciar o poder e a finitude, ousar constituir a singularidade de uma pessoa e uma história: não é essa a fortuna de uma narrativa biográfica? Ou seja, transformar o dado (o lugar e o ser que nos foram dados) em objeto de arte: deslocamento e invenção; astúcia e engenho; artifício e audácia; sabedoria, habilidade e imaginação. E o destino constrói-se, fortuna e virtù. Finalmente, retornar: à matriz renovada pelo véu de novos significados; às cinzas; mas também ao que permanece fiel à origem sob as mutações e metamorfoses, a despeito das aventuras e dos cantos de sereia, e dos monstros encontrados no caminho. Eis a fórmula da viagem arquetípica: percurso, vida, movimento de autocriação em seu ímpeto histórico, que 1 Reconhecem-na e a negam, brincam com ela, a antagonizam e reforçam, infundemlhe sentido e a dissipam, transcendendo-a e a interpelando. 2 Nos sentidos próprios e não judicativos dessas palavras. 3 Também no sentido original da palavra, que, no caso, não deve obscurecer sua face irônica e crítico-judicativa. Luiz Eduardo Soares
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nos faz agentes, protagonistas, heróis épicos, mas também patéticos sonâmbulos tateando sombras em cavernas. Tateando nossos limites, cenários (externos a nosso controle) que circunscrevem nosso poder – e que, em círculo (ou espiral?), nos permitem experimentar a repetição, o eterno retorno, que é recomeço, negociação inventiva conosco mesmos. Por isso, a volta pode ser, paradoxalmente, distanciamento da origem – distanciamento da origem aqui entendida como fonte da gravitação que destrói a diferença; diferença sem a qual se eclipsa a identidade humana. Desde Ulisses ou desde Homero, a Odisseia é o modelo da reflexão sobre a dialética da vida e da morte, é a metáfora para os abismos do sujeito e da condição humana, é o símbolo dos jogos infernais e seminais do eu e do outro, do silêncio e da linguagem, do entendimento mútuo (o consenso, o contrato, o convívio ordenado e legítimo, a Polis, a Justiça) e da ruptura, a diferença, o desvario, o desvio, o dissenso, a desmedida (hybris contra ratio). Ulisses vence os desafios, sobretudo quando descobre que sua natureza não é alheia aos monstros – esses monstros cujo poder de destruir não é indiferente ao desejo do próprio objeto de sua violência. Ulisses ata-se ao mastro, portanto, e luta consigo mesmo. O herói retorna à sua mulher, Penélope, e à sua ilha natal, Ithaca. Perfaz a travessia. A epopeia se cumpre. O círculo se fecha, diferenciandose da origem e a restabelecendo. A vida recomeça e triunfa. Fausto, não; Ahab, não. Fausto não se amarra ao mastro. Entrega-se ao canto de sereia de seus demônios internos e negocia com o que se lhe afigura como a personificação do mal: sacrifica a alma para alcançar a glória. Troca o valor pelo poder. Sua viagem é outra. O fim converte-se em meio espúrio e utilitário, a serviço da vaidade. Apegando-se ao meio que lhe garante a vitória fugidia, desvia-se de si, transforma-se no outro que ambiciona ser, esse outro-imagem idealizada do poder e da grandeza sobre-humana. Com a conspurcação do fim (o desenvolvimento de seu valor; o aprimoramento de sua “alma”), perde-se a origem, isto é, rompem-se os mapas que o poderiam reconduzir à origem, para restabelecê-la, reconfigurá-la, promovendo a mudança virtuosa, quer dizer, aquela que se daria em conformidade com a natureza humana e com a raiz que vincula Fausto a seu lugar e a seus limites. A morte triunfa. 136
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Moby Dick: o antiFausto de Aderbal
É outro o destino de Ahab, agarrado em seus nervos e em sua imaginação por Moby Dick. Arpoado (e alucinado) pelo destino que o condena à caça da baleia assassina. Destino que constrói com esse misto misterioso de fascinação e ódio, horror e encantamento. Ancorado no solo inamovível da obsessão, confere à figura monstruosa do Leviatã marinho a representação mais pura e absoluta do mal. Ao contrário de Ulisses, Ahab não retornará. Em contraste com Fausto, jamais admitirá negociar com o mal. Ainda que o confronto lhe custe a vida. Salvará sua alma, sacrificando-a. Sua navegação será infinita. A ligação cosmológica com seu antagonista mítico já lhe custou a vida, as relações, a casa, a família, o amor, o repouso, o reconhecimento, o acolhimento. O movimento incessante por oceanos profundos, guiado por estrelas e intuições sublimes, corresponde, paradoxalmente, a uma colossal fixação: infinita imobilidade. Ahab perdeu a vida. Sua sentença foi decretada quando decidiu selar o pacto contra o diabólico. Meios e fim se sobrepõem no universo do anti-herói: homem da convicção, que não sobrevive senão no plano do valor, refratário ao mundo das negociações, das concessões, da resignação, Ahab entrega-se em holocausto para levar consigo ao fundo escuro do mar seu outro absoluto. O que fez Aderbal e seu excelente grupo de atores com essa trama de contrastes? Contou-nos a fábula da antipolítica, como antídoto ao veneno da naturalização da política, tal como realmente existente. Antídoto à política entendida e praticada como a rendição fáustica ao realismo inevitável, segundo o qual o preço do poder é a renúncia à identidade e aos valores; o custo da vitória é derrotar o inimigo para converter-se no que ele foi; o preço da glória é o pacto com Mefistófeles. Mas essa crítica poderosa porque radical não implica ingênua adesão ao purismo dos valores; não significa que se suponha possível resolver o impasse com simples reafirmação de fidelidade ideológica. Moby Dick não é um hino ao terror, à violência, ao confronto em nome do bem. Afinal, a loucura de Ahab nada tem de doce e o desfecho não recomenda sua escolha. Aderbal nos deixa a sós com a insuperabilidade das aporias do poder. Contra todas as simplificações e as soluções fáceis. Tampouco se trata de uma celebração do ceticismo e da apatia. O teatro de Aderbal põe em marcha a paradoxal conclusão de Brecht: “como todos vimos, não tem saída. Mas tem de haver”.
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XI. Resgatando a hist贸ria
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Autores Ivan Alves Filho
Jornalista, historiador e autor de mais de uma dezena de livros, entre os quais se destacam Memorial dos Palmares e Giocondo Dias: uma vida clandestina.
Rodrigo Freire de Carvalho e Silva
Professor de Ciência Política na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília (UnB). Atualmente, preside a Empresa Paraibana de Turismo (PBTUR).
Marcos Evandro Cardoso Santi
Bacharel em Ciências Econômicas e Direito pela UnB, especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental. Consultor legislativo do Senado Federal
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Euclides da Cunha, o reformador do Brasil1
Ivan Alves Filho “O verbo da vida é andar”, asseverou certa vez Álvaro Moreyra. A frase se aplica perfeitamente, a meu juízo, à forma como Euclides da Cunha viveu. Um homem que palmilhou seu país, em busca de melhor conhecê-lo. E – quem sabe? – de se conhecer também. Impressiona a relação de Euclides com as viagens e suas constantes movimentações país afora. Nisso, ele está muito bem acompanhado. Os europeus Renée Chateaubriand, Walter Benjamin, Hermann Hesse, Paul Morand, André Malraux e, entre nós, Graciliano Ramos, Jorge Amado e Érico Veríssimo foram todos extraordinários escritores e amantes das longas travessias. E como não poderia deixar de ser, suas obras têm muito que ver com essas andanças. Com Euclides da Cunha não seria muito diferente. Grande parte de seus escritos tem por foco a exuberante floresta amazônica e os ásperos caminhos do sertão. As cidades onde Euclides se estabeleceu pareciam pequenas demais para seu espírito aventureiro. Vai ver que o escritor era do tamanho do Brasil.
1 Este artigo se constitui um registro singelo do autor, colaborador da Fundação Astrojildo Pereira, ao centenário de morte do notável escritor brasileiro, autor de obras clássicas como Os sertões. Euclides foi o responsável também pela crônica em que registra a iniciativa de Jildo [Astrojildo Pereira], quando este, jovem ainda de 17 anos, realiza emocionante visita à casa de Machado de Assis, horas antes do momento em que o bruxo do Cosme Velho veio a falecer (nota dos editores).
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XI. Resgatando a história
Autor por assim dizer geográfico, Euclides da Cunha realizou um verdadeiro balanço da civilização brasileira na passagem do século XIX para o seguinte. Uma fase para lá de conturbada em nossa História: Abolição, proclamação da República, Revolta da Armada, expansão do modo de produção capitalista. E Euclides vê sua época com uma particularidade, justamente: ele o faz a partir de uma experiência sensitiva adquirida no interior profundo do país – e não sob a ótica da “deplorável rua do Ouvidor... o pior prisma por onde toda a gente vê a nossa terra”, conforme ele mesmo diria um dia. Daí seu olhar diferenciado e, mesmo, privilegiado em relação a outros literatos e intelectuais de seu tempo. É até bem provável que o fato de ter percorrido as mais diversas regiões tenha contribuído para que formasse uma nova compreensão dos fenômenos nacionais. Com Euclides da Cunha se verifica, praticamente, o esgotamento do período das grandes viagens entre nós. Um período que – convém sempre lembrar – esteve na origem do próprio Brasil, bastando para isso citar a Carta de Pero Vaz de Caminha, uma estupenda reportagem inaugural. Como Os sertões também o seria, à sua maneira. Vale dizer, com esse movimento em direção ao desconhecido, Euclides deslocou o Brasil do litoral para o sertão e a selva. Não por acaso ele escreveu que vivia “fugindo, através dos livros, para o seio de outras gentes”. Mais: pouco antes de morrer, afirmava trabalhar em um livro sobre a região amazônica. Tudo o que viu e assimilou durante suas andanças serviu para demonstrar que o poder, urbano, errara profundamente no tocante aos brasileiros dos confins. Em seus momentos de maior pessimismo – pois ele os tinha, apesar de tudo –, considerava ser quase impossível promover o diálogo do homem da cidade com o homem do campo. Esquecia-se, talvez, que ele mesmo representava essa possibilidade. Afinal, engenheiro de profissão, Euclides era um fazedor de pontes... Da leitura dos textos de Euclides da Cunha podemos ressaltar uma característica que também permeia a filosofia, ao menos em sua visão aristotélica. Qual seja, o espanto. E é, de fato, movido pelo sentimento de espanto que Euclides se firmou no ponto mais alto da consciência pública encarnada por um intelectual na segunda metade do século XIX. Pois, além de pensador, ele foi também ator dos dramas que afligiam então o país – e alguns deles, diga-se de passagem, ainda afligem. Ex-aluno de Benjamin Constant, Euclides foi republicano de primeira hora e acabou sendo expulso do Exército no período monárquico, por insubordinação. Precursor do movimento socialista entre nós (e, mesmo, um dos primeiros a ler Karl Marx no Brasil), Euclides da Cunha influenciou com a força de suas convic142
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ções e o sopro épico e libertário de sua elegante prosa, mais de uma geração de escritores. Guimarães, por exemplo, é uma rosa – e das mais perfumadas – gerada na estufa de Euclides. Prossigamos. O pensador italiano Antonio Gramsci escreveu que “o elemento popular ‘sente’, mas nem sempre compreende ou ‘sabe’; o elemento intelectual ‘sabe’, mas nem sempre compreende e, muito menos, ‘sente’. Sintomaticamente, Euclides da Cunha, anos antes de Gramsci, expõe algo nessa mesma linha. Assim, em carta endereçada ao filho, aconselha: “Estuda sempre, meu filhinho! Quero te ver adiantado. Cultiva também o teu coração, porque ele vale mais do que a cabeça.” Rebelde – “sou um eterno idealista”. Homem totalmente inconformado com as nossas mazelas – “serei um vingador e terei desempenhado um grande papel na vida: o de advogado dos pobres sertanejos assassinados”. Em outras palavras, Euclides era feito da matéria que forja os grandes homens, sempre críticos em relação aos impasses de seu tempo. Mas, se o escritor expressava suas ideias arrojadas sob uma forma barroca, seu olhar era indiscutivelmente novo, na medida em que buscava entender o contexto para poder mudá-lo. E o que era preciso mudar? A situação social, a vida das pessoas. E o interessante nesse processo é que o escritor vai percebendo aos poucos que alguns de seus pontos de vista poderiam estar equivocados, não hesitando em submetê-los ao crivo da realidade objetiva. Operou dessa forma, por exemplo, em relação ao episódio de Canudos. De uma honestidade absoluta, Euclides não titubeou em fazer a revisão de certos juízos emitidos antes. Um exemplo: apesar de defender ideias republicanas e, consequentemente, abominar as suspostas posições monarquistas do Conselheiro – chegou a definir Canudos como a nossa “Vendeia” – o escritor desconfia do republicanismo da...República! Denuncia os crimes perpetrados por ela. Reconhecendo seus erros de avaliação, retorna dos sertões de Canudos totalmente modificado. E faz-se, então, intérprete dos “de baixo”, encerrando seu livro magistral em tom admirativo: “Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até o esgotamento completo”. Nós aludimos acima ao barroquismo do historiador intuitivo que foi Euclides da Cunha. Aqui, uma constatação. Pensamos que o escritor não se deixou levar pelo ritmo lento, quase exasperante, do modo de vida camponês. São, provavelmente, os limites da geografia na literatura...Vidas secas, certamente – mas também literatura escorreita, líquida. Uma literatura do contraponto. Conservadora então a linguagem de Euclides? Não forçosamente. Conservador o elemento Ivan Alves Filho
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XI. Resgatando a história
do campo retratado por ele, sertanejo, coletor ou agricultor? Tampouco. Por uma razão simples: nenhum outro grupo social na História se defrontou tanto com a instabilidade nas condições de trabalho quanto o camponês, sujeito há séculos às vicissitudes climáticas e àquelas do próprio solo, além de estar subordinado, também há séculos, aos homens da capital e do capital. Para Euclides da Cunha – como, antes dele, para Capistrano de Abreu, ao se debruçar sobre a nossa formação histórica – era preciso recorrer a uma mescla de saberes para compreender em profundidade o Brasil. Nesse sentido, antecipou-se à historiografia moderna, notadamente à chamada Escola dos Annales. O que hoje denominamos de multidisciplinaridade foi inaugurado por Euclides, praticamente. Pois o escritor intuiu, uma vez mais, que o Brasil era suficientemente complexo para caber nos marcos das disciplinas tradicionais. Era necessário, então, fundir ou combinar história, antropologia, geologia, linguística, ecologia, geografia, os estudos do folclore... Ou seja, o sertão era um mar. E ao fazer uma leitura dessa ordem, Euclides observaria igualmente que o progresso continha a destruição. Conforme destacaria a pesquisadora Walnice Galvão, o grande feito de Euclides “foi ter conseguido expressar... o que a modernização faz aos pobres”. O que estava de fato em jogo não era somente o combate travado entre a modernidade e o atraso. Mas entre uma forma determinada de modernidade e o que era considerado então atraso social. Até mesmo devido ao fato de que o modo de produção capitalista não se desenvolve nunca de maneira uniforme. Euclides se inteirou amargamente disso. Afirmou, inclusive, ser “o jagunço tão inapto para apreender a forma republicana quanto a monárquica-constitucional”. Era alguém que estava à margem do jogo. Daí a sua grande perplexidade frente à epopeia canudense. Se o progresso continha – e como continha! – elementos de barbárie, a República combatia exatamente o quê em Canudos? O quê? Euclides da Cunha parece entender um fato central: o de que não havia muito espaço para a democracia naquela fase inicial da vida republicana brasileira e que as nossas reformas ficariam largamente incompletas. Se a República nascia assim, eis o que comprometia a nossa modernidade. O autoritarismo é o que resta, quando há um desencontro entre o povo e a nação. Isso, no tocante à estrutura política. Mas há que se observar a esfera econômica, onde a abolição do trabalho escravo não implicava o surgimento de relações assalariadas no interior, em particular na zona sertaneja, ainda submetida ao sistema de mando feudal. E, como sabemos, sem salário não há capital. Euclides da Cunha, ao 144
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descrever as práticas comunitárias canudenses, não poderia ignorar isso. E tem mais: ao se debruçar sobre as condições de trabalho e de vida dos brasileiros da Amazônia, ele denuncia, por seu turno, a “servidão” em que se encontram mergulhados aqueles homens, dissecando o sistema de aviamento ou barracão. Com agudeza, observou que os fazendeiros do sertão se valiam da chamada “renda da terra” para explorar “parasitariamente” o trabalho alheio. A rigor, Euclides da Cunha nota ainda que o traço autoritário estava presente desde o início da nossa formação nacional. Ao examinar os acontecimentos que selariam o fim daquilo que o jesuíta suíço Claude Lugon classificaria como República comunista-cristã dos guarani, afirmou que o elemento “missionário reagia à frente dos bárbaros arrancados às selvas, contra os bárbaros oriundos das terras civilizadas”. E vai além: vê o homem do povo – no caso, os mineradores da região central da Colônia – como o conquistador anônimo “da Pátria”, atuando à revelia do poder metropolitano. Em tudo vislumbrava a riqueza da contribuição popular. Ademais, convivia com o povo, em seus deslocamentos pelo Brasil afora. Estamos aqui a mil léguas do intelectual de gabinete. Espanta – e o espanto agora é nosso – a extrema agudeza e, ainda, a atualidade de suas observações. Euclides da Cunha destacou o quanto a Independência teve por base o motim deflagrado pela população do Rio de Janeiro, exigindo a permanência de D. Pedro (“impondo, é o termo”). No terreno da preservação ambiental, alertou para o “empobrecimento contínuo das nossas fontes, dos nossos rios”. Mais: sabia separar as ações radicais das ações cruentas, notando que as lutas muitas vezes se desenvolviam em um prazo longo, sem nada de espetacular propriamente. Ao referir-se à República, escreveu: “desfecho feliz de uma revolta. Por que a revolução já estava feita”. Poucos entenderam, como este reformador de primeira hora, a ideia de processo e acúmulo de forças. Euclides da Cunha amou o Brasil das profundezas – e este é o caso do sertão – e amou o Brasil das fronteiras – e este é o caso da região amazônica. Amou sua terra pelo miolo e também pelas beiradas. Amou a natureza – mas também o povo que nela vivia. Em tudo, enxergava o Brasil e o seu processo injusto de formação. Como disse Gilberto Freyre, quando Euclides descreve o enforcamento de um homem negro, “feito estátua”, no sertão de Canudos, ele estava na verdade se insurgindo contra “quatro séculos” de opressão. O sertanejo de Euclides da Cunha é, acima de tudo, a síntese de uma estrutura social desigual e perversa. Euclides era um homem quase obcecado pela unidade nacional. Ao analisar a Cabanagem, no Pará, vislumIvan Alves Filho
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brou no movimento um como que sintoma de “crescimento do desequilíbrio” entre os homens do sertão e do litoral; desequilíbrio esse que tanto o atormentava. Para o escritor, o Brasil era um terreno fértil para o exercício do pensamento e, sobretudo, um campo de luta. Nesse sentido, examinou sua paisagem, inquiriu sua história, estudou seu sistema de transporte, interessou-se pela saúde da população, admirou seus heróis e personalidades mais marcantes. Naturalmente, isso não o redime de certas contradições. Viveu em uma época eivada de preconceitos – mas teve a grandeza, justamente, de se colocar acima de muitos deles. Tanto que significou o máximo de consciência possível que uma pessoa poderia alcançar em sua época. Ainda que admitindo, conforme a teoria então em voga, a inferioridade do homem miscigenado, na prática ele termina por exaltar sua força. Mais, até: sabe que ele mesmo é um sertanejo, descendente, por parte de pai, de caboclos baianos. É fruto daquele meio. Em sua correspondência, apresenta-se, repetidas vezes, diante dos amigos como um “bugre”, um índio. Intelectual de ideais reformadores, Euclides vivenciou a solidão de quem não tinha onde e como atuar de forma verdadeiramente orgânica, uma vez que inexistia então organizações populares dignas desse nome. Na frase lapidar de Afonso Arinos de Melo Franco: o escritor representava “a tragédia do desentendimento entre a força intelectual renovadora e o meio social retardatário”. Mesmo assim, Euclides fez das massas populares – isto é, do homem do sertão, do proletário das cidades, do coletor da Amazônia – a razão inequívoca de sua obra. Nesse sentido, era um homem-síntese. Daí a sua grandeza. Senão vejamos. Erudito, vai ao encontro da cultura popular. Forjado na então capital da República, Rio de Janeiro, parte à procura do sertão e da floresta. Pensador sofisticado, transforma-se em homem de ação. Euclides multiplicava-se. Por tudo isso, por essa soma de experiências e qualidades, Euclides da Cunha é o nosso maior clássico. Um homem de seu tempo e de todos os tempos.
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O PCB na Paraíba e a luta de massas democrática no pré-golpe militar1
Rodrigo Freire de Carvalho e Silva
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Partido Comunista Brasileiro (PCB) foi o mais influente partido da esquerda brasileira até o início dos anos 1980. Originário da República Velha e herdeiro direto da Revolução Russa e da sua influência sobre a esquerda mundial, o PCB esteve presente nos principais momentos políticos da história brasileira do século XX, em muitas ocasiões, ocupando relevante protagonismo. Dialogando com a literatura especializada, podemos afirmar que, até o surgimento do PT, o PCB foi o único partido da esquerda brasileira que pode ser analisado de acordo com os tipos teóricos propostos pelos cientistas políticos Maurice Duverger – “partido de massas” – e Sigmund Neumann – “partidos de integração social”. Estes dois tipos ideais foram construídos tomando por base os grandes partidos da Europa Ocidental da segunda metade do século XX – principalmente, os partidos da esquerda social-democrática –, ou seja, partidos políticos que funcionavam não apenas como “máquinas eleitorais”, mas que tinham vida própria entre as eleições, disputavam espaços de poder em outras esferas da vida social que não apenas as instituições estatais, contavam com um grande número de adeptos – envolvidos com o cotidiano e com o financiamento da atividade partidária. Por tudo isto, argumentavam Duverger e Neumann, estes partidos se constituíam como uma verdadeira “subcultura” própria no ambiente político nacional, tendo sua imprensa e canais de comunicação exclusivos, desenvolvendo uma atividade social, cultural e recreativa própria e, inclusive, incorporando símbolos e rituais que lhe destacavam dos adversários. Assim poderiam ser caracterizados os partidos comunistas, principalmente, após a Segunda Guerra Mundial, quando boa parte deles se constituiu como
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O autor dedica este artigo à memória de José Anísio Maia, e também ao paraibano Vladimir Carvalho, amizade recente, presença singular e respeitada na vida artística brasileira. Ambos, ex-militantes comunistas na Paraíba.
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partidos de massas em democracias ocidentais como a França e a Itália. Como disse o historiador Gérard Vicent em ensaio sobre o Partido Comunista Francês,2 o “ser comunista” se constituía numa verdadeira “maneira de ser” também no Ocidente. No caso do PCB, a situação não era diferente. Após a Segunda Guerra Mundial, quando o Brasil iniciou seu primeiro período democrático-liberal, e até o golpe militar de 1964, o PCB assumiu uma posição de destaque na vida política nacional, mesmo que tenha vivido na ilegalidade na maior parte deste período. Quando esteve legalizado, entretanto, e pode disputar eleições em legenda própria, entre 1945 e 1947, o PCB conseguiu um desempenho expressivo, em um cenário eleitoral dominado pelos grandes grupos políticos conservadores. Nas eleições constituintes de 1945, o PCB elegeu 14 deputados federais, obtendo 8,6% dos votos nacionais para a Câmara dos Deputados. Em alguns estados, como São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco e Distrito Federal, os comunistas tiveram votações bastante expressivas, particularmente, nos dois últimos, onde obtiveram, respectivamente, 16,2% e 20,2% dos votos. Ainda em 1945, o PCB elegeu um senador, Luis Carlos Prestes, e seu candidato a presidente da República, Yedo Fiúza, teve 9,7% dos votos nacionais, atingindo picos de desempenho eleitoral, mais uma vez, em Pernambuco (16,4%) e Distrito Federal (27,5%).3 Posto na ilegalidade a partir de 1947, o PCB não se absteve de disputar eleições, uma vez que, inspirado pela tradição de participação política dos marxistas, considerava as campanhas eleitorais e os parlamentos democráticos como espaços privilegiados para a propaganda revolucionária. Por isso mesmo, como o PCB estava ilegal, até 1964, muitos comunistas se candidataram e/ou foram eleitos para os mais diversos cargos parlamentares, em todo o país, filiados instrumentalmente a outras legendas. Mesmo assim, a condição de “candidato comunista” ou de “candidato de Prestes” era pública, na maioria das vezes, o que levou diversos analistas a afirmarem que, àquela época, o PCB vivia em uma situação de “semiclandestinidade”.4 2 VINCENT, Gérard. “Ser Comunista? Uma Maneira de Ser.” In História da Vida Privada. Da Primeira Guerra aos Dias Atuais. v. 5. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 427-57. 3 Todos os resultados eleitorais utilizados até este momento estão disponíveis no Banco de Dados Eleitorais de Jairo Nicolau, no endereço http://jaironicolau.iuperj.br 4 Vide, por exemplo, PANDOLFI, Dulce. Camaradas e Companheiros. História e Memória do PCB. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Fundação Roberto Marinho, 1995. SEGATTO, José Antônio. Breve História do PCB. São Paulo: LECH,1981. SEGATTO, José Antônio. Reforma e Revolução. As Vicissitudes Políticas do PCB (1954-1964). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.
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Entretanto, como partido de massas e, mais ainda, como partido revolucionário, o PCB nunca fez da disputa eleitoral seu único front de luta política. Em contrário, o PCB sempre se fez presente na disputa de rumos dos mais diversos movimentos sociais, culturais e políticos do país. Seja no movimento sindical, nas “Ligas Camponesas” ou junto aos artistas e intelectuais, os comunistas procuravam construir espaços de interlocução que, uma vez conquistados, acabaram por tornar-lhes numa das mais influentes forças políticas nacionais do ambiente de “quase-poliarquia” que antecedeu ao golpe militar de 1964. A análise da história política do PCB, no período compreendido entre 1945 e 1964, passa pela compreensão da contradição central na qual o partido estava então envolvido: ser um partido comunista – e, portanto, marxista-leninista, internacionalista, fiel à URSS, organizado segundo os princípios do centralismo democrático – sem, por isso, deixar de ser um partido brasileiro. Ou seja, o PCB do prégolpe militar buscava construir, no sistema político brasileiro – onde o clientelismo, o patrimonialismo, o conservadorismo católico, o multipartidarismo e o federalismo exacerbado tinham peso decisivo na formação da cultura política – um espaço próprio para sua atuação política revolucionária. Mais ainda, os valores que inspiravam a atuação política do PCB eram radicalmente antagônicos à citada cultura política nacional. É certo que o PCB não se fez infenso a esta contradição, procurando se adaptar a ela com movimentos táticos que lhe levaram a firmar alianças com diversos setores da política brasileira, notadamente, com aqueles ditos “nacionalistas”. Considerado o federalismo brasileiro, entretanto, que faz com que as realidades políticas dos estados possam ser caracterizadas quase que como “sistemas políticos” particulares, distintas das demais – ainda hoje, não raro partidos políticos que fazem parte de um mesmo grupo político nacional são adversários figadais em determinados estados, o PCB não pode traçar uma política de alianças prioritária com um partido político em todo o território nacional. A preferência de aproximação com os políticos “nacionalistas” – por mais abrangente que este rótulo pudesse ser – conduziu o PCB a alianças, por exemplo, com o PSD em Minas Gerais e com a UDN em Pernambuco. Por isso que se faz tão importante à ciência política brasileira a análise dos sistemas políticos estaduais, e como os partidos políticos – inclusive o PCB daquele período – se posicionam em cada estado específico. Nesta perspectiva, passemos agora a um breve estudo de caso sobre o PCB na Paraíba, no período pré-golpe militar.
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A origem do PCB na Paraíba remonta à década de 1930. Nas eleições parlamentares de 1934, os comunistas apresentaram, junto com segmentos liberais radicais, a chapa intitulada “Trabalhador Vota em Ti Mesmo”, representando a chamada “Liga Pró-Estado Leigo”, fazendo uma alusão à chapa que, no ano anterior, o pernambucano e fundador do PCB, Cristiano Cordeiro, concorreu à deputação naquele estado vizinho.5 O candidato então apresentado pelos comunistas paraibanos foi o advogado João Santa Cruz de Oliveira, importante referência política no estado que, derrotado naquele pleito, logo se incorporou à Aliança Nacional Libertadora, sendo seu líder maior na Paraíba. O período que se seguiu ao fechamento da ANL e à posterior prisão dos seus líderes levou ao cárcere não só Santa Cruz, como também boa parte das lideranças comunistas da Paraíba. Com os primeiros anos da década de 1940 e o início das discussões sobre o combate ao nazifascismo, a abertura democrática no Brasil, a anistia de Prestes etc., o PCB passou por um período de revigoramento na Paraíba e, a partir de 1942, 1943, até o primeiro ano da década de 1950, vários foram os militantes comunistas – que posteriormente viriam a desempenhar posição de destaque no partido – a ingressar nas fileiras do PCB. Sua origem social estava principalmente na classe média urbana, apesar de também ser notada a presença de militantes comunistas junto aos movimentos operário e camponês estado, o que se refletiria, inclusive, na votação do PCB paraibano durante todo este período. Assim, o PCB integrou-se na vida política legal paraibana plenamente após 1945, apresentando candidatos e fazendo suas campanhas para presidente da República e deputado federal em 1945 e 1946, respectivamente. No ano de 1947, entretanto, o PCB paraibano conseguiu seu maior feito eleitoral daquele período histórico: elegeu João Santa Cruz de Oliveira deputado estadual. A votação de Santa Cruz guarda forte relação com a geografia social e urbana da Paraíba à época.6 Dos 1654 votos de Santa Cruz, 82,22% foram obtidos em três cidades: João Pessoa – a capital e principal centro urbano do estado –, Santa Rita – município da Região Metropolitana de João Pessoa, que então já se consagrava pela concentração industrial e pela presença de usinas de cana-de-açúcar – e 5 A chapa de Cristiano Cordeiro chamava-se “Trabalhador Ocupa Teu Posto”, e serviu de trocadilho para intitular o belo frevo “Coração, ocupa teu posto”, de autoria do compositor e comunista Nelson Ferreira, legenda do carnaval pernambucano. 6 Os dados eleitorais históricos relativos à Paraíba citados neste artigo estão disponíveis no sítio do TRE-PB na internet, no endereço http://www.tre-pb.gov.br/resultados_eleicoes/online.htm
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Mamanguape, um polo industrial impulsionado pelo seu principal empreendimento econômico, a Fábrica de Tecidos Rio Tinto. Maior concentração operária do estado, Mamanguape sufragou 1.101 votos – ou o equivalente a 29,5% dos seus votos válidos do município naquelas eleições – a candidatos comunistas. O primeiro suplente de deputado estadual comunista na Paraíba, nas eleições de 1947, foi o advogado Felix Araújo, radicado na cidade de Campina Grande, o segundo centro urbano do estado, de vocação eminentemente comercial, com industrialização incipiente. Araújo recebeu a terceira melhor votação de Campina Grande dentre os candidatos a deputado estadual naquelas eleições, obtendo mais de 58% dos seus 1516 votos naquela cidade. A votação obtida pelos comunistas paraibanos nas eleições de 1947 apresenta bem o cenário social e político onde o PCB se fez mais influente na Paraíba até o golpe militar de 1964: entre a classe média urbana, localizada principalmente em João Pessoa e Campina Grande, o que incluía os estudantes, a intelectualidade e os profissionais liberais, tendo ainda alguma expressão junto aos bairros populares, principalmente, em Campina Grande; entre o incipiente movimento operário, mesmo que gradativamente vá perdendo espaço para os trabalhistas – o que pode ser atribuído, inclusive, à ilegalidade imposta ao Partido7; e entre o movimento camponês, principalmente, na região da chamada “Várzea do Rio Paraíba”, polarizada pelas cidades de Santa Rita e Sapé. Posto na ilegalidade, o PCB continuou a apresentar candidatos na Paraíba, tendo inclusive conseguido eleger, por outras legendas, vereadores em João Pessoa e em Campina Grande. Nas eleições municipais de 1955, o PCB elegeu vereadores de João Pessoa e Campina Grande, pela legenda do PST, respectivamente, Luis Bernardo – que ocupava posição de destaque no comitê estadual comunista na Paraíba – e Oliveiros Oliveira – este último, ainda hoje, militante do PPS. Nas eleições a prefeito de 1959, o PCB da Paraíba decidiu não só participar e lançar seus candidatos ao parlamento, como tradicionalmente vinha fazendo desde a década de 1940, como lançou sua principal liderança no estado, João Santa Cruz, candidato a prefeito de João Pessoa, pela legenda do PSB, com o apoio da UDN. A campanha de Santa Cruz sofreu oposição cerrada da cúpula da Igreja Católica do estado, publicada no seu jornal diário A Imprensa, que circulava em João Pessoa. Através da “Liga Eleitoral Católica”, o 7 Vide, por exemplo, BRANDÃO, Gildo Marçal. A Esquerda Positiva. As Duas Almas do Partido Comunista – 1920/1964. São Paulo: Hucitec, 1997 e WEFFORT, Francisco. “O Populismo na Política Brasileira”. In FURTADO, Celso (Org.). Brasil: Tempos Modernos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968. Rodrigo Freire de Carvalho e Silva
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clero conservador fez circular um panfleto pela cidade que, sob o título de “Advertência Pré-Eleitoral”, falava de todos os “perigos” que o comunismo oferecia à fé católica, conclamando os pessoenses a repelirem, com seu voto, os “inimigos da vossa Fé, da vossa Família e da vossa Religião”.8 No dia das eleições, A Imprensa circulou com a seguinte manchete: “Votar em comunistas é trair a religião e a pátria”.9 Santa Cruz foi derrotado por Luis Gonzaga de Miranda Freire, da coligação PSD/PTB, tendo obtido, ainda, 40% dos votos válidos.10 O PCB lançou ainda José Gomes da Silva candidato a vereador de João Pessoa pelo PSB, que também não foi eleito. Deste período histórico, merece destaque a emergência do movimento camponês no Nordeste, particularmente, através das “Ligas Camponesas”. Oriundas de Pernambuco, na Paraíba as Ligas começaram a ser organizada ainda no final da década de 1950, com forte influência dos comunistas. Após ter se expandido rapidamente por diversos municípios do estado – Santa Rita, Mari, Guarabira, Campina Grande, Mamanguape, dentre outras – em 1961 foi fundada a Federação das Ligas Camponesas da Paraíba. A sua diretoria, presidida pelo agrônomo Assis Lemos – um nacionalista que tinha muita proximidade, ao mesmo tempo, com João Goulart e com o PCB –, era predominantemente comunista, tendo como vice-presidente João Pedro Teixeira, Antônio Dantas como secretário e ainda Leonardo Leal como tesoureiro.11 Dentre os advogados da Federação, estavam José Gomes da Silva e João Santa Cruz de Oliveira. Ao crescimento das Ligas em todo o estado, correspondeu uma reação violenta dos latifundiários. Em 1962, foi assassinado o líder camponês de Sapé, João Pedro Teixeira, militante do PCB. A orientação de Assis Lemos e do PCB se fez inconteste nas Ligas Camponesas até 1962, quando começou a surgir no seu meio a influência de Francisco Julião, líder e fundador das Ligas Camponesas em Pernambuco, que começou a cooptar lideranças das Ligas na Paraíba para seu grupo. Dentre estas, uma das primeiras cooptadas foi Antônio Dantas, que havia sido expulso do PCB em virtude das suas posições simpáticas a Cuba e críticas à linha pacifista e reformista dos comunistas12, expressas na chamada “Nova Política” do 8 Citado em BARBOSA, João Batista. Santa Cruz e o Jornal do Povo. João Pessoa: Santa Marta, 1985, p. 69. 9 Jornal A Imprensa. João Pessoa, 02 de agosto de 1951. 10 TRE-PB. Vide nota 7. 11 ASSIS LEMOS, Francisco de. Nordeste: o Vietnã que não Houve. Ligas camponesas e o golpe de 64. Londrina: UEL/Editora Universitária – UFPb, 1996. 12 Segundo declarou o próprio Dantas, em entrevista publicada em GUEDES, Nonato et. al. (Org.). O Jogo da Verdade. Revolução de 1964:30 Anos Depois. João
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PCB, adotada a partir de 1958. Dentre outras lideranças a integrar o grupo “julianista”, era de maior destaque a viúva de João Pedro Teixeira, Elizabeth Teixeira. A divergência entre os dois grupos se dava, sobretudo, quanto à tática política. Enquanto Assis Lemos e os comunistas apegavam-se à luta da ocupação dos espaços legais pelos camponeses, os julianistas, através de palavras de ordem como “reforma agrária na lei ou na marra”, defendiam que as Ligas as sumissem uma posição revolucionária e, a exemplo de Cuba, preparassem os camponeses para a luta armada. A divergência do grupo julianista com os comunistas e seu aliado Assis Lemos continuou quando, a partir de 1963, estes últimos decidiram por transformar as Ligas Camponesas em Sindicatos de Trabalhadores Rurais, aproveitando-se da nova legislação trabalhista para o campo editada pelo presidente João Goulart. Acusando-os de reformistas, os julianistas recusaram-se a participar do processo de sindicalização rural. Já no movimento estudantil, o PCB e a Juventude Universitária Católica (JUC) eram as principais forças políticas na Paraíba no final dos anos 1950 e início dos anos 1960, atuando muitas vezes em comum, principalmente, em João Pessoa.13 Por exemplo, Antônio Augusto Arroxelas, presidente da União Estadual dos Estudantes da Paraíba (Ueep) em 1962, que foi eleito vereador de João Pessoa em 1963, era considerado um “aliado” dos comunistas. Esta aliança dos comunistas paraibanos com a JUC levou-os a participar ativamente da Ceplar. A Ceplar, Campanha de Educação Popular, era uma associação da sociedade civil fundada em João Pessoa no ano de 1961 com o objetivo de, inspirada no método Paulo Freire, promover atividades de educação/conscientização junto às camadas populares da cidade. Foi fundada por estudantes e professores recém-formados, ligados à JUC, na área de educação na então Faculdade de Filosofia (Fafi) da Paraíba. O Conselho Deliberativo da Ceplar elegia a sua diretoria para um mandato de dois anos, onde estavam representados o movimento sindical, a Igreja Católica, a Ueep e a Upes (União Pessoense dos Estudantes Secundaristas), a Associação Paraibana de Imprensa (API), dentre outros. A Ceplar oferecia programas como educação de adultos e crianças, cursos de formação política para estudantes, lideranças sindicais e comunitárias etc., além de promover atividades culturais. Tiveram participação direta na Ceplar comunistas como Antônio AuPessoa: A União, 1994. 13 Segundo depoimento de Antônio Augusto Arroxelas ao CPDOC/FGV, e também o depoimento de Antônio Augusto Almeida ao autor. Vide também PORTO, Maria da Dores Paiva de Oliveira; LAGE, Iveline L. da Costa. Ceplar. História de um Sonho Coletivo. João Pessoa: SEC-PB/A União, 1995. Rodrigo Freire de Carvalho e Silva
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gusto Almeida, Oliveiros Oliveira, o hoje consagrado cineasta Vladimir de Carvalho e, principalmente, o teatrólogo e multimídia Paulo Pontes, que produzia peças, músicas, livros e folhetos para a Ceplar utilizar nas suas atividades, tendo chegado a ser seu diretor. Ainda de acordo com o então militante comunista Antônio Augusto Almeida,14 o PCB tinha uma atuação organizada com relação à Ceplar, discutindo seus problemas e pensando soluções, que eram levadas àquela Campanha através dos comunistas que nela atuavam. A Ceplar, rapidamente, conseguiu ampla aceitação social, expandindo-se para diversos outros municípios do estado, como Campina Grande e Sapé. Em Sapé, a Ceplar chegou através de parceria com a Liga Camponesa.15 Apesar do apoio dos setores progressistas da Igreja, os conservadores católicos não pouparam a Ceplar, considerando-a um produto dum “materialismo puro e grosseiro”, onde “certamente jamais será ensinado [...] que o homem tem um destino eterno, com que se deve preocupar, evitando quanto se achar proibido na lei divina.”16 O golpe militar de 1964 pegou os comunistas paraibanos de surpresa, pondo fim a toda esta atividade política e social ascendente e efervescente. Naquele momento, o PCB não só vivenciava uma condição de semiclandestinidade, como também desfrutava de uma vida pública e transparente na política paraibana, assim como no resto do país. Diversos ex-militantes comunistas paraibanos, entrevistados pelo autor, deixaram transparecer sua indignação com a avaliação de conjuntura então feita pelo PCB, que se considerava praticamente “dentro” do governo João Goulart. Então dirigentes comunistas no estado, Antônio Augusto Almeida e José Anísio Maia se referiram a uma visita que, poucos meses antes do golpe militar, já no ano de 1964, fez à Paraíba o membro do Comitê Central do PCB, Luís Maranhão, do Rio Grande do Norte.17 Segundo estes militantes, Luís Maranhão transmitiu aos seus companheiros paraibanos a análise do Comitê Central onde, usando uma régua equilibrada como uma balança na sua mão, procurava demonstrar a correlação de forças políticas no país, onde a régua pendia para um lado, de forma a representar que o Partido Comunista já estava no governo.18 14 Em seu depoimento ao autor. 15 Segundo PORTO; LAGE, 1995. 16 “Nota do Dia” do jornal A Imprensa. João Pessoa, domingo, 05/05/1963, p. 1. 17 Luís Inácio Maranhão Filho, membro do Comitê Central do PCB, foi assassinado pela ditadura militar na década de 1970, durante o governo Geisel, quando se intensificou a repressão contra o Partido. 18 Segundo depoimentos de Antônio Augusto Almeida e de José Anísio Maia ao autor.
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Mais ainda, José Anísio Maia19 se queixou por, ao colocar os seus militantes em condição de semiclandestinidade, o PCB ter acabado por facilitar o trabalho da reação quando do golpe militar. Além do mais, defendendo a linha pacífica e a estratégia de participar da institucionalidade, segue José Anísio Maia, o partido teria deixado as suas próprias bases impossibilitadas de esboçar qualquer reação mais efetiva ao golpe. Tudo isto como produto de uma leitura errada da conjuntura política nacional. “Foi um desastre isso, porque a rea lidade foi outra, completamente outra. [...] o que a gente tinha, nas nossas conversas sobre a possibilidade de um golpe é que a gente supunha que houvesse uma reação do governo. É natural, a gente tinha contato com a massa. Mas não houve”.20 Da nossa parte, não parece demais lembrar que a política traçada pelo PCB para a resistência à ditadura, no seu VI Congresso de 1967, baseada na criação de uma frente única democrática e de massas, foi a principal responsável pela efetiva derrota dos militares, tendo influenciado diretamente as campanhas pela anistia, em 1979, e pelas eleições diretas para presidente da República, em 1984. Esta breve reconstrução histórica de parte da atuação política dos comunistas na Paraíba das décadas de 1940, 1950 e 1960, ao nosso juízo, serve de subsídio para nossa caracterização inicial do PCB como o primeiro partido de massas da esquerda brasileira. Um partido que, mesmo em um estado pequeno e de tradição oligárquica como a Paraíba daquele momento, assumiu um papel definidor na agitação social, cultural e política do momento histórico no qual estava inserido. Sem dúvidas, não há como se falar da História do Brasil sem se falar do PCB.
19 José Anísio Maia, no final dos anos 1970, incorporou-se à dissidência aberta por Luis Carlos Prestes no PCB, sendo um dos principais dirigentes do chamado grupo “prestista” na Paraíba na década de 1980. De alguma maneira, sua leitura da posição do PCB nos anos 1960 reflete o radicalismo dos “prestistas” dos anos 1980, com sua descrença com a luta “institucional”. 20 José Anísio Maia em depoimento ao autor. Rodrigo Freire de Carvalho e Silva
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O papel de lideranças atuais do PT na transição para o pluripartidarismo (1978-1980)
Marcos Evandro Cardoso Santi Introdução A importância dos quadros do Partido dos Trabalhadores do Rio Grande do Sul (PT-RS), no governo federal ou na estrutura partidária nacional, durante os dois mandados presidenciais de Lula, pode ser simbolizada e personificada em pelo menos quatro nomes: Dilma Rousseff, a ministra-chefe da Casa Civil da Presidência, provável candidata do PT à sucessão de Lula; Tarso Genro, ministro da Justiça e virtual candidato ao governo do RS; Raul Pont, deputado estadual, que concorreu a presidente nacional do PT em 2001 e 2005, agrupando setores à esquerda da legenda; e Olívio Dutra, o principal líder sindical gaúcho quando da fundação do partido, primeiro governador petista gaúcho e ex-ministro das Cidades. Essas lideranças e as correntes políticas das quais participavam assumiram posições divergentes no final da década de 1970, quando a esquerda se defrontou com diferentes alternativas na transição do bipartidarismo para o pluripartidarismo moderado, restabelecido sob a tutela dos militares. Analisar aquele momento histórico e o papel dessas lideranças é um exercício repleto de significação na atualidade, pois a fase de transição para o pluripartidarismo foi crucial para a construção de bases sólidas, que, ao menos em parte, são relevantes para explicar trajetórias e resultados posteriores. Como este breve texto limitar-se-á à fase de transição para o pluripartidarismo (1978-1980), somente serão abordados fatos posteriores relacionados a mudanças de rumo partidário desses líderes ou para pontuar aspectos relevantes da trajetória dos partidos em que atuaram.
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1. A esquerda no MDB: de olho na reorganização partidária A plebiscitária eleição de 1974, na qual a Aliança Renovadora Nacional (Arena) perdeu o pleito para o Senado em dezesseis dos vinte e dois estados, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) ainda elegeu 44% dos deputados federais, representou um passo decisivo para consolidar e ampliar a atuação das esquerdas nas fileiras do MDB. No RS, à exceção da corrente trotskista “Liberdade e Luta – Libelu”, todos os demais setores da esquerda – tendo em vista a notória natureza de “frente política” da agremiação no estado – atuaram no MDB até a sua extinção, em 1979. Sob a presidência estadual de Pedro Simon, dois órgãos partidários tornaram-se cruciais para a atuação da esquerda no MDB: o Instituto de Estudos Políticos, Econômicos e Sociais – Iepes, especialmente em 1975, e o Setor Jovem, organizado com direção estadual e funcionamento nos principais municípios. A presença da esquerda no MDB fomentou o debate sobre o pluripartidarismo, pois muitos segmento s desejavam e trabalhavam para superar a fase da “frente das oposições” do MDB e alcançar um quadro partidário condizente com programas político-ideológicos mais nítidos e definidos. Assim, ao longo da segunda metade dos anos 1970, o tema reorganização partidária gerou divergências entre os três principais setores da esquerda do MDB: 1) a chamada “esquerda tradicional” – PCB, PCdoB, MR-8; 2) a esquerda trabalhista; 3) a esquerda crítica ao trabalhismo e à esquerda tradicional, que almejava a construção de uma agremiação socialista.
2. A chamada “esquerda tradicional” Para as duas principais organizações da esquerda tradicional, o PCB e o PCdoB, a legalização não era propósito imediato – e somente viria a ocorrer após o fim do regime militar – e a discussão do pluripartidarismo era considerada um equívoco, pois provocaria a dispersão das forças oposicionistas, ao dividir o MDB. Nessa postura revelava-se o receio de retrocessos ditatoriais e, também, o temor de exposição dos militantes comunistas, que ao menos até 1976 sofreram grande perseguição.
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XI. Resgatando a história
Somente depois de concluído o processo constituinte, o PCB e o PCdoB passaram a lançar seus candidatos sob as próprias legendas; ainda em 1986, os candidatos comunistas concorreram pelo PMDB. Além do PCB e do PCdoB, outros setores de esquerda também se colocaram contra a saída do MDB. André Foster, presidente do Iepes, liderou a criação de uma tendência denominada “Oposições Populares”, “formada por jovens lideranças e intelectuais com posições ligadas ao marxismo e que faziam uma ‘leitura crítica do trabalhismo’, qualificando-o de ‘populista’” (GRILL, 2005, p. 546). Essa tendência, além de crítica ao trabalhismo, também se opunha ao setor mais à esquerda do MDB, que em 1978 organizara a “Tendência Socialista” (item 4). Segundo GRILL (p. 546), Tarso Genro e seu irmão, Adelmo Genro Filho, então vereador em Santa Maria, integraram a tendência “Organizações Populares”. A tendência optou pela filiação ao PMDB, quando consumado o fim do bipartidarismo. André Foster e o MR-8, diferentemente dos comunistas, nunca saíram da legenda, tendo Foster sido seu presidente estadual na década de 1990. Tarso e Adelmo, porém, adotaram caminhos políticos diferentes, tendo uma passagem curta pelo PMDB (item 5).
3. A esquerda trabalhista Leonel Brizola, depois do falecimento de Jango em dezembro de 1976, assumiu a posição de grande herdeiro do trabalhismo brasileiro. Considerado um dos líderes da chamada “esquerda radical” no período pré-1964, durante o exílio aproximou-se de setores da esquerda revolucionária (ROLLEMBERG, 2007, p. 60). Por outro lado, na década de 1970, antes de retornar ao Brasil, Brizola aproximou-se da social-democracia europeia, integrada então por lideranças como Willy Brandt e Mário Soares, e, também, do socialista François Miterrand. A conjugação desses fatores – a liderança na esquerda trabalhista, a aproximação com a esquerda que aderiu à luta armada e, depois, com a social-democracia – significavam para segmentos da esquerda gaúcha (e também nacional) que caberia a Brizola o papel de principal líder para uma alternativa socialista ou socializante, ao menos, no país.
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Ao regressar, com a anistia de 1979, Brizola defendeu imediatamente a recriação do PTB, argumentando que no Brasil não havia existido oposição ao regime militar. Por manobras atribuídas ao general Golbery, a sigla PTB foi concedida pela Justiça Eleitoral ao grupo liderado por Ivete Vargas. Em resposta, Brizola fundou, em 1980, o PDT, cuja orientação ideológica ele mesmo definiu como sendo um “socialismo moreno”, ou seja, um socialismo adaptado às peculiaridades brasileiras. Em virtude dessa expectativa socialista, a refundação do PTB (depois PDT) contou com a adesão de lideranças do setor jovem do MDB, como Marcos Klassmann e Carlos Alberto Tejera de Ré e de Miguel Bodea, ex-dirigente do Iepes. Contudo, a principal liderança de esquerda a se aliar a Brizola foi Carlos Franklin Araújo, importante advogado trabalhista e exmilitante de organizações que participaram da luta armada. No PDT, Araújo foi deputado estadual e líder da bancada na Assembleia do RS. A companheira de Carlos Araújo, Dilma Rousseff, que também fora militante na luta armada, chegou ao estado nos anos 1970 e, mesmo “não sendo da terra”, destacou-se na construção do projeto trabalhista. Considerada um quadro político que preenchia o requisito da qualificação técnica, viria a exercer o cargo de secretária estadual das Minas e Energia no governo Alceu Collares (1991-94), o mesmo que tornaria a ocupar na composição realizada entre o PT e o PDT no governo Olívio Dutra (1999-2002).
4. A esquerda socialista e as novas lideranças sindicais Alguns segmentos mais radicais do MDB – críticos do trabalhismo e dos partidos comunistas –, como as correntes trotskistas, setores progressistas da Igreja Católica e socialistas em geral, inclusive ex-militantes da esquerda tradicional, passaram a defender, a partir de 1977, a necessidade de se diferenciarem das demais alas do MDB. Desse modo, numa experiência pioneira, começou a se esboçar a criação da Tendência Socialista (TS) do MDB do RS, que ficou limitada ao âmbito estadual. Raul Pont foi um de seus idealizadores. A Convergência Socialista (CS), por sua vez, embora atuasse no MDB, não aderiu à TS. Entre 1978 e 1979, a TS interagiu com lideranças nacionais que também cogitavam criar um novo partido, como Fernando Henrique Cardoso e Almino Afonso. O principal experimento eleitoral, em Marcos Evandro Cardoso Santi
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XI. Resgatando a história
1978, com vistas à criação de um partido socialista, foi exatamente a candidatura ao Senado, pelo MDB de São Paulo, de Fernando Henrique (FH), que contou com o apoio de uma frente de esquerda, com destaque para os líderes sindicais emergentes, como Lula. FH obteve aproximadamente um milhão de votos e se tornou o primeiro suplente de Franco Montoro. Após o relativo sucesso dessa candidatura, parte expressiva dos que a apoiaram passou a trabalhar mais concretamente a ideia de criação de um novo partido. E nesse conjunto de forças crescia a importância do grupo do chamado novo sindicalismo, liderado por Lula e que tinha, no RS, Olívio Dutra, presidente do sindicato dos bancários, como principal expoente, ao lado de nomes como Paulo Paim e Clóvis Ilgenfritz. Depois das greves de 1978, o novo sindicalismo tomou grande impulso e suas lideranças demonstraram claramente o interesse em também atuar na luta política, não se restringindo, portanto, ao campo sindical. A ação das lideranças sindicais, com o apoio de correntes da esquerda, evoluiu para a proposta da construção de um partido dos trabalhadores. Dessa discussão participaram também os principais defensores de um partido socialista ou socializante. A partir do Encontro do PT de São Paulo de 18 de agosto de 1979, no qual FH e Almino foram incluídos em uma comissão destinada a elaborar uma plataforma comum, “ficou evidente a predominância da ideia de autonomia do Partido dos Trabalhadores com relação à presença dos parlamentares” (MENEGUELLO, 1989, p. 62). Dessa ideia divergiram os dois políticos, que se retiraram do processo de formação do PT. No RS, a TS acompanhou esses passos e apoiou a proposta de que o novo partido de caráter socialista a ser criado seria um partido dos trabalhadores, o que fez com que a corrente, juntamente com outros grupos de esquerda, aderisse ao Movimento pró-PT, no início de 1979. As organizações de esquerda, todavia, sofreram objeções por parte dos sindicalistas. Sobre essa controvérsia, há poucos anos Olívio Dutra esclareceu seu ponto de vista: “Nós, sindicalistas, defendíamos que o PT não era uma passagem, um berçário para forças se acomodarem ali e depois irem formando outros partidos” (LOREA, 2006). Os líderes sindicais, conforme as palavras de Olívio, por conhecerem a “concepção de frente” que as correntes de esquerda atribuíam ao MDB, temiam que isso viesse a se repetir no PT. A Democracia Socialista (DS), liderada por Raul Pont, antes de ser formalizada como tendência do PT, constituiu-se entre 1979 e 160
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1980 numa organização de postulados revolucionários (ANGELO, 2008). Assim, sua concepção – como a de outras organizações – era a de que o PT deveria ser uma frente (como fora o MDB), e não propriamente um partido. Não obstante as diferenças, confluíram as lideranças sindicais e as organizações de esquerda para a criação, em fevereiro de 1980, de um partido originalmente de natureza anticapitalista, cujo propósito maior era denunciar os sacrifícios impostos aos trabalhadores pelo modo de produção capitalista. Este foi o ponto de convergência ideológica dos diversos segmentos: diagnosticada a exploração capitalista, o PT propunha-se a ser o instrumento político da classe trabalhadora, resultado dos esforços iniciais da organização sindical, mas que eram consideradas insuficientes para a plena inserção da classe na luta pelo poder político. Exemplo dessa convergência de posições, a primeira chapa do PT às eleições majoritárias do RS, em 1982, teve como candidatos a governador e senador, respectivamente, Olívio Dutra e Raul Pont. Depois, Olívio tornou-se o primeiro petista eleito para a prefeitura de Porto Alegre (1988) e para o governo do Rio Grande do Sul (1998). Raul Pont, entre outros mandatos eletivos, foi escolhido em 1996 o prefeito da capital.
5. Entre o PMDB e o PT No item 2 já foi mencionado que os irmãos Tarso e Adelmo Genro Fo integraram, no final da década de 1970, a tendência “Oposições Populares”. Tarso Genro fora vereador pelo MDB em Santa Maria, em 1968. Integrou, posteriormente, a Ala Vermelha do PCdoB e, depois de um período de exílio no Uruguai, mudou-se para Porto Alegre, tornandose um atuante advogado trabalhista (GRILL, 2005, p. 547), inclusive do sindicato dos bancários, quando Olívio Dutra era o presidente. Adelmo Genro Fo foi eleito vereador pelo MDB em 1976, também em Santa Maria. Ambos, juntamente com o primo Daniel Herz (depois presidente da Federação Nacional dos Jornalistas – Fenaj), fundaram e dirigiram o jornal alternativo gaúcho Informação. Tarso e Adelmo também atuaram no Partido Revolucionário Comunista (PRC), organização que, no início da década de 1980, ainda se dividia entre o PT e o PMDB. No RS, Tarso e Adelmo Fo, juntamente com o pai deles, Adelmo Genro, ex-militante do PTB, filiaram-se ao
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PMDB. Enquanto isso, em São Paulo, José Genoino, outro importante dirigente do PRC, elegeu-se deputado federal pelo PT, em 1982. Em 1984, por discordar da participação na eleição presidencial no colégio eleitoral, o PRC rompeu com o PMDB e os militantes que ainda não eram filiados ao PT trataram de ingressar no Partido. Adelmo Genro e Adelmo Genro Fo, entretanto, filiaram-se ao PSB, tendo o primeiro, inclusive, sido presidente de honra do Partido no estado. No PT, Tarso elegeu-se prefeito de Porto Alegre em duas oportunidades: 1992 e 2000.
6. Os ajustes no meio do caminho As primeiras eleições sob o pluripartidarismo moderado, realizadas em 1982, frustraram as expectativas dos dois partidos mais à esquerda: o PT elegeu apenas oito deputados federais, com uma votação concentrada em São Paulo, e o PDT teve como resultado mais expressivo a eleição de Leonel Brizola para o governo do Estado do Rio de Janeiro. Ambos os partidos foram bastante prejudicados pelo “voto vinculado”, regra que impedia que, para os diversos cargos em disputa, fossem escolhidos candidatos de diferentes agremiações. Com isso, no campo da oposição, o PMDB foi a única agremiação com resultados nacionais expressivos, tendo eleito nove governadores. Numa perspectiva de prazo mais longo, porém, o PDT e o PT, ao se anteciparem às demais agremiações de esquerda, construíram caminhos consistentes para chegarem ao final dos anos 1980 em condições de disputar a hegemonia da esquerda e da centro-esquerda, o que ficou evidente na primeira eleição presidencial, em 1989. Na sequência cronológica, deve-se recordar, que, na esquerda, a decisão do PMDB de lançar Tancredo candidato a presidente no colégio eleitoral teve importante repercussão nos destinos do PRC. A organização da qual Tarso Genro era um dos líderes nacionais decidiu atuar exclusivamente no PT. A vitória de Tancredo e a posse de Sarney na Presidência iniciaram uma etapa de mudanças no PMDB, que, ao receber grande número de ex-a poiadores da ditadura, passou a rumar para a direita. Com isso e considerando-se o contexto de redemocratização, o PCB e o PCdoB voltaram à legalidade, embora tenham disputado as eleições de 1986 ainda sob a legenda do PMDB. O PSB também foi reconstruíd o e disputou as eleições constituintes já como legenda autônoma. 162
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A década reservou, ainda, um momento decisivo para as duas agremiações criadas em 1980, PT e PDT. Ao liderar uma frente de esquerda, integrada também pelo PSB e PCdoB, o PT colocou Lula no segundo turno das eleições presidenciais, superando Leonel Brizola. A partir desse resultado, o PT consolidou sua posição de maior partido de esquerda, deixando o PDT em segundo plano. Simbolicamente, essa posição consolidou-se em 1998, quando Brizola aceitou ser candidato a vice-presidente na chapa de Lula. Também em 1998, o PDT apoiou, no segundo turno, a candidatura vitoriosa de Olívio Dutra ao governo gaúcho. A aliança PT-PDT no RS não durou um ano de governo. No final de 1999, o PDT decidiu se desligar do governo Olívio; a direção do PDT determinou que seus quadros deixassem os cargos, o que levou a um racha expressivo: permaneceram no governo e decidiram filiar-se ao PT lideranças pedetistas como Sereno Chaise e, da esquerda trabalhista, Dilma Rousseff, Milton Zuanazzi e Marcos Klassmann. Em 2002, Lula, finalmente, foi eleito presidente da República, com o apoio do PDT no segundo turno (no primeiro turno, o PDT apoiara Ciro Gomes, então no Partido Popular Socialista – PPS). No RS, entretanto, as duas agremiações não se reconciliaram, e, com os votos pedetistas, Germano Rigotto, do PMDB, derrotou Tarso Genro, o candidato petista à sucessão de Olívio. Ao não repetir a vitória de 1998 para o governo gaúcho, os principais quadros da administração Olívio Dutra – quase todos eles também experimentados na gestão da prefeitura de Porto Alegre, desde 1989 – ficaram disponíveis para integrar o governo Lula, o que acabou ocorrendo: Olívio, Tarso, Dilma Rousseff e Miguel Rossetto participaram do escalão ministerial do governo Lula. Raul Pont elegeu-se deputado estadual.
Conclusão A análise, ainda que panorâmica, das correntes de esquerda do RS na segunda metade dos anos 1970 permite identificar uma variedade expressiva de posições. Há cerca de trinta anos, essas diversas correntes acumulavam forças em um contexto favorável de reorganização dos movimentos sociais e lançavam sementes para a consolidação de seus espaços no cenário político gaúcho e nacional. Esse simples fato, de que há trinta anos essas tendências já estavam se estruturando e influenciando na reorganização do sistema partidário brasileiro, é um ponto essencial a ser destacado para se
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compreender o sucesso desse conjunto de tendências e de suas mais expressivas lideranças. Evidentemente, um ponto de partida, localizado nos anos 1970, não é suficiente para explicar toda uma trajetória de mais de trinta anos. Mas, se na origem dos novos partidos, algumas correntes e suas lideranças já plantavam sólidas ideias e conseguiam em torno delas organizar uma nova geração de militantes, isso certamente significou um ponto de partida de grande valor, fazendo antever um futuro promissor. Outro aspecto importantíssimo a salientar é que a agregação da esquerda no MDB foi, aos poucos, sendo retomada no PT, embora em bases político-ideológicas mais definidas. Após um momento inicial em que os setores estudados dividiram-se entre a permanência no PMDB e a adesão aos novos partidos, PT e PDT, foi no PT que grande parte da esquerda gaúcha se reencontrou. Dos grupos e nomes estudados que trocaram de legenda, o PRC e Tarso Genro foram os primeiros; parte expressiva da esquerda trabalhista aderiu ao PT após quase duas décadas de existência dos dois partidos, quando, no final de 1999, os pedetistas que integravam o primeiro escalão do governo Olívio, como a secretária de Minas e Energia, Dilma Rousseff, decidiram romper com o PDT. Em síntese, portanto, uma longa trajetória de atuação conjunta desses setores, primeiro no MDB, depois em torno do PT – em que foi possível administrar Porto Alegre por 16 anos consecutivos e o estado no período 1999-2002 –, serviu para construir posições e lideranças respeitáveis. Por fim, deve-se assinalar que, a partir de uma paradoxal coincidência, a derrota nas eleições estaduais e a vitória de Lula em 2002, abriu-se o caminho para a ascensão nacional de líderes do PT-RS: o amargo da derrota local acabou contribuindo decisivamente para que o PT-RS ocupasse espaços relevantes no governo federal, o que não teria ocorrido, ao menos na amplitude verificada, se o PT-RS, em 2003, tivesse que reter seus quadros para administrar o estado por mais quatro anos.Na sequência, o envolvimento com o episódio conhecido como “mensalão“por parte de lideranças do grupo paulista – hegemônico no PT –, como José Dirceu, Antônio Palocci e José Genoino, tomou ainda maior o espaço ocupado pelos petistas.
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XII. Mem贸ria
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Autores Claudio de Oliveira Jornalista e cartunista
Rubens Bueno
Professor, ex-deputado estadual em dois mandatos, ex-secretário estadual do Trabalho e Ação Social, ex-deputado federal em dois mandatos, ex-prefeito de Campo Mourão, e atual secretário-geral do PPS
Fábio Campana
Jornalista paranaense, colunista político, comentarista de rádio, ex-secretário de Estado da Comunicação Social e ex-secretário da Prefeitura de Curitiba, autor de livros como Restos Mortais (1978), O último dia de Cabeza de Vaca (2005), Ai (2007) e outros
Marco Aurélio Nogueira
Professor de Teoria Política da Unesp, autor dos livros Em defesa da política e Um Estado para a sociedade civil. Email: m.a.nogueira@globo.com
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Há 20 anos, um brasileiro na Revolução de Veludo
Cláudio de Oliveira
C
heguei a Praga em de setembro de 1989 para estudar na Escola Superior de Artes Industriais. Juntamente comigo, outro brasileiro, o estudante Marcelo Paim, que buscava uma vaga na Academia de Música e Artes Dramáticas. Assim que chegamos, resolvemos passear pelo centro da cidade e conhecer o Castelo de Praga. Conosco, os colegas de residência universitária, o estudante húngaro Zoltan Horvath e o português Gonçalo Ribeiro. No caminho, nos deparamos com duas cenas: uma rua interditada com cerca de 3 mil pessoas a pedir asilo em frente à embaixada dos Estados Unidos. No quarteirão seguinte, outro tanto de jovens alemães orientais acampava nos jardins da embaixada da Alemanha Ocidental, com o propósito de migrar para aquele país. Foi no Instituto de Línguas e Preparação Profissional da Universidade Carlos que lemos, no início de novembro, um panfleto da Coordenação dos Estudantes Universitários afixada no portão. Em um impresso mimeografado, a não oficial organização estudantil convocava para a passeata em comemoração aos 50 anos do Dia Internacional dos Estudantes, promovida pela oficial União da Juventude Socialista. Na manhã do dia 17 de novembro de 1939, tropas nazistas fuzilaram dez estudantes e dissolveram as escolas de ensino superior em represália aos protestos contra a então ocupação da Tchecoslováquia pela Alemanha. As professoras do centro de línguas recomendaram que nós, estudantes estrangeiros, não participásse167
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XII. Memória
mos da passeata. Havia muito medo e as imagens da repressão aos manifestantes da Praça da Paz Celestial em Pequim, na China, ainda em junho daquele ano, estavam na cabeça de todos.
17 de novembro de 1989 O local de concentração da passeata estava marcado para a Faculdade de Ciências Naturais, exatamente em frente ao Instituto de Línguas, no bairro de Albertov. Decidimos eu e o outro estudante brasileiro acompanhar a manifestação, afinal tínhamos participado ativamente do movimento estudantil e da campanha das Diretas no Brasil. No final da tarde do dia 17, grupos de estudantes começaram a surgir de diferentes direções, portando faixas e cartazes, todos eles com reivindicações de cunho democrático, como “Pluralita”(pluralismo), “Svoboda”(liberdade). Duas faixas em especial chamaram nossa atenção. Uma delas pela ironia: “Soviestký Svaz naš výzor” (União Soviética, nosso exemplo), numa alusão aos muitos cartazes do regime implantado nos pós-guerra e uma crítica velada à direção do PC tcheco, dominada pela linha-dura contrária às reformas democratizantes empreendidas pelo líder soviético Mikhail Gorbatchev. Uma outra, pedia o fim do goveno do partido único. Oficialmente, o país era governado desde 1945 pela Frente Nacional, constituída pelo Partido Comunista, o Social-Democrata, o Socialista, o Popular e o Democrático, da Eslováquia. O PC se tornou majoritário nas eleições de 1948, quando então os social-democratas são obrigados a se fundirem com os comunistas. Os social-democratas contrários à união vão para o exílio ou serão fuzilados nos anos 50. E mesmo comunistas serão eliminados: em 1952, 11 membros do Comitê Central do PC tcheco, inclusive o seu secretário-geral, Rudolf Slánský, foram fuzilados por discordarem do líder soviético Josef Stálin. Pelos relatos dos tchecos, os outros partidos se tornaram meros fantoches do PC. E não só: o parlamento, os sindicatos e todas as organizações sociais tornaram-se instrumentos de poder do PC, contrariando a promessa marxista de que no socialismo o Estado se dissolveria na sociedade. Aconteceu que o Estado-partido açambarcou a sociedade, abrindo a porta para o autoritarismo. Um alerta da história para nós, da América Latina, de instituições democráticas frágeis.
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Há 20 anos, um brasileiro na Revolução de Veludo
Inicia-se a Revolução de Veludo Era noite de uma sexta-feira do frio inverno de Praga. A temperatura caía abaixo de zero. Eu e o outro brasileiro, sem entender o que era dito nos discursos, resolvemos não acompanhar a passeata. Terminada a concentração, voltamos para o alojamento estudantil no subúrbio de Praga. Outro estudante que estava conosco, o português Pedro Penilo, da Academia de Artes Plásticas de Praga, decidiu seguir a manifestação. Foi através dele, na manhã seguinte, que soubemos de detalhes do incidente que acontecera entre a polícia e os manifestantes na Avenida Nacional, próximo ao Teatro Nacional, e que a TV oficial noticiara muito superficialmente. Pelo relato do colega português, alguns estudantes levaram cassetadas da polícia, sem ferimentos graves ou mortes, apesar dos boatos. Mas o incidente foi o suficiente para explodir o descontentamento dos tchecos com o regime. Naquele sábado, os estudantes convocam greve geral em todas as escolas de ensino superior no país. Do sábado para o domingo, artistas e intelectuais, liderados pelo dramaturgo e dissidente Vaclav Havel, lançam o Fórum Cívico, uma frente ampla de oposição que reunia liberais, social-democratas, comunistas reformistas e personalidades interessadas na democratização do país. Na segunda-feira começam as gigantescas manifestações no centro de Praga, na Praça de São Venceslau. Assistimos várias delas. Na sexta-feira, dia 24, observávamos os tchecos chegarem ao milhares ao pé da estátua de São Venceslau, em frente ao Museu Nacional. Estávamos acompanhados do português Pedro e de duas colegas do Instituto de Línguas, as estudantes finlandesas Annika Pertilla e Pauliina Saya. Fazia muito frio e resolvemos nos esquentar no Café Praga. Enquanto tomávamos nosso café e conversávamos sobre a situação, de repente, todos os funcionário do café correram para o balcão do prédio. Pensamos de imediato tratarse de repressão aos manifestantes. Corremos para o balcão. Uma garçonete nos explicou que os alto-falantes anunciaram a presença do líder da Primavera de Praga de 1968, Alexander Dubček, que falaria em público pela primeira vez em quase 20 anos. Pagamos a conta e descemos para ouvir o discurso. De suas palavras em eslovaco, só entendi as duas primeiras: “vazení priatélia”, ou queridos amigos. Mas, leríamos nos jornais que Dubček anunciara seu apoio aos manifestantes, pedia que as autoridades comunistas dialogassem com a oposição e exortava os tchecos a se manifestarem pacificamente. Cerca de 10 dias de vigorosos protestos foram suficientes para derrubar 40 anos de “socialismo real”. O então presidente Gustav Cláudio de Oliveira
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XII. Memória
Husák renuncia em favor de Vaclav Havel. Um governo de transição foi formado e foram convocadas eleições livres para julho do ano seguinte. Nelas, Havel é reeleito, o Fórum Cívico obtém 50% dos votos e o PC fica em segundo, com 14%. O parlamento escolhe o ultraliberal Vaclav Klaus para primeiro-ministro. Admirador da exprimeira-ministra britânica Margareth Tatcher, Klaus defende uma privatização radical.
A transição O primeiro ano da Revolução de Veludo é comemorada na Praça de São Venceslau com a presença do presidente Vaclav Havel e do presidente dos Estados Unidos, George Bush, o pai. A comemoração recebeu uma multidão com bandeiras de ambos os países. Eram dias de muitas esperanças. E muitas ilusões. O verbo do momento era “podnikát”, isto é, fazer negócios. Todos queriam ser “podníkatel”, empresário, e abrir sua “soukromy podník”, empresa privada. Achavam que todos agora ficariam ricos. Naturalmente, as coisas não seriam tão fáceis e simples assim. O primeiro-ministro Vaclav Klaus cria os cupons de privatização, espécie de ação popular das empresas estatais, comprados pelos tchecos e aplicados em fundos de investimentos. Um deles, com propaganda na TV, o Boston, deu cano nos investidores e desapareceu com os cupons. Um dos líderes do Partido Social-Democrata, o economista e excomunista reformista Valtr Komárek, defensor de uma transição moderada para a economia de mercado, alertava não só para uma possível onda de desemprego com a privatização radical, como especialmente para uma questão estratégica para o país. Lembrava que os empresários tchecos haviam sido expropriados pelos comunistas a partir de 1948 e mesmo que o parlamento tivesse aprovada a lei de restituição dos bens, os herdeiros não tinham capital suficiente para investir numa necessária modernização tecnológica do parque industrial. O país poderia ser totalmente entregue ao capital estrangeiro. Mas a maioria dos tchecos, naquele momento, dava razão ao primeiro-ministro Klaus. Ouvi de muito deles que o desemprego seria positivo, pois obrigaria os trabalhadores a aprender a trabalhar, uma vez que teriam “desaprendido” durante o comunismo. Compartilhei com os tchecos as agruras de viver numa economia em que até a cervejaria da esquina era estatal. Tinha dificuldades de comprar material de desenho nas duas únicas lojas da cidade. Todas elas fechavam do meio-dia até às 14 horas, o “polední přestavka”, o intervalo da tarde. Às sexta-feiras, quando conseguia sair mais cedo 170
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da escola, as lojas estavam quase sempre fechadas por “technické důvody”, ou motivos técnicos. Os meus colegas tchecos diziam que, na verdade, os funcionários das lojas cedo se mandavam para as suas pequenas casas de campo. A lei de restituição dos bens casou polêmica, especialmente porque ela retroagiu até 1945, quando o presidente social-democrata Edvard Beneš nacionalizou os bens de todos aqueles que colaboraram com o nazismo. Por emenda do Partido Democrata-Cristão, a Igreja Católica teve suas terras de volta. Historiadores contestaram a legitimidade da Igreja sobre as terras, uma vez que elas foram confiscadas no início do século XVII, quando nobres tchecos protestantes se levantaram contra a dominação do Império Austro-Húngaro. A monarquia católica dos Habsburgo doou então as terra à Igreja. À exceção de alguns historiadores e intelectuais, não houve maiores protestos.
União Europeia Quando deixei o país, em julho de 1992, tive a impressão que o entusiasmo inicial dos tchecos por um capitalismo liberal ao estilo norte-americano começava a arrefecer. Afora alguns poucos, os tchecos não demonstravam então saudades do comunismo. Pareceu que muitos deles voltavam seus olhos agora para uma economia de mercado regulada no estilo da Europa ocidental, defendida especialmente pela social-democracia. Nas segundas eleições livres, realizadas naquele mês, o PC continuou com 14% dos votos. O partido do primeiro-ministro Klaus, agora chamado de Partido Democrático Cívico, teve sua votação reduzida para menos de 30%. O Partido Social-Democrata, que na primeira eleição não conseguiu ultrapassar a cláusula de barreira de 5%, conseguiu então 6,5% dos votos. Nas eleições seguintes, de 1996, a social-democracia tornou-se a segunda força política do país, com 26%. Em 1998, o partido formou o governo ao vencer o pleito com 32%. Em 2002, continuou em primeiro com 30,2%, o Partido Democrático Cívico em segundo com 24%. O PC salta de 11% em 1998 para 18,5% em 2002. Nas eleições de 2006, o Partido Democrático Cívico voltou ao poder com 35,38%. Os social-democratas ficaram em segundo com 32,2% e o PC recuou para 12,8%. Enfim, o país não ficou imune à onda chamada de neoliberal que correu o mundo. Hoje, Vaclav Klaus é o presidente da República Tcheca e, apesar de eurocético, teve de assinar a adesão do país ao Tratado de Lisboa que cria a figura do presidente da União Europeia e reforma suas Cláudio de Oliveira
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instituições políticas. Talvez não só a pressão dos demais parceiros europeus tenha pesado na decisão do presidente. Os institutos de opinião colocam os social-democratas, pró-Europa, em primeiro lugar com cerca de 33% da preferência dos eleitores, enquanto o partido do presidente fica em torno dos 27%.
Desencanto Há 20 anos, na época da Revolução de Veludo, a situação da Tchecoslováquia era das melhores entre os países do Leste. Não havia problemas de abastecimento, apesar da pouca variedade de produtos. O país tinha uma boa base industrial, apesar de obsoleta e dizia-se que 90% da população possuíam segundo grau completo. Conversando com o pai de um colega de turma, ele me dizia que o padrão dos tchecos em 1968 era comparável ao dos suecos. Com a estagnação dos anos 70 e 80, houve um empobrecimento igualitário da população. Um socialismo da pobreza. E hoje, como vivem os tchecos? Suas vidas melhoraram? O país progrediu? Consultei relatório do FMI sobre a evolução do PIB da República Tcheca. Percebe-se que, com a abertura do país, sua economia internacionalizou-se e a deixou mais vulnerável aos humores da economia internacional. O país tem dependido do capital externo para financiar seu desenvolvimento. Uma situação bem conhecida por nós, brasileiros. Note-se a queda do PIB nas crises do final dos anos 90, a recuperação durante o boom da economia global a partir de 2003 e a situação na presente crise, com uma estimativa de -4,3%. Observemos os números: Anos 1990 (em %)
Anos 2000 (em %)
1993: 0.569
2000: 3.648
1994: 3.208
2001: 2.456
1995: 6.355
2002: 1.897
1996: 4.027
2003: 3.602
1997: -0.731
2004: 4.485
1998: -0.759
2005: 6.316
1999: 1.340
2006: 6.808 2007: 6.131 2008: 2.697 2009: -4.319
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Há 20 anos, um brasileiro na Revolução de Veludo
Ainda segundo relatório do FMI, o desemprego estava em 4,8% no início da década de 90 e chega a 8,7% em 1999. Em 2008 ele cai para 4,39%, mas as estimativas para 2009 e 2010 não são boas: 7,9% e 9,8% respectivamente. Conversei com alguns tchecos sobre o presente. Alguns, principalmente que aqueles que vivem em Praga, acham que o país deu um salto e que melhorou de vida. Outros acham, como uma conhecida que mora no interior do país, que a situação não mudou muito, continua com a dura vida de sempre. Mas, em todos eles, um traço comum: um desencanto com a política, sacudida por diversos escândalos de corrupção. Parece que também se repete na República Tcheca o fenômeno de um “apartheid” entre o mundo político e os cidadãos. Talvez a questão ambiental com a presente crise do clima seja ainda uma causa capaz de mobilizar os tchecos.
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Um homem insubstituível Rubens Bueno Menor que o meu sonho não posso ser Lindolfo Bell
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uito se lamentou a morte de Luiz Felipe Haj Mussi. Muitas também foram as homenagens. Mas é o passar dos dias que nos revela o tremendo vácuo, a enorme falta que ele está fazendo. E o pior, a triste falta que fará, dia após dia, a todos os que tiveram o privilégio de conviver com sua gentileza e generosidade e puderam contar com seu aconselhamento e amizade. Tenho certeza que falo por muitos. Dono de um saber na área do Direito como poucos já dominaram, Mussi dedicou grande parte de seu tempo a formar políticos conscientes de seu papel e da ética da qual não poderiam jamais afastarse um milímetro que fosse. Sem nada exigir, chegou a viajar por estradas muitas vezes ruins e perigosas para dar palestras no interior do Paraná, onde quer que o PPS precisasse dele para fazer cursos de Formação Política. Simplesmente porque ele considerava importante o contato, por menor que fosse, da prática política das regiões mais afastadas com o debate dos compromissos que os representantes precisam assumir. Ele acreditava na semente. Da mesma forma adentrou às universidades em todo o estado para defender o parlamentarismo em memoráveis debates com estudantes e professores, em 1993. Mesmo sem ter pretensões políticas como costuma considerar-se hoje, dr. Mussi doou um tempo precioso de sua vida a redigir a reforma do Estatuto, o Código de Ética e o Regimento Interno do PPS. A cada congresso nacional do partido que se aproximava, coordenava uma comissão para rever e alterar itens do estatuto, para adequar o partido aos novos tempos, propostas que seriam submetidas ao plenário do congresso. É que Luiz Felipe Haj Mussi fazia política de verdade. E acreditava nisso. Poderia dizer-se que ele trabalhava nos bastidores se essa palavra não estivesse tão desgastada, com sentido até pejorativo. Seria como, no cinema, alguém que trabalhe atrás das câmeras. 174
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Um homem insubstituível
Há muito que se fazer, que avaliar, discutir, aprofundar para que decisões sejam tomadas com segurança, para que sejam seguidas com consciência. Pois o dr. Mussi, desembargador aposentado, muito ligado à família, que fazia questão de ter sempre por perto, ainda conseguia dedicar tempo a discussões partidárias, a análise de assuntos os mais variados para que o PPS sempre encontrasse um norte, o norte claro, correto, coerente, ético e transparente como sempre defendeu. E nunca perdeu a capacidade de indignar-se. Ele, que não precisava arregaçar as mangas, passava horas e horas debruçado sobre ações, representações e o que mais achasse que precisava ser feito em função de determinado assunto. No dia mesmo em que morreu, segunda-feira 21 de setembro [último], dr. Mussi havia decidido entrar com representação contra a decisão do presidente Lula de indicar o advogado geral da União, José Antonio Dias Toffoli, para uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF). Estava indignado que nenhuma das entidades que representam advogados, magistrados e ministério público o tivesse feito, em função das condenações já sofridas por Toffoli, sem falar dos concursos em que foi reprovado. Ganhou no TSE sua proposta de liberar a internet para os partidos divulgarem seus candidatos, quando ainda era vedado. Agora o Congresso Nacional amplia considerávelmente o que êle defendia: a Internet é uma conquista da Humanidade pela liberdade de informação e expressão. Preparou ação junto STF para tentar uma Súmula Vinculante que declarasse inelegíveis candidatos processados e condencados em segunda instância, dentre outros crimes, o do desvio de dinheiro público. Dr. Mussi era assim. Incansável. Determinado a fazer deste um mundo melhor. Um mundo que, para nós que ficamos, e falo também do PPS pelas dezenas de manifestações recebidas de todo o Paraná e do Brasil e, tenho certeza, por muita gente outra, um mundo agora irremediavelmente mais pobre. Assim como a saudade que a família vai sentindo aos poucos, aumentando sempre, sem possibilidade de ser preenchida ou sequer amenizada, assim o PPS começa a perceber que, diferente do que se prega, há sim pessoas insubstituíveis. E certamente Mussi é uma delas. Seus sonhos continuam maiores que os poucos 64 anos de sua vida!
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Haj Mussi
Fábio Campana Os melhores de minha geração estão desaparecendo muito cedo. Agora se foi o Mussi (Luiz Felipe Haj Mussi). Apenas 64 anos e tanto conhecimento, tanta sabedoria, tanto ainda por fazer. Na terça [15/09 último1], ele se mostrava indignado, pronto para entrar com uma ação contra a indicação do advogado José Antonio Dias Toffolli para o STF, o escolhido pelo presidente Lula. O indicado de Lula é dotado de “notável saber jurídico”? Toffolli exibe “reputação ilibada”? Perguntava o Mussi com a mesma combatividade de 45 anos atrás, quando saíamos às ruas para protestar contra o regime fardado. Foi naquele tempo que eu conheci o Mussi. Estudava Direito. Militávamos no movimento estudantil e tínhamos absoluta convicção de que a ditadura iria ruir pela força de nossos gritos, tão rápido quanto derrubamos o busto do reitor e o arrastamos pelas ruas. Tudo estava impregnado de história. Existíamos para mudar o mundo. Fazíamos teatro para ampliar a consciência social sobre as mazelas que a falta de liberdade provoca. Eu, Mussi, João Elias e Alfredo Garcindo no palco, dirigidos por Walmor Marcelino, o paciente Marcelino a tentar nos transformar em atores brechtianos em infindáveis ensaios nos porões da Igreja de São Francisco de Paula. Quando fui preso e levado para a ilha das Flores, no Rio, quem me achou foi o Mussi, desde então meu advogado e protetor. Arrancou-me daquele inferno. Devo-lhe, talvez, a vida. A redemocratização tardou, mas veio. No Paraná, as oposições elegeram José Richa e o Haj Mussi, jovem, foi dirigir a Secretaria de Segurança Pública, até então dominada pelos milicos e pelo espírito do regime de exceção. Deu duro. Enquadrou coronéis, proibiu que andassem armados, exigiu respeito à população. No governo seguinte, do Alvaro Dias, foi secretário Especial da Reforma Agrária por menos de cinco meses. Não era ouvido e o gover1 Morreu dia 21/09/2009
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no tinha um secretário de Agricultura, Osmar Dias, que dominava o setor e não admitia contestações, ancorado no irmão governador. Mussi não tinha apego aos cargos. Saiu, foi advogar, passou pela Petrobras, acabou desembargador federal do Trabalho, novamente advogado e sempre na liça. Pronto para encarar o debate, para denunciar a falcatrua. Esse espírito o levou a presidência do Conselho Nacional de Ética do PPS. Dia desses escreveu um belíssimo texto contra o nepotismo que pode ser lido no site do partido. E preparava a ação para expor as limitações do futuro ministro do STF, o Toffolli, que de saber jurídico ou passado ilibado não chegaria aos pés do Haj Mussi. O bravo Mussi.
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Homenagem a um grande intelectual público
Marco Aurélio Nogueira
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morte do cientista social Carlos Estevam Martins, aos 74 anos, ocorrida duas semanas atrás em São Paulo, privou a intelectualidade brasileira de uma de suas aves raras.
Ele foi um daqueles intelectuais de visão abrangente, refinada, avessa a modas, especializações e formalidades. Não atuou somente como professor, ainda que sua carreira docente tenha sido brilhante, tanto na USP quanto na Unicamp. Recusou-se a seguir passivamente os cânones da academia, escapando de suas armadilhas e de sua arrogância. Mergulhou no mundo da gestão e da política, atuando durante anos como diretor de projetos da Fundap e sendo secretário de Estado da Educação por duas vezes, na primeira metade da década de 90, durante os governos do PMDB. Nascido no Rio de Janeiro, trabalhou no Iseb e foi um dos fundadores, o primeiro diretor e o autor do manifesto do Centro Popular de Cultura, da UNE, criado em 1962. Ali, ao lado de Vianinha, Leon Hirszman e Ferreira Gullar, dentre outros, experimentou os caminhos da arte popular. Depois do golpe de 64 e do fechamento do CPC, mudou-se para São Paulo e participou da formação do Cebrap em 1969, juntamente com Fernando H. Cardoso, Francisco Weffort, José A. Giannotti e Francisco de Oliveira. Carlos Estevam rejeitou a torre de marfim da especialização e dos princípios abstratos sem se converter em mero operador tecnopolítico. Foi um intelectual público, bem próximo daquela figura que o marxista italiano Antonio Gramsci tornou famosa: um agente de atividades gerais que é portador de conhecimentos específicos, um especialista que também é político e que sabe não só superar a divisão intelectual do trabalho como também combinar “o pessimismo da inteligência e o otimismo da vontade”. Ave rara. Foi também escritor talentoso, que escrevia para ser lido por todos, não somente pelos pares ou iniciados. Publicou dezenas de en-
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Homenagem a um grande intelectual público
saios sobre história das ideias, política externa brasileira, redemocratização, sistema político, Estado e capitalismo no Brasil. Alguns de seus livros são preciosos, como A tecnocracia na história (1975), Capitalismo de Estado e modelo político no Brasil (1977), O circuito do poder (1994). A polêmica foi sua marca registrada, impulsionada por uma inventividade exuberante. Quando, em 1977, saiu Capitalismo de Estado e modelo político no Brasil, a discussão correu solta. Choveram aplausos e questionamentos. Passado o primeiro temporal, ele escreveu um artigo em resposta às críticas, “A democratização como problemática pós-liberal”, publicado pelo Cebrap. Queria ampliar a discussão, explicitar as “alegrias e dores de cabeça” trazidas pelo livro. Elaborou um texto sintomático do seu modo de ser, saudando os “intelectuais capazes de dar o devido valor ao debate de ideias, audazes trapezistas dispostos a passar por cima das divergências de opinião, que sempre existem, para ir buscar a compreensão empática do ponto de vista alheio”. Nele, declarava sua disposição de dialogar com a sociedade. “Os mandarins são misantropos, comunicam-se com o público impessoalizado ou com os discípulos, jamais com o próximo”. Foi uma oportunidade de ouro para que se clareassem posicionamentos e estilos: “Nunca consigo fugir à tentação de imaginar que há outros fatos além dos dados disponíveis, assim como não resisto à propensão de supor que qualquer teorização pode ser refeita por meio de mudanças de ênfase, graças à introdução de novos elementos conceituais até então não incluídos na estrutura do marco teórico”. Não duvidava do valor e da utilidade das pesquisas empíricas, mas não admitia que seus resultados pudessem resolver questões e pendências que se alojavam em outras dimensões da vida real. Para ele, o mais importante era interrogar o “presente como fluxo”, buscando as “oportunidades, promessas e ameaças que ele encerra para o futuro dos diferentes grupos e classes sociais”. O rigor com palavras e conceitos foi outra de suas preocupações. Numa das últimas intervenções, em 2005, na revista Lua Nova, manifestou sua perplexidade “face ao que se diz e se prega a respeito de democracia, cidadania e temas conexos”. A situação derivada da hegemonia neoliberal e da emergência de uma “nova esquerda romântica” degradara o vocabulário. Em tempos de despolitização, tudo tenderia à diluição. Marco Aurélio Nogueira
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XII. Memória
“Nova esquerda” e direita neoliberal se confundem sempre mais e estabelecem “relações homólogas” (isto é, de equivalência, ainda que não de identidade), que ajudam a despojar a política de critérios razoáveis de embate e compreensão. A questão passa a ser a defesa da “sociedade contra o Estado e os partidos políticos”, como se existisse um “Partido Único da Sociedade Civil” que dispensaria tudo o que está institucionalizado. Daí a “maldição” lançada contra conceitos e valores essenciais para a democracia: Estado, burocracia, nação, partidos políticos, representação. No lugar deles, formando uma espécie de discurso único, um outro léxico estruturado pela dupla mercado e sociedade civil. Como então esperar que a democratização se desenvolva “numa sociedade em que a opinião pública é levada a hostilizar toda uma série de elementos ideais, quadros institucionais e mecanismos operacionais” sem os quais a democracia não pode funcionar? Carlos Estevam Martins foi um “pessimista da inteligência”, mas em nenhum momento deixou de acreditar que seria possível lutar por um futuro melhor, tarefa para a qual seria imprescindível a presença de uma esquerda “menos subdesenvolvida, que não deixe tanto a desejar”. Como escreveu em 2005, nunca teremos “um vigoroso pensamento de esquerda se cada linha de esquerda não tiver o direito de cumprir o seu dever, qual seja, o de explicitar sua identidade, definir seus antagonistas, cultivar sua tradição e criticar e atualizar sua trajetória no campo da teoria, assim como no da prática política”. Fará muita falta. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 24/10/2009]
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XIII. Resenha
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Autores Luiz Sérgio Henriques
Ensaísta, tradutor e editor do site Gramsci e o Brasil (www.gramsci.org). Email: sergio.henriques@acessa.com
Leonardo Barbosa Cavalcante
Graduando em Ciências Sociais pelo Instituto de Humanidades da Universidade Cândido Mendes.
Dora Vianna Vasconcellos
Socióloga, mestre em Desenvolvimento, Sociedade e Agricultura (CPDA-UFRRJ), Rio de Janeiro.
Pedro A. Ribeiro de Oliveira
Doutor em Sociologia pela Université Catholique de Louvain, na Bélgica. Atualmente, é professor da PUC Minas. É autor de Fé e Política: fundamentos, Reforçando a rede de uma Igreja missionária, Religião e dominação de classe e outros.
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As “ideias italianas” no Brasil
Luiz Sérgio Henriques
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residente da Fundação Instituto Gramsci, em Roma, e ensaísta de mérito reconhecido internacionalmente, Giuseppe Vacca reaparece entre nós com um novo título que é quase uma provocação, no melhor sentido da palavra. Retirando do limbo uma expressão que entre os marxistas teve historicamente o sentido de uma “capitulação de classe” ou coisa pior, Vacca defende explicitamente, para as esquerdas, a atualidade de uma estratégia reformista não só para o seu país, como também, é de presumir, para a generalidade dos países em que se trava a luta política em termos efetivamente contemporâneos. A marca desse novo reformismo é a explícita assimilação das tarefas de governo e das responsabilidades a elas inerentes: e, segundo o paradigma que abraça, cujos antepassados mais distintos remontam aos anos 30 do século passado, classe e nação não se põem como termos antagônicos, mas aparecem reconciliados: partidos e movimentos que interpretam o antagonismo social estão desafiados a atuar no plano no interesse nacional, dando respostas positivas – no quadro do Estado Democrático de Direito – aos problemas de toda a sociedade. O novo reformismo de que fala Vacca afasta-se assim de qualquer veleidade maximalista e, muito consequentemente, deve afirmar-se doravante mais ou menos polemicamente contra uma esquerda dita alternativa ou radical, mas sem capacidade de governo e de síntese política própria das funções dirigentes. Fornece, mais amplamente,
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XIII. Resenha
alguns critérios para avaliar a história do século XX, que não deve ser vista como um mero terreno de contraposição entre capitalismo e socialismo, entendidos como “campos” que combateram mortalmente guerras abertas ou “frias”, com a vitória final de um deles. De resto, o reformismo que interessa ao autor tem seu ato de nascimento, nos anos 1930, como uma alternativa à “guerra civil europeia” entre nazistas e bolcheviques, quando a experiência comunista das frentes populares – retirado o caráter instrumental que tal política teve quase sempre sob a política stalinista – pôde colaborar, em alguns momentos decisivos, com socialistas, tal como aconteceu na Itália e, sobretudo, na França. E é à luz desse projeto que o autor reinterpreta contribuições vitais, como os Cadernos do cárcere, de Antonio Gramsci, ou um texto comparativamente de menor alcance, mas nem por isso menos importante do ponto de vista político, como as togliattianas Lições sobre o fascismo, de 1935. O autor, porém, pretende ainda sair do âmbito restrito da tradição comunista e, num movimento que dá fôlego ao seu pensamento, alude explicitamente ao “universalismo rooseveltiano”: à visão da luta contra o fascismo de que era portadora a elite política americana e, também, à visão dessa mesma elite sobre as relações internacionais que deveriam se seguir à derrota do fascismo. Não é aqui diminuída a importância da URSS no combate ao fascismo: “apenas” se reconhece, realisticamente, que aquele modelo político, nascido sob o particular signo da “revolução passiva” staliniana, só pela força poderia se expandir aos países do entorno soviético, sem dispor de nenhuma força de atração sobre os países ocidentais. Mas não só isso. O autor alude a experiências concretas da social-democracia e do trabalhismo no período entre as duas guerras, muito especialmente no caso da Inglaterra, da Bélgica e da Suécia. Bem antes do modelo keynesiano que se generalizaria nos “anos dourados” do capitalismo do segundo pós-guerra, os reformistas desses países lançaram as sementes do reformismo moderno, ao distinguirem as possibilidades de uma nova regulação do mundo da economia, até então estruturado segundo os procedimentos do liberalismo e as regras “espontâneas” do mercado. É nesse quadro que se insere uma das teses mais significativas do livro. Vacca propõe-se a ir além do “finalismo socialista” e da filosofia da história determinista que lhe é inevitavelmente conexa. A experiência daquelas três social-democracias e, mais em geral, as diversas tentativas de domar o mercado capitalista em crise fi184
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zeram nascer a ideia de que capitalismo e socialismo referem-se a dois planos diversos da realidade e não são comparáveis: o capitalismo é um modo de produção, o socialismo é um critério de regulação do sistema econômico, que, portanto, não se contrapõe ao primeiro, mas propõe-se orientá-lo. Para superar este falso dilema, foi necessário elaborar o conceito de regulação, e, naturalmente, não estamos falando de elaboração puramente intelectual, mas de experiência histórica concreta. Aproximamo-nos, assim, do ato de nascimento do reformismo: a crise dos anos trinta e a invenção de um “modo de regulação” do desenvolvimento alternativo ao do velho liberalismo, que entra em colapso. (p.191) Se de regulação se trata – e regulação capaz de expressar e induzir níveis sempre mais altos de produção material da vida e de sociabilidade humana –, os defensores da estratégia reformista devem ter a percepção de que uma teoria geral das crises é possível e não deriva de, ou desemboca em, uma visão rupturista ou catastrófica da política e da economia. Essa teoria geral, segundo o autor, está presente nos escritos de Antonio Gramsci, especialmente quando focalizam a Primeira Grande Guerra e os anos que se seguem como um período de crise continuada, cuja raiz última reside no contraste entre o caráter cada vez mais internacional da economia e as soluções políticas mesquinhamente nacionais que se implementaram, e muitas vezes hoje ainda se implementam, na tentativa de sanar os desequilíbrios globais. A esquerda italiana – pelo menos aquela parte da esquerda em nome da qual quer falar o autor – tentou continuadamente sair do âmbito do reformismo comunista nacional, encarnado pelo velho PCI, e adotar a Europa como cenário das suas ações e iniciativas. Falhas e deficiências à parte, esse ainda é o horizonte mais plausível para uma nova regulação democrática dos fatos econômicos, bem como uma fonte de inspiração para a esquerda de outros quadrantes: sem abdicar do interesse nacional e das iniciativas que se devem tomar imediatamente no âmbito do Estado-nação, a busca de uma perspectiva cosmopolita, supranacional, é parte constitutiva da nova investigação em curso. E achar em cada caso a melhor combinação entre interesse nacional e forças que se movimentam externamente é um elemento da regulação democrática que deve ser conscientemente assumido, tendo em vista o cenário de desastre que conclui esses anos de (des) regulação neoliberal dos mercados e supremacia dos “espíritos animais” do capitalismo.
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A insistência no termo “democracia” aqui não é casual. O último grande impacto das “ideias italianas” entre nós foi por ocasião do eurocomunismo de Berlinguer e do Gramsci filtrado pela tradição togliattiana, e isso nos já distantes anos 1970. Foi quando, por exemplo, circulou amplamente nos círculos da esquerda, muito especialmente do então PCB, a expressão berlingueriana da “democracia (política, não ‘burguesa’) como valor universal”. Certa ou erradamente, para o bem ou para o mal, a cultura política do novo partido em ascensão na esquerda guardava muito pouca relação com aquele conjunto de ideias, que propunha uma reforma democrática do caráter “prussiano” do capitalismo e da sociedade brasileira como a estratégia mais plausível de superação dos muitos elementos de atraso mantidos na peculiar modernização conservadora que atravessa a nossa história, e que, não por acaso, se viu reforçada com o regime de 1964. Acredito que o livro de Vacca dá um alento renovado àquelas ideias e reata o fio um tanto perdido nestes tempos de desorientação. Refiro-me especialmente aos muitos momentos em que as sinala a democracia como o único terreno político no qual todos os atores – de direita, centro ou de esquerda – devem se mover, ou até devem ser levados por força das coisas a se mover, no caso de as suas culturas e valores carregarem vestígios mais ou menos fortes de concepções autoritárias da política, o que está longe de ser incomum na esquerda. O Estado Democrático de Direito surge assim como uma forma alta de convivência, não como reflexo ilusório da dominação burguesa ou do “indivíduo abstrato” próprio da sua sociabilidade. Produto de duríssimas lutas históricas, esse tipo de Estado, na visão de Vacca, desconhece “classes gerais” e refuta a apropriação da máquina do Estado por uma classe ou um partido que supostamente represente uma classe ou bloco de classes portadoras do “sentido último” da história. Só reconhece partidos, associações e outras formas de subjetividade constitucionalmente definidas, estimulando classes e grupos sociais que neles legitimamente se reconheçam a elaborarem visões diferentes do bem-comum, cuja disputa privilegie o elemento consensual e hegemônico, em detrimento do elemento força ou violência. Assume-se sempre e tão só o governo, incide-se inevitavelmente sobre relações de força na sociedade, mas não se busca um abstrato “poder” a partir do qual se reorganize arbitrariamente o mundo,
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extremando autoritariamente o político. Mudanças constitucionais são possíveis, mas na forma democrática do Estado não se toca. Consenso e liberdades, hegemonia e pluralismo democrático são termos incontornáveis da moderna disputa política e da investigação teórica mais avançada, a não ser que se opte anacronicamente por autoritarismos mais ou menos disfarçados. Todo esse novo reformismo de Vacca, ao apresentar cristalinamente as razões mais seguras de uma esquerda democrática, passa a impressão de que não fala apenas da Itália ou da Europa e seus problemas. Fala também, e ao mesmo tempo, da nossa história presente de brasileiros e sul-americanos. Sobre a obra: Giuseppe Vacca, Por um novo reformismo. Tradução: Luiz Sérgio Henriques, Brasília/Rio de Janeiro: Fundação Astrojildo Pereira/Editora Contraponto, 2009 (Publicado originariamente na revista Estudos Avançados, do Instituto de Estudos Avançados da USP, v. 23, n. 66, São Paulo, 2009).
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A análise da imigração, à luz de Sayad
Leonardo Cavalcante
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om o mundo afetado pela crise financeira e sofrendo uma nova estruturação social, o livro A Imigração se constitui uma excelente leitura, já que o imigrante voltou a ser visto como causador do desemprego, fomentando a xenofobia nos Estados Unidos e em países desenvolvidos da Europa. A leitura da obra de Abdelmalek Sayad nos leva a repensar a relação entre país emigrante e país imigrado e toda sua problemática. O livro é uma coletânea de textos escritos por Sayad, separados por uma ordem de importância. Para isso o autor segue alguns métodos: primeiro, estuda a imigração em si; depois, a ordem cronológica e a condição da imigração com suas condições de existência, dando assim a coerência necessária. A imigração aqui será estudada como um fato social completo, pois falar da imigração é falar da sociedade como um todo, tanto sobre a perspectiva histórica como do ponto de vista das estruturas. As questões legais, bem como as sociais, as ilusões construídas pelo imigrante e as suas desilusões são alguns dos temas abordados, do mesmo modo que a visão do país estrangeiro também se torna objeto de estudo. O pano de fundo desta importante obra é a imigração dos argelinos para a França e as consequências que tal fato acarreta, pois a Argélia era colônia da França e no começo da imigração foi muito estimulada pelo próprio governo francês. A metodologia usada pelo autor é as análises das entrevistas dadas pelos imigrantes em determinados momentos de sua vida, mesclando os anos e com isso as épocas em que ocorreram tais imigrações. A cada relato, Sayad faz novas análises e busca traduzi-las para uma linguagem mais técnica, sem que se perca a linguagem do entrevistado e com isso a natureza da entrevista. Após a leitura do livro fica evidenciado a grande importância que essa coletânea organizada e escrita por Abdelmalek Sayad tem para 188
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A análise da imigração, à luz de Sayad
o estudo da imigração como fato social. Sua análise, sem dúvida, é um marco na sociologia, pois trata a emigração e a imigração como um fato amplo que não está limitado à questão de nação, mas sim ligado a vários fatores sociais. Inicia-se com o fator econômico, motivo pelo qual a maioria vai para outra localidade que não a sua de origem, ganha novos contornos durante a leitura e revela vários problemas sociais. O autor deixa claro que a maioria dos estudos feitos sobre a imigração tratam-na como problema mesmo antes de ser analisada. De maneira empírica, Sayad em suas análises traz à baila todos os problemas, e também as virtudes que a imigração tem. Quando um país como a França precisa de mão-de-obra, é na sua colônia (e, no caso, a Argélia) que ela a procura e sendo assim até investe para que isso ocorra, mas quando o desemprego começa a atingir os franceses, é nos imigrantes que eles veem seus inimigos, aqueles que vieram para tirar-lhes o emprego. Esta é apenas uma das problemáticas que o autor aborda em seus textos. Confesso que ao começar minha leitura desse livro tinha uma visão um tanto preconceituosa, pelo fato de Sayad ser da Argélia e com isso ser ele mesmo um imigrante. Pensei que levaria a ter uma visão que não fosse imparcial, mas após concluida a leitura, constato que, em momento algum, o autor se deixa levar por emoções pes soais. Isso legitima a obra de Sayad, que não apresenta uma análise conclusiva sobre a imigração e suas mazelas, mas aponta algumas alternativas que deveriam ser tomadas não só pelos países imigrantes, mas também pelos países emigrados, já que ambos usam os indivíduos como moedas de troca nas suas relações de política internacional, ora favorável ao imigrante, ora contrário ao ele. Sobre a obra: A Imigração: ou os paradoxos da alteridade, de Abdelmalek Sayad. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998.
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Rui Facó e os pobres do campo
Dora Vianna Vasconcellos
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ascido em 1913 em Beberibe, no Ceará, Facó ainda era jovem quando se filiou ao Partido Comunista Brasileiro. Formou-se em direito em Salvador, mas exerceu o jornalismo durante a sua breve vida. Facó faleceu em março de 1963 num desastre de avião. Cangaceiros e Fanáticos foi publicado em 1963. É, portanto, uma obra póstuma escrita em meio ao debate que se fazia sobre as potencialidades revolucionárias do campesinato brasileiro. É um livro de leitura fácil e prazeirosa, que apresenta uma análise histórico-descritiva do “fanatismo” e do cangaço fortemente marcada pela teoria marxista. Em nova edição, lançada recentemente pela Editora UFRJ, Cangaceiros e fanáticos possui uma apresentação de Leonilde de Servolo Medeiros. Nela, Medeiros frisa que a leitura de Facó sobre as rebeliões do interior do país foi um forte questionamento às concepções teóricas de então. Ela considera a sua interpretação como um “lento processo de reconstrução de imagens socialmente instituídas sobre os trabalhadores do campo, tais como as de sujeição absoluta ao mando dos grandes proprietários, passividade, preguiça, atraso, dificuldade de organização” (FACÓ, 2009, p.10). Segundo ela, Facó se oporia a essa caracterização, erigindo uma imagem do homem pobre do campo como insubmisso, trabalhador e ciente das injustiças. Já no prólogo do livro, ao advertir que “fanatismo” e “banditismo” – termos utilizados na época para classificar os movimentos de Canudos, Contestado e Juazeiros, principalmente – possuíam um teor pejorativo que retirava o conteúdo progressista e revolucionário dessas rebeliões, Facó deixa clara a posição defendida ao longo de Cangaceiros e fanáticos. A partir de uma leitura marxista, ele considera que esses movimentos foram verdadeiras tomadas de consciência das populações pobres rurais; que o misticismo religioso expressava a rebeldia, a capacidade de organização e a insubmissão das populações sertanejas. De modo semelhante, Facó também interpreta o cangaceirismo como movimento contestador da ordem social. Para sustentar tal po190
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Rui Facó e os pobres do campo
sição, ele defende que o cangaceiro era diferente do capanga, espécie de matadores profissionais que dependiam econômica e socialmente dos fazendeiros e que, por isso, tinham que obedecer a ordem do patrão. Os cangaceiros, ao contrário, comporiam um bando que conquistara a autonomia, ainda que relativa, do fazendeiro e do latifúndio. Portanto, o cangaceiro não seria, para ele, um assalariado, um semisservo praticante de crimes sob encomenda do patrão. Tratavase de um homem livre que praticava crimes por conta própria; um rebelde que lutava contra a ordem dominante imposta pelo latifúndio semifeudal. O cangaceirismo, para ele, seria um meio de vida que proliferava no Nordeste, sobretudo, nas épocas de seca e de fome. O livro divide-se em três capítulos, sendo o primeiro “O despertar dos pobres do campo”, o segundo “Canudos e conselheiros” e o último “Juazeiro e Padre Cícero”. Nesses capítulos, Rui Facó, a partir de uma leitura marxista, faz uma análise histórica dos fenômenos que ficaram conhecidos como “fanatismo” e “banditismo”, ocorridos do último cartel do século XIX e início do século XX no interior brasileiro. O autor analisa principalmente os acontecimentos de Canudos (1896-1897) e Juazeiro, duas rebeliões que, segundo ele, teriam um forte cunho religioso, mas que não podem ser explicadas e entendidas somente por esse traço característico. Para o autor, foi a luta de classes entre os homens pobres do campo e os fazendeiros a maior motivação desses movimentos; era, segundo ele, “uma luta aguerrida contra o latifúndio, contra a miséria e contra a exploração” (Facó, 2009, p. 32). Ele caracteriza Contestado (1912-1916), Caldeirão (1936-1938), Pau de Colher, Pedra Bonita e o cangaceirismo – fenômeno que se prolongou até a década de 1930 – também como expressões de conflitos no interior do país. Para Facó, o latifúndio geraria lutas de classe desde sua origem. De início, com fazendeiros tentando salvaguardar suas propriedades de ataques de índios; depois contra as incursões de posseiros; mais tarde contra cangaceiros e fanáticos e atualmente contra o proletário rural sem terra. Rui Facó, em Cangaceiros e Fanáticos, faz uma análise da conjuntura que propiciou os acontecimentos de Canudos e Juazeiro. Para ele, esses movimentos aconteceram num período de crise de ordem econômica, ideológica e de autoridade. Era época em que findava o Império e a escravidão era abolida. Esses acontecimentos teriam abalado os critérios de mando da sociedade brasileira, principalmente no Nordeste. Contudo, nada disso permitiu que relações de produção de tipo superior, à base do trabalho livre surgissem. As relações no campo, principalmente no Nordeste, continuavam a ser majoritariamente servis. Dora Vianna Vasconcellos
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XIII. Resenha
Além da crise do instituto escravista, o Brasil vivia também a crise do latifúndio pré-capitalista e o arruinamento dos antigos engenhos banguês do Nordeste. Os antigos engenhos de açúcar ruíam e eram substituídos pelas usinas de açúcar, sem que acontecesse, segundo Facó, uma revolução na Zona Canavieira. Uma nova estrutura mecânica foi implantada com as usinas de açúcar, mas os arcabouços do velho latifúndio permaneceram intactos. A usina intensificou, segundo ele, o processo de monopolização da terra. A renovação técnica preservou a situação de miséria das massas sem terra e agravou a concentração de terras no Nordeste. Deste modo, Rui Facó considera que os “cangaceiros” e “fanáticos” eram o fruto da decadência de um sistema socioeconômico que tinha o latifúndio semifeudal como nexo fundamental. Essa situação de crise teria se agravado sobremaneira quando o centro da gravidade econômica se transferiu do Nordeste para o Sul, por conta do café. O latifúndio continuaria a entravar brutalmente o crescimento das forças produtivas, a mecanização da agricultura e o crescimento das indústrias. O monopólio da terra continuava a promover uma divisão de classes sumária: o senhor de grandes extensões de terras e o homem sem terra, o semisservo. O Nordeste, do final do século XIX e início do século XX, é caracterizado pelo o autor como uma sociedade em estágio econômico seminatural, na quale o capitalismo e as cidades tinham pouca influência e repercussão sobre o latifúndio semifeudal. As relações entre usineiro e homens pobres era semisservil, pré-capitalista1. Para Facó, o latifúndio reduzia as populações do interior ao mais brutal isolamento, ao analfabetismo quase generalizado, e deixava como única forma de consciência do mundo exterior a religião ou as seitas nascidas nas próprias comunidades rurais – vertentes do catolicismo. Os homens sem terra, ao formarem grupos de cangaceiros e seitas de “fanáticos”, como ficaram conhecidos Juazeiro e Canudos, organizaram-se e rebelaram-se por uma melhor condição de vida. Esses movimentos teriam sido rebeliões inconscientes contra a servidão da gleba, contra o latifúndio. Tiveram boa dosagem de misticismo religioso – o autor não nega –, mas eram mobilizados fundamentalmente pela dinâmica da luta de classes. 1 “Nas terras dos grandes proprietários, (os agregados, a gente pobre, os foreiros) eles não gozam de direito algum político, porque não têm opinião livre; para eles o grande proprietário é a polícia, os tribunais, a administração, numa palavra tudo; e afora o direito e a possibilidade de os deixarem, a sorte desses infelizes em nada difere da dos servos da Idade Média” FACÓ, apud Freyre, Gilberto. Nordeste. Rio de Janeiro: José Olympio,1937.
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Rui Facó e os pobres do campo
Com esse argumento, Rui Facó contrariava os historiadores que exageraram o misticismo religioso dos habitantes de Canudos e Juazeiro. Atribuindo-lhes a classificação de “fanáticos”, esses estudiosos retiravam o conteúdo progressista e reformador desses fenômenos, dando-lhes um sentido pejorativo. O autor enumera ainda como uma das causas para o “banditismo” e do “fanatismo” o fato do latifúndio criar em seu entorno um excedente de mão de obra capaz de assegurar a quase gratuidade da força de trabalho. Isso possibilitava a imposição de relações semisservis aos pobres do campo. Deste modo, criava-se no Nordeste dos fins do século XIX e início do XX, um contingente de pessoas pobres, sem bens e sem terra, nômade, que fugia da seca e que não era absorvida pelo latifúndio, mas que tinha algo a reivindicar, ainda que não soubesse formular claramente essa reivindicação. Segundo Facó, a reação à miséria e à fome teria vindo com a formação de grupos de cangaceiros e de seitas místicas. Facó aponta ainda que a ruptura da estagnação no campo se iniciou com o êxodo em massa de nordestinos para a Amazônia e para o Sul, por causa do surto da borracha e do cultivo do café, respectivamente. A fuga teria sido ocasionada também pelas constantes secas do Nordeste. Para ele, a emigração era o primeiro passo na busca de outras condições de vida e permitia que os homens pobres do campo se evadissem da imobilidade multissecular em que viviam. Graças ao contato com outras formas de vida social, estes migrantes, quando retornavam ao Nordeste, voltavam diferentes, menos inconformados com a vida de miséria e de fome que levavam. Não só o monopólio da terra explicaria o cangaço e o “fanatismo”. O atraso econômico, o isolamento do interior, o imobilismo social também seriam fatores geradores do cangaço e do “fanatismo”. Por essa razão, para o autor, a penetração do capitalismo no meio rural seria de suma importância, já que possibilitaria a existência de novas relações de produção e de troca, permitindo que o semisservo saísse da estagnação do meio rural e abrindo novos caminhos para os bandos de cangaceiros e para os místicos itinerários dos beatos e conselheiros. Deste modo, com essa argumentação, Rui Facó contrariava as explicações, como as formuladas por Euclides da Cunha, que viam o cangaço com o resultado da má eugenia, de atavismos étnicos. Contrariava também aquelas que afirmavam que as condições biológicas geravam o fenômeno do cangaço. Assim, Rui Facó explicava o cangaceirismo e o fanatismo pelas circunstâncias sociais e econômicas, pela extrema desigualdade social provocada pela grande concentra-
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ção de terras, acentuada pelo débil desenvolvimento do capitalismo no interior do país, local onde se constituiriam, de acordo com a sua leitura marxista, relações de produção pré-capitalistas, semifeudais, e que era marcado pelo pouco incremento das forças produtivas. Longe de considerá-los como criminosos, como fez a historiografia do início do século XX, Rui Facó considerou os pobres do campo envolvidos nessas rebeliões como o resultado do atraso econômico. O “banditismo” e o “fanatismo” seriam movimentos subversivos, “elementos ativos geradores de mudança social” e “contestadores da pasmaceira imposta pelo latifúndio”. Esses homens eram consequência dos choques de classe e das lutas armadas. Seriam, assim, o prólogo de uma revolução social que estaria por vir. Segundo ele, “banditismo” e “fanatismo” eram “elementos regeneradores de uma sociedade estagnada”, preparadores de uma nova época, representando um “primeiro passo para a emancipação dos pobres do campo”. A opinião que marca a singularidade da interpretação de Facó é a de que Canudos e Contestado foram movimentos de cunho religioso que revelavam uma drástica separação entre religiosidade popular e a religião oficial da Igreja Católica.2 Na sua interpretação, o “fanatismo” constituía uma ideologia de cunho místico, condizente com a condição de vida das populações rurais do final do século XIX e início do século XX, que era contrária à ideologia das classes dominantes e das camadas médias urbanas. Assim, ao longo do livro Cangaceiros e Fanáticos, Facó defende que a seita abraçada pelos homens pobres do campo, como toda ideologia, tinha um conjunto de conceitos morais, religiosos, artísticos que traduziam suas condições materiais de vida, e que eram antagônicas às ideologias das classes dominantes. Ele considera que em todos os casos analisados – principalmente em Juazeiro, Canudos e em Contestado – as massas espoliadas teriam criado uma religião própria, uma espécie de consciência primária, no sentido marxista do termo, que lhes serviu de instrumento na luta por sua libertação social contra o latifúndio e contra as relações semifeudais de produção. O “fanatismo” teria sido o elemento de solidariedade grupal impulsionador de uma reação contra a ordem dominante.3 Deste modo, 2 Outro ponto de vista controverso defendido por Rui Facó é o de que a Igreja Católica desempenharia o papel de polícia ideológica no meio rural, que antecipava as forças repressivas da Polícia, do governo e dos potentados rurais. Era a força que convertia, pela repressão, o protesto inconsciente e até então passivo dos “crentes”, em um movimento contra a ordem das coisas existentes. 3 Facó argumenta que em todos os lugares onde esse fenômeno se desenvolveu, as populações rurais não só ocuparam uma determinada área de terra, mas também
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a tônica da interpretação marxista do autor é dada pela crença de que essas aglomerações seriam movimentos de tipo primário que traduziam, contudo, as aspirações da população rural empobrecida que lutava pela libertação do subjugo do latifúndio. Sobre a obra: Cangaceiros e fanáticos: genese e lutas. De Rui Facó. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009, 347 p.
organizaram formas de trabalho cooperativo que contrariavam a relações servis. Esse fato comprovaria, segundo o autor, o teor revolucionário de manifestações populares como Canudos e Juazeiros. Dora Vianna Vasconcellos
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Pedro A. Ribeiro de Oliveira
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uando Itamar Franco assumiu a Presidência da República, ouvi de uma analista da política que respeito muito – minha irmã Isabel – afirmar que “ele estava formando o melhor governo possível no momento”. Passados apenas 15 anos, porém, seu governo parece ter caído no esquecimento da população, como se apenas tivesse feito a transição entre Collor e FHC. Desse período ficou a imagem de Itamar como um presidente que preferia o velho fusca, inventou a “carta social” e que fez do Palácio do Planalto a “República do pão-de-queijo”. E assim, ficou na memória popular uma imagem esmaecida de Itamar: uma figura simpática, mas irrelevante na política nacional. Essa imagem simplista foi agora radicalmente contestada pelo minucioso trabalho de pesquisa de Denise Paiva, cujo livro mostra sua importante contribuição para o processo de democratização do país, depois de vinte anos de ditadura militar, seis anos de clientelismo comandado por Sarney e dois anos de descalabro moral de F. Collor. Com o governo Itamar começou a ser construída uma relação respeitosa entre o poder Executivo e a sociedade civil, tendo sido colocado em prática o preceito constitucional de participação cidadã. Essa experiência pioneira de democracia participativa certamente desagradou os donos do poder, para os quais as decisões políticas devem ser tomadas em seus pequenos círculos de influência e depois referendadas por um Congresso submisso. Por isso, penso eu, antes que o povo tomasse gosto pela experiência democrática, os veículos que orientam a opinião pública trataram de diminuir a figura de Itamar, para que seu governo não servisse de exemplo a quem o sucedesse. E assim foi...
Tendo assumido interinamente a Presidência da República em outubro de 1992, em consequência do êxito do Movimento pela Ética na Política que exigia do Congresso o impedimento de F. Collor, Itamar Franco foi empossado no final de dezembro para terminar o mandato. No total, ocupou a Presidência da República por 27 meses. Mas aproveitou esse tempo para tornar a luta contra a fome e a mi-
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séria uma política de Estado. E o fez em profunda sintonia com os setores organizados da sociedade brasileira – e não em lugar deles. Esta não foi uma tarefa fácil, porque a tradição populista de Vargas, a política de cooptação do regime militar e o clientelismo revigorado pelo governo Sarney levaram os movimentos e organizações que lutam pela cidadania a desconfiarem de toda e qualquer iniciativa governamental. A leitura atenta de Era outra história nos leva a entender justamente o difícil processo de superação dessa desconfiança, que se dá na medida em que se cria um espaço de colaboração entre Estado e sociedade para tirar o combate à fome e à miséria do campo assistencial e levá-lo para o campo dos direitos de cidadania. Nesse processo emerge a primeira experiência brasileira de democracia participativa em âmbito nacional. Denise Paiva usa o método da história oral para reconstruir esse processo. Excelente entrevistadora, faz que as pessoas narrem os fatos mais relevantes para a nossa compreensão, desde os meandros da burocracia, até as circunstâncias nas quais eram tomadas as decisões finais. A autora atribui muita importância à personalidade do presidente, mas não deixa em passar em branco uma análise do contexto político do seu governo. Tendo iniciado sua carreira no MDB, Itamar foi eleito vice-presidente pelo PRN – uma legenda eleitoral “de aluguel” como outras – e por isso governou sem dispor de uma base partidária própria. Aí reside a chave de explicação do seu governo. Sendo impotente diante do poder econômico que o havia escolhido vice-presidente numa chapa que hoje chamaríamos neoliberal, Itamar nem tentou retirar a política macroeconômica das mãos dos representantes dos empresários e banqueiros. Tratou de concentrar sua (pouca) força política na implementação dos direitos constitucionais de cidadania. Em lugar de seguir o caminho depois trilhado por FHC e Lula – usar o clientelismo e a barganha por cargos como meio de ascendência sobre o Congresso – Itamar optou pelo respaldo da sociedade como meio de pressionar o Legislativo. É preciso lembrar-se que a sociedade brasileira vinha de um período no qual as mobilizações sociais haviam conquistado importantes vitórias políticas: a campanha das diretas já não conquistara seu objetivo específico, mas desmoralizou o regime militar; os movimentos sociais venceram a resistência do centrão e inscreveram importantes direitos sociais na Constituição de 1988; e o movimento pela Ética na Política derrubou o esquema de corrupção instalado no Palácio do Planalto. Ao convidar lideranças nacionais para partilharem as decisões sobre sua política social, Itamar Franco assumiu um risco: abrir mão de seu poder, sem receber Pedro A. Ribeiro de Oliveira
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em troca o apoio dessas pessoas ao seu governo. De fato, Betinho, D. Luciano Mendes, D. Mauro Morelli e outros integrantes da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida colaboraram com o governo mas mantendo uma distância crítica, pois para eles o governo estava apenas cumprindo seu dever constitucional. Essa tensão criativa entre movimentos sociais e Estado foi vivida por Denise Paiva – na época Assessora de Assuntos Sociais da Presidência da República – antes de tornar-se objeto de pesquisa histórica. Os depoimentos por ela colhidos ilustram os percalços e armadilhas escondidos no percurso, mas trazem também exemplos extremamente animadores, que não podem jamais ser esquecidos. Ao leitor e à leitora caberá o prazer de descobri-los e sobre eles refletir. Para mim, a melhor lição do livro foi mostrar que é politicamente mais eficaz o apoio de pessoas como Betinho, do que de ACM e Sarney – como, infelizmente, vimos fazerem os sucessores de Itamar. Sobre a obra: Denise Paiva: Era outra história: política social do governo Itamar Franco 1992-1994. Minas Gerais/Juiz de Fora: Editora UFJF/Fundação Astrojildo Pereira, 293 p.
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