N° 27 - Agenda para um novo Brasil

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Agenda para um novo Brasil


Fundação Astrojildo Pereira SEPN 509, Bloco D, Lojas 27/28, Edifício Isis – 70750-504 Fone: (61) 3224-2269 Fax: (61) 3226-9756 – contato@fundacaoastrojildo.org.br www.fundacaoastrojildo.org.br

Política Democrática Revista de Política e Cultura www.politicademocratica.com.br

Conselho de Redação Editor Marco Antonio T. Coelho Editor Executivo Francisco Inácio de Almeida Editor Executivo Adjunto Cláudio Vitorino de Aguiar

Alberto Aggio Anivaldo Miranda Caetano E. P. Araújo Davi Emerich Dina Lida Kinoshita Ferreira Gullar

George Gurgel de Oliveira Giovanni Menegoz Ivan Alves Filho Luiz Sérgio Henriques Raimundo Santos

Conselho Editorial Alberto Passos Guimarães Filho Amarílio Ferreira Jr Amilcar Baiardi Ana Amélia Mello Antonádia Monteiro Borges Antonio Carlos Máximo Armênio Guedes Artur José Poerner Aspásia Camargo Augusto de Franco Bernardo Ricupero Celso Frederico Cícero Péricles de Carvalho Charles Pessanha Délio Mendes Denis Lerrer Rosenfield Dimas Macedo Fábio Freitas Flávio Kothe Francisco Fausto Matogrosso Francisco José Pereira

Gilson Leão Gilvan Cavalcanti Joanildo Buriti José Antonio Segatto José Bezerra José Carlos Capinam José Cláudio Barriguelli José Monserrat Filho Luís Gustavo Wasilevsky Luiz Carlos Azedo Luiz Carlos Bresser-Pereira Luiz Eduardo Soares Luiz Gonzaga Beluzzo Luiz Werneck Vianna Marco Aurélio Nogueira Maria do Socorro Ferraz Marisa Bittar Martin Cézar Feijó Michel Zaidan Milton Lahuerta Oscar D’Alva e Souza Filho

Othon Jambeiro Paulo Afonso Francisco de Carvalho Paulo Alves de Lima Paulo Bonavides Paulo César Nascimento Paulo Fábio Dantas Neto Pedro Vicente Costa Sobrinho Ricardo Cravo Albin Ricardo Maranhão Roberto Mangabeira Unger Sérgio Augusto de Moraes Sérgio Bessermann Sinclair Mallet Guy Guerra Telma Lobo Washington Bonfim Willian (Billy) Mello Willame Jansen Willis Santiago Guerra Filho Zander Navarro

Produção: Editorial Abaré Copyright © 2010 by Fundação Astrojildo Pereira ISSN 1518-7446

Ficha catalográfica Política Democrática – Revista de Política e Cultura – Brasília/DF: Fundação Astrojildo Pereira, 2010. No 27, julho/2010 200 p. 1. Política. 2. Cultura. I. Fundação Astrojildo Pereira. II. Título. CDU 32.008.1 (05) Os artigos publicados em “Política Democrática” são de responsabilidade dos respectivos autores. Podem ser livremente veiculados desde que identificada a fonte.


Política Democrática Revista de Política e Cultura Fundação Astrojildo Pereira

Agenda para um novo Brasil

Julho/2010


Sobre a capa

O

autor das obras que embelezam a capa e a contracapa desta edição é o artista plástico Waldyr Joaquim de Mattos, nascido no Rio de Janeiro, em 21 de junho de 1916, e falecido na mesma cidade, em 29 de março de 2010.

O crítico carioca Júlio Callado escreveu o texto de apresentação do catálogo de uma de suas últimas exposições individuais, em 2005, do qual reproduzimos seus principais momentos, para que se conheça um pouco desse extraordinário pintor, atuante desde 1952. “Waldyr Mattos traz nesta retrospectiva uma mostra vibrante da experiência da arte. Uma experiência lúdica que, ao longo dos anos, construiu uma obra diversificada, ainda hoje se reinventando e produzindo novas e instigantes expressões. Surgindo dentro do universo da paisagem, Waldyr se debruça, num primeiro momento, sobre o Rio de Janeiro aprofundando seu olhar na região portuária, onde cascos e carcaças de navios se sobrepõem gerando composições geometrizadas e ao mesmo tempo orgânicas. Alçando voos sobre outros ares, já nos anos 60, passeia pela arte abstrata produzindo telas de extrema força expressiva onde o volume de tinta, em cores carnais que saltam sobre fundos negros, produz sensações táteis de profundidades vicerais. Ainda nos anos 60, inspirado pela arte pop, cria a série Ossos, onde podemos perceber as preocupações políticas do pintor aflorando sobre a temática da guerra e de um corpo humano mutilado, robótico e mutante. Em meados da década de 70 viaja para um universo surrealista criando a série Frutos onde explora uma sensualidade tropical figurada na forma de cocos, cajus, mangas, mamões e abacates que se desabrocham em seios suculentos. Já nos anos 80, Waldyr volta para paisagem com uma nova bagagem de cores vibrantes, que com o passar do tempo foram se renovando tornando-se mais vivas, como podemos observar em suas telas mais recentes. Na última década, sua temática foi se expandindo para arquitetura de cidades como Paris, Ouro Preto e Teresópolis, além de sempre passar pelo Rio. Em uma de suas últimas séries retrata a boemia carioca pintando interiores e fachadas de bares e botequins de sua cidade; um trabalho de documentação detalhista que lhe tomou dois anos de pesquisa sob uma rotina diária. São as pinturas o espelho do pintor, que com o peso da experiência que os anos lhe deram viaja pela arte com a leveza intrépida e o entusiasmo de um menino”.

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Sumário

I. Apresentação.....................................................................9 II. Observatório Político Agenda para um novo Brasil.................................................. 15 Caetano Pereira de Araujo e Roberto Freire

O Brasil e armas nucleares.................................................... 21 José Goldemberg

A República posta em questão............................................... 26 Danúbio Rodrigues

Ideias para um outro tipo de desenvolvimento....................... 34 Augusto de Franco

III. Batalha das ideias A usina de Belo Monte: energia e democracia em questão...... 43 Francisco Del Moral Hernández e Célio Bermann

Escola de tempo integral – o que é isso?................................ 58 Antonio Carlos Máximo

Aos fundamentos.................................................................. 64 Sionei Leão

Minha Casa, Minha Vida: a ocultação da memória e um réquiem para o planejamento urbano............................ 69 Luiz Prado

IV. Questões do Desenvolvimento Agronegócio, agricultura familiar e política........................... 75 Raimundo Santos

Uma nova invasão, uma nova exclusão.................................. 80 Anivaldo Miranda


Dez anos de Responsabilidade Fiscal..................................... 83 Paulo Timm

V. O Social e o Político SUS: situação atual e perspectivas......................................... 93 Waldir Cardoso

Bolsa Família........................................................................ 99 Denise Paiva

Um novo padrão de política habitacional............................. 102 Lair Krähenbuhl

VI. Mundo O paradoxo da Europa: fraqueza e força no século XXI......... 111 Massimo D’Alema

Falta o “algo mais” na política externa do Brasil.................. 121 Alon Feuerwerker

Para onde caminha a Europa............................................... 123 Demétrio Carneiro

VII. Vida Cultural Apontamentos para um programa de cultura ...................... 129 João Batista de Andrade

Por debaixo da máscara de Montevidéu............................... 133 Luiz Carlos Prestes Filho

VIII. Memória Escritores comunistas e a redemocratização....................... 141 Ana Amélia de Moura Cavalcante de Melo

Salões e instituições em Belém nos anos 1940.................... 150 Caroline Fernandes

Um eterno nacionalista: Monteiro Lobato............................ 159 Lucília Garcez

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IX. Ensaio República: a travessia, as rupturas negociadas e a consolidação democrática.............................................. 171 Marcello Cerqueira

Gildo Marçal e o pensamento brasileiro............................... 179 Diogo Tourino de Sousa

X. Nos 120 Anos de Astrojildo Pereira Olá!, prazer, adeus ............................................................. 191 Sergio Augusto

XI. O autor e alguns poemas inéditos: Ferreira Gullar............................................................... 195

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I. Apresentação Marco Antonio T. Coelho Jornalista editor@politicademocratica.com.br



Apresentação

N

esta edição, destacamos textos que assinalam o compromisso desta revista com os princípios essenciais que a balizam e a diferenciam de outras publicações.

No artigo de Caetano Pereira de Araujo e de Roberto Freire, encontramos uma análise cuidadosa a respeito do significado do pleito de outubro próximo, que procura, a partir do exame da realidade brasileira, identificar os obstáculos ao efetivo desenvolvimento do país e apresentar uma estratégia de implantação das sempre adiadas reformas (sobretudo a política e a do Estado), imprescindíveis à ampliação da democracia e à estabilidade econômica, na busca de novos rumos para o país. Chamamos sua atenção também para o artigo do jornalista e consultor em relações internacionais Danúbio Rodrigues, que apresenta um painel de atropelos ao regime das leis por parte do primeiro mandatário do país e fala da necessidade de a sociedade reagir diante de tão constantes abusos. Importante ainda o trabalho do cientista político Augusto de Franco, que expõe o que considera essencial num programa de governo, abordando eixos inusuais e que podem servir de estímulo a um bom debate. Esmiuçando o conteúdo da política originária do Planalto Central, vários artigos na revista fornecem elementos para se aferir a conduta e o desempenho dos atuais governantes. Destacamos, entre eles, o texto do físico e professor da USP, José Goldemberg, ex-ministro do Meio Ambiente, a respeito da política nuclear, revelando dimensões novas para tão complexo e delicado tema da pauta nacional. Outro polêmico artigo, assinado pelo professor da UFRRJ, Raimundo Santos, analisa as relações entre o agronegócio, a agricultura familiar e a política, identificando um campo de ação comum em atividades que certa esquerda tenta colocar em polos opostos.

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Apresentação

Outras matérias vão ao âmago de questões decisivas para a vida nacional, sobretudo o seu futuro, como a que se refere à recente licitação em torno da construção da Usina Hidroelétrica de Belo Monte, na Amazônia, assinada pelo conhecido professor Célio Bermann e seu assistente Francisco Del Moral Hernández. Na batalha das ideias, nas questões ligadas ao desenvolvimento e no plano do social e do político, há outras teses e posturas em debate, como as ligadas aos caminhos para a educação dos brasileiros (leia-se o texto do prof. Antonio Máximo), políticas públicas como a habitacional (curioso e instigante é o trabalho do especialista Luiz Prado) e o grave e sempre subestimado problema da costa marítima brasileira (o ambientalista Anivaldo Miranda sacode, com muita propriedade, esse abandonado tema). Prosseguimos assim no cultivo do multilateralismo, repudiando opiniões absolutas e unívocas. Para nós, foi um sucesso resgatar fatos do passado em nossa vida cultural, pois são lições de extrema utilidade, sendo um exemplo o famoso Primeiro Congresso de Escritores Brasileiros, em 1945. E uma satisfação imensa, também, reproduzir um artigo do conhecido jornalista e intelectual Sergio Augusto (antigo colaborador de O Pasquim) a respeito do nosso fundador e patrono Astrojildo Pereira, no ano em que se relembram os seus 120 anos de nascimento. Encerramos essa edição com três poemas inéditos de Ferreira Gullar, por ele selecionados, demonstrando assim nossa participação enfática nas homenagens que agora lhe são feitas no Brasil e em outros países pela outorga do Prêmio Camões, a mais importante láurea da língua portuguesa. Boa leitura! *** A próxima edição, a de novembro, assinalará o décimo aniversário da Política Democrática e, dentro das comemorações, pretendemos modificar esta singular e importante publicação, desde seu conteúdo editorial até a aspectos relacionados com sua distribuição e propaganda. Anunciamos desde já o lançamento de quatro ao invés de três edições a cada ano, e a ampliação do número de exemplares de cada uma delas de dois mil para três mil. Em dezembro, vamos inaugurar a versão eletrônica da revista, para divulgar os textos principais de cada edição, assim como trabalhos inéditos que não serão colocados na versão impressa por absoluta falta de espaço, em razão do acúmulo de colaborações que nos são encaminhadas. 12

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II. observatório Político


Autores Caetano Pereira de Araujo

Sociólogo, professor da UnB, consultor legislativo do Senado e atual presidente da Fundação Astrojildo Pereira

Roberto Freire

Advogado, ex-senador e ex-deputado federal, atual presidente do Partido Popular Socialista

José Goldemberg

Professor titular aposentado da Universidade de São Paulo, é especialista em física nuclear. Foi reitor da USP, ministro do Meio Ambiente e principal coordenador da Conferência Internacional sobre o Meio Ambiente, realizada no Rio de Janeiro (a ECO 1992) e secretário do Meio Ambiente de São Paulo

Danúbio Rodrigues

Jornalista profissional, foi assessor técnico da Câmara dos Deputados, do Ministério das Minas e Energia, da Presidência da República e do Senado Federal, e atualmente, faz análises para embaixadas, representações comerciais e empresas em geral, sobre relações internacionais

Augusto de Franco

Cientista político, especialista em redes sociais, em desenvolvimento local e sustentado, e autor, dentre outros, de Alfabetização Democrática, A Revolução do Local e Escola de Redes


Agenda para um novo Brasil Caetano Pereira de Araujo e Roberto Freire

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eleição de outubro próximo acontece num momento crucial para a definição do rumo do Brasil. Estão em jogo o desempenho político, econômico e social nos próximos anos e, consequentemente, o papel que o país desempenhará numa ordem mundial caracterizada pela interdependência crescente entre as nações. É possível aproximar esta eleição, em termos de significado, à ocorrida em 1994. Fica claro hoje, com o benefício da distância, que se defrontaram naquele momento dois projetos díspares de país. De um lado, em torno de Fernando Henrique Cardoso, o projeto reformista, de ampliação da democracia e consolidação da estabilidade econômica. De outro, Lula e o PT com seus aliados, na sua identidade anterior a 2002, num projeto obsoleto de frente popular, cuja efetivação teria levado o Brasil a dilemas econômicos e políticos similares aos que afligem hoje outros países da América Latina. A disjuntiva atual é semelhante. As propostas do campo que se encontra no governo mudaram, é verdade, de 1994 para cá, mas o Brasil e o mundo mudaram ainda mais. O governismo e sua candidata defendem o modelo administrado por Lula nos últimos oito anos: desenvolvimento conduzido pelo Estado, em aliança com grandes grupos empresariais; e política social restrita na prática aos mecanismos de transferência de renda. Bolsa empresa mais bolsa família, uma receita que pode ser considerada válida em situações pontuais, mas que a social-democracia europeia provou esgotada como modelo geral há muitos anos, insustentável num mundo cada vez mais globalizado.

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Observatório Político

Consideramos esse modelo ineficiente e indesejável, nas condições atuais. Na verdade, a tentativa de praticar essa receita no ambiente contemporâneo promove inevitavelmente tensões e atritos com o ordenamento democrático, uma vez que sua premissa é a concentração de recursos e de poder, nos executivos nacionais, nas grandes corporações e nas cúpulas sindicais. O modelo pareceu viável nos anos recentes graças à herança robusta de reformas legada pelo governo anterior, numa conjuntura internacional que se mostrou favorável na maior parte do período. Do outro lado da disputa, temos a retomada do projeto de reforma do Estado e do aprofundamento da democracia. As candidaturas de oposição, em particular a de José Serra, propugnam a mudança. Para enfrentar as demandas cada vez mais exigentes da cidadania no plano interno e os desafios da concorrência no mundo globalizado, para avançar no rumo da sociedade que queremos todos, com padrões elevados de democracia, equidade e afluência, a oposição sabe que não basta gerir com eficiência o Estado de que dispomos, é preciso reformá-lo radicalmente, para torná-lo capaz de responder satisfatoriamente a essas demandas. Nessa perspectiva, apresentamos para discussão ampla a seguinte proposta de agenda para o Brasil. Nosso objetivo é, em linhas gerais, uma sociedade democrática, afluente e equitativa; o caminho, a reforma do Estado. Democracia e equidade são, com certeza, valores que perseguimos, objetivos normativos, mas ao mesmo tempo premissas do desenvolvimento possível nas condições de hoje. Nesse sentido, convergimos para o consenso vigente nos foros internacionais: desenvolvimento não é redutível a crescimento econômico, mas abriga como dimensões necessárias a ampliação da democracia, a redução das desigualdades e a diretriz da sustentabilidade. A história recente mostrou ao mesmo tempo a necessidade e a insuficiência dos mecanismos de mercado e do Estado para a regulação das relações econômicas e sociais. A lacuna que resta só pode ser ocupada pela cidadania organizada, pela transparência, pelo controle e participação do cidadão. Mercado e Estado precisam para bem funcionar da partilha das decisões e responsabilidades com o cidadão. Por essa razão, a qualidade da democracia hoje é condição do desenvolvimento e é preciso um ganho expressivo de qualidade para que a democracia brasileira tenha condições de responder à altura aos desafios do presente. Na mesma perspectiva, está claro que desenvolvimento, no sentido amplo aqui utilizado, é tarefa complexa que exige o concurso das poten16

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Agenda para um novo Brasil

cialidades de todos. Manter grande parte da população à margem da produção e do consumo, como faz ainda o Brasil, apesar dos ganhos recentes, é um desperdício criminoso de trabalho e talento, que causa perdas a todos nós. Daí a urgência do avanço no rumo da equidade. Sustentabilidade, por sua vez, não mais pode ser vista como um acréscimo politicamente correto ao sistema anterior de produção. O fim da economia baseada no carbono é fato e o desenvolvimento seguirá a trilha aberta pela mudança da matriz energética. O Brasil, apesar das enormes vantagens comparativas de que goza nesse campo, está atrasado na formulação e implementação dessa mudança. Democracia, equidade e sustentabilidade são os eixos da sociedade que emerge, a sociedade do conhecimento. O atendimento às demandas simultâneas desses eixos impõe como tarefas centrais na agenda da política educação, ciência, tecnologia e inovação. Nosso desempenho no que se refere à ciência e tecnologia ainda está aquém do necessário, particularmente em relação à tecnologia e inovação. Mas o desempenho do Brasil em educação, na formação do cidadão e do trabalhador da sociedade do conhecimento, é calamitoso, conforme as comparações internacionais disponíveis. Num mundo de interdependência crescente, as relações internacionais, políticas, comerciais e culturais, assumem importância inédita. Ganham destaque, em especial, os processos de integração regional e a construção e aperfeiçoamento dos organismos responsáveis pela governança mundial. Ambas as dimensões merecem atuação mais incisiva por parte do futuro governo. Afinal, é cada vez maior o número de decisões vitais para os interesses brasileiros, positivas e negativas, tomadas ou postergadas no âmbito desses organismos. Uma estratégia reformista de mudança abrange inúmeras dimensões. Está evidente que precisamos com urgência de reformas em diversos setores e atividades do Estado. Assinalamos, nos limites deste artigo, algumas diretrizes que devem nortear a ação estatal nas suas linhas fundamentais, com as correspondentes reformas exigidas. A primeira questão a considerar, pela centralidade que assume no processo de mudança é a ampliação e o aprofundamento da democracia. Como antes apontado, não vemos esse processo apenas como um objetivo normativo, mas como necessidade imposta pelas condições do desenvolvimento presente. Muito há a caminhar, em termos de aumentar a transparência dos atos governamentais e a participação do cidadão, melhorar a qualidade da representação política, sanar os desequilíbrios enormes entre os poderes da República

Caetano Pereira de Araujo e Roberto Freire

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Observatório Político

e os diferentes níveis da Federação. Os avanços institucionais nessa direção constituem a matéria de uma reforma política. Reforma política é, para nós, um processo demorado, de acumulação progressiva de ganhos. O ponto inicial, contudo, que deve ser enfrentado na primeira hora pelo novo governo, é a mudança das legislações eleitoral e partidária. Para romper com a situação atual de partidos fracos e legislativos aquém de suas obrigações constitucionais, para conseguirmos partidos efetivos e legislativos atuantes, a regra eleitoral deve mudar. O primeiro passo da reforma política deve ser, portanto, a adoção do voto distrital misto, com listas fechadas, alternância de sexos e financiamento público de campanha. Efetuada essa mudança, iniciado o processo de fortalecimento dos partidos e dos legislativos, a questão da mudança do sistema de governo deve ingressar na agenda política brasileira. A superação da hipertrofia do Executivo, bem como o processo de responsabilização do Legislativo, culmina na adoção do parlamentarismo. Uma opção consciente do eleitor nessa direção deve ser precedida de experiências parlamentaristas, nos âmbitos municipal e estadual, que lhe permitam a manifestação com conhecimento de causa, no decorrer de uma eventual consulta popular. Iniciadas as reformas eleitoral e partidária, eliminada, portanto, a demanda política sobre a gestão de importantes espaços estatais, torna-se possível avançar na reforma democrática do Estado. A proposta Bresser-Pereira de reforma administrativa do Estado, correta no essencial, pecou, de um lado, por não considerar a necessária mudança prévia na regra eleitoral, de outro por não perceber que o acréscimo de um componente gerencial em determinados segmentos do Estado deveria ser acompanhado pelo incremento da participação da sociedade civil organizada. A diretriz geral da reforma democrática do Estado deve contemplar a redução drástica do número de cargos de livre provimento e o fortalecimento simultâneo dos instrumentos burocráticos, gerenciais e participativos da gestão pública. A partir do novo desenho do Estado, uma série de outras reformas importantes, como a tributária, poderão avançar com maior segurança. A segunda questão é o combate às desigualdades e a procura de ganhos em termos de equidade social, em todas as suas dimensões, inclusive no que diz respeito à região, gênero e raça. Para respeitar

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os limites deste artigo, assinalaremos apenas algumas linhas de política pública com foco nas desigualdades socioeconômicas. É inegável que nos 25 anos de democracia, particularmente nos 16 últimos anos de estabilidade econômica, conseguimos no Brasil avanços significativos em termos de inclusão social e redução das desigualdades. É preciso reconhecer, no entanto, que ainda estamos longe da situação de equidade mínima desejável e necessária. Pobreza e indigência caíram, mas seus percentuais continuam elevados. Além disso, parte importante dos egressos da indigência alcançaram uma situação de consumo nova, compatível com a própria sobrevivência, mas não foram incluídos de forma plena em termos de inserção produtiva nem de autonomia cidadã. Para prosseguir no rumo da inclusão precisamos, em primeiro lugar, manter e aperfeiçoar os programas de transferência de renda existentes, com controle maior sobre a seleção de beneficiários e a partilha de responsabilidades por sua implementação com os governos estaduais e municipais. No entanto, como observamos, se esse tipo de programa tem o mérito indubitável de manter os pobres vivos, apresenta o defeito também evidente de manter os pobres na situação de pobreza em que se encontram, sem abrir caminhos de inserção produtiva e de ganho de responsabilidade cidadã. Para avançar nesse rumo, para o início de um círculo virtuoso de acumulação de capital social, são necessários outros instrumentos. Em primeiro lugar, uma política educacional muito mais incisiva e eficiente que a atual. A implantação da educação em tempo integral é imperativa, assim como a melhoria da qualidade do ensino fundamental e médio. A avaliação periódica de desempenho deve tornar-se o norte da política educacional, ao identificar as fragilidades a serem superadas. O desempenho do Brasil em todos os testes internacionais de desempenho escolar tem-se mantido pífio, com efeitos já observáveis em termos de mercado de trabalho. A escassez de profissionais qualificados em algumas áreas começa a configurar-se um gargalo inibidor do crescimento comparável aos gargalos na oferta de transporte e energia. O segundo instrumento a ser mobilizado é uma política nacional de trabalho. Trabalho no sentido amplo, uma vez que, em condições de sociedade do conhecimento, o trabalho assume cada vez menos a forma de emprego. Uma política desse tipo deverá incentivar o emprego formal, mas também apoiar a pequena e microempresa, o associativismo, o trabalho autônomo e o empreendedorismo de maneira geral. Caetano Pereira de Araujo e Roberto Freire

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Observatório Político

A terceira questão a ser enfrentada é a da sustentabilidade do desenvolvimento brasileiro. A controvérsia em torno da sustentabilidade como premissa necessária do desenvolvimento está vencida. A mudança da matriz energética, o caminho na direção de uma economia não dependente do consumo de carbono é irreversível e o grau de ousadia do engajamento dos diferentes países nessa mudança será fator relevante na competição internacional. O Brasil detém vantagens excepcionais nessa conjuntura, com destaque para a matriz energética limpa e o estoque de biodiversidade que o território nacional abriga. Faltamnos, ainda, clareza na definição política do rumo a tomar. Todas as decisões da política econômica, inclusive aquelas relativas à velha matriz, como o projeto do pré-sal, devem tomar como norte o futuro do pós-carbono. Nesse cenário, fica clara a centralidade da política de ciência, tecnologia e inovação. Precisamos de uma política de C&T, compatível com as exigências do novo tempo, que aumente os investimentos no setor, priorize a articulação com o setor produtivo e supere o gargalo hoje existente em termos de inovação. Impõe-se, também, acelerar o processo de mudança da matriz energética. É urgente conferir prioridade enfática para a expansão do uso de energias alternativas como o etanol, a eólica, a solar, a biomassa, as hidroelétricas de pequeno e médio porte, a energia nuclear, bem como para programas de aumento da eficiência no transporte e uso da energia. Essa é uma opção política que implica mudança radical. Para tanto, faz-se indispensável a transição acelerada para uma nova matriz de transportes, com prioridade para a ferrovia e a hidrovia, em detrimento da rodovia; para o transporte coletivo em detrimento da locomoção individual. A agropecuária brasileira, em boa parte graças ao investimento público em ciência e tecnologia, encontra-se na vanguarda da produção mundial. Cumpre agora superar a oposição entre agropecuária e sustentabilidade e caminhar na direção de uma agropecuária sustentável. Para tanto é necessário prosseguir no desenvolvimento científico e tecnológico com o objetivo simultâneo de aumentar a produtividade e preservar adequadamente a terra e os recursos naturais. Esse objetivo não será alcançado sem elevar o investimento em pesquisa, com ênfase na sustentabilidade e foco especial na agricultura familiar.

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O Brasil e armas nucleares José Goldemberg

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elite dirigente do país tem uma estranha fascinação por armas nucleares. Na época dos militares, em meados da década dos 70, o general Geisel fez um acordo com a Alemanha para a instalação no Brasil, de oito reatores nucleares de grande porte para a produção de eletricidade, parte do qual previa a transferência ao país da tecnologia de enriquecimento de urânio e até reprocessamento para separação do plutônio. Ambos estes caminhos poderiam levar à produção de armas. Na reunião do Conselho de Segurança Nacional que aprovou o Acordo – segundo relato do jornalista Elio Gaspari – ficou claro que estas opções ficariam abertas. O Acordo Nuclear com a Alemanha não prosperou devido à oposição dos Estados Unidos e à resistência interna dos cientistas congregados na SBPC que argumentaram que energia nuclear não era uma prioridade uma vez que o país tinha outras opções mais atraentes para produção de energia elétrica como Itaipu, Tucuruí, Porto Primavera e muitos outros. De qualquer forma as intenções dúbias do governo militar levaram à aplicação de sanções leves à importação de certas tecnologias. As suspeitas foram crescendo durante a década dos 80 de que o governo embarcara num “programa nuclear paralelo” ao da instalação de reatores em Angra dos Reis com intenções de produzir artefatos nucleares. A situação que o Brasil enfrentava na ocasião era parecida com a que o Irã enfrenta hoje. Este país têm uma longa história de atividades semiclandestinas que não são aceitas pelos países que aderiram ao TNP. Mais ainda, as exaustivas negociações que o Irã tem tido durante os últimos cinco anos com os países europeus, são consideradas uma estratégia para ganhar tempo e aumentar a sua capacidade de enriquecer urânio e, eventualmente, produzir artefatos nucleares. Em particular a revelação da existência de um poço adequado para testes nucleares, na Serra do Cachimbo no Pará no fim da década dos 80 provocou grande celeuma, o que levou o presidente Collor em 1991 a firmar com a Argentina um acordo criando a Agên-

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cia Brasil-Argentina de Contabilidade e Controle (Abacc) que na prática significou o abandono de “programas nucleares paralelos” nos dois países. O Acordo previa a fiscalização mútua das instalações nucleares dos dois países e foi seguida logo após por um Acordo Quadripartite (Brasil, Argentina, Abacc e Agência Internacional de Energia Atômica) que se revelou exemplar. A Abacc e a Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea) realizam inspeções regulares nas instalações nucleares “declaradas”, inclusive na unidade de enriquecimento de urânio localizada em Resende, Rio de Janeiro. Problemas que têm surgido com estas inspeções que são consideradas “intrusivas” por alguns, porque não permitiriam a proteção completa da tecnologia brasileira de enriquecimento desenvolvida pela Marinha acabaram sendo contornados. Este argumento só é feito por grupos mal informados sobre a natureza real das inspeções que podem perfeitamente proteger tais segredos (se existirem). As razões pelas quais o governo militar deixou aberta a porta para a produção de armas nucleares é difícil de entender a não ser pela atmosfera venenosa da “Guerra Fria” e de ideias geopolíticas de que com a posse de armas o Brasil se tornaria a potência dominante da América do Sul. Como seria de esperar, a Argentina, na ocasião também sob um regime militar, seguiu o mesmo caminho abrindo a possibilidade de uma “corrida nuclear” no Cone Sul da América Latina. Na época, nem o Brasil nem a Argentina havia aderido ao Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP). O TNP foi o resultado de uma barganha diplomática que ocorreu há mais de 40 anos pela qual os países que não tinham armas nucleares, em 1967, renunciaram a desenvolvê-las. Em retorno, receberam o “direito inalienável” de usar energia nuclear para fins pacíficos (art. IV do TNP) para o que poderiam receber tecnologia dos países que, na época, tinham armas nucleares (Estados Unidos, União Soviética, Inglaterra, França e China) para uso em fins pacíficos. Por sua vez, as potências nucleares, se comprometeram a “negociar em boa fé” (art. VI do TNP) medidas que levassem ao desarmamento nuclear. A transferência de tecnologias e materiais nucleares para os países não nucleares, contudo, deveria estar em conformidade com as regras de fiscalização e salvaguardas estabelecidas pela Aiea. Até o presente, 166 países, inclusive o Brasil aceitaram estas salvaguardas. O Tratado foi adotado em 1968 numa época em que nenhum país em desenvolvimento tinha as condições mínimas para desenvolver 22

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O Brasil e armas nucleares

armas nucleares. Quem tinha estas condições eram países altamente industrializados como a Alemanha, Japão, Suécia e alguns outros. O empenho das cinco potências nucleares era de evitar que eles, e não os países em desenvolvimento, desenvolvessem estas armas. O Brasil e a Argentina só aderiram ao TNP na década dos 90 no Governo Fernando Henrique Cardoso, o que permitiu que os dois países conduzissem programas nucleares sem problemas, incluindo atividades de enriquecimento de urânio em Rezende/RJ. Para evitar atividades nucleares clandestinas que levassem à produção de armas nucleares, a Agência Internacional, na década dos 90, adotou novas regras de salvaguardas contidas no Protocolo Adicional. De acordo com as regras anteriores, a Agência poderia inspecionar apenas atividades nas “instalações declaradas” pelo país, de modo que instalações secretas não poderiam ser fiscalizadas. Pelo Protocolo Adicional podem ser inspecionadas quaisquer instalações, não só as declaradas, mas também as que fornecem equipamentos e outros produtos (como minas de urânio e equipamentos para usinas de enriquecimento) às instalações nucleares propriamente ditas. É aqui, contudo que se origina o problema; as regras adotadas originalmente pela Aiea na sua fiscalização não se mostraram suficientes para impedir que vários países não nucleares, como a Índia, o Paquistão, Israel e Coreia do Norte, tivessem acesso às tecnologias necessárias para fins militares e desenvolvessem armas nucleares. Além disso, Iraque, Líbia e mais recentemente Irã usaram e abusaram destas regras dando origem a sérias suspeitas que estivessem engajados em programas que levariam à produção de armas nucleares. Cada vez que um país desenvolve armas nucleares ele estimula outros a fazerem o mesmo para estabelecer uma paridade nuclear. Desde maio de 1977, a Agência Internacional de Energia Atômica aprovou protocolos adicionais para 133 países, 102 dos quais estão sendo implementados. Todos os países nucleares adotaram, voluntariamente, protocolos adicionais incluindo os Estados Unidos. Surpreendentemente em pleno século 21 com as grandes potências nucleares engajadas de fato no desarmamento, o governo Lula parece ter adotado o discurso dos militares. A forma com que isto é feito varia, mas as declarações de altas autoridades do governo encorajam a ideia que inspeções violam a soberania nacional e não podem ser aceitas como se pode ver nas declarações de vários dos seus integrantes.

José Goldemberg

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O mais explícito foi o vice-presidente José de Alencar que em setembro de 2009 declarou ser favorável ao desenvolvimento de armas nucleares com a justificativa de que, com fronteiras que se estendem por 15 mil quilômetros e um mar territorial com petróleo a grandes profundidades, estas armas não só seriam um instrumento de dissuasão contra possíveis agressores como também aumentariam a importância do Brasil no cenário internacional. Já Samuel Pinheiro Guimarães, ministro de Assuntos Estratégicos, ao ser perguntado se foi um erro o Brasil ter assinado o TNP declarou que o país não permitirá “a revisão tendenciosa do Tratado”. Este argumento, segundo ele, é “apenas um pretexto para que outros países descartem do seu direito ao desenvolvimento da tecnologia nuclear para fins pacíficos. Em realidade as potências nucleares querem reforçar o seu oligopólio do poder nuclear e convencional”. Na mesma linha de raciocínio, a “Estratégia Nacional de Defesa”, preparada pelo Ministério da Defesa e aprovada pelo Congresso nacional, considera o setor nuclear como estratégico “transcendendo, por sua natureza, a divisão entre desenvolvimento e defesa” e que: O Brasil zelará por manter abertas as vias de acesso ao desenvolvimento de suas tecnologias de energia nuclear. Não aderirá a acréscimos ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares destinados a ampliar as restrições do Tratado sem que as potências nucleares tenham avançado na premissa central do Tratado: seu próprio desarmamento nuclear.

A realidade é que a adesão ao Protocolo Adicional não impede nenhuma das atividades listadas na Estratégia Nacional de Defesa e não impede o desenvolvimento de tecnologia nuclear nem sua transferência para o país desde que destinada a atividades pacíficas. Estes objetivos se baseiam no fato que o Brasil possui a 6ª maior reserva mundial de minério de urânio, domina a tecnologia de enriquecimento (em pequena escala) e está projetando um reator para propulsão naval. Sucesso em todas estas áreas permitiria em princípio que o Brasil se tornasse um país capaz de exportar urânio “enriquecido” (além de suprir suas necessidades internas). Este seria um salto tecnológico que exigiria grandes investimentos (superiores a 1 bilhão de dólares, só nas unidades de enriquecimento) e só se justificaria se fosse instalado no Brasil um grande número de reatores nucleares, o que parece uma meta muito distante além de controvertida.

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O Brasil e armas nucleares

Os argumentos levantados em relação às restrições que a adesão ao Protocolo Adicional criaria são incorretos. Pelo contrário é a não adesão que poderia criar dificuldades para esta transferência e a oposição que o Brasil e o Irã têm feito em diversas conferências internacionais à sua adoção geram suspeitas de que haveria interesse destes países em produzir artefatos nucleares. É por esta razão que a recente Conferência das Partes do TNP que se reúne a cada cinco anos, em maio do corrente ano, adotou resolução recomendando a adesão de todos os signatários do Tratado ao Protocolo Adicional. A Conferência dos G8 (grandes países industrializados) em Toronto, em junho do corrente ano, fez recomendações no mesmo sentido O silêncio do presidente da República sobre o tema encoraja as desconfianças de que o Brasil tem intenções de desenvolver armas nucleares como forma de exercer a soberania nacional Só um nacionalismo estreito e retrógrado poderia nos levar a pensar que o TNP viola a soberania nacional, pois o seu conteúdo é análogo ao art. 21 da Constituição Federal que determina que “toda a atividade nuclear em território nacional somente será admitida para fins pacíficos”. Assegurar nossa soberania não vai decorrer da posse de armas nucleares, mas de um desenvolvimento nacional, científico e tecnológico autêntico.

José Goldemberg

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O

presidente Luiz Inácio Lula da Silva usou discurso a 13 de julho corrente, na cerimônia oficial de lançamento do edital do trem-bala (que ligará São Paulo, Campinas e Rio de Janeiro), para promover a sua candidata à Presidência. Atribuiu à Dilma Rousseff a responsabilidade por esse projeto, num discurso palanqueiro sob aplausos de uma plateia de funcionários comissionados, políticos da base aliada e militantes petistas. A Lei Eleitoral proíbe os agentes públicos de ceder ou usar em benefício de candidato bens móveis ou imóveis pertencentes à administração. Com base nesse dispositivo, há a interpretação de que agente público não pode usar eventos oficiais de governo para campanha em prol de seu candidato. No ano passado, o TSE cassou o então governador do Maranhão, Jackson Lago (PDT), por uma série de motivos. Um deles foi um vídeo incluído no processo no qual o governador na época da campanha, José Reinaldo, lhe declarava apoio explícito durante um evento de governo. Ao citar Dilma no discurso, Lula tenta, uma vez mais, associar sua imagem à da candidata governista. Para isso, o PT e o presidente já utilizaram diversos meios: em programa partidário veiculado em dezembro passado, por exemplo, surgiu em cena afirmando que ela é “responsável pelo PAC, pelo pré-sal e pelo programa Minha Casa, Minha Vida”. Em maio, utilizou o espaço de sua coluna semanal, publicada em 153 jornais, para defender o PAC e fazer referência à candidata petista. Como é do conhecimento de boa parte da população brasileira, o presidente da República, pela natureza do cargo, como primeiro mandatário, não pode dar-se à condição de infrator de leis. Acontece que o presidente viola continuadamente a legalidade do país, particularmente a legislação eleitoral, tornando-se corriqueira a aplicação de multas contra ele, por antecipação de campanha. Ele não apenas manifesta plena consciência de seus atos infratores, como tripudia sobre os tribunais e até anuncia que incorrerá em novas infrações, sem nenhum pudor. Nesse caso do lançamento do

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A República posta em questão

trem-bala, avançou significativamente na violação da institucionalidade. Declarou saber dos impedimentos na vinculação e veiculação daquele projeto, fez chacota e propaganda de sua candidata, utilizando-se de recursos públicos. Numa democracia consolidada, não há soberano. Apesar de que até nas monarquias constitucionais, o rei (ou a rainha) submete-se, como dizem os juristas, ao arbítrio das leis. Ninguém deve e nem pode estar acima da lei. Se mandatários a violam, são indiciados em processos e são passíveis do rigor da legislação. Não passa pela cabeça de ninguém algo diferente. Eis que Lula acredita que o manto de sua popularidade é capaz de lhe dar cobertura para se considerar impune. Há positivas reações de setores do Ministério Público, de parte da imprensa, de alguns partidos políticos, além de certo número de intelectuais, que se manifestam contra esse desesperado desvario do chefe do Executivo federal. Porém, a questão não é Lula, mas a República, que por princípio deve se pautar pela igualdade de todos perante a lei. Vejamos algumas das mais recentes manifestações a respeito de tão escandaloso e inaceitável desrespeito às regras democráticas e republicanas. Em duro editorial, o jornal O Estado de S. Paulo, em sua edição de 15 de julho corrente, denuncia que “Luiz Inácio Lula da Silva entrará para a história das eleições presidenciais brasileiras sob o Estado Democrático de Direito pela desfaçatez sem paralelo com que se conduz. Ele não apenas colocou os recursos de poder próprios do cargo que exerce à disposição de sua candidata – escolhida, de resto, por um ato de vontade imperial –, como ainda assume ostensivamente o abuso e disso se jacta”. Comenta que “a demolição das leis e das instituições destinadas a separar Estado, governo e campanhas políticas não se fez em um dia” e que “Lula começou a pensar no segundo mandato, e a se guiar rigorosamente por essa meta, mal tirou a faixa recebida do antecessor em 1º de janeiro de 2003 – se não antes. E começou a pensar no nome do sucessor, e a subordinar a administração federal aos seus cálculos eleitorais, tão logo descartou definitivamente, decerto ao concluir que se tratava de uma aventura de desfecho incerto, a possibilidade de um terceiro período no Planalto”. Relembra O Estadão que “depois que os dois grandes escândalos do lulismo – o mensalão e a perseguição a um caseiro – excluíram da lista dos presidenciáveis do presidente os cabeças de seu gover-

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no, José Dirceu e Antonio Palocci, a solitária decisão de lançar a candidatura da ministra Dilma Rousseff, com experiência zero em competições pelo voto popular, embutia uma consequência que só o seu patrono poderia barrar. Desde que, bem entendido, tivesse ele um mínimo de apreço pelos valores republicanos dos quais fala de boca cheia”. Depois de ressaltar a “gana de atrelar o comando do Executivo aos seus interesses eleitorais”, por parte do presidente Lula, o jornal – com certa ironia – comenta que “agora, chega a ser intrigante, nas análises políticas, a dissociação entre o uso da popularidade de Lula e a sua desmesurada desenvoltura em entrelaçá-lo com o abuso de sua posição”. E acrescenta: “Não foi por falta de aviso. Já não bastassem as transgressões que cometia ao carregar Dilma nos ombros presidenciais para cima e para baixo, ele anunciou no congresso do PT, em maio último, que a sua prioridade este ano – como presidente da República – era eleger a sua protegida. Para quem tem a cara dura de escarnecer tão desbragadamente do decoro político elementar, nada mais natural do que proclamar que sabe que transgride a lei e nem por isso deixará de transgredi-la”. Nesse mesmo dia, a Folha de S. Paulo, num editorial intitulado “Fora dos trilhos”, denuncia que “O hábito da gentileza cínica, que confere algum colorido de comédia aos mais tediosos jogos de futebol”, ”bem o caso daqueles zagueiros especializados na canelada e no carrinho que, depois de derrubar o adversário sem a menor cerimônia, inclinam-se docemente sobre a vítima, pedindo desculpas e oferecendo-se para levantá-lo do chão, vem há um bom tempo sendo transplantado para o campo da política pelo presidente Lula”. E – segundo o jornal – “poucas vezes de forma tão deslavada” quanto nos eventos últimos. “Acostumando-se a infringir essa regra – continua –, o presidente Lula foi além, todavia. Caracteriza-se plenamente o uso da administração pública, com sua máquina de projetos, anúncios, siglas e promessas, para a promoção de um interesse partidário. Lula já não se contenta em armar inaugurações para as célebres “obras do PC”, ainda que incompletas; o mero lançamento de um edital de concorrência, para uma obra como o trem-bala, transforma-se em ocasião eleitoreira”. Finalizando: “A esta altura, vai-se tornando constrangedora a dificuldade da candidata Dilma Rousseff em alcançar autonomia eleitoral, dependendo ainda de ter seu nome carregado por Lula em toda cerimônia de governo. Inegavelmente um grande “puxador” de votos, o presidente atropela mais uma vez a lei – com a sutileza de um zagueiro, ou, se quisermos, de uma locomotiva fora dos trilhos”. 28

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Dois dias depois, o mesmo O Estado de S. Paulo volta a denunciar, em editorial, que “A política do vale-tudo adotada pelo governo para eleger a candidata do chefe, a ex-ministra Dilma Rousseff, desafia a Justiça Eleitoral, a imprensa independente, a sociedade organizada e todos aqueles que sabem que não basta o voto livre, secreto, universal e devidamente contabilizado para assegurar a integridade do mais importante rito da democracia”. E alerta para o fato de que “A garantia da chamada lisura do pleito e o ideal da igualdade das oportunidades eleitorais exigem desde muito antes da ida às urnas a ativação de tantos contrapesos quantos concebíveis dentro da lei e da ética pública à decisão do presidente Lula de perverter a administração federal em instrumento de campanha de sua escolhida. Já seria demais se fosse apenas ele, “nas horas vagas”, o arrimo de Dilma”. E arremete: “Na realidade, Lula lidera o mais desenvolto processo de captura do governo central para fins eleitorais de que se tem memória no Brasil desde o tempo das eleições a bico de pena. Nesta semana, a ponta do iceberg foi a desfaçatez do presidente em fazer propaganda da ex-ministra duas vezes seguidas – primeiro, em um evento oficial na sede do governo; depois, ao tornar a louvá-la no mesmo momento em que dizia se desculpar pelo ilícito da véspera. Num dia, aparece o secretário da Receita Federal, Otacílio Cartaxo, afirmando que só em 120 dias – não antes do primeiro turno, portanto – divulgará as conclusões da sindicância interna sobre a violação do sigilo fiscal do vice-presidente do PSDB, Eduardo Jorge Caldas Pereira, com o mais do que provável intento de descobrir munição para alvejar a candidatura José Serra. No outro dia, fica-se sabendo que o governo contrabandeou para dentro de um kit com materiais de defesa do voto em mulheres um discurso de 6 páginas de Dilma. O conjunto, com 3 mil livros, 20 mil cartazes e 215 mil cartilhas, foi produzido e distribuído pela Secretaria de Políticas para as Mulheres, vinculada à Presidência da República”. Encerrando, acentua que o problema do país “é frear as violações acintosas da lei eleitoral pelo governo Lula”. No mesmo dia 17, também em editorial, sob o título “Afronta à democracia”, o Correio Braziliense denuncia que “As frequentes violações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a preceito da legislação eleitoral constituem exemplo de afronta às instituições políticas e ao regime democrático. Não seriam toleráveis ainda que ele as praticasse por ignorância, hipótese descartada pela atuação pedagógica do assessoramento jurídico. Mas se, apesar de tudo, verdadeira fosse a falta de conhecimento da regra legal, não poderia o inquilino do Palácio do Planalto merecer a indulgência da sociedade. É princípio Danúbio Rodrigues

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desde sempre notório: ninguém pode excusar-se de cumprir a lei com a alegação de que a desconhece”. Após enfatizar que Lula “tem plena ciência do que é legal e ilegal nas suas condutas”, tanto que “a certeza da violência contra a norma não o impediu de reprisá-la, mesmo depois de multado seis vezes pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE)”, o jornal associado considera “muito grave, portanto, servir-se de solenidades oficiais para enriquecer o cacife eleitoral de sua candidata à Presidência da República”. E admitiu ser uma “insolência”, por tê-lo feito nas barbas do presidente do TSE, ministro Ricardo Lewandowsky, o relato em discurso pronunciado na 4ª Cúpula Brasil União Europeia, de como ele atropelou a lei. O jornal admite “possível que a lei seja imperfeita. Mas, antes de tudo, é a lei”. Daí o principio de “não é facultado a ninguém insurgirse contra suas disposições por julgá-la inadequada à realidade ou desnecessária”. E define: “Trata-se de obrigação irrecusável imposta a todos os cidadãos. Não exclui o titular do poder político de maior hierarquia na Federação”. Razão porque “o mais importante magistrado republicano, que se encarna no presidente da República, deve ser o primeiro a submeter-se ao ordenamento legal”. Considerando “lícita a decisão de Luiz Inácio Lula da Silva de indicar e apoiar a candidata à sua sucessão”, acentua, porém, que o presidente “não deve, sob pena de reprimenda da consciência civilizada e da Justiça, agir com abuso de poder, na exaltação à postulante fora do arco de incidência desenhado na lei.” Em artigo em O Estado de S. Paulo (edição de 21/07/2010) “Para os amigos, sigilo; para os inimigos, devassa”, o jornalista e escritor José Nêumanne relata que “Nem a chuva nem o fenômeno do encolhimento da multidão (o PT esperava 100 mil, mas só pouco mais de mil pessoas, segundo O Globo, foram a seu comício no Rio, dia 16) arrefeceram a disposição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de desrespeitar o “império da lei”, definição de qualquer democracia que se preze, e “vociferou contra “uma procuradora qualquer aí” que, segundo ele, tenta inibir sua presença na campanha”. “Só que essa violação do juramento que ele fez em 1º de janeiro de 2003 e repetiu quatro anos depois – o de obedecer e fazer cumprir o sistema legal sob a égide da Constituição da República – não se manifesta apenas nas palavras do chefe supremo do petismo no poder, mas mais ainda nas ações de seus correligionários” – relata o periodista, que acrescenta: “Para ficarem no poder eles têm feito tudo e mais um pouco. E não serão o pudor nem as normais legais que os inibirão”.

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Segundo Nêumanne, “não têm faltado, em sete anos e sete meses de República petista, assuntos que eles pudessem investigar, se seu objetivo fosse de fato o interesse público. Por exemplo, nunca se propuseram a apurar se é verdadeira a delação do presidente nacional do PTB, Roberto Jefferson (RJ), de compra de apoio parlamentar pelo governo no episódio – sub judice no Supremo Tribunal Federal (STF) – conhecido como “mensalão”. Da mesma forma, não denunciaram os responsáveis pela quebra do sigilo bancário do caseiro Francenildo Pereira, cujo único delito conhecido é o de ter testemunhado que vira o então ministro da Fazenda Antônio Palocci, do PT, frequentar assiduamente uma mansão suspeita em Brasília”. No relato sobre os petistas, ele lembra “a completa impunidade gozada por Waldomiro Diniz, cujo crime confesso de tentar achacar um empresário da jogatina nunca foi investigado pela Polícia Federal (PF) nem pelo Ministério Público do Distrito Federal”. Enfatiza que “os contumazes quebradores do sigilo de adversários a serviço do PT no poder, estavam preparando quatro dossiês, com cópias das declarações do Imposto de Renda (IR) de 2005 a 2009 de Eduardo Jorge, vice-presidente nacional do PSDB, numa nova tentativa de tentar atingir o candidato José Serra. E sobre isso o secretário da Receita, Otacílio Cartaxo, foi convocado a depor na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal, à qual disse que já foram identificados os servidores responsáveis pelos “cinco ou seis” vazamentos ocorridos. A imprecisão dessa “informação” já denota por si só o pouco-caso com que ele lidou com as explicações que tinha de dar aos senadores. E também se negou a dar seus nomes antes do fim das investigações, prometido para 120 dias. Ou seja, para depois do segundo turno da eleição presidencial, disputada por um candidato do partido do qual a vítima da quebra de sigilo é dirigente e pela candidata para quem trabalhavam os suspeitos de terem violado esse direito pétreo do cidadão. Neste ínterim, o corregedor-geral da Receita, Antônio Carlos Costa d’Ávila Carvalho, reduziu pela metade (e, mais relevante, para antes do pleito de outubro e novembro) o prazo dado pelo secretário: sessenta dias.” A comentarista política Dora Kramer, no artigo “Ilegalidade que satisfaz”,1 destaca que “o PT quer que a vice-procuradora eleitoral, Sandra Cureau, se atenha a “falar nos autos” e cogita representar contra ela no Conselho Nacional do Ministério Público devido ao que o partido considera exorbitância de prerrogativas cometida pela procuradora. Por esse entendimento, teria extrapolado de sua função – 1 O Estado de S. Paulo, edição de 21/07/2010. Danúbio Rodrigues

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de zelar pela observância da lei ao advertir que o presidente Luiz Inácio da Silva poderia vir a ser processado por abuso de poder por causa do uso da máquina pública em favor da candidata do PT (seis multas) à Presidência da República, Dilma Rousseff (seis multas). De acordo com dirigentes do PT, Sandra Cureau transgrediu regras ao aconselhar o presidente Lula a “fechar a boca” antes que seja tarde demais e que ponha em risco a sobrevivência legal da candidatura oficial. O PT alega preocupação com a legalidade do processo. De verdade não é nada disso. Se fosse, seu militante mais destacado, o presidente da República, não estaria exorbitando há tanto tempo e de tal maneira que deixará a marca da ilegalidade impressa na sua gestão. O que o PT faz é exatamente o que diz o procurador-geral da República, Roberto Gurgel: intimida. Ou melhor, tenta intimidar. A tática de arreganhar os dentes e em seguida se fazer de vítima já deu muito certo”. Segundo Dora Kramer, “a bem aplicadíssima reprimenda da viceprocuradora eleitoral Sandra Cureau apenas repetiu o que vem sendo dito por magistrados”. Em maio, durante o julgamento de mais uma transgressão presidencial - o uso do programa partidário como horário eleitoral – o ministro Marco Aurélio Mello já havia advertido que a multa “não é a consequência mais séria” e que a repetição de infrações poderia ensejar abertura de processo por abuso de poder mais adiante”. Para a jornalista fluminense, “de lá para cá essa vem sendo a tônica de repetidas manifestações da Justiça e de outros setores da sociedade, mais sensíveis para esse tipo de questão desde a aprovação da Lei da Ficha Limpa. Por isso mesmo é que as atitudes do presidente Lula ficam cada vez mais desconectadas do contexto em que o clamor passou a ser pela correção e pela legalidade. Brutalidades tais como referir-se a “uma procuradora qualquer aí” já não são mais vistas como simples acidentes dos improvisos presidenciais. Tantas Luiz Inácio da Silva fez que a tolerância das pessoas esgotou-se. Agora o ambiente já não é mais de indiferença. Tanto que houve a reação forte da Procuradoria-Geral, da OAB e entidades afins, que não parecem mais dispostas a compactuar com a escalada de desrespeito à lei e à Constituição comandada pelo presidente da República. Lula por duas vezes já disse que não transgrediria mais, o que o põe na condição de réu confesso. O PT, portanto, dissimula quando invoca o cumprimento da lei para justificar a ideia de representar contra a vice-procuradora. Trata-se só de uma cena de ofendido. Para ver se o público se esquece do mais contumaz dos ofensores, cujo plano assumido é fazer dessa eleição uma guerra sob o lema “nós contra eles”.

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O cientista político e professor universitário Marco Aurélio Nogueira, no seu comentário semanal em O Estado de S. Paulo (edição de 24 de julho), intitulado “Apoios e problemas”, pondera ser “compreensível o empenho do presidente Lula para fazer de Dilma Rousseff a próxima governante do país”, já que “todo governante enfrenta esse dilema quando se aproxima o desfecho de seu mandato”. Argumenta, porém, que “para ajudá-lo a não cair em tentação, os Estados republicanos valem-se de mecanismos de controle e moderação” e que “certos aspectos da conduta de Lula estão associados a essa relação do governante com o Estado. Não são de ordem moral. São éticos e políticos”. Acentua, ao abordar a transgressão da legislação eleitoral, que veta o uso da máquina pública (e, portanto, da palavra, dos atos e do gestual do presidente) para promover e favorecer candidaturas ou coalizões eleitorais, que o presidente Lula, “indiferente aos rigores e às penas da lei, tem sido recorrente na violação das regras e dos limites legais”, que foi “advertido e multado, pediu desculpas, mas não se abalou” e que “sua campanha em favor de Dilma ultrapassou a dimensão republicana que se espera seja considerada por qualquer executivo público”. Frisa que desse comportamento presidencial “derivam duas consequencias principais, que precisam no mínimo ser consideradas. A primeira é a banalização da lei, a disseminação de uma imagem de que a lei só vale para os outros, de que sempre se pode dar um jeito de escapar de suas restrições”, e enfatiza: “Lula dá um péssimo exemplo ao país, que fica ainda pior por vir do alto, de uma liderança que goza de extraordinário prestígio e popularidade. Ele, a rigor, não precisaria se dar a tais exageros. Poderia se preservar e com isso transferir mais valor para nossa República. Seria aplaudido por todos”. Para concluir: o presidente Lula “parece não levar na devida conta certas obrigações do cargo que ocupa”.

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Ideias para um outro tipo de desenvolvimento Augusto de Franco

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s eleições estão chegando, mas o fundamental não está sendo discutido. Quais são as propostas que estão na mesa? Quais são os programas de governo em disputa? Existe algum projeto que considere seriamente o tema do desenvolvimento humano e social sustentável, quer dizer, da sustentabilidade? Costuma-se colocar no primeiro capítulo de qualquer programa de governo aquele clássico conjunto de medidas capazes de impulsionar o crescimento econômico. Essa é a pedra de toque, a panaceia dos tempos modernos. O crescimento nos desobriga de pensar criativamente em outras coisas. O crescimento resolve tudo. Mas, a despeito das crenças dos economistas, não existe, a rigor, uma ciência do crescimento, nem uma fórmula supostamente decorrente dessa (suposta) ciência. Sempre podem acontecer imprevistos que desarrumem tudo, uma vez que, a rigor, todas as economias contemporâneas são instáveis e dependem de fatores sobre os quais não temos controle. Talvez um sobrepasso no processo de crescimento dependa, mais do que de qualquer outra coisa, da boa sorte. Por que não? Já vimos que não basta a vontade política de um governo imbuído de boas intenções e munido de boas orientações. Governos não podem gerar crescimento. Em geral, mais atrapalham do que ajudam. Costuma-se dizer que quem gera crescimento é o mercado. Mas, por outro lado, existem evidências importantes de que o mercado, por si só, também não gera crescimento, o que significa que estamos aqui diante de uma combinação complexa de vários tipos de agenciamento, de vários atores e de vários fatores. Parece que não existe mesmo uma receita para o crescimento, ou melhor, para o crescimento a altas taxas durante um tempo suficiente para promover o desenvolvimento. Talvez o desenvolvimento não seja resultado do crescimento. Talvez a expansão econômica seja um dos aspectos de um processo mais integral e sistêmico, que aparece como crescimento do PIB quando olhado de um ponto de vista econômico quantitativo, mas que só aparece assim quando

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Ideias para um outro tipo de desenvolvimento

outros fatores extraeconômicos, muitos dos quais qualitativos e para os quais costumamos não olhar, apresentam também modificações correspondentes. Ou talvez o crescimento (sustentado) não seja, como se acredita, a causa do desenvolvimento (sustentável) e sim um dos seus efeitos, inclusive um dos efeitos do chamado desenvolvimento econômico, o qual, por sua vez, também não se verifica somente em função do crescimento absoluto do produto, mas sim quando aumenta a prosperidade econômica de uma sociedade, quando aumenta o grau de realização distribuída da propriedade produtiva, quando a riqueza se espalha para mais pessoas que empreendem economicamente gerando uma dinâmica que aumenta a produção diversificada e a circulação de mercadorias. A discussão está em aberto. O que não significa que não devamos fazer o dever de casa, com base nos conhecimentos que atualmente já possuímos. Assim, juntamente com a pauta das reformas modernas – reforma política, reforma do Estado, reforma da Previdência etc. –, estamos compelidos a adotar um conjunto de medidas de natureza econômica (ou pensadas do ponto de vista da “lógica” econômica) que compõem uma espécie de “feijão com arroz” de um governo responsável e não são mais novidades para ninguém, a não ser, talvez, para os estatismos esquerdista e direitista, igualmente irresponsáveis. Parece evidente que medidas básicas de natureza econômica devem ser tomadas, como: a. manter a inflação baixa, o ágio baixo no mercado paralelo e déficits orçamentários igualmente baixos; b. adotar taxa de juro real bem mais baixa (do que a atual) – mas nunca fortemente negativa – e nem impor restrições ao livre comércio e excessiva regulamentação; c. evitar implementar políticas industriais que subvencionem algumas indústrias em detrimento de outras; e d. promover a independência do Banco Central, blindando-o contra interferências político-partidárias (quer dizer, de governos de um partido ou, mesmo, formados a partir de coligações político-partidárias). Frequentemente, porém, tais medidas não têm se revelado suficientes para promover um crescimento do PIB a altas taxas e durante um tempo suficiente para desencadear o fenômeno de mudança Augusto de Franco

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social que queremos interpretar como desenvolvimento. A elas, portanto, devem ser acrescentadas outras medidas, como, por exemplo, as que visem: e. superar as precariedades mais gritantes na oferta de serviços públicos (energia elétrica, linhas telefônicas, rodovias e outras vias e portos, saúde, água, esgotos, irrigação, serviços postais, saneamento básico e educação) e não interferir demasiadamente no setor privado que oferece tais serviços; f. jamais descumprir as leis – sobretudo a partir dos governos – e não tolerar a corrupção; g. nunca desrespeitar contratos ou permitir a instabilidade regulatória (tanto no que diz respeito à adoção de um marco legal inadequado, insuficiente ou excessivo, quanto no que tange à sua aplicação ineficaz pelo Judiciário) e altas doses de poder discricionário dos governos sobre pessoas físicas e jurídicas; h. não alimentar uma grande burocracia, sobretudo se composta por indicações políticas e não por mérito; i. não adotar políticas públicas que punam a aquisição de renda, criando incentivos negativos para que as pessoas tomem a iniciativa de gerar renda (como, por exemplo, aplicando programas assistencialistas e clientelistas ou de simples distribuição direta de renda sem exigência de contrapartidas por parte dos beneficiários em termos de investimento, sobretudo em capital humano e em capital social); j. fortalecer, ou, pelo menos, não enfraquecer, a sociedade civil e nem dificultar a emergência de uma classe média vigorosa; k. facilitar a conformação de um ambiente institucional e de um “clima” nos negócios que atraia o investimento estrangeiro direto e a importação de máquinas e programas, de pessoas empreendedoras e de cérebros inovadores; l. estimular o empreendedorismo, ou, pelo menos, não desestimulá-lo, dificultando a abertura, o funcionamento e o fechamento de organizações e desincentivando a inovação tecnológica. É evidente que não resultará, necessariamente, qualquer “milagre econômico” da simples adoção de medidas que procurem atingir tais objetivos. Em primeiro lugar porque, em países com níveis insuficientes de capital humano e de capital social (que, não por acaso, são também países com baixo crescimento sustentado), as medidas adotadas para obter os resultados esperados na lista acima, dificil36

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Ideias para um outro tipo de desenvolvimento

mente terão o condão de produzi-los no curto e no médio prazos. Em segundo lugar porque, mesmo que alcançássemos tais resultados (uma quase impossibilidade), ainda assim não fica garantida a ocorrência do “espetáculo do crescimento”, porque nada disso garante a combinação sinérgica dos vários fatores (muitos dos quais desconhecidos) capazes de promover tal espetáculo. Por último, se estamos falando de desenvolvimento e não apenas de crescimento, nada disso adiantará se os governos tiverem um perfil autocrático ou autoritário. E não basta manter a liturgia do sistema representativo e as regras do jogo democrático formal se o processo substantivo de democratização da sociedade for de baixa intensidade ou apresentar um alto grau de antagonismo.Vamos deixar portanto essa pauta clássica ou comum aos formuladores dos programas de governo, liderados sempre – também não por acaso – por algum economista que acredite possuir uma receita qualquer melhor do que a dos seus pares (embora todas as receitas cada vez se pareçam mais), que servem a outros partidos e candidatos. Vamos falar aqui das novidades, ou seja, daquelas inovações que podem fecundar os programas já conhecidos, inspirados tanto pelo reformismo social-democrata quanto pelo pensamento econômico liberal hodierno. Para descobrir as inovações é preciso olhar para o que está acontecendo no mundo atual. A esfera nacional hoje não pode mais ser pensada autonomamente e sim como um entroncamento peculiar de múltiplas conexões entre o local e o global. A internet e a sociedade-rede, a globalização e a localização, as limitações do Estado-nação e a perda de sua autonomia macroeconômica, a emergência do chamado terceiro setor e de uma opinião pública mais vigorosa no plano mundial, acompanhada pela exigência crescente por democratização e direitos humanos, impõem uma revisão dos pressupostos e dos fundamentos de qualquer projeto de país. Não é possível ser contemporâneo do presente sem levar em conta que a realidade mundial mudou e que a sociedade brasileira também mudou nos últimos vinte anos. Tenho defendido que, para além da pauta sugerida pelo senso comum dos estrategistas atuais, é preciso abrir quatro grandes eixos prospectivos inovadores, capazes de dar um sentido contemporâneo às reformas da modernidade que o Brasil não fez no tempo certo e ir adiante para recuperar o tempo perdido.

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O primeiro eixo é ‘o Brasil conectado’ O Brasil ainda é um país isolado do mundo, seja pelo déficit de parcerias científico-tecnológicas e culturais significativas, seja pelo comércio insuficiente, seja pela língua única e exótica, seja pelo turismo incipiente. Falar do Brasil na América do Norte ou na Europa é ainda falar de uma região desconhecida. Basta constatar a reduzida incidência de matérias mencionando o país nos principais jornais do mundo. Por outro lado, o Brasil ainda é um país desconectado internamente. Não há nada mais estratégico hoje do que construir e disponibilizar infovias de banda larga, multiplicar os caminhos da informação e do conhecimento (que funcionam, pela sua natureza, para dentro e para fora). Internamente é necessário aplicar um programa de universalização da conexão à internet (não necessariamente do microcomputador, mas de um aparelho navegador que possa utilizar o monitor de TV) – sempre em parceria com o mercado e com a sociedade civil – não restrito a escolas e instituições, mas em espaços públicos comunitários. A convergência de tecnologias de comunicação, baseadas no telefone celular, deve ser desenhada para a sua utilização massiva. Também são estratégicas medidas que visem universalizar progressivamente, nos próximos vinte anos, o ensino do inglês – e, se possível, do espanhol – a partir do ensino básico.

O segundo eixo é ‘o Brasil que não é um só, mas milhares’ Não adianta mais insistir em um (único) grande projeto do Estadonação. Precisamos de milhares de projetos de desenvolvimento local. O Brasil do futuro será aquele das cidades transnacionais e das cidades tecnológicas, das regiões e microrregiões que descobrem e realizam suas vocações, dos arranjos produtivos, das cadeias e das redes socioprodutivas de inovação. O reflexo nacional desse processo múltiplo de desenvolvimento deve ser consequência de intensa fermentação, da incrível efervescência que resultará da dinamização de nossas diversas potencialidades, da atualização e valorização de nossos variados ativos locais e setoriais, sobretudo humanos e sociais.

O terceiro eixo é ‘o Brasil radicalmente democrático’ A democratização do Estado e da sociedade não é um luxo. Existe uma relação intrínseca entre democracia e desenvolvimento (que vai muito além do crescimento econômico). Um Brasil democrático tem 38

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Ideias para um outro tipo de desenvolvimento

como tarefas irrecusáveis inaugurar a reforma política e concluir a reforma do Estado. Mas uma reforma política inspirada pela necessidade de reinvenção da política que leve em conta a democracia no quotidiano dos cidadãos. E uma reforma do Estado que reconheça a necessidade de transitar do burocrático e ineficiente Estado-mainframe para um outro tipo de Estado, capaz de adotar mecanismos mais ágeis e mais horizontais de organização e funcionamento e capaz de estabelecer um novo padrão de relação com a sociedade. Um Estado que otimiza sua atuação extraindo sinergias da sua parceria com o mercado e com a sociedade civil. Um Estado mais forte (e não mais fraco), capaz de fortalecer a sociedade, libertando as suas energias criativas.

O quarto eixo é ‘o Brasil sustentável’ Sustentável não apenas do ponto de vista ambiental, mas inclusive do ponto de vista humano e social. O Brasil sustentável é aquele que investe simultaneamente em todos os seus “capitais” (para além da renda e da riqueza): o capital natural, o capital humano e o capital social. Somente a combinação virtuosa dessas variáveis (flutuando em intervalos ótimos) pode garantir a sustentabilidade – que será, daqui para frente, o outro nome do desenvolvimento. Isso inclui a superação da pobreza, que deve ser encarada não mais como insuficiência de renda (supostamente erradicável por meio da “panfletagem de dinheiro” que se pratica eleitoreiramente hoje em dia) e sim como insuficiência de desenvolvimento.

Augusto de Franco

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III. Batalha das ideias


Autores Francisco Del Moral Hernández

Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Energia da USP

Célio Bermann

Arquiteto (FAU/USP), mestre em Engenharia de Produção (COPPE/UFRJ), doutor em Engenharia Mecânica (FEM/Unicamp), é professor associado do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP, atuando no Programa de Pós-Graduação em Energia da USP e na assessoria a Movimentos Sociais e ONGs

Antonio Carlos Maximo

Doutor em filosofia da educação, autor dos livros Os intelectuais e a educação de massas (Autores Associados) e Intelectuais da educação e política partidária (Líber livro). antoniomaximo@terra.com.br

Luiz Prado

Jornalista, economista, pós-graduado em Biologia e Ecologia Humana pela Faculdade de Medicina de Paris V e em Geografia e Ciências da Sociedade pela Universidade de Paris VII


A usina de Belo Monte: energia e democracia em questão Francisco Del Moral Hernández e Célio Bermann

M

aior obra do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a implantação da UHE Belo Monte vem sendo objeto de polêmica há mais de 25 anos, a partir do inventário hidroelétrico do rio Xingu, em 1975. Os debates se intensificaram nos últimos meses, notadamente a partir da concessão de licença ambiental prévia pelo Ibama em 2009, permitindo a licitação da usina, a qual ocorreu em abril de 2010 (ano de eleição presidencial). Os entraves dividem os próprios governistas, ambientalistas, associações não governamentais, empresários, lideranças indígenas e a sociedade. No debate, está em jogo o direcionamento da política energética do país, bem como o próprio futuro da ocupação amazônica. Os rios amazônicos (Madeira, Tocantins, Araguaia, Xingu e Tapajós) detêm 50,2% da capacidade de produção de hidreletricidade no país, mais da metade do assim chamado “potencial hidrelétrico” brasileiro (260.000 MW). O Plano Decenal 2008-2017 (EPE, 2008) indica a intenção da construção de 28 usinas, sendo 15 na bacia Amazônica (18.525,5 MW), e 13 na bacia Araguaia-Tocantins (4.353,3 MW), resultando numa potência de 22.878,8 MW, que representa 79,1% do total que o governo pretende instalar no país até 2017.1 Por sua vez, o Plano 1 O Plano Decenal 2010-2019, recém-elaborado e que se encontra em consulta pública, não fornece maiores detalhes dos empreendimentos que estão sendo planejados).

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Batalha das ideias

Nacional de Energia 2030 (EPE, 2007) indica um total de 14.000 MW nestas duas bacias com a pretensão de serem instalados até 2015, e mais 66.000 MW até 2030, quando o governo planeja atingir uma potência total instalada de 174.000 MW. Verifica-se que é efetivamente o território amazônico que vai sofrer a pressão do capital internacional para transformar seus rios em jazidas de megawatts. Neste contexto, a usina de Belo Monte está projetada para ser construída no rio Xingu, a 40 km, rio abaixo após a cidade de Altamira, com canais estendendo-se por mais 10 km, na localidade designada como sítio Pimentel, no sudoeste do Estado do Pará, a 1.000 km da capital Belém. A potência instalada prevista é de 11.233 MW, tendo sido estimada, operacionalmente, média assegurada de apenas 39%. O lago da usina abrangerá uma área de 668 km² (conforme o edital de licitação) embora o EIA/Rima indicasse 516 km². O projeto prevê a construção de 5 barragens, 2 vertedouros e 30 diques de contenção de comprimento variando de 40 a 1.940 metros de extensão e altura variando de 4 a 59 metros. Está prevista a construção de 52 km de canais com largura variando entre 160 e 400 metros. Seriam realizadas escavações comuns da ordem de 150,7 milhões de m3 e 50 milhões de m3 de rochas, superiores à escavação realizada para a construção do Canal do Panamá, com a utilização ainda de 4,2 milhões de m3 de concreto. O projeto inclui o desvio da maior parte do fluxo de água do Rio Xingu, em um trecho de aproximadamente 100 km conhecido como Volta Grande do Xingu, para um trecho que atualmente é ocupado por florestas e assentamentos de pequenos agricultores entrecortados por diversos travessões da rodovia Transamazônica, por meio da construção de dois canais de derivação ao norte da Terra Indígena Juruna do Paquiçamba. O custo total orçado é de R$ 19 bilhões. Contudo, há estimativas que o investimento total possa alcançar R$ 30 bilhões. O BNDES se dispõe a financiar 80% dos custos. Ao mesmo tempo, o banco espera uma nova capitalização do Tesouro Nacional para assegurar esta participação. Assiste-se a um exercício de engenharia financeira para viabilizar a obra com toda sorte de renúncia fiscal e isenções que trarão um aumento desproporcional da dívida pública. Uma análise independente sobre o Estudo e o Relatório de Impacto Ambiental de Belo Monte, elaborada por um grupo reconhecido em nível nacional e internacional de quarenta cientistas (Magalhães;

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A usina de Belo Monte: energia e democracia em questão

Hernandez, 2009), demonstra que os impactos de Belo Monte são muito maiores do que aqueles levantados pelo EIA e em muitos aspectos irreversíveis e não passíveis de serem compensados pelos programas e medidas condicionantes propostas. Eis alguns dos problemas destacados pelo corpo científico independente: a) Subdimensionamento da população atingida e área afetada; b) Risco de proliferação de doenças endêmicas; c) Ausência de estudo sobre índios isolados; d) Hidrograma ecológico não baseado nas necessidades dos ecossistemas; e) Subdimensionamento das emissões de metano; f) Ameaça de extinção de espécies endêmicas no Trecho de Vazão Reduzida; g) Ausência de análise de impacto de eclusas; h) Perda irreversível de biodiversidade; i) Ausência de análise de impactos à jusante da usina; j) Análise insuficiente sobre impacto da migração sobre desmatamento e terras indígenas; k) Ausência de análise sobre impactos associados ao assoreamento no reservatório principal. Apesar de todas as críticas levantadas de forma sistemática, o governo as desconsiderou, se negando ao necessário debate e mantendo sua decisão de prosseguir com o projeto. O consórcio vencedor do leilão Norte Energia é formado pelas seguintes empresas: Chesf (49,98%), Queiroz Galvão (10,02%), Galvão Eng. (3,75%), Mendes Jr. (3,75%), Serveng-Civilsan (3,75%), J. Malucelli (9,98%), Contem Const. (3,75%), Cetenco (5%) e Gaia Energia (10,02%). Entretanto, estas empresas não deverão reunir condições de executar a obra sozinhas. A falta de conhecimento de detalhes de bastidores não nos permite saber a razão porque o outro consórcio, que reunia melhores condições de sagrar-se vencedor e que combinava construtoras de renome (Camargo Correa e Odebrecht) e grupos eletrointensivos de energia (Vale e CBA), não tenha tido êxito. O fato é que os participantes derrotados no leilão já sinalizam participação nas obras civis e montagem eletromecânica, já que não há impeditivo legal nisso, e será onde estas empresas vão obter maior rendimento. Feitas estas considerações iniciais, o presente artigo se dedica a uma reflexão com respeito às questões políticas que permeiam a decisão da construção da usina.

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Batalha das ideias

A “segurança energética” proporcionada pelas usinas amazônicas A tendência crescente de anúncios de construção de usinas hidrelétricas geralmente se ampara na ideia de uma sempre iminente crise de suprimento anunciada para um futuro próximo. Também se menciona a existência de um “problema” devido à sazonalidade da oferta de energia: A “energia afluente” não é suficiente para atender a demanda e carga projetada futura, mesmo com os intercâmbios de energia entre bacias que o sistema elétrico interligado brasileiro proporciona – uma espécie de transposição de bacias hidrográficas através de grandes linhões de transporte de energia elétrica. Se, por um lado, a demanda é mais ou menos constante em um dado ano, a capacidade de armazenamento nos reservatórios não a segue. Notemos que a sazonalidade em si NÃO é um problema. Deve ser entendida como característica e desdobramento da maneira como foi pensada e operacionalizada a geração de energia elétrica que se cristalizou com a formação de grandes represas, barrando importantes rios e transportando essa energia convertida a longas distâncias, uma vez que, em geral, os grandes centros consumidores se situam distantes das usinas hidrelétricas. A partir dessa realidade operacional e de atendimento a grandes cargas de centros urbanos e de grandes empresas do setor minero-metalúrgico, siderúrgico, celulose e papel – corretamente apelidadas indústrias eletrointensivas –, é que surgem “problemas” que devem ser resolvidos, demandas a serem atendidas. Utilizando o jargão dos planejadores, isto poderia ser chamado de “planejamento” do lado da oferta, mas que na realidade é o atendimento das cargas futuras projetadas. Qualquer ação de planejamento e de proposição política seja ela de natureza industrial, energética, de conservação ou de regulação, deveria se pautar de maneira reflexiva e crítica, tendo como condições de contorno esta sazonalidade como decorrência “natural” de ter se utilizado assim da natureza dos rios. Olhando em outra perspectiva, o “problema” nada mais é do que decorrência das próprias escolhas. Escolhas estas que nos são impostas. O entendimento da sazonalidade como problema é originário da maneira como o Brasil, sob influência internacional, e sob influência da Dam Industry, decidiu construir seu sistema elétrico, gerenciar seus reservatórios, posicionar os centros de conversão hidrelétrica (usinas de grande porte com imensos reservatórios), estimular subsetores industriais e atender o suprimento a determinados setores em detrimento de outros.

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A usina de Belo Monte: energia e democracia em questão

Por este desenvolvimento histórico criou-se um emaranhado de interesses que não nos permite afirmar que possa existir uma capacidade previsível de planejamento. Pelo contrário, apenas um atendimento de cargas futuras, multiplicando o cenário presente para o futuro, muito incerto diante da complexidade do arranjo de interesses que estão em jogo (dentro do campo estão empreiteiras, indústrias de equipamentos, geradoras, comercializadoras, agências reguladoras, grupos políticos e econômicos que conflitam entre si, disputas com governos, a utilização do discurso da energia para angariar votos). O atendimento ao suprimento ocorrerá, ou não, até onde a limitação material permitir, se a natureza permitir, não nos esqueçamos disso. Assim se desenha cada Plano Decenal de Energia, como uma tentativa de costura no atendimento desse mosaico de interesses em que a oferta corre atrás das cargas projetadas: alguns querem vender energia e outros tantos irão comprar, em um arranjo no qual a Dam Industry aperfeiçoa métodos de sua influência política sobre espaços de poder do Estado, atua sobre os processos de licenciamento ambiental, sobre os mecanismos de financiamento e de maneira ramificada influencia propostas de reforma do Estado, alterações de papeis institucionais no Ministério Público. Assim se cria um quadro no qual pouco se ouve falar na otimização do gerenciamento dos reservatórios, reforço, otimização e manutenção do que já existe na geração e transmissão. Algo que jamais é mencionado é a possibilidade de interrupções programadas de eletrointensivos em períodos críticos da “sazonalidade”, pouco se fala da reavaliação de critérios de energia firme, da adequação de critérios para aproveitar efetivamente a cogeração de energia elétrica na indústria sucroalcooleira, da discussão do custo do risco de déficit e mesmo de racionamentos preventivos. Estas possibilidades estão presentes em reflexões da academia e algumas delas são aplicadas em outros países. Deveriam ser reais mecanismos acessórios do planejamento da geração, transmissão e regulação. O que em geral se discute é sempre o aumento futuro da oferta presente, em geral acompanhando de maneira combinada as projeções de aumento do PIB brasileiro. Baseando-se nos números apresentados como projeções no Plano Decenal 2008-2017, não há espaço significativo para fontes alternativas resolverem o “problema energético” (entendido aqui como o atendimento do suprimento face a uma expansão das cargas) que apenas se desloca no eixo do tempo e aparecendo de tempos em tempos como ameaça, fictícia ou não, que impele a produzir mais, relegando processualmente e cumulati-

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Batalha das ideias

vamente as consequências sociais e ambientais dessa expansão a um segundo plano. O atendimento da demanda através da fonte hídrica é apregoado como uma vantagem comparativa brasileira que, em tese, poderia ser estendida através de conexões físicas a outros países, por intercâmbios nos quais os sentidos de transmissão de energia poderiam se alternar. No entanto, em estudo recente do Gesel (Castro et al., 2009), observa-se que a instalação de hidrelétricas através da expansão da fronteira hidrelétrica na Amazônia, ao contrário do que se imagina, agrava o “problema da sazonalidade”, acentuando a oscilação chuva-estiagem da energia afluente ao longo do ano, já que a maioria dos projetos hidrelétricos propostos envolveriam usinas a fio d’água com pouca capacidade de armazenamento em reservatório. Onde se posiciona o discurso genérico que tenta legitimar a expansão? Nesta ideia de que a projeção de aumento da carga não tem sido acompanhada por um aumento correspondente na capacidade de armazenamento do Sistema Interligado Nacional (SIN). Ao mesmo tempo, a garantia fisica de energia dos projetos propostos envolveria mega construções com capacidade instalada alta, mesmo que com energia firme baixa. O exemplo mais gritante deste gap entre a potência e o que os rios efetivamente podem oferecer é o projeto de Belo Monte no qual a energia firme corresponde a 39% da capacidade máxima. Belo Monte, obra gigantesca, custos enormes, consequências ambientais e sociais seriíssimas, ao lado de Jirau e Santo Antonio no rio Madeira são exemplos desta obsessão pelo gigantismo e, claro, em detrimento de preocupações ambientais e sociais. São os três exemplos de plantão da opção hidrelétrica na Amazônia como panaceia do progresso, da distribuição de renda, do crescer o bolo para depois distribuir, da universalização do acesso e da redenção das comunidades “pouco desenvolvidas” moradoras de longa data ao longo destes rios.

O licenciamento ambiental como um obstáculo Selecionamos um trecho de documento do Banco Mundial (2008), apenas para compor raciocínios auxiliares no debate no qual capturamos este choque de velocidades entre o plano sempre em expansão de ofertar mais energia e o processo de licenciamento ambiental que tem um ritmo e complexidade próprios. Logo nas mensagens principais do documento um dos problemas centrais sobre o qual recai o estudo do banco aparece com destaque, qual seja a morosidade do processo de licenciamento ambiental: 48

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A usina de Belo Monte: energia e democracia em questão

O licenciamento ambiental de projetos hidrelétricos no Brasil é considerado um grande obstáculo para que a expansão da capacidade de geração de energia elétrica ocorra de forma previsível e dentro de prazos razoáveis. A não expansão, por sua vez, representaria séria ameaça ao crescimento econômico (BM, 2008, v. 1, p. 6). O processo de licenciamento ambiental tem representado uma dificuldade adicional para o Brasil aproveitar completamente o potencial hidrelétrico da Região Amazônica. Planos que previam a construção de plantas hidrelétricas na região têm sido fortemente apoiados por muitos, mas encontram forte oposição por parte de certos segmentos da sociedade civil. Na Região Amazônica, a percepção do setor foi prejudicada por diferentes experiências com plantas geradoras. Algumas funcionaram bem, mas outras, particularmente Balbina, mas também Samuel, resultaram em grandes prejuízos ambientais e sociais (BM, 2008, v. 1, p. 12). Considerando que os aspectos sociais relativos a empreendimentos hidrelétricos têm grande relevância para os custos e prazos implicados no processo de licenciamento ambiental, isso sugere haver necessidade de reforço da equipe da Diretoria de Licenciamento do Ibama na área social (BM, 2008, v. 1, p. 21).

O licenciamento ambiental é considerado um grande obstáculo por quem? Certamente não por aqueles que batalharam para obter uma legislação de proteção ambiental adequada. Neste sentido caminharíamos na contramão das preocupações ambientais. Os órgãos ambientais e as instituições partícipes do processo de licenciamento não têm a velocidade adequada para compatibilizar obras com prazos razoáveis segundo o documento do banco, mesmo que reconheça que o licenciamento ambiental não é o único vilão da história, já que é recorrente a existência de estudos de impacto ambiental mal elaborados, constantemente questionados. O terceiro trecho selecionado nos remete à contradição entre a intenção e o gesto, se lembrarmos dos episódios mais que recentes que envolveram o licenciamento ambiental da Usina de Belo Monte, no qual tivemos sérios exemplos do enfraquecimento da ideia de “governança ambiental” associada a empreendimentos hidrelétricos quando a própria diretoria do Ibama e analistas ambientais do órgão federal sofreram assédio de ministérios interessados na célere aprovação do remendado projeto Kararaô-Belo Monte proposta na Volta Grande do Xingu As usinas hidrelétricas do Complexo do Madeira (Santo Antonio e Jirau) e o projeto de Belo Monte são exemplos de desfiguração de um processo de licenciamento ambiental, apesar de um discurso sempre em alta de sustentabilidade ambiental. Porém são tributários de tristes constatações: Francisco Del Moral Hernández e Célio Bermann

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Audiências públicas não efetivas.

Pressão sobre analistas ambientais.

EIAs insuficientes e mal elaborados.

Ausência dos proponentes dos projetos em audiências públicas no Senado Federal, Câmara dos Deputados e Ministério Público Federal.

Os conceitos de área diretamente afetada, áreas de influência e de atingido fazem parte de acepções mais próximas do Manual da Eletrobrás. O exemplo mais oportuno para evidenciar essa conexão é o caso recente de Belo Monte, no qual as regiões ribeirinhas e suas populações ameaçadas pelo trecho de vazão reduzida não foram consideradas como diretamente afetadas, não obstante a constatação de profundas alterações futuras em seus modos de vida e mesmo sem evidências da garantia de segurança hídrica. A desconsideração de pareceres dos próprios técnicos do Ibama e pesquisadores de equipes independentes mostra, associado à ausência de debates reais, um distanciamento do que poderia ser chamado de qualquer política de governança socioambiental. Mencione-se ainda que, por muito tempo, as usinas do Madeira tiveram o status de único projeto energético tido como essencial para afastar o risco de “apagão”. Cada uma das obras é propagandeada como mais estruturante que a anterior. Belo Monte, por exemplo, é a terceira redenção dos povos que lá vivem. Primeiro foi o ciclo da borracha, seguido do ciclo da grande estrada Transamazônica, agora é a vez da grande usina redentora. A história da hidreletricidade brasileira não foi rica em fornecer evidências dessa redenção para as populações próximas a elas.

Obras de infraestrutura vs. comunidades tradicionais Conforme indica Magalhães (2009): Os processos de decisão relativos a obras de infraestrutura suscitam o debate sobre as condições nas quais as sociedades democráticas enfrentam vários desafios interligados: •o primeiro diz respeito à utilização das ciências e das técnicas e da interrelação entre ciência e poder – experts e governo; •o segundo refere-se à redefinição e/ou construção de um espaço público, constituído não apenas de técnicos mas também de homens e mulheres; grupos sociais, comunidades e povos com histórias e conhecimentos diversos;

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•o terceiro trata do confrontar-se com o aparato legal que rege a tomada de decisão; •o quarto, especialmente no caso brasileiro, diz respeito ao desafio de se interrogar sobre a fidelidade dos governantes aos princípios democráticos e os mecanismos que a sociedade dispõe de fiscalização e controle. Trata-se, portanto, de pôr em debate o processo de tomada de decisão caracterizado pela submissão ao herói governante e ao monopólio das elites técnicas e econômicas, colocando em pauta possibilidades de confrontação, seja entre saberes das elites científicas, seja entre estes e outros saberes, seja entre poder dos governantes e poderes da sociedade, seja entre risco e incerteza e história e futuro. Enfim, colocam-se em pauta os mecanismos para construção de um espaço público de confrontação entre especialistas e leigos, políticos e cidadãos.

Podemos acrescentar que se trata também de incluir a discussão específica da existência de grandes extensões territoriais cobertas de florestas, populações tradicionais e indígenas vivendo sobre terras, se servindo de rios e florestas que são cobiçadas para outros fins tais como a infraestrutura necessária para gerar energia, extração de minerais e extração de hidrocarbonetos; e de manter, mais além do mero discurso e intenção, a pluralidade de manifestações culturais, modos de vida, organização social. Os fatos recentes da condução política e dos processos de licenciamento e construção de obras de infraestrutura, por exemplo no chamado período de redemocratização aos dias de hoje, não nos oferece elementos de evidência de que os desafios políticos anteriormente mencionados estejam no trilho seguro de sua superação. Por que isso não se realiza? Eis o desafio da discussão que este texto procura estimular. Agrava-se o desafio quando se constata que para o segundo item elencado por Magalhães, os desdobramentos da realidade nos mostram uma retração do espaço público de discussão e de circulação das ideias e mais, um constrangimento e intimidação daqueles que se posicionam contrários a projetos governamentais, sejam eles cientistas, ativistas, ribeirinhos, analistas ambientais, indígenas, procuradores, juízes. Os recentes posicionamentos da Advocacia Geral da União, que diz que tomará a iniciativa de processar quem dispara ações civis públicas e concede liminares contra projetos e processos governamentais, deve ser entendido como elemento decisivo para essa retração do espaço público. Ao colocar a crise de suprimento como ameaça permanente, o que falar do planejamento, e se é tecnocracia governamental quem planeja, há governança democrática possível? Não se pode falar mais

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de um planejamento centralizado, mas sim atendimentos a metas de crescimento de determinados setores, ou mesmo agregados em estimativas de crescimento do PIB influenciados por uma complexa rede de interesses. Os planos decenais dos últimos tempos acabam criando um “ambiente” no qual não há escapatória: quem planeja se coloca como vítima e avalista de seu próprio plano que é o de acompanhar a expectativa de demanda sem tentar refletir e gerenciar sobre ela, fortalecendo a visão de que o mercado é o encontro e balizador das relações sociais que estabelecem o que deve ou não ser produzido, que subsetores devem ser atendidos e que chancelas devem ser operacionalizadas sob a égide de um “Plano Nacional”. O chamado debate público sobre o Plano Decenal não passou de encaminhamentos de comentários ao sítio governamental na web, e as contribuições encaminhadas não foram disponibilizadas para debate e consulta públicos. Infere-se que o planejamento se paute em acordos setoriais não necessariamente fruto de uma compilação e mediação de interesses mais amplos da sociedade. Explica-se com mais um exemplo: o Plano Decenal de Expansão Elétrica procura em documento evidenciar a racionalidade do processo de adequação de um plano de política de governo às necessidades da sociedade. O documento é um exemplo discursivo da racionalidade, neutra com consequente amparo, (também neutro) da tecnologia e da ciência. Teria o objetivo de orientar, por uma correta sinalização de todos os agentes e interessados, de futuras ações para alocação de investimentos. Ao espaço governamental caberia a tarefa de “buscar a utilização adequada, racional e otimizada dos recursos naturais nacionais, em especial o hídrico, como previsto na Constituição Brasileira. Isto exige um cuidadoso planejamento da expansão do parque gerador de energia elétrica, o qual deve considerar não apenas as diversas opções de fontes geradoras disponíveis, mas também as interligações elétricas existentes e potenciais entre as diferentes bacias hidrográficas sul-americanas, visando o aproveitamento da diversidade hidrológica existente” (Gonçalves, 2007).

É possível resistir? A reflexão sobre a existência ou inexistência de formas de resistência às obras hidrelétricas e sua efetividade deve ser conduzida em paralelo com a caracterização das forças políticas, econômicas e financeiras que dão sustentação aos investimentos industriais de grande porte que, de maneira mais acelerada na atualidade, são de 52

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natureza internacional e localizam as possibilidades de expansão e acumulação no território internacional, mesmo que este tenha a presença de governos locais e fronteiras mais ou menos permeáveis à sua influência. É imensa a quantidade de registros dos conflitos que surgem no processo de implantação de obras de infraestrutura e mobilizações de populações ameaçadas e atingidas, ações de movimentos sociais com organização nacional e regional. Os números notáveis dos atingidos por barragens que, segundo dados do Movimento dos Atingidos por Barragens e da Comissão Pastoral da Terra, totalizam um número que excede um milhão de pessoas deslocadas, evidenciam a dimensão do problema social. Os exemplos de Itaparica, de Tucurui, a grande mobilização de entidades em defesa do rio Madeira, a luta de décadas contra os barramentos propostos no Xingu, a luta antibarrageira no sul do país, por si só evidenciam um espalhamento geográfico continental dos projetos, o surgimento de grupos de resistência, que se faz acompanhar no período de mais de cem anos do aumento substancial do porte dos empreendimentos e do poder político dos grupos constituintes da Dam Industry. As formas de resistência são muito variadas, desde invasão de canteiros de obras, acampamentos, bloqueio de estradas, ocupação de escritórios de engenharia, fundações, institutos, ministérios. Na grande parte das vezes as formas de resistência se dão no sentido de forçar negociações, na tentativa de ocupação da cena política. Outra forma de resistência se manifesta pela possibilidade de lançar mão da ação do Ministério Público para formular ações civis públicas na defesa das leis vigentes e dos direitos das populações ameaçadas. Os ciclos de protestos representam uma importante forma de mobilização e meios de chamar a atenção pública para a existência de problemas não resolvidos e violação de direitos das populações. As sucessivas manifestações das populações atingidas em Tucurui, por exemplo, já duram mais de décadas. Na recente inauguração de nova motorização na usina do Pará (novembro de 2008), atingidos por Tucurui ainda identificaram a oportunidade de endereçar ao presidente da República suas queixas sobre o processo inadequado de indenizações e reassentamento de uma usina que também opera há mais de duas décadas. Este exemplo de paciência e persistência mostra a perenidade do “passivo social” e a morosidade da vontade política daqueles que detêm mais recursos políticos à mão: os próprios proponentes da obra, grupos econômicos e políticos que lhe dão respaldo e dela se beneficiam e se beneficiaram concentradamente.

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Os ciclos de protesto, no mais das vezes, não são considerados como ações políticas antissistema. Ganham uma certa legitimidade no processo de redemocratização brasileira, particularmente, nos anos 1980 e décadas seguintes, mas face a concomitante medida que tem potencial de evidenciar a vulnerabilidade de elites políticas em atender suas demandas, ou mesmo da incapacidade delas de se ater à legislação ambiental, indígena e de populações tradicionais, entra em vigor o discurso e toma corpo o processo de criminalização dos movimentos. Estas constatações nos conduzem à identificação do processo de redemocratização como inconcluso. Esta criminalização se exemplifica e toma corpo pela própria ação policial em repressão às ações de movimentos, ao indiciamento e processos judiciais direcionados às lideranças e, de maneira mais diluída, através de um processo de deslegitimação dos posicionamentos antagônicos. Nos tempos atuais, é comum a associação dos opositores às obras hidrelétricas dos seguintes adjetivos: “defensores da indústria do apagão”, “porta-vozes do atraso”, “ambientalistas radicais a serviço do imperialismo estrangeiro”, “pequena minoria contrária ao progresso e ao desenvolvimento”, entre outros. Como processo histórico, o aprofundamento da Dam Industry revela desigualdades dos recursos políticos e de poder entre as partes conflitivas, entre proponentes, ameaçados, atingidos e grupos sociais invisibilizados ou que têm sua voz política esvaziada no processo. Sevá Fo (2008, p.47) expõe com clareza as desigualdades da disputa política: É mais, porém, do que uma fase pioneira, é continuidade do processo histórico capitalista: as grandes obras vão demarcando os ciclos de acumulação ao longo dos quase três séculos que está durando este sistema político e econômico. Primeiro, ferrovias, estaleiros e portos, canais, pontes, túneis, depois as barragens, os grandes eixos de transporte e de comunicação, as megafábricas, refinarias, montadoras de veículos e de aparelhos. Como a dominação é sempre também política, boa parte destes surtos e ciclos é baseada em informação privilegiada: p.ex. alguns sabem antes dos demais qual a posição do eixo do barramento naquele ponto preciso do rio, quais os terrenos serão afogados até qual cota de altitude. A acumulação de capital em poucas mãos se instrumenta por meio de negociações entre partes desiguais; são muitos os que acabam sendo prejudicados. Mas são individualmente fracos, envolvidos a contragosto em transações forçadas; pessoas, famílias e até cidades inteiras sendo objetos de logro, de traição, de ameaças. Informação privilegiada, desigualdade notável nas negociações, poder de fogo, estas são marcas de um processo conhecido como acumulação primitiva, com os métodos típicos da expropriação de bens materiais e simbólicos das pessoas e da espoliação de comunidades humanas, aldeias, etnias.

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A usina de Belo Monte: energia e democracia em questão

Sob essas considerações, resta a pergunta se é possível uma discussão democrática, algum tipo de governança sobre um tabuleiro nos quais as movimentações e conhecimento em torno de regras reais do jogo pendem para o lado proponente da grande obra. O assédio sobre as populações ameaçadas se ramifica, alcança estruturas locais e regionais de governo que ecoam a ideia de que serviços públicos que se multiplicarão com o surto construtivo e, mais além, cada um dos projetos e sucessivamente se apresentam como projetos estruturantes que servem ao jogo eleitoral que em sentido aproximativo nos remete a uma equação possível: eletricidade = voto = hidrelétrica, esta última parte da igualdade sempre mal amparada pela justificativa de opção de conversão, limpa, renovável e barata. A sistematização do conhecimento científico sobre a megaindústria da hidreletricidade não nos permite aceitar a equação, talvez no máximo ceder à renovabilidade do ciclo da água, mas não ao da conversão hidrelétrica como operação técnica renovável, nem aos qualificativos também antes mencionados de preço e vantagem comparativa natural. O jogo internacional ampara o discurso da energia hidrelétrica como energia renovável, mesmo com os resultados dos estudos de caso da Comissão Mundial de Barragens que desabonaram em grande medida a ideia dos projetos de megahidrelétricas. Aqui nos parece surgir mais um indício de que o discurso se molda na justa medida na necessidade corporativa da Dam Industry de ampliar sua ação. Como a confrontação com ela é inevitável, a governança ambiental transfronteiriça da Amazônia, como quer que possa ser definida, se deparará com o mosaico de interesses e capilaridades políticoinstitucionais que procuramos mencionar nos parágrafos anteriores e com o real conflito nos usos de rios e terras ribeirinhas. Lembremos também que o peso do papel do Estado como planejador vem diminuindo à medida que se acomoda ao interesse às vezes difuso às vezes concentrado dos participantes do dam roling game, fundamentalmente privado, despachado por agências reguladoras aninhadas na esfera governamental.

A invisibilização dos movimentos sociais e do papel das ONGs Historicamente, no processo de construção de hidrelétricas, observa-se inadequada consideração dos efeitos e consequências sobre a população e área de jusante, administra-se um conceito de atingido e área diretamente afetada no sentido de diminuir custos de inde-

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nização e de mitigação de consequências. O ineditismo de Belo Monte e seus mais de 100 km de vazão reduzida demonstrou mais uma vez a utilização e prevalência de conceitos do manual da Eletrobrás de população atingida e área diretamente afetada nos próprios termos de referência do Ibama. O resultado é uma invisibilidade de populações e de áreas nos documentos que em momento futuro (nas audiências públicas, nas franjas das possibilidades institucionais) se desdobra em uma destituição de fala em carne e osso como agrupamentos que não são diretamente afetados. É impossível a invisibilização, por outro lado, das grandes ONGs que têm visibilidade internacional. Resta então o desabono destes agrupamentos como grupos alienígenas alheios ao espaço do progresso e do desenvolvimento. As usinas do Madeira e do Belo Monte exibiram processos de licenciamento ambiental muito apressados, houve controvérsias reais entre as equipes de analistas ambientais e as diretorias de licenciamento, denunciados por movimentos organizados, ONGs e parcelas da população envolvida, pesquisadores, comunidade científica, mas cuja decisão administrativa final coube às direções dos órgãos licenciadores. O processo de invisibilização dos movimentos sociais e de enfraquecimento da resistência não parece ser um processo sistemático no sentido de orquestração, mas é reincidente a cada obra, de acordo com a resistência que se apresenta na conjuntura e da disponibilidade do apoio oficial por meio de uma conduta e conjunto de ações que fazem parte de uma maneira de se tratar os conflitos e assediar os ameaçados. Entre o fazer e o não fazer uma obra, que em teoria são possibilidades do processo de licenciamento, lança-se mão de um dogma: de que a solução sábia está no meio destes extremos. Mas o meio já pressupõe o início de uma obra que, em momento subsequente, terá os grupos que dispõem mais recursos políticos e econômicos para modificar, negociar; e se desresponsabilizar, com uma vantagem na disputa: o maquinário em marcha, com a matéria prima no canteiro e com os alojamentos repletos de operários.

Referências BANCO MUNDIAL. Licenciamento Ambiental de Empreendimentos Hidrelétricos no Brasil: Uma Contribuição para o Debate. Relatório n. 40995-BR (3 Vol.), 28/03/2008.

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A usina de Belo Monte: energia e democracia em questão

Castro, Nivalde José de; Brandão, Roberto; Dantas, Guilherme de A. A Competitividade da Bioeletricidade e a Metodologia dos Leilões. Grupo de Estudos do Setor Elétrico Energia Nova (Gesel). Rio de Janeiro, 08/2009. Empresa de Pesquisa Energética (EPE). Plano Nacional de Energia 2030. Rio de Janeiro, 2007. ______. Plano Decenal de Expansão de Energia 2008-2017. Rio de Janeiro, 2008. Gonçalves, Dorival Jr. Reformas na Indústria Elétrica Brasileira: A Disputa pelas ‘Fontes’ e o Controle dos Excedentes. (Tese de Doutorado). Universidade de São Paulo Programa Interunidades em Energia (Epusp-FEA-IEE-IF/USP). São Paulo, 2007. Magalhães, Sonia B. Ciência, cientistas e democracia: o caso Belo Monte. Texto apresentado à Associação Brasileira de Antropologia (ABA). 27a Reunião da ABA, organizada sob o tema Brasil Plural: conhecimentos, saberes tradicionais e direitos à diversidade. Proposta encaminhada em 18 de março de 2009 (Mimeo.) MAGALHÃES, Sonia B.; HERNÁNDES, F. M. (orgs.). Painel de Especialistas. Análise crítica do Estudo de impacto ambiental do Aproveitamento hidrelétrico de Belo Monte. Belém, 2009. SEVA Fo, A. Oswaldo. Estranhas catedrais – Notas sobre o capital hidrelétrico, a natureza e a sociedade. In: Revista Ciência e Cultura, V. 60, n. 3. São Paulo: SBPC, 2008, p. 44-50.

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Escola de tempo integral – o que é isso? Antonio Carlos Máximo

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unca se ouviu falar tanto em escola de tempo integral como nas eleições de 2008. E o tema voltará com muita densidade no atual processo eleitoral. Como dizia minha avó, surgirá “um verdadeiro toró de palpites” feitos, na maioria das vezes, por leigos em educação. Como nos processos eleitorais nem sempre é possível aprofundar os assuntos arrolados, tomo a liberdade de fazer algumas considerações demonstrando equívocos que estão por trás desta tese. Curiosamente, volta-se a falar em escola de tempo integral no momento em que as avaliações feitas em larga escala apontam o baixo nível da educação brasileira. Como é comum, sutilmente, colocarse a culpa nas vítimas – nos alunos – conclui-se aligeiradamente que a baixa qualidade do ensino é derivada do exíguo tempo de aula que as crianças recebem por dia: algo em torno de duas horas e meia. Ou seja, se deixarmos as crianças mais tempo na escola, automaticamente, aprenderão mais. Neste caso, a quantidade traria a qualidade. Mas, por trás dessa lógica ingênua, esconde-se um milhão de outras causas. Um elemento forte que leva a tal raciocínio simplista é a mistificação pedagógica, isto é: no mundo globalizado só se salvarão aqueles que ficarem muito tempo dentro da escola. É algo semelhante ao que se registra na história da Igreja Católica quando se afirmava que a salvação passaria, necessariamente, pela Igreja. O discurso em favor da escola de tempo integral supõe que só se salvarão aqueles que passarem pela instituição escolar, de preferência, em tempo integral. Fazme lembrar a célebre e categórica frase de Ivan Ilich: “abrireis uma escola e fechareis uma prisão” – santa ingenuidade! Os grandes criminosos, sobretudo os de colarinho branco, todos passaram pela escola. Essa focagem exagerada na escola de tempo integral tem um lado positivo que é o de discutir o tema da escolarização; mas camufla uma série de problemas que são bem mais complexos e custosos.

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Escola de tempo integral – o que é isso?

Os alunos não vão bem nos exames de avaliação, terminam a oitava série sem saber escrever, ler e interpretar um texto, não somente por culpa das duas horas e meia de aula que recebem, efetivamente, mas por diversas causas: a) o professor que não domina metodologias adequadas de ensino porque também ele teve uma precária formação nas licenciaturas; b) os governos, de modo geral, não investem fortemente na formação continuada dos professores – fato que custaria mais caro que construir escolas e teria resultados só a médio e longo prazos – algo que os políticos não gostam; c) os professores têm baixos salários – o que todos concordam – e isso tem um impacto enorme no seu estímulo e, consequentemente, no seu rendimento profissional; d) as universidades públicas e privadas não querem discutir as suas licenciaturas (cursos que formam professores); e) tem muito bacharel lecionando sem ter sido preparado para a docência; f) há o problema do baixo “capital cultural” das famílias; g) também há o problema do ambiente de aprendizagem que nem sempre é adequado, sem contar as limitações dos recursos tecnológicos que hoje já deveriam estar disponíveis a docentes e discentes. De todos esses determinantes, a questão salarial parece ser a mais evidente, porém, de nada adiantaria altos salários aos professores se não se tem uma sólida formação de conteúdo e, sobretudo, voltada para o exercício da docência. Ou seja, não há relação direta de causa e efeito entre salário e qualidade de ensino – mesmo que as crianças fiquem dia e noite na escola. As condições do trabalho docente também pesam fortemente no desempenho das crianças – e ninguém quer enfrentar isso, exceto, no item construção civil. Se fizermos um balanço de todos os governos da União, dos estados e dos municípios brasileiros nas últimas décadas e compararmos o quanto se investiu em construção civil em relação ao investimento feito na formação inicial e continuada dos professores, ficaremos estarrecidos. Retomando o tema da escola de tempo integral, um bom e caro exemplo, pude presenciar em Goiânia. Ali funcionava, na década de 1990, pelo menos, uma ideal escola de tempo integral: o Clube Jaó. As crianças entravam às 7h30 em sala e saiam às 12h, recebendo uma substancial merenda às 10h. Almoçavam e brincavam livremente no clube (sofisticadíssimo!) das 12h às 13h30. Em seguida, partiam para as atividades da tarde: aulas de inglês ou natação ou dança ou música ou teatro ou esportes etc., dentro de uma programação rigorosamente planejada, com professores especializados. Cada criança tinha, pelo menos, duas horas semanais de cada uma das atividades acima. Às 15h30, outra merenda reforçada e banho Antonio Carlos Máximo

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(muitos chuveiros!). Às 16h, as mesmas professoras da manhã recolhiam as crianças na sala de aula para fazerem o famoso “dever de casa”. Às 17h, os pais pegavam seus filhos já com as tarefas feitas e tinham o período da noite para o convívio familiar sem a preocupação de ajudar “menino” a fazer tarefa de escola. Quanto custava? A mensalidade, atualizando os valores, estaria hoje na faixa de R$ 1.500,00/mês – valor que o aluno de escola pública recebe por ano. No caso da Escola Jaó, tudo aquilo que a classe média pagava por fora, inglês, natação, música, dança etc., já estava embutido. Assim sendo, antes de pensar em aplicar tal modelo de escola de tempo integral nas pobres redes públicas de ensino, é preciso perguntar: que sociedade pagará essa conta? Quanto a mais de impostos será necessário?

Outras ponderações Como apontei que essa visão de escola de tempo integral comporta uma grande mística a respeito da escola, estou vendo subliminarmente a famosa tese da escola redentora: quem não passar pela escola não terá sucesso na vida. Na verdade, o “ter sucesso na vida” é o resultado de múltiplas determinações, como diz Karl Marx de o Método da Economia Política e não somente da escola. Há milhões de pessoas bem sucedidas que passaram muito pouco tempo na escola. Por isso, precisamos relativizar o peso do processo escolar no futuro do cidadão. A escolarização é muito importante, mas não define tudo. Além do mais, ela é um poço de contradições. A maioria dos “bandidos” que comanda nações, governos, prefeituras, os poderes Legislativo e Judiciário, as estatais, banqueiros e mensaleiros etc., passou pela escola. Certamente, a maioria do pessoal hoje enquadrada como ficha suja é escolarizada. Portanto, como diz o grande intelectual da educação francesa, Georges Snyders, a escola está inserida na sociedade e carrega para dentro de si todas as suas contradições. Hoje, podemos até dizer que as escolas representam um local onde o tráfico de drogas atua com muita força. Quem financia a folha de pagamento dos professores são os 60% do Fundeb. A Lei de Responsabilidade Fiscal obriga governadores e prefeitos a usar até este patamar com as despesas de pessoal. Nesse caso, então, qualquer pessoa que entenda o que é controlar uma folha de pagamento, incluindo o seu crescimento vegetativo, saberá que uma escola de tempo integral (com as crianças permanecendo 60

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Escola de tempo integral – o que é isso?

nela oito horas por dia), exigirá o dobro de profissionais. Logo, ou se dobra o valor da folha ou se reduz pela metade o valor dos salários. Não há como dobrar os serviços e não dobrar a folha de pagamento. Estou tratando o assunto em termos radicais para me fazer entender o quanto a ideia é impraticável quando se pensa em redes de ensino. Pode dar certo em uma ou outra escola particular, ou em alguma prefeitura pequena, com boa arrecadação, que atenda as crianças de zero a seis anos. Mas não é possível universalizar tal proposta. Fiz uma longa entrevista com as minhas alunas que são funcionárias ou professoras das escolas municipais de Cuiabá. Elas estavam apavoradas com a ideia anunciada pela prefeitura de que teriam escola de tempo integral, porém, sem anunciar a contratação de pessoal, de merendeira, de mais merenda (hoje é de R$ 0,30/aluno/refeição), de recursos materiais e de salas de aula. Diziam elas: “se a turma do quarto ano da manhã vai ficar na escola, em aula, à tarde, onde colocaremos a turma do quarto ano vespertino?” Pergunta simples e direta, mas que ninguém consegue responder dentro dos limites de orçamento para a educação. Outra atendente de creche dizia: “na minha escola, no banheiro, só tem um chuveiro funcionando, e dois vasos sanitários. Se as crianças não forem embora ao meio dia, teremos que dar banho nos pequenos para almoçarem e dormirem à tarde. Como vamos fazer sem chuveiro?”. São perguntas simples, diretas, aparentemente ingênuas, mas que deixam a tese da escola de tempo integral desnuda. Não se trata de um chuveiro a mais, mas de algo em torno de 5 chuveiros a mais por escola que, então, deve ser multiplicado pelo número de creches das redes municipais. Na realidade, diante da baixa qualidade do ensino apontada nos exames de avaliação em larga escala, certos políticos, sem saber o que fazer, não querem mexer nos verdadeiros pontos de estrangulamento e, um deles, a baixa qualidade do trabalho docente decorrente dos fatores apontados acima. Os professores só ensinam o que sabem e, como são mal formados pelas instituições formadoras acabam ensinando muito pouco. E se ficarem com as crianças por mais tempo ensinarão mais e melhor? Essa é uma tese ingênua de achar que a quantidade se converte em qualidade automaticamente. Ainda que o conceito de qualidade do ensino seja altamente discutível, não vejo como resolvê-lo na Educação Básica sem que tenhamos qualidade nos cursos de formação de professores – as licenciaturas plenas – como apontei. Os professores de línguas, matemática, química, física, história, geografia... aprendem algumas coisas nos seus cursos de graduação mas, mesmo o pouco que aprendem, não aprendem a ensinar. E não resolve ter domínio de conteúdo se não se Antonio Carlos Máximo

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domina métodos de ensino adequados para cada área. As duas coisas são casadas. Então, como proposta realista, acho importante fazermos uma revolução nos cursos de formação de professores, das 12 matérias que são trabalhadas na Educação Básica (Ensino Fundamental e Médio). Vamos ver quais candidatos incluem o tema em seus planos de governo. Instalar a meritocracia nas redes de ensino, como está se fazendo em alguns estados, é fundamental, mas não traz resultados automaticamente. Além disso, haverá o enfrentamento de todo o sindicalismo petista que comanda o movimento dos professores em quase todo o Brasil e defendem a tese simplista de que só com melhores salários se melhora o trabalho dos professores. Por outro lado, eu que estudo e trabalho na educação há 35 anos, não quero que meus filhos fiquem o dia todo na escola, pois ela é uma instituição das mais conservadoras – alguém já viu alguma revolução social conduzida por professores? A maioria delas, na verdade, freia o desenvolvimento das crianças. Todos os nossos filhos aprendem as coisas mais avançadas, modernas, sofisticadas, fora da instituição escolar. Além disso, ela não consegue dar uma formação que equilibre razão e sensibilidade pois, calcada numa lógica positivista ou cartesiana, não permite às crianças expressarem seus sentimentos por meio das artes. São 4 ou 5 horas de aula de matemática ou de gramática por semana; apenas uma de educação artística e educação física. Isso não é educação; é um atraso. Na tal escola de tempo integral, teríamos o dobro de aulas de matemática e português – um massacre! Que fazer? A ideia da escola em tempo integral talvez possa ser vista, com muita generosidade, pelo ângulo de que hoje as crianças e jovens das escolas públicas recebem 2h30 ou 3h de aula por dia. São, no total, cinco horas-relógio de aula. Porém, em cada uma delas se perde 15 minutos com atividades que não são propriamente atividade de ensino – entrada, acomodação, chamada etc. O intervalo de merenda é de 30 minutos. Somado: 15 X 5 + 30 = 105 minutos de perda/dia. Considerando o teto ideal de 300min. menos 105 de perda, teríamos, então, apenas 195min. Estes, divididos por 60 = 3h15 horas. Quando computamos os alunos de zona rural que usam o transporte escolar, essa média cai ainda mais. Assim sendo, haveria que se modernizar o sistema e fiscalizar para que os alunos tenham, de fato, pelo menos quatro horas de aula. E, para isso, basta que o período seja das 7h às 13h. Neste 62

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Escola de tempo integral – o que é isso?

caso, mesmo descontando-se as perdas, ainda assim haveria, efetivamente, quatro horas de aulas por dia. Mas há inúmeros outros aspectos a serem considerados. Os alunos da manhã, no máximo, poderiam desenvolver algumas atividades na parte da tarde, lembrando que isso tudo impacta na folha de pagamento. Como se constata, é muito difícil apresentar propostas simples para problemas de altíssima complexidade. Eu tive a oportunidade de ser gestor de rede de ensino por três anos. Foi essa experiência que me mostrou o quanto muitas teses universitárias e as propostas de políticos leigos são ingênuas.

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próximo ocupante do Palácio do Planalto herdará 16 anos de contínuos avanços nas políticas de igualdade racial no país, que tiveram como impulso o reconhecimento do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1995, de que o Brasil é racista. Posicionamento que se tornou um marco para o Estado e para a elaboração de ações governamentais O Brasil vive uma conjuntura singular no que diz respeito ao espaço que conquistaram no terreno social as temáticas das políticas antirracismo, de igualdade racial e de diversidade. Essa relevância pode ser evidenciada, sobretudo, pelos debates que vêm sendo travados nas duas Casas do Congresso Nacional, pelas matérias que tramitam no Supremo Tribunal Federal e pelas repercussões que os mesmos assuntos, por vezes, merecem na imprensa nacional. A demarcação da área da Raposa Serra do Sol, em Roraima, a demanda do povo cigano por acesso à cidadania formal, o sistema de reserva de vagas para negros nas universidades, a titulação de terras de remanescentes quilombolas, as políticas públicas para o tratamento de pessoas que sofrem de doenças étnicas e o ensino da história e da cultura da África e da resistência negra no ensino fundamental e o clamor das religiões de matriz africana pelo respeito ao conceito republicano de tolerância e liberdade religiosa são alguns dos temas que entraram de forma avassaladora na agenda nacional. Como apontou o presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa, José Almino Alencar, em texto publicado pelo Ministério da Cultura, é correto entendermos que esses assuntos dizem respeito a uma questão da identidade perseguida com maior ou menor intensidade, desde o século 19. A partir do período da Regência, o Brasil vem sendo reinventado pelos brasileiros, criações em que aparecem articuladas a elaboração de símbolos, de mitos, de instituições e a afirmação de um ideário nacionalista. O que também está em andamento é uma revisão constante do conceito de direitos humanos que teve seus princípios delineados pela ideologia iluminista, no século 18, mas que vem se modificando,

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já que se notou que o cogito de que “todos os homens são iguais” não contemplava formalmente os anseios de grupos mais tarde reunidos no sofrível bordão de “minorias”. Tanto que os estudiosos do tema definem que estamos vivenciando a quarta e quinta gerações dos mesmos valores de direitos humanos, com a inclusão de causas que não estavam contempladas no princípio, sobretudo a das mulheres, dos negros, dos povos indígenas, dos homossexuais e a fundiária. Por todo esse arcabouço teórico e de prática política, temos um contexto que exige para a formulação contemporânea de políticas públicas em diversas áreas o reconhecimento de situações especificas derivadas das distinções de classe ou do mundo do trabalho, das situações de gênero ou orientação sexual, de direitos culturais a partir da situação etária, como os idosos, jovens e crianças e de desigualdades derivadas da situação étnica, como as dos afrodescendentes. Certamente o leito da igualdade racial, dada à densidade populacional que representa o povo negro no país, merece especial atenção. Projeções do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apontam que os negros brasileiros vão representar 51% do total numérico da sociedade, ainda neste ano, 2010. O que reforça a simbologia e a constatação de que o Brasil é o país que mais negros tem em todo o planeta, atrás apenas da Nigéria. Dessa realidade desponta uma desejada consequência de políticas públicas nos nossos dias que, a bem da verdade, continua a carecer de uma concepção por dento das instituições, do sentimento nacional e da complexidade social brasileira Há sinais de que a próxima discussão macro nessa área será a de rever os fundamentos da nação a fim de reconhecer negros, indígenas, mulheres, ciganos, árabes e judeus como componentes dos pilares da brasilidade e não somente um grupo que reivindica parte das benesses do Estado. Essa é uma visão que certamente despontará e será um desafio aos ocupantes do Palácio do Planalto a partir de janeiro de 2011 e dos componentes do governo que terão a atribuição de responder a essas tratativas. Consoante com esse cenário, a perspectiva é que o conceito de igualdade racial avance para muito além da denúncia do racismo e da reivindicação de cotas, de reserva de vagas ou de nichos em determinados setores institucionais. Em resumo, não bastará apenas dar continuidade aos programas existentes que são fruto do pensamento de quadros que se pautaram pela concepção que é necessário e justo que o Estado faça um ressarcimento aos afrodescendentes pelas mazelas históricas, sociais e econômicas de que foram vítimas. Sionei Leão

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Batalha das ideias

Será necessário nos próximos quatro anos apontar para uma visão nacional mais inclusiva e igualitária do ponto de vista material, com as políticas públicas que franqueiam renda, acesso à educação, à saúde e à moradia. Despertarão também questionamentos do campo imaterial sobre a relação dos segmentos antes excluídos de representação política e cultural que passarão a cobrar uma interação mais fundamentada nos centros de decisão brasileiros. Até o presente vinha prevalecendo o combate ao preconceito. Até porque há uma trajetória robusta de denúncia do racismo eivado pela militância negra brasileira, que em muitos momentos se inspirou em lutas internacionais, como na África do Sul, contra o sistema segregacionista conhecido como apartheid e a campanha pelos direitos civis nos Estados Unidos da América. Por conta dessa influência pairou muito tempo a expectativa de se produzir no Brasil um movimento de massa, com forte capacidade de mobilizar a população negra e levantá-la contra o racismo. Um dos momentos mais significativos dessa empreitada se deu por ocasião do Encontro Nacional de Entidades Negras (Enen), realizado em 1991, no Pacaembu, em São Paulo, quando se pretendia criar uma entidade brasileira, quem sabe, nos moldes, do Congresso Nacional Africano (CNA). Como isso não se implementou, a tendência da militância foi passar para uma fase de onguização. Essa onguização ocorreu pela percepção de vários ativistas de que o movimento de massa era um projeto de difícil implantação no país e por esse motivo não se concretizaria no curto e no médio prazos. Esse momento contribuiu para o despertar de entidades com propósitos mais focados, quase profissionais, o que levou ao fortalecimento da causa das mulheres negras, que têm o mérito, entre outras conquistas, de pautar o debate sobre a saúde da população negra, as doenças étnicas, hoje uma política ministerial. Outro momento importante, nesse passado recente, ficou por conta dos esforços por cumprir-se no Brasil com o escopo da Convenção nº 111, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata de ações para debelar as desigualdades no mundo do trabalho, o que antecedeu de forma efusiva o desencadear das políticas públicas, que tem por implementação mais bem sucedida os programas de cotas nas universidades. Os debates sobre a Convenção nº 111 foram os embriões à adoção de políticas afirmativas, que tiveram por marco as cotas na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), prática seguida por outras universidades públicas. Hoje são cerca de quarenta instituições 66

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nacionais que adotaram ou estão discutindo esse passo – implementar políticas de reserva de vagas na área do ensino voltadas para afrodescendente e indígenas. Essa empreitada foi reforçada por programas sociais do governo federal, que são responsáveis pelo ingresso de cerca de trezentos mil alunos negros nas universidades. Em paralelo à etapa de onguização, acontece o fenômeno da imersão do tema igualdade racial nos partidos, de uma maneira muito mais avassaladora do que ocorrera no passado com o PTB, na Era Vargas. Hoje são várias as legendas que investem muito nesse tema, todas contam com núcleos razoavelmente estruturados nas suas instâncias, organizados para tratar da igualdade racial. Toda essa efervescência leva a um marco do ponto de vista institucional decisivo ocorrido em 1995, durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, o primeiro a reconhecer que o Brasil tem uma chaga racista a ser enfrentada pelo Estado. Foi nessa mesma gestão que o Ipea produziu estudo que evidenciou que as políticas sociais e de transferência de renda tinham efeito quase nulo em minorar a distância entre negros e brancos no Brasil. Se na política econômica tem se afirmado que os mandatos do petista Luiz Inácio Lula da Silva deram sequência ao que havia sido formulado e adotado por FHC, em medida semelhante, é pertinente constatar que em dezembro de 2010 estará se encerrando um ciclo de 16 anos de avanços de políticas públicas na área da igualdade racial. A próxima gestão do Palácio do Planalto vai se defrontar com a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), pasta criada em 2003 com status de ministério, erigida com o objetivo de debelar as desigualdades raciais brasileiras. A Seppir foi antecedida pela Fundação Palmares, fundada em 1988, e pelo Grupo de Trabalho Interministerial/População Negra, criado em 1995, na gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Há em atividade programas com corte de igualdade racial no Ministério da Saúde, no Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), por meio do Incra, no Ministério das Relações Exteriores, Itamaraty, por meio do Instituto Rio Branco, e no Ministério da Educação (MEC), com a Secad. Espalham-se pelo país os organismos de igualdade racial, como conselhos, coordenadorias e secretarias. No entanto, essas experiências serão pouco efetivas se não puderem contar com quadros nos

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partidos políticos, capazes de se tornar gestores municipais, estaduais e da União sensíveis e conhecedores da igualdade racial, que compreendam o real valor do conceito diversidade. Diante desse diagnóstico desponta que, do ponto de vista partidário, e institucional as legendas não poderão se furtar a absorver esse compromisso histórico, ou seja, promover a ascensão dos segmentos que ainda amargam a exclusão, percebendo a oportunidade de se pautar por uma estratégia e táticas por dentro da institucionalidade do conceito de república e da força partidária em prol das políticas antirracismo de igualdade racial. São vários os sinais de que essa demanda do ponto de vista da institucionalização veio para ficar. Dar celeridade às demandas em curso é, inevitavelmente, um compromisso. O PPS tem muito a contribuir nessa área. A esse respeito vale resgatar que o primeiro projeto de tolerância religiosa votado no parlamento federal teve por autor o então deputado Jorge Amado, quadro do PCB. Militaram no “Partidão” o historiador-jornalista Clóvis Moura como o poeta Solano Trindade. Muitos ícones poderiam ser citados como o geógrafo Milton Santos, que também foi partidário da sigla. Por assim dizer, o PPS levando-se em conta ser o herdeiro do PCB, esteve à frente nesse assunto, contou e conta com quadros qualificados nesse debate.

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Minha Casa, Minha Vida: a ocultação da memória e um réquiem para o planejamento urbano Luiz Prado

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á décadas, ou desde o século XIX, os problemas habitacionais são bastante conhecidos no Brasil. Nada é novo, mas como vivemos num tempo em que a política se faz com slogans, o governo Lula deixou para o sétimo ano de sua administração o lançamento de um “programa’ que é mais um slogan: “Minha Casa, Minha Vida”. E esse nome de fantasia do slogan inclui, é claro, um número mágico – 2 milhões de casas para as pessoas de baixa renda. Ninguém pode ser contra o novo slogan, mas ele merece uma análise do abandono de um grande número de experiências anteriores em nome da mera extensão dos prazos e redução dos juros para o financiamento da casa própria, além de alguma simplificação burocrática. De fato, no passado discutiram-se temas como planejamento urbano – hoje totalmente abandonado no Brasil, mas não nos países desenvolvidos –, tipo de habitação, localização, disponibilidade de serviços sociais como educação primária, saúde, transporte e distância em relação aos locais de trabalho, saneamento básico. O “programa” é o mero financiamento. Aos fatos! Dom Pedro II, que foi bastante mais interessado na educação do que os nossos atuais governantes, convencido da gravidade da situação social depois da tolice que foi a guerra contra o Paraguai, pediu ao visconde de Paranaguá que desenvolvesse um plano para construir casas populares para alugar aos pobres. O Visconde, que não era tão tolo, chamou os donos das indústrias e pediu-lhes que calculassem o preço do metro quadrado construído, e depois retirou os impostos e pediu-lhes que refizessem a conta. Os empresários mais espertos construíram vilas operárias. Evidentemente, pode-se dizer que essa era uma forma de beneficiar os industriais ricos e manter os operários sob controle e, de fato, as casas eram inicialmente alu69


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gadas aos operários. Mas o fato é que nesse período houve uma enorme produção de casas populares, e essa abordagem prosseguiu durante muito tempo. Novas ondas de imigração de europeus trouxeram uma tendência a investir na construção de imóveis para serem alugados. Já nos anos 30, o Estado chamou para si o problema do direito de habitação. Surgiram os loteadores que faziam algum arruamento, edificavam as casas e as financiavam. Logo a seguir, vieram os planos habitacionais com a criação das Companhias de Habitação (Cohabs). O Estado passa a fiscalizar se os arruamentos eram feitos, se os loteadores cumpriam cláusulas contratuais referentes a redes de energia elétrica, de distribuição de água e até de esgotamento sanitário. Por incrível que possa parecer aos mais (mal intencionadamente) esquecidos, aqueles que acham que “nunca antes na história deste país”, poucos meses após o golpe militar de 1964, cria-se o Banco Nacional de Habitação (BNH) e institui-se o Sistema Financeiro da Habitação (SFH), passando a permitir-se o uso do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) para a aquisição da casa própria. Nunca antes na história deste país! Curiosamente, a lei através da qual se cria o BNH – Lei federal 4.380, de 21/8/1964 – estabelece que: Art. 4. Terão prioridade na aplicação dos recursos: I – a construção de conjuntos habitacionais destinados à eliminação de favelas, mocambos e outras aglomerações em condições sub-humanas de habitação; II – os projetos municipais ou estaduais que, com as ofertas de terrenos já urbanizados e dotados dos necessários melhoramentos, permitirem o início imediato da construção de habitações; III – os projetos de cooperativas e outras formas associativas de construção de casa própria; IV – os projetos da iniciativa privada que contribuam para a solução de problemas habitacionais

Como se pode notar, “nunca antes na história deste país” se havia feito tanto esforço para a solução dos problemas habitacionais quanto nos últimos 12 meses! As proteções aos compradores e as salvaguardas aos objetivos dos programas habitacionais eram muitas, como se pode ver:

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Minha casa, minha vida...

Art. 6° O disposto no artigo anterior somente se aplicará aos contratos de venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão, ou empréstimo que satisfaçam às seguintes condições: a) tenham por objeto imóveis construídos, em construção, ou cuja construção seja simultaneamente contratada, cuja área total de construção, entendida como a que inclua paredes e quotas-partes comuns, quando se tratar de apartamento, de habitação coletiva ou vila, não ultrapasse 100 (cem) metros quadrados; b) o valor da transação não ultrapasse 200 (duzentas) vezes o maior salário-mínimo vigente no país; c) ao menos parte do financiamento, ou do preço a ser pago, seja amortizado em prestações mensais sucessivas, de igual valor, antes do reajustamento, que incluam amortizações e juros; d) além das prestações mensais referidas na alínea anterior, quando convencionadas prestações intermediárias, fica vedado o reajustamento das mesmas, e do saldo devedor a elas correspondente; e) os juros convencionais não excedem de 10% ao ano; f) se assegure ao devedor, comprador, promitente comprador, cessionário ou promitente cessionário o direito a liquidar antecipadamente a dívida em forma obrigatoriamente prevista no contrato, a qual poderá prever a correção monetária do saldo devedor, de acordo com os índices previstos no § 1° do artigo anterior.

Durante muito tempo, o BNH financiou vilas operárias – coisa agora esquecida –, como foi o caso da Vila da Verolme, em Angra dos Reis, onde moram os empregados do estaleiro. Parece até coisa de socialismo avançado. Confusões nas cláusulas de reajustamento do saldo (residual) dos contratos levaram ao colapso do sistema e à extinção do BNH – mas essa é outra história –, ocorrida em 1986. A Caixa Econômica Federal absorveu o prejuízo e os empréstimos escassearam durante um longo período em decorrência do “susto” decorrente do colapso do Sistema Financeiro da Habitação (SFH). O problema não foi tanto a brutal redução nos financiamentos, mas a relativa paralisia em que mergulhou o pensamento urbanístico e arquitetônico, que durante alguns anos ainda mostrou-se criativo, mas limitou-se a verdadeiros bolsões de resistência. Aqui e ali ainda foram discutidas opções de materiais, de plantas, de abordagens para loteamentos de baixa renda, com soluções que não chegaram a se transformar em políticas públicas.

Luiz Prado

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Batalha das ideias

Esses debates e esforços para encontrar soluções de menor prazo mas igualmente adequadas ainda se mantiveram, por exemplo, nos esforços não aceitos pelas construtoras que controlavam as políticas públicas para implantar ramais condominiais (pelo centro dos quarteirões) para reduzir os custos das redes de coleta de esgotos. Então, o que surpreende com o lançamento desse programa-slogan com finalidades eleitorais é que para ele não foram convidados urbanistas ou arquitetos. NADA! Tudo se limita à “solução” financeira, e o programa é entregue nas mãos das mesmas construtoras que fazem as edificações mais luxuosas, e que se dane “o resto”. “Soluções de mercado” com garantias financeiras lastreadas no dinheiro público: o sonho capitalista enfim com um slogan populista. Afinal, ninguém descobre apenas no final de um segundo mandato que o Brasil tem graves problemas habitacionais. O fato é que não havendo políticas consistentes de fixação da população rural – até o MST reconhece, hoje, que na administração Lula não se fez reforma agrária, mas apenas assentamentos sem qualquer assistência técnica –, as favelas continuaram a crescer, as ocupações irregulares de encostas de morros (que não tinham por que serem consideradas irregulares por lei genérica se fossem precedidas de avaliações geológicas e obras de contenção adequadas) foram regularizadas e, assim, estimuladas por mera deliberação do Conselho Nacional de Meio Ambiente, até criarem a oportunidade para obras também de caráter eleitoral (ou seja, sem planejamento urbano e concebidas para serem inauguradas em ano de eleição). Transferida a responsabilidade do “planejamento urbano” para a habitação de baixa renda para as construtoras, agora, só nos resta esperar para ver se e quando começarão a ser avaliados os problemas de infraestrutura de abastecimento de água, coleta e tratamento de esgotos, ou meras enchentes durante os períodos de chuvas máximas. E la nave va!

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Iv. Quest천es do desenvolvimento


Autores Raimundo Santos

Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro é autor, dentre outros, do livro Agraristas políticos brasileiros, Fundação Astrojildo Pereira-NEAD, Brasília, 2007

Anivaldo Miranda

Jornalista e mestre em Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável pela Universidade Federal de Alagoas

Paulo Timm

Economista, pós-graduado na Escolatina, Universidade do Chile e Cepal/Bedes, ex-presidente do Conselho de Economia do DF e professor de Administração Pública da UnB


Agronegócio, agricultura familiar e política Raimundo Santos A economia não é um templo, mas um campo de testes. Habermas

A

bibliografia acadêmica vem apresentando um debate no qual nosso rural aparece como um mundo dinâmico movimentado pelo “confronto e diálogo” entre o agronegócio e a agricultura familiar. Já se tornou tão complexo o mundo rural brasileiro que a estrutura governamental há anos se repartiu, significativamente, em dois ministérios, um para cada lado (Ministério da Agricultura e Ministério do Desenvolvimento Agrário). Não por acaso, o atual governo, liderado por um partido de compromisso camponês – ativista da luta pela terra nos anos 1980 e 1990 –, é chamado a administrar o grão-capitalismo (usando a expressão com que um sociólogo do Rio de Janeiro se refere à economia brasileira), dele (e da “herança maldita” recebida de FHC) extraindo sucessos para sua política econômica. No mundo rural de hoje dispõem-se possibilidades de desenvolvimento localizadas no agronegócio e na agricultura familiar, alvos de políticas públicas especiais nada desimportantes. É só ver o seu número, diversificação e abrangência crescentes, aqueles dois ministérios mais e mais articulando ações com o Ministério do Meio Ambiente e a Secretaria da Pesca, além de vários outros programas de envergadura (ações no território, os Pronafs etc.). Toda uma trama institucional atua num meio rural já bem distante do mundo da tradição e do tempo dos “grandes domínios”. 75


Questões do Desenvolvimento

Nesta oportunidade oferecida pelo presente número da revista Política Democrática, às vésperas desta eleição presidencial decisiva, na qual inclusive a consolidação do Estado Democrático de Direito corre risco, este texto se refere à controvérsia em torno daquela dualidade a que se atribui a dinamização da vida rural. Centralizada entre o PSDB e o PT, a disputa mostrará compreensões diferenciadas tanto no que se refere ao processo democrático em curso como em relação aos grandes temas postos em discussão durante a campanha eleitoral, como as questões agrária e rural. Com base em certa bibliografia, estas páginas registram uma controvérsia que tem a ver com campos que se expressam nos dois principais candidatos. Com Serra estão conhecidas áreas de esquerda de enraizada orientação reformista-democrática gradualista bem diferente das influentes tendências de esquerda que compõem o largo arco de apoio à candidatura de Dilma Rousseff.1 Assim, em uma ponta, pode-se ver na bibliografia aqui referida uma tendência que defende a agricultura familiar em termos de um “campesinismo” novo e atualizado, ponto de vista hoje hegemônico nas esquerdas militantes. Este campo vê-se reforçado por autores dos mais credenciados (VEIGA, 1998; ABRAMOVAY; VEIGA, 1998; VEIGA, 1994; apud SAUER, 2008) que, nos anos 1990, justificaram um ressurgimento da reforma agrária distributivista, aumentando as expectativas em relação ao advento de um novo dinamismo econômico com base na agricultura familiar. Realçando seus atributos vantajosos em relação ao agronegócio (pluricultura, absorção da pobreza, sustentabilidade etc.) chega-se a pensar que a agricultura familiar tem todas as condições para ser o protagonista de um novo padrão de desenvolvimento social e econômico no mundo rural (SAUER, 2008).2 Todavia é de se registrar um grupo de estudiosos do agronegócio que se propõe ir além da ênfase na dimensão econômica do grande empreendimento.3 Realizando uma abertura analítica em relação à bibliografia denuncista, esta vertente volta suas vistas para a “sociedade” do agronegócio. Ao direcionarem assim sua investigação, os seus autores estão fazendo um diagnóstico do custo social do agronegócio, ator que não teria obtido o dinamismo que o separa dos seus antepassados sem o uso privatista do Estado, a concentração da propriedade 1 O artigo de Serra acerca dos 25 anos da Nova República e o seu discurso ao aceitar a candidatura presidencial divulgados pela imprensa de junho são bem expressivos do campo acima referido. 2 SAUER, Sérgio. Agricultura familiar versus agronegócio: a dinâmica sociopolítica do campo brasileiro. Brasília: Embrapa, 2008. 3 Trata-se da pesquisa “Sociedade e economia do agronegócio no Brasil”, coordenada por Beatriz Herédia, Leonilde Medeiros, Moacir Palmeira e Sérgio Pereira Leite, cf. HERÉDIA et. al. (2009).

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Agronegócio, agricultura familiar e política

e o caráter predatório do empreendimento, como mostra o estudo minucioso realizado em três regiões (o Norte mato-grossense, o Triângulo Mineiro e o Oeste baiano). No entanto, o que chama a atenção no estudo é a diversidade das relações sociais que envolvem o conjunto do mundo à volta dos agronegócios e especialmente a segmentação social que prospera na “sociedade do agronegócio”. Há outras opiniões a respeito da agricultura familiar com postura mais positiva em relação aos agronegócios. É o caso de John Wilkinson4, o principal autor referido nestas notas, que se associa a uma “nova síntese” que “já se desenha em torno da noção de “território”, como diz ele próprio. Visando ampliar o horizonte dos defensores da agricultura familiar, Wilkinson se propõe ir além de três posições consideradas insuficientes: a) daqueles que superestimam o grau de consolidação de certos segmentos de produtores “por não levarem em conta as transformações na dinâmica recente dos mercados”; b) dos que (em estudos da pluriatividade) subestimam “as oportunidades para a agricultura familiar nos novos mercados de nicho como também na crise do modelo dominante da agricultura especializada” (WILKINSON, 2008: 14) ; e c) os que “descuidam do significado dos espaços de mercados ocupados pelas PMEs (pequenas e médias empresas) e da dinâmica do setor informal (aqui aludindo a estudos sobre a agroindústria) (Ibidem). O autor põe o seu tema – a agricultura familiar e os mercados – no cenário econômico atual. Diz ele que, no mundo das grandes cadeias de commodities, a agricultura familiar tem que operar com novos níveis de qualidade e novas escalas de produção. Ela é chamada a obter “capacidades próprias” para desenvolver “iniciativas autônomas”, o que exige aprendizagem coletiva capaz de levar consideráveis contingentes a processos de muita inovação. O próprio tema da segurança alimentar e os requerimentos de qualidade realçam o papel da fiscalização e das regulamentações do poder público em seus três níveis (marcas, certificações etc.) e também estimulam a agricultura familiar e o mundo artesanal a procurarem uma reestruturação que os habilite a entrar nos novos mercados, não faz muito reservados à grande empresa. O fortalecimento (“autônomo”, por sua qualidade) dos “mercados dos orgânicos” (mais abrangentes) e a ida da agricultura familiar a mercados regionais e nacionais (aos “consumidores desconhecidos”) não constituem as últimas fronteiras da sua expansão. A agricultura familiar não só tem posição importante no mercado interno como também já responde por fatias das exportações brasileiras. O grande varejo e os grandes supermercados, anota o autor, já mobi4 WILKINSON, J. Mercados, redes e valores. Porto Alegre: UFRS, 2008. Raimundo Santos

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Questões do Desenvolvimento

lizam os pequenos e médios produtores para montar os seus grupos de fornecedores de produtos de qualidade especial (Idem: 209). Para Wilkinson, “à medida que a agricultura familiar se oriente ao mercado e adote práticas de um pequeno empresário, abre-se uma ponte para uma aproximação ao mundo dos agronegócios” (Idem: 206). O autor não tem dúvida: “O mercado, portanto, nos seus diversos aspectos começa a ser o grande desafio, também para a agricultura familiar” (Idem: 209). Este caminho expressa um condicionamento da esfera econômica que os dois lados (o agronegócio e a agricultura familiar) parecem subestimar ao não ver “a profundidade das transformações nos valores da sociedade que são parcialmente refletidos nas novas dinâmicas dos mercados”, delas não escapando o grande mundo das commodities (rastreabilidade, internacionalização dos valores ambientais e sociais). Ao não reconhecerem as mudanças, os representantes do agronegócio e os defensores da agricultura familiar não se dispõem a explorar “os espaços de convivência”. O autor alude ao fenômeno do Corporate Social Responsability (CSR), observando que os dois lados não percebem a incidência da valorização de “uma série de qualidades, separadamente ou em conjunto, que questionam a sujeição de valores ambientais, sociais, culturais e políticos a prioridades de custo e escala” (Idem: 211). Sistemas de certificações, redes alternativas de produção e consumo questionam o modelo de economia industrial e põem em realce o mundo artesanal. E ainda: “Na medida em que a economia deslocase para serviços, este reconhecimento se desdobra em externalidades positivas para outros setores, sobretudo o turismo.” (Ibidem). Daí advém a necessidade de se requalificar o dualismo antigo no qual ainda se concentra a bibliografia denuncista ou de “viés campesinista” (sic). O agronegócio é criticado por viver obcecado pela busca de competitividade nas suas grandes cadeias de commodities, o que impede a sensibilização pelos temas do meio ambiente e do trabalho. Por sua vez, os defensores da agricultura familiar desqualificam o CSR, considerando-o simples “greenwshing e cooptação”, e não buscam ver “em que medida mudanças na sociedade refletidas mais por intermédio do mercado do que em períodos anteriores estão criando bases novas para uma convivência entre estes dois segmentos, sem eliminar as grandes áreas de conflitos que continuariam alimentando mobilizações sociais e políticas”. (WILKINSON, 2008: 210). O sentido dos tempos atuais requer atenção para temas emergentes: “Do lado do mercado, porém, muitos sinais apontam para um reconhecimento e uma valorização de um novo dualismo em relação a sistemas de produção.” (WILKINSON, 2008: 211). O CSR expressa “tendências 78

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Agronegócio, agricultura familiar e política

mais abrangentes pela valorização de uma série de qualidades” e leva a uma espécie de “paradoxo”: “Ou melhor, existe um reconhecimento que custos que não levam em conta essas qualidades transformam essas próprias qualidades em custos. Sistemas de certificação, por um lado, e redes alternativas de produção e consumo, por outro, focalizam, sobretudo, a valorização de processos produtivos distintos em relação ao modelo industrial, ratificando um reconhecimento do ´mundo artesanal´ bem como sistemas de produção local.”(Ibidem). O autor acredita que novos estudos virão contribuir para reequacionar a desconfiança dos porta-vozes da agricultura familiar, partidários, acrescenta Wilkinson, de uma longa “guerra de posições” (sic) contra os agronegócios. Estes, por sua vez, medem tudo por seu modernismo empresarialista, desconhecendo a força da agricultura familiar e do mundo artesanal. “Na sua desconfiança de manifestações de CSR”, diz o autor, “os porta-vozes da agricultura familiar parecem subestimar o grau em que o mercado se torna um canal de expressão dos valores de movimentos sociais.” (Idem: 212). Esse novo espaço do mercado abre possibilidades para um mínimo de “reconhecimento mútuo” que pode, ao mesmo tempo, favorecer diálogo sobre os outros temas de maior conflito no campo político-institucional (Idem). Já não é possível deixar de reconhecer a importância que têm tanto os agronegócios quanto a agricultura familiar, este dado apontando para a necessidade de se explorar as bases de “convivência entre ambos”. Não se trata mais de uma recuperação das virtudes camponesas da agricultura familiar. O impulso já estaria noutra dimensão. “O mercado ainda é o mesmo?”, esta é a tese do autor, e o seu ponto consiste em que, à medida que se diversificou, o mercado pôs-se diante do camponês atual de diferentes modos. Trata-se hoje de mercados atravessados por diversas mediações e regulações do poder público; resultantes – acrescentemos – de ações praticadas na esfera da política (partidos, Congresso, sindicatos, movimentos, associações, governo e agências governamentais nos seus três níveis). Essa controvérsia acerca das relações entre o agronegócio e a agricultura familiar mostra o papel decisivo do poder público. A propósito, há uma tendência incipiente que também procura ir além da ênfase no tema da polaridade “grande domínio” – agricultura familiar e que se refere ao grão capitalismo dominante no mundo rural, como Wilkinson, sem defensismos paralisantes. Esta bibliografia realça a questão do sentido e das prioridades da ação governamental chamando particularmente a atenção para os investimentos animadores da vida rural no âmbito da região e local, investimentos estratégicos aos fins reformistas do mundo rural. Este certamente será tema desta eleição.

Raimundo Santos

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Uma nova invasão, uma nova exclusão Anivaldo Miranda

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pesar de ter sido proclamada como patrimônio nacional no texto da Constituição em vigor, a zona costeira do Brasil não recebeu do poder público, em seus diversos níveis, o tratamento que a pompa do título sugere. Fruto dessa omissão, está em marcha um acelerado processo de degradação ambiental, supressão de vegetação protegida, ocupação indevida de terras públicas, privatização de praias e danos à soberania nacional em toda faixa litorânea brasileira. À raiz desse processo há um fenômeno estrutural representado pela crescente e desordenada expansão urbana e fenômenos conjunturais dotados de grande força e influência espacial, à frente a especulação imobiliária, atividades de grande impacto ambiental, a exemplo da criação de camarões em cativeiro, e a expansão do turismo, todos potencializados por uma onda de investimentos estrangeiros tratados sem critérios e regulamentações dignas de nota. No contexto da economia mundial cada vez mais integrada, quando a atividade global do turismo se alimenta das particularidades cênicas e culturais do ambiente local, aquilo que poderia ser uma oportunidade de promoção social e econômica para as populações ancestrais da faixa litorânea e populações costeiras, está se transformando no pesadelo de sua desterritorialização, da crescente degradação dos ecossistemas costeiros e da exclusão social. Muito embora os instrumentos da política nacional de gestão costeira tenham sido explicitados no ano de 1987, com o estabelecimento do Programa Nacional de Gerenciamento Costeiro (PNGC), a aplicação concreta dos princípios e diretrizes desse gerenciamento, corporificados sobretudo na Lei no 7.661, de 1988, e no Decreto no 5.300/2004, não acompanhou até hoje a velocidade dos processos de ocupação das zonas costeiras, notadamente dos espaços altamente valorizados da orla marítima brasileira. Interagindo com sociedades fragilizadas em termos de cidadania e representação política, sobretudo nos municípios adjacentes às regiões metropolitanas do litoral, muitos deles tradicionalmente de80


Uma nova invasão, uma nova exclusão

pendentes de atividades agrícolas e extrativistas, os capitais imobiliários, principalmente da chamada “segunda residência” e das grandes redes do turismo, não encontram qualquer tipo de efetiva intermediação reguladora, seja do poder público, seja da comunidade local – via de regra extremamente carente – e ditam suas próprias regras, ignorando a legislação ambiental, os princípios da democracia participativa, a inclusão das populações locais no processo de crescimento econômico, a cultura e a identidade das comunidades tradicionais do litoral. Reproduzindo com extrema intensidade os modelos concentradores de renda, oportunidades e capital que são historicamente característicos dos governos e da elite econômica brasileira, os processos de ocupação da zona litorânea nacional estão multiplicando aberrações cada vez mais expandidas, como é o caso da privatização das praias mais atrativas, muitas delas ocupadas por condomínios exclusivos de estrangeiros – que chegam a constituir verdadeiros enclaves – bem como a aquisição especulativa de vastas porções da orla, tornando cada dia mais inacessível o preço das terras e mais rarefeita a presença das populações locais nesses espaços subitamente supervalorizados. Para fazer frente a esse conjunto de problemas de gestão do espaço e socioambientais, o poder público age lenta e desarticuladamente, não raro em confronto intestino de competências entre a União, os estados e municípios, sobretudo no que diz respeito ao licenciamento ambiental de atividades impactantes. A esses fatores, típicos da fraqueza institucional que caracteriza o Estado brasileiro, somase a ambiguidade da legislação ambiental e de uso do solo, incapaz de refletir os novos processos da reestruturação da economia, da globalização e de fenômenos naturais de longa maturação como é o caso das mudanças climáticas em curso. Essa fragilidade do poder público, cujas vísceras mais expostas localizam-se no plano municipal, torna-se evidente no caos urbano das grandes cidades e aglomerados litorâneos. E é nesse espaço onde os grandes interesses do capital especulativo imobiliário dá as cartas, tornando fictício, via controle do parlamento local, o princípio da democracia participativa, e inviáveis, os instrumentos do planejamento racional das cidades. O preço desse controle político, no que diz respeito à zona costeira, abate-se principalmente sobre os ecossistemas litorâneos – vegetação de restinga, estuários, manguezais, lagunas, dunas, ativos paisagísticos, ilhas, formações de coral – paulatinamente sacrificados e

Anivaldo Miranda

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Questões do Desenvolvimento

descaracterizados em nome de um modelo de crescimento econômico que frequentemente usa a sustentabilidade apenas como retórica de marketing empresarial e eleitoral. Em tal contexto, o agravamento de fenômenos naturais como a erosão marinha – que já ameaça enormes faixas de habitações da orla de várias cidades, notadamente na região Nordeste do Brasil – tende a onerar a economia das prefeituras municipais e provocar o desaparecimento das praias, leia-se do principal espaço público de lazer das maiorias assalariadas da população e principal atrativo das atividades do próprio turismo. Dotada de uma faixa de 8.698 Km voltados para o Oceano Atlântico, possuindo uma área aproximada de 514 mil km² (incluindo o Mar Territorial) distribuídos em 17 estados e 395 municípios, a Zona Costeira brasileira, que abriga 43 milhões de habitantes e 16 das 28 regiões metropolitanas1 não pode ficar abandonada à própria sorte. Dada a sua importância estratégica, suas riquezas e vulnerabilidades ambientais, e sua relevância econômica, necessário se faz que tenha tratamento prioritário nas políticas públicas nacionais de meio ambiente e de uso e ocupação do solo. Não podemos reproduzir hoje um simulacro daquilo que aconteceu há 500 anos. Crescimento econômico no litoral brasileiro só será sinônimo de desenvolvimento se ocorrer de forma ordenada, se oferecer amplas oportunidades às populações tradicionalmente ali estabelecidas, se proteger os valiosos ecossistemas naturais costeiros e se imprimir à expansão urbana eficaz planejamento e prática inconteste da democracia participativa. Do contrário estaremos fazendo como os ingênuos nativos da época do descobrimento que, por compreensível desconhecimento, trocavam o valioso pau-brasil por espelhinhos e balangandãs.

1 Macrodiagnóstico da Zona Costeira e Marinha do Brasil. Brasília: MMA -2008

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Dez anos de Responsabilidade Fiscal Paulo Timm A marcha do mal é sempre sem termo quando dela participa o Governo” W. Shakespeare, in Medida por medida (1604/5)

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Lei de Responsabilidade Fiscal – Lei Complementar nº 101 completou no dia de 4 de maio passado seus dez anos de vigência. O fato foi marcado por seminários e discursos no Congresso Nacional e pela aprovação, um dia depois, de um atentado às comemorações do feito, de um reajuste para os aposentados sem previsão orçamentária, contrariando posição do governo federal. O assunto é sério e merece considerações. Há, antes de tudo, um itinerário, ao mesmo tempo histórico e teórico que levou, no Brasil, à aceitação do conceito mesmo de responsabilidade fiscal. E, em segundo lugar, há que se discutir as implicações todas que cercam o debate sobre reajustes de salários de servidores públicos, aposentadorias e pensões. A Lei de Responsabilidade Fiscal regulamentou a Constituição Federal, na parte da Tributação e do Orçamento (Título VI), cujo Capítulo II estabelece as normas gerais de finanças públicas a serem observadas pelos três níveis de governo: federal, estadual e municipal. Como afirma o relatório do Ministério da Fazenda sobre essa lei, em seu site: Em particular, a LRF vem atender à prescrição do artigo 163 da CF de 1988, cuja redação é a seguinte: Lei complementar disporá sobre: I – finanças públicas; II – dívida pública externa e interna, incluída a das autarquias, fundações e demais entidades controladas pelo poder público; III – concessão de garantias pelas entidades públicas;

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Questões do Desenvolvimento

IV – emissão e resgate de títulos da dívida pública; V – fiscalização das instituições financeiras; VI – operações de câmbio realizadas por órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; VII – compatibilização das funções das instituições oficiais de crédito da União, resguardadas as características e condições operacionais plenas das voltadas ao desenvolvimento regional.

A LRF não substitui nem revoga a Lei nº 4.320/64, que normatiza as finanças públicas no país há quase quarenta anos. Embora a Constituição Federal tenha determinado a edição de uma nova lei complementar em substituição à Lei no 4.320, não é possível prever até quando o Congresso Nacional concluirá os seus trabalhos em relação ao projeto já existente. A LRF atende também ao art. 169 da Carta Magna, que determina o estabelecimento de limites para as despesas com pessoal ativo e inativo da União a partir de lei complementar. Neste sentido, ela revoga a Lei Complementar nº 96, de 31 de maio de 1999, a chamada Lei Camata II (art. 75 da LRF). A LRF atende ainda à prescrição do art. 165 da Constituição, mais precisamente, o inciso II do parágrafo 9º: [...] Cabe à Lei Complementar estabelecer normas de gestão financeira e patrimonial da administração direta e indireta, bem como condições para a instituição e funcionamento de Fundos.

Finalmente, a partir do seu art. 68, a LRF vem atender à prescrição do art. 250 da Constituição de 1988 que assim determina: Com o objetivo de assegurar recursos para o pagamento dos benefícios concedidos pelo regime geral de previdência social, em adição aos recursos de sua arrecadação, a União poderá constituir fundo integrado por bens (etc).

O preâmbulo da Lei de Responsabilidade Fiscal é vasto, mas basta compreender que ela é uma Lei Complementar, exigida pela Constituição, com vistas a definir instrumentos capazes de planejar o uso controlado dos recursos públicos, como o Plano Plurianual (PPA), a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA) e, ao mesmo tempo, garantir a transparência na gestão destes recursos, o que, segundo ainda o relatório do Ministério da 84

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Dez anos de Responsabilidade Fiscal

Fazenda, citado, deve ser obtido através de vários mecanismos, dentre eles: [...] a participação popular na discussão e elaboração dos planos e orçamentos já referidos (art. 48, parágrafo único); a disponibilidade das contas dos administradores, durante todo o exercício, para consulta e apreciação pelos cidadãos e instituições da sociedade; a emissão de relatórios periódicos de gestão fiscal e de execução orçamentária, igualmente de acesso público e ampla divulgação.

A Responsabilidade Fiscal é, pois, um mandamento constitucional que norteia o planejamento para a obtenção do maior equilíbrio nas contas públicas, como também, exige que todo esse processo seja passível de acompanhamento, seja pelo Poder Legislativo, que tem a função precípua da fiscalização do Executivo, seja por especialistas e entidades não governamentais, seja pela cidadania, através mesmo da participação popular direta em torno dos debates que envolvem os vários instrumentos de planejamento citados. Ora, isto não ocorre com regularidade. Os instrumentos, sim, por força de lei, como o PPA e LDO são elaborados pelo Executivo, apreciados pelo Legislativo e convertidos em lei, mas tais instrumentos e seu processo carecem muito, ainda, da exigida transparência. Poucos são os brasileiros que sabem como o dinheiro público é arrecadado e como ele é gasto. Recentemente, empresários de São Paulo criaram um “impostômetro”, em praça pública, que mede quanto os cofres públicos arrecadam, acumuladamente, dia a dia, no ano. Mas não mostram quem paga esses impostos. Maria da Conceição Tavares, na comemoração dos seus oitenta anos, dia 24 do mês de abril passado, reiterou sua indignação diante do fato de que o Brasil avança aos trancos, sem conseguir jamais cobrar impostos de sua elite. São os assalariados, neste país, que pagam os impostos, não os empresários, muito menos os mais abastados. E sabem, os brasileiros, muito menos, onde seu dinheiro vai parar. Veja-se, por exemplo, no diagrama ao final deste artigo, como a União gasta seus recursos e se verá que não é, primordialmente, com funcionários públicos nem com aposentados e pensionistas nem muito menos com investimentos. O grosso do dinheiro vai, mesmo, é para o pagamento dos juros da dívida pública. E se retira os impostos essencialmente dos assalariados, cuja participação na renda nacional se situa em torno de 35% – a mesma, aliás, do governo como um todo – e gasta, primordialmente, com juros da dívida (35%) é óbPaulo Timm

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Questões do Desenvolvimento

vio que a União é o instrumento de transferência de renda do setor salário para o setor da propriedade, via impostos. Veja-se que esta transferência não se dá apenas através do setor público. Todo o mecanismo do crédito direto ao consumidor, aí somando grande parte das contas de cartões de crédito e crédito pessoal, significam, também, um montante absurdo de transferências de renda do trabalho para o capital, via juros. Daí o lucro absurdo dos bancos na economia brasileira e o crescimento crescente da participação do setor financeiro, tanto aqui como em países do Primeiro Mundo, nos respectivos PIB. Nos Estados Unidos tal porcentagem saltou de 15% nos anos 1970 para quase 40% nos dias atuais. Quem aguenta? Mas não se trata, aqui, de fazer proselitismo. Apenas evidenciar que a Responsabilidade Fiscal não é uma questão meramente técnica, de saber quanto o governo arrecada e quanto gasta, mas eminentemente política, que envolve uma compreensão mais profunda sobre todo o processo de geração de receitas públicas e destino de gastos. Diante de níveis elevados de participação da dívida pública na renda nacional o nível de juros não pode jamais ser reduzido a uma fórmula – de valor científico discutível – de “Metas de Inflação”, pois uma pequena variação de 1% determinada pelo Copom na Selic anual, sobre uma dívida de R$ 2 trilhões pode significar, nada mais, nada menos, do que um gasto adicional de R$ 20 bilhões. Veja a seguir alguns segmentos da sociedade brasileira, exigindo Manifesto de uma CPI para a Dívida Pública, que aliás, foi constituída sem nenhum impacto na mídia:

Manifesto: Uma CPI para a dívida que nos governa As políticas definidas para o Brasil são, há décadas, marcadas pelo que determina sua dívida pública. Ela é o argumento para que orçamentos sejam cortados, áreas sociais sejam penalizadas e legislações sejam mudadas. Ao longo dos anos, ela passou por uma significativa mudança de perfil. Aos compromissos junto a bancos privados internacionais e instituições multilaterais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), juntou-se uma explosiva dívida “interna”, formada por títulos governamentais negociados semanalmente pelo Tesouro Nacional. Porém, essa mudança não alterou a principal característica do endividamento: o saque dos recursos públicos por especuladores nacionais e estrangeiros, que também podem livremente aplicar em títulos da dívida “interna”. Entre 1995 e 2009, a dívida interna cresceu 25 vezes, tendo subido de R$ 62 bilhões para R$ 1,6 TRILHÃO, enquan86

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Dez anos de Responsabilidade Fiscal

to a dívida externa aumentou 80%, de US$ 148 bilhões para US$ 267 bilhões. A soma destas duas dívidas (R$ 2,2 TRILHÕES) representa nada menos que 80% do PIB brasileiro (tudo que o país produz em um ano), e sobre a maior parte dela incidem taxas de juros altíssimas, muito maiores que as pagas pelos países ricos. Com as taxas de juros mais altas do mundo, o Brasil destina anualmente cerca de 30% do orçamento federal para o pagamento dos juros, encargos e amortizações desses compromissos. Caso consideremos também a chamada “rolagem”, ou seja, o pagamento de amortizações por meio da emissão de novos títulos, o percentual do orçamento comprometido com a dívida sobe para 50%. Isso implicou o comprometimento de cerca de R$ 282 bilhões em 2008 (mesmo sem computar a “rolagem”), destinados aos detentores dos papéis. É um dinheiro que não entra na esfera produtiva, não movimenta a economia, não gera riqueza ou desenvolvimento. Destina-se principalmente ao setor financeiro privado e grandes especuladores privilegiados, no Brasil e no exterior. Os compromissos da dívida têm total prioridade sobre quaisquer outros (...) A questão da Responsabilidade Fiscal, portanto, conquanto importante para o equilíbrio das contas públicas exige, cada vez mais, um amplo debate nacional sobre as finanças públicas de forma a que se saiba, com maior clareza, os limites a que estamos todos sujeitos. O que preside o conceito de Responsabilidade Fiscal é a ideia de limite, ou, se quisermos, escassez, pressuposto sobre o qual se constrói a possibilidade mesmo da economia como ciência. Mas como saber o limite quando não se conhece o espaço sobre o qual devemos circunscrever nossa ação e como circunscrevê-lo sem conhecer todas as coordenadas. Tem razão, pois, o governo e setores mais responsáveis da oposição, como o governador de São Paulo, Alberto Goldman, quando denunciam o caráter eleitoral da decisão do Congresso ao não se circunscrever ao limite de 7% para o reajuste das aposentadorias superiores a um salário mínimo. Mas não têm razão quando não explicam de onde saiu a cifra limite proposta e porque é mais importante aumentar um ponto percentual na taxa de juros, com reflexos sobre o gasto público provavelmente superiores a R$ 20 bilhões e não podem gastar apenas R$ 2 bi com aposentados. Na verdade, os deputados federais, com sua sede de reeleição talvez tenham dado um tiro na lua, pois levantaram a poeira de um assunto que melhor fora ficar debaixo do tapete...

Paulo Timm

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Questões do Desenvolvimento

E aqui voltamos às questões do itinerário histórico e teórico que envolve a Lei de Responsabilidade Fiscal. Na América Latina, o recurso do déficit público, consagrado pela revolução keynesiana no pensamento econômico, durante a depressão dos anos 30, tornou-se um instrumento correto, num primeiro momento, como mecanismo de defesa dos preços dos produtos de exportação que tinham elevado peso na formação da renda nacional (PIB), para se converter, no pós-guerra, num recurso fácil, ora para financiar o processo de formação de capital ora para aliciar as camadas populares ansiosas por benefícios da “Providência Estatal”. O decantado populismo teria tido, aí, sua matéria-prima. Mas muitos economistas nele viram um poderoso instrumento para a alavancagem artificial de uma ruptura no círculo vicioso da pobreza, capaz de levar à industrialização. A isso tudo reagiu a abalizada opinião conservadora do continente, já com severas restrições a um processo de industrialização – que via como inoportuno, improdutivo e até inconveniente – para desancar sua catilina “equilibrista”. E até os anos 70, reinando na América Latina uma tolerância imensa nos meios progressistas com o recurso ao déficit público como mecanismo de promoção do desenvolvimento, mesmo com os riscos à estabilidade monetária que entranhava, a ideia de “equilíbrio das contas públicas”, “responsabilidade fiscal” e “ordem no setor público” era frontalmente rechaçada. Porém, mais além das experiências desastrosas de inflações galopantes em vários países, Brasil 56-64 dentre eles, que inspirava “revisões”, um pedagógico artigo de poucas páginas de um economista polonês, então em voga entre os economistas mais à esquerda, Michal Kalecki, intitulado “A diferença fundamental entre os países desenvolvidos e subdesenvolvidos”, trouxe uma reviravolta nesse assunto. Aí Kalecki simplesmente mostrava que o déficit público funcionava bem em economias avançadas assoladas pela crise, porque ele criava uma demanda artificial capaz de recompor o nível de demanda efetiva dessas economias, mas que, aqui, em economias atrasadas, onde a insuficiência de capital grassava, ele era um furo n´água. Pior: gerava um processo descontrolado de inflação. Desde então, a Responsabilidade Fiscal deixou de ser uma bandeira da direita para se converter num compromisso de todas as forças comprometidas com a construção da democracia no continente. O PT não sabia disso, quando, há dez anos atrás, votou contra a lei que agora exige que seja cumprida. Conceição Tavares que entrou no PT em 1994, com a força de deputada federal, passando, a partir de 88

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Dez anos de Responsabilidade Fiscal

então a “influenciar”, junto com outros economistas de vanguarda, sobre os verdadeiros caminhos e exigências do pensamento econômico progressista, aparentemente não teve tempo de chegar à “lição” da Responsabilidade Fiscal. Só o exercício do poder parece ter conseguido abrir-lhes a cabeça sobre a questão. Mas os setores mais aferrados aos velhos dogmas ainda insistem nas velhas teses da valorização do “déficit público” como instrumento de promoção da cidadania e do progresso econômico. E, paradoxalmente, são os mesmos que se submetem ao absolutismo do Banco Central na formulação da política monetária. Além da questão transparência na avaliação da Responsabilidade Fiscal e do julgamento dos deputados que aprovaram um índice superior ao desejado pelo governo, há um assunto ainda difícil de ser tratado, em todos os países do mundo: o envelhecimento. A população está vivendo cada vez mais e, relativamente, trabalhando menos, com o agravante de que esperam, na velhice, uma qualidade de vida até superior à que tiveram na mocidade: um carro melhor, um jardim de delícias, a viagem (viagens...) dos sonhos, um novo casamento (com parceiros mais jovens), maior ajuda aos filhos e até netos, enfim, uma certa “nobreza de estilo”, principalmente quando pertencem à classe média. Outro dia, convidado para almoçar na casa de um colega meu, fiquei simplesmente impressionado com a pompa e circunstância de um mero almoço de meio da semana: várias carnes em pratos impronunciáveis, vinho importado, serviçais e uma sobremesa imperdível. Ao final um “cognac”, também importado. Tudo muito bem. Nada a criticar. Eles são bastante idosos, ambos altamente educados e bem aposentados. Mas como a classe média média e média alta mantém esse nível de vida depois de aposentada? Estou falando de assalariados. Graças, ou às aposentadorias de servidores das carreiras de Estado, no caso brasileiro, ou aos fundos de pensão, sejam de estatais ou de empresas privadas. Neste caso, dos fundos, não só no Brasil, mas no mundo inteiro, seus beneficiários se transformam em sócios do sistema financeiro e de todos os mecanismos, artificiais ou não, honestos ou não, convenientes ou não, de valorização de seus fundos. A importância desses fundos não é nada desprezível. Peter Drucker, um visionário, chegou a dedicar um de seus últimos livros à análise deles. Diz ele, também, num outro livro dedicado ao estudo da evolução dos bancos nos Estados Unidos, que o negócio deles é cada vez mais informação e menos capital. Com efeito, é de um intrincado sistema de informações sobre a movimentação financeira frenética, em escala global, que são feitos os grandes negócios, sobre os quais Paulo Timm

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Questões do Desenvolvimento

a capacidade de tributação é cada vez menor. Paulo Krugman falou, recentemente, que embora a crise se tenha mitigado, suas origens, no sistema bancário e financeiro, está intocada, à espera de um novo susto. O debate, portanto, sobre responsabilidade fiscal, deflagrado pela aprovação de um índice superior ao proposto pelo governo brasileiro traz à tona um conjunto de debates, cada vez mais urgentes: a transparência das contas pública, a aplicação dos recursos públicos, a gestão da dívida pública, o nível da taxa de juros (e de câmbio), o impasse do envelhecimento da população. A política econômica, enfim. Quem dera pudéssemos participar desse amplo debate no processo eleitoral já em curso. Não é o que parece. Uma vez mais a luta será do bem contra o mal, embora nenhum dos candidatos se disponha à abertura deste debate aos eleitores. Como dizia Riobaldo, em Guimarães Rosa (Grande Sertão-Veredas – 10. e., p. 35): – Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe...Viver nem não é muito perigoso.

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v. o Social e o PolĂ­tico


Autores Waldir Cardoso

Médico, diretor da Federação Nacional dos Médicos, membro do Diretório Nacional do PPS, ex-vereador em Belém do Pará.

Denise Paiva

Formada em Serviço Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora, assessorou Itamar Franco, quando prefeito desta cidade (1973), e quando presidente da República (19921994). Dedica-se à pesquisa, conferências, consultorias nas áreas de política social, direitos humanos e administração pública, e lançou em 2009 o livro Era outra história – Política social do Governo Itamar Franco (1992-1994), em que relata sua rica experiência.

Lair Krähenbuhl

Secretário de Habitação do Estado de São Paulo, presidente da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) e do Fórum Nacional de Habitação.


SUS: situação atual e perspectivas Waldir Cardoso

A

s bases conceituais do Sistema Único de Saúde (SUS) estão consubstanciadas em princípios e diretrizes previstos na Carta Magna e nas suas leis complementares. Partindo dos preceitos legais, pretendemos refletir sobre a situação atual da implementação do SUS e as perspectivas para sua consolidação como política pública afirmativa de direitos sociais. Conquistamos com o SUS inegável avanço ao garantir a todos o direito de acesso aos serviços de saúde. Insculpir na Carta Magna o dever do Estado em garantir este direito foi vitória maiúscula da cidadania brasileira. Aprovar a mudança da lógica da atenção à saúde por meio da integralidade das ações dá ao sistema de saúde brasileiro caráter revolucionário. O pilar mais significativo, dentre as três diretrizes consensualmente reconhecidas, é a equidade. Pelo sentido de justiça social intrínseco na discriminação positiva que a caracteriza, o SUS constitucional é uma verdadeira Reforma do Estado. Considero a participação da comunidade um quarto princípio do Sistema Único de Saúde. Não há como fazer saúde, dentro dos princípios da integralidade e equidade, sem ter a população participando ativamente do processo de decisão, muito além da simples presença em Conferências e Conselhos de Saúde. A participação da comunidade, garantida expressamente no inciso III do art. 198 da Constituição Federal, deve acontecer no quotidiano da atenção à saúde, nos distritos sanitários, nos hospitais, nas unidades da saúde da família, nas ações de vigilância em saúde.

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O Social e o Político

Partindo destes princípios é fácil entender a importância das diretrizes do SUS. Só é possível garantir que o sistema de saúde seja integral, equitativo, universal e que tenha a participação da comunidade no processo de decisão, se for descentralizado. E regionalizado. E hierarquizado. Só pode ser Único se tiver apenas um comando em cada nível de governo. Porque, então, o SUS, com este belo arcabouço jurídico-institucional, não sai do papel? Consideremos os interesses em disputa na arena da saúde e a atitude das elites do país, por meio de alguns exemplos. O setor privado quer fortalecer a assistência médica. Nesta estão incluídos a indústria de equipamentos e medicamentos, os grandes laboratórios, os donos de hospitais. Maus políticos instrumentalizam o setor saúde na sua rede de corrupção. Outros agem com irresponsabilidade e dão à saúde gestão desqualificada. Mantêm ativamente o modelo de atenção biomédico. Desconhecem os princípios e diretrizes do SUS. Precarizam o vínculo dos trabalhadores do setor. Privatizam serviços de saúde. Os setores organizados da sociedade, como o movimento sindical, fogem do SUS. Nas mesas de negociação garantem assistência médica privada para os trabalhadores da sua base por meio de Planos de Saúde. As camadas médias, no mesmo sentido, buscam nos Planos de Saúde assistência médica supostamente de melhor qualidade. O Senado da República garante assistência privada vitalícia para seus parlamentares e familiares. Exército, Marinha e Aeronáutica têm serviços de saúde próprios. Servidores de saúde federais, estaduais e muitos municipais pagam previdência estatal que lhes oferece, também, assistência médica. O judiciário provê planos de saúde para juízes, promotores e servidores. O governo federal contribui permitindo que todos descontem no imposto de renda os valores pagos à saúde suplementar. A esmagadora maioria da população – cerca de 150 milhões de brasileiros – fica de fora. Trabalhadores do setor privado, os excluídos da cidadania, trabalhadores autônomos, a população rural. É um grupamento populacional em geral privado de cidadania, desorganizado, que não consegue verbalizar suas demandas. Para estes, o SUS – o SUS da atenção básica desqualificada e abandonada, o SUS das filas, o SUS das macas nos corredores dos hospitais públicos. Existe o SUS da alta complexidade. Transplantes, cirurgias complexas, medicamentos de altíssimo custo. O SUS provê procedimentos e insumos que não são cobertos pelas operadoras de planos de

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SUS: situação atual e perspectivas

saúde. Serve a poucos. Mas rende boa mídia para o governo e vultosos lucros para os capitalistas da saúde. Para virar este jogo, para avançar na perspectiva do SUS constitucional, necessitamos reaglutinar o movimento pela Reforma Sanitária a fim de lutar pelo caráter público do SUS; pelo seu financiamento suficiente e estável; pela mudança do modelo de atenção e pelo aprofundamento do controle social. Garantir o caráter público do SUS significa retomar sua vertente de Reforma de Estado, da política pública mais includente dentre as aprovadas na Constituição Federal de 1988. Requer enfrentar as dificuldades de gestão pela mudança de dispositivos legais que supostamente emperram e dificultam a agilidade na gestão de um setor onde muitas vezes a vida depende de decisões e providências rápidas. Se a gestão dos recursos humanos na administração direta significa quase uma inamovibilidade do servidor por que não discutir o fim da estabilidade e a adoção do regime celetista para todos os trabalhadores brasileiros? Porque até hoje a maioria dos profissionais de saúde não tem plano de carreira conforme o que determina a Lei no 8.142? Retomar o caráter público significa a adoção de dispositivos legais que estabeleçam que as terceirizações de hospitais públicos não sejam, na prática, a sua privatização. Organizações sociais (OS) têm nome comum, mas são regidas por legislações díspares entre os estados brasileiros. Recentemente os municípios começaram a definir sua legislação para também terem suas OSs. Supostamente públicas não estatais, são públicas somente no papel. Em geral, sem controle público, servem a interesses privados. Mesmo que não tenham objetivo de lucro. Diferente do que muitos apregoam, os constituintes sinalizaram o quantitativo necessário de recursos para a implementação do SUS. Aprovaram a destinação de 30% do orçamento da Seguridade Social para a saúde no art. 55 das Disposições Transitórias. Os agentes da contrarreforma muito cedo abandonaram o percentual de referência e, sistematicamente, ano após ano, reduzem, proporcionalmente, os recursos federais para a saúde. No Brasil somente 44% do financiamento total dos serviços de saúde é de origem pública o que corresponde a 3,7% do produto interno bruto. Cerca de U$ 350 per capita é um financiamento público inferior a países como Argentina, Chile, Costa Rica e Panamá, por exemplo. Mais perverso é que deste total a União – maior ente arrecadador de impostos – vem diminuindo, ano a ano, o seu percentual no total da contribuição, chegando atualmente a apenas 45%. Os municípios, principais responsáveis pela prestação direta dos serviços, arcam com escorchantes 28% do total Waldir Cardoso

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destes recursos. Em 2000, após 10 anos de luta, conseguimos aprovar a Emenda Constitucional 29 garantindo percentuais definidos para a saúde nos orçamentos estaduais (12%) e municipais (15%). Na vitória, uma grande derrota. Por ação da área econômica federal, a União ficou de fora do critério de percentual mínimo sobre a arrecadação. Impôs a variação nominal sobre o PIB do ano anterior o que garantiu a continuidade da retração de sua participação. A partir da aprovação da EC 29, estados e municípios, ao arrepio da lei no 8.080, passaram a incluir gastos com saneamento básico, coleta de lixo, alimentação, merenda escolar, como se fossem ações e serviços de saúde. Participando da fraude, a União chegou a incluir na conta da saúde parte dos gastos com o “Combate a fome/Bolsa família”. Se não bastasse a insuficiência de recursos, estes são gastos de forma não equitativa. Um sistema de saúde com atenção básica universal e de alta resolutividade atende 85% a 90% das necessidades de saúde. Apesar de essa assertiva estar bem estabelecida – a partir do modelo europeu – o Brasil opta por destinar à alta complexidade cerca de 20% dos parcos recursos da saúde. Persistem graves distorções no financiamento entre os estados da Federação. É simples constatar que há clara diferença no custo de manutenção e capacidade de cobertura assistencial para uma equipe da estratégia saúde da família (ESF) implantada no interior de São Paulo comparado com outra que funcione no interior da Amazônia. No item financiamento, a “virada” deve se iniciar com a aprovação da regulamentação da EC 29. Passo inicial, tímido, mas absolutamente necessário. Ao garantir que nas contas da saúde sejam contabilizados apenas os gastos com ações e serviços de saúde aumentaremos o aporte de recursos em pelo menos R$ 20 bilhões/ano, segundo cálculos de especialistas no financiamento da saúde. A próxima etapa é atingir 30% do valor destinado à seguridade social, conforme previsto pelos constituintes de 1988. Daí chegar à aplicação de U$ 1.000 per capita, cerca de metade do valor que gastam, em média, os países europeus que têm sistemas de saúde públicos e universais. Significa aproximadamente o triplo do gasto público atual com saúde. Para aqueles que duvidam de que isto é possível recomendo verificar o crescimento da arrecadação federal nos últimos dez anos. A integralidade das ações é um dos princípios basilares do SUS. Apesar disso, passados mais de vinte anos da criação do Sistema Único de Saúde, assistimos desolados a persistência de ações de saúde fragmentadas e especializadas. Continua predominante o modelo da medicina científica ocidental ou biomédica, que tem suas raízes vinculadas ao Renascimento, ao Método de Descartes. Deste 96

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SUS: situação atual e perspectivas

modelo, que já foi revolucionário, decorre um modo de atenção à saúde cuja intervenção de cuidado é baseada numa visão reducionista e mecanicista, em que o médico especialista é o mecânico que tratará da parte do corpo-máquina defeituosa ou do ambiente para controle das possíveis causas de epidemias. O hospital continua sendo o lócus privilegiado da atenção à saúde. A alta complexidade recebe, proporcionalmente, mais recursos que a atenção primária que padece com subfinanciamento. As ações de média complexidade estão estranguladas pelo baixo financiamento. A Estratégia Saúde da Família (ESF), grande esperança para a mudança do modelo de atenção, está sendo implementada simplesmente como ampliação do acesso. Mesmo esta inadequada ESF começa a ser desvirtuada com propostas de “flexibilização” da composição de sua equipe. Na prática, significa admitir Unidades de Saúde da Família sem o profissional médico. Um retrocesso e um risco. Risco da implementação de um SUS pobre para os que nada têm. A ESF deve ser valorizada e tornar-se estruturante de todo o sistema de saúde. Verdadeira porta de entrada e onde o cuidado e atenção ao indivíduo e à comunidade far-se-ão de forma integrada e integral. Neste nível de atenção, a complexidade de medidas de cuidado a serem tomadas, os recursos tecnológicos utilizados e a especialização de sua equipe irão mudar radicalmente o conceito de atenção primária ou básica que tem o senso comum. Maior complexidade não significa, obrigatoriamente, acesso imediato a recursos de propedêutica armada, via de regra, caríssimos. Significa que as habilidades cognitivas e técnicas dos integrantes da equipe de saúde necessárias ao enfrentamento dos desafios de resolver mais de 80% das demandas de saúde de uma determinada comunidade são altamente especializadas. Os demais níveis de assistência passam a trabalhar em função de satisfazer as demandas deste nível de atenção. Tratar, recuperar e reabilitar respondendo às necessidades da atenção básica. Para dar consequência a esta revolução, será necessário ampliar os recursos financeiros para a saúde em 15%. E em curto espaço de tempo. Ou seja, regulamentar a utilização dos recursos previstos na Emenda Constitucional 29 e destinar à atenção primária a maior parte destes recursos para investir na reestruturação do sistema de saúde e na estruturação das equipes de saúde da família. A médio e longo prazos estes recursos serão compensados pela diminuição substancial dos agravos ocorridos nas populações cobertas. O aprofundamento do controle social é o maior desafio para um sistema de saúde com os princípios e diretrizes como tem o Sistema Único de Saúde. Garantir controle social exige cidadania. Exige uma Waldir Cardoso

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população com acesso à educação e cônscia de seus direitos e deveres como integrante de um Estado Democrático. E que exercite estas faculdades no seu quotidiano. Os brasileiros ainda estão distantes desta realidade. Que fazer? Dentro do escopo deste texto, na saúde, evidentemente. Para começar, o poder público deve se conscientizar da importância capital da participação da comunidade para a melhoria da qualidade da atenção à saúde. Fazer saúde com e não para a população. Levar em consideração seu conhecimento e saberes na elaboração desde os planos de saúde até as intervenções sanitárias em territórios específicos. Proponho um choque de transparência na gestão do SUS. Amplificar o acesso de todos a informações da aplicação de recursos, informações em saúde, dados epidemiológicos. Exigir a apresentação destes resultados e informações, trimestralmente, nos Conselhos de Saúde e no legislativo. Obrigar que estejam disponibilizados, on line, na internet. Mais informação, mais poder. Para o povo. O desafio e a ousadia de cumprir e fazer cumprir a lei continuam atuais. Particularmente num país como o Brasil onde o ideário do liberalismo de novo tipo está presente em todas as forças políticas e instalado no poder central da república. Apesar destas dificuldades estruturais, a saúde – e de qualidade – é direito de todos e dever do estado, como determina a Constituição cidadã. É tarefa de todos aqueles comprometidos com a ampliação da democracia e a valorização da cidadania, aos seduzidos pela utopia de uma sociedade justa, humanista e igualitária, lutar pela sua consecução.

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Bolsa Família Denise Paiva

O

Bolsa Família deve ser contextualizado numa dimensão histórica e numa abordagem crítica, evidenciadas suas contradições e limitações, além da sua inegável importância. O programa de transferência de renda, com lógica não contributiva, que vem ganhando escala e feitio de política universal de proteção social não começou no governo Lula. A referência mais objetiva como política pública se deu no âmbito municipal em Campinas, São Paulo, na década de 1980. O prefeito do PSDB, José Roberto Magalhães, um mineiro de Andrada, alcunhado de Grama, foi pioneiro nesta estratégia de enfrentamento à pobreza. A versão pioneira do Bolsa Família no referido município era tão bem-estruturada e articulada com outras ações de promoção social e de abertura de múltiplas oportunidades que não era possível afirmar, de imediato, se o sucesso em termos de melhoria na qualidade de vida dos beneficiários se dava pelo subsídio econômico ou por um conjunto articulado de ações, inclusive apoio psicossocial. No âmbito estadual, o pioneirismo coube ao governador do Distrito Federal, Cristovam Buarque, então no PT, em 1995. Surge o Bolsa Escola como estratégia privilegiada para assegurar a permanência das crianças na escola, o que ajudou a capital da República a galgar índices de sucesso no ensino fundamental e no combate ao trabalho infantil. No âmbito federal, no governo FHC, foram institucionalizados os programas de transferência de renda dos Ministérios da Previdência e Assistência Social, Saúde e Educação e que se transformaram em carros-chefe da política social “tucana”. O então presidente Fernando Henrique, ao lado da primeira-dama Ruth Cardoso, criou o Vale Cidadania, um subsídio de R$ 50 para as famílias que retirassem seus filhos das carvoarias do Mato Grosso e os levassem para a escola. Em comemoração ao Dia da Criança, foi criado o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), cujo desenho fora feito pelo Fórum de Erradicação do Trabalho Infantil. O Fórum, criado em no-

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vembro de 1994, ainda no governo Itamar, reuniu governo, sociedade civil, empresariado, Ministério Público e organismos internacionais como um espaço privilegiado de construção e acompanhamento de políticas públicas. O Peti teve o grande mérito de inaugurar, junto com o subsídio econômico, a jornada educacional ampliada. Depois das carvoarias, ele foi ganhando os canaviais, sizais, mandiocais. Percorrendo o mapa das piores formas de exploração do trabalho infantil tornou-se uma referência nacional e internacional exitosa e uma consistente inspiração para o Bolsa Escola e depois para o Bolsa Família. Mas a grande matriz das chamadas “bolsas” é o Programa de Renda Mínima do senador Eduardo Suplicy, aprovado em 1992. A renda mínima, como direito independente da contribuição previdenciária, influenciou diretamente a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), formulada e aprovada no governo Itamar, em 1993, com inédita e intensa participação da sociedade civil. A base legal que respaldou o Bolsa Escola e hoje o Bolsa Família foi assegurada pela LOAS, que garantiu a renda mínima para deficientes e idosos em situação de extrema pobreza. O Programa de Renda Mínima, transformado em lei aprovada pelo Congresso Nacional, não só antecedeu, mas influenciou todas as iniciativas posteriores do Poder Executivo nas várias esferas para efetivação da política preconizada pelo Estado do Bem-Estar Social (o Welfare State) e pelo pensamento liberal moderno. O Programa de Renda Mínima representou o desejo e a voz de muitos parlamentares de vários partidos, ávidos para implementar a ordem social prevista na Constituição de 1988. Sintetizava a tão proclamada distribuição de renda e a expressão da consciência nacional mais avançada em termos de política social a partir dos anos 1990. Dizer que tal política é propriedade deste ou daquele partido, desse ou de outro governo, trata-se, no mínimo, de um estelionato. “Sempre será vantajoso trabalhar em relação ao não trabalhar”. Este é um princípio sempre evocado pelo senador paulista que entendia a transferência de renda para os mais pobres como Imposto de Renda negativo, de forma a estimular a busca de maior renda no mercado de trabalho. A renda mínima, na sua concepção básica e legal, tem uma íntima e estreita ligação ao incentivo ao mundo do trabalho o que não se verifica nas famigeradas bolsas, nem com FHC, nem com Lula. Pre-

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Bolsa Família

valeceu na política social brasileira, o conservadorismo que marca historicamente as nossas práticas assistenciais como mantenedoras e reprodutoras da miséria, por mais bem intencionadas que sejam. Urge, portanto, resgatar, para reencontrar o verdadeiro sentido, e repensar o Bolsa Família, na lógica e no horizonte do desenvolvimento sustentável. Eis um grande desafio para a consciência política brasileira que tem na arena do processo eleitoral em curso uma oportunidade fértil para o debate da integração das políticas sociais com as políticas econômicas.

Denise Paiva

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Um novo padrão de política habitacional Lair Krähenbuhl

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uando abordamos com isenção, apartidarismo e seriedade a questão das políticas públicas temos que levar em conta os critérios que orientaram ações bem-sucedidas, independentemente de quem as tenha realizado e utilizá-los no aprimoramento de futuras gestões. Por isso acreditamos poder analisar algumas experiências da política habitacional paulista e possivelmente contribuir para embasar novos programas e mesmo servir como subsídio na formulação de programas de governo que sucederão os atuais. Sem pretensão, mas com a segurança de termos obtido resultados positivos com nossas experiências, vamos analisar as diretrizes que têm norteado o esforço da equipe da Secretaria de Habitação e da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) no Estado de São Paulo. Evidentemente qualquer política pública, e em particular a habitacional, é em grande medida datada e localizada. Ela vai depender das condições sociais, econômicas, institucionais e legais que estão vigentes em um determinado momento e em uma determinada região. Assim, aqui trataremos da política habitacional atual e para o Estado de São Paulo. É natural que muitos dos aspectos aqui considerados possam perfeitamente ser aplicados em outras regiões do país. Na formulação da nossa política habitacional partimos de um diagnóstico das condições atuais, o que obriga a uma sistemática atualização e sistematização. Com base no conhecimento adquirido pela experiência, pelos estudos e pelas pesquisas, desenvolvemos a maioria dos critérios que guiaram nossa ação. Sem dúvida, o mais importante desses critérios é o que estabelece nosso principal foco de atenção: as famílias de mais baixa renda, aquelas que infelizmente ainda vivem em áreas de risco ou de mananciais, em condições de precariedade inaceitáveis. A melhoria das condições de vida dessas famílias deve ser nossa responsabilidade e nossa prioridade.

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Um novo padrão de política habitacional

Mas não se trata só de oferecer casas aos que mais necessitam, mas de construir habitações de qualidade. Por isso estabeleceu-se durante a atual gestão um novo padrão para a construção da moradia popular, hoje incorporado a todos os novos conjuntos habitacionais. Os novos parâmetros se constituem sem dúvida em um novo paradigma para o setor e contemplam: acessibilidade, inclusão do terceiro dormitório em metade dos conjuntos, maior espaço e maior altura nas construções, pisos cerâmicos e azulejos, muros de divisas entre as unidades, aquecedores solares, medidores individualizados de água, áreas de lazer e de serviços. Some-se a esses critérios construtivos, outros igualmente ou até mais importantes e que dizem respeito à regularização e propriedade do imóvel que as famílias recebem. Infelizmente no campo da habitação popular encontramos muitas irregularidades que devem ser conhecidas e corrigidas. São bairros inteiros construídos sem base em um parcelamento legal, inclusive alguns conjuntos edificados pelo poder público. São construções que não obedecem às normas vigentes e que criaram conjuntos habitacionais que não obtiveram os licenciamentos municipais e estaduais. Há ainda entre os núcleos irregulares as favelas implantadas por invasões, muitas vezes em áreas impróprias, levando seus moradores a uma situação de risco e insalubridade inadmissíveis. Cabe observar que as situações de irregularidade levam ao estabelecimento de núcleos à margem da lei, onde o Estado não consegue chegar e onde muitas vezes impera o crime organizado, o tráfico de drogas e a intimidação das famílias de bem. Estabelecer o reino da legalidade é essencial, não só para reduzir o espaço do crime organizado, mas principalmente para entregar ao cidadão uma moradia regular que se constitua em efetiva propriedade da família beneficiada, dando-lhe dignidade e segurança. A regularização fundiária, portanto, passou a ser uma bandeira fundamental dentro de nosso trabalho. A primeira determinação para perseguir esse objetivo em nossa gestão foi a de não entregar mais nenhuma unidade que não estivesse totalmente regularizada. Outra ação importante foi a de promover a regularização de moradias anteriormente entregues e habitadas, mas que não tinham a documentação em ordem. Para se ter a dimensão desse problema basta lembrar que das cerca de 450 mil unidades que foram anteriormente inauguradas, cerca de 150 mil encontravam-se em situação irregular. Para essas casas e apartamentos foi realizado um programa especial de regularização que já beneficiou cerca de 50 mil des-

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O Social e o Político

sas unidades e é bem provável que ainda na atual gestão se consiga dobrar esse número. De outro lado, também se constatou a existência de um grande número de núcleos habitacionais irregulares na maioria dos municípios, onde a responsabilidade pela regularização seria das prefeituras. Infelizmente, raras são as municipalidades que têm as condições necessárias para enfrentar esse desafio. Para tanto, criou-se um programa, denominado Cidade Legal, por meio do qual se promove o apoio às prefeituras para que elas realizem a regularização dos referidos núcleos. Já estamos atuando em mais de 130 municípios com dezenas de milhares de unidades em processo de regularização. Também como parte da batalha por uma regularização séria e responsável está o sistema de licenciamento de novos conjuntos habitacionais. O empreendedor público ou privado que queira implantar um novo conjunto habitacional deve submeter seu projeto à prefeitura e às instituições estaduais para se adequar à legislação. O estado de São Paulo deu um passo importante ao constituir o Grupo de Análise e Aprovação de Projetos Habitacionais (Graprohab). Ainda assim essa unificação para o exame dos projetos apresentava alguns problemas como a falta de clareza das regras e um dilatado prazo de análise que, em média, era superior a um ano. Um oportuno decreto do governador José Serra estabeleceu prazos para a avaliação dos projetos habitacionais e atualmente eles são analisados em 37 dias. Prevenir riscos é uma política que sempre deve estar presente nas mais variadas áreas de nossa vida. Para as famílias de baixa renda, entretanto, o risco está muito presente tanto pelo lado geotécnico como pelo sanitário, ambos causados pela pobreza. Famílias mais carentes normalmente vão ocupar o solo que resta, muitas vezes sujeitos às enchentes e aos deslizamentos. Além disso, as moradias implantadas como consequência da falta de recursos são precárias e insalubres trazendo o risco de graves doenças. Por isso priorizamos a atuação em áreas de risco (nessa gestão completaremos o atendimento de 12.500 famílias) e na erradicação de favelas (com o atendimento de 24.850 famílias). Dentre esse tipo de ação o mais significativo é sem dúvida a recuperação ambiental da Serra do Mar, no litoral paulista. Ali, com o objetivo de retirar pessoas das áreas de risco e ao mesmo tempo recuperar o maior patrimônio ambiental do estado estão sendo atendidas 7.500 famílias. A maior parte delas vem sendo beneficiada com a transferência para conjuntos habitacionais que estão sendo entregues no município de Cubatão e em outras cidades

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Um novo padrão de política habitacional

do litoral. As outras que não estão em áreas de risco terão seus bairros urbanizados, onde receberão serviços e equipamentos sociais. É importante mencionar a criação de programas especiais para responder a necessidades diferenciadas de certos setores da população de baixa renda. Assim foram melhorados ou inaugurados os programas destinados a: funcionários públicos buscando aproximar as suas moradias de seus locais de trabalho (Programa Habitacional de Integração-PHAI); idosos sós que passaram a contar com moradias especiais (Vila Dignidade); moradias indígenas; quilombolas em terras legalizadas; moradores de cortiços, transferidos para unidades na região central. Uma política importante é a de um relacionamento sério e construtivo com os movimentos sociais. Há uma tradição de luta por moradia de parte de organizações constituídas para esse fim. É importante atendê-los e aproveitar sua capacidade de organização na implantação de conjuntos habitacionais e no funcionamento do condomínio depois da entrega. Infelizmente os modelos de parceria desenvolvidos no passado não são mais compatíveis com as condições atuais. O sistema de autoconstrução em que trabalhadores sem a adequada qualificação se punham a construir em mutirões deram origem a muitos problemas: má gestão financeira, dívidas e contestações por Tribunais de Contas, dívidas, acidentes de trabalho às vezes trágicos, falta de regularização de terrenos e de construção. Optou-se por buscar programas alternativos como forma de se corrigir as inadequações e de se manter as parcerias com os movimentos populares. Para isso formatou-se o Programa de Gestão Compartilhada, no qual a gestão é participativa, mas a obra fica a cargo de empresas especializadas. Já foram conveniadas mais de 5.000 moradias nesse formato, e uma quantidade semelhante deverá ser fechada com entidades sindicais, também em regime de parceria. A questão dos recursos é fundamental. Se não forem estabelecidas fontes significativas, seguras e permanentes de recursos, todas as políticas e vontades ficarão no reino das boas intenções. O Estado de São Paulo conta com os recursos provenientes de um acréscimo de 1% do ICMS, que é sem dúvida importante, mas insuficiente. Fazse necessária uma constante gestão para obter mais aportes financeiros seja do próprio estado, como também de outras fontes como as federais e internacionais. Uma das importantes fontes de recursos para o financiamento de novas construções é o próprio mutuário ao pagar suas prestações. Um bom programa de cobrança permitiu que esses recursos fossem substancialmente aumentados.

Lair Krähenbuhl

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O Social e o Político

Uma política importante é a de aprender com os outros e compartilhar nossas experiências. E isso fazemos por meio do Fórum Nacional de Secretários de Habitação e Desenvolvimento Urbano no qual participam secretários de Habitação de todos os estados da Federação e os presidentes das Cohab de todo o país. Atualmente é São Paulo que preside o Fórum. Recentemente os secretários se reuniram e votaram uma Agenda Nacional da Habitação na qual muitas das questões aqui abordadas estão presentes. Para aprimorar o sistema estabelecido pela Lei do Sorteio e permitir que se beneficiasse prioritariamente os mais necessitados, ou seja, os moradores de áreas de risco, em regiões de mananciais e insalubres, aprovou-se na atual gestão uma proposta com novos critérios para a distribuição de moradias. Sem qualquer tipo de preconceito ou limitação político-partidária foram estabelecidas parcerias com absolutamente todas as prefeituras paulistas, com o governo federal e com entidades diversas voltadas ao trabalho sério de habitação de interesse social. Vale mencionar a integração ao programa Minha Casa, Minha Vida, e a outros desenvolvidos por meio da Caixa Econômica Federal, com a complementação de recursos para o combate ao déficit habitacional no estado de São Paulo. Os resultados dos esforços de gestão sempre passam por duas vertentes: ser eficaz, ou seja, obter resultados, e ser eficiente, ou seja, obter esses resultados com o menor uso de recursos possível. Com esses objetivos, nos fixamos no aprimoramento de cinco aspectos essenciais: o desenvolvimento institucional, as mudanças legais, o planejamento e controle, e a equipe. Os efetivos resultados dependem em muito dos ajustes na instituição que vai promovê-los. Pudemos fazê-los na CDHU e estabelecer uma divisão de trabalho adequada entre a Companhia e a Secretaria, como forma de obter os melhores resultados no planejamento e na execução da política habitacional. Por iniciativa da SH/CDHU e com o apoio dos deputados estaduais foram feitas as seguintes mudanças legais: aprimoramento da Lei dos Sorteios; redução dos emolumentos cartoriais a 10% do seu valor para o primeiro registro de habitações de interesse social; criação do Conselho Estadual de Habitação; instituição do Fundo Paulista de Habitação de Interesse Social; criação do Fundo Garantidor Habitacional.

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Um novo padrão de política habitacional

Todos sabem que um adequado sistema de planejamento e controle é essencial para a administração pública. Dentro dessa linha está a necessidade do controle estrito das empresas contratadas. Só assim os nossos parceiros privados podem produzir os resultados esperados. Pudemos contar com uma equipe de profissionais sérios capazes e dedicados. E o mais importante: os funcionários da Secretaria e da Companhia em sua grande maioria se envolveram na seriedade do trabalho entregando-se com competência e dedicação ao grande esforço coletivo. Sem o esforço de todos não teria sido possível pôr em prática as políticas de uma verdadeira habitação de interesse social.

Lair Krähenbuhl

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vI. Mundo


Autores Massimo D’Alema

Dirigente do Partido Democrático, foi primeiro-ministro da Itália entre 1998 e 2000 e, também, ministro de Relações Exteriores do governo Romano Prodi, entre 2006 e 2008

Alon Feuerwerker

Jornalista, edita o Blog do Alon, um dos principais veículos de informações e análises políticas do Brasil, é também colunista do jornal Correio Braziliense e apresentador do programa de entrevistas Jogo do Poder, na rede de TV CNT. alonfeuerwerker.df@dabr.com.br

Demétrio Carneiro

Economista, especialista e pesquisador em políticas públicas, professor universitário no Distrito Federal, coordenador do blog Alternativa Brasil. www.alternativabrasil.org


O paradoxo da Europa: fraqueza e força no século XXI1 Massimo D’Alema (...) Fico extremamente contente em poder compartilhar com os senhores algumas reflexões sobre o problema que temos diante de nós – nós, da Velha Europa, e os senhores, como novos protagonistas da globalização: o problema de construir um sistema de governance adaptado aos desafios do século. Sempre considerei (...) que o desenvolvimento das relações com a América Latina fosse uma prioridade decisiva para a Europa. O desafio, do meu ponto de vista, sempre foi o de utilizar os profundos laços humanos e culturais que nos unem para lançar as bases de um sistema internacional mais equânime, mais justo. (...) Hoje, e ainda mais depois do choque da crise financeira, tornou-se evidente que temos necessidade de regras internacionais compartilhadas e de uma capacidade de governo dos processos globais. De que modo a Europa pode favorecer um resultado desse tipo? O paradoxo, como tentarei dizer, é que, precisamente quando o sistema internacional está se tornando multipolar – está assumindo, em suma, a configuração desejada pelos europeus –, a Europa se descobre frágil, em vez de forte. Corre o risco de perder influência, em vez de aumentá-la. Por quê? Tentarei responder a esta pergunta, mas também explicar que a Europa ainda tem cartas importantes a jogar para evitar a própria marginalização em relação aos equilíbrios 1 Este é o texto resumido da sua conferência no Instituto Rio Branco, em Brasília, proferida em 11/05/2010. Tradução de Luiz Sérgio Henriques.

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que se estão delineando no mundo. E gostaria de lhes submeter uma das minhas conclusões: novas relações transatlânticas, não só com os Estados Unidos, mas com todo o continente americano e com a África, serão essenciais para este fim.

Questão de cenários (...) Em relação ao mundo de há vinte anos, o mundo de hoje é mais asiático e menos europeu, mais global e menos ocidental, mais projetado para o Sul e menos centralizado em torno do Norte. O deslocamento do centro de gravidade econômico para a Ásia – a China, antes de tudo, e também a Índia – foi reforçado pelas consequências da crise econômica: em comparação com a Europa, mas também os Estados Unidos, a China está saindo da crise com rapidez muito maior, graças também ao impacto de um dos pacotes de estímulo mais substanciais (mais de 500 bilhões de dólares) e mais eficientes que foram adotados. Se a Europa ainda está às voltas com um crescimento contido, depois de três anos de recessão, a China já se está colocando o problema de evitar um superaquecimento excessivo da própria economia. Esta, no entanto, se aquece a um ritmo de 10%. Num cenário linear (isto é, na falta de uma crise de fundo da locomotiva chinesa, que hoje parece improvável), as previsões da OCDE indicam que, a partir de 2025, a Ásia produzirá cerca de 40% da riqueza mundial. A recuperação, por parte da China, da posição central que perdera há mais de dois séculos, produzirá inevitavelmente uma perda relativa de influência ocidental. Esta diferente distribuição do poder mundial será reforçada pelas tendências demográficas: em quinze anos, preveem ainda as estatísticas, de cada duas pessoas uma será asiática. Também sabemos, no entanto, que o mecanismo fundamental no qual se baseou a primeira fase da globalização – a interação financeira e comercial entre a China e os Estados Unidos – produziu desequilíbrios fundamentais. Na origem da crise de 2008 não estão só as responsabilidades negativas, evidentes e muito consideráveis, do sistema financeiro americano. Está também a não sustentabilidade de um mecanismo de crescimento global baseado na relação, de algum modo perversa, entre excesso de consumo (americano) e excesso de poupança (chinesa). Em suma, um grande ajustamento estrutural é necessário: só um aumento da demanda interna chinesa, combinado com o aumento da capacidade de poupança americana, irá moderar os desequilíbrios 112

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globais. A questão é que este ajustamento seja governado e não produza conflitos protecionistas: a tensão existente em torno das taxas de câmbio do yuan é índice do problema que temos, com uma China que não quer ser pressionada de fora (o nacionalismo é a ideologia que sustenta o poder comunista/capitalista de Pequim) e à qual ainda custa, mesmo tendo se tornado uma grande potência econômica, assumir todas as responsabilidades que daí derivam. (...) No entanto, não se falou disso nas reuniões recentes do G-7 e do G-20. Isso demonstra que ainda estamos numa fase de extrema fluidez: é verdade que a passagem do G-7 para o G-20 fotografa o deslocamento do mundo ocidental de ontem para o mundo multipolar de hoje. É, portanto, uma passagem simbolicamente importante. Mas também é verdade que o G-20, enquanto tal, resta um fórum de coordenação e consulta mais do que um fórum decisório; enquanto isso, os novos alinhamentos internacionais são frágeis e mutáveis. (...) Isso significa também que o objetivo de reforçar e reformar as instituições internacionais continua aberto, mas se torna crucial. E porá problemas específicos à Europa, que, em geral, está sobrerrepresentada no sistema de Bretton Woods. (...) Permitam-me acrescentar, ainda, que o efeito da primeira fase da globalização, igualmente potencializado pela recente crise econômica, foi varrer a ilusão de 1989. Ou seja, a ilusão de que a difusão da economia de mercado produzisse de per si uma tendência inevitável também para a democracia; e, na versão americana, produzisse de per si a tendência para um único modelo político, econômico e social. Isso não aconteceu. É verdade que as democracias ou os impulsos para a democratização aumentaram nas últimas décadas; mas é verdade também que se consolidaram modelos alternativos, baseados em várias formas de combinação entre capitalismo e autoritarismo. (...) A ascensão de modelos sociopolíticos diferentes do americano, mas economicamente competitivos no plano global, contribui para explicar por que a ilusão unipolar do pós-Guerra Fria se revelou precisamente isso: uma ilusão. Pelo menos no futuro previsível, as democracias liberais ver-se-ão a coexistir e competir com sistemas sociais e políticos diferentes (...) Nestas condições, a existência de vários centros de poder não garante de modo algum uma gestão multilateral do sistema internacional. Em outros termos: o multipolarismo não garante, de per si, as bases para o multilateralismo: uma confiança excessiva, quase mecânica, neste tipo de relação foi o erro de perspectiva cometido pela

Massimo D’Alema

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Europa. No entanto, o risco verdadeiro é o de uma alta taxa de desordem: não mais dominado de modo exclusivo pelo Ocidente, e não ainda governado por regras compartilhadas, o sistema multipolar poderá se revelar altamente instável. (...) A primeira fase da globalização deixou como legado uma nova distribuição do poder mundial (um novo equilíbrio de influência, mais do que de potência) e a emergência de modelos plurais. E (...) permitiu a ascensão econômica extraordinária de centenas de milhões de pessoas, mas se baseou em desequilíbrios estruturais. A crise econômica que eclodiu em 2008 demonstrou isso, marcando o fim de uma época. O desafio, hoje, é pactuar as regras para a gestão de uma segunda fase da globalização: mais equilibrada do ponto de vista econômico, mais equânime do ponto de vista social e baseada, no plano político, em acordos multilaterais. Esta transição não é de modo algum fácil (...) A administração americana, com Barack Obama, entendeu que o desafio é este, acredito. (...) Obama é a resposta americana às transformações que acabei de descrever. Está claro que os Estados Unidos continuam a ser a principal potência de hoje, a potência indispensável. Mas Obama também compreendeu que os limites relativos do poder americano são acentuados por escolhas solitárias: a América continuará tanto mais no centro do sistema internacional, tanto mais em posição de liderança, quanto mais construir parcerias estratégicas com os outros polos do sistema. Nesta visão baseada em parcerias múltiplas, a Europa perde sua velha centralidade estratégica: Obama é mais um presidente global do que atlântico. (...) Se a Europa vir o problema da própria relação com a América de modo menos emotivo e menos contingente, poderá também concluir que Barack Obama, enquanto supera o velho atlantismo, leva o seu país rumo a políticas mais próximas da vocação europeia: no plano interno (a reforma do sistema de saúde) e no modo de ver alguns problemas internacionais (o multilateralismo, ainda que à la carte).

O paradoxo europeu Aí está: o paradoxo é que, enquanto Obama é acusado na América de ser demasiadamente europeu (e na América é uma espécie de insulto, como sabem), a Europa torna-se menos europeia do que antes. E, depois de ter esperado por anos o momento multilateral, corre o risco de faltar ao encontro marcado. No fundo, quando falávamos 114

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do soft power europeu, falávamos disso: de um know-how específico – a integração, exatamente – para gerir as relações entre Estados nacionais de modo alternativo à tradicional competição geopolítica. Mas, se este know-how for posto em discussão na própria Europa, e a crise grega é um preocupante sinal de alarme, torna-se difícil fazer dele uma política exterior. E, se o jogo europeu, no pós-Tratado de Lisboa, parece dominado pela renacionalização, a Europa torna-se pouco acreditada como ator internacional. Em resumo, faz poucos anos, a Europa parecia por sua vez uma potência em ascensão: acabara de lançar o euro, estava se ampliando, tornando-se o principal mercado integrado do mundo. Assim que tivesse aprovado a reforma das instituições – esta a nossa expectativa –, teria também se tornado um dos polos centrais do sistema internacional. Hoje, poucos meses depois da entrada em vigor do Tratado de Lisboa, domina o pessimismo – até mesmo excessivo. Para dar só um exemplo, mas é um exemplo muito sintomático, a Europa viveu uma espécie de choque na Conferência de Copenhague sobre o clima, ao se sentir marginalizada. A lição daquele fracasso é que a ambição de lead by example não basta, sem a capacidade de construir consenso internacional: em relação aos Estados Unidos e às novas grandes economias. Sem a plena contribuição de países como a China, a Índia ou o Brasil, acordos globais, e com aquele alcance, simplesmente não são realistas. Mas os problemas essenciais são internos à União Europeia: existem impulsos difusos à renacionalização das políticas. Sob a pressão de um sistema internacional altamente competitivo, sob a pressão dos desafios globais, o instinto foi recorrer ao nível decisório nacional – enfraquecendo o grau de coesão da UE. Aqui, o paradoxo é particularmente evidente: na teoria, os países europeus têm à disposição uma estrutura única no seu gênero, delineada propositalmente para agregar as forças e as capacidades, para fazer massa crítica no exterior. No entanto, justamente no momento em que todas estas características parecem mais necessárias do que nunca em escala global, eis que a Europa é atingida por uma espécie de abalo particularista, quase por uma nostalgia do passado dos seus Estados-nação. O caso da Alemanha é significativo. Estamos diante do eixo central da UE, que, no entanto, começa a ver a integração europeia não como o modo melhor para canalizar os interesses nacionais alemães, mas como um ônus a carregar. A atitude hesitante de Berlim diante da crise grega pode ser lida de muitos modos (e contém uma justa advertência em relação aos erros cometidos por Atenas); no plano Massimo D’Alema

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simbólico, contudo, significou que a Alemanha não pretende assumir os ônus da liderança europeia. É como se as reservas de solidariedade estivessem exauridas. Nesta situação, é particularmente importante o que foi finalmente decidido para proteger a Europa e apoiar os países mais endividados. Esperemos não se trate só de medidas emergenciais, mas do início deste novo curso de política financeira e econômica do qual a Europa precisa. Contribuiu para tanto o impacto da crise econômica, com seus efeitos contraditórios. Numa primeira fase, a crise, deflagrada no coração do sistema financeiro americano, pareceu confirmar os pontos de força do modelo europeu – a economia social de mercado. Um sistema de relações entre Estado e mercado que garante proteções custosas, mas extremamente preciosas nas fases de recessão. E, com efeito, o sistema de mercado “moderado” da Europa continental evitou que uma grave crise da economia se transformasse numa catástrofe social. Existe, na realidade, um problema crescente de desemprego: mas estou convencido, como de resto muitos economistas, de que a existência do mercado interno e do euro permitiu às economias europeias resistir melhor à crise do que teria ocorrido de outro modo. Numa segunda fase, contudo, quando se começou a falar de exit strategy e de recuperação, surgiu o calcanhar de aquiles europeu, ou seja, a taxa de crescimento: a Europa viu-se nesta oportunidade com a mais grave recessão dos últimos cinquenta anos até agora, depois de um período de crescimento médio de 2,2% ao ano entre 2000 e 2008 (na UE com 27 membros), diante de níveis bem mais altos não só na Ásia e nas outras economias emergentes, mas também nos Estados Unidos. Depois sofreu uma queda de 4,2% em 2009, com estimativa de +0,7% em 2010. Existe, pois, um problema básico – um crescimento insignificante – que precede a crise global. E, afinal, a ele se sobrepôs o contragolpe da crise grega: revelador de um desequilíbrio de fundo, interno à eurozona, entre uma Alemanha com superávit (uma espécie de China na Europa) e os países com déficit da área mediterrânea. (...) Se é verdade que a Alemanha tem um modelo de crescimento puxado pelas exportações, mais da metade da exportação alemã ocorre dentro da área do euro. Penso que a Europa terminará por extrair de uma crise como esta o estímulo para uma gestão mais eficaz da União econômica e monetária. Mais eficaz significa um mix melhor entre esforços nacionais e políticas europeias: a capacidade de realizar reformas estruturais nos países com déficit, entre os quais a Itália; a capacidade de aumentar a demanda interna nos países do núcleo continental europeu, a começar pela Alemanha; e 116

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um certo grau de coordenação entre as políticas fiscais. Devemos ativar instrumentos de estímulo, com um plano de investimentos europeus e o lançamento de eurobonds. Os europeus, e esta é a primeira carta a que recorrer, devem usar a Europa para favorecer o crescimento. Sem reativar o crescimento, a Europa continuará a perder peso internacional. (...) O velho continente é, em termos comparados, demograficamente velho. Portanto, perdeu uma fonte essencial do seu dinamismo e da sua capacidade de inovação. Todos sabem que o instrumento compensatório de uma baixa taxa de natalidade é a imigração, mas esta, por seu turno, coloca problemas de difícil solução. A Europa não tem uma real política de imigração. (...) (Eis) o segundo desafio a aceitar: a capacidade de encontrar um ponto de equilíbrio – compartilhado em nível europeu – entre acolhimento e critérios seletivos, entre tolerância e assimilação, entre abertura cultural e regras formais de cidadania. A Europa tem necessidade de uma política de imigração comum. Até como antídoto em relação à “política do medo”: ao peso que estão conquistando forças populistas e localistas, cujo resultado é enfraquecer seja os governos nacionais, seja a União Europeia. Terceira carta, mas também decisiva: o desenvolvimento – real, não teórico – de uma política exterior e de defesa comum. Já está evidente que nenhum dos Estados nacionais europeus, considerado individualmente, pode mais esperar continuar influente no plano global. Os cidadãos estão conscientes disso: todas as sondagens demonstram que a opinião pública é favorável a este desenvolvimento. Durante meio século, a UE se construiu com base na integração interna; hoje, o eixo deve deslocar-se para a cooperação com o exterior. Parece uma adaptação óbvia diante dos desafios globais. Não o é, apesar dos progressos previstos pelo Tratado de Lisboa: porque os mecanismos decisórios, as sensibilidades geopolíticas em parte diferentes entre os 27 membros da União e a taxa de resistência que de um modo ou de outro existe nas burocracias nacionais funcionam como obstáculo. Esta terceira carta corre o risco de ser jogada com excessiva lentidão.

Onde fazer política exterior Como sabem, está em construção em Bruxelas o Serviço Diplomático Exterior, a estrutura comum que deverá sustentar a política exterior europeia. (...)

Massimo D’Alema

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Minha tese é que a União deve, antes de tudo, se propor melhorar a própria performance na macrorregião que a circunda: ser eficaz na chamada vizinhança, desde os Bálcãs até o Mediterrâneo, é a condição para adquirir credibilidade e estima suficientes para dar um salto de qualidade em escala global. E é a premissa de uma divisão do trabalho operacional com os Estados Unidos. A política europeia na vizinhança, por sua vez, tem dois essenciais polos exteriores de referência: a Rússia e a Turquia. Ambos, num certo sentido, definem os “limites” da Europa; ambos têm a ver com questões cruciais de segurança energética; e em ambos continuam a existir sensibilidades nacionais – ou reais interesses – diferentes. Isso me conduz a uma primeira conclusão: sem uma política comum de energia, a Europa não terá uma autêntica política exterior. Do lado russo, a aproximação entre Washington e Moscou também facilita uma maior convergência das políticas europeias: a distância entre novos e velhos membros da União em parte se reduziu. Do lado da Turquia, o congelamento de fato das perspectivas de adesão põe o problema de como proteger as relações com um ator agora muito ativo no teatro do Oriente Médio. Vendo mais a longo prazo, a projeção geopolítica da Europa (ou de uma sua parte) para o Mar Negro e o Mar Cáspio tenderá a se reforçar. Paralelamente, a UE deve tentar recuperar o peso em relação ao Sul, no Mediterrâneo e no Oriente Médio. A Europa, ou melhor, os países europeus – Itália e França em particular – desempenharam um papel importante em 2006, com a decisão de mobilizar contingentes militares no Líbano. Restou, no entanto, como uma decisão isolada: a UE, no teatro palestino-israelense, vive hoje uma espécie de eclipse. E isso justamente no momento em que os Estados Unidos definem o problema do conflito palestino-israelense como sua prioridade de segurança nacional, aceitando assim a relação que a Europa sempre sublinhou: a solução do problema palestino tornará menos intratáveis os conflitos abertos no Grande Médio Oriente. Aqui, faz-se necessária uma alusão ao problema nuclear iraniano, caso em que a UE (com a fórmula EU-3 [Alemanha, França, Inglaterra], que incluiu também o Alto Representante para a Política Exterior e de Segurança) assumiu responsabilidades diretas. Como resultado dos esforços em curso no Conselho de Segurança, novas sanções internacionais serão provavelmente aprovadas: penso que é necessário. (...) Considero que seria um erro avalizar as pretensões do regime dos aiatolás de se dotar de armas nucleares. O problema é que o compromisso internacional neste sentido deve ser acompanhado pela vontade 118

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O paradoxo da Europa: fraqueza e força no século XXI

de abrir uma séria negociação com o Irã em favor de seu envolvimento na solução das principais crises que abrangem aquela parte do mundo. É evidente que não pode haver pacificação no Iraque e estabilidade no Afeganistão, sem reconhecer o papel do Irã e sem obter sua colaboração. Mas, sobretudo, a questão nuclear iraniana deve ser enfrentada enquanto, ao mesmo tempo, se relança com determinação o compromisso pela paz no Oriente Médio. Não pode haver um duplo padrão na defesa dos princípios da legalidade internacional. E isso significa que se deve pedir também a Israel, em matéria de colonização, a propósito da questão de Jerusalém Oriental e dos direitos fundamentais dos palestinos, que respeite as resoluções do Conselho de Segurança e as exigências da comunidade internacional. (...)

Fraqueza e força (...) a Europa ainda não perdeu seu jogo. Pode ainda jogar cartas importantes – entre as quais as cartas que procurei indicar. Antes de tudo, é preciso que nós, europeus, percebamos que uma maior unidade política do nosso continente é, mais do que uma escolha, uma necessidade, se a Europa quer ter um peso importante nos novos equilíbrios mundiais. O mundo do G-8, como dissemos, terminou. O orgulho nacionalista das velhas potências europeias representa a nostalgia de uma realidade que não existe mais e não, certamente, uma oportunidade para o futuro. Então, deve-se ir corajosamente no sentido da integração. (...) Primeiro: o Tratado de Lisboa permite – ou seja, não veta – uma melhor capacidade de operar no plano internacional. Não a garante, e até agora foi utilizado pouco e mal para este fim, mas torna-a possível. Um dos objetivos fundamentais e compartilhados do Tratado era reduzir a excessiva fragmentação da nossa representação externa, pelo menos por ocasião dos encontros nos níveis mais altos. (...) Segundo: há anos, de várias partes se sustenta que a UE deveria se dar uma voz unitária em todas as assembleias internacionais, sobretudo nas instituições financeiras internacionais, à luz do peso econômico da Europa e do grau de integração entre nossas economias nacionais. Uma representação unitária conferiria efetivamente à UE um papel negociador que hoje não tem. O problema, bem conhecido, é que na hora decisiva esta mudança tem a oposição dos Estados nacionais europeus, que se veem ainda sobrerrepresentados em relação ao próprio peso real. (...)

Massimo D’Alema

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Terceiro: os vínculos orçamentários contam. E os vínculos são tais que tornarão prováveis desenvolvimentos concretos no sentido da “Defesa Europeia”: Defesa que, vistos os atuais desafios de segurança, significa sobretudo capacidade comum de projeção das forças. (...) Por que é importante a Defesa Europeia? Porque é a condição para manter uma aliança operativa com os Estados Unidos. A condição, de fato, é uma Europa capaz de assumir suas responsabilidades: não mais dependente dos Estados Unidos, mas menos, não mais frágil, porém mais forte. A Europa funciona, desde sempre, com base em projetos comuns. (...) Se hoje houver reais progressos, a defesa europeia se tornará o símbolo de um relançamento da União: da transição, se quiserem, da Europa regional do século passado à Europa global de que necessitamos. (...) Por força de se descrever como potência civil, a UE será por certo civil, mas não será uma potência. Em conclusão, uma Europa forte seria um trunfo para os europeus, mas também para a gestão dos equilíbrios globais. A UE não está condenada a falir, como ator internacional. Tudo depende da força da política. Escreveu-se que, enquanto as policies se transferiram dos governos nacionais para Bruxelas, a politics permaneceu nas diversas capitais europeias. Parece-me que precisamente este é o defeito do processo de integração: muitas políticas e também muita burocracia, pouca liderança política e visão. (...) A Europa de hoje e de amanhã será medida mais pela sua capacidade de responder aos grandes desafios globais do que pela de oferecer soluções aos seus conflitos internos. A construção de um ordenamento pacífico, o grande desafio do desenvolvimento e da defesa do meio ambiente, a luta contra a pobreza têm necessidade de uma Europa forte, capaz de superar toda tentação de enclausuramento conservador, de egoísmo nacionalista. Deveria ser este o horizonte de uma nova força progressista europeia capaz de ir além da experiência do reformismo nacional do século passado, capaz de derrotar o medo que reforça a direita em tantos países europeus, restituindo aos cidadãos do nosso continente o orgulho do nosso patrimônio de civilização e a capacidade de ver o futuro com esperança.

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Falta o “algo mais” na política externa do Brasil Alon Feuerwerker

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alvez esteja na hora de a diplomacia brasileira tentar reencontrar o eixo perdido. As últimas semanas não foram boas para o Itamaraty. Nem para o presidente da República, no front externo. Um ponto de derrapagem foi a condução final do tema nuclear iraniano. De lá para cá as coisas parecem meio fora de lugar. Ao ponto de o G20 reunir-se para debater as estratégias econômico-financeiras globais e o Brasil passar em branco. Lula sempre defendeu a necessidade imperiosa de ampliar o debate para além do G8, para fora dos estreitos limites do mundo desenvolvido. Quando a ampliação começa a acontecer, o Brasil parece meio à margem.

Tem sido notável o investimento político brasileiro nos Brics,1 o grupo das nações emergentes mais importantes, como polo alternativo aos Estados Unidos e à Europa. Mas as últimas semanas registram não apenas o nosso isolamento no âmbito dos Brics – como se viu na aprovação das sanções contra o Irã pelo Conselho de Segurança da ONU. Há uma inédita coordenação entre os Estados Unidos, a China e a Rússia. Passou meio despercebido aqui, encoberto pela reta final da Copa do Mundo e pelo horrendo “Caso Bruno”, mas americanos e russos fizeram uma troca-relâmpago de espiões semana passada que é um sintoma das excelentes relações bilaterais. E nos últimos dias apareceram conexões de separatistas islâmicos chineses uigures com a Al Qaeda, quando se desbaratou uma conspiração terrorista na Noruega. Em Cuba, finalmente o Partido Comunista começa a se mover, pressionado pela exigência internacional de mais respeito aos direitos humanos. De um jeito meio torto, é verdade, pois propõe banir do país os oposicionistas presos, em vez de simplesmente libertá-los. A ditadura brasileira fazia isso nos anos 1960 e 1970. O Itamaraty correu para dizer que o Brasil tem um papel no avanço obtido, mas nossa capacidade de capitalizar politicamente é zero. 1 Grupo de que participam Brasil, Rússia, Índia, China, dentre outros países ditos emergentes.

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Aqui menos por culpa dos diplomatas e mais por causa do incrivelmente desastroso paralelismo que Lula fez lá atrás entre os presos políticos cubanos e bandidos brasileiros condenados por crimes comuns. E tem mais: custava aos amigos de Lula em Havana avisarem da nova disposição para o diálogo? Teria evitado a saia justa. Outro desconforto é acabarmos empurrados para o incômodo papel de aliados de Mahmoud Ahmadinejad. Tem gente no governo brasileiro achando que uma bomba iraniana ajuda o Brasil, mas a ideia inicial não era essa, era credenciarmo-nos como interlocutores. Lula em Teerã deu uma de Asamoah Gyan. No último minuto da prorrogação perdeu o pênalti. Achou antes da hora que o sucesso estava consumado. Deu-se mal. Em vez de entrar na História como o construtor do canal de negociação entre o Irã e as grandes potências, acabou por enquanto confinado a “marcar posição” contra americanos, russos, chineses, franceses e britânicos. Está emparedado. Nada porém é definitivo. O peso do Brasil no jogo das relações políticas planetárias deve-se menos a aspectos subjetivos da ação dos governantes e mais ao nosso tamanho econômico, populacional, territorial. Só que talvez esteja faltando o “algo mais” para gerir esse capital. O Itamaraty tem sua culpa. Por aceitar a relativização e o enfraquecimento do profissionalismo. Uma chancelaria subserviente é ruim para o país. Falta também à diplomacia adaptar-se adequadamente às novas realidades. O sinal de alerta veio em Honduras, quando não tivemos inteligência (informação) sobre a real força política de Manuel Zelaya. Em Teerã, ninguém disse a Lula que talvez o acordo obtido por ele não fosse suficiente para brecar o expresso das sanções. E que era preciso trabalhar um pouco mais antes de ir para o palco. Foi evidente ali que o Itamaraty e o Palácio do Planalto não tinham a mínima ideia do estágio das negociações entre as potências no Conselho de Segurança. Ninguém avisou Lula que era uma má estratégia colocar todas as fichas na possibilidade de Barack Obama destravar as negociações da Rodada Doha? Tem faltado sofisticação e inteligência à nossa política externa. Ela pode ser “de direita” ou “de esquerda”. Só não deve ser incompetente. É um bom tema para quem vier a ocupar a cadeira presidencial em janeiro.

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Para onde caminha a Europa Demétrio Carneiro

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ouve, nos primeiros momentos da crise, uma forte percepção por parte da esquerda europeia, mas não só ela, de que as contradições acabariam levando na direção do projeto socialista. Em parte, muitos ainda apostam nesta hipótese. O fundamento está na lógica marxista de que crises aprofundam contradições e que contradições aprofundadas movimentam a história na direção do inevitável. Podemos começar dividindo a Europa em dois campos bem distintos: a Europa “próspera” da Comunidade Europeia e a Europa “emergente” do Centro e do Oriente. A Europa emergente é um comboio cuja locomotiva é a Europa próspera, da mesma forma que o Brasil é um vagão de um comboio, atrelado que está à locomotiva chinesa. Nesses tempos de globalização econômica, coube à Europa emergente acomodar parte dos serviços e indústria que o alto custo da mão de obra deslocou do centro para a periferia, usando a antiga, mas ainda funcional, linguagem da Teoria da Dependência. Decidida a divisão de trabalho continental caberia ao centro o novo. A sociedade do conhecimento, cantada em prosa e verso, teria sua expressão forte nos investimentos em inovações e novas tecnologias e o capital principal seria o intangível: a produção desse conhecimento. Sua distribuição e comercialização uniriam as três cadeias clássicas da economia. A crise desacelerou a locomotiva. O comboio perdeu o passo e hoje a inclinação do voto na Europa Central é mais para a direita do que na direção da simpatia das esquerdas. Se a crise na Europa próspera apresenta altos e baixos, alternando bons e maus momentos, na Europa emergente ela toma aspecto mais complexo, dado inclusive aos precários mecanismos de proteção social. Do lado da Europa próspera, parceira dos benefícios da bolha especulativa americana, aparentemente a solução era simples: a re-

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Mundo

tomada, cantada em prosa e verso, do projeto keynesiano, com a finalização do projeto neoliberal. Enquanto os economistas que alertavam para a necessidade estratégica de recompor a confiança dos agentes de mercado eram ignorados, economistas que defendiam o estímulo à demanda agregada via gasto público, o fortalecimento do aparelho do Estado, eram incensados. É que para eles o socialismo estava logo ali na esquina. O economista Dan Rodrik desenvolveu uma interessante questão, que chamou de trilema: Não haveria como alinhar a integração econômica, o Estado nacional e a democracia. Algo como não haver meios de manter a integração econômica anterior, sem invadir a área de privacidade dos Estados nacionais, desrespeitando as vontades das populações locais. Manter a vontade das populações locais implicaria em deter a integração econômica por conta dos movimentos de defesa das economias nacionais. Ele exemplifica a situação com os Estados Unidos: se alguém perde emprego na Califórnia pode ir para a Flórida buscar oportunidades. Ou se alguém está desempregado em qualquer ponto do território americano receberá sempre o seguro-desemprego. Na União Europeia, contrariamente, as barreiras nacionais ainda importam e muito. Não parece haver um caminho para que a Europa Ocidental saia unificada da crise atual, embora tenha parecido que a unificação e seu aprofundamento seriam a solução. O fato é que a estratégia macroeconômica keynesiana não trouxe a esperada solução e acabou gerando uma crise fiscal que, em algum momento, cobrará a sua conta. Geralmente o custo é o baixo crescimento. Baixo crescimento em um quadro natural de baixo crescimento. Em linhas gerais, a economia mundial parece estar muito longe de uma recuperação sustentável de longo prazo. Ainda se discute o padrão, mas certamente a curva não aparenta ter semelhança com o esperado “V”, quer dizer “crise/depressão/recuperação dos níveis anteriores”. As indicações, mesmo com flutuações positivas, apontam mais para o “L”. Enfim: “crise, depressão e recuperação em padrões bem inferiores”. Mais do que tudo uma recuperação em “L” irá trazer outro dilema e não se trata de exercer políticas públicas de garantias sociais ou não: o “estilo” de consumo da Europa Ocidental é muito semelhante ao estilo de consumo americano. Europa Ocidental, menos, e EUA travaram suas economias numa expansão econômica estimulada por

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Para onde caminha a Europa

um tipo de consumo além de sua capacidade produtiva. Transformaram-se em “sociedades de gasto”. Na inexistência de uma nova bolha, a sustentabilidade dessas economias terá que passar por uma revisão nos padrões de consumo e na formação de poupança interna, estatal e familiar. Parece o Brasil? Da mesma forma, essas economias terão que ser repensadas quanto ao papel de suas indústrias e serviços. Alemães, por exemplo, eram os maiores produtores mundiais de células fotovoltaicas. Não são mais. Os chineses, com pesados investimentos em tecnologia, desenvolveram painéis solares mais eficientes e hoje são os maiores produtores mundiais no ramo. O que se vê na Europa Ocidental são movimentações claras de fortalecimento do Estado nacional, na direção inversa do esperado internacionalismo precursor do socialismo. De momento, o que parece importante para o movimento socialista não é apenas a defesa das garantias mínimas e do emprego, ação que fortalece o Estado nacional, embora necessária. De momento, o que parece também importante é a discussão do próprio conceito de crescimento e desenvolvimento e sua relação com a qualidade e a intensidade do consumo das famílias. Hoje, mais que antes, o socialismo deve debater o futuro de olho não em formulações conceituais, mas na experiência do presente. Não é um apelo ao estoicismo auto-punitivo, mas ao emprego mais racional dos recursos em oposição a um estilo de consumo perdulário. É, em síntese, uma questão de coesão, cidadania e democratização do Estado, também. Lembra alguma coisa?

Demétrio Carneiro

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vII. vida Cultural


Autores João Batista de Andrade

Cineasta, autor de várias e consagradas obras como O tronco e O homem que virou suco, além de escritor

Luiz Carlos Prestes Filho

Comunicólogo, cineasta, autor dos livros Economia da Cultura – a força da indústria cultural do Rio de Janeiro (2002), Cadeia Produtiva da Economia da Música (2005) e Cadeia Produtiva da Economia do Carnaval (2009)


Apontamentos para um programa de cultura João Batista de Andrade

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alar de política cultural em qualquer lugar do mundo deveria ser falar de tudo: da construção de uma sociedade, de seus embates, de suas ideias, da política, da ciência, dos costumes, crenças. E das artes. Uma aparente abrangência que, na verdade, para um partido político que se pretenda transformador, – estão em sua própria razão de ser. Pois um partido político, – e portanto o exercício do poder –, se cria nas sociedades exatamente para conduzir e dar forma ao desenvolvimento de todos esses “setores” da vida social, buscando avanços, progresso, a dignidade de viver o presente e as melhorias para o futuro. Somos caudatários de uma longa tradição humanista em busca do progresso e da justiça nas sociedades. Fugindo aos apelos religiosos, – que alimentavam a ideia de que as “injustiças eram justas”, o pensamento progressista alimentou a ideia de que as injustiças eram e são frutos da sociedade, da forma aparentemente “natural” de sua organização na qual o mais forte pode exercer livremente seu poder sobre os mais fracos. Contra a ideia de que o mundo “existe e pronto”, “é para ser aceito e não para ser compreendido”, a humanidade afirmou, de forma vitoriosa, a possibilidade e necessidade de compreendê-lo e de transformá-lo pelo bem dela, – e, hoje, até pelo bem do próprio mundo. Por outro lado, aprendemos também que a realidade é transformável e se transforma sempre, obrigando-nos a aprender a cultuar o passado, mas buscando dele a compreensão do futuro, livrando-nos das amar129


Vida Cultural

ras que muitas vezes nos cegam para os novos desafios. A defesa dos avanços científicos é fundamental nessa longa trajetória do pensamento humanista transformador. Sob o ponto de vista de governo, a política cultural deve permear toda a ação governamental: comportamento ético e coerente, transparência política, incentivo à pesquisa, apoio ao desenvolvimento da ciência e de novas tecnologias, melhoria e democratização crescente do sistema de ensino. No terreno das artes, desenvolvimento, democratização e divulgação de todas as manifestações artísticas no país. A criação do Minc (Ministério da Cultura), se representou um avanço no sentido de aglutinar esforços pelo desenvolvimento, preservação e divulgação de nossos valores culturais e de nossa criatividade, trouxe também o risco de um isolacionismo cultural, com propensão ora ao corporativismo, ora ao militantismo. Num mundo em que as transformações tecnológicas nos afetam profundamente, as diversas gestões na área da cultura agem como se a essência estivesse na produção artística, capaz de expressar essas transformações, – e não nas próprias transformações que afetam o dia a dia e as expectativas de cada cidadão com relação ao seu padrão de vida e de seu futuro. Um comportamento isolacionista acaba por se realizar em seu contrário: a subestimação dos valores universais e reveladores da produção cultural e de sua estreita ligação com os caminhos conflituados dessa era de tantas mudanças. A produção artística, assim, por esse viés isolacionista, se vê, na política governamental, como essa “corporação” ou esse “partido político” sempre às voltas com as dificuldades eternas de existir e se fazer ouvir. Esse isolamento leva a muitos erros, – e o Minc se torna alvo fácil de radicalismos impotentes e partidarismos. Exemplo desse radicalismo (e isolacionismo) encontramos logo no início da gestão Lula, com a elaboração do soterrado projeto da Ancinav, a agência reguladora que juntaria cinema e televisão, sob a tutela de um pensamento cinematográfico “imaginado” por grupos minoritários de esquerda da base governamental e também por erros de compreensão por parte da comunidade cinematográfica, esta certamente pela situação sem saída em que se encontrava com os avanços na área das comunicações no Brasil (que excluiu o cinema brasileiro). A visão estreita da questão, – além do erro de pretender colocar as comunicações sob a batuta do cinema –, gerou um projeto impositivo e anacrônico, mesmo que apontasse a necessidade de resolver

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Apontamentos para umprograma de cultura

a crise do cinema nacional através, principalmente, dos meios de comunicação, como se deu tanto nos Estados Unidos quanto na Europa. Nos Estados Unidos, garantido que a produção de filmes para a TV fosse garantida à industria cinematográfica. Na Europa, com as privatizações das TVs públicas, cujo processo obrigou as empresas a investir no cinema europeu. É preciso também compreender que os cineastas apontavam, com razão, para a desobrigação nacional da televisão no Brasil e do poder excessivo desses meios de comunicação sobre a vida, a cultura, a política. Mas a visão estreita, corporativista do projeto pensava no sistema de comunicações, – pela sua grandeza, – como inimigo da cultura. O projeto fora produzido de forma fechada, na infantil expectativa de que “agora”, com “a esquerda no poder”, os poderosos meios de comunicação teriam que engolir o projeto governamental. Ilusão fatal que, com o projeto devidamente engavetado depois das pressões partidas de todo lado, – levou o Minc a uma grave crise logo no início da gestão Lula. Crise que marcou a política cultural por um longo período. O risco de uma partidarização, na falta de uma maior clareza do que seria uma política governamental para o setor, pode-se perceber no que ocorreu após a crise da Ancinav, principalmente na gestão Juca Ferreira (iniciada bem antes da saída do ministro Gilberto Gil). Como acontece em todo o governo Lula, o novo ministro não está ali por ser um reconhecido artista, um ás da questão cultural, mas por ser de um partido da base aliada. Sem o traquejo e a vivência da área, de dentro da nomenclatura do Minc foram gestadas duas perigosas ideias que mostram a estreiteza desse pensamento pretensamente de esquerda: as conferências nacionais e o plano diretor da cultura” (a exemplo do que se dá na educação). As conferências nacionais de cultura são realizadas nos velhos padrões da esquerda antiga e que, sabemos, gerou erros sem tamanho: pequenas assembleias no interior elegem delegados, esses delegados se reúnem nos estados e elegem delegados nacionais que se reúnem, em Brasília, aos milhares, para aprovarem as teses sobre a cultura brasileira. Claro, sem os pensadores de nossa cultura e sem os verdadeiros artistas que jamais frequentariam eleitoralmente tais assembleias. Seria uma CUT da cultura, alimentada pelo desejo de muitos por espaços para seus trabalhos e de recursos para sua vida artística, na imensa maioria, amadora. E assim foram feitas duas, com milhares de “delegados”, como um partido político. Repercussão? – nenhuma.

João Batista de Andrade

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Vida Cultural

O plano diretor da cultura sairia desses “democráticos” encontros. É difícil até mesmo comentar tamanho primarismo. Como secretário de Cultura do Estado de São Paulo, recusei-me a participar dessa farsa partidária que combati em todos os encontros nacionais de secretários da cultura dos estados brasileiros. Será preciso re-encontrar o papel exato do Minc. São de responsabilidade desse ministério assuntos importantíssimos, como a preservação dos bens culturais, a divulgação de nossos valores culturais e de nossos artistas com suas criações, o apoio à produção cultural, a normatização das atividades culturais no país e de suas relações interministeriais. É preciso agir na compreensão de que a cultura é fruto da atividade humana e que ao governo cabe normatizar relações e incentivar a criação cultural, deixando para a sociedade, em toda sua complexidade, a busca de significados e a adesão aos novos valores criados nesse rico processo. É preciso entender o papel de cada setor da atividade cultural e também das necessidades da própria população diante da cultura, nesse caso, da cultura artística: estender a oferta a todos, incentivar a produção e a distribuição, defender a diversidade cultural em todas as suas linhas, proteger o patrimônio cultural realizado e em realização, normatizar as relações entre interesses diversos da área, como, por exemplo, o cinema e a TV.

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Por debaixo da máscara de Montevidéu Luiz Carlos Prestes Filho

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as no Uruguai existe carnaval?! Esta seria provavelmente a reação de um brasileiro frente à proposta de estudar a importância socioeconômica do carnaval de Montevidéu. E esta, com sinceridade, foi a minha reação ao receber o convite das criadoras do Museu do Carnaval de Montevidéu,1 Selva Espondaburu e Ana Maria Bello, que trabalham com Fernando Gonzáles, diretor da Divisão de Turismo do Departamento de Desenvolvimento Econômico e Integração Regional do Município de Montevidéu. Em seguida, fiquei impressionado com o material que me foi enviado sobre o projeto “Montevidéu, Capital Iberoamericana do Carnaval”.2 Dois aspectos em destaque: a capital do Uruguai é a única cidade da América que tem um carnaval no qual predomina a linguagem espetáculo-cênico. Por outro lado, mantém sua realização ininterruptamente por mais de cem anos. Neste sentido, bate o Brasil. O carnaval, no formato dos desfiles das escolas de samba, teve seu início em 1928. Portanto, há oitenta anos. A “murga” é a estrela do carnaval uruguaio, que tem duração de 45 dias. Neste tempo, grupos formados por mais ou menos quarenta artistas se apresentam em palcos, com iluminação, decoração, em trajes valorizados por maquiagem circense. Eles realizam apresentações sobre acontecimentos recentes que podem ser desde a crise econômica mundial, corrupção política, vitórias ou derrotas esportivas, ou recordações de fatos importantes da história nacional. De certa forma, neste ponto, assemelham-se aos sambas-enredo, que ao longo dos desfiles contam uma história ou realizam uma homenagem com figurino correspondente.

1 O Museu do Carnaval está localizado junto ao Mercado do Porto e em frente ao Porto de Montevidéu. Endereço: Rambla 25 de Agosto 218, Telefone: (598 02) 916 5493, site: www.turismo.gub.uy 2 Site: www.montevideocapitaliberoamericanocarnaval.com

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Vida Cultural

Nas fotos dos “murguistas”, registradas por Aldo Novick,3 identificamos pinturas faciais e corporais que nos remetem ao teatro de rua da Idade Média. Por conta da proximidade do espectador, o artista tenta esconder sua identidade para transmitir, desde o momento de sua aparição, uma mensagem crítica ou romântica, poética ou monstruosa sem ser identificado. No Brasil, em alguns carnavais do final do século XIX e começo do século XX, existiam máscaras faciais similares, mas estas desapareceram em consequência da superproporção que tomou o carnaval de escolas de samba, cada uma com cerca de 3.500 figurantes. O que surgiu então foram desfiles que pedem a distância do espectador. Um outro motivo que certamente influenciou na desaparição dessas máscaras no Brasil é o da impossibilidade das pinturas faciais resistirem a muitas horas de exposição ao calor tropical brasileiro. A natureza do clima de Montevidéu, com certeza, permite a realização de uma estética na maquiagem que no Rio de Janeiro seria inviável. A artista em estética, Rosário Viñoli4, define bem quando afirma que: “os artistas em cena oferecem suas faces para a aplicação de cores, brilhos e sombras que nenhuma tela oferece e assim, de certa maneira, cada face é uma obra de arte que pode ser apreciada individualmente”. Outro aspecto desta festa do sul do continente é o papel secundário da mulher. Lindas, elas não ocupam espaços relevantes como as rainhas da bateria ou destaques nos desfiles. Também, não lhes oferecem papéis como as nossas porta-bandeiras ou baianas. E a sexualidade feminina não é explorada. Como escreve Carmen Anderson no livro A Magia do Disfarce5: “A murga é um espaço essencialmente masculino, apesar de não ser vedada a participação das mulheres. As mulheres permanecem visíveis mas sem destaque”. Carlos Liscano no prólogo do livro La Murguez Urbana,6 de Pepe Veneno, escreve que: “A identidade do Carnaval de Montevidéu para ser tal como é hoje, foi vivida e transformou-se”. Esta afirmação dialoga com a visão de Pepe Veneno, importante autor de textos de murgas, que não aceita a tese de que os bons carnavais eram os de antigamente. Ele entende que é importante reverenciar o passado, recordar os momentos de glória, mas nunca prender-se à nostalgia: 3 “Carnaval, Montevideo, Uruguay – fotos de Aldo Novick”, 2009, Montevidéu: Editora do Autor, www.fotolabarra.com. Contatos: carnavalfotos@montevideo.com.uy 4 “Atelier Rosario Viñoly”. Contato: atelierv@adinet.com.uy 5 “La Magia del Disfraz – El vestuário de la murga uruguaya a través de um siglo”, Carmen Anderson. Editora Museo del Carnaval del Uruguay: Ministerio de Turismo y Desporto, Montevideo, 2009. 6 “La Murguez Urbana”, Pepe Veneno. Montevideo: Editora do Autor, 2009.

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Por debaixo da máscara de Montevidéu

Que não peçam para cantar Já cantei – o canto não está mais em mim Ele está dentro de vocês cantando Anda em vocês vivendo

O “candombe”, é um outro gênero do carnaval do Uruguai, que se realiza através de desfile que nos remete ao tempo da escravidão. Apesar das “murgas” se apresentarem no palco do “Teatro de Verano”, o ponto mais alto da festa, é este desfile de rua denominado de “Las llamadas”, anúncio da chegada do carnaval. Nesta ocasião observamos passistas com figurinos parecidos aos dos porta-estandartes brasileiros, no meio de “abanderados”, “tambolineros”, “bailarinos” e “vedettes”, personagens típicos da festa local. Assim, a África se faz presente, em corpos brancos e negros. Com expressivos tambores artesanais. Lembrei-me das nossas marchinhas de carnaval ao conhecer a tradição de outra expressão cênica deste carnaval que é a dos “parodistas”. Eles se apresentam esbanjando humor e alegria intraduzível para qualquer outra língua. Assim como nossos blocos e bandas saem repetindo piadas mordazes, muitos jovens uruguaios participam espalhando sua visão crítica do mundo. Não temos a teatralização do carnaval de Montevidéu, mas nossa criatividade é igualmente irreverente. Como não lembrar da letra da marchinha carioca ganhadora do concurso em 2010:7 O Conde D´Eu, o Rei de Bagdá, Os negros do Sudão, porque não posso dá!

Muito além da alusão ao general do Exército brasileiro que condenou o homossexualismo na corporação militar, o autor Deco Ribeiro, brinca com rimas e palavras de maneira intraduzível. Como explicar para um estrangeiro o que tem a ver o conde D´Eu, marido da princesa Isabel, com o rei de Bagdá e os negros do Sudão? Com a explicação, possivelmente, a gargalhada se perde. Dificilmente, por melhor que seja a tradução desta marchinha – para o inglês, alemão, árabe, chinês, russo ou francês – ela arrastaria multidões. Os “humoristas” (seria certo traduzir comediantes?), outro gênero cênico, são bem diferentes. Para eles não é o conteúdo das palavras o importante e sim o gestual. Como na Grécia Antiga.

7 Concurso de Marchinhas da Fundição Progresso, Rio de Janeiro, www.fundicaoprogresso.com.br. Luiz Carlos Prestes Filho

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Esse carnaval dura 45 dias, entre fevereiro e março de cada ano. Mas o espaço urbano da cidade não fica todo tomado como em Salvador, Rio de Janeiro ou Recife, infernizando a vida de milhares de trabalhadores que dependem do transporte público e outros serviços essenciais. Em Montevidéu, na época do carnaval, se respira liberdade de expressão. Seus autores e intérpretes desconstroem a ordem estabelecida. Avançam sobre temas que em outros momentos será impossível falar. Nos duros anos da ditadura militar (1973/1985), por exemplo, apesar da proibição de certos figurinos, cenários e – claro – textos, foi possível trazer com as encenações o sopro da esperança. A verdade usava máscaras para poder se misturar com a alegria do povo. O carnaval de Montevidéu está com vigor a toda prova apesar do seu centenário. E todos os anos apresenta um conteúdo dramatúrgico de valor excepcional que poderia ser editado em livros. Apesar de serem textos efêmeros, como as maquiagens, os figurinos e os cenários, muitas obras têm valores literários que em muito superam o conteúdo de nossos sambas-enredo. Para os uruguaios a mais profunda elaboração poética ou literária tem relação com o carnaval.

O carnaval e suas potencialidades econômicas Em seu livro Señoras y Señores...8 os autores, Ana Maria Bello e Gustavo Ferrari Seigal, afirmam que: “O Carnaval (uruguaio) convoca uma multidão de pessoas que trabalham, mas não são visíveis na festa. São figurinistas e costureiras, maquiadoras, aderecistas, cenógrafos, iluminadores, coreógrafos, letristas, músicos, arranjadores”. Porém, ainda não se estudou esta cadeia produtiva de serviços. Foram divulgados os seguintes números pela Divisão de Turismo do Departamento de Desenvolvimento Econômico e Integração Regional do Município de Montevidéu: •

800 mil pessoas no Uruguai, direta e indiretamente, são beneficiadas anualmente pelas atividades carnavalescas;

70 grupos carnavalescos, cada um com 100 participantes desfilam todos os anos pelas ruas da cidade;

60 grupos participam do Concurso Oficial de Grupos Carnavalescos;

8 Señoras y señores... el Carnaval es un Artes – nuestro carnaval y la fiesta en las culturas, Ana Maria Bello e Gustavo Ferrari Seigal. Montevideo: Editora Museo de Historia del Arte, 2004.

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Por debaixo da máscara de Montevidéu

70 milhões de dólares ingressaram na economia de Montevidéu entre fevereiro e março de 2007;

25 palcos temporários são montados em diferentes pontos da cidade para receber mais de 120 mil pessoas.

As informações acima apresentadas não permitem realizar qualquer planejamento estratégico das autoridades públicas, nem das empresas que se beneficiam direta ou indiretamente da economia do carnaval. Levantados através de fontes informais, não têm a credibilidade que um instituto nacional de estatística ou uma faculdade de economia poderia oferecer. Mas um olhar atento identifica grandes potencialidades, principalmente para a geração de emprego e renda. Assim como o carnaval carioca mereceu estudos científicos do economista Carlos Lessa,9 o de Montevidéu pode ser estudado com toda responsabilidade. Muito além da agroindústria, das atividades portuárias, da exportação de carnes e de vinho, que caracterizam o desenvolvimento do Uruguai, o radar dos indicadores econômicos deve começar a identificar informações sobre uma realidade que não é prioridade para as políticas públicas e privadas. Até porque, como afirma a professora Isabel Sans, autora do trabalho “Identidade e globalização no Carnaval”,10 há quatro livros que são referências fundamentais em matéria de carnaval uruguaio: Murgas: o teatro dos palcos, de Gustavo Remedi; Carnaval. Uma história social de Montevidéu a partir da perspectiva da festa e Memórias de um bacanal, os dois de Milita Alfaro; e O Carnaval de Montevidéu – folclore, história, sociologia, de Paulo de Carvalho Neto. Não existe sequer uma tentativa de aproximação do impacto econômico da festa. Foi no contexto da busca de mais eficiência na administração financeira do carnaval de Montevidéu que nasceu a entidade Diretores Associados de Espetáculos Carnavalescos Populares do Uruguai (Daecpu),11 algo parecido com a Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (Liesa), que administra o Sambódromo e a Cidade do Samba – a fábrica do carnaval carioca. Hoje, a Daecpu, com sua estrutura administrativa, viabiliza atividades de exportação 9 Carlos Lessa, economista, ex-reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), realizou pesquisa “Carnaval e a geração de emprego e renda” publicada no livro Pão e Circo, de Fábio Sá Earp, Rio de Janeiro: Editora Ciência, 2002. 10 “Identidad y globalización em el Carnaval”, Isabel Sans. Montevideo: Fin de Siglo Editorial, 2008. 11 Site: www.daecpu.com.uy. Luiz Carlos Prestes Filho

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Vida Cultural

dos serviços artísticos dos grupos carnavalescos oficiais; licencia a transmissão da festa pelas TVs aberta e por assinatura, internet e rádio; desenvolve eficiente programa de marketing, inclusive, realizando levantamentos econômicos sobre as potencialidades mercadológicas do evento. Portanto, já existe uma rede empresarial estruturada através da qual poderíamos desenvolver programas, projetos e ações setoriais. Ao visitar a Daecpu fui recebido por sua diretoria e tive a honra de ser escolhido portador de um presente para o Centro de Memória do Carnaval da Liesa, em nome do presidente, Enrique Espert. Tratava-se de um quadro com símbolos da entidade e a inscrição: “Montevidéu, Capital Iberoamericana do Carnaval”. Ao receber a encomenda o professor Hiram Araújo, diretor cultural da Liesa exclamou: “Mas no Uruguai existe carnaval?!”

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vIII. Mem贸ria


Autores Ana Amélia de Moura Cavalcante de Melo

Professora doutora do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará

Caroline Fernandes

Professora de História no município do Rio de Janeiro, tem bacharelado e licenciatura em História pela Universidade Federal do Pará, e mestrado em História pela Universidade Federal Fluminense

Lucília Garcez

Escritora e doutora em Linguística Aplicada pela PUC/SP, professora aposentada do Instituto de Letras da UnB e membro do Conselho Curador da Fundação Astrojildo Pereira


Escritores comunistas e a redemocratização Ana Amélia de Moura Cavalcante de Melo 1. Os escritores engajados Em 1945, durante o I Congresso Brasileiro de Escritores, Astrojildo Pereira, junto com Dalcídio Jurandir, apresentaria uma tese intitulada “Liquidação do Analfabetismo”. A tese começava da seguinte maneira: “As diretrizes para a organização do mundo após a derrota completa do fascismo, formuladas pelos líderes das Nações Unidas, podem ser condensadas nesta síntese: democracia política por princípio, democracia econômica por base, e democracia cultural por fim. Ou simplesmente democracia em sua ampla e crescente significação”.1 A cada um destes três significados, ele indica uma explicação, detendo-se na análise do sentido de democracia cultural. Para o Brasil, afirma ele, a questão da democratização da cultura passa necessariamente pela superação do analfabetismo. Não podemos pensar em instrução gratuita se não tivermos ultrapassado este primeiro patamar de nosso atraso, segundo suas palavras. Trata-se ainda de romper com uma tradição bacharelística de uma elite “cheia de vícios e debilidades da nossa condição de semicoloniais”.2 As palavras de Astrojildo são esclarecedoras sobre a tônica do encontro e sua importância política. A Associação Brasileira de Escritores (ABDE), organizada em 1942, tem seu regimento de funda1 Anais do I Congresso Brasileiro de Escritores. São Paulo: Imprensa Gráfica da Revista dos Tribunais, 1945. 2 Ibidem, p. 281.

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Memória

ção datado de 12 de fevereiro de 1943. Dois anos depois realizariam o I Congresso Brasileiro de Escritores. Um dos temas centrais debatidos nesse encontro será o papel do escritor no mundo contemporâneo, especialmente na defesa dos princípios democráticos. O Congresso é encerrado com a leitura em plenário de sete moções que conformariam a Declaração de Princípios composta de três pontos: 1) A legalidade democrática como garantia da completa liberdade; 2) Sistema de governo eleito pelo povo mediante sufrágio universal, direto e secreto; 3) Pleno exercício da soberania popular em todas as nações. A declaração de princípios lida e aclamada no encerramento, nos proporciona uma chave de leitura para pensar o engajamento dos escritores dessa geração e a relação destes com o Partido Comunista Brasileiro. Nos discursos de abertura do Congresso da ABDE, tanto Anibal Machado quanto Sergio Milliet reafirmam a condição do escritor, sua capacidade de se afinar e representar, como diria a imprensa, as “angústias do mundo”.3 Além disso, a entrada do Brasil na guerra nesse mesmo ano criava um grande apelo nacional de mobilização dos ânimos no combate ao fascismo. Esta seria igualmente a postura dos comunistas brasileiros seguindo a orientação internacional.

2. A questão política A complexidade da configuração política desses anos se faz presente na ABDE. Grande parte dos estudos que mencionam a associação destaca a preocupação desse grupo de escritores no combate ao Estado Novo e especialmente o caráter de órgão do PCB. A combatividade e a presença dos comunistas são inegáveis, no entanto a pluralidade de atores, nesse primeiro momento, designa melhor esse grupo de escritores reunidos na ABDE em torno de uma aspiração comum pela democracia. Segundo nos adverte Randal Johnson,4 a própria fundação da ABDE se daria nos escritórios do jornal A manhã, de propriedade do Estado e órgão oficial deste. A direção do periódico estaria a cargo de Cassiano Ricardo, um dos porta-vozes do Estado Novo. Este teria sido um dos fundadores da associação. É importante recordar que será também no bojo dessa mobilização, alguns meses depois de realizado o Congresso, em abril desse ano de 1945, que seria criada a UDN com o mesmo caráter de um 3 Correio Paulistano, 23 de janeiro de 1945. 4 Randal Johnson. “A dinâmica do campo literário brasileiro (1930-1945)”. Revista da USP, São Paulo, junho/agosto, 1995.

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Escritores comunistas e a redemocratização

conglomerado amplo de luta pela democracia. Segundo Benevides, a UDN se constituía em sua fundação como um partido agregador de amplas tendências. A autora identifica cinco bem claras, entre elas um grupo de liberais onde se incluíam intelectuais e jornalistas vinculados à ABDE.5 Chamamos atenção aqui para a complexidade da configuração política desse momento. O exemplo da UDN é claro. Um partido que alguns meses depois já assumiria seu perfil liberal, teria no seu registro de fundação assinaturas de comunistas como Astrojildo Pereira. O exemplo é extensivo também ao elenco heterogêneo da ABDE. Qual a importância da ABDE nesse momento?. Note-se que durante o Congresso, Florestan Fernandes escreveria alguns artigos na Folha da Manhã de São Paulo,6 numa coluna especial chamada “À Margem do I Congresso de Escritores”. Nela ele apontava o valor histórico do evento. O processo de fundação da ABDE segue em paralelo à intensificação da mobilização de vários grupos sociais organizando-se e criando associações, bem como elaborando manifestos contra o Estado Novo. Em 1943 se realizará o VI Congresso da UNE e a Semana Antifascista.7 Por outro lado, a profissionalização do trabalho intelectual nesse período tem no Estado um dos principais lugares de atuação. Por outro era evidente a consciência desses intelectuais sobre suas contradições. A criação da ABDE e o Congresso de 1945 devem ser pensados a partir dessa complexa relação.

3. O Congresso Sua realização é organizada desde 1944 através de uma série de reuniões que pretendem construir uma linha coerente de ação.8 Tratava-se de uma organização de fôlego. No Rio de Janeiro, as reuniões faziam-se na redação da Revista do Brasil e frequentemente na casa de Aníbal Machado. 5 Benevides, Maria Vitória de Mesquita. A UDN e o Udenismo. Ambiguidades do liberalismo brasileiro (1945-1965). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 28. 6 A Folha da Manhã no fim do governo Vargas assume uma postura contra o Estado Novo, falando em defesa dos princípios democráticos. Desde que fora comprado por Otaviano Alves de Lima, de família tradicional, em 1931, sua linha editorial buscava não confrontar diretamente com Vargas e assumiria interesses dos setores da agricultura paulista. Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro. CPDOC. 7 Benevides, Maria Vitória de Mesquita. Op. Cit. p. 33. 8 Andrade, Carlos Drummond. O observador no escritório: páginas de diário. Rio de Janeiro: Record, 1985. Sodré, N. W. Memórias de um escritor. V. 1. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 1970. Ana Amélia de Moura Cavalcante de Melo

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Na organização do Congresso pretendia-se reunir cerca de 200 escritores de todos os estados.9 Nas semanas anteriores, o Correio da Manhã, de São Paulo, de propriedade de Paulo Bittencourt já daria cobertura ao evento. Este jornal é apontado pela historiografia como o primeiro a romper o cerco da censura ao publicar, em fevereiro de 1945, a entrevista com José Américo de Almeida criticando o Estado Novo.10 Esta posição já se fazia sentir abertamente durante a preparação do Congresso da ABDE. Enquanto que as notícias sobre sua organização eram poucas, especialmente na imprensa carioca, o Correio da Manhã já no início do mês de janeiro publicava diversas matérias de literatura em que comentava obras de escritores envolvidos na preparação do Congresso. Em 14 de janeiro, na seção Vida Literária anotava o lançamento do livro Vila Feliz, de Aníbal Machado, aproveitando para indicar a realização próxima do Congresso. O jornal, nas vésperas do encontro, informa em nota que estavam indo de trem do Rio para São Paulo adidos culturais das embaixadas estrangeiras, especialmente convidados, bem como representantes da imprensa estrangeira e carioca.11 No Rio de Janeiro, O Jornal, de propriedade de Assis Chateaubriand, será o que dará maior cobertura noticiosa ao evento. Em 5 de janeiro publicava nota em que indicava que as teses para o I Congresso eram apresentadas antecipadamente. Quando as comissões se reuniram no Congresso algumas teses eram de conhecimento público. Em O Jornal falava-se da tese de Helio Pelegrino, “O Escritor e a Luta Contra o Fascismo”, assim como a questão dos direitos autorais. Este periódico apontava para uma expectativa de que o evento teria grande significado. O Congresso reuniria representantes de diversos estados brasileiros. No total foram organizadas delegações de 21 estados, além das estrangeiras da França, Suíça, Inglaterra, Rússia, Áustria, Itália, Espanha, Portugal, Alemanha, Grécia, Estados Unidos, Canadá, República Dominicana, Paraguai, Panamá e México. Em alguns casos os escritores estrangeiros eram exilados como Ernesto Feder, da Alemanha, e Lucio Pinheiro dos Santos, de Portugal.12

9 Nelson Werneck Sodré. Memórias de um escritor. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970, p. 330. 10 Dicionário Histórico-biográfico Brasileiro. CPDOC. http://www.fgv.br/cpdoc/busca/Busca/BuscaConsultar.aspx. 11 Correio da Manhã, sábado 20 de janeiro de 1945. 12 Anais do I Congresso Brasileiro de Escritores. São Paulo: Imprensa Gráfica, 1945. Sobre a participação de Ernesto Feder ver: Fábio Koifman. Quixote nas trevas: o embaixador Souza Dantas e os refugiados do nazismo. São Paulo: Record, 2002, p. 451.

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O Congresso teria por fim que “apreciar, discutir e deliberar sobre toda a matéria que diga respeito aos interesses da cultura e ao exercício da atividade do escritor, sem exclusão de qualquer especialidade, desde que a referida matéria lhe seja apresentada sob a forma de teses, indicações, projetos e anteprojetos.”13 O ato inaugural aconteceria no Teatro Municipal de São Paulo com uma mesa composta por Aníbal Machado, Cristiano Cordeiro, Murilo Rubião, Otto Lara Rezende, Roque Javier Laurenza, Dionélio Machado, Francisco de Assis Barbosa, Carlos da Silveira, Haddock Lobo, Jorge Amado, Mario Neme, Ernesto Feder e Sergio Milliet, presidente da seção paulista e quem faria o discurso de boas-vindas, de abertura. Milliet afirma as sérias dificuldades da realização do encontro, não apenas pelas comuns questões financeiras, mas pelo desinteresse da categoria. O tom de seu discurso é de apelo às responsabilidades do escritor frente ao mundo e sobre o propósito central do encontro: Ei-vos aqui em vossa terra, meus amigos, num momento grave de nossa vida, a fim de debatermos juntos questões de importância para a nossa classe. Questões éticas em primeiro lugar... éticas ainda em segundo, terceiro e último lugares. Porquê, afinal, tudo não passa de ética. Não há vida coletiva sem código de moral. A estes se prendem as atividades do grupo nas suas relações internas e externas.14

O discurso acentua o caráter de união. Não obstante, não deixa de mencionar as dificuldades, as divisões internas, e o que ele considerou como ceticismo cômodo de alguns. Milliet chama a atenção para a postura dúbia de alguns escritores. Segundo Florestan Fernandes, nos dias anteriores ao evento, corria rumores que seria este um encontro subversivo.15 Drummond corrobora a hipótese informando que havia o risco de a polícia proibir o evento.16 O clima de censura era, ao que tudo indica, dominante. Em 6 de janeiro, O Jornal informaria que Aníbal Machado, tratando de dirimir dúvidas e “denunciando manobras insidiosas” daria declaração aos Diários Associados na qual insistia nos “elevados propósitos do Congresso” Acresce-se a este clima de tensão e censura a relação, ainda que passada, de muitos destes intelectuais com o Estado Novo. De fato, a Declaração Final do Congresso seria divulgada inicialmente através de volantes e só sairia na imprensa, passados dois meses, em 4 13 Anais, p. 11. 14 Anais, p. 24. 15 Folha da Manhã, 24/01/1945, p. 5. 16 Drummond. Op. Cit, p. 17. Ana Amélia de Moura Cavalcante de Melo

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de março.17 Milliet considera atingido o objetivo do Congresso se lograda, segundo suas palavras, uma ética, um código moral que oriente a sociedade. No mesmo sentido é pronunciado o discurso de Aníbal Machado, presidente do diretório nacional da ABDE, enfatizando o papel do escritor na vida nacional. Aníbal atribui ao escritor a missão de esclarecer o público. Sua fala afirma que a iniciativa não foi uma “inspiração ocasional”, mas uma “exigência que o momento histórico impôs aos intelectuais brasileiros”. Ele professa uma “comunhão necessária de pensamento, de consciência e de ação”. Os escritores são “guias num mundo obscuro e atormentado”. Interroga-se ainda porque, num congresso de escritores, realizar considerações que parecem marginais à vida do espírito? A consciência sobre a realidade como qualidade primordial do intelectual era a proposição afirmada inumeráveis vezes e a garantia da legitimidade de sua atuação. Ao identificar no intelectual o porta-voz de uma consciência crítica nacional, Aníbal Machado realiza uma condenação aberta ao papel da literatura no passado como algo voltado desinteressadamente para o “deleite”, a “recreação”. O escritor era o porta-voz da boa sociedade, escrevia para ela, para reafirmá-la ou reafirmar-se dentro dela e não para criticá-la. A literatura não se interessava pelo povo. De acordo com Guilherme Mota, existia uma profusão de termos apocalípticos.18 O mesmo autor aponta como fato novo a referência ao povo. A partir daí criava-se um “divisor de águas, no qual a perspectiva política passava a fazer parte dos diagnósticos sobre a vida cultural”19. E está claro nas palavras de Aníbal Machado a necessidade de estabelecer essa fronteira entre o passado e o presente, apresentando este último como um momento novo, no qual o escritor, como nunca, ocuparia o lugar de crítico da sociedade. A importância das discussões não impediu que surgisse falta de acordo com relação aos temas levantados em plenária, à afinidade destes com o que deveria ser central num congresso de escritores, um debate estreitamente vinculado à compreensão que se tinha do papel do escritor. Na lista das teses aprovadas e recomendadas estavam desde os assuntos candentes e bastante gerais sobre a democratização da cultura brasileira, à importância do teatro, rádio, cinema, bibliotecas etc., chegando às questões sociais fundamentais no período como superação do analfabetismo e reforma agrária. 17 Benevides, Maria Vitória de Mesquita. Op. Cit, p. 38. 18 Mota, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira. São Paulo: Ática, 1994. 19 Ibid., p. 138.

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4. Entre democratas e comunistas? Conforme a declaração de Jorge Amado, realizada anos depois em seu livro de memórias, em 1945 seria presidente da delegação baiana da ABDE e um dos vice-presidentes do Congresso e, como tal, ele fora chamado pelo PCB para desempenhar a “tarefa” de ajudar na organização do conclave. Segundo o escritor baiano duas correntes se debatiam no plenário: os democratas e os comunistas. O grupo dos democratas era composto por liberais, democratas-cristãos e social-democratas além de comunistas não alinhados, como Caio Prado Jr., Mario Schemberg e obedeciam “à batuta” de Carlos Lacerda que havia rompido com o PCB em 1942.20 É possível interrogar-se se havia tamanha clareza política entre os participantes no momento. Esta análise a posteriori provavelmente não estava tão bem definida entre os congressistas, porém o embate já se definia nesse sentido. Astrojildo Pereira, durante o Congresso de 1945, além de apresentar a tese mencionada seria um dos mais atuantes organizadores do encontro. Na abertura dos trabalhos da Primeira Sessão Plenária, num ato de valor simbólico, ele, Antônio Candido, Alberto Passos Guimarães, Guilherme Figueiredo e Osório Borba presidem sessão que, sob grande aplauso, apresenta os congressistas e conferem suas credenciais. Além do trabalho da organização em que ele assume papel importante, nos anais são registradas quatro intervenções suas. A primeira delas se daria na segunda sessão plenária quando se discute o modo de encaminhamento das teses e a alteração no Regimento interno. Astrojildo chama a atenção para a clareza da ementa, ou seja, que o plenário vote apenas sobre as conclusões apresentadas pelas comissões. Em caso de a tese não apresentar conclusões esta deveria ser recomendada para publicação ou rejeitada in limine. Outra intervenção se daria na apresentação de proposta de Fernando Azevedo sobre a democratização da cultura. A proposta seria assinada por Astrojildo, porém ele, assim como Pedro Mota Lima, também comunista e que acabara de voltar ao país indultado, depois do exílio na Argentina em virtude de sua condenação pela participação na chamada Intentona de 1935, faz aparte para destacar seu apoio às medidas propostas no documento, porém com “restrições sobre as motivações de ordem filosófica contidas no trabalho”.21 A proposta de Fernando Azevedo defende, dentro das concepções da época, uma educação considerada liberal. Segundo dizia “uma 20 Amado, Jorge. Navegação de Cabotagem. Rio de Janeiro: Record, 1993. 21 Anais, p. 96. Dicionário Histórico Biográfico, ver: www.fgv.br/cpdoc/busca/Busca/ BuscaConsultar.aspx. Ana Amélia de Moura Cavalcante de Melo

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política de educação capaz de produzir não indivíduos uniformes (...) mas o maior número possível de pessoas diferentes”. Pedro Mota, diria explicitamente: “no sentido técnico exato, eu recusaria a minha assinatura a uma tese que condenasse uma forma totalitária de organização do sistema cultural, ou recomendasse como exemplar um liberalismo neste sentido”.22 Astrojildo, ainda na quinta sessão, no dia 27 de janeiro, seria o relator da tese de Osório Borba, “O apoliticismo dos intelectuais” que é lida e aprovada por aclamação. Finalmente, no encerramento do Congresso, Astrojildo propõe que todos ouçam de pé a leitura da Declaração de Princípios. A participação dos comunistas será uma das questões de maior conflito nos congressos seguintes. No ano de 1945, quando a luta democrática estava no auge, alguns comunistas que têm uma atuação importante no Congresso da ABDE estavam, de alguma maneira, afastados da cúpula do partido, como é o caso emblemático de Astrojildo Pereira. Este seria um dos mais atuantes membros da ABDE e defensores da postura de ativismo político dos escritores. O manifesto emitido pela ABDE resultou de um consenso final alcançado em torno da importância da natureza política do evento. A Declaração de Princípios é evocada nos congressos seguintes, contudo, o clima de consenso não se mantém. Para alguns membros, a Associação deveria preservar o caráter de entidade em defesa dos interesses do ofício do escritor. Nessa perspectiva é criada, ainda em 1945, a UTI (União dos Trabalhadores Intelectuais) evidenciando o objetivo de aliviar a ABDE das demandas políticas. Astrojildo Pereira seria seu presidente provisório. Segundo Drummond, a ideia vinha sendo pensada, porém só toma forma a partir de março quando se realizam algumas reuniões com a presença de Otávio Tarquínio de Souza, Drummond e Astrojildo Pereira. Esta entidade teria uma fisionomia abertamente partidária, emitindo um documento de apoio à campanha do candidato brigadeiro Eduardo Gomes.23 O cenário que se vislumbra, a partir de 1947, inviabilizaria para a ABDE uma posição de neutralidade política. É que com o PCB novamente na ilegalidade, seus membros buscariam outras formas de inserção política no país. Nesse momento, a tensão cresce no interior da ABDE, entre os defensores de uma ampliação da associação como campo de atuação dos comunistas e os que lhes são contrários. Em 22 Ibidem, p. 95. 23 União dos Trabalhadores Intelectuais. Programa, Declarações e Princípios. Rio de Janeiro, Jornal do Comércio, 1945. Biblioteca Nacional.

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outubro de 1947, seria realizado em Belo Horizonte o II Congresso dos escritores e este era o momento de dar maior ênfase à participação dos comunistas na associação. A questão fundamental, apresentada no encontro pelos escritores comunistas, entre eles Jorge Amado, seria a da aprovação de uma moção contra o fechamento do PCB e contra a caça aos seus parlamentares. Ao querer priorizar essa moção, alguns dos membros da Associação opuseram-se. A contenda que se estabeleceria revelava, na verdade, um outro conflito que se desenvolvia dentro do partido. A ilegalidade transformara a linha política do partido, nacional e internacionalmente. A Doutrina Truman, exposta em março de 1947, dava início à Guerra Fria e obviamente dividia os intelectuais. A ideia de um partido amplo e reformista era abandonada, e considerada ilusionista, em nome de uma concepção revolucionária. Da mesma forma se alterava o tipo de organização partidária, constituindo-se uma máquina com forte presença de funcionários-militantes.24 A estes conflitos somava-se ainda o desagrado dos não comunistas frente à transformação da ABDE em órgão de representação do PCB. Entre muitos escritores estava Graciliano Ramos que, apesar de discordar do estreito sectarismo que em muitos casos se impunha, sobretudo nas questões literárias, apoiaria os comunistas.25 Em 1949, as eleições que antecederiam o Congresso desse ano causariam uma séria crise, com o desligamento de diversos membros importantes. Esse racha resultaria mais tarde na ruptura da ABDE de São Paulo, enfraquecendo a entidade. Depois dos acidentes desse ano, na imprensa comunista sairiam artigos no qual acusavam duramente aqueles que haviam abandonado a ABDE.

24 Pandolfi, Dulce. Camaradas e Companheiros. História e Memória do PCB. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995, p. 172. 25 Moraes, Denis de. O Velho Graça. Uma biografia de Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1996, p. 248. Ana Amélia de Moura Cavalcante de Melo

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s Salões Oficiais de Belas Artes foram instituídos por decreto pelo governo do estado do Pará em 1940 e mantidos pelo poder público durante toda a década e alguns anos da década seguinte. Porém, a história deles é mais antiga que os próprios Salões: a solenidade que inaugurava oficialmente a primeira edição do evento era só mais um capítulo da intensa luta que vinha sendo travada pela geração de artistas e intelectuais que permaneceu em Belém depois do fracasso da economia exportadora da borracha, no início do século XX. Para se ter uma ideia mais clara sobre isso, é preciso conhecer algumas iniciativas que, pouco a pouco, foram contribuindo para a afirmação de um espaço das artes na capital paraense. Em 1918, por exemplo, um grupo de artistas e intelectuais se reuniu à Rua Frutuoso Guimarães n° 33, em Belém, onde funcionava a sede da Associação Artística Paraense, para fundar a Academia Livre de Bellas Artes. Durante os vários anos de sua existência, cuja documentação foi possível acompanhar somente até 1922, a Academia passou por grandes dificuldades, sendo mantida em sua maior parte pelo trabalho voluntário dos professores e módicas contribuições dos associados. Em 1920 foi necessário recorrer ao Conselho Municipal de Belém, que contribuiu com ajuda financeira para que a instituição fosse mantida. Depois desse auxílio, no ano seguinte, finalmente era inaugurado o I Salão Paraense de Bellas-Artes. Na ocasião, foi nomeada uma comissão para “organizar e arrumar”, composta por José Girard, professor Escobar de Almeida, Adalberto Lassance Cunha, Manoel Pastana, Arthur Frazão, Alfredo Lopes Mello e Augusto Cezar. Para administrar os trabalhos ficaram responsáveis Amunajas Filho, Alberto Lassance Cunha e Manoel Pastana; e para a comissão do júri: Clotilde Pereira, José Girard, Carlos de Azevedo, Antonieta Santos, Escobar de Almeida e José de Castro Figueiredo. Alguns anos antes, outros eventos destinados a reunir a produção artística local foram realizados na cidade. Theodoro Braga men-

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ciona entre os momentos mais relevantes a Exposição Paraense de Belas Artes, realizada no Teatro da Paz em 1910, com a presença de 23 expositores e cerca de 177 trabalhos; o Salão de Pintura, instituído por decreto oficial em 1911 e o II Salão de Belas Artes do Pará, inaugurado em 1917. Em 1938, a Biblioteca e Arquivo Público abrigou uma exposição comemorativa do cinquentenário da abolição da escravidão no Brasil (além de obras de artes plásticas, foram apresentadas composições musicais e trabalhos de literatura). Foi fundamental para o processo de oficialização desses Salões, o empenho e a persistência pessoal e de grupos de artistas locais em desenvolver projetos de incentivo e educação de jovens talentos, de valorização das artes plásticas, de ampliação de público e de mercado para as artes, organizando mostras e exposições, reivindicando ações e a colaboração do Estado, ou seja, exigindo e reafirmando espaços próprios no conjunto da sociedade.

De portas abertas Os Salões Oficiais de Belas Artes, realizados até 1947, foram inaugurados no espaço nobre da Biblioteca e Arquivo Público do estado do Pará. As edições posteriores ocorreram no Teatro da Paz. Essa mudança provavelmente foi provocada pelo crescimento do próprio Salão, cujas dimensões já não seriam comportadas no espaço incial, tamanho número de trabalhos inscritos. As edições de 1947 e 1948 tiveram um caráter distinto das demais, principalmente pelo fato de que, apesar de manterem o apoio do governo estadual, que concedia os principais prêmios, foram organizadas pela Sociedade Artística Internacional (SAI), seção do Pará, uma agremiação de intelectuais voltada para a promoção de eventos artísticos na região, na maioria das vezes no campo da música, embora tenha realizado várias mostras de artes plásticas. Como se pode ver nas fotografias de algumas dessas mostras, uma parede era improvisada nas laterais da sala, acompanhando a disposição das colunas, formando um novo retângulo. Atrás delas, as grandes estantes adquiridas para organizar o acervo permaneciam em seus devidos lugares. Nas paredes provisórias, as obras eram expostas do alto até bem perto do chão, procurando-se aproveitar ao máximo o espaço existente. A disposição das telas respeitava os trabalhos apresentados pelo artista expositor, cujas obras figuravam lado a lado, mesmo que concorrendo em categorias diferentes. Uma pequena placa com o nome do autor da obra era colocada sobre

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ou entre os trabalhos, assim como os números que as identificavam, não havendo outras indicações. Para as esculturas, quando necessário, recorria-se a um suporte, que poderia ser uma prateleira para as obras menores e mais leves, ou um pedestal. Percorrendo distâncias mais ou menos proporcionais, lâmpadas eram colocadas na parte superior dos planos laterais, garantindo a iluminação equivalente para todos os trabalhos da mostra. Algumas mesas e cadeiras que aparecem nas imagens de época dão a ideia de que o mobiliário da biblioteca era mantido na sala mesmo durante a exposição, levando a crer que a dinâmica de circulação no espaço dos visitantes girava em torno do trajeto demarcado entre as linhas retas das paredes e o espaço central onde ficavam os móveis. Para os quadros emoldurados havia a possibilidade de serem pendurados na vertical, rente à parede e paralelo a ela, ou então se recorria a outra técnica também bastante conhecida, que projetava a parte superior da tela para frente, distanciando-a levemente do suporte. Uma característica marcante dos Salões Oficiais organizados pelo governo do estado do Pará durante a década de 1940, e que o tornava bastante interessante, é que eles sintetizavam um encontro de gerações. Ao lado de artistas de carreira, como o pintor Lassance Cunha, Arthur Frazão e Ângelus do Nascimento estava uma nova geração de artistas, como João Pinto, que fora aluno de Lassance; Geraldo Corrêa, que estudara com Ângelus; e Carmen Sousa, entre outros da geração mais jovem. Muitas vezes, os artistas e seus mestres dividiam as paredes da mostra, como aconteceu, por exemplo, em 1947, no VIII Salão Oficial de Belas Artes, quando a pintora Antonieta Santos Feio e sua aluna, Dahlia Déa, ambas expuseram suas obras para avaliação do júri. Também havia os artistas vindos de fora, estrangeiros ou não. No III Salão Oficial, em 1942, Waldemar Costa não só esteve presente, como foi consagrado com o 2º prêmio de Pintura Moderna com o retrato do Dr. Pedro Borges. Em 1940, o pintor italiano Alfredo Norfini foi concorrente de honra, extra concurso, trazendo cinco aquarelas com paisagens que pintou no Pará, inclusive uma intitulada “Vêr-o-peso”. Também deve-se ressaltar que o status de moderno na arte não foi uma questão que passou pelos salões oficiais em Belém sem ser notada ou debatida. Isso não significa que os artistas que participavam das mostras ou mesmo os organizadores, os jurados, os críticos e até os visitantes tenham chegado a uma intercessão comum sobre os limites desse conceito. Pelo contrário, tudo indica que tenha havido várias interpretações e utilizações diferentes, inclusive antagôni152

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cas, do mesmo critério de “modernidade”, o que não nos habilita a construir uma avaliação coerente e sistemática de padrões estéticos bem demarcados como forma de compreender o moderno na arte paraense da década de 1940. Mais do que isso, é fundamental perceber esse conjunto de nuances como parte de um debate em aberto, não só no Pará, como uma possibilidade de rever os estigmas há muito tempo pensados para o modernismo brasileiro e suas próprias definições. Desse modo, se os salões serviram para institucionalizar o mundo das artes plásticas e especialmente da pintura no Pará nas décadas de 1940 e 1950, o moderno não se institucionalizou, não ganhando contornos próprios na crítica local, mantendo-se a forma do moderno em aberto. A década de 1940 representa um momento importante para as instituições dedicadas às artes no Brasil. No pós-guerra, particularmente, surge um parcela significativa dos museus de arte;1 associado às mudanças político-sociais experimentadas nos anos anteriores e nas novas configurações do poder mundial, os artistas modernos investem numa empreitada de transformar a arte moderna em cultura urbana. Daí nascem vários espaços por todo o país com objetivo de divulgar e levar ao conhecimento do público aquilo que vinha sendo produzido nas últimas décadas, na perspectiva de “aprimoramento dos hábitos e costumes” em nome do bem coletivo. Esse processo encontra eco nos projetos do governo federal que, a partir do referencial norte-americano, se esforça para internalizar os sentimentos em torno de uma nação forte, incentivando a defesa e a união entre as regiões brasileiras com apelo para origem comum, e como forma de justificar as aspirações compartilhadas. Na capital paraense, contudo, a criação do Museu de Arte de Belém levaria pelo menos meio século a mais para acontecer, florescendo num contexto histórico bastante diferente daquele vivenciado no pós-guerra. Por outro lado, artistas locais, apoiados por intelectuais e autoridades, vinham concentrando forças para a criação, ainda nos anos 40, de uma instituição de ensino de arte, a Escola Livre de Belas Artes, como instrumento para fomentar e regular o campo de produção artística na região. Isso mostra que a preocupação dos grupos locais era, antes de tudo, garantir viabilidade para a continuação do trabalho do artista.

1 LOURENÇO, Maria Cecília França. Museus acolhem moderno. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999, p. 11. Caroline Fernandes

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Prêmios e aquisições Embora não houvesse uma política específica de incentivo à produção artística, o administrador dispunha de recursos para beneficiar os artistas locais, e uma forma de fazer isso era incorporar suas obras a acervos públicos. Aparentemente, não havia um critério rígido para as aquisições, e elas não tinham uma relação direta com os prêmios instituídos pela comissão julgadora dos salões oficiais. Quer dizer, nem sempre as obras premiadas eram adquiridas, e nem sempre as obras adquiridas haviam sido premiadas. Um bom exemplo pode ser percebido no VIII Salão Oficial, em 1947, quando a tela Chico Preto, de Antonieta Santos Feio, foi agraciada com o 2º prêmio de Pintura Clássica. Porém, naquele mesmo salão, a pintora havia concorrido com outras 18 telas, entre elas “A mulata do cheiro”2 que, apesar de não ter sido premiada, foi a escolhida para ser adquirida pela Prefeitura. No relatório apresentado pelo prefeito Rodolfo Chermont, referente ao exercício do ano de 1948, já faziam parte do acervo da Pinacoteca Municipal, entre os trabalhos da pintora, além de “A mulata do cheiro”, a tela “A tacacázeira”3, de 1937, mais alguns retratos de intendentes e prefeitos. Alguns anos depois, em 1951, a tela “Mendiga”, ganhadora do 1º prêmio de Pintura do salão organizado pelo governo do Pará naquele ano, viria se juntar às demais obras da pintora naquela instituição. Além disso, trabalhos de artistas menos experientes e conhecidos pelo público paraense também foram incorporados às coleções públicas, obras expostas, inclusive, desde as primeiras edições do Salão Oficial. Das três pinturas da artista Dahlia Déa (aluna de Antonieta Santos Feio e que na época do salão contava com mais ou menos vinte anos de idade) que pertencem ao Museu de Arte de Belém, pelo menos uma delas, um autorretrato, foi exposto no II Salão Oficial. Embora não possamos afirmar que elas foram adquiridas na época do salão, não é menos curioso pensar no que motivou sua escolha 2 No catálogo do VIII Salão Oficial de Belas Artes, a tela aparece intitulada “A mulata do cheiro”, porém, no relatório referente ao exercício do ano de 1948, apresentado à Câmara Municipal de Belém pelo prefeito Rodolfo Chermont, na sessão relativa à Pinacoteca, a tela é citada com o título “A mulata”. Anos mais tarde, a mesma obra foi tombada pelo Museu de Artes de Belém com o nome “Vendedora de cheiro”. 3 Tombada com o título “Vendedora de tacacá”. O título da obra se refere a um prato típico da região, chamado tacacá, receita com base nas tradições indígenas. É feito de tucupi, um suco extraído na mandioca, goma, também extraída da mandioca, folhas de jambú, uma planta da região que, ao ser mastigada, dá a sensação de dormência na língua e nos lábios, e camarão. Costuma-se comer com pimenta. O tacacá há muito tempo é vendido nas ruas, tradicionalmente por mulheres, e até hoje muito consumido pelos moradores da região durante a tarde.

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para fazer parte do acervo da pinacoteca do município de Belém. O que mais chama atenção, contudo, é justamente a expressão em que se autorrepresentou, sem pretensões de esconder a insegurança que transparece no olhar tenso, na postura e rigidez da musculatura do pescoço, na boca entreaberta, na forma como segura com força a palheta na mão esquerda, empurrando-a contra o peito, temerosa. No caso dos salões oficiais financiados pelo governo do Estado do Pará na década de 1940 foram as aquisições – e não os prêmios – que favoreceram a institucionalização das artes por meio da criação de museus, como é o caso do Museu de Artes de Belém (Mabe), alguns anos mais tarde. O caminho para esse processo foi traçado justamente a partir dos salões, enquanto parte fundamental do projeto pensado para as artes locais por artistas e intelectuais engajados na divulgação do tema, pois eles foram o instrumento de ação do poder público, culminando com a consagração do espaço de exposição. A tela “Mendiga”, de Antonieta Santos recebeu o 1º prêmio no Salão Paraense de 1951, realizado em Belém. Pelo conjunto das características formais, trata-se de um retrato, mas neste caso a modelo foi uma senhora negra, miserável, que sobrevive de pequenas doações arrecadadas em seu chapéu de palha. Se, por um lado, as significações deste gênero pictórico sempre estiveram condicionadas a discutir com sua própria época, inclusive por seu caráter funcional ou utilitário; o retrato, de forma genérica, esteve envolto numa atmosfera simbólica de poder, independente dos critérios de verossimilhança adotados e exigidos. E sua concepção esteve diretamente ligada a uma fórmula simbólica que emoldura a individualidade; mas como relacionar poder e individualidade com uma personagem anônima, que vive nas ruas das grandes cidades como um não sujeito, a não ser por seu caráter antitético? Através de notas em jornais, sabe-se que no ano de 1952 a tela “Mendiga” esteve entre outras obras da pintora expostas em mostras organizadas em algumas capitais nordestinas, como Fortaleza, Recife e Salvador. Ela foi adquirida para o acervo da Pinacoteca Municipal, fazendo parte, atualmente, do Museu de Arte de Belém.

A questão regional no Salão A representação da natureza foi bastante recorrente enquanto temática das obras apresentadas nos salões, que aparecia tanto de forma descritiva, em ilustrações em aquarela para obras científicas; como também em painéis decorativos, composições formais como as

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naturezas mortas, principalmente na presença de frutas e flores; além das esculturas. Também foi grande o número de paisagens explorando recantos do interior do estado e paisagens urbanas. Aquelas cuja referência eram lugares e regiões interioranas, deixando ver a grande diversidade que compõem a região e principalmente o Pará em termos geográficos. Entre as paisagens, destacam-se aquelas cuja motivação foi a cidade de Belém, em especial dois aspectos foram os mais explorados: monumentos urbanos e as famosas feiras livres. Alguns trabalhos também se empenharam em problematizar ambientes mais íntimos, como os lugares de moradia. Além disso, a inspiração da arte indígena, com destaque à marajoara e à tapajônica, se fez presente nos salões principalmente nos trabalhos de arte aplicada. Outra tópica que se destacou nos salões foi a representação de homens e mulheres da região, tipos sociais comumente encontrados nas margens dos rios ou nas cidades, representativos de uma cultura comum. Em 1947, a tela “Mulata do cheiro”,4 da pintora paraense Antonieta Santos Feio foi exposta no VIII Salão Oficial de Belas Artes, organizado pela Sociedade Artística Internacional, em Belém. Em seguida, a obra foi adquirida pela Prefeitura Municipal de Belém, integrando a pinacoteca pública. A tela é um retrato de uma mulher mestiça, de meia idade, vestida com saia florida, blusa branca com renda, adornada com brincos, colar e pulseira dourados, flores vermelhas e brancas nos cabelos presos no topo da cabeça. O corpo ereto, olhar à frente, ela apóia a mão direita na cintura, e com a esquerda segura um cesto de palha repleto de raízes e plantas de cheiro forte.5 A experiência na execução de retratos garantiu que a artista desse soluções importantes para a tela em questão. O fundo é dinâmico, se comporta como um dado regional, pois remete às construções arquitetônicas bastante comuns na cidade de Belém do Pará, feitas de feixes de madeira enfileirados. Por outro lado, consegue manter-se suficientemente neutro, dando destaque à figura da mulher representada com interferências mínimas. Na história da arte brasileira, a mulher foi o tema dominante nas representações de afrodescendentes, aparecendo desde as recorridas 4 Esta tela foi tombada pelo Mabe com o nome “Vendedora de cheiro”, em 1995. As próximas referências serão com o nome de tombamento. 5 O cheiro de papel, até hoje encontrado nos mercados públicos ou vendido nas ruas de Belém, resulta de uma combinação de raízes, cascas e paus aromáticos, ralados e misturados a trevos, jasmins e rosas, embrulhados em pedaços de papel. Os envelopes cheirosos são colocados em gavetas, baús e armários, perfumando as roupas.

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Salões e instituições em Belém nos anos 1940

imagens de escravas de ganho de Jean Baptist Debret, passando pelas baianas nas esculturas de Rodolfo Bernadelli, ou mesmo nas gravuras de Oswaldo Goeldi. Na obra de muitos artistas brasileiros ao longo do século XX, a mulata ganhou contornos de síntese do debate sobre a cultura brasileira. Mas esse movimento de valorização da cultura africana não se deu no Brasil de forma particular ou isolada, se integrou a um processo de inclusão cultural e simbólica da cultura africana na sociedade ocidental. Em países latino-americanos como o Brasil, isso ocorreu em grande parte associado a um projeto nacional para construção de uma identidade comum.6 Essa associação resultou num processo característico no qual os negros são identificados como brasileiros e como mestiços: “identidade negra brasileira foi, antes de tudo, uma construção política, de ‘frentes’ e de ativismo antidiscriminatório, pouco reivindicando, até os anos 1970”. Mesmo entre os intelectuais do século XIX a mestiçagem já aparece como uma marca do Brasil, embora compreendida como elemento de degradação, motivadora do atraso e barreira para o desenvolvimento da nação. Mais tarde, a mestiçagem passa a ser encarada de um ponto de vista mais positivo, nos anos 1930 essa visão toma corpo em teorias sobre a sociedade baseadas, por exemplo, no mito das três raças formadoras e sua convivência harmônica. O negro ganha, então, uma interpretação positiva como mestiço e este emerge como definidor da sociedade nacional. Assim, a mestiçagem minimiza fatores étnicos e raciais, se confundindo com o conceito de classe social. Esse aspecto é particularmente importante para compreensão do movimento que começa a se autoidentificar como modernista no Brasil por volta dos anos 1920, especialmente em São Paulo, em oposição à arte que vinha sendo produzida até então. O projeto modernista, em sintonia com uma tendência internacional, bradava a valorização da história e da cultura nacionais, numa busca que acabou produzindo representações de “ambientes idealizados, personagens estereotipados, criando uma brasilidade imaginária e ideológica”.7 Nesse sentido, o(a) mulato(a) aparece como padrão de representatividade nacional, em oposição aos discursos eugênicos e do embranquecimento. Desde o início da Primeira Guerra Mundial, como destaca Tadeu Chiarelli, a conjuntura artística internacional começava apresentar 6 GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Modernidade negra. Apresentação de texto no XXVI Encontro da ANPOCS. Caxambu, 2002. 7 ALMEIDA, Marina Barbosa. As mulatas de Di Cavalcanti: representação racial e de gênero na construção da identidade brasileira (1920-1930). Curitiba, 2007. Dissertação (Mestrado em História) – Setor de Ciências, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2007, p. 56. Caroline Fernandes

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Memória

um recuo em relação ao experimentalismo das vanguardas, na perspectiva de valorização das tradições nacionais, dando novo lugar de destaque ao local nas artes produzidas mundo à fora.8 Esse projeto tinha como pressuposto uma arte capaz de refletir a realidade social e exercer sua função de conscientização política, por isso, o homem popular passou a ser o centro dessa definição temática.9 O lugar do regional na arte tem se tornado cada vez menos capaz de expressar as questões colocadas pela contemporaneidade, dando espaço para a valorização de problemáticas menos localizadas geográfica e culturalmente, apresentando ao debate aspectos que superam as fronteiras e particularidades em nome de um aprofundamento interior à obra. Mas essas questões atuais nem sempre foram colocadas da mesma forma, como mostram os acervos dos museus brasileiros. Em 1940, por exemplo, o artista italiano Alfredo Norfini, que na época se encontrava na cidade de Belém, publicou um texto na coluna Notas Artísticas sobre o I Salão Oficial de Belas Artes enfatizando que “o que falta aos artistas brasileiros é serem regionais”,10 num elogio ao conjunto das obras dos artistas locais e os trabalhos por eles selecionados para participar da mostra na capital paraense. O breve panorama de obras expostas ao longo da história dos salões oficiais no Pará, na década de 1940, revela o quanto os temas relacionados ao local e ao regional foram caros às artes plásticas produzidas no estado. Na mesma perspectiva foram os trabalhos com motivos regionais os que mais interessaram ao poder público na constituição de acervos, como exemplificam várias décadas de aquisição que conformaram, mais tarde, o Museu de Arte de Belém.

8 Ibid, p. 28. 9 CHIARELLI, Tadeu. Tropical, de Anita Malfatti: Reorientando uma velha questão. São Paulo, ago./2003. Palestra proferida na Pinacoteca do Estado de São Paulo. 10 ALMEIDA, op. cit. p. 29. ***** NORFINI, Alfredo. Notas Artísticas: I Salão Oficial de Belas Artes. Folha do Norte, Belém, 1019 set./ 1940.

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Um eterno nacionalista: Monteiro Lobato Lucília Garcez

Q

uando se mudou de Taubaté para São Paulo, em 1897, Monteiro Lobato já demonstrara suas tendências intelectuais. Desde pequeno, nos seus primeiros anos de estudante, era um leitor voraz e já escrevia contos para os jornais das escolas que frequentou. Ao receber de herança a bengala de seu pai, gravada com as iniciais JBML (de José Bento Marcondes Lobato), muda seu nome de José Renato para José Bento.

Gostaria de cursar Belas Artes, pois tinha talento para o desenho, mas por influência do avô materno, José Francisco Monteiro, o Visconde de Tremembé, interessado em passar-lhe a administração dos negócios, ingressou na Faculdade do Largo de São Francisco para cursar Direito. Nesse período de estudante, fundou com seus colegas de turma a revista Arcádia Acadêmica, na qual se mostrou um comentarista arguto, com um humor fino e original. Formou com amigos o grupo O Cenáculo, do qual faziam parte: Ricardo Gonçalves, Cândido Negreiros, Godofredo Rangel, Raul de Freitas, Tito Lívio Brasil, Lino Moreira e José Antônio Nogueira. Amigos que levaria para a vida afora, por meio de assídua correspondência. Era um convívio intenso, com debates acalorados e grandes sonhos de transformar o mundo. Publicaram um semanário que levava o nome da república nos altos de um sobrado onde se reuniam com frequência: O Minarete. Essa publicação proporcionou a todos um espaço de experiências e de liberdade, em que a criatividade de cada um extravasava de forma caudalosa e despreocupada. Desta época é a descoberta de Nietzsche, que lhe ensinara a só defender algo de que tivesse absoluta convicção. Em 1904, diplomado em Direito, regressa a Taubaté onde ocupa interinamente a promotoria. Período em que a monotonia da cidade convidava à leitura e à reflexão. Assina a coluna de crítica de arte no Jornal de Taubaté e traduz O crepúsculo dos ídolos e Antecristo de Friedrich Nietzsche, mas essas traduções permanecem inéditas. Nomeado promotor público em Areias, casa-se com Maria Pureza da 159


Memória

Natividade, a Purezinha, em 1908. Com a morte de seu avô, em 1911, herda a Fazenda Buquira, para onde se transfere com a família. Na serra da Mantiqueira, em terreno acidentado e solo já cansado, com um casarão de oitenta janelas e portas, a propriedade absorve completamente suas energias. Essa experiência de administrador do campo motiva-o a produzir, em novembro de 1914, um texto indignado com o desrespeito à natureza por parte dos caboclos. Envia-o para a seção de Queixas e Reclamações de O Estado de S. Paulo, mas ele é deslocado pelo editor para a página principal do jornal, com destaque, sob o título “Uma velha praga”. O artigo, em que acusa o hábito da queimada realizada pelo caboclo como responsável pelo empobrecimento e devastação dos solos, alcança grande repercussão. No mês seguinte, publica outro artigo: “Urupês”, expressão frequentemente utilizada por sua mãe para nomear cogumelos parasitários que nascem na madeira podre. A imagem do caboclo, indevidamente romantizada pelos intelectuais e escritores, apenas esboçada em “Uma velha praga”, revela-se agora delineada com todas as cores: ignorante, preguiçoso, sem força de vontade, resignado, subserviente. Demolindo a corrente romântica das etnias negra e indígena idealizadora de um herói valente e virtuoso, Monteiro Lobato define o seu Jeca Tatu, que mais tarde será reconsiderado. Suas ideias causam polêmica e não demora muito para aparecerem versões de caboclos anti-Jeca. O sucesso traz novas oportunidades de trabalho intelectual e Lobato decide vender a Fazenda Buquira e abandonar a vida de fazendeiro. Na Revista do Brasil e em O Estado de São Paulo, revelando seu perfil nacionalista, denuncia a descaracterização da cultura nacional em favor de símbolos importados, como os anões, faunos, sátiros e bacantes, e a adoção de uma linguagem impregnada de expressões em inglês por toda a sociedade. “Tendes sede? No bar só há chopps, grogs, cocktails, vermouths. Tendes fome? Dão-vos sandwichs de pão alemão e queijo suiço. Lá apita um trem: é a Inglesa. Tomais um bonde? é a Light. Desceis num cinema: é ìris, Odeon, Bijou. começa a projeção: é uma tolice francesa de Pathé ou uma calamidade da Itália.”1 Conclama os leitores a revisitarem e valorizarem os elementos do folclore nacional: caipora, boitatá, saci, iara. Nasce uma nova polêmica entre os que são favoráveis à revitalização de nossos entes folclóricos e os que consideram isso um sintoma de atraso e um reforço à superstição popular. Em decorrência dessa controvérsia, em 1917, numa busca 1 O Sacy-Pererê: resultado de um inquérito. São Paulo, O Estado de S. Paulo, 1918, p. 12.

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Um eterno nacionalista:Monteiro Lobato

pela valorização das raízes autenticamente nacionais, Monteiro Lobato inicia em O Estado de S. Paulo uma enquete sobre a figura do Saci. Pede que os leitores respondam a três perguntas: 1. A concepção pessoal do Saci; como a recebeu na sua infância; de quem a recebeu; que papel representou tal crendice na sua vida. 2. Qual a forma atual da crendice na zona em que reside. 3. Que histórias e casos interessantes, vividos ou ouvidos, sabe a respeito do Saci. Uma quantidade incalculável de cartas chegou de todos os cantos do Brasil. Assim, inovando os métodos de pesquisa folclórica e cultural, Lobato delineou o que o imaginário popular armazenava a respeito do mito: proveniente de relatos de ex-escravos, era negro, magro, esperto, de uma perna só, com um gorro vermelho, um cachimbo, vivia na zona rural, gostava de dançar e fazer diabruras: gorar ninhadas, queimar balões, comer pipoca, roubar espigas de milho, beber vinho ou refresco, abrir porteiras, fumar. O assunto despertou tanto interesse que o jornal abre um concurso para artistas plásticos desenvolverem trabalhos sobre a figura do Saci. O vencedor, Roberto Cipicchia, cristalizou a figura que até hoje se tem desse mito popular. Monteiro Lobato resolve publicar o material da pesquisa em 1918: O Sacy-pererê: resultado de um inquérito, justificando que colocou o tema mais ameno do Saci em pauta para compensar a carnificina europeia da guerra mundial a que todos acompanhavam com aflição. Lobato vive então um período de intensa produção jornalística, publicando na Revista do Brasil, em O Estado de S. Paulo e no Correio da Manhã e em outros veículos como: Vida Moderna, O queixoso, Parafuso, A Cigarra e O Pirralho. Escrevia sobre os mais diversos temas, sempre com a mesma coerência e sinceridade. Paralelamente à sua atividade jornalística, Monteiro Lobato reflete sobre a questão do saneamento básico no Brasil e abraça as campanhas higienistas de Belisário Pena e Artur Neiva. É a oportunidade de rever sua teoria sobre a culpa do caboclo pelo nosso atraso e compreender que seu comportamento não era voluntário, mas sim resultado do subdesenvolvimento, da fome, da doença, da miséria, da falta de assistência médica e social por parte dos poderes públicos. Segue-se então uma série de artigos que denunciam a falta de sanea-

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Memória

mento e a situação precária da saúde do povo. Para ele, curar o homem do campo era uma forma de criar riqueza e assegurar os alicerces do desenvolvimento econômico e financeiro. Suas opiniões, que circulavam intensamente, influenciaram atitudes governamentais em favor do saneamento básico. Diante do sucesso de Sacy-pererê: resultado de um inquérito e de Urupês, Lobato resolve aventurar-se pelo mundo editorial. Lança Ideias de Jeca Tatu e Cidades Mortas. Em 1922 aceita concorrer a uma vaga na Academia Brasileira de Letras, mas desiste durante a campanha para não se submeter à praxe de pedir votos. Compra a Revista do Brasil e participa inicialmente da empresa Olegário Ribeiro, Lobato & Cia, que não dura muito. Depois, em 1920, monta a Monteiro Lobato & Cia. Com estratégias ousadas de produção, distribuição e de vendas, ele vê o livro como uma mercadoria que deveria ser atraente e estar disponível ao comprador em diversos lugares. A expansão da empresa é rápida, e para entrar no universo do livro didático, de consumo obrigatório, lança um livro de leitura que foi adotado pelo governo do Estado de São Paulo no segundo ano das escolas públicas: A menina do narizinho arrebitado, com ilustrações de Voltolino. É sua primeira produção para o público infantil e mais tarde se tornou o primeiro capítulo de Reinações de Narizinho. Logo em seguida lança O Saci, Fábulas de Narizinho, O Marquês de Rabicó e As Caçadas de Pedrinho. Sua obra destinada ao público infantil é inovadora e traz para o centro da narrativa a personagem criança. Incorpora a tradição universal aos mitos brasileiros criando um mundo de fantasia que estimula o pensamento crítico e a reflexão. Lobato está em consonância com as novas ideias pedagógicas que questionavam as antigas metodologias de ensino baseadas no castigo e na memorização. Explora o imaginário de maneira crítica e criativa, provocando o prazer de ler, de refletir e de aprender. Assim como nos seus livros para adultos, seus textos para crianças enfocam os problemas brasileiros despertando o sentimento de nacionalidade. Subjaz em sua obra um projeto de educação. A empresa transforma-se em Cia. Gráfico-Editora Monteiro Lobato, a maior do ramo no país, com um moderno parque gráfico. Em decorrência da revolução tenentista, a editora parou por dois meses, o que provocou sua falência. Havia publicado 152 títulos. Ao publicar o polêmico artigo Paranóia ou mistificação, a respeito da exposição de Anita Malfatti, a quem considerava talentosa, Monteiro Lobato reage principalmente à invasão estrangeira dos “ismos”, em favor de uma identidade estética nacional. Por isso sua relação com os

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modernistas sofre de cíclicos recuos e aproximações. Mas todos reconhecem o seu valor e seu espírito intrinsecamente moderno. Já morando no Rio de Janeiro, persistente na sua ideia de inundar o país de livros, Monteiro Lobato funda, em 1926, a Companhia Editora Nacional, que atrai ilustres colaboradores. Convencido de que o desenvolvimento e o progresso tão sonhados para sua pátria somente viriam com novas atitudes nas relações de trabalho, Lobato aproximase das ideias de Henry Ford, de quem traduz e publica Minha vida e minha obra e Hoje e amanhã. Em 1926, lança no formato de folhetim, pelo jornal A Manhã, o romance O choque das raças, que mais tarde foi lançado com o nome de O presidente negro. Nesse texto futurológico, Lobato antecipa a história e propõe uma reflexão ampla sobre conflitos raciais e injustiça social, sobre liberdade e dominação. De tese francamente eugenista, pois, no enredo, a inteligência dos brancos acaba vencendo o embate com os negros, o livro deixa transparecer uma posição ambígua do autor que já reconhecera a importância do elemento africano na cultura brasileira (por meio de personagens como Tia Anastácia e Barnabé) e já denunciara as atrocidades do escravismo. Neste mesmo ano, Lobato aceita novamente concorrer a uma vaga na Academia Brasileira de Letras, mas foi derrotado. Em 1927, Lobato transfere-se para Nova York, nomeado por Washington Luís como adido comercial. Em visita a Detroit, deslumbrase com a racionalidade pragmática, com a otimização dos recursos humanos na organização das indústrias automobilísticas americanas. Empreende então esforços no sentido de despertar nas autoridades brasileiras a consciência de que um país tão rico em recursos naturais estaria apto a fornecer matéria-prima para as demandas americanas. Entretanto para isso seria necessário desenvolver o transporte, aperfeiçoar os produtos e o sistema de produção. Inquieto, abre um restaurante, o Brazilian Garden Coffee House, mas foi atingido pelo crash de 1929. Nesse período desenvolve amizade, que duraria a vida toda, com Anísio Teixeira, aluno de mestrado na Universidade de Colúmbia. Compartilhavam o sonho de um Brasil desenvolvido e educado. Sua intensa correspondência com os amigos brasileiros revela uma profunda admiração pelo progresso americano, mas sem perder de vista os riscos do consumo desenfreado. Em Nova York escreveu Mr. Slang e o Brasil ( 1927), As aventuras de Hans Staden (1927), Aventuras do Príncipe (1928), O gato Felix (1928), A cara de Coruja (1928), O circo de Escavalinho (1929) e A pena de Papagaio (1930). Os textos infantis foram publicados sob o título de Reinações de Narizinho.

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Memória

Tendo tomado conhecimento do processo William Smith de produção de ferro esponja, o qual não utilizava o processo de fundir o minério, o que exigia uma temperatura extremamente alta, Lobato se convence de que esse método pode ser aplicado no Brasil. A vantagem seria a possibilidade de aproveitamento não só dos tradicionais carvão vegetal, lenha, turfa, coque, argila xistosa ou madeira de lei, mas principalmente de fontes alternativas de energia como bagaço de cana-de-açúcar, casca de grão de café e coco babaçu. Em frequente correspondência com Smith, Lobato acalenta a esperança de que essa nova forma de siderurgia alavancaria o desenvolvimento industrial do Brasil. Com o apoio de Fortunato Bulcão, diretor do Banco do Brasil e da Associação Comercial do Rio de Janeiro, ele empreende uma intensa luta para convencer as autoridades brasileiras da possibilidade de produção de ferro. Com a Revolução de 30, Getúlio Vargas demite funcionários das representações diplomáticas, entre eles, Lobato. Ao deixar o cargo, Lobato escreve um longo relatório ao chefe do governo apresentando as ideias que teria construído durante os anos que vivera na América. Considera como responsáveis pela precariedade da economia brasileira o ferro e os combustíveis. Observa que o desenvolvimento da América se deu graças à produção de ferro. E tenta atrair Vargas para o projeto de exploração de ferro pelo processo Smith. Chama a atenção para a dependência da importação de gasolina, e alerta para a possibilidade de o Brasil possuir imensas reservas de petróleo. Sugere a negociação com a União Soviética, interessada em nossos produtos como café, cacau, couro e borracha, em troca de óleo cru. Essas ideias não repercutiram no governo, mas difundidas pela imprensa despertaram sentimentos anticomunistas. A intensa correspondência entre Lobato, em São Paulo, e Bulcão, no Rio, no período entre 1931 e 1933, revelam a persistência e os imensos obstáculos interpostos ao projeto. Havia pressão por parte do megainvestidor Percival Farquhar, que se propunha a explorar minério em Minas Gerais, por meio da Itabira Iron, cujos interesses eram defendidos por Assis Chateaubriand. A luta em que Lobato se empenhara para exploração do ferro perdeu-se nas engrenagens da burocracia do Estado, atropelada por interesses poderosos. Movido pelo sonho de transformar o Brasil em um país desenvolvido, a partir de então, Lobato abraça a campanha pelo petróleo, causa que o impulsiona a falar a plateias de diversas cidades. Desiludido com a participação do governo no projeto do ferro, funda , em 1931, a Companhia Petróleos do Brasil. Facilmente captou fundos pela venda de ações. Mas as perfurações nos poços de Araquá, no 164

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interior de São Paulo, e em Alagoas consomem todos os recursos sem apresentar nenhum resultado definitivo. Precisa de subvenções para continuar os trabalhos. Publica, em 1936, O escândalo do petróleo, em que ressalta a ideia de que o petróleo é uma questão de soberania nacional e denuncia a política dos detentores do monopólio dos combustíveis no país, que se opunham à extração do petróleo brasileiro. Por unanimidade de votos, é eleito para a cadeira 39 da Academia Paulista de Letras. Em 1937, Lobato é surpreendido pelo golpe de Estado. Persistente, Lobato constitui a Companhia Matogrossense de Petróleo. Mas o novo Código de Minas ameaça tornar sem efeito os registros de jazidas efetuados em conformidade com regras anteriores. Amordaçado pela censura à imprensa e condenado ao silêncio, Lobato passa a escrever diretamente às autoridades denunciando o que considera uma estratégia prejudicial à economia do país. Com o intuito de fazer calar a voz insistente de Lobato, abre-se um inquérito acusando-o de tentar desmoralizar o Conselho Nacional de Petróleo, e que o leva à prisão. Na verdade, o que motivara a prisão era o fato de que Lobato conseguira furar o cerco montado pelo Departamento de Imprensa e Propaganda e publicar pela BBC de Londres, em diversos idiomas, em 30 de dezembro de 1940, seu artigo-entrevista Inglaterra e Brasil, em que critica o Estado Novo. Após quatro dias na prisão, Lobato é libertado, mas paira sobre ele nova ameaça e, em 18 de março de 1941, é decretada sua prisão preventiva. O julgamento acontece em 8 de abril e Lobato é absolvido. Mas a primeira sentença é reformada por um outro julgamento em que é considerado culpado. Era a consequência de carta irônica enviada ao general Horta Barbosa, presidente do Conselho Nacional do Petróleo, agradecendo a temporada na prisão. O resultado do segundo julgamento coloca-o novamente em evidência, assim como o tema do petróleo. Condenado a seis meses de detenção, seus amigos conseguem que seja concedido o indulto após três meses de prisão. Durante os noventa dias de reclusão trabalha incessantemente na tradução de The arches of the years, de Halliday Sutherland. Enfrenta com humor o cativeiro e desenvolve uma profusa correspondência com os amigos. Entretanto, a perseguição às suas ideias continua, agora voltada para os livros infantis, acusados de gerarem sentimento errôneo em relação ao governo do país, serem subversivos, predisporem a doutrinas perigosas e a práticas deformadoras do caráter. Assim, é determinada a busca e apreensão dos volumes da obra infantil de Lobato.

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Memória

O Estado Novo, com sua censura à manifestação de ideias próprias, provoca em Lobato desilusão e ceticismo. É o período em que liquida suas empresas de prospecção de petróleo. Dedica-se então às traduções e à literatura infantil. Associa-se à Editora Brasiliense e trabalha na edição das suas Obras completas, para adultos e crianças, que serão publicadas a partir de 1945. Com a queda de Vargas e o fim do Estado Novo, o país é varrido pelos ares da democratização. Lobato é convidado para compor a chapa do Partido Comunista. Recusa o convite, mas no comício do Pacaembu, que reúne 130 mil pessoas, elogia Prestes, numa gravação feita para a ocasião, pois se encontrava enfermo, internado para a retirada de um quisto no pulmão. Em 1946 passa o ano na Argentina, onde trabalha na tradução e publicação de sua obra infantil. Quando volta ao Brasil, em 1947, encontra o país em crise. O Partido Comunista teve seu registro cassado pelo Tribunal Superior Eleitoral e a Confederação dos Trabalhadores do Brasil foi fechada pelo Ministério do Trabalho. Lobato não se furta a manifestar sua insatisfação com o governo de Dutra, e num comício de protesto lê a Parábola do Rei Vesgo, em que ironiza as restrições à liberdade e as afrontas à democracia. Reformulando mais uma vez sua posição em relação ao homem do campo, Lobato focaliza premonitoriamente a figura do sem-terra numa pequena história – Zé Brasil. O folheto de 24 páginas, apreendido pela polícia, circula intensamente pela sociedade em sucessivas impressões clandestinas e é reeditado em 1948 com ilustrações de Portinari. Nesse texto, Lobato explica a reforma agrária e elogia abertamente as ideias e a atuação de Prestes: “– Não é assim, Zé. Apareceu um homem que pensa em você, que por causa de você já foi condenado pela lei desses ricos que mandam em tudo – e passou nove anos num cárcere. – Quem é esse homem? – Luís Carlos Prestes... – Já ouvi falar. Diz que é um tal comunista que quer desgraçar o mundo, acabar com tudo... – Quer acabar com a injustiça do mundo. Quer que em vez de um Tatuíra, dono de milhares de milhares de alqueires de terra e vivendo à custa dos que trabalham, homem prepotente que faz o que fez a você... – Que toca a gente...

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– Que toca, que manda prender e meter o chanfalho em quem resmunga, haja centenas de donos de sítios dentro de cada fazenda, vivendo sem medo de nada, na maior abundância e segurança. – Que beleza se fosse assim! – E por que não há de ser assim? Basta que vocês queiram. Se todos que sofrem essa injustiça da falta de terras próprias num país tão grande como este, se reunirem em redor de Prestes, a situação acabará mudando completamente. O Brasil tem 5 habitantes para cada quilômetro quadrado... – Quanto é isso em alqueires? – Um quilômetro quadrado é um pouco mais de 40 alqueires. Ora, havendo cinco habitantes para cada quilômetro quadrado, cada habitante pode ter um sítio de oito alqueires, homem, mulher ou criança. Quer dizer que terra é o que não falta. Falta uma boa distribuição das terras, de modo que se acabe com isso de uns terem tudo e a grande maioria não ter nada.”2 Mesmo enfraquecido, debilitado e envelhecido, Monteiro Lobato não abandona o sonho de encontrar soluções para o desenvolvimento do Brasil. Aproxima-se das ideias de Henry George, autor de Progress and poverty, de 1879, e publica o texto Georgismo e comunismo – o imposto único, em 1948, em que propõe a taxação da terra improdutiva, como forma de abolir todos os outros impostos e redistribuir a riqueza. Aos 66 anos de idade, sofre sucessivos acidentes vasculares e morre em 4 de julho de 1948. Chega ao fim a vida de um batalhador incansável, que sem participar oficialmente de nenhuma organização ou partido político, atuou em todos os debates de seu tempo: o desenvolvimento econômico, a identidade nacional, o voto secreto, a exploração do ferro e do petróleo, o saneamento básico, a assistência pública à saúde, a desigualdade social, o respeito à democracia, a educação, entre muitos outros. Dotado de incansável iniciativa revolucionou o mundo editorial brasileiro e empreendeu a difusão da ideia de que o Brasil possuía petróleo. No dia 21 de janeiro de 1939, numa localidade ironicamente denominada Lobato, na Bahia, sob a jurisdição do recém-criado Conselho Nacional de Petróleo (CNP), com a perfuração do poço DNPM-163, descobriu-se o petróleo no Brasil.

2 Obras Completas de Monteiro Lobato, v. 15, Conferências, Artigos e Crônicas, Editora Brasiliense, 1959, p. 332 e 333. Lucília Garcez

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IX. ensaio


Autores Marcello Cerqueira

Advogado, ex-deputado federal, escritor, autor de várias obras jurídicas e políticas, além de ficcionais

Diogo Tourino de Sousa

Mestre e doutorando em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro e pesquisador do Centro de Estudos Direito e Sociedade (Cedes/Iuperj)


República: a travessia, as rupturas negociadas e a consolidação democrática1 Marcello Cerqueira

I

nstado a redigir notas sobre os 25 anos do regime democrático vigente em tão duras penas alcançado, procurei uma abordagem que revelasse o fio condutor das transições brasileiras na fase republicana, com ênfase nas rupturas negociadas. Sem esquecer que a Independência brasileira foi também ela resultado de uma ruptura transacionada, prevalecendo a política de emancipação mediante negociação com a Europa, afastada, portanto, qualquer veleidade de uma solução exclusivamente nacional.2 A proclamação da República, como antes o Império, não operou a ruptura da ordem jurídica, foi antes uma espécie de revezamento de elites. Não foi marcada pelas reformas que habitualmente caracterizam as mudanças de regime político. “A República veio, mas não fez as reformas básicas na terra e na educação”.3 A primeira República 1 Publicado agora na íntegra, já que na edição anterior da revista, por erro de montagem, houve um corte em parte do ensaio. 2 Ver: MOTA, Carlos Guilherme. 2. ed. Europeus no Brasil à época da Independência: um estudo. In: 1822, Dimensões. S.l.: Perspectiva, 1986. “A Independência, simples transferência de poderes dentro de uma mesma classe, entregaria a direção da nova ação aos proprietários de terras, de engenhos e aos letrados ”, conf. CUNHA, Pedro Octávio Carneiro da. A fundação de um império liberal. In: História geral da civilização brasileira, sob a direção de Sérgio Buarque de Holanda. 6. ed. São Paulo: Difel, 1985. V. 1: O processo de emancipação, p. 183. 3 Ver: RODRIGUES, José Honório. Conciliação e Reforma no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2 ed., p. 81.

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Ensaio

vai recepcionar mal e mal as estruturas do constitucionalismo americano: o presidencialismo, o federalismo (este menos e cada vez menos) e a independência do Judiciário, este sem as dores de sua afirmação nos Estados Unidos da América do Norte. O esgotamento do modelo agrário-exportador imposto pela hegemonia política da burguesia cafeeira paulista e mineira (esta parcialmente) abre o passo para a Revolução de 30. No quadro econômico apareceriam outros atores. O incremento das atividades industriais, incipiente embora, faz emergir uma burguesia industrial que procura seus próprios caminhos, configura uma visão social própria, e sai em busca de alianças políticas. A classe operária, apesar de não participar organicamente da Revolução, recusa o papel de assistente mudo da cena política. A crise de 1929 a obriga a vir à frente do palco e a lutar por seus empregos e melhores salários. O Partido Comunista Brasileiro dá sentido político às suas reivindicações, embora também não participe diretamente da Revolução de Outubro, reservando-se à crítica do modelo econômico e social do país. Os “tenentes” se agitam, assim a classe média. A democracia política se reduz a um enunciado de teor meramente formal. As contradições que envolvem as forças vitoriosas e o reflexo da crise internacional agravada em 1931 marcam os avanços e recuos da Revolução de Outubro. Contradições que atrasam a constitucionalização do movimento prometida no próprio decreto que instituiu o “Governo Provisório da República”. A Assembleia Constituinte, cujo compromisso foi assumido em 11 de novembro de 1930, só vai ser convocada em 19 de agosto de 1933. Efêmera, a Constituição de 1934 vai viger na ascensão do fascismo no mundo, e encontrará simpatias no centro do poder no Brasil. Entre o malogrado movimento de novembro de 1935 e o golpe do Estado Novo, em novembro de 1937, decorreram dois anos em que o Legislativo foi, pouco a pouco, cedendo docilmente à pressão a todas as medidas que lhe foram pedidas ou impostas.4 O golpe de 1937 vai outorgar a Carta Constitucional, que será conhecida como “Polaca” por sua identificação com a Carta polonesa (1935) do marechal Pilsudski, sofrendo também a influência da Portuguesa de 1933 (de cujo regime, já com Salazar, copiará o nome Estado Novo), da italiana, “Carta del Lavoro”, além da Constituição castilhista de 1891, com seu tempero regional e positivista, tão a gosto do primeiro Vargas. 4 “Breve agitação de espadas na madrugada, algumas tropas na rua, e tudo se consumava.” Este o registro que o notável escritor Marques Rebelo faz do golpe do Estado Novo em O Trapicheiro, primeiro tomo da trilogia “O Espelho Partido”, ciclo de romances em forma de diário, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, 2. ed.

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República: a travessia, as rupturas negociadas e a consolidação democrática

A ruptura, em 1937, dar-se-á naturalmente pela direita, e terá existência meramente nominal. A Carta de 1937 atravessaria os dois momentos que diferenciam o Estado Novo. No primeiro, a ascensão do fascismo e a sua expressão nos atos da ditadura. No segundo, com os rumos da Guerra Mundial, o ditador, já sem condições de aplicar a legislação do arsenal fascista, que a correlação de forças políticas até então indicava e a Carta autorizava, usando a Lei Constitucional n° 9, de 28 de fevereiro de 1945, convoca eleições gerais, que, a seguir, o governo provisório de José Linhares, utilizando ele também a Carta de 1937, interpretará como convocação da Assembleia Nacional Constituinte. A Constituição de 1946 manter-se-á fiel às linhas mestras do liberalismo clássico, o que representou um pequeno avanço relativamente às anteriores de 1891 e 1934, sobretudo se for considerada a profunda mudança verificada no país de 1930 em diante como reflexo da Revolução Industrial e as novas relações de produção capitalistas que produziu. Eleito por uma coligação apoiada no prestígio de Vargas, o general Dutra exerceu seu governo por meio de uma política repressiva e antinacional. O consulado militar de Dutra chegou a seu termo sem condições sequer de influir na escolha do seu sucessor, o segundo Vargas. O rumo nacionalista que Vargas imprimiu ao seu segundo governo,5 especialmente com a criação da Petrobras e do monopólio estatal do petróleo, além dos episódios políticos decorrentes do atentado a Carlos Lacerda, levaram água aos moinhos da direita e culminaram com o suicídio do presidente da República, praticamente já deposto. Enquanto a Constituição francesa de 1946 iria caminhar para a novidade gaullista e a Lei Fundamental de Bonn chegaria a alcançar o que parecia mera utopia irredentista, a nossa de 1946, em que os legisladores constituintes foram os leais intérpretes do poder revitalizado, mas derivado do autoritarismo, tropeçando nas próprias vicissitudes, acabaria por morrer de morte matada pelo Ato Institucional do golpe militar de 1964. O suicídio do segundo Vargas adiara o golpe de Estado das mesmas forças que tentaram impedir a posse do vice-presidente João Goulart6 após o episódio da simulada renúncia de Jânio Quadros que, então, reorganizadas, urdiram o golpe de Estado que levou Jan5 Governo de ruptura. 6 Já o mundo vivia a Guerra Fria, iniciada quando os EUA lançam bombas atômicas sobre um Japão derrotado e prestes a capitular. Marcello Cerqueira

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go à renúncia. Digo renúncia porque Jango preferiu asilar-se a lançar o país em uma guerra civil em que a ação das forças militares norte-americanas da Frota do Caribe, apoiadas pelo porta-aviões da classe Forrestal, invadiriam o país na chamada operação Brother Sam, como hoje ninguém ignora.7 A partir do Golpe de Estado de 1964 (nova ruptura pela direita) inicia-se a noite de horrores, que terá seu termo em 1985. São tantos os acontecimentos desse longo período autoritário que não cabem – mesmo em apertado resumo – no espaço destas notas. Destaco apenas alguns. A divisão no governo Jango das forças populares iria se projetar nas diferentes formas de resistência à ditadura civil e militar. Faço especial referência à tentativa de organizar as oposições em torno da Frente Ampla, que reuniria os ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart, além do governador Carlos Lacerda, um dos líderes civis do golpe de Estado, mas já desavindo com sua grei. A Frente Ampla (1966/1967) pleiteava politicamente eleições diretas e economicamente uma política desenvolvimentista. Inicialmente foi apoiada por setores avançados do MDB, que adiante recuariam por entenderem que ela visava a beneficiar eleitoralmente a Lacerda, já que os ex-presidentes estavam cassados. O PCB dividiu-se entre os que apoiavam o movimento e os que avaliavam, como a maioria do MDB, que a Frente beneficiava apenas a Lacerda. O regime militar reagiu proibindo o movimento e naturalmente mandando prender os desobedientes e na sequência cassaria Carlos Lacerda. O registro é feito não apenas por ter sido o primeiro movimento de articulação de diferentes correntes políticas contra o regime, mas porque nele se projetavam setores que já vinham se desentendendo mesmo antes do Golpe. Adiante, tais setores desavindos com o processo de resistência democrática que se prenunciava longo, radicalizaram e de alguma forma contribuíram para os Anos de Chumbo.8 A primeira inflexão do 7 Ver: Quarenta anos este ano. Publicado em Política Democrática. Fundação Astrojildo Pereira, Brasília, dezembro de 2004, p. 61-67. 8 “Ao fechar os canais elementares de participação política, generalizar a violência contra a população, perseguir cruelmente os que se opunham ao governo, a ditadura compeliu os vitimizados a adotar uma ação política que, na origem, não cogitavam. A ilegitimidade do regime e sua ação violenta é que geraram uma contraviolência inaceitável, mas perfeitamente compreensível. A responsabilidade moral e política pela resistência armada, forma então equivocada de luta, é dos que romperam a legalidade democrática em 1964, e marcharam, de rota batida, para a mais terrível repressão de nossa história, desde os capitães do mato. Ver CERQUEIRA, Marcello. Cartas Constitucionais, Império, República e Autoritarismo: ensaio, crítica e

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regime vai se dar com a crise econômico-financeira de 1974 e politicamente com o notável avanço do MDB nas eleições desse mesmo ano. Marcou também o recrudescimento da repressão que veio a atingir a estrutura do PCB. A segunda inflexão iria se dar após as eleições de 1978 e já no consulado do general Figueiredo, que se viu compelido a enviar ao Congresso Nacional o anteprojeto de uma limitada anistia, mas fundamental para a abertura, com a libertação dos presos, o retorno dos exilados já não mais cassados. Apesar dos arreganhos dos subúrbios do autoritarismo, a abertura consolidou-se e penso que a anistia é a efetiva clivagem entre o regime de exceção e a conquista das liberdades democráticas, que se aperfeiçoaria com a eleição de Tancredo Neves. A primeira eleição direta resultou no desastrado governo Collor, que renunciou para evitar o impeachment, e, hoje, senador por Alagoas, forma na base política do governo Lula. O interregno de Itamar Franco marcou, para além de uma conduta exemplar, o início da debelada da inflação. Seu ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, perseverou o combate à inflação e produziu um governo modernizante, mas submisso à política do então chamado neoliberalismo, além de pleitear e obter sua recandidatura mesmo contra expressa proibição constitucional, tal como Perón, Menem, Fujimori, Chávez, Uribe entre outros seguidores do golpe do segundo Bonaparte, mas estes sem a presença ostensiva de tropas militares, como em França. Nas eleições de 2002, Lula se compromete, através da sua “Carta aos brasileiros” (e aos estrangeiros), a dar sequência à política neoliberal de seu antecessor e tem sido fiel à promessa que fez. Elege-se, toma posse e governa sem ruptura. Se a pergunta do editor dessa revista é se os 25 anos da eleição do Dr. Tancredo a esta parte são de afirmação democrática, eu diria que sim. O capitalismo brasileiro se consolidou e passou bem no teste da crise mundial de 1988. O presidente Lula alcançou o maior índice de aprovação popular desde que este tipo de pesquisa é aplicado. Os escândalos de corrupção no seu governo, mensalão à frente, não o atingiram e nem as trapalhadas internacionais que praticou no Oriente Médio afetam a sua imagem, reconhecida, e não por poucos, como um estadista do seu tempo e até o credenciam a uma posição de relevo na ONU9. Sem embargo dessas considerações, vale documentação, Ed. Renovar: 1997, p. 163. 9 No meio a tanta euforia, as críticas à condução do seu governo parecem desproposiMarcello Cerqueira

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leitura o notável artigo do cientista político Luiz Werneck Vianna.10 Dele, faço a minha leitura a seguir e em nota pequena observação.11 A formação de uma vontade majoritária no Congresso, na lógica vigente de presidencialismo de coalizão, depende da partilha entre os aliados de posições ministeriais, os partidos políticos no governo passam a viver uma dinâmica que afrouxa suas relações com a sociedade civil, portanto, distantes das demandas que nela se originam e vão depender de seus “benefícios” para sua reprodução nas competições eleitorais e a sua prática vai se limitar a “obedecer” ao presidente da República. A centralização administrativa e a prevalência da União sobre a Federação vai se acentuar nos longos períodos ditatoriais do regime republicano: o de 1937-45 e o de 1964-85. O atual curso da centralização, ao contrário de períodos anteriores, está associado à crescente democratização social e às necessidades de racionalização da administração, movimento que atua de cima para baixo e prescinde da participação dos cidadãos, uma vez que decorre da ação das elites ilustradas. Também aí um presidente da República carismático, acima das classes e dos seus interesses imediatos, cujos antagonismos harmoniza, detendo sobre eles poder de arbitragem, cada vez mais apartidário, único ponto de equilíbrio em um sistema de governo que encontrou sua forma de ser na reunião de contrários, e em que somente ele merece a confiança da população. tadas e mesmo a sua desenvoltura desafiadoramente não republicana na campanha que faz de sua candidata, usando o aparelho de Estado indevidamente, mas sem a presença ostensiva de tropas ilegal e imoralmente, e já mais de uma vez censurada pelo Tribunal Superior. Sobre o particular, releva notar que presidentes extremamente populares como Juscelino Kubitschek e Itamar Franco jamais usaram o aparelho do Estado (obras prontas, projetadas, inacabadas ou prometidas e nem “recursos não contabilizados”) em favor de seus candidatos a presidente da República. 10 O artigo foi publicado no nº 15 da revista Política Democrática (julho de 2006). 11 A questão de fundo é que, tendo abandonado a luta pelo socialismo, o governo e o PT resvalaram de um projeto de classe para um projeto nacional, o qual, apesar das concessões secundárias que possa fazer às classes subalternas e aos segmentos pequenos e médios da burguesia, traduz a consolidação da hegemonia da grande burguesia brasileira sobre o Estado e a sociedade, mesmo que em aliança com a “aristocracia proletária” representada pelo presidente Lula e apoiada em políticas assistencialistas e compensatórias voltadas para o subproletariado rural e urbano. Entretanto, a associação deste quadro novo, tanto em seu conteúdo econômicosocial, quanto em suas alianças de classe e em sua forma político-jurídica, com o “Estado Novo” dos anos 1930, hegemonizado pela burguesia brasileira ou nacional ainda em processo de formação e ascensão, e de inspiração e práticas fascistas, é uma “licença” que o cientista utiliza para sublinhar seu excelente texto.

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Os setores subalternos se transformam em objetos passivos das políticas públicas que incorporam ao governo lideranças de movimentos sociais, longe de suas bases, assim partidos (antes) de esquerda12 e os movimentos sociais institucionalizados, quase todos presentes no governo ou a ele se agregam.13 Como se diz nos morros de minha cidade: “tá tudo dominado!”. Mas, será nesse quadro de responsabilidades acrescidas no qual, salvo melhor juízo, o modelo em curso encontra, embora ainda não pareça, sua curva descendente, é que se deve afirmar uma política autônoma dos governos e de suas alianças e para além dela surgir, renovadas, forças que impulsionaram ao longo da República, com revezes e erros naturalmente, as lutas democráticas e verdadeiramente populares. Agora mesmo, para os estados do Rio e do Espírito Santo, o governo federal demonstra sua política ambígua e de consequências sinistras para os fluminenses e capixabas e que irá alcançar os paulistas.14 E a ninguém escapa que a responsabilidade pela chamada emenda Ibsen Pinheiro foi resultado da posição que assumiram os ministros Dilma Rousseff e Edson Lobão, na indiferença pela supressão dos royalties já devidos àqueles estados-membros, agravados pela curiosa declaração do presidente Lula de que não desejava tal discussão (a dos royalties) no período eleitoral. Ora, se assim não queria, então por que enviou o anteprojeto com o carimbo de urgência-urgentíssima? E mais do que isso: a alguém escapa que sem o apoio, ou pelo menos a leniência do governo, a malsinada emenda teria alcançado o formidável número de votos que colheu (369 a favor contra 72)? Sabem os leitores de alguma votação na Câmara, em todo o período do presidencialismo compromissado do governo Lula, ter o governo perdido alguma votação? De vida atribulada, o deputado autor da emenda, consciente ou inconscientemente não importa, serviu de espoleta para os ministros que referi. É certo que ele tem sua responsabilidade, mas ela não decorre de sua vontade. Antigo parlamentar, sei que as maiorias, inda mais tão expressivas, não se formam à margem do governo-patrão. A questão do marco regulatório do pré-sal envolve interesses estratégicos do país e não pode ser tratado com a leveza que está sendo conduzido. Não pode. Não pode sem antes ser objeto de ampla discussão com toda a sociedade. E o assunto é de tal vulto e de tal al12 Infelizmente, o PT “roubou” a bandeira da ética com o mensalão. 13 Werneck Vianna, cit. 14 O Estado do Rio e municípios produtores perdem não menos de 7,5 bilhões de reais e o Espírito Santo perderia 98% das compensações financeiras que lhes são devidas. Marcello Cerqueira

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cance, que irá romper o dique das forças que o governo ainda represa. Já se teme a “bolha” no mercado de ações e no câmbio, o mercado superaquecido, o déficit fiscal, a ameaça da inflação rondando, além do descaso às condições atuais da infraestrutura, o que compromete a produtividade de toda a economia brasileira. Enfim, os problemas represados com o “assistencialismo” e apesar da enorme capacidade de comunicação do presidente da República, sempre e permanentemente em campanha eleitoral, acabarão por alertar o eleitor de que o modelo populista chegou ao seu termo. Não é verdade que o Senado Federal pode “resolver” a contenda e devolver aos estados produtores o direito às áreas pré-licitadas. Sem o “de acordo” prévio da Câmara dos Deputados, o Senado fará mera figuração. Pela sistemática constitucional, as mensagens do presidente da República são enviadas primeiro para a Câmara dos Deputados, funcionando o Senado da República como Câmara meramente revisora. O anteprojeto porventura alterado pelo Senado pode ser derrubado quando voltar à Câmara que, assim querendo, restabelecerá o seu texto original. Nessa comédia de erros e desacertos, o presidente da República anuncia que vai, como é do seu ofício, mais uma vez arbitrar a contenda. É possível, mas os atores já viram como atua um governo longe da vida real e talvez já sintam a ameaça de uma sucessão presidencial em que se apresente a burocracia mais arrogante. É o que me parece.

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Gildo Marçal e o pensamento brasileiro Diogo Tourino de Sousa

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recente atenção voltada para o estudo do pensamento social brasileiro, por um grupo notadamente heterogêneo de pesquisadores nas ciências sociais, tem procurado mapear a existência de famílias intelectuais ou sequências que estruturam histórica e analiticamente o pensamento político no país, identificando continuidades e descontinuidades possíveis, exercício capaz de incorporar de maneira igualmente esclarecedora a produção intelectual anterior à própria institucionalização acadêmica da disciplina, seja ela ensaísta ou mesmo literária (Botelho, 2007; Brandão, 2007; Weffort, 2006). Curioso notarmos como as ciências sociais se consolidaram de maneira relativamente autônoma no Brasil apenas na segunda metade do século XX, em evidente hipoteca a um trajeto de “disputas” desenhado pelos “clássicos” da disciplina – uma linhagem que se prolonga pelo menos até o século XIX –, precisamente o que não impede que os estudos sobre sua constituição e desenvolvimento identifiquem estruturas intelectuais e categorias teóricas – com base nas quais a realidade é percebida –, cristalizadas ao longo da nossa formação, recurso fecundo no próprio exame do conteúdo substantivo de suas formulações e na defesa de modelos normativos para a “correção” presente da democracia brasileira e suas correlatas instituições. Certamente a capacidade de produção da “boa teoria” pela ciência política no país vem, cada vez mais, sendo questionada por sua crescente capitulação diante do objeto de pesquisa, o que impede a construção de explicações que deem conta da totalidade do fenômeno político, suas relações sociais e recortes históricos possíveis, com evidentes aportes normativos: a negação da validade interpretativa do ensaio, o “culto” ao método, o avanço dos estudos institucionais descolados da dimensão sociohistórica, o abandono da atividade negadora e imaginativa própria do pensamento filosófico, todos esses fatores prejudiciais à possibilidade de encontrarmos respostas para os “novos” e “velhos” problemas da sociedade brasileira, aprisionando o pensamento em barreiras disciplinares que 179


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obscurecem o movimento da sociedade no seu conjunto, tornando infecunda a atividade de reflexão teórica nacional (Brandão, 2007; Lessa, 2003). Todavia, o esclarecimento das nossas lutas do passado por meio de um inventário do debate intelectual durante o Império, inaugurado inequivocamente pela Assembleia Constituinte de 1823 e sua discussão sobre as “modernas” instituições políticas a serem implantadas no país, até a primeira metade do século XX, embate protagonizado muitas vezes por atores políticos que eram, ao mesmo tempo, autores da política, expõe mais o confronto entre visões de mundo radicalmente antagônicas do que meramente a adoção de estratégias distintas ante os problemas enfrentados nos contextos específicos – seguramente ponto não pacífico nas interpretações em curso (Ferreira, 1999; Santos, 1978) –, o que nos permite enxergar o trajeto próprio que forma e conforma de maneira inventiva a reflexão nacional como possível instrumento na reconstrução dessa astúcia teórica perdida. Fato é que a imaginação aqui em movimento se propunha algo além da simples constatação da “falta”, buscando, efetivamente, atingir uma imagem forjada de “boa sociedade” ao inventar o país por meio de referenciais teóricos apropriados para a interpelação do existente, como percebermos na conhecida descrição de Euclides da Cunha sobre a singularidade de um mundo que encontrou na teoria política o lugar da sua nacionalidade, sendo empurrado em ritmo acelerado para a “civilização” por meio da ação incisiva de sua intelectualidade criadora e por um Estado confessadamente demiurgo: não éramos inautênticos, mas sim singulares, e dessa conclusão derivariam nossas instituições políticas (Cunha, 1909). Resta apenas percebermos como os problemas apontados nesse processo continuaram auxiliando a compreensão subsequente, servindo inclusive de fonte para as ciências sociais institucionalizadas, o que conferiu um importante papel para os seus “clássicos” enquanto pressupostos necessários para a formulação de estratégias de intervenção presente, sem deslegitimar o percurso único pelo qual a imaginação nacional passou em prol de modelos “arbitrariamente” reproduzidos, polêmica ilustrada no debate entre Florestan Fernandes e Guerreiro Ramos no início da década de 1960. Precisamente aqui se inscreve a exemplaridade de Linhagens do pensamento político brasileiro, recente trabalho de Gildo Marçal Brandão (2007), momento inescapável à qualquer aproximação justa do pensamento político que aqui se deu.

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Isso porque, a reflexão sobre a permanência de determinados “dissensos” – colocados e recolocados na agenda pública em diferentes contextos da história do país –, e suas visões de mundo correspondentes manifestas na prática de atores políticos efetivos, ao mesmo tempo em que expostas por autores criativos – ambos, quando não em simbiose, empenhados na “solução” dos problemas e concretização de um projeto particular de Brasil –, nos mostra, sobretudo, como o imaginário nacional incorporou ao seu arsenal interpretativo o que havia de mais aprimorado no pensamento político ocidental, interpelando a realidade imediata a partir de experiências refletidas e manipuladas dentro de uma tradição intelectual mais vasta, momento em que ensinamentos extraídos da literatura estrangeira estariam a serviço da justificação de afirmações sobre nossa (má) formação e correlata necessidade de (novos) arranjos institucionais adaptados ao “descompasso” brasileiro, índice da maturidade da reflexão nacional (Werneck Vianna, 2004). Trata-se, dentro da proposta desenvolvida em Linhagens, de percebermos no olhar retrospectivo sobre a “teoria social” produzida no Brasil, e ao mesmo tempo produtora de “um” Brasil, nos dois últimos séculos como, inequivocamente, o pensamento nacional foi capaz de incorporar elementos “sofisticados” da tradição teórica ocidental, comprando o debate acerca da democracia liberal e seus reflexos institucionais para a realidade do país, como no exemplo da disputa entre centralização e descentralização da organização política e administrativa, “dissenso” que ocupou o centro da agenda pública durante os principais momentos de formulação e reformulação das instituições no Império – a Assembleia Constituinte de 1823, a elaboração do Código de Processo e do Ato Adicional de 1834, no imediato Regresso Conservador –, assim como na construção da República em 1889 e sua primeira Constituição de 1891, sempre tentativas “revolucionárias” de acertar nosso passo com o moderno (Carvalho, 1999). Com efeito, a distinção entre cidadãos ativos e passivos, presente na Constituição Francesa de 1791, e seus desdobramentos normativos diante das possibilidades e cobranças colocadas pelo movimento revolucionário francês para o mundo moderno – a imposição de novos imperativos morais, liberdade, igualdade e fraternidade, compondo o passaporte inescapável para a “civilização” –, reverberou com vigor no pensamento da elite política nacional – sem dúvida um segmento pouco representativo na sociedade brasileira como um

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todo1 –, ainda que sua efetivação esbarrasse em obstáculos outros àqueles existentes no mundo europeu. Nesse sentido, Brandão nos mostra, por meio da incorporação dos “tipos” idealista orgânico e idealista constitucional, como tais ideias decantaram em prismas muito desiguais, cobrando adaptações por vezes inventivas que teriam, em anos recentes, se perdido na ciência política brasileira (Brandão, 2007). A assimilação, ainda que instrumental, de momentos significativos do pensamento político ocidental perpassou a tensão entre correntes opostas sobre a relação entre federalismo e centralização, liberdade e despotismo, “civilização” e “barbárie”, ocasionando um rico, e talvez inconcluso, debate em solo nacional sobre o sentido e a direção da institucionalidade democrática. Polêmica essa que envolveu uma discussão sobre a estrutura do Estado e sua influência na sociedade, fazendo com que o imaginário nacional repensasse o andamento “moderno” do país, suas particularidades e as vicissitudes dos modelos políticos importados em função, sobretudo, da precedência da Sociologia sobre a Política, ou vice-versa, para o nosso encaixe nesse campo semântico específico (Werneck Vianna, 2004). Dessa forma, o ferramental analítico desenvolvido pela pesquisa “genética” acerca do pensamento social e político brasileiro apresentado por Brandão em Linhagens nos permite a elaboração de algumas hipóteses de investigação capazes de jogar luz na relação entre a “constelação de ideias” que povoou o imaginário nacional passado, que ainda habita os exercícios interpretativos do presente, e seus problemas históricos específicos, seguramente evitando o erro de reduzir completamente as ideias ao seu contexto. Esse esclarecimento produz linhas de interpretação determinadas, a saber, a existência de aproximações e distanciamentos entre argumentos polares sobre o papel do Estado no funcionamento da democracia, e na própria feição da democracia a ser aqui sustentada – uma discordância recorrente em relação aos pressupostos individualistas que acompa1 O importante papel da elite política imperial na construção do Brasil independente, bem como a relação entre o êxito da revolução burguesa e a representatividade dessa elite, constitui um dos alicerces do argumento sobre a presença de um padrão de continuidade nos temas que habitaram reflexão política nacional. A descrição da composição social e econômica dessa elite e de suas transformações ao longo do Império demonstra, sem dúvida, particularidades que não podem ser ignoradas, principalmente com relação ao progressivo declínio de sua homogeneidade ideológica e de treinamento, fator central na sustentação do sistema político brasileiro no século XIX (Carvalho, 2006). Todavia, o elemento “esotérico” dessa intelectualidade, ponto de contestações sobre seu real alcance, pode ser diluído na aberta importância que suas formulações tiveram na construção do Estado nacional e subsequente imaginação da nação.

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nhavam a democracia liberal –, argumentos tributários de momentos mais amplos da teoria política no Ocidente. Por um lado, podemos identificar no liberalismo atual uma continuidade entre autores – como Tavares Bastos, Raymundo Faoro e Simon Schwarzman2 –, que mesmo guardadas as suas especificidades teóricas e contextuais, coincidem no diagnóstico comum sobre os problemas do país e sua solução possível, compondo um programa de pesquisa amplamente conhecido na defesa da democracia liberal e adoção de práticas próximas ao liberalismo econômico na consolidação do seu “projeto”: a “proposta de (des)construção de um Estado que rompa com sua tradição ‘ibérica’ e imponha o predomínio do mercado, ou da sociedade civil, e dos mecanismos de representação sobre os de cooptação, populismo e ‘delegação’” (Brandão, 2007, p. 33-4). Por outro lado, encontramos argumentos contrários ao programa liberal acima mencionado, também inseridos numa corrente de ideias de longa duração na história brasileira, defendidos por autores dispersos em nossa formação e com graus significativos de influência sobre a dimensão estatal – como Visconde do Uruguai, Alberto Torres, Oliveira Vianna e Francisco Campos –, que compactuam de um programa de pesquisa comumente denominado conservador, franco em atribuir um papel distinto ao Estado no desenvolvimento da política brasileira, conferindo predominância à autoridade sobre a liberdade: a partir da imagem de um Brasil fragmentado, povoado por indivíduos atomizados, amorfo e inorgânico, o diagnóstico encontra uma sociedade desprovida de solidariedade que depende do Estado para manter-se unida. Nesse contexto, a liberdade não sobreviveria sem um Estado forte e tecnicamente qualificado, soberano ao localismo das “facções”, capaz de subordinar o interesse privado ao nacional, controlando os efeitos perniciosos do individualismo possessivo, próprios do funcionamento do mercado, ao adaptar a democracia ao contexto local (Brandão, 2007). Fato é que transcorridos quase duzentos anos da “solução da independência”, ponto de partida para o debate em questão ao colocar a realidade do país e suas instituições imaginadas “fora do lugar” (Schwarz, 1977), podemos identificar aqui, sem dúvida, um dos êxitos de Linhagens do pensamento político brasileiro, o uso de uma terminologia comum a uma tradição teórica mais vasta, incorporada de maneira não ortodoxa pela elite política nacional na descrição da 2 Conforme Brandão são significativos os trabalhos de Carvalho (1999), Mercadante (1972), Santos (1978) e Werneck Vianna (2004), para mencionar apenas alguns exemplos, no sentido de reconhecer a existência de tais linhagens intelectuais associadas a um programa liberal ou conservador de pesquisa. Diogo Tourino de Sousa

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formação “particular” do povo brasileiro e na proposição de modelos normativos “adequados” ao contexto local. Através deles, a questão de ser a democracia liberal e seus mecanismos um artefato “exótico”, ou o caminho mais próximo para a instauração do modelo de sociabilidade anglo-saxônico tão admirado pelos intérpretes liberais3 salta aos nossos olhos como o epicentro da polêmica que ocupou a intelectualidade nacional, particular por sua constante vocação pública, tanto no trato como na escolha dos temas. Tal particularidade sobressai no exame dos temas que ocuparam a inteligência nacional, conformada segundo a íntima proximidade estabelecida com o público e as discussões acerca do interesse comum. Mesmo tendo que se adaptar a diferentes soluções institucionais ao longo da trajetória de modernização do país – como as academias e as universidades –, a organização da atividade intelectual no Brasil demonstrou um interessante padrão de continuidade:4 ao passo em que a monarquia brasileira a adotou como parte constitutiva do seu poder, conferindo-lhe uma evidente dimensão pública e destaque para os “temas da política, da institucionalização dos mecanismos de poder e de ordenação do mundo público”, a república voltouse “para a sociedade, para as relações mediadas pelo mercado e para os padrões de diferenciação social que operam na estrutura da ordem moderna”, sem, no entanto, extrair “a experiência dos publicistas, [...] cuja autonomia derivava de sua peculiar inscrição social, 3 A adesão de um determinado conjunto de autores, frequentemente agrupados sob o rótulo de liberais, ao modelo anglo-saxônico de sociabilidade pode, com efeito, esconder nuances na sua classificação ao longo do período histórico trabalhado, sem dúvida objeto de polêmica entre alguns intérpretes. Trata-se da possibilidade de matizarmos a dicotomia liberais/conservadores por meio de rótulos como conservadores liberais, liberais moderados ou ortodoxos, ou ainda autoritários instrumentais, encontrada em importantes estudos sobre o pensamento social e político no país (Carvalho, 2006; Santos, 1978; Werneck Vianna, 2004). Tal menção se justifica pela suposição nada pacífica de que liberais e conservadores discordariam apenas em relação aos meios com vistas à implantação do modelo anglo-saxão entre nós, finalidade essa que seria amplamente aceita por ambos, restando apenas a controvérsia sobre atingirmos a matriz por ela própria ou pela via autoritária. Contudo, a existência de visões de mundo inconciliáveis, contrapondo autores como Tavares Bastos e Oliveira Vianna, por exemplo, pode, segundo Brandão, ser tomada como ponto de partida para identificarmos a não aceitação geral da individualidade espontânea associada ao mercado (Brandão, 2007). 4 Maria Alice Rezende de Carvalho trata dos temas sobre a organização dos intelectuais no Brasil identificando três eras organizacionais distintas: além das academias e universidades, a autora inclui as organizações não governamentais como mostra da tentativa contemporânea da inteligência nacional de se adaptar às exigências da nova ordem globalizada. Com isso, a autora defende a tese da permanência da vocação pública na atividade intelectual no país até os anos recentes, manifesta nas mutações organizacionais apontadas (Carvalho, 2007).

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como membros de uma elite sem amarras no mundo mercantil [...] portadores de uma representação do país fortemente encapsulada por categorias e esquemas mentais do período anterior” (Carvalho, 2007, p. 20-1). A permanência dessa vocação, apontada na organização da inteligência brasileira, nos ajuda a compreender igualmente o papel desempenhado pela atividade intelectual nas importantes transformações ocorridas no país: ao abrigar o discurso dos publicistas a organização republicana abriu a possibilidade para que o projeto de 1891 fosse compreendido a partir da perda da “grande obra do Estado centralizador” – como na mencionada formulação de Oliveira Vianna sobre os idealistas constitucionais (1920), recuperada por Brandão –, gerando uma crescente hostilidade dos intelectuais em relação aos direitos individuais e promovendo, por fim, a defesa de um Estado intervencionista que se consolidaria em 1930 – ou efetivamente apenas em 1937, segundo a interpretação associadas à modernização conservadora (Werneck Vianna, 2004) –, subordinando os interesses individuais a uma “razão nacional”, o que nos permite dizer que “o Estado Novo recuperou a política imperial de fazer da cultura um assunto de interesse público e [...] conferiu à [sociologia] papel destacado na construção de consenso em torno dos objetivos da modernização” (Carvalho, 2007, p. 25). As muitas marcações observadas na história do país sugerem, com efeito, a possibilidade de compreendermos nossa formação a partir do embate entre projetos políticos antagônicos, classificados em Linhagens como “famílias” liberais ou conservadoras a partir da discussão sobre os modos particulares de consolidação da América entre nós, tendo a institucionalidade democrática e os padrões de sociabilidade anglo-saxônicos como pontos de disputa. Seguramente, aqui se fez algo além da simples constatação da “falta”, mostrando uma inteligência capaz de articular com ardil conceitos e experiências de acordo com necessidades singulares, projeto exemplar de uma intelectualidade que nunca se eximiu do debate público e que obteve, com graus variados de sucesso, influência nas transformações observadas no cenário político brasileiro (Brandão, 2007). Contudo, aquilo que ficou conhecido como via americana, em oposição a uma suposta tradição ibérica – salvo reconhecidas nuances interpretativas –, de implantação do liberalismo entre nós foi incapaz, ponto fraco de suas formulações, de tocar no efetivo enigma da situação social do Brasil: o problema da terra e a existência de um vasto domínio marcado por laços de dependência pessoal, contexto em que a inescapável condição da cidadania civil para a consolidação Diogo Tourino de Sousa

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da democracia – passando inclusive pela universalização do sufrágio e autonomização dos interesses – seria inatingível (Werneck Vianna, 2004). De liberais conservadores a autoritários instrumentais, os modelos políticos que se sucederam não se propuseram a alterar essa condição fundamental para que o liberalismo entre nós fosse além do “idealismo utópico” descrito por Oliveira Vianna no início do século XX em aberta insatisfação com a primeira constituição republicana (Brandão, 2007). Ainda assim, mostrar, por meio do mapeamento de linhagens no pensamento político nacional como se estruturou uma “crítica” à democracia liberal no imaginário do país nos dois últimos séculos – especialmente dura no seio do pensamento conservador, mas não circunscrita exclusivamente a ele – a partir da descrição da singularidade do caso brasileiro, marcado por uma sociabilidade distante do individualismo anglo-saxônico e não afeita aos valores de mercado, carente ainda de intervenções políticas hábeis em conciliar ideais modernos ao contexto local, classificado amiúde e de maneira equivocada como o atraso, sugere como podemos recuperar na ciência política o exercício de produção da “boa teoria” talvez perdido em tempos recentes (Brandão, 2007). A construção de Oliveira Vianna na tentativa de reconciliar o Brasil real com o Brasil legal pode ser tomada como um paradigma desse movimento esquecido na reflexão nacional, o que manifesta a intenção modernizadora de nossa investida intelectual (Werneck Vianna, 2004). O trabalho de Gildo Marçal Brandão vem, sem dúvida, cumprir a tarefa exemplar de reconstruir heuristicamente os passos do pensamento político no Brasil, permitindo que com isso recuperemos a tradição imaginativa que aqui se desenrolou, comprometida com o debate público e a construção da nação, evitando, ainda, a sedução pelo processo de produção teórica arbitrariamente “importado” que negligencia as particularidades do nosso mundo, em seus aspectos positivos e, por que não, negativos, capitulando em tempos recentes diante da “ilusão” do método.

Referências bibliográficas BOTELHO, André. Sequências de uma sociologia política brasileira. Dados – Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, v. 50, n. 1, p. 49-82. 2007. BRANDÃO, Gildo Marçal. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores. 2007. 186

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Gildo Marçal e opensamento brasileiro

CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2007, 3.ed. ______. Teatro de sombras: a política imperial. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. [s/d] ______. Pontos e bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: Ed. UFMG. 1999. CARVALHO, Maria Alice Rezende de. Temas sobre a organização dos intelectuais. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, v. 22, n. 65, p. 17-31. 2007. CUNHA, Euclides da. [1909] À margem da história. São Paulo: Martin Claret. 2006. FERREIRA, Gabriela Nunes. Centralização e descentralização no Império: o debate entre Tavares Bastos e visconde de Uruguai. São Paulo: Ed. 34. 1999. LESSA. Renato. Agonia, aposta e ceticismo: ensaios de filosofia política. Belo Horizonte: Ed. UFMG. 2003. MERCADANTE, Paulo. A consciência conservadora no Brasil: contribuição ao estudo da formação brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1972 SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Ordem burguesa e liberalismo político. São Paulo: Livraria Duas Cidades. 1978. SCHWARZ, Roberto. [1977] Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34. 2000. VIANNA, Oliveira. [1920] Populações meridionais do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar. (Coleção Intérpretes do Brasil). 2002. WEFFORT, Francisco. Formação do pensamento político brasileiro: ideias e personagens. São Paulo: Editora Ática. 2006. WERNECK VIANNA, Luiz. A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan. 2004. .

Diogo Tourino de Sousa

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X. nos 120 Anos de Astrojildo Pereira


Autor Sergio Augusto

Jornalista e escritor, cuja carreira começou como crítico de cinema da Tribuna da Imprensa, do Rio, em 1960, tendo trabalhado também nos diários Correio da Manhã e Jornal do Brasil, nas revistas O Cruzeiro, Fatos & Fotos, Veja e IstoÉ e nos semanários O Pasquim, Opinião e Bundas. Foi repórter especial da Folha de S. Paulo, de 1981 a 1996, e, atualmente, escreve no Caderno 2 de O Estado de S. Paulo e na revista Bravo!. É bastante conhecido por seu estilo erudito, sarcástico e nostálgico. Dentre suas obras, destacam-se Botafogo – Entre o Céu e o Inferno, Cancioneiro Jobim e Este Mundo É um Pandeiro – A Chanchada de Getúlio a JK


Olá!, prazer, adeus Sergio Augusto Quando, daqui a sete semanas, fizer setenta anos do assassinato de Trotsky, todos se lembrarão de Stalin e Mercader, quase certamente de Rivera e Frida, quem sabe até de Richard Burton, que encarnou o mais célebre exilado soviético naquele docudrama medíocre de Joseph Losey. Mas quantos irão se lembrar de Saul Bellow? Recém-casado com uma ativista de esquerda, o jovem socialista Bellow agendara uma entrevista com a nêmesis de Stalin, no bunker de Coyoacán, para o dia 20 de agosto de 1940. Por questão de horas não o pegou ainda vivo. Tomado por um jornalista americano, Bellow conseguiu entrar no necrotério da Cidade do México e ver de perto o corpo ensanguentado de Trotsky, recolhido a um caixão. O episódio marcaria para sempre o futuro escritor. “Foi ali que me dei conta de como os déspotas podem o aparentemente impossível e quão frágil também é a vida dos inexpugnáveis”, comentaria, décadas adiante, já bem apartado de suas ilusões juvenis – a bem dizer, nos seus antípodas. Muita gente mais capacitada do que eu já deve ter sonhado escrever algo sobre encontros entre personalidades políticas e artísticas, de preferência surgidos ao acaso ou em circunstâncias adversas, como o de Bellow com Trotsky, particularmente intrigante pela desigualdade de condições: a única celebridade naquele encontro era o defunto; Bellow, que só dali a quatro anos publicaria seu primeiro romance, era então um ilustre desconhecido. Mas o jovem americano ao menos viu Trotsky, que, por motivos óbvios, não pôde notar a presença do admirador. Tinha outra embocadura aquele álbum sobre encontros memoráveis, produzido por Nancy Caldwell Sorel e ilustrado por Edward So191


Nos 120 Anos de Astrojildo Pereira

rel, que a José Olympio traduziu na década passada. Memoráveis, mas nem todos inesperados ou inimagináveis como o de Orson Welles com William Randolph Hearst (num elevador!) e o de Isak Dinesen com Marilyn Monroe (que dançaram juntas no apartamento de Carson McCullers, em cima de uma mesa de mármore preto). Nele não caberia o de Bellow com Trotsky, por exemplo. Em Primeiros Encontros, Trotsky encontra-se com Lenin, em Londres, nos prolegômenos da revolução bolchevique. No meu livro imaginário não poderia faltar o emocionante encontro de Astrojildo Pereira com Machado de Assis, similar ao de Bellow e Trotsky. Nem o de Bernard Shaw com Rainer Maria Rilke (no estúdio de Rodin, para quem, na época, o poeta checo trabalhava como secretário). Nem o de James Joyce com seu aluno Italo Svevo, em Trieste. Nem o do maestro Leopold Stokowski com o virtuoso canadense Glenn Gould, durante uma viagem de trem entre Amsterdam e Viena, em 1957. Nem o de..., bem, estou aberto a contribuições. A maioria das confluências acima mencionadas data do início do século passado. Por ordem cronológica, a precedência é do encontro de Shaw com Rilke. Foi em 1906, quando o irlandês passou duas semanas em Paris, posando para um busto esculpido por Rodin. Pouco conversou com Rilke, cuja obra poética, incipiente ainda, desconhecia por completo. Este, porém, não tirou os olhos do dramaturgo. “Ele se orgulha de seu trabalho, mas sem presunção, um pouco como um cão se orgulha de seu dono”, observou o secretário de Rodin, que, meses depois, trocaria de emprego, mas não de influência. Rodin jamais se ausentou da obra do poeta. Joyce e Svevo conheceram-se em 1909. Svevo, nascido Ettore Schmitz e empresário bem-sucedido, já escrevera dois romances (Una Vita e Senilità) e queria aperfeiçoar seu inglês. Joyce, 27 anos, alguns artigos e três contos publicados e mais nada, vivia de dar aulas a italianos. Encontrou em Svevo mais que um interlocutor, um confidente, e um modelo para Leopold Bloom. A amizade só terminou em 1928, quando o italiano morreu num acidente de carro, aos 66 anos. Foi graças a Joyce que A Consciência de Zeno, a magnum opus de Svevo, ganhou tradução em francês, em 1925, seu passaporte para a consagração mundial. Meses antes da troca de “piaceres” entre Joyce e Svevo, mais precisamente em 28 de setembro de 1908, um rapazola de 18 anos atravessou de barca a baía de Guanabara com a firme determinação de visitar Machado de Assis em seu leito de morte. Tenso, o futuro líder comunista e crítico literário Astrojildo Pereira bateu à porta do casa192

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Olá!, prazer, adeus

rão do Cosme Velho, identificou-se apenas como “um grande admirador do escritor” e pediu para vê-lo de perto. Contra a vontade dos amigos (Euclides da Cunha, Coelho Neto, José Verissimo, Raimundo Corrêa, Graça Aranha, Rodrigo Otávio), que o velavam na sala de estar, Machado permitiu que Astrojildo entrasse em seu quarto e, ajoelhado ao lado da cama, lhe beijasse a mão. Anônimo como entrara, o rapaz se foi. Machado morreria na madrugada seguinte. Bela história, sobremodo enriquecida pelo mistério em torno da identidade do inopinado visitante, que só seria revelada 28 anos mais tarde. Euclides comoveu-se tanto com sua aparição que, no artigo que publicou no Jornal do Commercio, dois dias depois – da morte de Machado, escreveu: “Naquele meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis, aquele menino foi o maior homem de sua terra”. Arriscando, em seguida, um vaticínio (“Qualquer que seja o destino desta criança, ela nunca mais subirá tanto na vida”), afinal desmentido pelos fatos, mas não, provavelmente, pelo próprio Astrojildo, que amava Machado acima de todos e de tudo. (O Estado de S. Paulo/Caderno Sabático, 10/07/2010)

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XI. o autor e alguns poemas inĂŠditos: Ferreira Gullar

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A

tendendo a um pedido dos editores desta revista, o poeta Ferreira Gullar escolheu pessoalmente três poesias inéditas suas, que aqui publicamos para homenagear o agraciado com o Prêmio Camões de 2010 pelo conjunto de sua obra e pela excelência de sua produção. Como se sabe, no final do mês de maio, em anúncio feito pela ministra da Cultura de Portugal, Gabriela Canavilhas, o intelectual maranhense recebeu esta láurea instituída em 1988, e que é atribuída ao autor que contribua para o enriquecimento do patrimônio literário e cultural da língua portuguesa, sendo considerado o mais importante prêmio literário de nosso idioma.

Nascido José Ribamar Ferreira, em 10 de setembro de 1930, em São Luís, Maranhão, Ferreira Gullar inscreve nacionalmente seu nome na literatura em 1950, quando vence um concurso no Jornal de Letras, do Rio de Janeiro, com o poema O galo. Mesmo ano em que é demitido de seu trabalho de locutor de uma rádio por se recusar a ler uma nota oficial do governo maranhense que acusava os comunistas pela morte de um operário, em um comício. Desde cedo, arte e política entrelaçaram-se em sua vida de uma maneira inequívoca e apaixonada, como demonstra sua vocação para a polêmica e a experimentação da fase concreta, dos anos 1950, e o caráter popular de suas peças e trabalhos no Centro Popular de Cultura da UNE, nos anos 1960. Poeta refinado, crítico de arte conceituado, ensaísta, dramaturgo e artista plástico bissexto é também um cidadão voltado para as questões políticas de seu tempo. Por isso, entregou-se, sem pestanejar, à causa da democracia, quando esta foi violentada pela ditadura militar, em 1964. Assumiu a militância política no PCB e correu todos os riscos decorrentes dessa opção. Preso após a edição do AI-5, exilou-se, em 1971, na URSS, depois em Santiago do Chile, no Peru e em Buenos Aires. Na Argentina, produziu uma das construções poéticas mais relevantes de nossa língua, o “Poema Sujo”. Misto de 197


O autor e alguns poemas inéditos: Ferreira Gullar

memórias e reflexão poético-política, o poema teve um forte impacto no mundo literário. Desde seu retorno ao país, em 1977, tornou-se referência na luta pela democracia e um de nossos mais produtivos intelectuais, deixando sua marca em espetáculos para o teatro e para a TV. Comprometido com a luta de seu povo pela conquista da dignidade e por uma vida solidária, dedicou o melhor de suas energias a tal propósito. O significado da obra do poeta Gullar mescla-se à dignidade do cidadão, tornando-o uma singularidade provocadora para nossa consciência democrática. Um dos nomes mais importantes da cultura brasileira contemporânea, além de deixar também uma marca como militante político, integrando o PCB, por várias décadas, ele é, atualmente, membro do Conselho de Redação da Política Democrática e do Conselho Curador da Fundação Astrojildo Pereira, o que para nós é motivo de muito orgulho. Inéditos

Bananas podres 3 era uma tarde quente na quitanda e aquele calor acendia o perfume das bananas apodrecendo fato a que ninguém dava atenção – Um vidro de perfume? Foi mesmo? – O enfermeiro Josias me contou – Então ela era virgem... pro vidro ficar engatado... – Foi atrás, rapaz! disse meu pai às gargalhadas. Tu não estás entendendo! Todos falavam e riam excitadíssimos numa algazarra de pássaros a chilrear. Os olhos de meu pai se encheram de água tanto ele ria. De noitinha, todos se foram, e Newton Ferreira fechou a quitanda com as bananas lá dentro, recendendo. Os seus risos vozes lembro-os sem ouvi-los, mas o perfume daquelas frutas que feito um relâmpago desceu na minha carne e ali ficou, parado, esse de vez em quando volta a esplender

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Olá!, prazer, adeus

Insônia É alta madrugada. A culpa joga dama comigo no entressono. Cismo que ela me engana mas não bispo o seu logro. Ganho? Perco? Blefo? Afinal, qual de nós rouba no jogo?

Falar A poesia é, de fato, o fruto de um silêncio que sou eu, sois vós, por isso tenho que baixar a voz porque, se falo alto, não me escuto. A poesia é, na verdade, uma fala ao revés da fala, como um silêncio que o poeta exuma do pó, a voz que jaz embaixo do falar e no falar se cala. Por isso o poeta tem que falar baixo baixo quase sem fala em suma mesmo que não se ouça.

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FICHA TÉCNICA Corpo do texto: Bookman Old Style (10/12, 8) Títulos: Bookman (20/24) Papel: Reciclado 75g/m2 (miolo) Papel off-set 100% reciclado, produzido em escala industrial, a partir de aparas pré e pós-consumo

Distribuição FUNDAÇÃO ASTROJILDO PEREIRA Tel.: (61) 3224-2269 Fax: (61) 3226-9756 contato@fundacaoastrojildo.org.br www.fundacaoastrojildo.org.br


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