N° 29 - Batalhas pela liberdade no Oriente Médio

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Batalhas pela liberdade no Oriente MĂŠdio


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Política Democrática Revista de Política e Cultura www.politicademocratica.com.br

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Ficha catalográfica Política Democrática – Revista de Política e Cultura – Brasília/DF: Fundação Astrojildo Pereira, 2011. No 29, março/2011 200 p. 1. Política. 2. Cultura. I. Fundação Astrojildo Pereira. II. Título. CDU 32.008.1 (05) Os artigos publicados em “Política Democrática” são de responsabilidade dos respectivos autores. Podem ser livremente veiculados desde que identificada a fonte.


Política Democrática Revista de Política e Cultura Fundação Astrojildo Pereira

Batalhas pela liberdade no Oriente Médio

Março/2011


Sobre a capa

A

rquiteto, fotógrafo, pintor, desenhista, escultor, designer de arte – com algumas incursões pela literatura, cinema e teatro. Impossível não pensar naquela bela frase do estupendo Garcia Lorca: “Há coisas encerradas dentro dos muros que, se saíssem de repente para a rua e gritassem, encheriam o mundo”. Ou seja, o paraense Humberto Ferrão Malaquias é uma espécie de homem dos sete instrumentos das artes nacionais. “Mas foi com a prática da Arquitetura que me envolvi definitivamente com as artes plásticas, por intermédio do contato com professores de estética que me estimulavam muito”, garante. Atualmente radicado em Tiradentes, cidade mítica, verdadeiro sinônimo de cultura e bem-estar em Minas Gerais, o artista vai se deixando impregnar aos poucos pela vitalidade das cores locais. Junta, assim, a sua experiência de colorista – e dos bons – aos ares barrocos da velha Minas. Em tempo: Tiradentes é o berço do “herói ensandecido de amor pela liberdade” Joaquim José da Silva Xavier, do pintor Manuel Victor de Jesus, do poeta Basílio da Gama, do músico Manoel Dias de Oliveira, do pesquisador Basílio de Magalhães, do botânico Frei Velloso – e ninguém vive impunemente ali, sobretudo se for artista de talento. O resultado não poderia mesmo ser outro: a obra do artista provoca em cada um de nós um deslumbramento estético. Humberto Malaquias é um desses coloristas que nasceram prontos, dir-se-ia até. Alguns trabalhos e experimentos seus estão na fronteira entre a pintura, o desenho e a fotografia, é certo. Além do que, ele domina completamente a luz como elemento plástico. Não é difícil perceber isso – e nunca é demais lembrar que photus, em grego, significa luz. O artista desenha com a luz, tal qual o grande mestre Henri Cartier-Bresson, uma espécie de geômetra da passagem lenta e inexorável do tempo. O leitor da nossa Política Democrática tem aqui uma pequena mostra do talento deste paraense de Belém, nascido em 1962, e que já expôs em Rio Claro, Limeira, Mococa, São Sebastião, cidades do interior de São Paulo, e, também, no belo Centro Cultural Yves Alves, dirigido pela dinâmica Flavia Frota, em Tiradentes. É o artista ainda quem diz: “Fiz inúmeros cursos ligados à fotografia, no MAM de São Paulo, e recebi todo o apoio da mestre e doutora Simonetta Persichetti. Trabalho com todo tipo de material e suporte. O importante é a criação.” E completa: “O melhor mundo é o dos sonhos. Lá em cima, fora da órbita da Terra. Quando aterrisso lá em cima, sou feliz.” Palavra de artista que se sabe, acima de tudo, um eterno experimentador, um aprendiz de tudo. Contato: humberto_arqdesign@hotmail.com

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Sumário

Apresentação.............................................................................9 Os Editores

I. Batalhas pela liberdade no Oriente Médio Crise do Oriente Médio . ....................................................... 15 Affonso Ouro Preto

A crise no Oriente Médio e seus desafios..................................20 Dina Lida Kinoshita

A revolução árabe e a esquerda latino-americana................... 28 Joaquín Villalobos

Revolta no Oriente Médio e revolução capitalista.....................32 Luiz Carlos Bresser-Pereira

II. Centenário do Dia Internacional da Mulher A mulher pode.........................................................................46 Iáris Ramalho Cortês

Dilma, a pobreza e as mulheres................................................49 Silvia Camurça

III. Observatório As catástrofes e a falência do Poder Local................................53 Anivaldo Miranda

A região serrana à hora da solidariedade..................................59 Stepan Nercessian

Reconstrução é a palavra de ordem na região serrana..............61 Aspásia Camargo

Soluções para enfrentar grandes chuvas, inundações e catástrofes............................................................................65 Nelson L. R. Nucci


IV. Questões do Desenvolvimento Ciência para o Brasil ...............................................................79 Alaor Chaves

Guerra Cambial: uma nova proposta.........................................84 Tony Volpon, José Carneiro da Cunha e Demétrio Carneiro

V. O Social e o Político Quando 2 e 2 são 4..................................................................91 Ferreira Gullar

Sindicato e política no governo Dilma . ...................................93 Luiz Werneck Vianna

VI. Ensaio Marxismo e direitos individuais............................................. 107 Edgard Leite

VII. Batalha das Ideias Humanismo e liberdade em A Montanha Mágica.................... 115 Kaio Felipe

Sociedade, tecnologia da informação e direito....................... 124 Aglais Cristina Gondim Tabosa Freire

VIII. Mundo Chile: construindo uma nova esquerda................................... 137 Fernando de la Cuadra

Nacionalismo e socialismo na Romênia.................................. 145 Catarina Corrêa

IX. Vida Cultural O Carnaval do Povo... Existe!................................................. 153 Luiz Carlos Prestes Filho

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Máscaras .............................................................................. 157 Katia Angeloff

X. Memória Os 100 anos de Nelson Werneck Sodré................................... 163 José Antonio Segatto

Três homenagens................................................................... 169 Ivan Alves Filho

XI. Resenha Lulismo e interpretação do Brasil.......................................... 177 Pedro Luiz Lima

O astro Jildo – livro comemora os 120 anos de nascimento deste célebre brasileiro.......................................................... 183 Otávio Brum

O contratualismo e o Estado Moderno.................................... 188 Dimas Macedo

XII. O autor e um pouco de sua obra Paleta Tonal na Obra de Cecília Meireles . ............................. 193 Vicente de Percia

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Apresentação

A

presente edição tem como tema de capa a revolução democrática que percorre o mundo árabe. É difícil exagerar o alcance das mudanças que esses acontecimentos ao mesmo tempo representam e anunciam. Seja qual for o resultado imediato dos movimentos populares em cada um dos países protagonista; terminem eles com a queda ou permanência dos regimes, com o triunfo dos revoltosos, da repressão ou com acordos em torno de saídas negociadas para a crise, o mundo mudou e não voltará a ser como antes. Regimes autoritários estabelecidos há décadas, preservados na dinâmica da guerra fria, que haviam sobrevivido sem maiores danos a crises anteriores, foram varridos, em alguns casos, e encontram-se sob assalto, em outros, por uma onda de protestos que teve como estopim a autoimolação de um manifestante tunisiano. Protestos inesperados, surpreendentes pela sua magnitude, com características novas: presença da juventude escolarizada, uso das redes sociais na sua organização, reivindicações laicas, de direitos políticos e civis, de um lado; de outro, pequena presença de lideranças e organizações tradicionais, agenda de reivindicações sem menção a palavras de ordem antiamericanas ou consignas fundamentalistas. Ficou claro o papel revolucionário da informação. A maioria dos manifestantes é jovem, foi beneficiada pela expansão recente da educação nesses países e está conectada na internet. O acesso à internet e às redes sociais é fundamental, como assinala a maior parte dos analistas, para a convocação e organização das manifestações. Sua importância maior, porém, está nas origens da motivação dos manifestantes. Informação em tempo real, um público com as condições educacionais mínimas para ter acesso a ela, uma rede física de pon-

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tos de acesso à rede, tudo isso produz mudança de expectativas e com elas novos objetivos e reivindicações políticas. Os fatos não autorizam o retorno a qualquer determinismo tecnológico. A democratização progressiva não é um processo inexorável nas condições do mundo globalizado. É evidente, contudo, que nessas condições é cada vez mais difícil erradicar na população suas demandas democráticas mínimas, por direitos civis e direitos políticos, ou convencê-la a abdicar delas em benefício de regimes cada vez mais carentes de legitimidade. A revolução democrática árabe muda também nossas próprias percepções da dinâmica dos processos de mudança. Atinge particularmente as visões economicistas que tornam a mudança uma variável dependente de processos econômicos de longo prazo, sobre os quais os atores têm consciência parcial e capacidade de influência limitada. Por trás do esgotamento dos regimes autoritários é possível encontrar a crise econômica, o desemprego, a escassez. Mas todos esses fatores só se transformam em combustível da insatisfação e incentivo à mobilização com a difusão da informação, em especial da informação que nega a “naturalidade” e a necessidade dessa situação. Este número oferece quatro artigos sobre a questão. Todos trazem informação relevante e fogem da análise simplista, que se faz presente nessa discussão em duas variantes principais. Na primeira, menos difundida, mas abraçada por expoentes de uma esquerda arcaica, presa às dicotomias da guerra fria, a revolução democrática árabe seria funcional para a estratégia de poder norte-americana e a resistência governista, particularmente no caso líbio, um momento da luta anti-imperialista. Na segunda, com repercussão maior na opinião pública ocidental, os movimentos são avaliados a partir do temor da alternativa fundamentalista. Em consonância com décadas de política externa americana, ditaduras “laicas” seriam preferíveis a regimes religiosos radicais. Não haveria futuro democrático para a região, razão pela qual seria melhor apoiar os governos autoritários de sempre. É claro que uma visão como essa subestima politicamente a população desses países, exige dela concessões que seus defensores não estariam dispostos a fazer e ignora tudo que a experiência histórica democrática nos ensina: só a prática da democracia cria a cultura da democracia. Dina Lina Kinoshita acompanha há anos a política do Oriente Médio e do norte africano. Affonso Ouro Preto acumula uma longa experiência em postos-chave na diplomacia brasileira para a região. Ambos aportam informação sobre os movimentos, sobre os traços 10

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Apresentação

comuns aos diversos países e sobre os pontos de divergência política, social, econômica e cultural entre eles, bem como debatem os possíveis cenários posteriores às mobilizações. Os artigos de Luiz Carlos Bresser-Pereira e Joaquín Villalobos avaliam a situação dos países árabes a partir de premissas diferenciadas. Ambos atribuem centralidade à questão democrática. Bresser-Pereira, contudo, ancorado nos exemplos do passado, lembra que há pré-condições sociais e econômicas para o surgimento de democracias consolidadas. Atores sociais com capacidade de operar sob a regra democrática e de sustentá-la quando necessário, empresários, trabalhadores organizados e camadas médias, prosperam em sociedades que tenham passado por uma revolução capitalista nacional. De forma simplificada: para haver democracia é necessário nação, para existir nação deve haver sociedade complexa, sociedades complexas surgem apenas de revoluções industriais. Nessa linha, a revolta árabe, ao lado de componentes democráticos presentes no discurso dos participantes teria como tarefa histórica primeira a revolução capitalista, a construção da indústria, do desenvolvimento e da nação, premissas de uma ordem democrática estável. A perspectiva de Villalobos é outra. Para ele a dimensão central da revolução árabe é a democracia. A democracia, no seu argumento, é também a dimensão central do desenvolvimento contemporâneo, de maneira que seriam impossíveis hoje, ao contrário do que ocorreu no passado, revoluções capitalistas na ausência de democracia. O mundo é diferente e o caso russo demonstraria a insuficiência da base material, a indústria, para fundamentar revoluções capitalistas e democracias consolidadas. Os Editores

Os Editores

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I. Batalhas pela liberdade no Oriente MĂŠdio


Autores Affonso Ouro Preto

Ex-embaixador do Brasil na República Popular da China (1999-2004), ex-embaixador extraordinário do Brasil para o Oriente Médio (2004-2010) e membro do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional (Gacint) da Universidade de São Paulo

Dina Lida Kinoshita

Professora doutora, membro do Conselho da Cátedra Unesco de Educação para a Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerância, do Instituto de Estudos Avançados da USP, e membro do Amigos Brasileiros do Paz Agora

Joaquín Villalobos

Ex-guerrilheiro salvadorenho, hoje é consultor na área de conflitos internacionais

Luiz Carlos Bresser-Pereira

Professor emérito da FGV/SP. Foi ministro da Ciência e Tecnologia e da Administração Federal e Reforma do Estado, no governo FHC, e ministro da Fazenda no governo Sarney. É autor, entre outras, de Desenvolvimento e crise no Brasil, Editora 34


Crise do Oriente Médio Affonso Ouro Preto Verifica-se uma tempestade no mundo árabe. O vento da rebelião se generaliza. A História já registrou fases ou espasmos de rebelião ou revolução. Foi, por exemplo, o ano de 1848 na Europa, com revoluções na Alemanha, na França, na Áustria, e mesmo no Brasil. Foi o fim do “socialismo real”, a partir de 1989, no Leste europeu. Enfim, o movimento generalizado em favor de regimes democráticos na América Latina. Agora, vemos uma convulsão no mundo árabe A bandeira é a mesma em toda a região: democracia vs regimes autoritários, ali generalizados. Tal movimento colheu o mundo de surpresa. Inclusive, aparentemente, serviços de inteligência, como o da CIA. Tampouco foi previsto por centros de pesquisa, universidades ou ONGs, em diferentes partes do planeta. Julgava-se, talvez com um elemento de islamofobia, que os regimes autoritários caracterizariam os países árabes. Seriam inerentes à cultura e à civilização árabes. A alternativa, pensava-se, seriam regimes islâmicos radicais que patrocinariam a violência e o terrorismo. Os regimes autoritários, até agora vigentes, pareciam preferíveis para muitos observadores. Hoje, para surpresa de todos, as massas árabes – a chamada “rua árabe” – marcham pedindo democracia. Ao que tudo indica, o movimento é laico.

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Batalhas pela liberdade no Oriente Médio

Os movimentos religiosos, como, por exemplo, os Irmãos Muçulmanos do Egito, não patrocinaram nem organizaram tais ações de protesto. Aderiram, simplesmente, a uma rebelião já iniciada. O chamado “protesto da rua árabe” começou na Tunísia, pequeno país de dez milhões de habitantes, continuou no Egito, o maior e mais importante país árabe. Nos dois paises, caíram os regimes, após uma resistência limitada. Hoje, a violência sacode a Líbia, com contornos de verdadeira guerra civil generalizada. A resistência do regime de Muammar Kadafi, aliada à sua recusa de deixar o poder levaram a um verdadeiro banho de sangue. Na sua tentativa de repressão, o regime usa mercenários estrangeiros. Segundo as informações disponíveis, o regime kadafista perdeu o controle sobre vastas áreas do país. A situação na Líbia é seguida, com particular atenção, por toda a opinião pública internacional, ainda que a importância do país seja limitada. Discutem-se medidas contra o regime. Por outro lado, os regimes do Bahrein e do Iêmen parecem ameaçados. As manifestações se estendem ao Marrocos, sem ameaçar a monarquia. Fora do mundo árabe, percebem-se ainda sacudidas no Irã. A situação parece estar sendo seguida, com atenção, também na China. Quais são as causas desse movimento? Como em todos os grandes fenômenos históricos, certamente há várias causas. Causas econômicas. Esses países, no mundo árabe, foram atingidos pela grande crise mundial de 2008. Estão sendo alcançados pela alta generalizada de preços de produtos alimentícios. Registra-se uma falta generalizada de oportunidades e, sobretudo, de emprego, particularmente importante em países com alta natalidade. A crise atinge em particular os jovens, majoritários na população dos respectivos países. Os novos meios de comunicação (internet etc.) acentuam a rapidez dos contatos e tornam difícil o uso de mecanismos de controle ou censura pelos governos. Existem, também, motivos políticos, talvez mais importantes, ainda, do que os econômicos. Todos os paises atingidos pela primavera árabe são dirigidos por regimes autoritários, que se prolongam no poder há dezenas de anos. 16

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Crise do Oriente Médio

No Egito, foram trinta anos do general Hosni Mubarak, que continuou um regime militar inaugurado em 1952. Ou seja, sessenta anos de ditadura. Na Líbia, o coronel Kadafi governa o país, há quarenta anos. As monarquias do Bahrein, do Marrocos e da Jordânia são autoritárias. Tiranias desmoralizadas pela incompetência, pela corrupção e pelo nepotismo. A revolta contra a tirania marca, assim, o fenômeno a que assistimos em toda a região. É preciso lembrar, no entanto, que os países do Oriente Médio e da África do Norte, apesar de uma cultura comum e de um passado histórico que os une, são profundamente diferentes entre si. Mais ainda: o Oriente Médio e a África do Norte representam um conjunto constituído de países que são, simultaneamente, semelhantes e diferentes. Alguns constituem sociedades tribais, às vezes com uma unidade frágil. Outros são Estados antigos consolidados. Alguns países são grandes produtores de petróleo – o maior do mundo se encontra na região. A revolta a que hoje assistimos não levará, assim, necessariamente, às mesmas consequências em todos os lugares. Outro aspecto relevante a considerar é que a região, na sua quase totalidade, foi colonizada pela Grã-Bretanha, pela França e, no caso da Líbia, pela Itália. As independências desses países, historicamente recentes, decorreram de lutas e pressões de partidos nacionalistas. Seus movimentos foram, numa primeira etapa, laicos. A partir dos anos 1980, surgiram os partidos e movimentos religiosos, os quais ameaçaram o poder, mas assumiram controles apenas limitados – em Gaza e em áreas do Líbano, por exemplo. Assistimos, assim, na história da região, a um movimento pendular com pressões laicas por ocasião da Independência, seguidos por uma contestação religiosa e, finalmente, hoje, a um protesto, de novo laico, com uma exigência de democracia. Todavia, salvo exceções pontuais como o Líbano e os Territórios palestinos, em 2005-2006, a região, na sua relativamente breve história de independência, nunca conheceu a democracia. Vale, ainda, a observação de que os movimentos árabes rebeldes a que assistimos não parecem expressar os setores mais pobres das respectivas sociedades, como é visível pelas imagens exibidas pela televisão.

Affonso Ouro Preto

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Batalhas pela liberdade no Oriente Médio

A rebelião ou as rebeliões parecem manifestar a profunda insatisfação da pequena classe média, de funcionários públicos modestos, pequenos comerciantes, comerciários, operários, desempregados e estudantes. Quais serão as consequências dessa grande sacudida para as sociedades do Oriente Médio e da África do Norte? É evidentemente muito cedo para sequer tentar esboçar uma resposta. Se a democracia não existiu nos países árabes, ela se consolida seguindo modelos próprios, em algumas sociedades islâmicas fora desse mundo árabe que formam grandes Estados, como a Turquia e a Indonésia. A Turquia, próxima do Oriente Médio, poderia servir de exemplo. A democracia, contudo, parece difícil em sociedades tribais. A falta de uma verdadeira sociedade civil e a dimensão reduzida das classes médias também dificultarão, pelo menos em muitos paises, a implementação de instituições claramente democráticas. Tudo leva a crer, por outro lado, que os respectivos exércitos continuarão a desempenhar um papel muito importante em cada um desses Estados. Vimos a “rua árabe”, ou seja, o protesto popular, se manifestar de maneira poderosa e, às vezes, decisiva. Ela talvez não chegue a governar, mas existirá a perspectiva de que ela possa se manifestar novamente, o que levará os países da região a agir com prudência, levando em conta a opinião pública. Quem ganhou e quem perdeu? Os governos que ruíram – Egito e Tunísia – eram aliados próximos dos Estados Unidos. A Líbia, do coronel Kadafi, desde 2003, havia conseguido, paradoxalmente, uma reconciliação com os principais países ocidentais. Bahrein, sacudido por grandes manifestações, constitui a maior base naval dos EUA no Golfo Pérsico. O Iêmen, também ameaçado, representa um aliado importante do governo norteamericano na luta contra o movimento terrorista Al Qaeda. Em outras palavras, os principais aliados dos EUA na região ruíram ou foram abalados. É lícito imaginar que a influência estadunidense, na região, será afetada de maneira negativa.

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Crise do Oriente Médio

Por outro lado, provavelmente, a crise repercutirá, também de maneira negativa, para Israel. O isolamento político do país, tudo indica, se acentuará. Não haverá, todavia, perigo de guerra diante da consciência, generalizada, da superioridade militar israelense em toda a região. A comunidade internacional será afetada, enfim, pelas oscilações, já iniciadas, dos preços do petróleo que traduzem o nervosismo dos mercados diante da crise. O Brasil será atingido. Não é possível, evidentemente, apresentar qualquer previsão quanto à evolução desses preços.

Affonso Ouro Preto

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A crise no Oriente Médio e seus desafios Dina Lida Kinoshita

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o fazer um passeio pela História, pode-se verificar que, pelo menos desde a Revolução Francesa, ocorrem vendavais que sacodem o mundo, seguidos por restaurações conservadoras. Portanto há avanços e retrocessos no processo histórico. E estes eventos ocorrem com certa periodicidade. Marx analisou o primeiro deles no 18 Brumário, quando aconteceu a restauração bonapartista. Uns cinquenta anos depois, em 1848, ocorreu a Primavera dos Povos e, paralelamente, com o ascenso das lutas dos trabalhadores ocorreu o Congresso da I Internacional e a publicação do Manifesto Comunista, de Marx e Engels. No início do século XX, no fim da I Guerra Mundial, assistiu-se à derrocada dos impérios Otomano, Áustro-Húngaro, Czarista e à Revolução de Outubro. No pós-II Guerra Mundial ocorreu a descolonização da Ásia e África e o triunfo da Revolução Chinesa. Em 1968, têm início as revoluções das alteridades com a Revolução da Juventude. Entre 1989-1991 assistiu-se ao fim do “socialismo real” na Europa. E agora, o vendaval sacode o mundo árabe. Lembrese que houve tentativas de modernização árabe e muçulmana logo após a derrocada do Império Otomano, seguida de uma restauração. Embora a Revolução de Outubro tivesse consequências mais duradouras e mais profundas, com o seu esgotamento surgiu uma restauração conservadora, caracterizada por um capitalismo selvagem capitaneado por grupos mafiosos. A revolução dos jovens em 68 mudou basicamente os costumes e a moral, embora do ponto de vista político quase não tivesse consequências, ou, quando as houve, muitas vezes foram trágicas. Em particular, no Brasil, protestos e passeatas passaram a fazer parte do cotidiano; após a realização da “Passeata dos 100 Mil”, no Rio de Janeiro, muitos chegaram a pensar que a ditadura estava em seus estertores, mas no fim, em dezembro daquele ano, veio o AI-5.

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A crise no Oriente Médio e seus desafios

Outro exemplo trágico é o do Irã – o mundo progressista saudou com júbilo a queda do Xá da Pérsia e quem assumiu o poder foram os aiatolás, transformando o país em uma teocracia muçulmana. De todo modo, como um rastilho de pólvora, a crise que teve início na Tunísia no começo de 2011 espalhou-se por boa parte do mundo árabe, que é visto no Ocidente como uma região muito homogênea onde todos falam a língua árabe e seguem o Islamismo. E, no mundo ocidental, muitos aplaudem com júbilo os movimentos que clamam por mudanças e mais democracia. Também são tecidas loas às novas tecnologias que, de fato, vêm propiciando de maneira quase instantânea, a mobilização das redes sociais, uma nova maneira de arrebatar, sobretudo, a juventude. Mas estas percepções são insuficientes para uma análise mais séria e serena de um quadro tão complexo. Fazer política só com a emoção pode levar a grandes equívocos. Mas afinal, o que vem a ser esta vasta região? Do ponto de vista étnico Ao revolver as camadas profundas da História da região, observase a existência de uma série de particularidades que diferenciam estes povos, apesar de terem sido submetidos, cada um, à ocupação romana, seguida pelos mouros a partir do século VII d.C., pelo Império Otomano e, finalmente, pelos colonialistas europeus. Seria impossível descrever neste espaço todas as diferenças étnicas, religiosas e linguísticas na região. De todo modo, para exemplificar, como afirma Alon Ben Meir em seu artigo ”Os Dias Gloriosos do Egito”, este “é um país com mais de quatro milênios de História contínua, com uma riqueza cultural insuperável, um berço de civilização que vem iluminando uma geração após a outra”; os tunisianos são descendentes dos cartagineses; parte expressiva das populações argelina, líbia e marroquina é berbere e, não árabe – e foram arabizados, mais ou menos à força, há cerca de cinco décadas por ocasião de suas independências. A Líbia, em particular, é constituída por uma confederação de três regiões, étnica e culturalmente distintas. A língua corrente nestes países é o cabila, embora o idioma oficial seja o árabe. Metade da população jordaniana é constituída de palestinos, descendentes dos antigos filisteus, enquanto os libaneses são descendentes de fenícios e cristãos das Cruzadas. No Iraque, vivem curDina Lida Kinoshita

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dos e árabes. No Bahrein, beduínos são discriminados por serem nômades. Uma ironia da História pois, há poucas décadas, toda a região do Deserto da Arábia era habitada por tribos nômades. Do ponto de vista religioso O mundo muçulmano se divide, principalmente, entre sunitas e xiitas, além da seita alauíta, que tem grande expressão na Síria. Mas, em alguns países, como no Líbano e na Síria, há grupos importantes de cristãos maronitas e ortodoxos, sem esquecer dos coptas, no Egito. Esta mistura de religiões e seitas tem sido explosiva em alguns Estados e já produziu uma guerra civil no Líbano, que até hoje padece de graves instabilidades. Do ponto de vista político Os colonialistas traçaram linhas retas como fronteiras entre estes novos Estados – como nas colônias da África – sem respeitar diferenças étnicas ou religiosas. Isto vem gerando uma série de conflitos internos dentro de países como Iraque e Líbano, e, outros entre os diversos países, a saber: Iraque x Kuweit, Iraque x Irã, Síria x Líbano, Argélia x Marrocos, com a reivindicação por uma pátria independente dos Saharaui, entre outros. A maioria dos países foi conformada no começo do século XX, embora alguns só tenham surgido nos anos 70, como Kuweit e Bahrein, no Golfo Pérsico. Todos, sem exceção, são regidos por governos autoritários, sejam monarquias ou repúblicas formais. Ainda que a região tenha uma grande importância geoestratégica desde a Antiguidade, a partir do começo do século XX, vem adquirindo uma importância ainda maior, devido às enormes reservas petrolíferas e ao Canal de Suez, cruciais para os países industrializados da Europa. Em 1948, a criação do Estado de Israel gerou oposição maciça dos países árabes. Ao mesmo tempo, com o ocaso da influência anglofrancesa, a partir do final dos anos 40, com o início da Guerra Fria, todos os países do Oriente Médio e Norte da África tornaram-se peões das duas grandes superpotências, Estados Unidos e União Soviética. Ambos não se importavam com o tipo de regime vigente no interior desses países e muitas vezes incentivavam o autoritarismo. Caso emblemático é o do Egito, na época de Gamal Abdel Nasser, que foi

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A crise no Oriente Médio e seus desafios

apoiado pela URSS, apesar de ter assassinado barbaramente os comunistas egípcios. Do outro lado, os americanos derrubaram vários governos com projetos nacional-democráticos, na medida em que poderiam criar óbices a seus interesses. E este quadro disseminado do autoritarismo ainda persiste, por mais de duas décadas após o fim da Guerra Fria. Do ponto de vista econômico A maioria dos países tem como fonte de renda, quase exclusiva, a exportação de petróleo. A Tunísia é um destino turístico importante para europeus. O Egito possui uma economia diversificada onde despontam as atividades no Canal de Suez, grandes reservas de gás natural e o turismo. No Oriente Médio, só Israel e Irã investem mais em Ciência e Tecnologia. O Egito tem especialistas de bom nível em engenharia química e em ciências agrícolas. A renda per capita na região varia entre U$ 2,5 mil, no Iêmen, e U$ 34 mil, no Bahrein, com um valor que gira ao redor de U$ 5 mil, na maioria dos países. Mas o que predomina é a miséria das massas, contrastada pelas imensas fortunas das elites que se apropriam da economia petrolífera. Aonde leva a revolta? O propulsor do atual vendaval foi a crise econômica em países com grandes contingentes de população jovem (muitas vezes com formação universitária), sem perspectiva de futuro por falta de empregos, e a alta generalizada dos alimentos. A aspiração por mais liberdade é mais limitada enquanto as sociedades civis são muito débeis. E o conceito de democracia, nesta região, não coincide com os do Ocidente. Ademais, vale lembrar que, ao longo da História, crises econômicas muitas vezes conduziram ao fascismo e não à democracia. Portanto, é primário pensar que – num passe de mágica – os grandes problemas desta vasta região serão resolvidos pela simples queda de ditadores devido a protestos populares dos jovens em praça pública. Na Tunísia, iniciadora deste processo de mudanças, já vem aflorando uma série de dificuldades e dezenas de milhares de pessoas estão abandonando o país, que, por sua vez, está recebendo enormes

Dina Lida Kinoshita

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Batalhas pela liberdade no Oriente Médio

contingentes de fugitivos líbios, vítimas do regime sanguinário de Muamar Kadafi. A região é muito complexa e fazer generalizações é temerário. Analisar cada caso neste espaço é impossível. Tentar-se-á dizer algo a respeito de algumas poucas situações. O Egito é governado pelo Exército, desde a década de 50 do século passado, quando os jovens coronéis derrubaram o rei Farouk. Todos os militares governaram com mão de ferro. Gamal Abdel Nasser, o primeiro deles, em nome do nacionalismo e da utopia pan-árabe, aproximou-se da URSS. Quando Nasser faleceu, quem assumiu o poder foi seu vice, Anuar Sadat, que se reaproximou dos EUA e celebrou a paz com o Estado de Israel. Havia uma forte oposição no Egito a este acordo de paz e, pouco depois, Sadat foi assassinado, sendo sucedido por seu vice, Hosni Mubarak. De forma que o Egito, como os demais países árabes, jamais experimentou uma democracia. E neste preciso momento, após a renúncia de Mubarak, quem conduz a transição é o exército – a instituição mais prestigiada e respeitada pelo povo – que acaba de dissolver o Parlamento e promete elaborar uma nova Constituição, ouvindo todos os atores políticos do país e que será submetida a um referendo. Ao longo dos últimos 35 anos, o Egito – país árabe mais populoso – tornou-se um aliado de confiança dos EUA, que vem injetando somas expressivas em múltiplos investimentos. Como consequência, houve uma modernização do país e do seu exército. O caso do Bahrein é totalmente diferente. O que vem aflorando na mídia é o fato de uma maioria xiita ser governada por uma monarquia sunita e a discriminação sofrida pelos primeiros que reivindicam mais espaços. No entanto, este país minúsculo, com população diminuta, é um centro financeiro e portuário exportador de grande quantidade de petróleo, bem como de pérolas. Além disso, por sua localização na entrada do Golfo Pérsico, o Bahrein adquire enorme importância por abrigar as instalações da base militar da V Frota norte-americana. Os EUA decidiram, no ano passado, ampliar esta base graças às atividades nucleares do Irã. Uma revolta naquele país poderia desestabilizar o esquema de defesa ocidental na região e fortalecer o Irã. O Iêmen localiza-se a sudoeste da Arábia Saudita, defronte ao Chifre da África, no Golfo de Aden, na entrada do Mar Vermelho. Ainda que seja o país mais pobre da região, seu governo é um dos fiéis alia24

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A crise no Oriente Médio e seus desafios

dos dos EUA, que lá também mantêm instalações da V Frota que guarnecem a passagem de navios “amigos” pelo Canal de Suez. Se há semelhanças entre Líbia, Egito e Tunísia quanto à insatisfação dos jovens, por falta de liberdade e perspectiva de futuro, podese observar também grandes diferenças. Enquanto Egito e Tunísia possuem fortes coesões nacionais, talvez a confederação das três regiões líbias ainda não se tenha desmanchado devido a um governo central ditatorial. Aqui não se trata de defender a ditadura de Kadafi, mas de entender a realidade do país. Sob a superfície de um fino verniz de cultura árabe, na profundidade movem-se realidades históricas mais antigas que não se apagam. A parte leste do país – a Cirenaica – foi ocupada pela Grécia antiga e tem grande influência do Egito. É a região das reservas petrolíferas e palco de várias revoltas sufocadas por Muamar Kadafi. A oeste, encontra-se a Tripolitânia (até agora fiel a Kadafi), historicamente ocupada por cartagineses e fenícios, que imprimiram um caráter distinto à população, mais ligada à navegação e ao comércio. E a sudoeste, no deserto do Saara, a região do Fezzan, onde vivem nos oásis, tribos nômades tuaregs, que controlam as rotas comerciais entre o Mediterrâneo e países da África negra, principalmente o Níger. Está ocorrendo uma verdadeira guerra civil, com o ditador bombardeando cidades que estão na mão dos rebeldes. Pode-se esperar uma balcanização do país. Novos contextos globais Há, no entanto, dois fatos visíveis no novo contexto mundial da globalização. O primeiro diz respeito ao processo de esgotamento dos regimes nacionalistas autoritários nos países árabes. O segundo tem a ver com o novo comportamento dos EUA e demais países centrais nesta crise, não só por estarem atolados nas guerras no Iraque e no Afeganistão sem nenhum avanço contra o terrorismo. Pode-se vislumbrar um processo contraditório onde os “falcões” dos países centrais continuam apostando na força enquanto os “pombos” buscam um novo caminho. A África é a última fronteira a ser incorporada ao mundo globalizado. De certa maneira, pode-se esperar um processo semelhante ao que ocorreu no início do século XIX (entre 1812 e 1822) quando a Inglaterra negociou com a Espanha e Portugal a independência da Dina Lida Kinoshita

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América Latina propiciando novos mercados e mão de obra à economia capitalista no tempo da Primeira Revolução Industrial. Até o momento, o Departamento de Estado dos EUA foi muito cauteloso na Tunísia e no Egito. Neste último, não só não utilizou a força para manter Mubarak no poder, como lhe sugeriu que encaminhasse a transição sem derramamento de sangue. Com o agravamento da crise na Líbia já se aventa uma invasão deste país. Seria uma vitória do Pentágono, mas uma vitória de Pirro. Sem dúvida, os “pombos” estão entendendo que a melhor solução é apostar em sociedades democráticas nos países em desenvolvimento, sobretudo numa região tão nevrálgica que engloba o Norte da África e o Oriente Médio. Há outro aspecto a considerar. Se o petróleo ainda é absolutamente imprescindível para a economia do planeta, há amplos setores engajados na mudança da matriz energética e de transportes, por razões ambientais, uma vez que as mudanças climáticas têm acarretado desastres de grande monta. Em seu discurso de posse na presidência dos EUA, Barack Obama tocou neste assunto, e Al Gore, vicepresidente na era Bill Clinton, já o fazia. Não se pode esquecer que a crise do petróleo dos anos 70 do século passado foi responsável por mudanças tecnológicas poupadoras de matérias-primas, especialmente derivados de petróleo. Este processo deve continuar. Os países do Ocidente, a médio prazo, vão prescindir cada vez mais de combustíveis fósseis e a região deve perder importância. É indubitável que as massas reunidas nas praças e ruas aceleraram o processo, mas não me parece que as manifestações por si só teriam o efeito desejado. Por seu peso na comunidade dos países árabes, é de se esperar que o caminho seguido pelo Egito seja acompanhado pelos demais. Contudo, não está claro qual será esse caminho a ser trilhado. Nas últimas seis décadas, criou-se no Egito uma elite muito vinculada ao exército. Esta detém uma parcela enorme do poder e da riqueza do país, gerando uma grande desigualdade social, muita pobreza que, a persistir, realimente a insatisfação popular. Certamente o Irã aposta numa solução que rompa a aliança com os EUA, esperando que as massas egípcias escolham um regime teocrático. Se o exército prometeu a democracia e a manutenção da paz com Israel, isto é, a continuidade do atual projeto estratégico internacional, El Baradei, Prêmio Nobel da Paz, declarou que os egípcios não foram consultados quanto à paz firmada com o Estado de Israel. Em 26

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A crise no Oriente Médio e seus desafios

suma, propõe a rediscussão do assunto. O compromisso da junta promotora da transição é honrar acordos internacionais e entregar o poder aos civis. Num país com uma sociedade civil débil, com forças políticas proscritas há décadas, o grande desafio para uma democracia sustentável é a possibilidade de um entendimento e um trabalho conjunto do establishment com a oposição. Isto exige um grande pacto de forças que têm um amplo espectro – dos comunistas à Irmandade Muçulmana, principal opositor de um Estado laico. É bem verdade que a Irmandade Muçulmana não possui uma figura carismática como foi Khomeini no Irã, até porque os sunitas não cultivam estas personalidades. Ademais, esta força que já apoiou o terrorismo e foi o germe da Al Qaeda, hoje abdicou destes métodos. É bem provável que não tenha condições de tomar o poder, mas numa eleição democrática calcula-se que possa eleger algo em torno de 30% dos assentos no Parlamento. A maior dificuldade se encontra quanto às decisões estratégicas. Como resolver esta questão numa democracia plena, na qual a opinião popular tem um grande contingente antiamericanista e anti-israelense, o que pode acarretar o crescimento de setores extremistas além da interrupção do fluxo de capitais e recursos? O mais provável é que haja certa liberalização do regime, com maiores liberdades e respeito aos direitos humanos, com uma ênfase a reformas econômicas dentro da ordem econômica internacional vigente, mantendo as decisões estratégicas à margem da opinião popular. Alterar a ordem deste sistema seria uma verdadeira revolução. Isto, porém, é muito mais complexo e difícil. Oxalá o povo egípcio e os demais povos da região escolham o caminho da democracia e da paz. Sem determinismos é uma possibilidade. Resta dizer algo a respeito do conflito palestino-israelense que afeta todos os povos da região. Se Israel não quiser repetir Massada, as mudanças no mundo árabe acarretarão necessariamente mudanças no Estado de Israel que será obrigado a negociar seriamente a paz e a criação do Estado palestino, isto é, a solução de dois Estados para dois povos, com fronteiras seguras e suas respectivas capitais em Jerusalém. Não há que temer, pois a negociação com regimes democráticos é muito melhor e gera mais estabilidade.

Dina Lida Kinoshita

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A revolução árabe e a esquerda latino-americana Joaquín Villalobos

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os últimos cinquenta anos, boa parte da esquerda latino-americana definiu sua identidade influenciada pelo paradigma da revolução social estabelecido pela revolução cubana, com saúde e educação como seus grandes eixos de transformação. A democracia não foi considerada revolucionária e sim “burguesa”. A direita e suas ditaduras tampouco tiveram a democracia como seu paradigma e sim a modernidade obtida pelo desenvolvimento econômico. Ambas as correntes consideraram que estariam atendendo às necessidades sociais ou ao progresso econômico e que as liberdades democráticas não tinham importância. Havia na América Latina apenas um autoritarismo de esquerda em Cuba, o resto eram ditaduras de direita. A primeira preferiu expulsar os opositores, as segundas, assassinálos. Em ambos os casos, o resultado foi pobreza sem liberdades e décadas de instabilidade, com sociedades em conflito permanente. De igual maneira, os Estados Unidos desprezaram a democracia para a América Latina: a “Aliança para o Progresso” enfatizou o desenvolvimento econômico e não as liberdades. Com o anticomunismo como política, realizaram intervenções, isolaram Cuba e deram respaldo a ditadores, golpes de Estado, fraudes eleitorais e massacres. Esta situação começou a mudar com a política de direitos humanos do governo Jimmy Carter, determinante na queda do ditador Anastasio Somoza, na Nicarágua, em 1979. A posição de Carter foi visionária, ao tematizar os direitos humanos e a inclusão da esquerda. No entanto, a reação conservadora dos norte-americanos estabelecida pela administração Reagan produziu o conflito mais sangrento vivido pelo continente. Assim, na América Central, durante a década de 1980, centenas de milhares morreram numa guerra que, tendo raízes próprias, foi interpretada como um apêndice da guerra fria. Depois de diversas e incontáveis lutas populares, os direitos humanos e a democracia começaram a se converter nos valores hegemônicos da política e nos fatores de legitimação dos governos. A esquerda chegou ao poder e deu início à virada. A transição começou faz aproximadamente trinta anos a partir das mudanças democráti28


A revolução árabe e a esquerda latino-americana

cas ocorridas em diferentes países. Este processo, apesar das suas imperfeições, tem permitido que o continente esteja vivendo um prolongado período de estabilidade política que começa a se consolidar. A queda do Muro de Berlim e a reação em cadeia que se produziu em toda a Europa do Leste foram uma revolução anunciada. O que está acontecendo no mundo árabe ninguém previu. Antes da Tunísia e do Egito, predominava a ideia de que a democracia era um valor ocidental, culturalmente incompatível com a cultura árabe. No entanto, a mobilização revolucionária nos países árabes demonstra que o desenvolvimento das classes educadas, em termos informativos e comunicacionais, é incompatível com o autoritarismo. Este consegue espaço em sociedades com um grande atraso político, econômico e social. Por trás de cada crise terminal de um regime autoritário há um conflito de representação e participação no poder de novos grupos sociais. A democracia está demonstrando ser um valor cada vez mais universal, na medida em que o progresso econômico transforma a estrutura de classes dos países. À medida que os cidadãos alcançam um nível maior de educação, a crítica, o dissenso e a diversidade de pensamento se multiplicam inevitavelmente. É impossível que todo mundo pense da mesma forma, e as formas de pensar das pessoas tendem a se modificar com o tempo e com as mudanças das suas condições. Nem todos podem ser de direita ou de esquerda, crer em Deus ou ter o mesmo Deus. Isso é um absurdo! Quando o número de cidadãos com consciência crítica aumenta substancialmente, diminui a possibilidade de governar a partir da superstição, da religião, do caudilhismo, das dinastias familiares e das verdades únicas do dogmatismo político. A velha aliança da Igreja com os militares e os latifundiários, que sustentou a maioria das ditaduras do continente, acabou por causa do crescimento das classes médias e do surgimento de novos grupos com poder econômico. A democracia e os direitos humanos não são apenas um assunto ético ou ideológico, são também uma engenharia de governo que permite manter coesa uma sociedade marcada pelas diferenças e a natural diversidade que a compõe. Isto é possível quando há classes sociais mais educadas que compreendem que a tolerância entre contrários é fundamental para a convivência pacífica. Mas o mais importante é que nenhuma sociedade polarizada ao extremo e com divisões profundas entre seus habitantes é viável nem tem possibilidades de desenvolvimento. Por isso, a exclusão social que se transforma em exclusão política é uma questão vital a ser resolvida.

Joaquín Villalobos

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Batalhas pela liberdade no Oriente Médio

A América Latina não era viável sem a inclusão das esquerdas, da mesma forma que o mundo árabe não o será sem tolerância para com os muçulmanos até que se obtenha sua moderação. Quando uma sociedade permanece coesa, pode utilizar todas as suas capacidades, e isto tem como resultado uma relação direta entre democracia e desenvolvimento. O empobrecimento social, moral, intelectual, institucional e econômico de Cuba, depois de ciquenta anos de revolução, contrasta com o desenvolvimento social, educativo, econômico e institucional da Costa Rica, do Chile e do Uruguai – os três países com maior vivência e cultura democrática do continente. Algo semelhante ocorreu entre o fracasso da Europa Oriental, dominada pelos comunistas, e o bem-sucedido desenvolvimento da Europa Ocidental sob a influência da esquerda social-democrata. A atual situação de grande violência, profunda crise social, extrema pobreza e alto risco de se tornarem Estados falidos, que marca Haiti, Guatemala, El Salvador e Honduras, é o resultado de terem vivido as ditaduras mais repressivas e prolongadas do continente. Os riscos de autoritarismo e de extrema polarização que vivem Bolívia, Venezuela e Equador resultaram do fato de terem excluído social e politicamente uma parte considerável de sua população. Depois de meio século de revolução cubana, a democracia demonstrou ser mais revolucionária, mais capaz de resolver a pobreza e mais eficaz para conquistar a participação da cidadania por meio do voto e das organizações da sociedade civil. Na democracia, se você divide o seu país, perderá! Resolver a exclusão social à custa da exclusão política conduz a conflitos permanentes e à perda de capacidades vitais para o desenvolvimento. Cuba perdeu milhares de cientistas, escritores, artistas e empreendedores, uma grande parte deles de esquerda; e o mesmo está acontecendo na Venezuela. A sangria intelectual cubana foi de tal monta que não se pode separar o bem-sucedido desenvolvimento da Flórida do exílio cubano. É impossível que qualquer pensamento único resulte em progresso. A chave do desenvolvimento está na interação dialética entre diversidade, diferenças, pesos, contrapesos, alternâncias, acertos e erros. As liberdades, as leis e as instituições são mais importantes para os pobres do que o paternalismo autoritário.

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A revolução árabe e a esquerda latino-americana

Não querer deixar o governo, envelhecer no poder e deixar o governo como herança a parentes não é revolucionário. A esquerda latino-americana precisa abandonar o mito cubano e assumir de uma vez por todas a democracia como sua identidade. A ditadura cubana e as pretensões autoritárias de Chávez são os últimos obstáculos à maturidade política do continente e à continuidade do avanço da própria esquerda. Não há regime autoritário eterno; Castro e Chávez não permanecerão, assim como não permaneceram as ditaduras centro-americanas, as sul-americanas e agora as árabes. Não importa se são religiosas ou liberais, de esquerda ou de direita, os povos sempre terminam cansados delas e as derrubam. (Texto publicado originalmente em El País, de Madrid, 22/02/2011. Tradução: Alberto Aggio.)

Joaquín Villalobos

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Revolta no Oriente Médio e revolução capitalista Luiz Carlos Bresser-Pereira

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povo do Oriente Médio afinal se revoltou contra as muitas ditaduras existentes na região, quase todas de direita, corruptas e apoiadas pelas potências ocidentais. Uma revolta das massas, sem liderança na maioria dos casos; uma rebelião moderna na qual os telefones celulares e a internet estão desempenhando um papel crucial. Uma revolta que lembra muito a revolução da Europa Oriental contra a União Soviética e os regimes títeres no poder. Agora o império são as potências ocidentais – “Ocidente” – enquanto que os povos em revolta são países mais pobres do que os da Europa, e seus governantes além de autoritários são corruptos. Quando o povo se revoltou na Europa Oriental, os regimes comunistas caíram um após o outro quase sem resistência, como um baralho de cartas. Agora, o processo está sendo mais demorado, porque a resistência das ditaduras é maior, e porque a nação de cada um dos povos que se revoltam é menos coesa e menos bem definida do que as nações da Europa Oriental. E porque o Ocidente reunido na NATO não está em colapso, está apenas em crise, enquanto que no caso do Império Soviético o regime estatista na Rússia estava se desmanchando devido a incapacidade de se renovar no plano econômico. A revolta no Oriente Médio já levou à queda do governo na Tunísia e no Egito. A decisão dos militares de, primeiro, não reprimirem as manifestações populares, e, depois, de derrubar o ditador foi decisiva nos dois casos. Quando escrevo este artigo, no inicio de março de 2011, ainda não se sabe que rumo tomarão essas rebeliões, mesmo as da Tunisia e do Egito, e se poderão transformar-se em revoluções. Na Líbia, transformou-se em guerra civil. A indignação popular é muito forte. Conforme assinalou Reginaldo Nasser (2011), o “Dia da Fúria” em Benghazi, a segunda cidade da Líbia, “reuniu de forma inédita chefes tribais, profissionais liberais, estudantes, religiosos e oficiais aposentados do Exército” Qual a lógica dessas revoltas? Até que ponto se transformarão realmente em revoluções? O que poderia resultar de bom para os povos desses países?

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Revolta no Oriente Médio e revolução capitalista

Para responder a essas questões precisamos de uma teoria – de uma filosofia da história – alternativa àquela que está sendo usada pelos analistas vulgares e as potências imperiais. A lógica que está por trás da grande maioria das análises é simples: esses países podem e devem se tornar democráticos. Esta transição ocorreu nos países hoje ricos, e é isto o que deve acontecer no Oriente Médio. Esta lógica pode ser atrativa, mas simplista: a democracia liberal é uma democracia de elites; e é pouco realista supor que países pobres possam primeiro fazer sua transição para a democracia e, em seguida, realizar sua revolução nacional e industrial e se desenvolverem. O modelo da revolução capitalista Para simplificar o raciocínio é conveniente classificar os países em quatro tipos: países ricos, países de renda média ou emergentes, países pré-industriais, e países pobres. Os países ricos realizaram sua revolução capitalista no século XIX, os emergentes, no século XX, os pré-industriais estão tentando realizar sua revolução capitalista; os pobres estão ainda longe desse objetivo. A partir dessa classificação, meu modelo afirma que a democracia só se torna um regime político autêntico e consolidado quando o país já realizou sua revolução capitalista. Por isso, essa visão da história pode ser chamada de “modelo da revolução capitalista”. Antes dela um país pode transitar para a democracia devido à pressão internacional, mas a democracia resultante será limitada e instável. Quando os países hoje ricos realizaram sua transição para a democracia eles estavam em um estágio de desenvolvimento econômico e político muito mais avançado que os países pobres e os países pré-industriais. Já haviam realizado sua revolução nacional ou formado seu Estado-nação e, por isso, contavam com um Estado efetivamente autônomo, com uma ampla classe média burguesa que se revelara suficientemente poderosa para obter contra o monarca absoluto a garantia dos seus direitos civis ou liberdades liberais. Já haviam realizado sua revolução industrial, o que significava que possuíam um mercado interno amplo e que seus empresários, profissionais e trabalhadores já dispunham de um conhecimento técnico e administrativo considerável. Dados os avanços alcançados, que significavam que cada um desses países havia realizado sua revolução capitalista, as demandas de cada povo por democracia puderam se concretizar. A democracia não foi uma doação da classe capitalista, mas só foi possível por ter sido a burguesia a primeira classe dominante que não impôs um veto absoluto à democracia. Antes do capitalismo era

Luiz Carlos Bresser-Pereira

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Batalhas pela liberdade no Oriente Médio

impensável para a oligarquia se submeter a eleições, porque o excedente econômico que ela apropriava dependia diretamente do seu controle do Estado. Depois da revolução capitalista isto muda. O excedente passa a ser apropriado principalmente no mercado, de forma que o controle do Estado deixa de ser condição de sobrevivência da classe dominante. Assim, dada a pressão popular pelo sufrágio universal, a burguesia afinal cedeu em cada país hoje rico. Resistiu por algum tempo – no século XIX, o tempo do Estado Liberal – porque tinha medo da “ditadura da maioria”. Mas aos poucos se deu conta que nas eleições a vitória de partidos de esquerda não significaria sua expropriação, e aceitou que o direito ao voto deixasse de ser censitário, como era no Estado Liberal, e passasse a ser universal, como é próprio do Estado Democrático. Os países que realizaram sua transição democrática nesses termos passaram a ter uma democracia consolidada. Se supusermos que um país não produtor de petróleo com uma renda per capita superior a US$ 7 mil dólares já realizou sua revolução capitalista, a probabilidade desse país voltar a ser autoritário é praticamente zero (Przeworski et al., 1999). Com exceção da Índia, nenhum país se tornou uma democracia consolidada sem antes haver realizado sua revolução capitalista. Esta, portanto, aconteceu sempre no quadro de regimes autoritários, a partir de uma aliança de setores da oligarquia pré-capitalista com a burguesia nascente e a burocracia pública. Isto foi verdade para todos os países hoje desenvolvidos. Isto foi verdade para o Brasil, o Chile, a Turquia, a África do Sul, a Coreia do Sul. Só não foi verdade para a Índia, que é um país muito particular sob todos os pontos de vista. Por outro lado, a revolução capitalista só se realiza ou se torna “completa” depois que o país completou sua revolução nacional ou formou seu Estado-nação. Ora, o que a história também nos conta é que a afirmação de um povo como nação sempre encontrou a oposição dos países mais ricos e mais poderosos, que sempre “chutaram a escada” dos países que buscavam seguir-lhes os passos. Friedrich List, em 1846, usou essa expressão para identificar a política que a Inglaterra usava então para impedir o desenvolvimento da Alemanha. Ha-Joon Chang (2002) escreveu um notável livro histórico mostrando como ainda hoje o mesmo processo continua a ocorrer. Como os impérios, apesar de terem desaparecido formalmente, continuam vivos. Como hoje, acrescento, uma forma imperial – o Ocidente – une os países ricos na neutralização dos países em desenvolvimento que tentam competir e convergir para seus níveis de desenvolvimento. A estratégia imperial que o Ocidente utiliza é clássica – comum a todos os impérios. Alia-se à oligarquia corrupta local, e governa atra34

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Revolta no Oriente Médio e revolução capitalista

vés de governos ditatoriais ou então formalmente democráticos, ao mesmo tempo em que transmite para toda a sociedade seus valores e crenças liberais. O pressuposto é que o país dependente deve aceitar todas as ideias, todas as instituições, todas as políticas, todos os capitais, todas as mercadorias, todos os serviços que o países ricos generosamente lhe oferece. Que não há nenhum conflito de interesses entre a metrópole e a colônia. Que, se aparece algum conflito, é fruto de nacionalismo retrógrado, que merece ser reprimido. É claro que esses países negam tal prática, mas o que foi o consenso de Washington senão uma forma de chutar a escada dos países em desenvolvimento? Entremeada com políticas econômicas sensatas, havia uma insistência na liberalização e desregulação financeira, na perda do controle de cada país sobre sua taxa de câmbio, que era definitivamente contrária aos interesses desses países. Como também era contrária a liberalização comercial que o Ocidente sempre pregou. Entre os anos 1930 e 1980, os países que rejeitaram a liberalização comercial foram aqueles que se desenvolveram. O Brasil foi um desses países, como o México, a Coreia do Sul e Taywan. Depois dos anos 1980, os países que se desenvolveram foram aqueles que rejeitaram a desregulação financeira. Esse foi o caso, principalmente, dos dois gigantes mundiais – da Índia e da China, que desde então apresentam taxas elevadíssimas de crescimento. Enquanto que países como o Brasil, que se deixaram prender pela grande crise da dívida externa dos anos 1980 (uma crise decorrente da abertura financeira), e, por isso, fragilizados, se curvaram ao consenso de Washington, passaram a crescer a taxas muito menores. Entretanto, o modelo que acabei de apresentar não apresenta um caminho seguro para os países pré-industriais. A democracia não é a solução evidente para eles, porque essa democracia será instável e incompleta, serão regimes autoritários que não representam garantia que a revolução capitalista ocorra. Para isso é necessário, adicionalmente, que sejam nacionalistas – que entendam que é seu dever defender os interesses do trabalho, do conhecimento e do capital nacionais – enfrentando, sempre que necessário, os interesses multinacionais. É isto que fazem os governos dos países ricos e dos países de renda média (como o Brasil) para competir internacionalmente. Mas é preciso também que o nacionalismo seja competente, promova a revolução capitalista, e assim abra espaço para uma democracia consolidada. Que neste caso não é um meio. É o objetivo a ser alcançado. Ora, em um país pobre, não há nada nas sociedades dependentes e sem recursos educacionais que garanta esses resultados. Luiz Carlos Bresser-Pereira

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Batalhas pela liberdade no Oriente Médio

Nas sociedades pré-industriais, como são a maioria dos países do Oriente Médio, o quadro é um pouco melhor. Só isto explica a rebelião. Mas essas sociedades continuam dependentes e frágeis. Em todo o processo o papel dos militares é fundamental. O exército em países pobres e em países pré-industriais não apenas detém as armas, mas é geralmente a única instituição organizada. A não ser que seus oficiais tenham sido envolvidos na corrupção das elites, o exército tende a ser nacionalista. Disciplinados, os militares se subordinam ao regime autoritário, mas quando a revolta popular explode, eles se sentem fortes para intervir. Para estabelecer uma nova ditadura? Talvez. Isto depende da força do povo transformado em nação que comandou a rebelião. Se esse povo lograr manter uma razoável coesão após a queda do ditador, isto geralmente significa que sua sociedade já está madura para a democracia, e os militares tendem a reconhecer esse fato. Mas aqui, novamente, se coloca o grande problema dos países pobres e dos países pré-industriais: sua sociedade tem dificuldade para se organizar, ganhar autonomia nacional, promover sua revolução capitalista, e, adicionalmente, dar sustentação para a democracia que almejam. Quando o exército consegue se associar à sociedade, o resultado pode vir a ser razoavelmente satisfatório para a nação. Existem, porém, duas alternativas trágicas: uma é o exército pretender se manter no poder, a outra, o exército se desmoralizar e a revolução nacionalista ser comandada por um partido islâmico que pode fazer avançar a revolução capitalista, mas a um custo alto em termos de direitos civis e políticos. A tragédia dos povos pobres Quais dos países que hoje estão em crise no Oriente Médio já realizaram sua revolução nacional e capitalista? Nenhum. Mas não são mais países pobres; prefiro chamá-los de países pré-industriais. Muitos se beneficiam das grandes rendas originadas do petróleo, mas nenhum deles logra neutralizar a doença holandesa que aprecia sua taxa de câmbio e impede sua industrialização ou a diversificação e sofisticação tecnológica de sua economia. Já contam, principalmente, com uma classe média educada, mas são países que ainda não se industrializaram, e que se mantêm exportadores de bens primários, de turismo, e de remessas de imigrantes. São países nos quais essa classe média e os trabalhadores estão se rebelando contra muitos anos de exploração interna e internacional.

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Revolta no Oriente Médio e revolução capitalista

As revoluções são sempre realizadas pelo povo, mas muitas vezes ele é afinal derrotado. Faço essa afirmação pensando no que acontecerá depois das revoluções na Tunísia e no Egito, e do banho de sangue que está acontecendo na Líbia. As revoluções podem ser contra o “antigo regime” como o foram a Revolução Francesa de 1789 e a Russa de 1917, ou podem ser revoluções de união nacional, como foram as revoluções de Bismarck na Alemanha e de Garibaldi na Itália, ou podem ser revoluções de libertação nacional como foi a de Gandhi e Nehru, na Índia, e a de Mao Tse-tung, na China; e podem ser revoluções de afirmação nacional como foi a Revolução Mexicana de 1910. Mas quando o povo é afinal vitorioso nessas revoluções? Não é fácil responder a esta questão. Nunca suas esperanças maiores são realizadas. Mas é impossível negar que o povo avançou em cada uma das revoluções que eu citei acima, exceto a soviética. Deixemos, porém, grandes revoluções de lado, e pensemos nas bem sucedidas revoluções nacionalistas nos países em desenvolvimento – como a de Kemal Ataturk, na Turquia, em 1922, ou a de Getulio Vargas, no Brasil, em 1930, e no grande número de revoluções que afinal fracassaram. A grande tragédia dos povos pobres como são os povos do Oriente Médio que estão se revoltando é de que eles só serão vitoriosos se os novos governos forem capazes de conduzir seu país à revolução nacional e capitalista e portanto ao desenvolvimento. Mas para isto falta a esses povos uma sociedade civil forte como existe nos países ricos e nos países de renda média. No Oriente Médio, muitas revoluções de libertação ou de afirmação nacionais foram realizadas, mas poucas vingaram. Algumas foram esmagadas pelas potências imperiais, como foi o caso da revolução de Mossadegh, no Irã, em 1955, ou de Nasser, no Egito, em 1967. Outras, no extremo oposto, não vingaram porque o político ou o militar vitorioso logo se associou às potências imperiais e às elites locais corrompidas e também se corrompeu. Foi o caso, por exemplo, de Ben Ali, na Tunísia, ou de Saddam Hussein, no Iraque. Outras ainda, como é o caso da revolução na Líbia, de Khadafi, inicialmente pretenderam ser libertadoras de seu povo, e, por isso, encontraram forte oposição das potências ocidentais, mas afinal também dele se desligaram e se corromperam, sendo, então, seus dirigentes aceitos pelas potências ocidentais. Existe solução para esta tragédia dos povos pobres? Sim, mas o caminho é difícil. Eles são fortes no momento da revolução, quando se mobilizam e, muitas vezes, se tornam heróicos, como estamos hoje vendo no Oriente Médio. Mas depois perdem coesão, e abrem espaço para a dominação das velhas elites e dos interesses estrangeiros. Luiz Carlos Bresser-Pereira

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Batalhas pela liberdade no Oriente Médio

É preciso que cada povo se constitua em nação e logre fazer valer sua vontade nacional, mas a pobreza e o baixo nível educacional são um obstáculo para isto. A alternativa é contar com um líder comprometido moralmente com seu povo, mas isto depende da sorte ou da fortuna – uma deusa amada, mas com a qual não podemos contar. Não subestimar a justa indignação Desde que começaram, as revoluções por ora vitoriosas na Tunísia e no Egito deixaram em “situação embaraçosa” os Estados Unidos e a França, enquanto seus intelectuais “ficavam confusos”. Não é difícil compreender o embaraço dos grandes países. Embora façam um discurso em defesa da democracia, acusem de forma indignada dirigentes nacionalistas de países que não são democráticos mas que atendem às condições mínimas da definição de democracia, e não hesitem em apoiar movimentos de direita que tentam derrubá-los pela força, não obstante tudo isso, apoiam de forma integral governos abertamente ditatoriais e corruptos, mas que se portam de forma “amiga” em relação a seus interesses de curto prazo. Isto é verdade para os Estados Unidos e principalmente para os países em desenvolvimento, em particular a França e a Itália, cujos interesses de curto prazo estão mais em jogo. Quanto à “confusão” de seus intelectuais, foi um artigo no Le Monde (06/02/11) que a acentuou, referindo-se a intelectuais de direita na França como Bernard-Henri Lévy, para quem “a situação seria muito complexa”, ou Olivier Mongin, que declara “mais vale um Ben Ali que um Bin Laden”. No fundo, diz o jornal, “a revolução iraniana está em todas as mentes”. E, portanto, para se evitar uma possível ditadura islâmica e, portanto, nacionalista, se apoia uma ditadura corrupta e dependente. Em primeiro lugar, não há qualquer razão de ordem democrática ou de ordem moral para essa opção. Por que uma ditadura corrupta e dependente é melhor para seu povo do que uma ditadura islâmica? Segundo, não há razão para se colocar o problema da Tunísia ou do Egito nesses termos. Existe sempre o risco de uma revolução nacionalista islâmica ao invés de uma revolução nacionalista secular, mas esse risco só aumentará e se tornará real se os países ricos insistirem em pensar em termos dessas duas alternativas radicais, e, a partir daí, continuarem a optar pela ditadura corrupta e dependente. Egito e Tunísia já não são países estritamente pobres, mas, ao contrário de países como o Brasil ou como a Índia, ainda não realiza-

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Revolta no Oriente Médio e revolução capitalista

ram sua revolução capitalista, não contam com uma classe empresarial ampla, uma classe média diversificada, e um Estado capaz de defender os interesses nacionais. É disto que esses países precisam, é isto que os jovens que lideram essas duas revoluções com ajuda da internet reivindicam. Eles tiveram acesso à educação, mas a administração dependente e incapaz de suas economias não promove o desenvolvimento econômico necessário para que eles tenham empregos e salários decentes ou oportunidade de se tornarem empresários. Estes objetivos conflitam com a lógica imperialista, que sempre foi a de se aliar às elites dependentes e aos governos corruptos das colônias. Mas será que essa é a melhor estratégia? Em relação aos países pobres, acredito que ainda dê bons resultados. Mas já vimos que os países do Oriente Médio não são mais simplesmente pobres. A era dos impérios está terminando. Foi isso o que mostraram os países do Leste Europeu, em 1989; é isto que estão dizendo os países do Oriente Médio, em 2011. A revolução agora não é tão decisiva como foi aquela, porque os países do Oriente Médio são menos desenvolvidos, e porque os impérios do Ocidente não estão tão debilitados como estava o soviético. Mas é um equívoco subestimar a justa indignação e a determinação desses povos de alcançarem a autonomia nacional e a democracia. Democracia ou revolução capitalista? No Oriente Médio, a revolução capitalista bem sucedida foi a revolução secularista de Mustafá Kemal Ataturk, em 1922, na Turquia, que serviu de modelo para os países que no após-guerra se tornaram independentes. Gamal Abdel Nasser, no Egito dos anos 1950, foi a experiência mais interessante, nesse sentido, mas houve muitas outras, algumas cedo esmagadas pelas potências imperiais, como foi o caso do Irã, cujo primeiro ministro, Mohammed Mossadegh, nacionalizou a produção de petróleo, em 1953. Outras experiências foram mais duradouras, mas, igualmente fracassadas como a do partido bahatista, no Iraque, ou então sobrevivem com dificuldade, como é o caso do regime também bahatista, na Síria, e do regime militar, na Argélia. Assim, seja devido ao imperialismo, seja devido a dificuldades que qualquer revolução nacionalista enfrenta para modernizar o país, a estratégia secularista afinal fracassou no Oriente Médio. Por isso, quando, no final dos anos 1970, um movimento islâmico, no Irã, derrubou o governo corrupto e desmoralizado do xá que ali havia sido posto pelas potencias ocidentais, estava sendo definido um novo modelo de revolução nacionalista – um modelo que usa a religião Luiz Carlos Bresser-Pereira

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Batalhas pela liberdade no Oriente Médio

para garantir a ordem interna ou a formação do Estado-nação e a coesão nacional. Como os novos governantes adotavam convicções e práticas religiosas radicais, foram identificados como fundamentalistas – e, de fato, o eram –, mas o que o Ocidente se recusou a compreender foi que essa não era e não é a característica principal dos movimentos islâmicos modernos. Estes não são movimentos religiosos, mas políticos. O objetivo não é converter os povos, mas tornar seus Estados-nação efetivamente autônomos e impor a ordem do Estado sobre a sociedade, usando para isso a religião. É, em outras palavras, estabelecer a ordem pública e realizar a revolução capitalista que as elites tradicionais corruptas associadas às grandes potências têm impedido de acontecer. Não sabemos ainda o que resultará da rebelião dos povos do Oriente Médio. Os analistas de todas as tendências desejam que seja a democracia e temem que seja um regime islâmico. E só consideram como um resultado positivo a implantação da democracia. A única exceção a este tipo de abordagem, que vi recentemente, foi a de Paul Amar, especialista em Egito, da Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, que, em entrevista à Folha de S. Paulo, definiu a revolta “como a busca de um projeto de desenvolvimento nacional, de um capitalismo menos predador”. É claro que eu desejo que esses países se tornem nações prósperas e democráticas, mas, para seu povo, a prioridade hoje é garantir as liberdades civis ou o Estado de Direito e realizar a sua revolução nacional e capitalista. Não é, portanto, o caminho islâmico, mas não é também o doce caminho da democracia. Só depois que cada país houver realizado sua revolução capitalista e, assim, houver encontrado o caminho do desenvolvimento econômico, poderá se tornar uma democracia consolidada. Não preciso argumentar a favor do Estado de Direito. Mas por que atribuo também prioridade à revolução nacional e capitalista? Porque só a partir do momento em que uma sociedade se torna uma verdadeira nação, realiza sua revolução industrial, e, assim, completa sua transformação em uma sociedade moderna, tem ela condições de se tornar um regime democrático estável e com condições de ulterior democratização ou melhoria de qualidade. Pretender inverter a ordem histórica – implantar a democracia antes de realizar a revolução capitalista – é quase impossível. Quando o estatismo comunista entrou em colapso, os russos não compreenderam esse fato, fizeram a perestroika antes de organizar sua economia em termos capitalistas, e o resultado foi o desastre econômico e humano que a Rússia enfrentou, nos anos 1990, sob a orientação e o aplauso do Ocidente. Já os chineses compreenderam qual é a ordem normal da modernização, e estão experimentando um desenvolvimento econômico sem precedentes na história. 40

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Revolta no Oriente Médio e revolução capitalista

O ditador Zine el-Abidine Ben Ali estava no poder, há 23 anos; o ditador Hosni Mubarak, há 30, governava o Egito; o ditador Muamar al-Khadaffi dirige a Líbia, há 50 anos. Os dois primeiros, sempre com pleno apoio do Ocidente, que os consideram seus aliados; o terceiro, recentemente “recuperado”. Um apoio firme que permitia aos analistas de direita apresentar principalmente a Tunísia como um exemplo para os demais países árabes do Oriente Médio. Um apoio que apenas é retirado quando o regime está em seus estertores, como aconteceu nesta revolução. Na verdade, o regime tunisiano era “exemplar”, como o foram, nos anos 1990, os governos igualmente “aliados” de Carlos Menem, na Argentina, e de Bóris Yeltsin, na Rússia. Com base em um regime dessa natureza, semicolonial, não havia possibilidade de um verdadeiro desenvolvimento econômico, do surgimento de uma grande classe de empresários, de uma classe média profissional competente, e de uma classe operária bem organizada. Só havia espaço para a mais deslavada corrupção em benefício da família da mulher e dos amigos do governante, além, naturalmente, de um ambiente “acolhedor” para os interesses dos países ricos. Referências Amar, Paul. Influência da internet é exagerada, entrevista a Claudia Antunes, Folha de S. Paulo, 25/02/2011. Chang, Ha-Joon. Chutando a Escada, São Paulo: Editora da Unesp, 2002. Edição original em inglês, 2002. List, Friedrich. O Sistema Nacional de Economia Política, São Paulo: Editora Nova Cultural, Coleção Os Economistas. Edição original em alemão, 1846 [1986]. Nasser, Reginaldo. Luta por recursos e fracionamento da elite explicam revolta, Folha de S. Paulo, 27/02/2011. Przeworski, Adam; Alvarez; Michael, Cheibub, José Antônio; Limongi, Fernando. Democracy and Development: Political Institutions and Well-Being in the World, 1950-1990, Cambridge: Cambridge University Press. 2000.

Luiz Carlos Bresser-Pereira

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II. Centenรกrio do Dia Internacional da Mulher


Autores Iáris Ramalho Cortês

Advogada e sócia do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFemea)

Silvia Camurça

Socióloga, educadora do SOS Corpo Instituto Feminista para Democracia e integra a coordenação nacional da Articulação de Mulheres Brasileiras

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ste ano marca o 100º aniversário do Dia Internacional da Mulher. Ele foi comemorado, pela primeira vez, em 19 de março de 1911, na Áustria, Dinamarca, Alemanha e Suíça, seguindo o que ficara estabelecido, um ano antes, durante o II Congresso Internacional de Mulheres Socialistas, em Copenhague, por proposta da alemã Clara Zetkin, que defendeu fosse designado um dia para a luta dos direitos das mulheres, sobretudo o direito ao voto. A Organização das Nações Unidas está celebrando este importante centenário, sob o tema da igualdade de acesso à educação, à formação, à ciência e à tecnologia. Os telefones móveis e a internet, por exemplo, podem permitir que as mulheres melhorem a saúde e o bem-estar da sua família, aproveitem oportunidades para exercer atividades remuneradas e se protejam da exploração e da vulnerabilidade. O acesso a esses instrumentos, bem como à educação e à formação, pode ajudar as mulheres a romperem o ciclo de pobreza, a lutarem contra a injustiça e a exercerem os seus direitos. Já a ONU Mulheres está organizando e copatrocinando um grande número de atividades pelo mundo para festejar a data, sendo de ressaltar que, na América Latina, haverá eventos na Venezuela, Equador, Chile e na Colômbia. Não consta, numa lista de 46, nenhum no Brasil. Na sua mensagem, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, destaca que “há cem anos, quando o mundo comemorou pela primeira vez o Dia Internacional da Mulher, igualdade de gênero e empoderamento das mulheres eram ideias amplamente radicais. Neste centenário, celebramos o significativo progresso que se alcançou por meio de campanhas determinadas, ações práticas e políticas esclarecidas. Não obstante, em um grande número de países e sociedades, as mulheres continuam sendo cidadãos de segunda-classe.” A comemoração da data, que foi se esvaziando dos anos 1930 aos 50, sobretudo por conta da II Guerra, foi retomada pela segunda onda do movimento feminista, nos anos 1960. Em 1975, a ONU oficializou o 8 de março como o Dia Internacional da Mulher.

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A mulher pode Iáris Ramalho Cortês “O Brasil tem uma presidenta.” Não encontro frase melhor para começar este artigo sobre o mês da mulher de 2011. Parece um sonho que de tão sonhado se tornou realidade. E lembrar que antes de 1932 não podíamos votar, que só em 1933 tivemos a primeira deputada. Senadora (suplente) em 1979, eleita só em 1990. No Executivo, foi em 1982 que uma mulher assumiu pela primeira vez um Ministério e em 1995, um governo de estado. E agora, já podemos descansar em berço esplêndido e guardar nossas faixas, panfletos e camisetas com frases de impacto? Vamos usar o 8 de março como recordação das lutas que deflagramos por décadas e décadas? A vitória de uma mulher para a Presidência da República já começou a provocar uma mudança cultural. A frase “a mulher pode” tem sido repetida na sociedade de forma não mais jocosa ou reivindicatória, e sim com um misto de seriedade e constatação. Então, se “a mulher pode”, vamos elevar para 50% o número de mulheres no Congresso Nacional. É maravilhoso saber que tem uma mulher na Mesa Diretora da Câmara, mas quando vemos que não são dois lugares e, sim, onze, vem a vontade de gritar: só temos uma mulher na Mesa Diretora! Nas vinte comissões permanentes da Câmara, apenas uma tem uma mulher como presidenta; no Senado, nenhuma mulher na presidência. Para vermos paridade nas comissões, sem esperar mais oitenta anos, basta que aprovem proposta que tramita no Congresso, determinando a presença obrigatória de mulheres nas mesas diretoras e comissões. A reforma política está na ordem do dia. Se “a mulher pode”, é preciso uma reforma ampla, que possibilite às mulheres participar da política em igualdade de condições com os homens. Com vontade política, é possível adotar o sistema de listas fechadas com alternância de sexo, que tem dado certo em vários países e o financiamento público de campanha, com percentual obrigatório para ser utilizado pelas mulheres. 46


A mulher pode

No alto escalão do Poder Executivo, nunca o Brasil viu tantas mulheres. Ali, a presença delas cresceu 75%. Dos 37 ministérios, nove são chefiados por mulheres. No entanto, ainda não vemos uma saia sequer em postos de comando na Advocacia-Geral e Controladoria Geral da União, Banco Central, Casa Civil e Gabinete de Segurança Institucional. Alguém pode imaginar que, em um país cuja cadeira presidencial é ocupada por uma mulher, existam lares onde outras mulheres são maltratadas, espancadas, violadas e mortas? Em outro sonho, que também se tornou realidade, conquistamos uma lei que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher (Lei no 11.340/2006). Mas esta lei sofre grande risco de se tornar inoperante exatamente pelos poderes da União: o Executivo, ao não disponibilizar recursos para a aplicação da lei em sua totalidade, não prover serviços de atendimento às vítimas, desenvolver programas e campanhas de enfrentamento à violência e outras ações previstas; o Judiciário, ao arquivar denúncias de violações, questionando a constitucionalidade da lei, tentando colocá-la no mesmo patamar da Lei dos Juizados Especiais – que tratava a violência contra as mulheres como um acidente de trânsito, liberando os agressores com o pagamento de uma cesta básica. Com tais interpretações o Judiciário considera que a mulher não deve se libertar do julgo dos homens, nem deve ser tratada com dignidade. Por fim, o Legislativo, ao propor alterações à lei de forma isolada, retorcendo seu conteúdo, ignorando a filosofia de sua criação, retrocedendo em ações essenciais a uma vida digna e sem violência. Tais propostas, se aprovadas, descaracterizarão a lei. Se “a mulher pode”, por que ainda recebe salários menores que os homens? Por que não se regulamenta o trabalho informal e se reconhece o tempo dedicado ao trabalho doméstico não remunerado para fins de aposentadoria? E dentro de casa, será que a mulher também “pode”? Pode dividir com o companheiro as tarefas domésticas, a criação dos filhos e a hora do lazer? E a saúde da mulher deste país que pode ter uma presidenta? Quando extinguiremos mortes maternas evitáveis, muitas vezes causadas por abortos clandestinos e malfeitos? A questão é séria e deve ser tratada sem hipocrisia. A realidade é que, quando a mulher pode pagar, encontra clínicas especializadas e o procedimento é feito em segurança. Se não pode, recorre a estabelecimentos de fundo de quintal. Não adianta juiz, padre/pastor ou delegado querer evitar, dizer que é crime, pecado ou levá-la à prisão. Elas continuarão a fa-

Iáris Ramalho Cortês

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Centenário do Dia Internacional da Mulher

zê-lo porque ter ou não ter filhos é um direito inerente ao seu corpo, questão íntima e intransferível. Assim, neste 8 de março em que uma mulher pode ser presidenta do país, muitas brasileiras ainda lutam contra a discriminação, o preconceito, a falta de paridade e não podem exercer seus direitos. Para que a “mulher possa”, de fato, é preciso muita vontade política para avançar no reconhecimento e na promoção de sua cidadania plena, rumo à consolidação de um país plenamente democrático.

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Dilma, a pobreza e as mulheres Silvia Camurça

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presidenta Dilma tem afirmado como orientação estratégica de seu governo o combate à pobreza e à erradicação da miséria. Muito bom, muito melhor do que se fosse o crescimento do PIB. Mas, longe de ser transparente, esta afirmação ainda guarda enormes ambiguidades, podendo significar toda sorte de medidas: desde o controle do número do nascimento dos pobres, para os que defendem a doutrina malthusiana (e ainda há quem defenda), até a profusão de cursos profissionalizantes, para aqueles que pensam, ingênua ou cinicamente, que a pobreza é causada pela falta de estudo. A pobreza, como sabemos, não é um câncer, nem um mosquito ou erva daninha, que pode ser extirpado num grande mutirão, reunindo todo o mundo. Não, a pobreza é uma situação, uma condição de vida, imposta para milhões de pessoas pela força das relações de exploração sobre o trabalho, mas também pela política econômica, pela regulamentação tributária, pela política de ocupação das terras, rios, mares e praias, pela concessão de benefícios fiscais, pelos projetos de desenvolvimento, enfim, por muitas variáveis reguladas pelo Estado e gerenciadas pelos governos, e que produzem e reproduzem acumulação das riquezas nas mãos de uns, em detrimento da maioria, e favorecem o capital. Como é sabido, no capitalismo, o combate à pobreza, exige medidas como controle de capitais, impostos maiores para os mais ricos, taxação de grandes fortunas, de heranças, e sobre lucros. Todas estas são formas, conhecidas, testadas e aprovadas, para retirar um pouco dos que têm mais e re-distribuir para os que não têm nada – na forma de serviços públicos ou de assistência social, transferência de renda, seguro desemprego e outros meios. Mas disso, tenho certeza, Dilma entende. E sabemos, que essas políticas dependem da correlação de forças no Congresso, na mídia, e no próprio governo. Contudo, na perspectiva feminista, esta diretriz do Governo pode conter ainda mais ambiguidades. Foi sobre as mulheres que se fez o controle de natalidade em nome de combate à pobreza, nos anos 1970. Mas esse tempo não acabou. Nos primeiros meses do primeiro governo Lula, o tema voltou à baila com uma proposta, felizmente 49


Centenário do Dia Internacional da Mulher

derrotada dentro do próprio governo, de associar o Bolsa Família ao uso de método contraceptivo. Saímos em grita muitas de nós, a Articulação de Mulheres Brasileiras uma delas, com o manifesto “A pobreza não nasce da barriga das mulheres”. Não penso que este risco estaria colocado agora. Mas começo de governo é sempre tempo de disputa de rumos para as políticas públicas. E cada ministério terá de interpretar esta diretriz para seu mandato, o que abre margem a muitas propostas. A pobreza é maior entre as mulheres. Recebemos menos que os homens no mercado de trabalho, somos a maioria em contratos precários de trabalho. E nas muitas ocupações informais, somos as que recebem os menores valores de benefícios previdenciários. Mas, temos certeza, não será apenas com o Bolsa Família que iremos superar esta situação. A mais perfeita tradução para uma estratégia de combate à pobreza entre as mulheres são políticas promotoras da autonomia. Isto quer dizer política de aumento continuado do salário mínimo; investimentos em equipamentos para reduzir o impacto da divisão sexual do trabalho, que sobrecarrega as mulheres; garantias do acesso à terra e a meios de produção, moradia e trabalho, e, acima de tudo, muitas creches, boas e em grande quantidade, nas cidades, no campo e na floresta – um desafio em tempos de cortes no orçamento. Contudo, no governo Dilma, o maior desafio para garantir políticas promotoras de autonomia para as mulheres será, sem dúvida, enfrentar os religiosos conservadores. Estes estão à espreita desde o final da campanha eleitoral e rearticulados faz tempo. Estão se apropriando dos fundos públicos por meio da gestão dos orçamentos de serviços de educação e de saúde, por todo o país. São as famigeradas fundações sociais, muitas das quais, sob controle de grupos com orientação religiosa fundamentalista, tentam implementar suas próprias diretrizes na orientação dos serviços. E aí, o foco não terá nada a ver com a autonomia das mulheres, mas com a conhecida associação materno-infantil, orientação política que percebe as mulheres apenas na sua condição de mãe, situação que não é de todas e nem durante toda a vida de todas as mulheres.

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III. Observat贸rio


Autores Anivaldo Miranda

Jornalista e mestre em Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável pela Universidade Federal de Alagoas

Stepan Nercessian

Ator de TV, cinema e teatro, deputado federal (PPS-RJ) e dirigente do Retiro dos Artistas, Rio de Janeiro

Aspásia Camargo

Deputada estadual do PV e presidente da Comissão de Saneamento Ambiental da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro

Nelson L. R. Nucci

Engenheiro civil. Professor aposentado da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. Sócio da JNS – Engenharia, Consultoria e Gerenciamento Ltda.


As catástrofes e a falência do Poder Local Anivaldo Miranda

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o momento em que comecei a escrever este artigo, o noticiário da TV dava ênfase a um (por enquanto) paradoxo: enquanto o Norte do Rio Grande do Sul estava sendo castigado por fortes chuvas, a região Sul do estado amargava prolongada seca. O fato foi, em seguida, devidamente esclarecido do ponto de vista meteorológico, mas enquadrado dentre aqueles fenômenos ainda considerados incomuns.

Digo, ainda, porque, nessa época de crescentes mudanças climáticas, é bom que nos acostumemos à ocorrência mais frequente de extremos climáticos – secas e enchentes, por exemplo – e aumento da intensidade de boa parte dos eventos naturais. A propósito, Carlos Nobre, membro do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e um dos principais climatologistas brasileiros, ao referir-se aos cenários de secas severas e grandes enchentes ocorridos na Amazônia nesses últimos anos, prevê que, se o planeta continuar aquecendo da forma como já vem acontecendo, “em 50 anos esse tipo de extremo climático se tornará uma variação climática habitual”.1 Inserido no conjunto de pesquisas, análises e conclusões que Nobre compartilha com grande parte da comunidade científica internacional que se dedica ao estudo das mudanças climáticas e do aquecimento global, o alerta do cientista vê-se sustentado não apenas pelos cenários amazônicos, mas também pela ascendente frequência 1 NOBRE, Carlos Afonso. Por trás da seca na Amazônia. Le Monde Diplomatique Brasil, jan./2011.

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Observatório

e intensidade das enchentes, secas, ciclones, tornados, furacões que ultimamente estão inquietando a população mundial. As chuvas que se abateram sobre a região serrana do Rio de Janeiro, no alvorecer de 2011, bateram recordes de mortes no contexto da série de catástrofes que vêm se alternando em diferentes regiões e estados do Brasil, a exemplo do que já havia ocorrido em Santa Catarina e nas bacias dos rios Mundaú e Paraíba, que se estendem entre Pernambuco e Alagoas, provocando um rosário de destruições que afetam duramente a economia e a vida social das populações atingidas. Como era de se esperar, na esteira dos prejuízos materiais e das tragédias humanas associadas a essas catástrofes, um acirrado debate sempre se estabelece, como é natural, sobre as causas desses fenômenos e, principalmente, sobre quem recaem as responsabilidades pelo péssimo desempenho do poder público e das comunidades no que diz respeito à prevenção dos desastres ou, na pior das hipóteses, à minoração de sua amplitude e consequências, sobretudo nas áreas densamente povoadas onde os impactos em termos de vidas humanas são inevitavelmente maiores. Na era da espetacularização e mercantilização da notícia, porém, esses debates pecam por sua limitação temporal em função exclusivamente da duração dos impactos emocionais por eles causados junto às populações e por sua redução ao cenário físico imediato das tragédias, impedindo que uma visão e uma consciência mais abrangentes da problemática, envolvam setores mais amplos da opinião pública com vistas ao alcance de um novo padrão de comportamento e ações preventivas e de adaptação coletiva aos novos desafios climáticos. No plano das cidades, notadamente aquelas de porte metropolitano, já estão diagnosticadas, há muito tempo, as grandes causas dessas tragédias, comuns à realidade de países de grandes contrastes sociais, como é o caso do Brasil. Aqui, como alhures, os processos desordenados de uso e ocupação do solo, a ausência ou ineficácia do planejamento urbano, a ocupação massiva de áreas de risco ou proteção ambiental permanente, a inexistência ou precariedade dos sistemas de drenagem de águas pluviais, a diminuição perigosa das áreas de cobertura vegetal, constituem fatores – sobejamente conhecidos – que potencializam o poder de destruição e desorganização socioeconômica das comunidades porventura atingidas pelas intempéries que se avolumam. Criados para evitar ou, pelo menos, colocar em níveis toleráveis o avanço desses processos caóticos de intervenção no espaço urbano, os instrumentos legais destinados ao planejamento e disciplinamento do 54

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As catástrofes e a falência do Poder Local

uso e ocupação do solo, mostram-se, na esmagadora maioria das cidades brasileiras, falhos, inexistentes ou de aplicação apenas parcial. Este é o caso, por exemplo, dos Planos Diretores das cidades, muitos deles elaborados apenas para atender exigências legais e feitos, sobretudo em cidades de menor porte, sem o rigor técnico, a transparência e a participação democrática efetiva das populações interessadas. Outros instrumentos valiosos como é o caso do Estatuto das Cidades, ainda são desconhecidos por enorme contingente das populações urbanas, inclusive em seus segmentos organizados, o que torna letra morta a sua aplicação. A isso conjugam-se um conjunto ultrapassado de leis de ordenamento do solo e omissões ou falhas gritantes no processo de licenciamento ambiental a depender de cada uma das realidades municipais. Para completar, assistimos agora uma vasta ofensiva do setor ruralista ligado sobretudo à pecuária extensiva de baixíssima produtividade, madeireiras e ao grande agronegócio de exportação de grãos para detonar o Código Florestal Brasileiro, o que poderá, se concretizado esse enorme retrocesso, agravar ainda mais a vulnerabilidade dos serviços ambientais dos diversos ecossistemas brasileiros e tornar ainda mais perigosas as áreas de risco das zonas rural e urbana em todo o país. Todas essas mazelas tendem a se agravar no contexto do crescimento da população e aprofundamento da tendência inexorável da urbanização, tornando a administração das cidades um desafio cada vez maior e mais dramático, quando os custos da implantação e manutenção da infraestrutura das cidades, aliados à limitação de recursos e aos fenômenos da desigualdade social, tornam cada vez mais vulneráveis as populações, sobretudo das concentrações urbanas mais pobres e suas áreas periféricas, diante da provável era de aumento dos eventos climáticos extremos. Todavia, nada é mais grave nesse cenário do que a falência do chamado Poder Local, entendido como o conjunto de instituições governamentais, e políticas públicas destinadas a promover a gestão dos territórios municipais e suas cidades, notadamente prefeituras e câmaras municipais. Tal fato converte a amplitude das tragédias climáticas em problemática não apenas de ordem natural, cultural, técnica e administrativa, mas também e, por excelência, em problemática política. Contaminados pelos vícios do sistema presidencialista e por todo o conjunto de fatores que deterioraram a qualidade da representação política no Brasil, aqui incluídos a corrupção, o fenômeno da compra Anivaldo Miranda

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Observatório

de votos, o nepotismo, a baixa capacitação dos gestores públicos, a falta de transparência, a exclusão social de grandes contingentes da população, boa parte dos prefeitos e vereadores não se dispõem e, em muitos casos, não apresentam sequer competência para lidar com as velozes mudanças e novas exigências dos processos de urbanização e das mudanças climáticas. Premidos de um lado pelas pressões da miséria e do êxodo rural, e do outro lado pela força do capital imobiliário especulativo, os gestores públicos, notadamente no plano municipal, não se mostram capazes ou dispostos a fazer respeitar a legislação e, mais importante, antecipar-se aos novos desafios do uso e ocupação do solo, provocando cada vez mais a acumulação de situações potenciais de risco e caos urbano. Em tais circunstâncias, mesmo as ações empreendidas com recursos públicos federais ou estaduais destinadas a melhorar as condições de vida das populações, como é o caso, por exemplo, dos programas habitacionais, são executadas, em incontáveis casos, quase sempre a toque de caixa, à revelia das normas ambientais e através de processos de licenciamento sumários ou falhos, que, muitas vezes, criam o cenário de problemas futuros. À má gestão municipal, soma-se a má gestão das outras esferas de governo, agravadas pela nociva interferência da política parlamentar fisiológica, voracidade das empresas de construção e consultoria e a falta de compromisso ambiental de bancos e agências financiadoras, provocando um redemoinho de práticas indevidas que neutralizam boa parte da eficiência dos investimentos em infraestrutura urbana, recuperação de áreas degradadas ou prevenção de situações de risco. Como a maioria das Câmaras de Vereadores estão submersas em uma cultura de completa subordinação fisiológica aos Executivos municipais, o principal instrumento do controle social perde totalmente sua eficácia, deixando a população, principalmente em seus segmentos mais carentes, completamente órfã no que diz respeito ao acompanhamento das políticas públicas sistemáticas de correção das situações de risco consolidadas, prevenção de catástrofes ou preparação para agir organizadamente em situações de emergência. Como contraponto a essa situação, os mecanismos da democracia participativa, criados sobretudo a partir do espírito da nova Constituição Brasileira, não contam com o entusiasmo dos ciclos governantes e 56

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As catástrofes e a falência do Poder Local

do grosso da representação política, bem como não encontram também, no âmago da população, uma cultura comunitária ou cidadã capaz de fazer uso mais amplo desses mecanismos. Aqui me refiro, para ser mais explícito, a determinados instrumentos legais como audiências públicas previstas para licenciamentos ambientais de grandes obras, estudos de impacto de vizinhança previstos no Estatuto das Cidades, Ação Civil Pública e muitos outros que são desconhecidos ou inacessíveis para amplas camadas da sociedade. Fruto de um pacto federativo totalmente anacrônico, que continua centralizando na União o poder de decisão sobre a maior parte dos recursos e políticas públicas do país, a autonomia municipal converte-se em mera ficção, que acaba comprometendo qualquer esforço sério para dar a essas mesmas políticas adaptação às características locais, coerência, continuidade, eficácia, estabelecimento de prioridades, além de necessários rigor técnico e transparência. Visto e revisto em seu conjunto, este rol de problemas remete o enfrentamento das mudanças climáticas não somente às medidas e ações administrativas de ordem técnica e do campo da pesquisa, como também e, particularmente no universo urbanizado, à necessidade da reforma política da qual tanto se fala, há tanto tempo, no Brasil, sem maiores desdobramentos. Agora, porém, diante da complexidade que os desastres climáticos estão apresentando, algo de abrangente e relevante deve ser feito para tornar a população brasileira mais preparada para os desafios que o presente e principalmente o futuro próximo nos apresenta. Alterações na legislação que impliquem em maior responsabilidade administrativa e penal de prefeitos, vereadores e gestores com a fiscalização e aplicação da legislação do uso e ocupação do solo e planejamento urbano, bem como a ampliação da participação comunitária na definição e acompanhamento desse planejamento e sua execução, são alguns dos exemplos de iniciativas políticas a ser debatidos para superar o impasse atual entre a complexidade do desafio urbano e ambiental e o despreparo, o fisiologismo e o baixo grau de legitimidade da representação política brasileira. Nesse sentido, por exemplo, é necessário aproximar mais o poder municipal da comunidade a que ele serve, diminuindo sensivelmente o grau de ostentação da representação política municipal e aumentando o grau de participação direta da comunidade na gestão dos seus interesses locais. Uma das propostas a examinar poderia ser a de substituir os salários e aparatos individuais postos a serviço de Anivaldo Miranda

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Observatório

cada vereador e fazer com que eles passem a receber apoio logístico de uma base administrativa comum e apenas remuneração por sessões ou outras formas de trabalhos legislativos efetivamente desempenhados, estabelecendo-se o princípio da produtividade como forma de comprometê-los mais com a comunidade a que devem servir. É óbvio que os exemplos dados são apenas indicativos de um amplo conjunto de medidas que deveriam ser discutidas no âmbito das reformas eleitoral, política e até urbana, conforme a sua natureza. De qualquer forma, o que interessa estabelecer com o presente escrito é que se tornou inadiável para a sociedade brasileira incorporar definitivamente em sua agenda a temática das mudanças climáticas e do aquecimento global e a inadiável tarefa de preparar as populações, tanto das zonas urbanas, quanto das zonas rurais, para fazer face preventivamente, emergencialmente ou de forma sistemática, conforme o caso, aos eventos climáticos extremos. E no caso principalmente das cidades, esses desafios estão a exigir, desde já, mudanças profundas nas bases que conformam a constituição, funcionamento, eficácia e transparência do Poder Local.

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A região serrana à hora da solidariedade Stepan Nercessian

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endo certa vez um texto do saudoso psicanalista suíço Erich Fromm, um dos gurus da minha geração, eu me deparei com um raciocínio formidável do velho sábio: o homem nasce só e morre só, dizia ele, mas vive forçosamente junto. Ou seja, ninguém pode nascer ou morrer por cada um de nós. Não dá, não é mesmo? Mas a única maneira de combater essa solidão como algo inerente à nossa pobre condição humana reside na aposta de uma existência fraternal e coletiva. Temos de ser solidários com os nossos semelhantes. É simplesmente vital para nós. “Mão na mão”, recomendou certa vez o arquiteto Oscar Niemeyer, este símbolo vivo do humanismo brasileiro. Nada mais correto do que isso, eu penso. Recordei-me dessa passagem cristalina do pensamento sempre atual de Eric Fromm e da própria postura de Oscar Niemeyer frente às realidades da vida durante a tragédia ocorrida na região serrana do Estado do Rio de Janeiro, quando as chuvas torrenciais desabavam particularmente sobre as cidades de Nova Friburgo, Petrópolis e Teresópolis. Foi, de fato, um acidente ecológico de proporções ainda incalculáveis em termos de perdas humanas e materiais. Mas uma coisa para mim era e é certa. Por isso, devo dizer que o que mais me comoveu – e, acredito, a muitas outras também – foi a reação das pessoas diante da adversidade. Nessas horas dramáticas, o povo fluminense e, por extensão, todo o povo brasileiro, mostrou a sua face solidária, generosa. E isso não é pouco, pelo contrário. Solidária, generosa e, também, atuante. E não me refiro apenas ao comportamento de instituições como a Cruz Vermelha e as diversas ONGs presentes na região serrana. Ou às heroicas intervenções das equipes de resgate, aos bombeiros, militares e policiais. Penso, igualmente, nas ações individuais de quantos anônimos agiram para salvar vidas, bem como na movimentação de pessoas que, espontaneamente, procuravam as igrejas, os hospitais, as escolas e outras localidades públicas para fazerem suas doações. Roupas, alimentos, medicamentos, dinheiro, uma palavra amiga. Cada um contribuía de acordo com as suas posses ou do que estivesse ao seu alcance.

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Observatório

O que não faltou foi solidariedade. E isso renova nossa crença no ser humano e em sua disposição quase ilimitada de resistir aos problemas com os quais ele se defronta. E são muitos os problemas, sem dúvida alguma. Mas a nossa capacidade de fazer face a eles também é muito grande. Evidentemente, não podemos desdenhar as causas dessa enorme tragédia serrana, as responsabilidades do poder público, tantas vezes omisso. As políticas equivocadas de algumas instâncias municipais. A falta de fiscalização em nossos morros e encostas. As negligências das autoridades, em todos os níveis. A ausência de planejamento e previsão. As malversações de recursos que pertencem a toda a sociedade. Os descalabros administrativos de toda ordem, enfim. Ou até mesmo o velho desdém dos poderosos – burocratas, tecnocratas, políticos carcomidos – pelas demandas populares. Tudo isso é bem real e muitos se encarregaram, com propriedade, de denunciar essas falhas brutais. À imprensa, de maneira geral, devemos todos nós – e, acima de tudo, as vítimas serranas – um reconhecimento pelo seu comportamento exemplar e sempre presente. Mas também é bem real a mobilização das pessoas. A força delas nas horas de maior aflição e sua capacidade de indignação. Mas a força, repito, da ação dessas pessoas, sobretudo, é que precisamos talvez realçar. Ou as grandes transformações que acontecem nos intestinos da História não são todas elas promovidas pela mobilização do povo, pelas pessoas mais simples, inclusive? Exemplos é que não faltam – e dos mais grandiosos. E esses vão da Revolução Francesa de 1789 à Revolução Bolchevique de 1917; das lutas contra a ditadura militar entre nós no longo período de 1964 a 1985 à massa que ocupa hoje as praças públicas na Tunísia, no Egito, e, agora, também no Irã e na Líbia, ditaduras igualmente hediondas e assassinas. Não é por acaso que se diz que “O povo unido jamais será vencido”. E é com base nessa possibilidade inesgotável de dar respostas populares à dor e à tragédia que temos todos nós hoje de repensar a organização das nossas cidades e mesmo das nossas próprias vidas. Planejamento urbano, plano diretor das cidades, efetivo cuidado com o equilíbrio ambiental com a materialização de propostas de criação de ecovilas, integração das massas populares às tomadas de decisão, reordenamento do processo civilizatório – eis as palavras-chaves desse nosso milênio. Afinal, todos nós precisamos viver juntos. Hoje, talvez, mais do que nunca. 60

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Reconstrução é a palavra de ordem na região serrana Aspásia Camargo

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stamos há mais de sessenta dias daquele fatídico 12 de janeiro, que entrará para a História como um dos dias mais tristes da memória do Estado do Rio de Janeiro. A região serrana ainda conta os seus mortos, hoje já na casa dos 900, e o número de desabrigados e desalojados chega a mais de trinta mil pessoas. Teresópolis, Nova Friburgo e Itaipava, cidades absurdamente castigadas pelas últimas chuvas, tentam se soerguer, mas não é tarefa fácil, diante do tamanho do estrago. A maior catástrofe hídrica já vista no Brasil era uma tragédia anunciada. Estudos apontam que pelo menos 33 mil pessoas estavam vivendo em áreas de risco. De acordo com dados divulgados por Waleska Marcy Rosa, professora de Direito Constitucional do Centro Universitário Serra dos Órgãos, pelo menos 25% dos imóveis – cerca de dez mil – de Teresópolis eram irregulares. Em Petrópolis, seriam no mínimo mil pessoas morando em locais não seguros. Os gestores estaduais terão que buscar uma solução para amenizar os efeitos perversos das repetidas e frequentes chuvas agravadas pelas mudanças climáticas. Não pode haver negligência quanto o assunto é vida. E apesar dos acontecimentos afetarem emocionalmente todos os que moram no estado, a solução passa pela aplicação de medidas muito racionais. Já foi registrado que 60% das catástrofes naturais são de origem hídrica – enchentes e deslizamentos. Apesar desta constatação, nada foi feito para planejar as ações de controle e prevenção que, no Brasil, são negligenciados pelo governo federal, pelos estados e municípios. Pior: ainda não em prazo suficiente. Estamos no século XXI, mas ainda tratamos os efeitos das chuvas como se fossem desígnios de Deus, uma ótica equivocada para prevenir catástrofes. Na Era da Tecnologia e da Informação, as cidades sustentáveis são hoje parte de uma nova agenda civilizatória que exige mais segurança, melhor circulação, menos desperdício e mais qualidade de vida. Dentro dessa nova era, temos que exigir que a educação ambiental comece pelos nossos governantes, que devem operar com menos improvisação e populismo e com mais capacidade técnica e vigi61


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lância da cidadania. Fechar os olhos para as construções nas encostas e às margens dos rios ou, o que é mais grave, estimulá-las, é deixar as populações mais pobres à sua própria sorte. Elas acabam pagando essa conta. Não seria mais fácil elaborar políticas de habitação e de proteção com foco no respeito à natureza e às pessoas? O ser humano, como a grande vítima desta tragédia de origem “natural” – mas agravada pela irresponsabilidade pública – inconformado com tamanha proporção, foi quem se dispôs a defender os desamparados e desabrigados. Tão logo o noticiário mostrou os estragos das chuvas, iniciou-se a maior campanha cívica de arrecadação de alimentos e roupas já vista no país. Centenas de ônibus, caminhões e carros abarrotados de produtos de primeira necessidade partiram rumo aos municípios destruídos. Foi comovente ver atuando juntos a Cruz Vermelha, estudantes, professores, empresários, times de futebol, associações de moradores, igrejas, museus, ONGs, artistas, Corpo de Bombeiros, prefeituras, entidades de classe e gente simples disposta a ajudar. Na Lagoa Rodrigo de Freitas, por exemplo, formou-se uma das maiores campanhas de apoio às vítimas, o Minha Ajuda Sua Casa, que conseguiu reunir mais de oito mil voluntários, distribuiu cerca de 400 toneladas de gêneros, armazenados em 66 caminhões, além de auxiliar na vacinação da população afetada. Cada um contribuiu como pôde. O chef Felipe Bronze, por exemplo, organizou um jantar beneficente com os 21 chefs mais consagrados do eixo Rio-São Paulo para convidados dispostos a pagar preço de R$ 2,5 mil por pessoa. A renda foi totalmente destinada às instituições Move Rio e para a campanha Minha Ajuda Sua Casa, que distribuíram os valores de acordo com as necessidades locais. Vale lembrar que esses chefs nunca haviam se reunido antes. A campanha Parada Solidária, da Fetranspor, em parceria com a Prefeitura do Rio de Janeiro, arrecadou 86 toneladas de mantimentos recolhidas através dos diversos ônibus colocados à disposição dos que queriam fazer doações. Tudo o que foi arrecadado pelos empresários da área de transporte nos diversos bairros da cidade foi encaminhado à Cruz Vermelha, responsável pela distribuição. Outra campanha absolutamente genuína foi promovida pelo jogador Ronaldo Fenômeno, que conseguiu de seus patrocinadores seis caminhões com mantimentos para as vítimas das enchentes na região serrana e fez questão de acompanhar a entrega aqui no Rio. Diversos outros times do Brasil também fizeram doações para as vítimas.

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Reconstrução é a palavra de ordem na região serrana

Os números divulgados pela Cruz Vermelha surpreendem e dão a exata noção do espírito solidário do brasileiro. A entidade recolheu da sua unidade em Santa Catarina cerca de cem toneladas de donativos, enviados diretamente para o município de Teresópolis. A de Minas Gerais conseguiu mais de oitocentas toneladas, que foram distribuídas também para algumas cidades daquele estado que também foram castigadas por fortes chuvas. Em função do grande volume de produtos e dinheiro recebido, a Cruz Vermelha já está fazendo uma auditoria para informar o volume de doações. Muito tem que ser feito pela região serrana. A hora é de reconstrução. Ainda falta luz e a água é artigo de luxo. A já precária rede de esgoto simplesmente foi destruída. Nessa reconstrução o bom senso tem que prevalecer e o primeiro passo deverá ser fazer um levantamento geotécnico sobre as condições do solo. As habitações devem ser construídas em lugares apropriados e não mais nas encostas ou nas margens dos rios. O triste episódio mostrou que tudo estava muito errado e que novos erros serão imperdoáveis. As prefeituras das cidades castigadas pelas chuvas terão que trabalhar em conjunto com as universidades e o governo federal para resolver o problema crônico de falta de esgotamento sanitário. De acordo com o Censo de 2000, em Teresópolis, apenas 7,7% das moradias tinham rede de esgoto e 37,15% dos dejetos produzidos na cidade eram diretamente lançados em rios e lagos. Petrópolis contava com 60% das casas com rede de esgoto, porém lançava 15,2% dos seus dejetos em rios. Hoje, apenas 30% das residências de Nova Friburgo dispõem de saneamento básico. Quanto tempo levará essa reconstrução e quanto representará em recursos financeiros? Alguns arriscam que as obras em Teresópolis, Itaipava e Friburgo serão concluídas em dois anos e com um custo não inferior a R$ 2 bilhões. Que a reconstrução tenha como bússola a responsabilidade e o desenvolvimento sustentável, duas palavras que viraram sinônimo de boa gestão. A Comissão de Saneamento Ambiental da Assembleia Legislativa, da qual sou presidente, atuará na região, primeiramente fazendo um Raio X da situação para depois, com a contribuição técnica da academia e a efetiva presença dos poderes local e federal, possamos partir para a universalização dos serviços de água, esgoto e coleta de lixo na região. A hora é essa e já existem várias linhas de financiamento disponíveis para que todo o trabalho seja feito com a seriedade que merece.

Aspásia Camargo

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Para contribuir efetivamente no processo de renascimento dos municípios afetados pelas chuvas, vamos realizar uma série de audiências públicas, dentro da Alerj e em Teresópolis, Itaipava e Nova Friburgo, para que uma solução definitiva seja encontrada. Para essas audiências, vamos convidar técnicos renomados, autoridades e a população, sempre vitimada por calamidades como estas. A Comissão irá acompanhar as obras que estão sendo realizadas e será os olhos da razão, apontando possíveis falhas e formas de aperfeiçoamento. A palavra de ordem é reconstrução e a que nos interessa está calcada em sustentabilidade. Cidades sustentáveis e políticas mais responsáveis, eis o nosso lema!!!

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Soluções para enfrentar grandes chuvas, inundações e catástrofes Nelson L. R. Nucci

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ste artigo foi inicialmente pensado para ser uma resposta à comoção e às perplexidades causadas pelas grandes inundações deste e do verão passado na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP). Os episódios mais recentes, tão ou mais chocantes, de deslizamentos de encostas na região serrana do Rio de Janeiro e também presentes em menor escala no estado de São Paulo (ESP), tornaram imperativa a sua abordagem. A primeira mensagem a se comunicar está resumida no título e afirma a certeza de que há solução possível e de implantação viável em etapas de curto, médio e longo prazo, que ainda cobrarão desconfortos e sofrimentos durante sua implantação, porém, em menor escala que as atuais e em proporções decrescentes. Com uma importantíssima e indispensável ressalva: as soluções de engenharia que vierem a ser implantadas poderão tornar-se meros e enganosos paliativos de curta duração, caso não sejam acompanhadas pela implementação de políticas públicas que preservem as condições de ocupação do solo nas quais essas soluções se basearam. O acervo de técnicas modernas hoje disponíveis pode colaborar muito para a ampliação dos acertos, mediante dois tipos de medidas de proteção, ambas dependentes de políticas públicas disciplinadoras do uso e ocupação do solo. Em uma delas as soluções de engenharia são predominantes enquanto nas outras as ações de engenharia são coadjuvantes. O problema não é de hoje e sua solução depende da atuação e colaboração continuada e articulada de todos A crise das inundações entre nós é endêmica, secular e hoje é aguda. Ela pode agravar-se: as contínuas políticas públicas e as soluções até hoje praticadas não foram capazes de evitar e de mitigar sofrimentos e cada vez menos o serão em futuras ocorrências, se não forem mudadas. A sensação de impotência com que hoje se assiste o sofrimento de tantos, amplia-se muito quando se tem presente que 65


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ele vem se repetindo desde fins do século XIX. Governantes, população e técnicos não têm sido capazes de formular políticas públicas, comportamentos e soluções bem sucedidas em caráter permanente, com a agravante de não mais se dispor da atenuante do vertiginoso crescimento da metrópole, tão frequentemente utilizada no passado Se no caso da RMSP os episódios mais graves de deslizamentos só passaram a ser notícia em décadas mais recentes, contemporaneamente ao processo de ocupação precária e desordenada das periferias montanhosas da bacia do Tietê e do Pinheiros, em outras áreas do estado, como na cidade de Santos e em outras metrópoles brasileiras, estes desastres preocupam há tanto tempo e tão intensamente quanto o das inundações. Lamentavelmente, a crônica destes episódios não é diferente do drama das inundações e também monotonamente repetem-se insucessos previsíveis. Apesar desse passado, sabe-se que soluções existem e são viabilizáveis com os recursos técnicos e financeiros disponíveis. Faltam ainda as articulações entre os poderes públicos e as comunidades para obter os consensos políticos que tornem possíveis essas soluções. Espera-se que a sociedade e suas instituições sejam hábeis em transformar a crise e comoção atuais em instrumento desse consenso e agente deflagrador da capacidade de empreender e negociar politicamente na construção dessas soluções. As chuvas e suas consequências As chuvas em si, na maior parte das vezes, é benéfica, até mesmo quando em grande intensidade e longas. Basta lembrar quanto a humanidade deve às enchentes de muitos rios (Tigre, Eufrates, Nilo, São Francisco etc.), responsáveis pelo florescimento de civilizações que até hoje marcam a cultura e a história dos homens. Os deslizamentos de encostas, grandes e pequenos, revelados pela história geológica da Terra, da mesma forma, ao carrearem os solos que dão origem às planícies férteis distribuídas por nosso planeta, também contribuíram para a preservação da espécie humana. As ocupações dos solos de várzeas, planícies e encostas pelo homem é que fizeram a ligação entre chuvas e grandes efeitos danosos. Foi daí que surgiu a preocupação de enfrentá-los, primeiramente evitando as áreas alcançáveis por esses dois eventos naturais, posteriormente, e cada vez mais, arriscando ocupá-las com base na confiança crescente na capacidade de prover condições de reduzir os danos de sua ocorrência: desde os palafitas pré-históricos até as modernas e complexas 66

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Soluções para enfrentar grandes chuvas, inundações e catástrofes

estruturas de represamento, canalização e bombeamento de cursos d’água e de contenção dos solos. Hoje, esta confiança está posta em dúvida. Pergunta-se: por qual razão? As chuvas tornaram-se mais intensas e frequentes? O excesso de confiança (ou de permissividade) levou as comunidades a ignorar riscos ou não são mais suficientes as soluções de engenharia para evitar os danos? A resposta é sim, para todas, por diferentes razões. É amplamente reconhecido que, a nível local de grandes aglomerações urbanas, as chamadas “ilhas de calor”, aí formadas, tendem a tornar os eventos de chuva mais extremos, acentuando-lhe os picos de chuva e os períodos de estiagem. Não com o mesmo grau de aceitação, há também o reconhecimento de que um outro fenômeno, o do “aquecimento global”, pode modificar a circulação na atmosfera e afetar o regime de chuva regional e local, de uma forma que ainda não está estabelecida com aceitação indiscutível. Em obras de drenagem e proteção dos efeitos das águas em uma região, é indispensável conhecer-se previamente o regime de chuvas, para o qual serão dimensionadas, bem como o relevo e a natureza de seu solo (permeabilidade, cobertura vegetal, urbanização, impermeabilização etc.). A prática habitual permite a definição do regime de chuvas com boa precisão, com base nos registros de precipitação colhidos no passado, selecionando a “chuva de projeto” com uma certa probabilidade de ocorrência, e, portanto, com a escolha do que se denomina o seu grau de segurança. Esta chuva, junto com as características de relevo e de natureza do solo, determinam o comportamento do escoamento das águas na região e todos os danos de inundação e deslizamentos que as obras podem evitar. Ao contrário do que se pensa, essas obras falham, na maior parte das vezes, não por deficiências de projeto, construtivas ou operacionais. Sem dúvida, estas também ocorrem, porém, a mais frequente causa de sua insuficiência decorre da diferença entre a ocupação futura real e a que for prevista. Com frequência, a prevista é superada pela realidade de uma urbanização bem mais intensa e extensa que torna a obra obsoleta em pouco tempo. Duas perguntas se tornam óbvias diante da constatação acima: por que já não se preveem essas condições mais drásticas de urbanização e por que a urbanização que se realiza é diferente da prevista? A resposta à primeira tem múltiplas razões: o porte e o custo de obras para essas condições crescem tanto que frequentemente as inviabiliza financeiramente (limitações orçamentárias) e politicamenNelson L. R. Nucci

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te (pela dificuldade de justificá-las quando há o risco dessa urbanização não acontecer); o custo de tais obras coloca sempre a opção de torná-las desnecessárias mediante o aceno da imposição de restrições ao processo de ocupação descontrolado. A resposta à segunda decorre de uma outra constatação: lamentavelmente o poder público e a sociedade, quando conseguem definir a ocupação do solo que atende aos interesses públicos e privados (por exemplo, constantes de um Plano Diretor), não conseguem institucionalizá-la (por exemplo, na forma de uma lei aprovando o Plano Diretor), ou, pior ainda, quando a estabelecem por lei, não são capazes de fazê-la cumprir. Em resumo, é preciso ter presente em face das obras de engenharia como protetoras contra as grandes chuvas: nenhuma obra dá segurança absoluta, pois a busca desta resultaria em um custo absurdamente elevado e insuportável, ou seja, dito de outra forma, sempre se é obrigado à convivência com o risco de um dano residual correspondente, ou a chuvas de maior proporção, ou, mesmo quando da ocorrência das de menor proporção, a ocupação do solo mais intensa e ampla cria escoamentos muito mais severos que os previstos. Fica, portanto, evidente que nenhuma obra de engenharia tem condições de garantir proteção, sequer no grau de segurança adotado em seu dimensionamento, se a realidade do padrão de chuva tanto em sua fase de precipitação quanto na de seu escoamento no solo forem diferentes daquele pressuposto no projeto. As variações potenciais do padrão de precipitação de chuvas, por serem consequência de fatores naturais, são passíveis de serem previstas, e assim corrigidos os correspondentes parâmetros de projeto. Não é o caso, entretanto, das ocorrências futuras de padrões de ocupação e de escoamento de chuvas muito distintos daqueles que podem ser previstos de forma segura, técnica e politicamente sustentáveis, quando da elaboração do projeto ou da construção dessas obras. Este é, sem dúvida, o maior “calcanhar de Aquiles” de todo esse gênero de obras, razão porque se destacou, no inicio deste texto, a indispensabilidade da implementação das políticas públicas correlatas, em particular das leis que disciplinam o uso do solo, condição esta que, espera-se, cada vez mais poderá ser promovida pela ação firme e corretamente focada do Ministério Público. Acontece que a regra entre nós é a total incapacidade gerencial pública e privada para garantir a ocupação do solo conforme imaginada (e, às vezes, muito além disto, pois essa ocupação foi mandatoriamente fixada em legislação e, na prática, ignorada).

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Soluções para enfrentar grandes chuvas, inundações e catástrofes

O rio e as enchentes Só de algumas décadas para cá (portanto já tendo decorrido quase século e meio desde quando as inundações começaram a assediar a cidade de São Paulo) é que começou a ser disseminada e mais amplamente aceita entre nós a compreensão de que os rios constituem e são parte de importantes ecossistemas. Como tal, são o resultado de fatores igualmente importantes e determinantes da conformação com que a humanidade os encontrou, tanto por interações geológicas e meteorológicas como por interações com a vida vegetal e animal que habita suas águas e os solos de sua bacia de drenagem. Todas estas, atuando conjunta e organicamente são também fatores fundamentais para o equilíbrio e perpetuidade dos ecossistemas e de seus ciclos vitais. Os rios e suas bacias de drenagem exemplificam bem esses ciclos, seja através dos que se dão em escala de tempo geológico, seja daqueles que ocorrem na escala de tempo humana. Se por alguma causa natural ou provocada há risco desses ciclos serem rompidos, desencadeia-se um processo natural visando à recomposição do antigo equilíbrio ou a criação de um outro, novo, para garantir a perpetuidade do ecossistema. No caso dos rios e de suas bacias, estes ciclos realizam-se em duas escalas totalmente distintas quanto à duração e quanto ao intervalo entre as ocorrências. A que se dá em escala de tempo geológica define o relevo da bacia e as características morfológicas da sua rede de drenagem (rios principais e seus afluentes, inclusive das várzeas que os margeiam), além da flora e fauna terrestres aí presentes. A que se dá na escala de tempo humana, com a duração de uma estação climática ou no máximo de um ano ou pouco mais, estes ciclos manifestam-se na forma de enchentes em que as águas invadem periodicamente as várzeas ou de torrentes nas suas encostas mais íngremes. Nos rios em estado natural ou pouco modificados pelo homem, as enchentes são sempre benéficas ao ecossistema a que pertencem, pois correspondem a um dos ciclos que lhe asseguram perenidade. No caso da Bacia do Alto Tietê, onde hoje se situa a maior parte da cidade de São Paulo e das demais da sua região metropolitana, amplas várzeas e meandros caracterizavam originalmente o rio principal e vários de seus afluentes. Foi essa característica que propiciou marcos importantes de sua história, de sua cultura e de seus valores. Para ficar em alguns poucos exemplos basta lembrar: a esmagadora maioria dos principais clubes desportivos hoje existentes surgiram (e alguns ainda estão) no que constituíam as várzeas do Tietê e do Pinheiros; muito do patrimônio mundialmente reconhecido do futebol brasileiro teve – e, felizmente, ainda tem – nos poucos campos Nelson L. R. Nucci

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de várzea ainda restantes, o celeiro que lhe dá sustentação; nas várzeas do Tamanduateí surgiram, em fins do século XIX e inícios do século XX as primeiras áreas públicas de lazer, como na provinciana São Paulo de então, o Parque da Ilha dos Amores e, na então engatinhante metrópole, o Parque Dom Pedro, ambas hoje substituídas por impermeáveis pisos asfaltados de terminais de ônibus e vias expressas. À época destes exemplos, a maior extensão das várzeas da bacia cumpria o papel essencial que lhe é inerente e que ainda hoje o engenho humano não conseguiu substituir-lhe na função com igual sucesso, nem mesmo a altos custos: permitir que as águas das chuvas infiltrem-se no grande reservatório que é o solo, aí sejam retidas por largo tempo e liberadas lentamente para a rede de drenagem; reter nas lagoas temporárias formadas o excedente de água não infiltrada, permitir a reprodução da fauna e flora e colaborar no retardamento do acesso dessas águas aos rios e córregos. As grandes chuvas e os deslizamentos À semelhança da importância das várzeas, as torrentes que percorrem e moldam as encostas de uma bacia hidrográfica integram e contribuem, junto com elas, para a perpetuidade do mesmo grande ecossistema que determina as características dessa bacia. Nelas, igualmente processam-se ciclos de consequências distintas e de ocorrência em escalas de tempo diversas. Na escala de tempo geológica, a erosão intensa e os deslizamentos conformam o relevo das porções mais altas e fornecem os sólidos que formam as planícies. Nos ciclos mais curtos e diuturnos, as chuvas e as erosões encaminham para as várzeas, dentre outros sólidos, os nutrientes que a fertilizam. Quem viu as imagens de deslizamentos recentes (região serrana do Rio de Janeiro) ou mais antigas como a da serra das Araras, na Via Dutra (1967, tanto quanto possível escondida da opinião pública pelo regime autoritário de então) ou outras tantas que estão em nossa memória, entende que há uma escala geológica para o porte desses eventos, em face da qual as intervenções humanas de engenharia destinadas a mitigá-las ou evitá-las não passam de pretensões descabidas. Ou seja, para estes casos só a política pública que impeça a ocupação dessas áreas de risco é a ação racionalmente justificável capaz de evitar ou reduzir o impacto catastrófico dos grandes deslizamentos. A erradicação total das ocupações humanas e de suas benfeitorias nessas áreas é a única providência eficaz, qualquer outra ou é precária e temporária ou irresponsável. Nem por isto obras destina70

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Soluções para enfrentar grandes chuvas, inundações e catástrofes

das a reduzir a força e danos do escoamento dessas águas a jusante tornam-se injustificáveis, como é o caso de contenções e consolidações de encostas que possam contribuir com menores danos nas porções menos íngremes e urbanizáveis, reduzindo o acesso a estas de torrentes mais intensas e de sedimentos, lamas, e rochas que as prejudiquem. Apenas precisa-se tornar claro que estas intervenções não autorizam a leniência e irresponsabilidade da ocupação das encostas sob risco de deslizamentos. As ações humanas, as políticas públicas, as inundações e os deslizamentos Enchente não é inundação. Inundações só ocorrem se, nas várzeas alagadas pela enchente, houver presença humana, benfeitorias e infraestruturas. Refletir sobre esta aparente obviedade (só há inundação porque a várzea está ocupada) pode ajudar na construção de políticas públicas e comportamentos sociais mais aptos para confrontar as inundações, além de mostrar-nos os caminhos e limitações do controle delas simplesmente através de ações de engenharia. Do mesmo modo, deslizamentos são acomodações geológicas importantes e, nessa escala histórica, úteis. Só se transformam em catástrofes quando no escoamento dos decorrentes aludes encontram pessoas, habitações e outras benfeitorias e infraestruturas (estradas, pontes, represas etc.). Diante deste fato, a ação humana de ocupação do território deve subordinar-se à sua divisão em duas categorias: em uma delas devem estar os territórios cuja ocupação ou é radicalmente vedada ou, no limite, restrita àquelas ocupações que podem coexistir ou com a ocorrência de enchentes ou deslizamentos; na outra, estão os demais territórios que podem ser ocupados porque as obras de engenharia lhes asseguram um nível de segurança compatível com a natureza dessa ocupação. Nos dois casos, a política pública que regula o uso e ocupação do solo é necessária. No primeiro, como fator único; no segundo, como coadjuvante indispensável. Ainda no segundo caso, além dessa política pública são também continuamente necessárias tanto a manutenção das estruturas e de sua capacidade de cumprir as funções para as quais são construídas (limpezas de galerias, desassoreamento de canais etc.), como a adequada operação de seus órgãos de controle. Entretanto, as circunstâncias da vida real tornam difícil administrar essas condições. Os terrenos de área de várzea estão sempre entre os mais baratos, por razões óbvias: quem para lá for corre o risco de sofrer os danos materiais e mesmo de vida decorrentes de

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uma eventual e muito provável inundação. Os habitantes de nossa metrópole só foram morar nas várzeas em uma de duas circunstâncias bem conhecidas e largamente praticadas ao longo de nossa história. Ou porque, sendo pobres e destituídos, só nestas áreas conseguiram ter acesso ao terreno necessário (por ser mais barato ou por tratar-se de área pública cuja invasão só raramente acarreta para o morador o custo da perda de sua moradia por demolição). Ou porque, o poder público induziu esse acesso, ao responder à necessidade de expandir a infraestrutura viária urbana e regional localizandoa nas áreas de várzea, por estas serem legalmente suas, alagáveis e até então não disputadas para outros usos mais valorizados pelo mercado imobiliário. Coisa similar ocorre nas encostas íngremes. Episódios bem conhecidos de nossa história, desde fins do século XIX, ilustram bem esse processo de ocupação resultante da pobreza e da visão usurária e míope de políticas públicas que ignoraram a natureza e o potencial de benefícios dos rios e córregos e de suas várzeas ou os riscos da sua ocupação e das encostas íngremes. A primeira explosão populacional em São Paulo é contemporânea da primeira leva de imigração, principalmente europeia. É bem conhecido (até pelos sambas do Adoniran Barbosa) onde, esmagadoramente, foram morar estes novos paulistanos. Nas várzeas do Tamanduateí (Brás, Ponte Pequena, imediações da Rua da Cantareira, da Moóca etc.), do Tietê (Bom Retiro, Barra Funda, Pompeia, Casa Verde Baixa, Osasco etc.) e até mesmo do Pinheiros. A sequência de crescimento populacional elevado que se seguiu e que perdurou até pouco mais de três décadas atrás foi proveniente da chegada de outros novos paulistas, agora provenientes de outros estados do Brasil. Como os anteriores contingentes migratórios, estes também foram morar predominantemente nas áreas de terreno desvalorizados, formados pelas várzeas ainda não ocupadas e agora, inovadoramente, – pelo menos pelos riscos até mais graves das enxurradas e deslizamento a que tem que se submeter – nas encostas íngremes das periferias da bacia. A Av. do Estado (Tamanduateí), a Av.Nove de Julho (Saracura), a Av. Pacaembu (Pacaembú), a Av. Vinte e Tres de Maio (Itororó), a Av. Aricanduva (Aricanduva), as marginais do Tietê e do Pinheiros etc., são alguns dos exemplos emblemáticos da visão que até hoje condenou as várzeas e seus rios a meros coadjuvantes – a contragosto – da política viária e de urbanização que a nossa sociedade – nem sempre a contragosto – tem assistido. Uma nova postura da sociedade e uma nova política pública precisam ser aplicadas: indispensavelmente, nas novas áreas que se abrirem à ocupação urbana; tanto quanto for possível, nas vastíssimas 72

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Soluções para enfrentar grandes chuvas, inundações e catástrofes

áreas já hoje ocupadas (cerca de quarenta por cento da área total da bacia do Alto Tietê estão urbanizadas, boa parte da qual situada sobre várzeas e no geral sem praticamente qualquer preocupação de não impermeabilizá-las). Felizmente os exemplos históricos antigos e pelo menos alguns relativamente recentes mostram a possibilidade de que esta é possível: um destes exemplos, também emblemático, é o da Av. Carvalho Pinto (Córrego Tiquatira), na zona leste. Basta ver como a população das vizinhanças usa intensamente o parque linear que ocupa as várzeas residuais do córrego canalizado. A engenharia e o controle das inundações As soluções de engenharia para o controle de inundações são fundamentalmente de dois tipos. Um deles baseia-se no que se denomina de Medidas Estruturais e, por oposição, a estas, as demais são denominadas Medidas Não Estruturais. As Estruturais baseiam-se em obras que modificam, de diferentes maneiras, a forma como a enchente se manifesta nos cursos d’água e em suas várzeas ou as torrentes escoam nas encostas íngremes. Todas elas visam, no caso de várzeas, reduzir a extensão das áreas alagadas e a duração dos alagamentos e, no caso de encostas íngremes, o ímpeto e poder destrutivo e de assoreamento das torrentes nas porções mais baixas da bacia. Todas elas interferem no regime natural do escoamento e, portanto, no equilíbrio do ecossistema, com repercussões imediatas sobre a flora e a fauna previamente existentes no curso d’água e em suas várzeas. Sob o ponto de vista ecológico, estas medidas são as que mais danos causam. Em contrapartida, sempre que as várzeas são ocupadas pela atividade humana, suas benfeitorias e infraestruturas, estas são as medidas que mais as protegem, desde que se as implante no porte e segurança adequados (e estas sejam assim mantidas ao longo do tempo), e desde que haja condições financeiras e econômicas para viabilizá-las. No caso das várzeas, as não estruturais pressupõem basicamente intervenções em que se procura preservar o regime de enchentes e o próprio ecossistema fluvial, minimizando não as enchentes, mas, os danos das inundações, na medida em que as infraestruturas e benfeitorias existentes em suas várzeas podem conviver com eventuais períodos de enchente sem sofrerem danos de monta ou inaceitáveis (como no caso histórico do Parque Dom Pedro, na várzea do Tamanduateí, e do Parque Ecológico, anteriormente lembrados). Estas medidas se implantam através de normas e leis que determiNelson L. R. Nucci

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Observatório

nam na área de várzeas do curso d’água as ocupações e usos do solo compatíveis com a convivência com enchentes periódicas. As intervenções físicas, nestes casos, quando necessárias, são de pequeno porte e têm o objetivo específico de proteger da enchente áreas restritas e localizadas, previamente ocupadas e que não podem conviver com inundações periódicas. O pressuposto, para que uma ou outra destas medidas seja efetiva, é que elas tenham sido planejadas, projetadas e executadas, além de operadas e mantidas para atender às condições previamente estabelecidas que lhe determinam o porte e as características. As Estruturais dependem das vazões a escoar, no caso dos cursos d’água e bombeamentos, ou das vazões a controlar e reter, nos casos de represas e “piscinões” e de obras em encostas. As Não Estruturais dependem da extensão da área da várzea alcançada pela enchente, ou seja, das vazões que ocorrerão. Como enfrentar a situação crítica atual e prover para o futuro Acreditamos ter tornado evidente que o principal fator limitante do sucesso no enfrentamento destas catástrofes, cada vez mais frequentes e mais intensas, de deslizamentos e inundações não está – ao contrário do que pode parecer – na indisponibilidade de recursos financeiros para os investimentos necessários em obras de engenharia. Claro que estes podem e devem ser maiores, mas, para que cumpram seus objetivos de eficácia na minimização e prevenção de danos é essencial que a sociedade e o poder público instituído tornem-se prontamente eficazes para prever e assegurar a natureza, extensão e densidade da ocupação dos solos das bacias de drenagem compatíveis com as obras planejadas e de prever e disciplinar mandatoriamente a ocorrência futura dessa ocupação prevista. Adicionalmente, em face da certeza da existência de um potencial de risco de ocorrências com os quais sempre se conviverá, é urgente planejar e implantar sistemas de comunicação, de abrigo, de rotas de fuga e de treinamento das populações presentes nas áreas em que o potencial de danos é maior. Experiências já existem, muitas delas internacionais, e recém-mostradas pelos meios de comunicação, desde as mais antigas utilizadas durante os bombardeios da II Guerra até as mais recentes, de proteção em caso de “tsunamis”, às mais específicas de proteção em casos de grandes chuvas, inundações e deslizamentos. O recém propalado mapeamento nacional das áreas 74

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Soluções para enfrentar grandes chuvas, inundações e catástrofes

de risco pode ser um bom início de ações coordenadas em nível nacional e amplamente disseminadas em todo país. Como é sabido, a experiência republicana de gestão, com a sabedoria que decorre do seu exercício, consagraram a competência pela disciplina e ocupação e uso do solo como um atributo do município. Essas mesmas sabedoria e prática deixaram evidente a necessidade de encontrar formas de articular e subordinar o exercício dessa competência aos interesses mais amplos, supramunicipais e regionais. Nas últimas décadas, esses interesses, principalmente nas áreas metropolitanas, mereceram atenção e propiciaram algumas ações legais e institucionais para abrigá-los. Lamentavelmente, como no caso da drenagem e dos assim chamados “serviços de interesse comum metropolitano”, o processo de redemocratização não foi capaz de encaminhar as soluções necessárias na amplitude e velocidade desejáveis. Reverter rapidamente esta situação em prol de articulações político-institucionais e decorrentes ações estruturais e operacionais é um desafio cujo enfrentamento pode ser alavancado pela perplexidade e comoção causadas pelas catástrofes recentes. Assim espera-se.

Nelson L. R. Nucci

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IV. Quest천es do Desenvolvimento


Autores Alaor Chaves

Bacharel e mestre em Física pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Ph.D em Física pela University of Southern California e membro Titular da Academia Brasileira de Ciências Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico

Tony Volpon

Economista, chefe da área de pesquisas de mercados emergentes da Nomura Securities

José Carneiro da Cunha

Doutor em Economia pela Universidade de Brasília

Demétrio Carneiro

Especialista em Políticas Públicas


Ciência para o Brasil Alaor Chaves

O

vigoroso crescimento da ciência brasileira nas últimas décadas é reconhecido por todos. Mas também se reconhece que nem tudo vai bem em nossa ciência. Por um lado, sabe-se que seu impacto não tem acompanhado o crescimento quantitativo. Por outro, a inserção da nossa ciência na vida do país tem sido muito menor do que a atingida nos países líderes em ciência. Por razões diversas que incluem a gênese da nossa indústria, que não selecionou o gene da inovação, deficiências em nossa política industrial e na formulação de nossa agenda científica, o envolvimento de nossas empresas com inovação é muito aquém do desejado. No Brasil, o Estado arca com mais da metade das aplicações em pesquisa e desenvolvimento (P&D). Por causa da pequena aplicação das empresas, em 2008 só 1,09% do nosso Produto Nacional Bruto (PNB) foi destinado à P&D, enquanto na média da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) essa fração foi 2,28%. Em 2009 e 2010, houve considerável aumento nos dispêndios brasileiros em P&D, e segundo o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) eles foram 1,5% do PNB em 2010. Mas o desempenho do setor empresarial ainda foi medíocre: enquanto o Estado aplicou 0,85% do PNB, as empresas só aplicaram 0,65%, muito aquém da média de 1,58% verificada na OCDE. Em 2010, Brasil foi um dos países em que o Estado aplicou a maior fração do PNB em P&D. Não dispomos de números atualizados para outros países, mas em 2008 essas frações foram: Austrália (0,86%), Canadá (0,84%), EUA (0,76%), França (0,75%), Alemanha

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Questões do Desenvolvimento

(0,70%), OECD (0,69%), China (0,40%) (C. H. Brito Cruz; H. Chaimovich, em Unesco Science Report 2010). É correto e necessário que nosso Estado aplique intensamente em P&D, pois sem sua atuação vigorosa o panorama seria drástico. Mas dado o nosso atraso tecnológico e a qualidade ainda pouco destacada de nossa ciência, para que a ação do Estado tenha maior eficácia a política científica e tecnológica precisa ser repensada. Na verdade, até mesmo o sistema educacional tem de entrar no foco da análise. Há, no meio científico, quem afirme que é papel da nossa comunidade aprovar projetos, e que cabe ao governo bancá-los ou não. Isso é questionável. Vivendo em um dos países em que o Estado aplica a maior fração do PNB em pesquisa, e que tem tantos problemas sociais agudos a enfrentar, temos no momento de ajudar a decidir, com austeridade e análise cuidadosa dos méritos comparativos, que projetos temos de priorizar, sob pena de perdermos o respeito da sociedade que nos sustenta. Um estudo foi encomendado pela Capes a uma equipe de físicos (Adalberto Fazzio, Alaor Chaves, Celso Melo, Rita Maria de Almeida, Roberto Mendonça Faria e Ronald Shellard), cujas conclusões foram publicadas no livro Ciência para um Brasil Competitivo – o papel da Física (Capes, 2007). O estudo aponta problemas diversos, alguns na formação de nossos engenheiros e cientistas (engenheiros pouco científicos e cientistas excessivamente acadêmicos), decorrentes em parte da especialização muito precoce dada a nossos universitários, em parte do baixo interesse das empresas por engenheiros científicos. O estudo aponta também a necessidade de se criar dentro do país uma infraestrutura de pesquisa que inclua instituições capazes de abordar projetos científicos e tecnológicos mais desafiadores e de desenvolver instrumentação científica de classe mundial que possibilite seu enfrentamento. Com ações indutivas do Estado, a parte mais comercializável dessa instrumentação passaria a ser produzida em escala industrial por nossas empresas. Nossa incipiência em instrumentação – para a pesquisa, para a indústria, para o setor médicohospitalar – é deplorável. Foi também proposta a criação de uma empresa estatal que funcionasse ao modo da Embrapa, dedicada a resolver os mais importantes gargalos tecnológicos industriais. Dentre as coisas que precisamos repensar, inclui-se a ênfase que temos dado às colaborações científicas internacionais. Creio que a história revela com clareza e eloquência que todos os países bem sucedidos em desenvolver uma ciência tardia – ex-União Soviética, Japão, Coreia, China – praticaram, pelo menos temporariamente, um alto grau de introversão científica. Japão só se abriu para colaborações com EUA e Europa depois de se tornar altamente competitivo. 80

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Ciência para o Brasil

De mais de um físico japonês ouvi o estribilho: “quem não é capaz de competir não deve colaborar”. Já o Brasil, assim como a Índia, optou por fazer ciência “para inglês ver”. A Índia foi bem sucedida em desenvolver uma ciência acadêmica do mais alto nível, mas só agora está se tornando capaz de inseri-la na vida do país. O Brasil, por enquanto, não fez nem uma coisa nem outra. No momento, há três grandes projetos científicos que envolvem a física brasileira, um nacional e dois estrangeiros: a expansão e atualização do Laboratório Nacional de Luz Sincrotron (LNLS), a adesão ao consórcio europeu que opera o European Southern Observatory (ESO) e o ingresso do Brasil no European Organization for Nuclear Research (CERN), outro laboratório bancado por um consórcio europeu. Há ainda um quarto projeto, o Reator Multipropósito Brasileiro, já em andamento após a aprovação do MCT, em maio de 2010, e que é da maior importância para o país. O LNLS, que vem sendo discutido há anos, custará R$ 360 milhões em seis anos. Será feito com tecnologia brasileira (fora a aquisição de componentes disponíveis no comércio internacional) e seguramente trará avanços para várias tecnologias no Brasil. Quase todo o dinheiro ficará no Brasil, o que significa que quase 40% dos recursos retornarão ao Tesouro na forma de impostos. A adesão à ESO nos custará R$ 300 milhões em 11 anos (R$ 130 milhões como taxa de ingresso). Após isso, o Brasil contribuirá com quantia proporcional ao nosso PNB, o que já por volta de 2018 nos transformará, junto com Alemanha, no maior financiador da ESO. Mas, nesta geração, o Brasil não terá qualquer chance de alcançar um papel de liderança científica no consórcio. Teremos, é fato, acesso a uma excelente infraestrutura já existente ou em fase de conclusão, e também ao programado Eso Extremely Large Telescope (EELT), mas disputaremos seu uso com concorrentes que contribuirão com muito menos dinheiro e serão cientificamente mais competitivos. Sobre o E-ELT, é preciso esclarecer que seu custo estimado (projetos que envolvem tecnologia ainda não dominada acabam custando muito mais do que o previsto) é de R$ 1 bilhão, mas, por enquanto, a ESO só conta (fora o dinheiro brasileiro, que, em parte, será usado na manutenção da infraestrutura já disponível) com R$ 400 milhões. Estão correndo o chapéu pelo mundo afora, mas por enquanto só nós nos aventuramos. O CERN, que construiu e opera o LHC, maior acelerador de partículas do mundo, assim como a ESO recebe dos países membros uma contribuição proporcional ao PNB. O MCT solicitou nosso in-

Alaor Chaves

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Questões do Desenvolvimento

gresso como membro associado do CERN. No caso do Brasil, a contribuição computada pelo PNB seria de US$ 150 milhões/ano. Mas por enquanto só pagaremos 10% desse valor. Com o tempo, pode ser que venhamos também a nos tornar o maior financiador do CERN. No momento, cerca de setenta físicos que ocupam posições acadêmicas no Brasil destinam o seu esforço de pesquisa a trabalhos no CERN. São pesquisadores financiados pelo Brasil que trabalham no CERN sem nem mesmo ocupar espaço físico naquele laboratório. Esse arranjo parece bom para o Brasil e excelente para o CERN. Argumenta-se que, como membro associado, poderemos competir em licitações do CERN. Mas competir é uma coisa, ser competitivo é outra. A China está também considerando (com a sua cautela milenar) a possibilidade de ingressar no CERN. Mas ela já desenvolveu uma extraordinária capacidade tecnológica no campo. É grande exportadora de aceleradores de portes médio e pequeno e de componentes e periféricos para aceleradores (na internet, há muitos anúncios desses seus produtos). Se entrar no CERN, é seguro prever que a China almeje em médio prazo levantar a taça de campeã do ramo. Cabe apontar que, mesmo estreante no ramo da radioastronomia, está construindo um radiotelescópio com 500 metros de diâmetro, de longe o maior do mundo. A Austrália tem de longe a melhor ciência do hemisfério Sul e já ganhou 11 prêmios Nobel de ciência. Sua astronomia é excepcional. Junto com outro consórcio, está projetando o Square Kilometer Array, a maior e mais poderosa malha de radiotelescópios do mundo, que ficará na Austrália ou na África do Sul. Está sendo assediada pela ESO. No que se refere a telescópios ópticos, por enquanto, comprometeu-se com o Giant Magellan Telescope (GMT), projeto mais modesto e realista de um consórcio de universidades americanas ao qual aderiu junto com a Coreia. Duas empresas australianas já estão engajadas no projeto. Um dos elementos de mais alta tecnologia do GMT, o sistema eletro-óptico de óptica adaptativa (corrige em tempo real as distorções de imagem causadas pela turbulência atmosférica) ficará a cargo de uma delas. Ninguém espera que Austrália ou Coreia entre com dinheiro. Suas contribuições virão na forma de tecnologia e componentes para o GMT. Em dezembro de 2010, o Ministério de Ciência e Tecnologia assinou protocolos de ingresso na ESO e no CERN, deixando de lado o projeto do LNLS. No campo da ciência e da tecnologia, nenhum país atingiu relevância com o tipo de política que temos praticado. O Brasil precisa formar muito mais pesquisadores do que tem formado. Temos 133 mil pesquisadores, a Índia tem 155 mil, a Coreia tem 222 82

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Ciência para o Brasil

mil, a Rússia tem 469 mil, o Japão tem 710 mil e a China tem 1.423 mil. Os nossos pesquisadores têm de ser melhor preparados para a inovação e para trabalhar em empresas, e as empresas precisam de enérgicas ações estatais para empregar esses profissionais. Temos de criar, dentro do país, centros de pesquisa capazes de enfrentar grandes desafios científicos e tecnológicos. É grave o fato de não produzirmos sequer aceleradores de partículas para radioterapia ou produção de radioisótopos, nem telescópios adequados para astrônomos amadores (em 2009, importei dois telescópios para um grupo de divulgação da astronomia do qual participo). Temos de formular nossa própria agenda científica. Quando estivermos preparados para disputar o campeonato da primeira divisão em ciência, aí sim, a concessão de quantias vultosas a projetos internacionais poderá servir aos interesses do país. E não podemos esquecer que o projeto de nação de um país continental como o Brasil tem de ser distinto do de uma Holanda, Áustria, Dinamarca, Portugal etc. Ciência para o Brasil deve ser feita muito prioritariamente no Brasil. E o país não pode abrir mão do projeto de alcançar competência e autonomia em todas as tecnologias que determinam a afluência das nações no mundo contemporâneo. (Texto extraído do Jornal da Ciência, órgão da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC).

Alaor Chaves

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Guerra Cambial: uma nova proposta Tony Volpon, José Carneiro da Cunha e Demétrio Carneiro

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tualmente, questões referentes à guerra cambial têm ganhado espaço na mídia. Apesar da manipulação das taxas de câmbio, com a finalidade de aumentar artificialmente a competitividade da economia não ser assunto novo, o tema voltou ao centro das atenções devido tanto à permanência da política cambial chinesa, quanto à recente política de expansão monetária (quantitative easing) adotada pelos Estados Unidos. De fato, as questões que geraram a apreciação da moeda brasileira também mudaram a posição relativa do Brasil na dita guerra cambial. Mudamos de “lado”: de beneficiários passamos a prejudicados.

Alem da questão cíclica, que acreditamos momentânea, da política de expansão da liquidez pelo governo americano, o Brasil enfrenta um problema mais estrutural, de perda de competitividade em manufaturados, e isso exatamente para seu maior parceiro comercial, a China. Maior responsável pela contínua alta nos preços das commodities desde 2002, fator que iniciou e deu sustentação aos anos de fartura do governo Lula, a China agora também concorre fortemente, e com sucesso, contra a indústria nacional, usando sua alta produtividade para penetrar tanto o mercado interno como concorrer nos mercados externos, especialmente na América Latina, onde o Brasil sempre teve forte participação na venda de produtos manufaturados. Procurando mercados alternativos aos dos países desenvolvidos no período pós-crise, a China está mirando os emergentes para sustentar sua fortíssima indústria exportadora. A estratégia do governo Lula foi a de deixar a economia brasileira se especializar, de forma passiva, frente à demanda chinesa, utilizando a “mais valia” das nossas exportações para sustentar níveis maiores de consumo, além de uma pequena e discreta alta nos investimentos. Com os baixos níveis de poupança que temos, estamos sustentando o crescimento da demanda agregada, que supera o crescimento da oferta ano após ano, com crescentes níveis de importações. Importações que, no período pós-crise, têm crescido em até 84


Guerra Cambial: uma nova proposta

40% ao ano. E a única razão pela qual conseguimos importar mais e mais não é que estejamos exportando mais, tudo decorre de o preço daquilo que exportamos estar subindo muito mais que os preços daquilo que importamos. Portanto, todo o processo do crescimento do mercado interno, algo defendido por muitos como uma “novidade” do governo Lula, fruto de suas políticas, é, na verdade, mera consequência de um processo externo determinado pela demanda chinesa. A única coisa que o governo Lula fez foi decidir como gastar essa nova riqueza, nada fazendo efetivamente para criá-la. Evidente que o Brasil ficou mais rico devido à demanda chinesa, e o governo decidiu gastar essa riqueza. No futuro, vamos entender essa decisão como grande erro de proporções históricas: A forte demanda da China pelas nossas commodities não é algo permanente, mas, um movimento temporário ligado a um processo acelerado de urbanização que vai, segundo muitas estimativas, se completar em mais ou menos dez anos. Depois disso, a demanda vai desaquecer, e o atual “super ciclo” de alta das commodities vai acabar. Dez ou mais anos pode parecer muito tempo, mas realmente não é: se continuarmos com a política lulista de deixar a economia se especializar na exportação de commodities, sem aplicar essa atual “mais valia” temporária em novos investimentos e capacidades produtivas fora do setor básico, vamos sofrer, como muitas vezes já aconteceu na nossa historia, a maldição de ter que vender o fruto de nossas fazendas e minas em um mercado com preços em queda. O Brasil precisa urgentemente perceber que a bonança atual é temporária, que não podemos tratá-la como algo permanente, e, portanto, algo que pode ser simplesmente consumido despreocupadamente. Devemos urgentemente re-ordenar nossa política fiscal e tributária para poupar esse excedente, redirecionando-o para investimentos em setores com maior valor agregado, não deixando o Brasil virar uma “grande fazenda” dependente da demanda chinesa. Um país como o Brasil deveria ter, do lado fiscal, um superávit nominal, diminuindo fortemente seu endividamento e, do lado externo, um superávit na conta corrente, podendo assim poupar um excedente externo em um fundo soberano com ativos reais (e não como o atual, que financia compra de dólares com a emissão de dívida federal). É nesse contexto maior e mais estrutural que devemos analisar a questão cambial. Nossa moeda está claramente muito cara, mas o que fazer para desvalorizá-la?

Tony Volpon, José Carneiro da Cunha e Demétrio Carneiro

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Questões do Desenvolvimento

O sucesso ou fracasso desse tipo de política de desvalorização cambial não é consenso entre os especialistas. Após um breve período de supremacia das taxas de câmbio flexíveis, temos hoje um vigoroso debate sobre sua adequação frente aos objetivos estratégicos de desenvolvimento seguidos pelo Brasil e, também, às dificuldades de uma economia que depende de investimentos externos para financiar seu crescimento. Efetivamente, a crítica atual não está centrada na superioridade ou não do sistema flexível, mas na eventual fragilidade que esse modelo exporia o país a possíveis manipulações praticadas por outros governos em suas moedas. A questão chave no debate diz respeito aos condicionantes dos fluxos cambiais. Um país que acumule saldos positivos sucessivos acumulará moeda estrangeira no mercado interno, o que fará sua moeda valorizar-se. Dado que, no Brasil, a taxa de juros é o principal instrumento para controle inflacionário, e a crise não afetou em demasia a economia interna, com o governo, inclusive, ampliando sua necessidade de financiamento, não houve espaço para reduções nos juros de magnitude suficiente para acompanhar a queda nas taxas americana e europeia. Assim, o diferencial de juros entre o Brasil e o resto do mundo passou a remunerar mais do que nosso risco relativo, criando uma oportunidade atraente e constante de arbitragem entre os mercados americano/europeu e o brasileiro, o que amplia o fluxo para o Brasil de dólares em geral, e da especulação em particular, e afasta o câmbio do equilíbrio que seria gerado apenas pelos fluxos produtivos e de investimento. Para enfrentar a situação, o governo tem agido. Quando aumenta o IOF, imposto sobre importação, ou estabelece a necessidade de reservas para determinadas operações ou utiliza recursos do fundo soberano para a compra de dólares, ele está, de fato, tentando controlar o câmbio. Apesar dos esforços, as medidas adotadas não têm sido capazes de gerar os resultados esperados, além de produzirem impactos ruins e diretos sobre as taxas de juros. O custo fiscal da política de intervenção pode ter chegado a US$ 25 bilhões, neste último ano, recursos que poderiam ser destinados a investimentos em infraestrutura e a aumentar a competitividade do setor de manufaturados. Como passo final, há sempre o risco de a autoridade optar pelo retorno da taxa fixa de câmbio, o que limitaria o uso da política monetária como instrumento de controle inflacionário e deixaria o país vulnerável a ataques especulativos, mesmo dispondo de um grande volume de reservas internacionais. Acreditando, de fato, que o câmbio totalmente flexível continua como a melhor política, propomos uma ação alternativa, mais efi86

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Guerra Cambial: uma nova proposta

ciente que as atuais intervenções e consideravelmente melhor que o câmbio fixo. O modelo proposto parte da adoção de duas taxas de câmbio distintas, uma para os fluxos produtivos e outra para os fluxos especulativos. A “taxa produtiva” seguiria flexível, sendo determinada pelos fluxos cambiais dos mercados importador/exportador e de investimentos diretos; já a “taxa especulativa”, usada para os fluxos definidos como especulativos, seria dada pela “taxa produtiva” menos um spread, determinado pelo diferencial de juros entre o Brasil e o restante do mundo, a ser calculado pelo Banco Central. Dessa forma, a “taxa especulativa” seria sempre mais baixa que a “taxa produtiva” e o spread eliminaria a oportunidade de arbitragem que, atualmente, atrai grande parte do fluxo de dólares. Nesse modelo, o investidor especulativo entra no país pela “taxa especulativa” (mais baixa), mas somente pode retirar seus recursos pela “taxa produtiva” (mais alta). Tal abordagem é semelhante a uma tributação a “la Tobin”, defendida por alguns segmentos do FMI. Se o BC determinar que o spread de juros entre o Brasil e o resto do mundo é de 10% ao ano, e a taxa de cambio produtiva for de R$ 2,00, a taxa para entrada de recursos especulativos será de R$ 1,80. O especulador poderia sair do país, a qualquer momento, mas somente na “taxa produtiva”, que continuaria a flutuar. A flexibilidade em fixar o spread garante ao Banco Central a habilidade de ajustá-lo, de forma continua, a mudanças no cenário externo e interno, influenciando nos incentivos aos fluxos financeiros, de acordo com o cenário de financiamento do déficit público. Em um momento como agora, quando é necessário aumentar a taxa Selic para controlar a inflação, o spread entre as taxas poderia ser aumentado, o que custaria muito menos ao Tesouro que as pesadas intervenções feitas pelo BC e a Fazenda por meio do Fundo Soberano. Um ponto frágil do modelo é a definição de quais fluxos são produtivos e quais os especulativos. Em todos os casos de taxas múltiplas conhecidos, tal determinação sempre foi foco de problemas de corrupção. Pretendemos evitar isso de duas formas: primeiro, prédefinindo os tipos de fluxos que podem ser enquadrados em cada taxa (por exemplo, exportações e importações sempre serão fechadas pela “taxa produtiva”, fluxos para a renda fixa pela “taxa especulativa”). Mas, dados os incentivos existentes entre as duas taxas, haverá a necessidade de um acompanhamento contínuo e discricionário. Porém, poderiam se reduzir os riscos de eventuais problemas criando-se uma comissão formal e específica, com estrutura e estatuto que garantam a transparência das decisões, formada por representantes dos setores produtivo, financeiro, academia e governo. Tony Volpon, José Carneiro da Cunha e Demétrio Carneiro

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Questões do Desenvolvimento

Investimentos de mercado de capitais considerados como prioritários, como emissões iniciais de ações (IPO) ou títulos de renda fixa para financiar investimentos de longo prazo em infraestrutura, podem, eventualmente, ser tratados como “não especulativos” e ter tanto sua entrada como sua saída garantida pela “taxa produtiva”. Até compras de títulos federais de longo prazo, por ajudar no financiamento da dívida pública, podem eventualmente ser admitidas como “produtivas”. Esse poder de distinguir torna o sistema aqui proposto muito mais flexível que o atual. Diferente das abordagens usuais de taxas múltiplas, a proposta, aqui denominada banda dual flutuante endógena (Bandufe), não é fixa, mas flutuante, o que limita o risco de ataques especulativos e garante que o mecanismo de ajuste das contas externas continue normalmente funcionando. Adicionalmente, o diferencial das taxas é determinado endogenamente pelo diferencial de juros, o que reduziria a perda de eficiência da política monetária como instrumento de controle inflacionário, ao mesmo tempo em que manteria fechada a janela de arbitragem. Por cobrar um tipo de pedágio inicial, semelhante a um tributo a la Tobin, essa estrutura deve imediatamente diminuir a pressão sobre a taxa de câmbio advinda de fluxos especulativos, o que provocaria uma depreciação da taxa de câmbio como um todo. A abordagem Bandufe causa distorções negativas no mercado, porém estas são menores do que as provocadas pelo complexo sistema de impostos e intervenções que têm sido criados na tentativa de alterar o equilíbrio cambial. Em complemento, reduzir-se-ão os custos, para o Tesouro Nacional, da política cambial, liberando verbas hoje destinadas ao controle da especulação para políticas públicas mais positivas. Como resultado líquido, a Bandufe deverá ser mais eficiente para o atendimento dos objetivos almejados.

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V. O Social e o PolĂ­tico


Autores Ferreira Gullar

Pseudônimo de José Ribamar Ferreira, poeta, crítico de arte, biógrafo, tradutor, memorialista e ensaísta

Luiz Werneck Vianna

Professor da PUC-Rio e ex-presidente da Anpocs. Um dos seus livros mais recentes é A constitucionalização da legislação do trabalho no Brasil. Uma análise da produção normativa entre 1988 e 2008, junto com Marcelo Baumann Burgos e Paula Martins Salles (Brasília: Fundação Astrojildo Pereira e Centro de Estudos Direito e Sociedade, 2010)


Quando 2 e 2 são 4 Ferreira Gullar

T

alvez seja esta a última vez que escreva sobre o cidadão Luiz Inácio Lula da Silva, ex-presidente do Brasil. Com alívio o vi terminar o seu mandato, pois não terei mais que aturá-lo a esbravejar, dia e noite, na televisão, nem que ouvir coisas como esta: “Ele é tão inteligente que fala todas as línguas sem ter aprendido nenhuma”. Pois é, pena que não fale tão bem português quanto fala russo. É verdade que tivemos, ainda, que aturá-lo nos três últimos dias do mandato, quando “inaugurou” obras inexistentes e fez tudo para ofuscar a presidente que chegava. Depois de passar a faixa, foi para um comício em São Bernardo, onde, até as 23h, continuava berrando no palanque, do qual nunca saíra desde 2002. Aproveitou as últimas chances para exibir toda a sua pobreza intelectual, dizendo-se feliz por deixar o governo no momento em que os Estados Unidos, a Europa e o Japão estão em crise. Alguém precisa alertá-lo para o fato de que a crise, naqueles países, atinge, sobretudo, os trabalhadores. Destituído de senso crítico, atribui a si mesmo (“um torneiro mecânico”) o mérito de ter evitado que a crise atingisse o Brasil. Sabe que é mentira, mas o diz porque confia no que a maioria da população, desinformada, acreditará. Isso dá para entender, mas e aqueles que, sem viverem do Bolsa Família nem do empréstimo consignado, v nele um estadista exemplar, que mudou o Brasil? É incontestável que, durante o seu governo, a economia se expandiu e muita gente pobre melhorou de vida. Mas foi apenas porque ele o quis, ou também porque as condições econômicas o permitiram? 91


O Social e o Político

Vamos aos fatos: até à criação do Plano Real, a economia brasileira sofria de inflação crônica, que consumia os salários. Qual foi a atitude de Lula ante o Plano Real? Combateu-o ferozmente, afirmando que se tratava de uma medida eleitoreira para durar três meses. À outra medida, que veio consolidar o equilíbrio de nossa economia, a Lei de Responsabilidade Fiscal, Lula e seu partido se opuseram radicalmente, a ponto de entrarem com uma ação no Supremo para revogá-la. Do mesmo modo, Lula se opôs à política de juros do Banco Central e ao superávit primário, providências que complementaram o combate à inflação e garantiram o equilíbrio econômico. Essas medidas, sim, mudaram o Brasil, preservando o valor do salário e conquistando a confiança internacional. Lembro-me do tempo em que o preço do pão e do leite subia de três em três dias. Quem tinha grana, aplicava-a no overnight e enriquecia; quem vivia de salário comia menos a cada semana. Se dependesse de Lula e seu partido, nenhuma daquelas medidas teria sido aplicada, e o Brasil – que ele viria a presidir – seria o da inflação galopante e do desequilíbrio financeiro. Teria, então, achado fácil governar? Após três tentativas frustradas de eleger-se presidente, abandonou o discurso radical e virou Lulinha paz e amor. Ao deixar o governo, com mais de 80% de aprovação, afirmou que “é fácil governar o Brasil, basta fazer o óbvio”. Claro, quem encontra a comida pronta e a mesa posta, é só sentar-se e comer o almoço que os outros prepararam. A verdade é que Lula não introduziu nenhuma reforma na estrutura econômica e social do país, mas teve o bom-senso de dar prosseguimento ao que os governos anteriores implantaram. A melhoria da sociedade é um processo longo, nenhum governo faz tudo. Inteligente, mas avesso aos estudos, valeu-se de sua sagacidade, já que é impossível conhecer a fundo os problemas de um país sem ler um livro; quem os conhece apenas por ouvir dizer não pode governar. Por isso acho que quem governou foi sua equipe técnica, não ele, que raramente parava em Brasília. Atuou como líder político, não como governante, e, se Dilma fizer certas mudanças, pouco lhe importará, pois nem sabe ao certo do que se trata. Para fugir a perguntas embaraçosas, jamais deu uma entrevista coletiva. Afinal, ninguém, honestamente, acredita que com programas assistencialistas e aumento do salário mínimo se muda o Brasil. O tempo se encarregará de pôr as coisas em seu devido lugar. O presidente Emílio Garrastazu Médici também obteve, em 1974, 82% de aprovação. 92

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Sindicato e política no governo Dilma

Sindicato e política no governo Dilma1 Luiz Werneck Vianna 1. Dilma e os sindicatos Logo em seus primeiros dias de governo, nos idos de 2003, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva convocou as principais lideranças sindicais do país para dizer-lhes que, com ele, se iniciava a experiência inédita de um governo dos trabalhadores. Tamanha responsabilidade, acrescentava, era para ser compartilhada pelos sindicatos que, em suas movimentações classistas deveriam considerar o estado de coisas reinante na economia e na correlação de forças políticas do país. Em suma, o cálculo político não poderia se ausentar de suas decisões, uma vez que havia um governo de novo tipo a ser defendido. Os dois primeiros anos do governo Lula foram especialmente difíceis para o conjunto de forças que o apoiavam, em particular os sindicatos, à medida que significaram uma evidente continuidade com os rumos macroeconômicos da administração que sucedia, denunciada como nociva aos trabalhadores pelo PT, quando exercia o papel de principal partido da oposição. Esses foram tempos de silêncio do mundo sindical, embora tenham assistido a uma expressiva ocupação por parte de sindicalistas de posições no interior da máquina estatal, algumas delas de importância estratégica. De fato, por fas ou por nefas, a política econômica do ciclo PSDB/PT não foi contestada pelo sindicalismo nos oito anos do governo Lula. Um indicador dessa espécie de concordata implícita entre governo e sindicatos está na radical queda das ações de contestação junto ao Judiciário de medidas legislativas de iniciativa governamental – de passagem, registre-se que esse foi um tempo em que se produziram várias leis favoráveis aos trabalhadores –, para não se mencionar a baixa incidência de greves durante o período.

1 Cinco textos publicados no jornal Valor Econômico, nos dias 24 e 31 de janeiro, 14, 21 e 28 de fevereiro de 2011. Todos os artigos do autor publicados semanalmente neste jornal estão reunidos nas rubricas Observador Político 2010 e Observador Político 2011, em Gramsci e o Brasil (www.gramsci.org). Luiz Werneck Vianna

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Havia, contudo, uma pedra no caminho: o PT, desde suas origens no movimento sindical do ABC, mantinha uma posição doutrinária adversa à legislação da era Vargas, que o levava a questionar durante dois dos seus pilares: o sindicato único por categoria e o chamado imposto sindical, que, em sua avaliação, obstaculizavam o caminho para a conquista de um sindicalismo efetivamente livre de vínculos com o Estado e representativo da vontade do seu corpo associativo. Com efeito, em 2004, fiel a essa política, o governo convoca um amplo Fórum Sindical com a proposta de converter seu programa sindical em realidade. Tal proposta, diante de uma cerrada oposição de outras correntes do sindicalismo, foi retirada, e, mais que isso, a antiga formatação da CLT se faz ampliar com a incorporação a ela das centrais sindicais, que, além de legitimadas pela legislação, passam a receber uma parcela do que for arrecadado pelo imposto sindical. Os vértices sindicais ganham, assim, maior autonomia operacional e recursos próprios para a sustentação de suas atividades, reforçados por sua inscrição no interior do governo e das agências estatais. Doutrinariamente unido em torno do modelo da CLT, de certo modo o sindicalismo é governo nos mandatos de Lula, e o será em escala inédita na nossa história republicana. Daí que o atual contencioso entre as centrais sindicais e o governo Dilma extravasa o campo prosaico das demandas salariais e se torna uma questão caracteristicamente política, uma vez que ameaça afetar o seu programa de governo a partir da sua própria estrutura interna. Substantivamente, põe sob risco sua orientação de promover uma gestão sob a bandeira da racionalização da administração e da economia em nome de suas políticas sociais e de expansão das atividades produtivas. De outra parte, a conjuntura sindical se encontra informada por variáveis favoráveis ao mundo do trabalho que repercutem positivamente em sua capacidade de organização, ao contrário do que ocorria, poucos anos atrás, quando conspiravam contra ele tanto a reestruturação do sistema produtivo quanto o baixo crescimento da economia. Oportuna e bem documentada matéria do Valor (19/1/2011) demonstra que, nos últimos cinco anos, houve um aumento expressivo da massa salarial, registrando-se um salto entre 2009 e 2010 da ordem de 7,6%. A mesma matéria, analisando os reajustes salariais de quatro estratégicas categorias de trabalhadores (bancários, químicos, metalúrgicos de montadoras e petroleiros), no curso dos anos de 2000 a 2010, exibe dados em que se constatam ganhos salariais bem

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acima da inflação, em particular, em duas categorias, tradicionalmente bem organizadas. Ainda tateantes, se esboçam, a partir da controvérsia sobre o valor do salário mínimo, novas relações entre governo e sindicatos que, no caso, tendem a evocar os anos do governo João Goulart, quando as centrais pretendiam exercer poder de veto quanto a iniciativas governamentais que não contassem com sua prévia aprovação. Dilma estaria contrariando o estilo de Lula, que não as levava a público antes de torná-las minimamente consensuais entre suas forças principais de sustentação. No caso, para além da questão salarial, as centrais parecem que se insurgem – talvez principalmente – contra o fechamento dos canais de negociação que Lula mantinha com elas (ver Boletim Eletrônico da Agência Sindical de 20/01/2011). O tema recente da elevação da taxa de juros por decisão do Banco Central sinaliza para a mesma direção. Sobre esse tema sensível, nota dada a público pela Força Sindical não foge das palavras fortes: “É incrível, mas parece que o governo que inicia quer implantar a agenda econômica que foi derrotada nas últimas eleições por privilegiar o capital especulativo” (o mesmo Boletim, 21/1/2011). O argumento, como se sabe, é puramente retórico: o candidato Serra sempre se mostrou inequivocamente contrário à política de juros do Banco Central. As centrais, na verdade, estão é declarando em alto e bom som que ou são reinstaladas no governo pela presidente Dilma, como Lula parecia anuir ou lhes fazia imaginar, ou vão fazer política no Parlamento, nas ruas e nos sindicatos. Como disse um sindicalista, em frase pouco enigmática, “que recomeçou, recomeçou”. 2. Os sindicatos e a política Os primeiros cem dias consistem na marca cabalística a partir dos quais a imprensa sonda os sinais premonitórios a anunciar o caráter de governos novos. No caso que se apresenta diante de nós talvez um tempo mais curto possa bastar porque, nestes últimos dias de janeiro com essa controvérsia sobre o valor do salário-mínimo, já se sabe que algo mudou no estilo e na forma das relações do governo com os sindicatos na passagem de bastão de Lula a Dilma. A própria retórica encrespada de que fazem uso importantes dirigentes sindicais em defesa de suas posições indica que as tensões contidas nessa matéria não são triviais. Anote-se que a pesada qualificação – política nefasta –, usada por um deles, foi destinada ao governo Dilma, Luiz Werneck Vianna

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embora tenha sido o de Lula que, em seus últimos dias, condenou ao veto qualquer aumento acima do teto de R$ 540. Aí, talvez, uma pista para elucidar um novo estado de coisas no sindicalismo. Com Lula, quadro político originário do sindicalismo metalúrgico, vários representantes da vida sindical vão ser alçados a postos influentes em várias agências estatais, quando não ao próprio governo. Nesses primeiros tempos, contudo, os sindicatos praticamente se limitam a manter uma postura solidária ao governo de um ex-sindicalista sempre pronto à interlocução com eles, uma vez que, diante de uma quadra desfavorável ao mundo trabalho como era aquela, não contavam, mesmo que o desejassem, com condições propícias a fim de mobilizar suas categorias, quer em torno de suas demandas, quer, menos ainda, para levá-las a interferir na arena política. Essa postura favorável ao governo do mundo sindical, no entanto, conhecia uma zona de sombra: historicamente o PT e seus dirigentes sindicais eram defensores do pluralismo sindical, enquanto que a maioria dos sindicatos propugnava pela manutenção do modelo da unicidade, base de sustentação de uma legislação que nos acompanha desde o Estado Novo. Em 2004, depois dos resultados frustrantes do Fórum Sindical, convocado pelo governo com a intenção de promover uma profunda reforma na legislação sindical, essas importantes distinções doutrinárias são canceladas. O que fará as vezes de uma reforma terá o seu sentido original invertido: reforçamse os vértices da vida sindical, e não as suas bases, resultado oposto à proposta dos próceres sindicais da CUT e do PT, incorporando-se as centrais à estrutura da CLT, inclusive concedendo-lhes acesso a recursos extraídos do chamado imposto sindical. Unificado em torno de princípios de organização, o sindicalismo passa a ocupar um papel relevante no governo, com as diferentes centrais atuando de modo concertado, do que é melhor exemplo as boas relações entre as antigas rivais CUT e Força Sindical. A crise do “mensalão”, que, ao longo de 2005, fragilizou politicamente o governo, atou ainda mais os vínculos entre ele e os sindicatos, cada vez mais influentes nos rumos da administração, inclusive em matéria econômica. A fórmula atual que preside o reajuste do salário-mínimo é filha dessa conjuntura particular, e não à toa, agora, quando as centrais contestam a proposta do governo, estejam tão presentes os sinais de que essa controvérsia é mais política do que propriamente salarial. Na matéria, parecem insinuar as centrais sindicais, suscetibilizadas em razão de se sentirem ultrapassadas na tomada de uma decisão que as afetaria, estar-se-ia diante de um retrocesso na orientação econômica 96

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do governo que, na questão salarial e na da elevação dos juros, estaria optando por um caminho adverso a uma estratégia de crescimento, a mais adequada, em sua avaliação, para o momento atual, como o enfrentamento da crise mundial de 2008 teria demonstrado. Assim, nas negociações ainda em curso entre governo e as centrais sobre a questão do mínimo salarial, de desfecho ainda imprevisível, a novidade é a de que o programa do governo Dilma de racionalização da economia e da administração, com base em sua interpretação do estado de coisas reinante no país e no mundo, entre outros efeitos – inclusive os benéficos – que já está a produzir, traz, entre eles, também os não desejados, como o da quebra do encanto, tão celebrado nos governos de Lula, entre governo e sindicatos. O sindicalismo vive, no país, um momento de reafirmação, como atestam vários indicadores, entre os quais a expansão dos sindicatos, o número de trabalhadores a eles filiados e significativas conquistas salariais. No mais, reza consensualmente a bibliografia, um mercado de trabalho de pleno (ou quase) emprego, combinado com economia aquecida e amplas liberdades civis e públicas, consiste no ambiente ótimo para sua floração. Em particular, se estão expostos a uma dura competição entre si, política e sindical, como no caso das centrais brasileiras. Sob essas condições, a um tempo fáticas e institucionais, é equívoco concebê-las no papel de correias de transmissão da vontade do Estado nos moldes da Carta estadonovista de 1937. A partidarização das centrais, de fato, trouxe uma mutação benigna na forma sindical, na medida em que obstou uma comunicação direta entre sindicato e Estado — entre eles há os partidos. Sua dimensão claramente malévola está em outro lugar: na distância que ela propicia entre os vértices sindicais e as suas bases, dotando os primeiros de recursos próprios. Por definição, o aprofundamento da racionalização do capitalismo brasileiro, que ora se apresta, não terá como evitar a determinação de fronteiras mais nítidas a separarem o campo da política do campo da economia, ao contrário daquelas linhas frouxas que as demarcavam no segundo mandato de Lula. O sindicalismo poderá continuar a ter assento em posições influentes no governo e em suas agências, mas na gestão dura da administração e da economia, como se pode entrever nesse pequeno episódio do mínimo salarial, crescentes dificuldades devem pavimentar o rumo de suas relações. Sem que se esqueça que há várias centrais em competição, cada qual vigiada por todas as outras. Além do Estado, como já se ouve dos sindicatos, há o parlamento e as ruas.

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3. Os sindicatos e o Estado Os sindicatos estão retornando às páginas políticas, e, por várias razões, não há nada de imprevisto nisso. A primeira delas é a de que eles sempre fizeram parte, em lugar estratégico, da construção da moderna ordem capitalista brasileira, não apenas como base passiva do seu desenvolvimento, mas como protagonistas de momentos determinantes da sua história. Não se pode contar os episódios da montagem da indústria de base sem a participação política dos sindicatos, muito particularmente nas lutas pela criação das indústrias da siderurgia e do petróleo. E, mais recentemente, narrar a conquista da democracia política, consagrada pela Carta de 1988, sem se deter na história dos metalúrgicos do ABC e do sindicalismo da época. O empreendimento para as tarefas da modernização do país, sob a forma autoritária com que foi concebido e realizado, em especial após a institucionalização do Estado Novo, em 1937, teve como um dos seus pontos de partida, como é largamente sabido, a regulação pela lei dos sindicatos e dos direitos trabalhistas, consolidados, em 1943, pela CLT. Era mais do que uma frase denominar o Ministério do Trabalho como o “ministério da Revolução”. Pela Carta de 1937, aos sindicatos delegaram-se papéis de caráter público, convertendoos em correias de transmissão da vontade do Estado às massas dos trabalhadores, que deviam se alinhar “ao pensamento dos interesses da nação”. Com essas marcas institucionais, defendidas pelo Ministério do Trabalho e pelo recém-criado aparato do judiciário trabalhista, o sindicalismo perdeu autonomia, figura da fórmula corporativa com que as elites estatais davam curso à sua empreitada de nos trazer “por cima” o moderno e a modernização. A tutela de que eram objeto se fazia compensar não só pela legislação de amparo ao trabalho, mas também por meio de forte manipulação simbólica, instalando-se um culto oficial de consagração do trabalho e do trabalhador. O paradoxo da situação foi o de que, ao se interditar a política aos sindicatos, eles foram expostos a ela, embora de modo inteiramente subordinado, com a sua conversão em agências paraestatais. O fato é que esse tipo de construção tornou-os mais próximos da dimensão do público do que da de mercado, e esse traço, de algum modo, vai se instalar no seu DNA institucional. Findo o Estado Novo, a Carta de 1946 preservou, “sem a ganga autoritária”, no dizer de um jurista de então, as linhas mestras da legislação anterior, mas, naquela nova circunstância de liberdades civis e de avanços nas liberdades públicas, o sindicalismo inicia uma 98

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fase de crescentes postulações por autonomia diante dos controles exercidos sobre eles, com base em um duplo movimento: agindo no campo propriamente sindical, de um lado, e, de outro, a partir de suas intervenções no interior do Estado, onde estava instalado em algumas posições-chave, notadamente no sistema previdenciário. Nessas ações, atuavam amparados por partidos, alguns ocupando posições influentes no aparato estatal. Sob a presidência de João Goulart, dirigente do PTB, começa a se inverter a relação entre sindicatos e Estado: eles passam a invadir, levando com eles suas políticas, o sistema construído para tutelá-los. Goulart chegou a ser acusado de pretender instalar uma república sindicalista no país. O regime militar, que alterou minimamente a legislação, baniu a presença dos trabalhadores do interior do Estado e exerceu cerrado controle das atividades sindicais que já não dispunham, no mundo da política, com os partidos que antes lhes apoiavam, todos dissolvidos por ato discricionário. Naquele contexto desfavorável, o retorno à vida dos sindicatos não virá da política, mas de suas ações no mercado, em que se notabilizou, sob a liderança de Lula, o sindicalismo do ABC, que contestava a legislação da CLT em nome da autonomia dos trabalhadores. Tal orientação política do sindicalismo, que o PT herdou das lutas sindicais do ABC, se não foi abandonada, foi deixada em segundo plano nos dois mandatos de FHC, apesar das vizinhanças doutrinárias entre o PT e o PSDB em matéria de legislação sindical, ambos contrários ao princípio da unicidade. Na oposição ao governo de FHC, contudo, o PT, ao caracterizar as suas propostas de reformas, entre elas a sindical e a trabalhista, como atentatórias a direitos dos trabalhadores, começa a deslizar da sua denúncia da CLT para uma admissão implícita, ao menos como movimento tático e circunstancial, da necessidade da sua permanência. Tal mudança de posições, porém, se consolida, igualmente por razões instrumentais, no primeiro mandato presidencial de Lula, com a legislação que disciplina sobre as centrais sindicais, a que se acrescenta a abertura do Estado à sua participação, como no caso, em 2007, das próprias negociações que culminaram com a atual regulação do salário mínimo. Com isso, o sindicalismo se unifica, reabilitando-se, no curso do governo Lula, as práticas e os quadros com origens e motivações diversas das que vieram à luz com a emergência do sindicalismo do ABC. A questão do mínimo salarial, ora contrapondo sindicatos ao governo, tem aí suas origens, e as disputas sobre o valor a ser estipuLuiz Werneck Vianna

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lado não tem o seu valor de face. O que as centrais querem é o seu lugar de volta no interior do Estado, que entendem que o governo Dilma lhes recusa. Sua memória de tempos idos, reavivada por sua prática nos oito anos de governo Lula, em nada sugere que aceitem, sem resistência, serem enviados de volta ao mundo do mercado e ao prosaico cotidiano sindical. Inclusive porque, agora, estão mais fortes, de uma perspectiva puramente sindical, do que em qualquer outro momento da sua história, e também porque foi o próprio PT, partido governante, quem declinou de sua proposta de reforma sindical, que sinalizava para outros caminhos. 4. Mares nunca dantes navegados Ainda não passados dois meses do seu governo, a presidente Dilma já navega em mares novos para os quais têm pouca serventia as rotas singradas por seu antecessor, por mais fiel que pretenda ser a ele. As grandes transformações que ora convulsionam o Magreb, se aprofundam no Egito e se irradiam pelo Oriente Médio, são a marca visível de uma mudança de época, apartando de modo irreparável o mundo tal como o conhecemos até então desse novo continente do qual nos aproximamos entre brumas, mas com fundadas esperanças. A democracia como valor universal, planta exótica de guetos de esquerda ocidentais, expressão de uma política de mudanças sociais contínuas, começa a encontrar, agora, no solo do Oriente, antes um santuário da tradição, terreno fértil para seu florescimento. Nasce ali uma revolução da sociedade civil, em que a presença ativa da multidão, constituída por uma imensa rede subterrânea de organizações, em parte articulada via internet, intervém diretamente na luta por um estado democrático de direito, aí claramente compreendidos os direitos sociais. A força dos acontecimentos, que se sucedem em escala progressiva, sempre afirmando rumos democráticos, não permite, principalmente aos observadores estrangeiros a eles, previsões confiáveis sobre o seu desfecho. Contudo, a obra já feita, salvo para os militantes de um pessimismo mal intencionado, consiste em um indicativo de que a conclusão do processo em curso não deve se desviar do seu impulso original. Foi a primeira queda de braços petista com o sindicalismo. Para a América Latina, e o Brasil em particular, o alcance dessas mudanças no cenário internacional não é de pouca monta. A Carta de 1988, mais uma vez, se demonstra estar à altura dos desafios do nosso tempo, e, com ela e suas instituições, o país, igualmente situa100

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do na periferia do Ocidente desenvolvido, se encontra altamente credenciado para ampliar sua presença nas democracias que venham a emergir, como se espera, naquela região. De outra parte, as lições que nos vêm do Oriente põem em evidência a natureza anacrônica das tendências, persistentes entre nós, de confiar ao Estado e às suas burocracias, à margem da sociedade civil e de suas organizações, o papel de condutores da modernização. De que o mar por onde transita o governo Dilma não estava no mapa do governo anterior, mais uma prova está na atual controvérsia sobre o salário mínimo, e que levou um governo do PT, pela primeira vez em oito anos, a uma queda de braços com o sindicalismo. Nessa disputa, a derrota do sindicalismo não foi de natureza econômica – afinal, estavam em jogo apenas trinta moedinhas de 50 centavos, como alardeava um parlamentar de origem sindical –, mas política: o sindicalismo foi posto no seu lugar, fora do Estado, devolvido à cena mercantil. Restou-lhe, talvez por pouco tempo, uma posição combalida no Ministério do Trabalho. A racionalização da administração e da economia, para onde aponta a bússola de Dilma, não conhecerá, ao contrário do governo Lula, adversários internos. Sem os sindicatos, uma das importantes peças de sustentação do modelo Lula de governar, suas demandas e os eventuais conflitos nelas envolvidos escapam, como se constatou, do interior do Estado para ganharem “as ruas e o parlamento”, como anota um sindicalista. A esse movimento, provavelmente, devem se seguir outros, sobretudo os que gravitam em torno da questão agrária, como anunciam as controvérsias sobre o novo Código Florestal, ora tramitando no parlamento, que certamente não encontrarão uma solução consensual, provavelmente destinados a procurar o mesmo caminho. Sob o governo Dilma, começa a ser aliviada, em nome da racionalização e da gestão eficiente, a carga pesada de conflitos com que Lula sobrecarregou seu governo e sua forma de Estado, tornada viável por sua política de contemplar a todos, mediante sua direta arbitragem pessoal. Assim, querendo ou não, Dilma é levada a abandonar a forma de Estado barroca, em uma regressão à era Vargas, que Lula adotou em seu segundo mandato, vindo a imprimir nele os traços simplificados de um Estado burguês moderno.

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O sindicalismo desprendido do centro de decisões do Estado terá que aprender a fazer um caminho de volta, em que seu crescimento dependa da sua capacidade de acumular forças próprias em suas bases sociais e na sociedade civil. A política econômica está dito, e sacramentado por votação amplamente majoritária na Câmara Federal, não lhes diz respeito na qualidade de interlocutor institucional, como Lula insinuava que fossem. Ela deve obedecer, no governo Dilma-Palocci, à lógica sistêmica, e embora o Estado deva seguir no papel de dirigente quanto aos rumos da economia, tudo indica que estão contados os dias de capitalismo orientado. Compelida a se ajustar ao mundo, diante de novas circunstâncias externas e internas, a ordem burguesa brasileira, lenta, mas progressivamente, ainda que lhe falte um projeto para tal, começa a cortar vínculos com seu passado e com o imaginário, centrado na estadofilia, expressão do cientista político José Murilo de Carvalho, que nele predominou. Em particular nas novas sendas que se abrem para uma maior projeção da sua sociedade civil, inclusive a que ora germina nos seus setores subalternos, do que pode ser um exemplo, entre tantos, os processos que se sucedem após a emancipação das favelas cariocas dos laços que as subordinavam à cultura da violência do crime organizado e aos setores do aparelho policial a ele associados. Se esta não é uma boa hora para os partidos, qual será? 5. O salário-mínimo e a judicialização da política A controvérsia sobre o salário mínimo escapou dos gabinetes palacianos, onde foi objeto de acordo, em 2007, entre o governo Lula e as centrais sindicais, ganhou o Parlamento, submetida à votação nas duas Casas congressuais, e por pouco não atingiu as ruas. Agora, tudo indica, a se confiar nas declarações transcritas pelos jornais de líderes políticos da oposição, que mudará de arena, migrando para o Poder Judiciário por meio de uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) a ser impetrada por eles no Supremo Tribunal Federal. A matéria dessa ação não diria respeito aos aspectos substantivos – o valor do salário-mínimo –, e sim aos procedimentais, uma vez que o art. 3º da lei aprovada delega ao Executivo, nos próximos três anos, mediante decreto, a fixação do mínimo conforme fórmula prevista nesse novo diploma legal. Na leitura dos partidos minoritários, tal delegação significaria uma usurpação de poder do Legislativo em favor do Executivo, vindo contra disposições expressas da Constituição, que,

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no seu artigo 7º, inciso IV, dispõe que o salário-mínimo deve ser fixado por lei. A maioria defende a constitucionalidade da nova lei, sustentando que os futuros decretos presidenciais sobre o valor do mínimo apenas cumpririam a vontade já expressa do legislador. Como se vê, a controvérsia imprevistamente mudou de forma, deslocando-se do plano econômico-corporativo para o político-institucional, quando passa a admitir a arbitragem do Judiciário, o Tertius constitucional. Mais um caso, entre tantos, na moderna democracia brasileira, do assim chamado processo de judicialização da política, recurso hostilizado por alguns em nome de presumidas filiações ao republicanismo da Revolução Francesa de 1789, que teria fixado como princípio dogmático o império da vontade majoritária. Além do fato de que esse princípio não foi consensual entre os revolucionários franceses, os contestadores do controle de constitucionalidade das leis por parte do Judiciário desconsideram outra robusta tradição republicana, a da revolução americana, que trouxe consigo a sua institucionalização. Mas, sobretudo, não levam em conta a inequívoca vontade do legislador constituinte brasileiro de abrigar esse instituto no sentido de proteger sua obra de eventuais mutilações, respaldada por uma teoria democrática que admite, como intérpretes da Constituição, filha da soberania popular, entre outros, atores originários da sociedade civil, como os partidos, e as associações empresariais e de trabalhadores. Certamente este é o caso do ilustre presidente do Senado, José Sarney, o ex-presidente da República sob cujo mandato foi elaborada e promulgada a Carta de 1988, que, ao criticar a iniciativa da oposição, declarou que “chamarmos o Supremo como uma terceira via é uma coisa que deforma o regime democrático”, sentenciando “que as questões políticas devem ser resolvidas dentro do Parlamento” (Valor, 25/02/2011, p. 10). Essa não é, sem dúvida, uma opinião isolada, merecendo ser ouvida, embora a questão em tela esteja longe de ser bem encaminhada com soluções ao gosto do senso comum. A emprestar alcance universal ao que preconiza essa declaração, a segregação racial nos Estados Unidos poderia ter resistido, sabe-se lá por quanto mais tempo, às sucessivas tentativas dos parlamentares que combatiam aquele odioso sistema. Notório que, diante dos impasses e das divisões reinantes no sistema político americano, foi o Judiciário quem cortou o nó górdio daquele litígio com suas evidentes, na conjuntura da época, ameaças de guerra civil, em uma solu-

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ção típica de judicialização da política, que, como se verificou, criou um ambiente de paz nas relações raciais daquela sociedade. Como anota um conhecido especialista no assunto, a judicialização da política somente encontra campo para sua manifestação em países de regime político democrático, diante de um Judiciário autônomo das instâncias do poder e de franquia, garantida constitucionalmente, das liberdades civis e públicas. A propósito, nessa outra margem do Mediterrâneo, onde agora se alastra o levante de povos inteiros contra regimes autocráticos, vigem mecanismos institucionais que permitam a seus cidadãos exercer o controle de constitucionalidade das leis? A floração do constitucionalismo democrático nos países de sistema da civil law, coincide, não por acaso, com a derrota, em 1945, do nazifascismo, e com a convicção, então generalizada na opinião pública internacional, de que um sistema de poder com as características desumanas daquele não deveria se repetir. Como se sabe, na Alemanha de 1933, a ascensão do nazismo ao poder transitou sob a chancela do princípio do voto majoritário. A partir daí, sob a inspiração da Declaração de Direitos Humanos, firmada pela ONU em 1948, as democracias ocidentais passaram a positivar em suas constituições determinados valores, materiais e procedimentais, constituindo o que alguns denominam o núcleo dogmático das constituições, e, como tais, não passíveis de derrogação por eventuais expressões da vontade majoritária. Mas esse é apenas um dos aspectos das atuais mutações porque passam as relações entre os poderes republicanos, com a emergência, em escala mundial, do fenômeno da judicialização da política. Outro, decisivo, tem sede na própria ação do legislador que, por imperativos da complexidade das sociedades contemporâneas, produz leis com cláusulas de caráter aberto e indeterminado, admitindo o juiz no papel de legislador implícito. E mais tantos outros, inclusive o fato, só na aparência trivial, de que o instituto das ações de controle de inconstitucionalidade “pegou” no Brasil: são cerca de 200 Adins ao ano, e, aliás, o PT, hoje partido no governo, quando na oposição, foi um dos grandes campeões na sua propositura.

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VI. Ensaio


Autor Edgard Leite

Professor doutor de História da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), coordenador do GT-Rio de História das Religiões e Religiosidades da Associação Nacional dos Professores de História e coordenador do Projeto Manoel Salgado de Extensão Cultural da Uerj


Marxismo e direitos individuais Edgard Leite

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acques Bidet – um dos grandes teóricos do marxismo contemporâneo – afirmou, recentemente, que “um tema ainda mais radical que o da democracia emergiu na agenda marxista: o tema do direito em geral”. Com isso, provavelmente, exteriorizou a existência de uma angústia ampla, que atravessou toda ação política de esquerda no século XX e transbordou para o XXI. Aquela relativa ao lugar que o direito ocupa nas considerações sobre a construção de uma ordem social mais equânime, ou justa. O desprezo pelo tema do direito, notadamente o individual, teve implicações graves sobre o desenvolvimento da política de esquerda, principalmente sobre o entendimento da natureza dos mecanismos de legitimidade do Estado e na formulação de utopias sociais e existenciais. Isso de certa forma é compreensível, tanto pela pouca relevância que o próprio Marx atribuía às realidades individuais diante do universo de motivações coletivas, quanto, principalmente, pelo pouco amadurecimento do direito individual na fase formadora do pensamento político marxista. Isso é muito claro no período anterior à primeira guerra mundial, cujo ambiente jurídico liberal desconsiderava a potencialidade privada em diversos níveis e graus. Por exemplo, como bem anotou Hobsbawm, era inexistente então o consenso, hoje absoluto, em torno do sufrágio universal. Tal desconsideração era ainda mais grave, naquela época, em sociedades que guardavam forte presença religiosa na vida civil. As religiões históricas, de fato, normalmente operavam contra o indivíduo, suas paixões e natureza, desconsiderando sua autonomia e vontade.

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Ensaio

A demanda iluminista em prol da emergência do indivíduo enfrentou inicialmente, como se sabe, as antigas concepções religiosas e foi, assim, revolucionária. Uma realidade conservadora era particularmente grave na Rússia, onde inexistiram as experiências históricas do Renascimento ou da Reforma, permitindo uma longa manutenção de formas arcaicas ou medievais de entendimento do ser. E onde Iluminismo houve, mas foi autocraticamente equacionado. Tal ambiente acabou introduzindo, de forma natural, um marcante traço anti-individualista no marxismo-leninismo e no stalinismo, que, embora sendo fenômenos russos, e portanto entranhados de valores culturais eslavos, com toda sua história de limitações e isolamento, acabaram se tornando sistemas políticos dominantes na esquerda mundial do século XX, espalhando-se por outras culturas e reforçando discursos anti-individualistas em outros lugares ou se baseando neles para encontrar sua pertinência interna e adequação. O desastre que tal inclinação ideológica causou na União Soviética é conhecido e muito estudado. A Constituição soviética de 1936 reconheceu os direitos individuais, mas submeteu-os aos “interesses da classe operária”. Estes entendidos como instância à qual as inclinações particulares deveriam, portanto, necessariamente ceder. O problema é que tais “interesses” eram, acima de tudo, interpretações mais ou menos reais, mais ou menos fictícias, decorrentes de uma mais ou menos científica, ou mais ou menos ideológica, concepção do sentido da história. Sabemos hoje que nada há de mais complexo do que a teoria marxista das classes sociais e que as causas e objetivos dos setores sociais são, fundamentalmente, mutáveis. Isso serviu, basicamente, portanto, para o esmagamento da oposição e da discordância, para o impedimento do exercício ou para a negação dos direitos. André Tosel, em seu estudo sobre Lukács e a “Escola de Budapeste” entendeu que esse ataque foi movido pelo Estado contra “o pluralismo étnico, político e cultural, bem como contra suas regras e procedimentos”. Tal pluralismo e regras são o mais precioso e revolucionário legado do liberalismo. Fundamento de toda proposta inovadora possível no mundo contemporâneo. E que enfrentou batalhas violentas no seu desenvolvimento. Assim, parece que, ao lado da luta pelos direitos dos trabalhadores, luta que emergiu com o próprio liberalismo, e foi corretamente dimensionada por Marx e os pensadores revolucionários do século XIX, a esquerda tendeu, do ponto de vista do direito individual, a concepções pré-liberais e claramente anti-iluministas. Reacionárias, de fato. 108

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Marxismo e direitos individuais

É claro que, na primeira metade do século XX, as democracias liberais representativas não reconheciam certos direitos no indivíduo. O do voto, por exemplo, como vimos, era limitado. Mas ao longo do século XX elas avançaram na direção desse reconhecimento, inclusive para buscar sua pertinência legitimadora. Simultaneamente, o dogma do coletivismo leninista ou stalinista, anti-individualista, continuava instalado e se fortalecia – principalmente em sociedades nas quais o socialismo servia para uma resistência aos modelos transformadores trazidos pelo liberalismo. Essa realidade permitiu desdobramentos muito diferentes, no Ocidente e no bloco socialista, da crise geral decorrente da luta pelos direitos que dominou as sociedades industrializadas nas décadas 1960, 1970 e 1980 do século passado. Aqui, entre nós, conduziu a uma nova legitimidade do sistema capitalista e ao triunfo do discurso bicentenário dos direitos humanos. Lá ao colapso da legitimidade do sistema. André Tosel recordou a tese de que o “A supressão do mercado coincidiu com a supressão da sociedade civil em favor do Estado”. O paradoxo foi, portanto, destruidor. Negar o indivíduo era negar a sociedade civil e a dinâmica criadora da sociedade. Para os observadores posteriores ao colapso do regime, como Francis Fukuyama, o modelo soviético nada mais foi do que uma forma de eliminação de um sistema anacrônico – que terminou por introduzir os russos na modernidade capitalista. Istvan Mészaros, de forma diferente, também alertou para essa dimensão capitalista do sistema soviético. Se assim o foi, de qualquer forma, parece claro que a concepção de direito individual foi ali virtualmente esfacelada, com efeitos devastadores sobre o próprio capitalismo pós-soviético, cujo ponto importante da agenda política, portanto, é a conquista desses mesmos direitos individuais. Não parece que o tema venha sendo livremente tratado nos círculos marxistas, cujas tendências ao dogmatismo e sectarismo se aprofundaram após o fim do “socialismo real”. A permanente sombra de Lênin continua influindo a visão do presente. Mesmo considerando a derrota histórica do seu modelo – e não apenas nessa dimensão. Essa insistência patética parece inútil, pois o discurso autocrático do leninismo não engendra movimento numa sociedade aberta e na qual os benefícios da ampliação dos direitos individuais são evidentes à sua própria maneira, isto é, propiciam maior harmonia interior, ou satisfação, e a sensação de uma agradável liberdade pessoal.

Edgard Leite

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Ensaio

Os marxismos, pois são hoje vários, continuam tendendo às soluções antipluralistas, identificando o universo do direito liberal com o capitalismo. Pode ser que a liberdade seja para muitos uma deformidade ilusória, ancorada como está no fetichismo da mercadoria. Mas isso na verdade oculta os seus pressupostos históricos, que estão ancorados em conquistas revolucionárias e no conhecimento da realidade. Estão por trás, inclusive, de qualquer reclamação coletiva sobre expropriações econômicas em sociedade. Os direitos sociais dos trabalhadores fundam-se também na experiência individual da expropriação e no movimento de tomar para si a potência ou riqueza subtraída pela autoridade. Com razão tal polêmica é cautelosa, pois ela parece pôr em cheque o holismo, a perspectiva totalizadora que é própria do pensamento político marxista, fundado na discussão dos grandes fenômenos, conceitualmente expressos. Assim, por exemplo, todos os marxistas se voltam contra os “marxistas analíticos”, os pensadores reunidos em torno do “Grupo Setembro” (que surgiu a partir do trabalho de Gerald Cohen, A Teoria da História de Karl Marx, uma defesa, em 1978). Os “marxistas analíticos” tendem a considerar, como sintetizou Christopher Betram, que “todas as práticas sociais e instituições são em princípio explicáveis em termos do comportamento de indivíduos” estruturando suas digressões a partir do “individualismo metodológico”. Esse interessante extremo expressa a perplexidade que a derrota do “socialismo real” trouxe ao pensamento marxista, principalmente porque o mote dessa derrocada deu-se em torno do triunfo das perspectivas individualistas do direito liberal. É natural que na complexidade teórica das categorias supraindividuais e na impossibilidade de transformar tal ou qual interpretação em realidade política, que não seja autocrática, se inclinem os pensadores a dar toda importância ao indivíduo, cuja grandeza é fenômeno político sempre redivivo nos últimos dois séculos e que metaforiza, teoricamente, a pluralidade da experiência humana. O problema dos direitos, portanto, é um tema importante da agenda da esquerda contemporânea, sem o qual é impossível fundar uma plataforma política consequente, que não seja conservadora e contrária ao mesmo processo emancipador que tem seu início no alvorecer do capitalismo. Ele introduz problemas de teoria econômica de difícil solução para os marxismos, como o papel do mercado numa ordem social mais igualitária. Coloca em evidência a questão da li110

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Marxismo e direitos individuais

berdade individual e seus efeitos sobre a produção de conhecimento e qualquer possível movimento de transformação da sociedade em uma coisa melhor. De certo que o fracasso da experiência socialista do século XX não pode conduzir a outro caminho que não o da releitura cuidadosa da dialética dessa relação entre macro e micro, entre as grandes categorias de análise e a emergência da potência individual, entre as pretensões do planejamento total e a anarquia do mercado e seus interesses menores. Para que isso ocorra, é necessário, provavelmente, ir além do leninismo e situá-lo corretamente como um pensamento datado, histórica e culturalmente, e nada operativo hoje. É preciso transcender igualmente o universo formativo do marxismo clássico e aquilo que ali traduz outros momentos da história já esfacelados pela realidade do presente (futuro imprevisível para Marx e cujos elementos centrais já estavam em sua época, mas que ele, naturalmente, não podia perceber – isso também ocorre, é claro, no nosso presente com relação ao que virá. “Tudo merece perecer” é um mote hegeliano, herdado pelo marxismo e que reflete uma realidade histórica e da vida). O tema do “direito em geral” é tema do marxismo hoje porque o direito individual é uma conquista histórica sem precedentes das sociedades ocidentais. A força dessa conquista, baseada em demandas milenares, é pilar para a retomada, pelas sociedades, de uma autonomia política historicamente expropriada pelos Estados e seus sistemas de poder. Esse caráter revolucionário do liberalismo não pode ser negado e sua incorporação a toda plataforma política transformadora pode ser considerada como necessária, talvez, para uma redefinição das plataformas e objetivos políticos do marxismo. Ou, pelo menos, para que as proposições políticas de esquerda deixem de ser realizadas em uma ou outra forma de autocracia ou tirania – e possam responder, assim, às mais íntimas demandas humanas de reconhecimento, realização e liberdade.

Edgard Leite

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Ensaio

Bibliografia BERTRAND, Christopher. Analytical Marxism in BIDET, Jacques (ed). Critical Companion to Classic Marxism. Leiden: Brill, 2008 BIDET, Jacques (ed). Critical Companion to Classic Marxism. Leiden: Brill, 2008. COHEN, Gerald A. Karl Marx’s Theory of History: a Defence. Princeton, 1978. FUKUYAMA, Francis. The End of History and the Last Man. New York: Free Press, 1992. MÉSZÁROS, István. Para Além do Capital. São Paulo: Boitempo, 2002. ROEMER, John. Analytical Marxism: Studies in Marxism and Social Theory. Cambridge: Cambridge, 1999. TOSEL, André. The Late Lukács and the Budapest School in BIDET, Jacques (ed). Critical Companion to Classic Marxism. Leiden: Brill, 2008.

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VII. Batalha das Ideias


Autores Kaio Felipe

Sênior do Programa de Educação Tutorial do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília

Aglais Cristina Gondim Tabosa Freire

Bacharelanda de Direito na Universidade de Fortaleza, bolsista voluntária no projeto de pesquisa (Pavic)

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Humanismo e liberdade em A Montanha Mágica Kaio Felipe O homem não vive somente a sua vida individual; consciente ou inconscientemente participa também da vida de sua época e dos seus contemporâneos. (Thomas Mann)

A chegada: propósitos e objetivos A Montanha Mágica, publicado em 1924, tem como protagonista Hans Castorp, jovem engenheiro de temperamento paisano que, em visita ao primo enfermo em um sanatório nos Alpes suíços, recebeu o castigo (ou dádiva?) de passar vários anos de sua vida no local, após descobrir que tem tuberculose. Ao longo de sua estadia, ele aprende mais sobre si mesmo e o mundo à sua volta. Segundo o próprio Mann, ele é um personagem medíocre, sem qualidades distintas ou qualquer atributo de especial. Porém, no decorrer da obra, Castorp amadurece de tal forma que consegue transcender as dificuldades que seu contexto lhe colocava. Este artigo discutirá como este romance pode iluminar a compreensão do conceito de liberdade e como será tanto fonte quanto objeto de estudo deste texto, além da pretensão de demonstrar a relevância do Humanismo1, visão de mundo recorrente neste livro, como chave de compreensão do mundo moderno. Além disso, consideramos que 1 Entendemos Humanismo como a filosofia moral voltada para a excelência e a dignidade humanas. Seguimos a perspectiva cara ao Renascimento: o homem como centro do pensamento filosófico (antropocentrismo).

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Batalha das Ideias

a literatura é fonte rica de conhecimento social e humano, “um saber acerca das motivações, sentimentos e paixões dos seres humanos, cujo valor cognitivo se coloca acima da dúvida sensata”2. Operationes Spirituales: Conceitos de Liberdade Quatro visões sobre liberdade serão importantes para o desenvolvimento do artigo. A primeira delas é a de Stuart Mill, que eternizou uma concepção intimista da liberdade, definindo-a como “buscar seu próprio bem à sua própria maneira”3. Trocando em miúdos: sobre o seu próprio corpo e mente, o indivíduo é soberano. Este autor enfatiza a liberdade individual, pois reitera o direito do indivíduo de não ser coagido, mesmo quando sua opinião é minoritária. Hannah Arendt discordaria de Mill, alegando que a liberdade política antecede a da consciência: “o homem nada saberia da liberdade interior se não tivesse antes experimentado a condição de estar livre como uma realidade (...) tangível”4. Ela propõe uma concepção mais cívica da liberdade; aproxima-se, assim, da vertente positiva da dicotomia de Berlin. Segundo Arendt, a liberdade é inerente à ação humana, sendo interdependente, e não oposta, à política. Friedrich Nietzsche, por sua vez, considera a liberdade como vontade de poder; ela é expressão de nossos instintos, uma rejeição da abnegação e da autorrenúncia. Ele critica a “igualdade de direitos” propagada pela moral cristã e burguesa; considera-a antinatural: “independência é algo para bem poucos – é prerrogativa dos fortes”5; ser livre é se emancipar de tudo o que nos restringe (compaixão, virtude...) e ter capacidade de liderança. Por último, há a concepção de Wilhelm Von Humboldt, seminal para os liberais alemães, sendo também a que mais se aproxima da apresentada pelo próprio Thomas Mann. Ele define liberdade como “a possibilidade de uma atividade variada e indefinida”6, é ela que nos permite a espontaneidade e o pleno aprimoramento pessoal. Ou seja, individualidade + pluralidade = personalidade, sendo que o cultivo das duas primeiras permite que a terceira floresça. 2 GUSMÃO, Luis Augusto Sarmento Cavalcanti de. Um elogio do conhecimento de senso comum na investigação social. Revista da Casa de Rui Barbosa, v. 1, 2007, p. 251. 3 MILL, John Stuart. On Liberty. London: Penguin Classics, 2003, p. 72. 4 ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 194. 5 NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. São Paulo: Companhia de Bolso, 2005, p. 34. 6 HUMBOLDT, Wilhelm von. Os Limites da Ação do Estado. Rio de Janeiro: Topbooks, 2004, p. 133.

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Humanismo e liberdade em A Montanha Mágica

Bildungsroman: o romance como formação cultural e humanística Outro conceito importante é bildung, que consiste em “formação para a autonomia”7, visando ao amplo desenvolvimento das potencialidades humanas (artísticas, intelectuais, cívicas...). Por ambicionar uma completa educação do homem, é análoga à Paideia grega8. Para Humboldt, “a verdadeira finalidade do Homem (...) é a da formação a mais alta e harmoniosa possível de suas forças em direção a uma totalidade completa e consistente” (Humboldt, op. cit., p. 143). Com isso, “exprimiu um tema liberal profundamente sentido: a preocupação humanista de formação da personalidade e aperfeiçoamento pessoal. Educar para a liberdade, e libertar para educar – esta era a ideia da bildung, a contribuição goethiana de Humboldt à filosofia moral”9. Desta forma, definimos bildungsroman como o gênero de romance que se foca no desenvolvimento psicológico e moral do protagonista, da infância à fase adulta. A 1ª obra do gênero é de Johann von Goethe: em Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister (1796), o protagonista, ambicioso e movido por ideias estéticas, chega a participar de uma companhia de teatro. Este tipo de romance, além de recuperar elementos do gênero épico, combina-os com o lírico, ao mesclar autobiografia com o retrato de uma sociedade. Além disso, preocupase tanto com a ética (os valores adequados para o pleno desenvolvimento humano) quanto com a estética (a apreciação daquilo que é belo e/ou sublime). A Montanha Mágica possui várias características de um bildungsroman. Em primeiro lugar, possui um caráter pedagógico: o protagonista, ao longo de sua trajetória aprende (e apreende) sobre o amor, a ciência, a política, a arte, a filosofia, a fé e o próprio tempo. Hans Castorp entra em contato com a produção cultural em relação à qual pouco se importara até então, além de se integrar aos hábitos de DavosPlatz. Mann também debate a Modernidade, com várias correntes de pensamento confrontando-se ao longo da obra, em uma verdadeira Torre de Babel filosófica. Podemos destacar p. ex., a influência de Nietzsche e Schopenhauer na construção de personagens e tramas. 7 FONTANELLA, Marco Antonio. A Montanha Mágica como Bildungsroman. Campinas, 2000, p. 17. 8 Paideia grega era o processo educacional de ampla formação cultural dos jovens na Grécia Antiga. 9 MERQUIOR, J. Guilherme. O Liberalismo: antigo e moderno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991, p. 31. Kaio Felipe

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Batalha das Ideias

Trata-se de um romance “em que se pretende representar o declínio fatal da civilização alemã e europeia do século XIX rumo à Primeira Guerra Mundial, o naufrágio de seu ideal de cultura.” (Fontanella, op. cit., p. 8) Mann, durante a maior parte da guerra, assumiu posições conservadoras e até de não-engajamento. Porém, nos últimos meses do conflito, desiludiu-se com os rumos de seu próprio país – e da Europa em geral –, e iniciou uma transição ideológica para o social-liberalismo. Ele certamente foi um “prototípico intelectual da bildung”, mesmo quando passou a defender a “politização do espírito” e “a consideração simultânea dos dois lados da liberdade: a pessoal e a política”10. Quanto ao caráter pedagógico e filosófico deste livro, podemos visualizar os conceitos já discutidos no trecho a seguir. O narrador trata do placet experiri, que é a preocupação em aprender e descobrir mais sobre si mesmo e a realidade de uma forma lúdica e empírica: Hans Castorp pressentia, (...) com absoluta nitidez, que essas experiências, fosse qual fosse o rumo que tomassem, não poderiam levar a um fim não insípido, não incompreensível, não desprovido de dignidade humana. Assim ardia por fazê-la. (...) O princípio do placet experiri (...) continuava arraigado em Hans Castorp. Aos poucos coincidia a sua ética com a sua curiosidade (...); com essa mesma curiosidade irrestrita, própria de um viageiro ávido de formação, que, ao saborear o mistério da personalidade, talvez já se achasse próxima do domínio que agora se lhe deparava, e a qual revelava uma espécie de espírito militar, por não se esquivar da esfera vedada...11.

Settembrini, o pedagogo iluminista Lodovico Settembrini é um personagem paradoxal: o mesmo homem que diz que “a liberdade é a lei do amor humano, e não o niilismo e a maldade” (Mann, op. cit., p. 514) também exorta a guerra em defesa dos valores e instituições ocidentais, julgando ser “necessário ferir o princípio asiático, o princípio servil da inércia, no centro e no nervo vital de sua resistência, que era Viena” (ibidem, p. 214). Democrata, liberal e republicano, ele tenta ser um pedagogo para o franzino Hans Castorp, a quem chama de “filho enfermiço da vida”. Este italiano, uma paródia ao cosmopolitismo de um segmento dos intelectuais europeus, encarna o ideal da “civilização”. Sua crença veemente no progresso é a cara do movimento intelectual do sécu10 SOUZA, Jessé. A Modernização Seletiva: uma reinterpretação do dilema brasileiro. Brasília: Universidade de Brasília, 2000, p. 150. 11 MANN, Thomas. A Montanha Mágica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 904-905.

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Humanismo e liberdade em A Montanha Mágica

lo XVIII que foi decisivo para o Ocidente: o Iluminismo. O slogan do mesmo, “conhecer para prescrever”, é recorrente na retórica de Settembrini; ele identifica-se com o ideal de, por meio da razão, libertar a ação humana das forças naturais. Percebemos semelhanças de suas concepções de liberdade com aquelas expressas por Stuart Mill e Hannah Arendt. Settembrini, assim como Mill, valoriza o livre-arbítrio, julgando-o imprescindível ao aperfeiçoamento humano. Porém, ele também concordaria com Arendt quanto à importância da virtude cívica, no sentido de o ser humano ser livre para alterar a sua realidade, inclusive por meio da ação política: Protesto contra a insinuação de que o Estado moderno signifique a servidão diabólica do indivíduo! (...) A democracia não tem outro sentido a não ser o de um corretivo individualista de toda forma de absolutismo do Estado. (...) As conquistas do Renascimento e do Século das Luzes, meu caro senhor, chamam-se personalidade, direitos do homem, liberdade! (ibidem, p. 544)

Devemos ressaltar que o pensamento de Lodovico é repleto de ambiguidades. Sua defesa apaixonada da liberdade de consciência coexiste com uma argumentação dogmática e intransigente em prol da “civilização”. Ao mesmo tempo em que tenta ser o Virgílio para o Dante12 que vê em Hans Castorp, ele próprio é uma pessoa que não realiza plenamente aquilo que defende; de outro modo, não estaria “preso” no sanatório. Sua fé no potencial humano, por se desligar de qualquer religiosidade ou espiritualidade, torna-se, aos olhos de Mann, satânica, demoníaca. Settembrini, portanto, possui um individualismo arrogante e hipócrita. Mann preocupa-se com os excessos desse universalismo ocidental, pois frequentemente ele minimiza os elementos nacionais, culturais ou comunitários13. Porém, o que ele condena no personagem (e nos intelectuais que o inspiraram) não é o cosmopolitismo, mas a sua predominância, quase exclusiva, em detrimento do componente “alemão” em prol da tradição. Naphta, o revolucionário conservador Um dos personagens mais soturnos de A Montanha Mágica, Leo Naphta é de origem judia, e nasceu no interior da Alemanha. Seu pai, 12 Em A Divina Comédia (Dante Alighieri), o narrador é guiado pelo poeta romano Virgílio, a quem admirava, durante sua travessia do Inferno, Purgatório e Paraíso. 13 DUMONT, Louis. German Ideology. Chicago: University of Chicago, 1994. Kaio Felipe

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fanático religioso, caiu em desgraça por sua “irregularidade sectária”, e foi cruelmente assassinado por populares. Esta experiência marcou a vida de Naphta, o qual passou a adolescência em meio a angústias intelectuais, “formando o seu espírito de modo impaciente e descontrolado” (Mann, op. cit., p. 603). Finalmente encontrou seu lugar no mundo quando se converteu à Companhia dos Jesuítas. Segundo o narrador, “Naphta tinha um instinto ao mesmo tempo revolucionário e aristocrático; era socialista e também dominado pelo sonho de participar de uma forma de vida soberba, distinta, exclusiva e ordenada” (ibidem, p. 605). Destaca-se pelos constantes e intensos embates intelectuais travados com Settembrini. Muitas vezes ele apela ao relativismo em sua retórica, pois acredita o homem “representa a medida das coisas, e sua salvação é o critério da verdade” (ibidem, p. 543). Em uma tentativa de defini-lo ideologicamente, eis que o narrador nos diz que ele talvez “fosse tão revolucionário quanto o Sr. Settembrini, mas o era no sentido conservador, como revolucionário do conservantismo” (ibidem, p. 627). Isso ajuda a ilustrar o seu conceito de liberdade, pois ele evoca um tom hierárquico que lembra o de Friedrich Nietzsche. Ambos se notabilizam pela “rebeldia aristocrática”, por meio da qual fazem críticas ferozes à Modernidade, em defesa da grandeza humana presente nos valores medievais (Naphta) e dos gregos pré-socráticos (Nietzsche). Porém, ao contrário do filósofo alemão, que prega o espírito livre e rejeita a abnegação, associando a auto-renúncia a uma subserviente “moral de animal de rebanho” (Nietzsche, op. cit., p. 89), Naphta é muito mais receptivo ao ideal da abnegação, na medida em que gera ordem e hierarquia. Este personagem recusa aquilo que os demais povos da Europa chamam de “liberdade” (Dumont, op. cit., p. 54). Quanto aos dois ideais alemães de liberdade (holismo comunitário e individualismo autocultivado), Naphta rejeita o individualismo cultural da bildung, mas defende a faceta comunitária; ou seja, uma livre dedicação do “eu” ao “todo” (ibidem, p. 47). Esta tese de que só é possível ser livre no seio da coletividade – e que essa liberdade é interior (herança intelectual da Reforma?) – aparece quando Naphta alega que “a liberdade era um conceito do Romantismo antes do que da Época das Luzes, pois com aquele tinha em comum o entrelaçamento inextricável dos impulsos de expansão coletiva e do ensimesmamento apaixonadamente individualístico” (Mann, op. cit., p. 957).

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Humanismo e liberdade em A Montanha Mágica

O amadurecimento de Castorp No decorrer da trama, Hans Castorp, embora seja considerado pelo próprio narrador como medíocre e sem qualquer atributo heróico, sobressai-se justamente porque não tem medo dos próprios limites. Ele é capaz de criar a si mesmo, usando conscientemente dos materiais de seu mundo, apelando a seus instintos sobre a natureza humana e, acima de tudo, tendo “a coragem moral para sentir a luxúria da morte e da eternidade e ainda assim decidir pelo futuro da vida”14. Certa vez, em meio a uma tempestade de neve, Castorp encontrou forças para não se entregar aos delírios: “Em consideração à bondade e ao amor, o homem não deve conceder à morte nenhum poder sobre os seus pensamentos” (Mann, op. cit., p. 678). Além disso, ele experimenta e reflete sobre as mais diversas formas de liberdade, indo desde estudos sobre Astronomia até a paixão avassaladora que teve por Clawdia Chauchat. Parece que foi a própria mediocridade de Hans Castorp que o permitiu usufruir de tantas experiências nos sete anos que passou no sanatório de Berghof. Afinal, mesmo o homem comum tem o seu quê de genial, quando consegue recombinar as velhas formas em novas, passando da dissolução à ordem. Em outras palavras, é quando recusa a covardia inofensiva diante da realidade que o homem mantém a busca pela finalidade e o sentido da vida. O desfecho do romance recusa um destino cômodo para o personagem. Primeiro, temos o trágico duelo entre Settembrini e Naphta, que não conseguiam mais resolver diplomaticamente suas discordâncias. Em mais uma reviravolta dramática, Settembrini atira para o alto, ficando de peito aberto para o seu rival... e este atira na própria cabeça. É, no mínimo, sintomático que os dois niilistas de A Montanha Mágica15 cometeram suicídio. No último capítulo, “O Trovão”, é dada uma notícia devastadora: estourou a guerra entre as potências europeias! Hans Castorp não titubeia e, após se despedir de seu mestre Settembrini, retorna à planície para lutar no Exército alemão. A escolha de Castorp soa como se ele saísse de sua cidadela interior, que, com as devidas proporções, se compatibiliza com a liberdade individual pregada por Mill, e retornasse à existência cotidiana, num ato de virtude cívica

14 KAUFMANN, Fritz. Thomas Mann: The World As Will And Representation. Nova York: Cooper Square, 1973, p. 98. 15 O outro é Mynheer Peeperkorn, um simpático personagem que foi uma influência decisiva para o lado mais dionisíaco de Castorp. Kaio Felipe

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que agradaria a Arendt16 e também a Nietzsche, pois implicaria em aceitação – e luta – pela vida. Thomas Mann parece ver um ato de liberdade na decisão de seu personagem. Ele próprio não teve coragem de fazê-lo, alegando que era da índole do intelectual germânico ser apolítico (Dumont, op. cit., p. 44). Porém, os horrores da I Guerra lhe mostraram que não se pode fechar os olhos para a destruição daquilo que há de mais nobre no ser humano: a sua dignidade. É nesse sentido que podemos apelar ao Humanismo, pois ele é uma ode à capacidade do homem de se elevar moralmente, de aprimorar a sua percepção e entendimento da “dialética bipolar” entre espírito e natureza (Kaufmann, op. cit., p. 245) e, principalmente, de cultivar a sua personalidade da forma mais completa possível, o que inclui o diálogo com a pluralidade. É com este viés humanista que o autor conclui o seu romance: Será que também da festa universal da morte, da perniciosa febre que ao nosso redor inflama o céu desta noite chuvosa, surgirá um dia o amor? (Mann, op. cit., p. 986)

Verificamos, neste último parágrafo do romance, uma mescla de melancolia e esperança. Por um lado, o escritor “percebe que é exatamente o sentido da própria humanidade que se perdeu ali, antes de qualquer coisa”, restando a ele narrar “as consequências da perda deste sentido básico e preliminar da própria possibilidade da vida em comum”. Portanto, A Montanha Mágica seria “a história do declínio de uma sociedade, cujos sintomas não estão em outra parte senão no próprio homem que compõe aquela sociedade”17. Porém, o “Trovão” da guerra pode também ser o anúncio de uma redenção dos erros cometidos. Mann nunca deixou de ter fé no ser humano, e o amadurecimento do medíocre Hans Castorp é uma prova disso. Finis Operis: os desafios da liberdade Ao longo deste artigo pudemos encontrar, em A Montanha Mágica, um libelo pela liberdade e pela busca de um sentido existencial; “é lícito compreendê-la como um livro escrito contra o niilismo de seu tempo” (Fontanella, op. cit., p. 43). Não seria exagero afirmar que 16 Por ser ação política, apesar de ser em uma guerra – lembrando que Arendt dissociava a política da violência. 17 “Impressões de Leitura – A Montanha Mágica”, de Francisco Escorsim. Disponível em: http://oitocolunas.blogspot.com/2005/05/impresses-de-leitura-montanhamagica.html

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Humanismo e liberdade em A Montanha Mágica

a obra é uma alegoria da crise moral que acometeu a Europa, levando-a à trágica I Guerra. A obra estudada nos apresentou várias formas de liberdade: Settembrini resignou-se a encontrar na atividade intelectual a sua autonomia; Naphta, cego por seu vazio existencial, negou o livre-arbítrio; Castorp resolveu sua crise espiritual ao aprender a importância de se acreditar na vida e no amor, mesmo que para isso tenha tido que lutar (e morrer) na guerra. A vida nos compele a fazer escolhas, tomar posições; o homem não é apenas um campo de batalha, mas também o objetivo desse conflito, e, no fim, o sujeito que decide qual caminho tomar (Kaufmann, 1973). É nesse sentido que identificamos a esperança emanada pelo romance como uma espécie de versão um pouco mais pessimista do Humanismo. Settembrini, embora mais otimista que Castorp (e Thomas Mann), foi capaz de expressar tal convicção: Quem não é capaz de arriscar a vida, o braço, o sangue na defesa de um ideal não é digno dele. Em que pese a nossa espiritualização, cumpre sermos homens (Mann, op. cit., p. 964).

Kaio Felipe

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Sociedade, tecnologia da informação e direito Aglais Cristina Gondim Tabosa Freire

A

tecnologia da informação, como agente transformador das relações humanas, vem reclamando a mobilização do direito no sentido de regular as relações sociais, civis e comerciais perpetuadas no ambiente digital, com o objetivo de lhes conferir segurança jurídica, bem como de tutelar os novos bens jurídicos surgidos com o advento da chamada sociedade da informação. Assim, diante dessa nova realidade, surgiu a necessidade de se instrumentalizarem, por meio da regulamentação jurídica, medidas preventivas e punitivas, para coibir tanto os ilícitos civis como as novas figuras delituosas advindas ou potencializadas pelo uso de recursos informáticos. Embora as transformações decorrentes do desenvolvimento da tecnologia da informação não tenham ocorrido de forma repentina, mas resultado da evolução das relações sociais e produtivas, ela foi capaz de afetar a sociedade de modo a provocar uma reestruturação do modo como as pessoas estabelecem suas relações, de seus hábitos, do modelo on-line como realizam suas transações econômicas e financeiras, da produção de riquezas e de interação entre os poderes políticos, entre o governo e as empresas e entre este e os cidadãos, que podem fiscalizar exigir, receber serviços e informações dos órgãos públicos (MONTEIRO NETO, 2008). O nascimento da sociedade da informação, termo que denomina a sociedade contemporânea influenciada e excessivamente vinculada à tecnologia da informação, fez surgir novos valores, novas relações, novos bens e interesses que carecem de tutela jurídica. Emergindo, da mesma forma, novos direitos, novas responsabilidades nas diversas áreas do direito, por exemplo, cível, penal, consumeirista, e novos confrontos que necessitam de regulação e respaldo jurídico. Com o desenvolvimento da internet, a própria informação recebeu não só uma valoração econômica, mas também status social, transformando-se em um novo modelo de produção econômico-cultural, que necessita de regulamentação para tutelar os interesses daqueles que detêm o poder informático (PAESANI, 2003).

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Sociedade, tecnologia da informação e direito

Ao mesmo tempo em que a internet confere celeridade e praticidade à obtenção de informações que transitam no meio virtual e ao modo como os indivíduos interagem entre si, ela também, em muitos casos, serve como veículo para a prática de condutas lesivas à coletividade, funcionando como um fator potencializador da criminalidade. Quando um delito é realizado no meio virtual, ele ganha uma dimensão bem maior, não só em razão da natureza do bem jurídico informacional, mas da imensurável potencialidade lesiva dessas condutas, pois um código malicioso como um trojan horse, pode, em segundos, circular o mundo, de forma a lesar milhões de pessoa. O acelerado crescimento dos índices dos crimes de tecnologia da informação encontra respaldo basicamente em três fatores. O primeiro relaciona-se à falsa ideia de que o mundo da tecnologia da informação, em especial a internet, é destituído de leis, sendo uma espécie de faroeste virtual, e tal sentimento é potencializado pela errônea impressão de que tudo que é praticado na rede é acobertado pelo véu do anonimato de um monitor; pois, mesmo que lentamente, o maquinário jurídico dos Estados já iniciou o processo de criminalização dessas condutas, ora adaptando-as aos dispositivos incriminadores já existentes, ora criando novas condutas típicas. Entretanto, por se tratar de um processo gradual, a sua efetividade só será percebida a longo prazo. O segundo fator está associado à mudança de perfil do criminoso de tecnologia da informação, hoje a maioria das condutas ilícitas praticadas por instrumento da tecnologia da informação não são praticadas por simples nerds com alto conhecimento na área da informática para obter vantagens indevidas de cunho individual, mas são perpetradas por grupos criminosos organizados que utilizam tais recursos, a fim de amealhar recursos para financiar outras ações ilícitas ou de lavar capital oriundo de outras condutas criminosas. Já o último fator é relativo ao confronto entre a natureza dos institutos: internet e direito; pois, enquanto a internet tem, como corolário, a capacidade de executar suas funções e difundir informações de modo a eliminar barreiras geográficas e culturais, o direito fundamenta-se no princípio da territorialidade, isto é, a eficácia das normas jurídicas e a competência de suas instituições estão limitadas à extensão do território nacional. Assim, ante a pluralidade de tratamentos normativos conferidos pelos Estados à matéria, os criminosos simplesmente transferem suas atividades para sítios virtuais de menor capacidade legal e tecnológica, acarretando o aumento vertiginoso dos índices de crimes praticados via computador nos últimos anos.

Aglais Cristina Gondim Tabosa Freire

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Dessa forma, o direito da tecnologia da informação emerge não como uma espécie normativa autônoma, mas como uma mera evolução do ordenamento jurídico vigente, composto por institutos, normas e princípios gerais inerentes ao ordenamento jurídico tradicional, mas que se diferencia ao introduzir elementos e valores próprios das relações praticadas no meio virtual (PINHEIRO, 2009). Aspectos gerais dos crimes de tecnologia da informação Diante das divergências doutrinárias acerca da conceituação de crimes da tecnologia da informação, serão apresentadas duas das principais correntes. A primeira, que tem, dentre os seus defensores, Líbano Manzur (2000), classifica os referidos crimes como toda ação ou omissão típica, antijurídica e dolosa, tratando-se tanto de feitos isolados, como uma série de atos cometidos contra pessoas físicas ou jurídicas, sendo realizados mediante o uso de sistemas de tratamento de informação e destinados a produzir prejuízos às vítimas, por meio de atentados ao desempenho regular dos recursos informáticos, gerando, de modo colateral, lesões a diversos valores jurídicos simultaneamente, que, na maioria dos casos, se converte em um benefício ilícito para agente, de caráter patrimonial ou não, atuando com ou sem ânimo de lucro. Dessa forma, apesar de ser indispensável que a prática do delito seja desenvolvida no ambiente virtual, é irrelevante a natureza eletrônica do bem jurídico diretamente atingido ou o momento da utilização de recursos tecnológicos, que pode ocorrer na preparação, na execução ou na consumação do delito, uma vez que se configura em um crime de meio, e não um crime de fim (PINHEIRO, 2009). Essa teoria, por sua vez, divide tais delitos em puros ou impuros, de acordo com a natureza do bem jurídico ameaçado ou tutelado. São crimes puros, ou crimes eletrônicos propriamente ditos, aqueles que visam, diretamente, à violação de um recurso tecnológico, como o delito de acesso indevido às informações contidas no banco de dados do computador; enquanto que os impuros são crimes que, embora praticados com a utilização de ferramentas tecnológicas, atingem bens jurídicos diversos dos recursos tecnológicos, por exemplo, o crime de difamação praticado em sites de relacionamento, uma vez que o objeto juridicamente tutelado não é a máquina, mas a honra da vítima (ARAS, 2009). Quanto às condutas já tipificadas, mas que se diferem por serem praticadas por instrumento da tecnologia da informação, de modo a ampliar o seu potencial ofensivo, é perfeitamente possível adequar as nor126

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mas vigentes para abarcar essas situações especiais, guardando, assim, as devidas diferenças; entretanto, quando se refere a condutas que atingem novos bens jurídicos e que ainda não tipificadas no ordenamento jurídico, é necessária, em nome da ordem pública e da paz social, a criação de novos tipos penais incriminadores que descrevam tais condutas e que lhes imputem as devidas sanções (RODRÍGUEZ, 2010). A segunda corrente considera como crimes de tecnologia da informação apenas os denominados crimes puros, isto é, aqueles cujos objetos ameaçados ou violados são bens jurídicos de natureza tecnológica, como software, hardware e informações contidas nos bancos de dados, excluindo, assim, os denominados crimes impuros da tutela do direito da tecnologia da informação, cujo alcance se limita ao tratamento de delitos que ofendem bens jurídicos tecnológicos ou informacionais. A Organização das Nações Unidas (ONU), para solucionar as controvérsias acerca da conceituação desses delitos, posicionou-se no sentido de reconhecer como crimes de tecnologia da informação apenas os denominados tipos puros, isto é, aqueles cujo objeto consiste em recurso tecnológico, dividindo-os ainda em três categorias: fraude, falsificação e dano ou alteração de programas ou dados. As fraudes são cometidas por meio da manipulação de banco de dados presentes nas máquinas e se distinguem em manipulação de dados de entrada e de saída, de programas ou de outros recursos informáticos. Enquanto a falsificação se dá pelo ingresso indevido a sistemas informáticos, a fim de alterar ou suprimir, de modo intencional e sem permissão, informações ali contidas na forma de dados, de modo a aparentar autenticidade e produzir efeitos legais. Já o dano ou a alteração de sistemas se configura na sabotagem informática, no envio de vírus, nos acessos não autorizados e na reprodução não autorizada de programas ou dados contidos nas máquinas (PATERLINI; VEGA; GUERRIERO, 2010). Aspectos normativos do controle aos crimes de TI no Brasil Embora a legislação ordinária brasileira abarque, total ou parcialmente, a maioria dos delitos praticados por instrumento da tecnologia da informação, ainda há condutas criminosas, extremamente nocivas, que ainda não têm tipificação legalmente prevista, que consistem, principalmente, em acessos indevidos e invasões a sistemas privados, motivo de preocupação por parte da sociedade e que demanda uma urgente alteração da legislação penal nacional, de modo a possibilitar o enquadramento dessas novas figuras criminosas, e de realizar convênios internacionais entre os órgãos de invesAglais Cristina Gondim Tabosa Freire

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tigação e punição dos delitos da tecnologia da informação (COSTA, 2010) e de cooperação entre as instituições internacionais, como ocorre na Organização dos Estados Americanos e na União Europeia, no sentido de elaborar normas e procedimentos padronizados acerca da referida matéria. No Brasil, a primeira lei criada no sentido de combater os delitos informacionais foi a Lei nº 7.646 de 1987, a qual estabeleceu o registro dos programas produzidos ou comercializados em território nacional, definiu as regras dos direitos dos programadores e cominou penas severas para o crime de violação de direitos autorais de programas e de contrabando de programas não registrados. O referido ato normativo foi revogado pela Lei nº 9.609 de 1998, que modernizou a abordagem da propriedade intelectual de programas de computador e aplicou penas mais rigorosas no que se refere ao delito de pirataria de software (AZEREDO, 2008). Em 1999, o deputado Luiz Piauhylino apresentou o Projeto de Lei n° 84, o qual foi baseado no PL nº 1.713, de 1996, de autoria do deputado Cássio Cunha Lima, que dispunha acerca dos crimes informacionais e suas respectivas penalidades, bem como do acesso de terceiros, não autorizados pelos respectivos interessados, a informações privadas mantidas em redes de computadores (RODRIGUES, 2002). Em 2000, ainda na Câmara dos Deputados, foram apensados ao PL n° 84, de 1999, os seguintes projetos de lei: PLC nº 2.557, de 2000, o qual trata o crime de violação de bancos de dados eletrônicos, acrescentando o art. 325-A do Código Penal Militar, PLC nº 2.558, de 2000, que dispõe sobre o crime de violação de bancos de dados eletrônicos, acrescentando o art. 151-A ao Código Penal, e PLC n° 3.796, de 2000, que tipifica condutas na área de informática, acrescentando um capítulo complementar ao Código Penal – momento em que recebeu a denominação de PLC nº 89, de 2003. O PLC n° 89, de 2003, pretende alterar o Código Penal e a Lei nº 9.296, de 1996, que cuida da interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, com valor probatório em investigação criminal e em instrução processual penal. Para tanto, dispõe acerca dos crimes cometidos na área de informática e suas penalidades, e condiciona o acesso de terceiros, não autorizados pelos respectivos interessados, a informações privadas mantidas em redes de computadores, à autorização judicial. Ainda em 2000, o senador Leomar Quintanilha apresentou o PLS n° 137, cuja proposta seria a elevação, em triplo, das penas dos crimes já tipificados pelo CP, mas que se diferem por serem cometidos mediante o uso de recursos da tecnologia da informação. No mesmo ano, foi apresentado pelo senador Renan Calheiros o Projeto de Lei 128

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do Senado (PLS) n° 76, a fim de conceituar alguns termos técnicos da informática no CP, como “dispositivo de comunicação”, “sistema informatizado”, “rede de computadores” e “provedor de acesso e de serviço”, e tipificar condutas danosas cometidas mediante a utilização de recursos de tecnologia da informação. O PLS 76 altera o Código Penal, o Código do Processo Penal, o Código Penal Militar, a Lei de Interceptação de Comunicações, a Lei da Repressão Uniforme e o Código do Consumidor. O referido ato normativo define que a pena de alguns crimes tipificados é aumentada de sexta parte, se o agente se vale de anonimato, de nome suposto ou da utilização de identidade de terceiros para a prática de acesso, e, ainda que a pena dos crimes de calunia, injúria e difamação serão aumentadas em dois terços, caso os crimes sejam cometidos por intermédio de dispositivo de comunicação, rede de computadores ou internet, ou sistema informatizado (AZEREDO, apud). A maior crítica feita ao PLS nº 76/00 se refere à repetição de delitos já previstos pelo Código Penal (CP), bem como à redução das penas imputadas por este, o que beneficiaria apenas os infratores e incentivaria o aumento dos crimes informacionais. Observou-se também, na redação do ato normativo, alguns equívocos técnicos e conceituais, o que evidencia a desnecessidade da criação de novos tipos penais específicos para os crimes já tipificados pela legislação penal, uma vez que, diante da alta velocidade de evolução da seara informática, seria mais conveniente que o legislador se guiasse pelo marco da ultima ratio, limitando o uso da sanção penal apenas em face da ineficácia de outros meios punitivos (ATHENIENSE, 2008). Em maio de 2005, o PLC n° 89 foi aprovado na Comissão de Educação, em votação terminativa, e foi ao Plenário por cinco sessões, entretanto as medidas provisórias obstruíram a votação, e, em agosto de 2005, foi aprovado o apensamento do PLS n° 76, de 2000, e do PLS n° 137, de 2000, ao PLC n° 89, de 2003. Dessa forma, toda a tramitação teve de ser reiniciada, pois tal apensamento obriga o retorno dos projetos à Câmara para que sua tramitação seja realizada por uma Comissão Especial. Em junho de 2006, os três projetos foram aprovados na Comissão de Educação e está agora na Comissão de Constituição de Justiça (CCJ). Durante os 11 anos de tramitação no Congresso Nacional, o projeto de lei acerca dos crimes eletrônicos foi objeto de polêmicas e críticas, inclusive por parte da Ordem dos Advogados do Brasil. Nesse período, foram realizadas tantas modificações, e eliminados tantos artigos da proposta inicial aprovada pelo Senado Federal, a ponto de prejudicar a própria finalidade do ato normativo. Aglais Cristina Gondim Tabosa Freire

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Na última reunião sobre o tema, realizada em 1º de julho de 2010, foram firmados acordos no sentido de reduzir as divergências em relação ao texto legal, entretanto tal ação implicou na retirada de, praticamente, todos os dispositivos previstos no PL n° 84/99, por exemplo, os artigos que tratam da obrigação dos provedores de denunciarem atividades suspeitas e da tipificação de certos crimes, como acesso indevido e a disseminação de código malicioso, bem como será modificada a competência da Polícia Federal para investigar esses crimes. Assim, esse novo entendimento resultaria na elaboração de um novo projeto de lei, a ser apresentado após o recesso parlamentar, que pretende incluir, em sua redação, os crimes de invasão de redes, destruição de dados, furto de informações, dentre outros, assim como permitir alguma forma de identificação de criminosos que se valem do anonimato conferido pela internet para permanecerem impunes, embora este ponto receba objeções por parte do atual governo (CONVERGÊNCIA DIGITAL, 2009). Em 2000, o então presidente da República Fernando Henrique Cardoso sancionou a Lei nº 9.983, que alterou o Código Penal, no sentido de coibir a prática dos delitos informacionais. Dentre as mudanças acarretadas pela vigência da referida lei, foram acrescentados os seguintes dispositivos: Art. 313-A. (inserção de dados falsos em sistema de informações) Inserir ou facilitar, o funcionário autorizado, a inserção de dados falsos, alterar ou excluir indevidamente dados corretos nos sistemas informatizados ou bancos de dados da Administração Pública com o fim de obter vantagem indevida para si ou para outrem ou para causar dano: pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa. Art. 313-B. (modificação ou alteração não autorizada de sistema de informações) Modificar ou alterar, o funcionário, sistema de informações ou programa de informática sem autorização ou solicitação de autoridade competente: pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos, e multa. Parágrafo único. As penas são aumentadas de um terço até a metade se da modificação ou alteração resulta dano para a Administração Pública ou para o administrado. Art. 153 (divulgação de segredo) Divulgar alguém, sem justa causa, conteúdo de documento particular ou de correspondência confidencial, de que é destinatário ou detentor, e cuja divulgação

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possa produzir dano a outrem: pena – detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa. [redação original] § 1º Somente se procede mediante representação. [parágrafo único original] § 1º-A. Divulgar, sem justa causa, informações sigilosas ou reservadas, assim definidas em lei, contidas ou não nos sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública: pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. § 2º Quando resultar prejuízo para a Administração Pública, a ação penal será incondicionada. Art. 325 (violação de sigilo funcional) Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitarlhe a revelação: pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, ou multa, se o fato não constitui crime mais grave. [redação original] § 1º Nas mesmas penas deste artigo incorre quem: I – permite ou facilita, mediante atribuição, fornecimento e empréstimo de senha ou qualquer outra forma, o acesso de pessoas não autorizadas a sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública; II – se utiliza, indevidamente, do acesso restrito. § 2º Se da ação ou omissão resulta dano à Administração Pública ou a outrem: pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. Quanto aos denominados crimes informacionais impuros, ou crimes comuns instrumentalizados por recursos tecnológicos, praticados com maior frequência estão: fraudes, pornografia infantil, crimes contra a honra, racismo e a pirataria de áudios, vídeos e programas informáticos (COSTA, 2010), os quais, juntamente com os delitos de estelionato; comercialização, incitação e divulgação de nazismo; pedofilia; violação de marca, segredo comercial ou profissional; invasão ou apropriação indevida de dados e concorrência desleal, os quais já se encontram tipificados no Código Penal (ATHENIENSE, 2008). Considerações finais O impacto das novas tecnologias da informação nos diversos setores das relações humanas proporcionou o surgimento de novos relacionamentos, valores, e bens carentes de tutela jurídica, aparecen-

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do, nesse contexto, o direito da tecnologia da informação, como um ramo autônomo do direito. Diante da ofensa a esses novos bens jurídicos e da insegurança das relações no ambiente digital, surge a necessidade de o Estado tutelar juridicamente os novos interesses da sociedade da informação. Em face do princípio da legalidade, a ausência da tipificação dos delitos de tecnologia da informação configura um entrave ao desenvolvimento e à exploração dos mecanismos de tecnologia da informação, posto que a insegurança e a falta de credibilidade desses meios inibem a sua potencial exploração, colocando em risco o desenvolvimento do modelo de produção informacional. No Brasil, embora já seja verificado um esforço normativo realizado no sentido de modificar a legislação já vigente, tanto no sentido de atribuir uma penalidade maior aos denominados crimes impuros como no de tipificar crimes cometidos contra bens e valores decorrentes do surgimento da sociedade da informação, o projeto de lei de crimes eletrônicos já tramita, no Congresso Nacional, há 12 anos, em virtude das divergências sociais e políticas acerca do tema. Da mesma forma, é imprescindível também a criação de mecanismos que reduzam os riscos de invasão de sistemas informáticos e de órgãos estatais que fiscalizem as relações no ambiente digital, como medida preventiva aos ataques perpetrados por meios informáticos, garantindo uma maior segurança na utilização dos recursos eletrônicos. É também essencial a elaboração de tratados internacionais, a fim de unificar a regulamentação dos diversos ordenamentos jurídicos nacional, conferindo segurança jurídica e eficácia da prestação jurisdicional diante das ofensas e ameaças praticadas por instrumento das novas tecnologias da informação, assim como de prevenir futuros conflitos de competência, em face da capacidade de fracionamento do iter criminis dessa espécie de delito em sítios de legislação e jurisdição diversos. Referências ARAS, Vladimir. Crimes de informática: uma nova criminalidade. revista Informática Jurídica. 2009. Disponível em: <http://www. informatica-juridica.com/trabajos/artigo_crimesinformticos. asp>. ATHENIENSE, Alexandre Rodrigues. Crimes virtuais, soluções e projetos de lei. Universo jurídico. Juiz de Fora. 11/06/2008. Disponível em: <http://www.uj.com.br/publicacoes/ doutrinas/5317/Crimes _ Virtuais _ Solucoes_e_Projetos_de_Lei>. 132

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Sociedade, tecnologia da informação e direito

AZEREDO, Eduardo. Projetos de lei contra cibercrimes no Brasil. Senado Federal. Brasília: 25/06/2008. Scribd. Disponível em: <http://www.scribd.com/doc/3604559/Projetos-de-Lei-contracibercrimes-no-Brasil>. Acessado em: 11/06/2010. COSTA, Elizete Escolástica Ferreira da. Aspectos da criminalidade na internet. Buscalegis. Disponível em:<http://www.buscalegis.ufsc.br/ revistas/index.php/buscalegis/article/viewFile/ 5588/5157>. LIBANO MANZUR, Claudio. Los delitos del hacking en sus diversas manifestaciones. AR: Revista de derecho informático. Alfa-redi. Chile, n. 21, abr./2000. Disponível em: <http://www.alfaredi.org/ rdiarticulo.shtml?x=453>. Acesso em: 10/06/2010. MONTEIRO NETO, João Araújo. Aspectos constitucionais e legais do crime eletrônico. Fortaleza: Universidade de Fortaleza, 2008. Dissertação de Mestrado. Disponível em:<http://uol11.unifor.br/ oul/ ObraBdtdSiteTrazer. Acessado em: 17/11/2009. PAESANI, Liliana. Minardi. Direito e internet. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2003. PATERLINI, Nora; VEGA, Carolina; GUERRIERO, Gabriela; VELÁZQUEZ, Mercedes. Delitos informáticos: antecedentes internacionales para una legislación nacional proyectos legislativos. Asociación argentina de derecho de alta tecnología. Disponível em:<http://www.aadat.org/ delitos_informaticos20.htm>. PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito Digital. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2009. Projeto Azeredo deve ser ‘enterrado’ na Câmara. Convergência Digital. 02/06/2009. Disponível em: <http://tecnologia.terra.com. br/interna/0,,OI3854916-EI4802,00-Projeto+Azeredo+deve+ ser+ enterrado +na+Camara.html>. Acessado em: 18/08/2010. RODRIGUES, Francisco de Assis. A tutela penal dos sistemas de computadores. Jus navigandi. Teresina, n. 55, mar. 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/ texto.asp? id= 2813&p=2>.

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VIII. Mundo


Autores Fernando de la Cuadra

Sociólogo chileno. Membro da Rede Universitária de Pesquisadores sobre a América Latina (Rupal). http://fmdelacuadra.blogspot.com

Catarina Corrêa

Estudante Sênior do Programa de Educação Tutorial do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília


Chile: construindo uma nova esquerda Fernando de la Cuadra

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m recente viagem a Santiago do Chile, tive oportunidade de um amistoso encontro com Jorge Arrate (1941), advogado, economista, acadêmico, pesquisador, escritor e político chileno. Formado pela Universidade do Chile, onde se pós-graduou e na Universidade de Harvard, ele é militante histórico do Partido Socialista, foi ministro nas gestões dos presidentes Patricio Aylwin e Eduardo Frei Ruiz-Tagle e embaixador na Argentina, durante o governo de Ricardo Lagos. Em 2009, foi escolhido candidato à Presidência da República pela “Nova Aliança Democrática Popular”, uma coalizão que congregava diversas forças da esquerda extraparlamentar em torno do Partido Comunista do Chile. Como escritor e intelectual, teve publicados vários livros, entre os quais destacamos: La fuerza democrática de la idea socialista (Documentas, 1985); Pasión y razón del socialismo chileno (coautoria com Paulo Hidalgo, Ediciones del Ornitorrinco, 1986); Pasajeros en tránsito (Catalonia, 2007); e Salvador Allende ¿sueño o proyecto? (Editorial Lom, 2008). Nesta entrevista, o ex-candidato a presidente aborda questões como a derrota da Concertación (aliança entre socialistas e social-democratas) e os desafios que existem para organizar uma nova força de esquerda, através de uma releitura do legado de Allende (“ni calco ni cópia”)1, destacando o importante papel da democracia e sinalizando roteiros para construir um país mais justo, inclusivo e solidário. 1 Expressão, em espanhol, que significa inédito, isto é, sem (modelo) e sem cópia.

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Mundo

Ao se completar um ano do governo de Sebastián Piñera, como avalia o desempenho de sua administração? Arrate – Eu acho que o triunfo de Piñera é um corolário de um processo de declínio da coligação que vinha dirigindo o Chile, seja pelo enfraquecimento ou incapacidade, por falta de vontade ou por divergências internas que fez com que a Concertación deixasse de ser o que era quando nasceu – em 1988, no plebiscito, e em 1989, na primeira eleição presidencial – e acabou se tornando uma coalizão de reformas muito graduais de um status quo estabelecido. Agora falo um corolário, porque às vezes se tende a colocar no centro da questão o fato de que a direita ganhou em 2010, sendo que a direita ganhou por um processo de decomposição que vinha em desenvolvimento. Em minha opinião, a eleição de Piñera colocou um ponto final nesse ciclo, ciclo que terminou definitivamente, que é o ciclo de expansão e desenvolvimento do sistema eleitoral binominal. A direita cresceu e chegou a representar metade mais um dos votantes, sendo que historicamente ela sempre alcançava aproximadamente um terço, mas começou a crescer, a desenvolver-se, a consolidar-se, a expor seu projeto mais abertamente e, finalmente, triunfou. E quais seriam as consequências desse processo? Arrate – É o início de um novo ciclo em que o tema já não é o sistema eleitoral binominal. Para a direita, agora, a meta é consolidar um regime político de alternância binominal, isto é de duas forças como os democratas e republicanos, nos Estados Unidos; blancos e colorados, no Uruguai; liberais e conservadores, na Colômbia; ou trabalhistas e conservadores, na Inglaterra. Trata-se de consolidar esse sistema em que pode haver uma alternância, mas onde a rotação é sempre dentro do mesmo esquema. Neste sistema, a esquerda passa a ser um ator irrelevante e o nosso desafio, neste momento, é exatamente construir um terceiro protagonista, uma esquerda protagonista. Em alguns trabalhos que você escreveu sobre a “Nova Esquerda” ou em entrevistas concedidas a diversos meios de comunicação2, tem sublinhado a importância de unir forças em torno de uma esquerda heterogênea, diversificada, crítica e futurista. Mesmo compartilhando, em termos normativos, esse objetivo, observo no Chile a esquerda ser altamente fragmentada, com um número enorme de pequenos grupos e associações – o movimento da nova esquerda, os socialistas allendistas, iniciativas por mais esquerda etc.– e, por outro lado, lembro-me da aliança histórica entre comunistas e socialistas desde a época da 2 Pode-se consultar a série de entrevistas e artigos que foram compilados na publicação Un horizonte para la izquierda, Santiago: Editora Caburga, out./2010.

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Chile: construindo uma nova esquerda

Frente Popular de 1938. Nesse sentido, é possível reconstruir esta aliança histórica dos dois grandes partidos, reunindo em torno deles o conjunto das forças de esquerda? Arrate – Para responder a essa questão, utilizarei uma frase de Mariátegui que diz ni calco ni cópia. Aquilo que foi a unidade socialista-comunista – e eu fui formado nessa geração – constituiu uma grande experiência, que se traduziu no allendismo. Mas si calco nicópia, porque o Chile atual não é o mesmo de há sessenta anos. O mundo mudou e, claro, o país também, o que implica sermos muito mais exigentes e sofisticados na análise, pois houve mudanças sociais muito relevantes, com um monte de grupos e segmentos que surgiram e não se sentem representados pelo sistema político atual. Então, eu diria que “acasalar” o Partido Socialista na esquerda é para mim um grande objetivo, pois espero que possamos fazer que ele volte a recuperar este seu lugar. No entanto, hoje a unidade entre socialistas e comunistas não cobriria o leque e a extensão do que constitui hoje a esquerda, as forças sociais, culturais e políticas que querem uma mudança real, mais liberdade, mais igualdade. Mesmo que, em boa hora, os socialistas voltem a se localizar na esquerda – é o que acredito que deve acontecer, isso não é suficiente, pois ainda existem grandes segmentos da população que não querem ser nem socialista nem comunista, e que são de esquerda. Você acha que este novo referente é capaz de “encantar” – embora o conceito esteja sobreutilizado – esses vários segmentos da esquerda? Arrate – Eu não estou inteiramente seguro. Acho que o que estamos iniciando agora pode ser um passo. Trata-se de um apelo às entidades e às pessoas que querem construir uma força de esquerda antineoliberal que procure uma aliança com outras forças de esquerda e não um confronto. Meu desejo é contribuir, a partir da minha longa caminhada política, para gerar um protagonista de esquerda e não liderar batalhas dentro da esquerda, porque para isso não estou disponível. Acho ser uma tarefa muito difícil, mas é um desafio que deve ser assumido por quantos pensam ser o nosso dever. Parafraseando Gramsci, representa um compromisso ético-político. Arrate – Isso mesmo. E como percebe o legado de Allende neste projeto, figura que para muitos representa o grande líder do século passado, mas para alguns setores progressistas ele não é uma referência importante? Arrate – Bem, eu realmente não gosto do termo “progressista”, porque é um chiclete que já foi mastigado demais. Houve um encontro Fernando de la Cuadra

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progressista em que estiveram presentes Clinton, Tony Blair, juntamente com Lula, Cristina Kirchner, não sei se Correa, do Equador, compareceu... Na verdade, eu estava me referindo aos progressistas que podem ser convocados numa proposta alternativa, pensando na ideia de Enrico Berlinguer sobre a construção de um bloco histórico que impulsione as mudanças a partir de uma perspectiva socialista e democrática. Arrate – Para fazer as transformações no Chile se requer uma esquerda forte e capaz de conviver com outros setores. Eu não sou contra os acordos com a centro-esquerda ou os chamados progressistas, porque temos que fazer uma política de maiorias. Porém, o que prevalece hoje é uma situação em que o carro vai à frente dos bois. Ou seja, a opção é construir um movimento unido de esquerda e de centro para derrotar a direita. E a outra opção – que não é contraditória a unir forças – consiste em colocar a primeira prioridade na construção de um protagonista de esquerda, porque não há um ator de esquerda sólido. Nós obtivemos 6,2% nas eleições passadas, o Partido Comunista tem apenas três deputados, quer dizer, a esquerda é um ator secundário no Chile. Assim, a pergunta é: como podemos fazer para transformar esta esquerda num grande protagonista? Para tanto, precisamos ser uma esquerda pactual, capaz de assumir compromissos e alianças. Quando você faz acordos, não interessa se eles são feitos desde quase a insignificância ou se eles são feitos a partir de uma força que tem sido capaz de superar suas diferenças ou ao menos coordenar-se, e sustentar uma plataforma mínima que não significa esquecer ou deixar para as calendas gregas os principais objetivos que estabelecemos. Voltando ao legado de Allende. Numa entrevista a um jornal espanhol, o escritor Jorge Edwards afirmou que, no Chile atual, Salvador Allende nada mais é que uma estátua. Arrate – Olhe, acredito que Allende daria razão a Edwards. Lembro-me de ter ouvido do próprio Allende: “Eu sou carne de estátua”, no sentido de que tinha uma missão histórica. Porém, no sentido em que diz Edwards, há uma conotação pejorativa. Em qualquer caso, Allende é a maior figura do século XX chileno, representa o líder do único projeto que em 500 anos de história procurou transformar a sociedade e esteve perto de fazê-lo. Para mim é uma referência que marca toda a minha vida política. Então, eu sou allendista, mas si calco e si cópia. Tenho a nítida impressão de que o Chile entrou, há alguns anos, em um processo de conservadorismo moral, fortemente condicionado 140

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Chile: construindo uma nova esquerda

pelas formas assumidas pela cultura do novo capitalismo, referenciado por Richard Sennett3. Em outras palavras, as pessoas estão preocupadas em consumir e, consequentemente, devem trabalhar afanosamente para pagar suas dívidas, com baixa participação, com uma fragmentação da vida social, com cidades segregadas, sem espaços públicos onde os cidadãos possam conviver ativamente etc. Nesse contexto, você confia que o país possa voltar a percorrer um caminho traçado pela ação coletiva, a participação e a solidariedade? Arrate – Você coloca uma questão fundamental em qualquer análise de desenho político que prevê a dimensão cultural. Ou seja, o Chile sempre foi um país fechado sobre si mesmo em relação a outros países como a Argentina, que teve uma política de imigração aberta e a nossa era uma política de imigração mais seletiva. Os chilenos não percebem que estamos no fim do mundo, numa ilha estranha e comprida. O país tornou-se um Estado-nação antes de muitos latino-americanos, com o predomínio de uma burguesia e de uma igreja que estabeleceram, durante o século XIX, um sistema muito autoritário, ainda que com certas características democráticas no âmbito formal, que teve um período de abertura no chamado Estado de Compromisso desde 1932 e até o golpe militar de 1973. Assim, o Chile sempre foi um país culturalmente conservador, onde as notícias sempre chegam depois, as coisas acontecem depois de ocorrerem no resto do mundo. O Chile reconheceu a Palestina só depois de Brasil, Argentina, Equador e outros países latino-americanos. E, além disso, é um reconhecimento sem considerar os limites de antes da Guerra dos Seis Dias. Isso é típico da cultura conservadora chilena, a de não correr risco. É um país que se encontra menos aberto ao mundo, apesar de que hoje o mundo se tem reduzido por meio da tecnologia da informação e das comunicações, da música e da globalização, para usar um conceito que tem um forte impacto no Chile. No sentido da sua pergunta, vivemos uma luta permanente de longa duração “de baixo” em um país onde o pensamento conservador tem uma hegemonia muito forte. Nos últimos vinte anos, é a direita que parece mais gramsciana: fundaram universidades, controlam a educação, se preocuparam em controlar todos os meios de comunicação, ou seja, fizeram a batalha cultural. Mas se você acha que o Chile viveu a experiência da Unidade Popular, que é uma síntese de um processo histórico que começou em 1938 com a Frente Popular e cuja população foi reconhecida como ten3 Ver Richard Sennett, A cultura do novo capitalismo. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006. Fernando de la Cuadra

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do uma vasta cultura política, onde foi parar toda essa herança, simplesmente extinguiu-se? Arrate – A verdade é que a ditadura foi brutal e seu objetivo foi exterminar, literalmente, o que havia sido a esquerda no Chile: comunistas, socialistas, miristas. Junto com isso, houve uma justaposição deste processo global para o estabelecimento do mercado como uma instituição reitora da sociedade, o livre mercado a todo custo e um regime político autoritário. O que é interessante, do ponto de vista analítico, é essa mistura entre a liberdade extrema no econômico com o autoritarismo no político. Então, o golpe de Estado foi muito forte, desarticulou e extinguiu o que tinha sido construído. Aqui existe uma geração inteira que foi banida, inclusive mesmo em termos de idade. Há um buraco enorme, um espaço das lideranças políticas da esquerda, especialmente no caso do Partido Comunista, que passou 17 anos sendo perseguido, a fim de ser exterminado e foi durante vinte anos excluído do sistema político. Tal não foi o caso do Partido Socialista. E o MIR é um caso extremo de perseguição. Nesse sentido, o grande movimento social que representou o governo da Unidade Popular no Chile – que, juntamente com a Revolução Mexicana e a Revolução Cubana foram os grandes acontecimentos do século XX – a ditadura e as tendências globais o bateram com muita contundência. A esquerda chilena sofreu quatro derrotas consecutivas. A primeira foi o golpe de 1973. A segunda foi o fracasso da política impulsionada pela Frente Patriótica Manuel Rodriguez e a estratégia insurrecional, com a tentativa de assassinato de Pinochet em 1986, e a descoberta da internação de armas em Carrizal Bajo, em 1987. Em terceiro lugar, a queda do Muro de Berlim e o fim dos regimes de partido-estado da Europa Oriental após 1989. E, em quarto lugar, a derrota dos socialistas que não somente não puderam dar um selo mais à esquerda em vinte anos de Concertación, mas que esta coligação lhes deu um selo mais à direita. Embora também se possa pensar que a derrota final representa a culminação de um processo em que a esquerda não foi capaz de recuperar-se da repressão sofrida por 17 anos. Em outras palavras, é a continuidade ou talvez o epílogo da derrota sofrida na década de 70. Arrate – No meu entender, a culminação da derrota socialista foi o governo de Bachelet, já que Lagos foi um socialista mais socialdemocrata, e Bachelet era uma socialista da linha marxista-leninista do Partido Socialista, que tinha sido contrária à participação no referendo de 1988 e finalmente foi um governo que “deu a orelha” de forma rápida, além do progresso ocorrido em diversas áreas.

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Chile: construindo uma nova esquerda

Por exemplo, na área cultural. Arrate – Sim, mas refiro-me aos pilares básicos do modelo econômico e político que não foram tocados. Por exemplo, no governo de Lagos, criou-se o Plano Auge4, que é um avanço, mas não resolve a questão fundamental da saúde pública vs saúde privada ou dos direitos universais de saúde. Tanto é assim que hoje este Plano está passando por um processo de privatização, por meio dos títulos Auge. Algo semelhante aconteceu com Bachelet: toda a mudança do sistema da previdência que ela iniciou acabou por não se concretizar e terminou tornando-se uma mera política assistencial. E por que? Porque ela não tinha maioria no Congresso, porque a direita se opôs sistematicamente ao Plano. O problema da Concertación é que ela nunca quis que as pessoas se inteirassem das questões de governo. Porque tudo o que se legislava era porque já existia um acordo anterior com a direita. Quando Bachelet assumiu o governo, foi assinado um grande acordo pela educação. Penso na famosa foto em que estão todos cantando o hino nacional com os braços para cima, a direita juntamente com a Concertación e a presidente Bachelet no meio deles. Isso após as sucessivas manifestações dos estudantes secundaristas que finalmente se recusaram a assinar o documento elaborado pela Comissão Assessora5. Arrate – Exatamente. Em seu livro La fuerza democrática de la idea socialista, de 1985, você estabelece uma relação orgânica e virtuosa entre o socialismo e a democracia como uma concepção antecipatória desse debate no meio latino-americano e chileno. Devido à atualidade do tema, tem pensado em reeditá-lo? Arrate – Não, mesmo que talvez seja o mais importante livro que escrevi até agora, o livro de renovação. Mas foi há 26 anos, e a maioria das coisas publicadas nesse período hoje tem nuances diferentes. Há um capítulo sobre Eugenio Gonzalez que estava pensando retomá-lo e escrever um artigo sobre a atualidade deste grande teórico, porque ali se encontra aquilo que eu chamo de “estratégia de coincidência e desafio” entre os socialistas com os comunistas e os demo4 Plano de Acesso Universal com Garantias Explicitas em Saúde (Auge) é um sistema que beneficia todos os cidadãos em quarenta tipos de patologias em suas diversas fases, tais como câncer, doenças cardíacas, diabetes, pneumonia, Aids ou esquizofrenia. 5 Referimo-nos ao relatório elaborado pelo “Conselho Assessor Presidencial para melhorar a qualidade da educação”, o qual era composto por 74 membros dos quais apenas 12 eram representantes dos alunos. Fernando de la Cuadra

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crata-cristãos, na qual os socialistas são uma espécie de articuladores ou cimento deste bloco. E o que acontece depois é que os socialistas e os democrata-cristãos vêm se recusando a fazer alianças com os comunistas. Isso é paradoxal, uma vez que os socialistas nunca foram de excluir o Partido Comunista e, finalmente, aceitaram (aceitamos) excluí-lo. Isso porque a Democracia Cristã impôs esse veto. O que eu disse, depois da publicação desse livro, é que no Chile não houve um “compromisso histórico” como aconselhava Berlinguer. Em nosso país, o que houve foi um acordo do tipo centro-sinistra ao estilo de Craxi, que é o acordo italiano entre democrata-cristãos e socialistas sem os comunistas. Isso nunca foi a perspectiva de Allende, pois todo o esforço e ação política de Allende se focavam em reunir a esquerda, em primeiro lugar. Finalmente, qual é sua agenda para construir uma nova força de esquerda com um maior protagonismo? Arrate – Acho que estamos em um momento que nos possibilita construir uma força de esquerda moderna, futurista, orgulhosa do seu passado, mas com o olhar colocado no presente. E para reconstruir esta esquerda, a primeira coisa a fazer é desdemonizá-la e assumir o que a gente é efetivamente. Estamos dedicados a reunir pessoas, organizações e entidades que se identificam com um pensamento de transformações sociais profundas. E, em termos de segmentos, a nossa primeira prioridade são esses 50% dos chilenos que não participam ou votam em branco, que anulam seus votos, que não estão registrados ou que são residentes no estrangeiro. E também os jovens. Entre os jovens, temos uma grande massa que rejeita o sistema, que rejeita a política e condena os políticos em geral. É aí que a palavra “reencantar” desempenha o seu papel. Por isso é que o reencantamento dos jovens deve ser feito pelos próprios jovens. E nós – que somos de gerações mais velhas – o que temos que fazer é passar o bastão da corrida para os mais jovens. É preciso formar cinco ou seis lideres que se situem entre os 35 e os 40 anos. O que as pessoas mais experientes podem fazer é contribuir sempre. Por minha vocação política que se mantém viva, não irei para casa. Vou continuar trabalhando, ainda que hoje seja uma minoria dentro da minoria.

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Nacionalismo e socialismo na Romênia Catarina Corrêa No fundo do lago, encontra-se Bözödújfalu1, cujos moradores das 180 casas ainda são lembrados em diversas partes do mundo. Os malvados da ditadura demoliram e inundaram a vila e, com ela, uma religião única no mundo, que unia diferentes famílias e nacionalidades durante séculos, respeitando uma a outra e amando, em paz exemplar. Agora as orações católicas, unitárias, gregoortodoxas e judias se silenciaram para sempre. Que este lugar seja o lugar da paz religiosa e seu símbolo2. (Árpád Sukösd)

Bözödújfalu como retrato de uma política governamental A epígrafe acima, encontra-se no monumento de 1995 de Bözödújfalu, vila não mais existente que era localizada a 5 quilômetros de Erdőszentgyörgy, na beira do riacho Kusmöd, na Transilvânia, região da Romênia que pertenceu à Hungria até a I Guerra Mundial. Em 1994, sob comando do líder socialista Nicolae Ceausescu, a vila e suas duas igrejas foram submersas. Doze casas, nas quais moravam quarenta pessoas, escaparam das enchentes de água dirigidas para a região por meio de uma barragem3. Apesar do plano de evacuação total, a vila ainda abrigava 126 pessoas à data da inundação, dos quais 99 húngaros, 23 ciganos e 4 romenos. Era ocupada por um grupo religioso singular: os sabbatarianos, crença formada pela união dos grupos unitários e judeus, surgida já no início do século XVI em diferentes partes do Leste Europeu – e, no século XVII, na Transilvânia. A população se distribuia uniformemente entre sabbatarianos, gregos ortodoxos, católicos e unitários que viviam em harmonia religiosa. Ainda assim, em lugar de conflitos, havia uma

1 Em romeno, Bezidu Nou. 2 Tradução da autora. 3 A barragem tinha 625 metros de comprimento e 28 metros de altura. A construção que permitiu a enchente foi iniciada em 1975, interrompida em 1977 e retomada em 1984, tornando-se um reservatório de água, em 1988; a evacuação da vila iniciou-se em 1985.

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convivência pacífica de grupos étnicos e religiosos e, além disso, a predominância linguística de um grupo não nacional. O regime socialista, no entanto, perseguia uma política diferente, não só no tocante ao cultivo de crenças religiosas, mas, principalmente, no monopólio da identidade relacional de diferentes povos e culturas. Pregava-se o internacionalismo e a resolução de conflitos étnicos a partir do fim da luta de classes. Ou seja, acreditava-se que o nacionalismo não deveria ocupar a agenda dos governos socialistas, uma vez que tais sentimentos de identidade coletiva seriam eliminados quando a questão principal em pauta, a luta de classes, fosse resolvida. Assim, o governo socialista pretendia, ao menos em tese, ignorar questões que não fossem ligadas à construção do regime comunista, no qual todos os outros problemas sociais seriam sanados (DENBER, 1992)4. No entanto, a prática governamental se revelava contraditória. Um exemplo claro disso eram as políticas do Estado romeno para com a minoria húngara. Estas políticas obedeciam à lógica da limpeza étnica, que é a eliminação de minorias étnicas, seja por meio de guerras e massacres, seja por meio da sua realocação territorial à força. Assim, a política que se apresenta em Bözödújfalu visava à eliminação de grupos minoritários e à formação de uma unidade nacional homogênea. Como exemplo, pode-se observar que desde o primeiro momento do regime socialista romeno, a partir de 1947, os húngaros que faziam parte da Aliança do Povo Húngaro na Romênia, outros húngaros e outras minorias étnicas e nacionais começaram a ser perseguidos (BALOGH, 2001, p. 121 apud BALOGH, 2004)5. Este artigo busca analisar as políticas nacionalistas romenas à época do regime socialista, à luz de uma política específica conduzida pelo governo de Nicolae Ceausescu: a destruição de vilarejos habitados por minorias não-romenas. Para isso, parte-se de alguns marcos teóricos. Primeiramente, é importante definir o que é nacionalismo e quais de seus elementos serão incorporados aqui como argumento; em segundo lugar, notar uma dualidade nas políticas estatais, definidas de acordo com Stepan6, em função do objetivo que 4 DENBER, Rachel. The Soviet Nationality Reader. Westview Press. São Francisco, 1992. 5 BALOGH, Laszló, Rendszerváltások és diktatúrák. Budapest: Editora Századvég, 2004. 6 LINZ, Juan; STEPAN, Alfred, A transição e consolidação da democracia. São Paulo: Editora Paz e Terra. 1999.

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Nacionalismo e socialismo na Romênia

é estabelecido; e, em terceiro, investigar como a política de limpeza étnica está inserida na história da região. As diversas faces do nacionalismo e o socialismo romeno A nação, figura formadora das civilizações na era moderna, é fruto de debates infindáveis7. Adota-se aqui a concepção de Hroch (2000)8, segundo a qual a nação é uma comunidade formada a partir de um desenvolvimento histórico de relações objetivas tais como a economia e a política, e o reflexo subjetivo de uma consciência coletiva. Essa consciência subjetiva pode ser entendida a partir de sua dualidade cívico-étnica como formas de entendimento do pertencer a uma determinada nação. O tipo cívico de nacionalismo teria nascido da associação deste com a democracia, a partir da concepção de Liah Greenfeld9 (1992, apud NASCIMENTO, 2003), na qual as instituições políticas garantem participação do indivíduo enquanto cidadão. Essa participação, ou seja, a cidadania, é a garantia do pertencimento àquele Estado. O tipo étnico de nacionalismo, por outro lado, se aproxima da visão de André Van De Putte (1996, apud NASCIMENTO, 2003), a partir da qual o nacionalismo é definido pela raíz cultural, linguística e étnica que está na base da formação de uma determinada nação. A título de exemplo, podemos citar os Estado Unidos e a Alemanha nazista. Os Estados Unidos configuram-se como um exemplo típico de nacionalismo cívico, já que qualquer pessoa que nasça em seu território é automaticamente cidadão daquele país, independente de raça, religião ou etnia; já a Alemanha nazista era caracterizada pelo nacionalismo étnico, ou seja, baseava sua cidadania em elementos culturais, raciais, religiosos ou étnicos em geral. O tipo cívico de nacionalismo seria, portanto, mais includente, e o étnico mais excludente, já que é possível adquirir uma cidadania, mas nunca uma etnia. Tratam-se, no entanto, de tipos ideais, já que na prática existem nacionalismos que combinam elementos cívicos e étnicos, ora se complementando, ora se contrapondo. 7 Para os debates acadêmicos travados acerca do tema, ver NASCIMENTO, Paulo César Dilemas do nacionalismo in Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais (BIB) 56. São Paulo: Anpocs. 2003, p. 33-53. 8 HROCH, Miroslav. Do Movimento Nacional à Nação Plenamente Formada: o Processo de Construção Nacional na Europa in Um Mapa da Questão Nacional. Rio de Janeiro: Contraponto Editora Ltda. 2000. 9 GREENFELD, Liah. Nationalism, Five Roads to Modernity. Harvard University Press. Londres, 1992. Catarina Corrêa

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Para além da dualidade da compreensão subjetiva do nacionalismo de Hroch (2000), na qual a nação é compreendida como uma comunidade calcada em um sentimento de pertencimento, pode-se pensá-la como um projeto político que busca legitimar o Estado. Neste sentido, o nacionalismo está ligado a elementos objetivos – econômicos, políticos, linguísticos, culturais, religiosos, geográficos e históricos (Hroch, 2000). Stepan (1999) afirma, por exemplo, que existe uma diferença na lógica de políticas estatais que visam à construção da nação e na lógica de políticas estatais que visam à construção de um governo10. Isso significa dizer que o Estado pode executar políticas objetivando ora o fortalecimento do sentimento nacional, ora a solidificação das suas instituições. Sendo essas duas lógicas diferentes, entende-se que uma coisa não pode ser consequência da outra, ou seja, se há políticas nos dois sentidos dentro de um Estado, ambas são intencionais. No regime de Ceausescu, o Estado-nação romeno ainda não estava plenamente desenvolvido, ou seja, não estavam bem definidas quais eram as fronteiras da comunidade política e quem eram os cidadãos da mesma. A homogeneidade étnica neste sentido tornava-se condição facilitadora para a construção de políticas voltadas para a legitimação das instituições estatais, já que uma nação constituída somente por romenos deveria apoiar o regime que afirmava representá-los. Assim, a política de solidificação das instituições nacionais socialistas não bastava para a construção do Estado, era preciso, também, uma política de fortalecimento do sentimento nacional. Nos anos 50, o modelo stalinista continuava forte na Romênia, mantendo-se o sistema unipartidário. A “luta de classes pela homogeneização étnica”, iniciada no final dos anos 40, prosseguiu (BALOGH, 2004). Após o verão de 1957, a Romênia continuou com políticas de assimilação mais violentas, principalmente contra as minorias húngara e alemã; políticas estas sustentadas até 1960 por leis administrativas. Um exemplo das medidas homogeneizantes é a proibição do ensino em qualquer língua que não fosse o romeno. Essa concepção de formação da nação se deve à opção na Romênia por nacionalismo de tipo étnico e não cívico – justamente o contrário dos ideais socialistas.

10 Dentro do estudo, Stepan se refere a políticas estatais democratizantes. Considerase, no entanto, que a construção de outras formas de governo tem lógicas diferenciadas daquelas da construção de nação, principalmente no caso do socialismo, que pregava a internacionalidade da sua causa.

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Nacionalismo e socialismo na Romênia

Posteriormente, nos anos 70, a política romena passou por quatro mudanças principais (BALOGH, 2004): Ceausescu aumentou o caráter ditatorial e personalista do regime, alterando constantemente os quadros do partido e do governo. Ao mesmo tempo, aumentaram as relações familiares dentro da hierarquia política, a política externa foi marcada pela declaração dos interesses romenos, e o prestígio político de Ceausescu era garantido por seu carisma e suas concessões aos trabalhadores. A essa época, ampliava-se a política destrutiva de vilas, onde residiam minorias étnicas, enquanto a mobilidade social obedecia a critérios étnicos. Entre os anos 1980 e 1985 intensificou-se a “romenização”, e entre os anos 1981 e 1988 cerca de cinquenta mil húngaros mudaram-se da Romênia para a Hungria. O instrumento utilizado para forjar o Estado etnicamente puro foi, portanto, a limpeza étnica. A limpeza étnica é entendida a partir da teoria de Tamás Krausz (2009)11, que aponta para o seu papel como forma de legitimação. A construção de uma barragem na vila de Bözödújfalu obrigou quase todas as famílias de minoria húngara a mudar-se, constituindo-se, portanto, uma forma de limpeza étnica advinda de uma política governamental que visava garantir o monopólio identitário à ideologia socialista por meio do sistema unipartidário. A criação de territórios etnicamente puros assegurava a legitimidade do Estado-nação romeno e seu governo socialista. Desta forma, na medida em que os habitantes e cidadãos aceitavam a legitimidade do governo devido à representação étnica que o mesmo exercia, havia mais legitimidade para a imposição do sistema socialista na Romênia. A política de combate às minorias étnicas foi, portanto, uma prática do Estado romeno durante o regime socialista, que, sob o pretexto de eliminar a luta de classes, tentava forjar uma unidade nacional para legitimar o regime de Ceaucescu. Neste sentido, políticas de destruição de vilas, dentre as quais Bözödújfalu, foram essenciais para a limpeza étnica.

11 KRAUSZ, Tamás. Az új nemzetállamok kelet-europában: az etnikai tisztogatás mint legitimáció? in Az új nemzetállamok és az etnikai tisztogatások kelet-europában 1989 után. L’Harmattan Kiadó. Budapest, 2009. Catarina Corrêa

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IX. Vida Cultural


Autores Luiz Carlos Prestes Filho

Vice-presidente da Associação Brasileira de Gestão Cultural (ABGC) e vice-presidente cultural da Associação das Escolas de Samba da Cidade do Rio de Janeiro (AESCRJ), é autor dos livros Economia da Cultura – a força da indústria cultural do Rio de Janeiro (2002), Cadeia Produtiva da Economia da Música (2005) e Cadeia Produtiva da Economia do Carnaval (2009)

Katia Angeloff

Estilista e formada em Arte, é educadora da arte no Rio de Janeiro


O Carnaval do Povo... Existe! Luiz Carlos Prestes Filho

O

desfile das escolas de samba dos grupos C, D e E, que é realizado, todos os anos, na Estrada Intendente Magalhães, no bairro de Madureira, na cidade do Rio de Janeiro,“é um dos mais importantes projetos culturais e de inclusão social do mundo”, afirma, com autoridade, o urbanista Ephim Shluger, que trabalhou mais de dez anos para o Banco Mundial, em Nova Iorque, desenvolvendo projetos em países asiáticos, africanos e europeus. É dele a autoria do projeto que recuperou, para o entretenimento e o turismo, o sítio histórico de São Petersburgo, na Rússia. Durante três noites, madrugada adentro, neste março de 2011, 41 escolas de samba apresentam seus desfiles que podem e devem ser comparados com os grupos Especial, A e B, realizados no Sambódromo, na Marquês de Sapucaí. A diferença? A marca comunitária dessas escolas, coisa que as grandes já perderam. E – claro – o entusiasmo popular. A cada desfile, surgem inovações. Porém, o mais importante em Madureira é a concreta proposta de respeitar a tradição e a raiz do carnaval carioca. As menores escolas sabem o que é samba no pé. O evento reúne cerca de trinta mil pessoas, diariamente. Dessa maneira, são cerca de 120 mil pessoas no domingo, segunda, terça (5, 6 e 7 de março) e sábado (12), quando foi realizado o desfile das campeãs. Como não existe cobrança de ingressos, parece uma viagem no tempo, à época das pequenas arquibancadas modulares ou da simples corda que separava a escola de samba do público, permitindo ao espectador e ao desfilante estar no mesmo nível. É a população da zona

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Vida Cultural

oeste, da zona norte e da Baixada Fluminense que ocupa este espaço planejado e organizado pela Prefeitura e pela Associação das Escolas de Samba da Cidade do Rio de Janeiro (Aesc-RJ). Muita gente vem para o desfile com suas cadeiras de praia, guarda sol, mesinhas, isopores e garrafas térmicas. Padronizadas, as barracas de comes e bebes se derramam, ao longo de um quilômetro, em luzes coloridas. Na opinião do urbanista Ephim Shluger, “a infraestrutura não corresponde à magnitude do que acontece com tanta espontaneidade e originalidade; aqui está aquele carnaval que tantos dizem que foi perdido para sempre; aqui está a festa das comunidades do samba da periferia desassistida em equipamentos culturais, que não sabe o que é ter um cinema, sala de teatro, museus ou livrarias perto de casa”. As 16 escolas do grupo C desfilaram, este ano, com uma média de 600/1.000 sambistas; as 13 escolas do grupo D, com a média de 500/600; e a do grupo E, com 350/500. Portanto, uma massa entre 30 e 35 mil pessoas passou pela passarela – que pode ser denominada de Passarela do Povo. O antropólogo Roberto DaMatta publicou, durante o carnaval deste ano, o texto intitulado Carnaval & Cinzas. Em certo momento ele destaca: “Espero que o leitor tenha se ‘esbaldado’ neste carnaval. Seja entrando na folia; seja afastando-se dela para recolher-se em alguma serra ou refúgio turístico, o que dá no mesmo. Em ambos os casos, o carnaval se faz presente pela criação e, mais que isso, pela reafirmação de que a vida sempre está em outro lugar”. No Carnaval de Madureira, as comunidades gritam que a vida deles está sendo resolvida naquele momento, naquele espaço físico. Para essas comunidades, não existe o outro lugar para a vida. Até porque planejam e executam os seus desfiles para honrar sua identidade, seu chão. Uma observação curiosa. Durante os três dias de desfiles, no meio dessa multidão de espectadores e de realizadores dos desfiles, a polícia não prendeu sequer um mijão na Intendente Magalhães. Como disse um soldado: “Aqui é a casa dessa gente, tanto para os que veem assistir como para aqueles que veem desfilar, por isso urinam nos banheiros químicos, por mais incômodo que seja ficar nas filas, mulheres e homens. Imagine serem pegos sujando o local onde as crianças e idosos, seus familiares, estão curtindo a alegria?”. Pois, se para Roberto DaMatta durante o carnaval a “vida sempre está em outro lugar”, a festa de Madureira afirma outra coisa: a festa está aqui, e é aqui que se deve curtir a felicidade. Quem sabe é por isso que na mais alta madrugada, entre as duas e cinco horas da manhã, o que se vê no rastro das escolas são crianças e adolescentes, com 154

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O Carnaval do Povo... Existe!

idades que vão entre dois e 17 anos, se divertindo. Encontrei dois casais com bebês recém-nascidos no colo. E vejam que estou escrevendo sobre Madureira, bairro abandonado na periferia da cidade do Rio de Janeiro, mergulhado em problemas de segurança, transporte, saúde e educação. Toda essa vida é impossível nesse mesmo horário em qualquer bairro da zona sul ou na proximidade da Marquês de Sapucaí. Pode ser que, por isso, muitas escolas de samba desejam continuar em Madureira, para conviver com seu povo e não com o público do Grupo Especial. Para seus dirigentes, a palavra ‘acesso’ gera um incômodo, pois remete a uma ideia de uma coisa incompleta, de uma coisa que queria ser e não é. Estas escolas são! O antropólogo Roberto Damatta continua: “O governo, nega, mas o carnaval permite; a moralidade diz não, o carnaval, sim; na vida diária falamos e ouvimos discursos, no carnaval cantamos sem cantores; o real obriga o uso do uniforme e do avental, o carnaval faculta a máscara que engendra duas caras e sujeitos; na vida real somos todos visíveis, com fantasia criamos uma invisibilidade; nos trancamos em casa, mas no carnaval nos escondemos na rua. ‘Quando as pessoas intentam se passar pelo que não são, a gente sabe que é preciso uma máscara’, dizia um anônimo inglês em 1780, falando dos carnavais europeus”. No Carnaval da Intendente Magalhães ninguém se esconde na rua, até porque aquela rua é a casa dos presentes; aqueles que desfilam e aqueles que assistem estão irmanados, não existe máscara. Eles estão integrados num só movimento comunitário. Apresentando, durante os desfiles, o estado de espírito de seus líderes, carnavalescos, a saúde financeira da agremiação e seu compromisso com um jeito único de falar, sonhar, elaborar e desenvolver projetos sociais. Estar na passarela já significa vencer. Mesmo sem ter qualquer escola mencionada na grande mídia escrita, falada ou televisionada. “Julguei todos estes anos”, escreveu com saudosismo – também durante o carnaval – o compositor Aldir Blanc, que “a folia é dos desdentados, dos miseráveis, dos espoliados...” Este lamento somente poderia vir de pessoa que não conhece o que acontece em Madureira. O mesmo distanciamento do carnaval popular está nítido no texto do jornalista Cesar Tartaglia: “Os desfiles não são feitos por escolas de samba, são no máximo escolas com samba – ou algum ritmo que mais se assemelha à marcha do que ao formato consagrado por gênios como Silas de Oliveira e Mano Décio”. Tanto Aldir Blanc como Tartaglia poderiam reservar um tempinho na suas agendas no próximo carnaval de 2012 para conferir o

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carnaval dos desdentados, dos miseráveis, dos espoliados. Mergulhar na viva tradição do samba de escolas como Unidos de Lucas e Matriz de São João de Meriti, Império da Praça Seca e Mocidade Unida de Jacarepaguá, Unidos de Cosmos e Acadêmicos de Vigário, Unidos de Vila Rica e Rosa de Ouro. Penso que o antropólogo Roberto DaMatta teria um amontoado de informações para escrever mais um livro genial. Constatariam perplexos: o carnaval do povo existe! A Associação das Escolas de Samba da Cidade do Rio de Janeiro, onde se reúnem as agremiações dos grupos C, D e E, demonstra vigor e criatividade, além do compromisso para com o samba. Através de uma parceria com o Centro de Referência em Inteligência Empresarial (Crie-Coppe/UFRJ), ela identificou seiscentos currículos de profissionais com perfil para compor o Corpo de Jurados do Carnaval deste ano. E promoveu um curso para os sessenta escolhidos, com orientação acadêmica da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). Esses profissionais deram as notas este ano, fazendo surgir, pela primeira vez na História do carnaval, um corpo de jurados com uma visão científica. Desta maneira, entendo eu, o carnaval carioca não somente não morreu, vive com suas tradições e continua sua evolução permanente. No caso do desfile de Madureira, continua sua evolução respeitando as tradições. Tanto que é, ali, nessas agremiações que se formam as futuras passistas e baianas, os futuros mestres-salas e porta-bandeiras, assim como os carnavalescos e puxadores entre tantos outros profissionais da festa popular. Por esta razão, existe a afirmativa de que é nesta passarela que germinam os futuros carnavais.

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Máscaras

Máscaras Katia Angeloff A complexidade do verbete Máscara no dicionário Aurélio é indício da importância cultural e antropológica das máscaras. Destacamos algumas definições: Máscara – Expressão fisionômica do ator a qual reflete o estado emocional dos personagens que ele interpreta. Objeto de cartão, pano ou madeira, que representa uma cara ou parte dela, destinado a cobrir o rosto para disfarçar a pessoa que o põe. Fantasia. Aparência enganadora; disfarce. Personagem de determinado gênero teatral. O dicionário nos oferece ainda muitos outros temas: o teatro e a máscara como terapia (cura), como era entendida pelos gregos (catársis); a capacidade libertadora do ridículo (que destrói a identidade dura que a sociedade impõe: a identidade deve ser fluida, flexível, não o aprisionamento em estereótipos culturais); a possibilidade de empatia e identificação com o outro (compreensão); o demônio (o daimon grego) como fonte daquilo que somos, mas que nunca pode ser representado como algo pronto. É uma continua encenação/mascaramento, que mostra o que somos e o que podemos ser. Para os povos primitivos, as máscaras sempre estiveram associadas a um sentido mágico. Feiticeiros, bruxos e magos utilizaram as máscaras para afugentar maus espíritos, auxiliar na caça, promover curas, conseguir proteção e se conectar com as divindades. Os gregos, na antiguidade clássica usavam máscaras em festas e bacanais pagãos, assim como no teatro onde através das diferentes máscaras um único ator podia representar diversos papéis. Antigos povos da Indonésia colocavam máscaras gigantescas de colorido vibrante e formas grotescas em frente às casas para afugentar os estranhos. Máscaras mortuárias em ouro e outros materiais nobres foram utilizados desde o antigo Egito para eternizar os mortos. As civilizações maia, asteca e tolteca bem como os índios norteamericanos usavam máscaras cerimoniais feitas em madeira. No Brasil, os índios fazem e usam máscaras como corporificação da natureza, representando aves, animais, insetos e espíritos. Na Idade Média, eram usadas nos festejos populares máscaras que simboloza-

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vam os vícios e as virtudes. No Renascimento, as máscaras da Comedia dell´arte encobriam apenas a metade do rosto e tinham formas caricatas. Bailes de máscaras em salões europeus, especialmente na França e o famoso carnaval de Veneza, além de festas populares com mascarados, disseminaram o uso das máscaras em festividades de todo o mundo. No século XX, a descoberta da “arte primitiva africana” e suas máscaras influenciaram artistas europeus como os dadaístas, cubistas e futuristas. Dos rituais primitivos ao teatro e aos festejos populares, diversos significados se perderam ou foram recriados. Elas continuam a ter uma força simbólica e ritual, representando ainda a complexidade e diversidade dos grupos humanos, expressando seus mitos, tradições e celebrações. Pelas características que tem em evidenciar situações, tornando-as mais críticas, são muitas vezes usadas como caricatura nas contestações políticas ou como apoio visual de causas sociais e denúncias, sem esquecer os heróis das histórias em quadrinhos que usam máscaras para não revelar sua verdadeira identidade. Exemplo disso são as produzidas pela Condal, fábrica de São Gonçalo, no Rio de Janeiro, de onde saem em média 350 mil peças por ano. De políticos, super-heróis e celebridades, como a máscara de Barak Obama no último carnaval, além das máscaras típicas da folia dos subúrbios cariocas chamadas “Clóvis”, personagens imaginárias cujos rostos são feitos de tela e metal. De uma forma ou de outra, toda cultura produziu algum tipo de mascaramento. Colocar uma máscara é um artifício de representação, é transmitir uma mensagem ou deixar um “outro lado” vir à tona. Por suas dimensões poética, teatral, mística e lúdica são capazes de produzir uma infinidade de associações e significados. Utilizada como estímulo à imaginação e à expressão pessoal, revelando ou escondendo, permite aos indivíduos ocupar outras posições além de sua própria identidade. Nas sociedades contemporâneas da Europa e América Latina elas têm papel importante tanto nas manifestações religiosas ou festejos como nos bailes e desfiles de carnaval onde a brincadeira da inversão de papéis é evidenciada. No Brasil, o carnaval é a festa popular mais marcante do calendário de eventos. Os bailes de máscaras tiveram papel importante no

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Máscaras

carnaval como oconhecemos hoje. Até o século XIX, o carnaval era uma festa chamada entrudo, um divertimento agressivo em que se atirava qualquer tipo de líquido ou pó nas pessoas e não raro terminava em grandes brigas. Para fazer frente a esse carnaval as elites cariocas importaram de Paris os bailes carnavalescos franceses que tiveram início no final de 1830. As primeiras máscaras que chegaram ao Brasil, de origem francesa, eram confecionadas em papelão, cera, arame ou tecido. O primeiro baile aconteceu no Hotel Italiano, Rio de Janeiro, em 1840, por iniciativa dos proprietários, empolgados com o sucesso dos bailes de máscaras da Europa. Rápidamente, a burguesia passou a festejar com Bals Masqués cheios de pompa e luxo. O carnaval carioca e a moda dos bailes à fantasia se expande rápidamente pelo Brasil. Um próspero comércio começa a se formar em torno desses bailes com a venda e aluguel de roupas e máscaras, ainda associadas às modas parisienses. As máscaras de carnaval sempre foram muito populares. Acredita-se que as pessoas, não sendo reconhecidas, liberam as identidades, suas tensões e fantasias, daí os muitos excessos cometidos durante o carnaval. Em 1849, uma série de medidas são baixadas para quem desejasse frequentar os bailes, como a proibição de que se andasse mascarado pelas ruas e a criação de salas reservadas para se vestir nos salões de bailes. Ainda assim, o povo ignorava muito dessas determinações e os excessos do entrudo e dos mascarados pelas ruas continuaram, ainda por muito tempo, a se confrontar com esse desejo de organizar e sofisticar o carnaval. Com o passar do tempo, o luxo dos salões e das máscaras se manteve mas a festa das ruas se transformou no carnaval como conhecemos hoje, ocasião em que povo e elite se misturam nos desfiles das escolas de samba e nos blocos de rua, na mesma música e alegria. As máscaras de espetáculo se desviaram de sua antiga função, mas continuam tendo um papel importante pelo seu caráter de inversão, transformação, irreverência e base para sonhos e desejos, e como elemento de crítica em que ela continua tendo seu papel de disfarce que simula e transforma. Além da sua importância na contestação, transfiguração e glamour, elas têm um papel econômico que vem sendo explorado cada vez mais no nosso carnaval. Nos bailes são as máscaras e fantasias que dão o clima da festa e continuam sendo usadas tanto pelas comemorações da elite como nas folias de rua.

Katia Angeloff

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Vida Cultural

Atualmente, o carnaval não é só importante como festa, mas como uma indústria que gera trabalho e renda para milhares de pessoas. Fábricas e artesãos se especializam na sua confecção. A máscara pode ser entendida como sinônimo de cultura, ou seja, como possibilidade de transformar a realidade, de simbolizá-la e deslocá-la para a representação das necessidades humanas. O que permite seu uso também no aprendizado da produção cultural como objeto crítico, possibilitando ao indivíduo ocupar diversas posições, utilizando-as como elemento mediador. Suas diversas formas, traços, desenhos, cores e funções são exemplo da riqueza encerrada nos ritos, mitos, tradições e celebrações que sobrevivem em nossos dias, como símbolos universais, fazendo parte da história humana. Sua força representativa é constantemente atualizada. Um disfarce, uma simulação que mais do que esconder revela e traz à tona ideias, desejos e outros personagens que queremos mostrar, criando conexões com a cultura e a sociedade pelo seu conteúdo simbólico que nos permite imaginar e produzir o real e o irreal. Bibliografia AURÉLIO, Buarque de Holanda. Dicionário século XXI. BOUCHONY, Anne de. O teatro do mundo. São Paulo: Melhoramentos, 1995. FERREIRA, Felipe. O livro de ouro do carnaval brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005. MALINOWSKI, B. Desvendando máscaras sociais. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986. <http://bragancanet.pt/arte/mascaras.html> <http://www.estadao.com.br/noticias/cidadews,carnaval-carioca...>. 04/09/2009. [s/a] As mais belas máscaras do mundo. Madrid: Editora Peruzzo YC, 2002.

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X. Mem贸ria


Autor JosĂŠ Antonio Segatto

Professor Titular do Departamento de Sociologia da FCL/Unesp/CAr

Ivan Alves Filho

Jornalista, historiador, autor do clĂĄssico Memorial de Palmares


Os 100 anos de Nelson Werneck Sodré Um intelectual nacional-popular José Antonio Segatto

N

elson Werneck Sodré (1911-1999) é parte e produto, ao mesmo tempo de uma vertente da inteligência que se formou no Brasil ao longo do século XX, sobretudo nos anos 1930/60 e que teve um papel importantíssimo não só na elaboração de análises críticas sobre a realidade histórica do país, mas também na formulação de teses e proposições para transformações sociopolíticas necessárias para superação e renovação de concepções e práticas conservadoras, antinacionais, autoritárias, iníquas e excludentes. Militar, intelectual, comunista, N. W. Sodré foi professor da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, chefe do Departamento de História do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) nos anos 1956/64, membro do PCB e outras instituições. Produziu uma extensa e diversificada obra, abarcando desde a literatura e a cultura, passando pela história e a política, chegando à economia e à teoria marxista1. Seu legado pode e deve ser incluído entre os clássicos 1 Para se ter uma ideia da diversidade de temas trabalhados pelo autor, enumeramos alguns títulos de seus livros: História da literatura brasileira (1960, 3. ed.); Panorama do segundo Império (1938); O que se deve ler para conhecer o Brasil (1945); Introdução à revolução brasileira (1958); Formação histórica do Brasil (1962); História da burguesia brasileira (1964); História da imprensa no Brasil (1966); História militar do Brasil (1965); Ideologia do colonialismo (1961); O naturalismo no Brasil (1965); Memórias de um soldado (1967); Memórias de um escritor (1970); As razões da Independência (1965); Síntese da história da cultura brasileira (1970); A farsa do neoliberalismo (1995); Capitalismo e revolução burguesa no Brasil (1990); além de dezenas de outros.

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Memória

do pensamento social do país, constituindo-se mesmo num dos principais intérpretes da formação social brasileira, ao lado de intelectuais como Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Raymundo Faoro, Celso Furtado, Florestan Fernandes, Antonio Candido e outros. Em suas interpretações históricas da formação social brasileira, N. W. Sodré sustentou a tese, segundo a qual o processo de colonização portuguesa na América teria sido obra não do capitalismo – que ainda não estava configurado –, mas do capital mercantil e com caráter escravista, não obstante a legislação e as formas de apropriação fundiária serem impregnadas pelas feudais. Teríamos dessa maneira, e inicialmente, o modo de produção escravista; esse em fases de decadência teria levado a uma “regressão feudal”, que também se fazia presente e dominante em vastas áreas, principalmente no sertão. A seguir, teríamos o capitalismo, que, ao desenvolver-se, destruía formas e relações pretéritas, mas muitas vezes amalgamandose com elas (preservando resquícios feudais) – teríamos assim uma situação de “contemporaneidade do não coetâneo” ou de um desenvolvimento desigual e combinado. Muito criticado por suas teses, procurou mostrar que a sucessão de modos de produção no Brasil não ocorreu como na Europa. A tese de feudalidade, no entanto, foi motivo de extensas polêmicas que valeram a N. W. Sodré duros ataques. Entendemos que o autor quando refere-se a relações feudais, semisservis ou de resquícios dessas, em suas análises, estava aludindo às relações sociais de produção marcadas/condicionadas pelos vínculos de dependência ou subordinação pessoal que implicam a extração do sobre-trabalho mediante a coação extraeconômica (formas pré ou não capitalistas de extorsão da renda da terra) dos trabalhadores pelos proprietários fundiários (especialmente no grande latifúndio), e não por meio da livre contratação no mercado – relações essas mediadas pelo favor, pelo clientelismo, pela violência e estavam presentes em extensas áreas do país, impregnando quase todas as relações sociais. Para o autor, a história brasileira poderia comportar “três cortes”: o da Independência, o da República e o da Revolução Brasileira. Esse último teria se iniciado a partir da “Revolução de 1930”, que foi uma revolução “democrático-burguesa” de “tipo novo”. Assinala, porém, que a revolução burguesa no país é ainda um processo inconcluso, “desprovido de lances espetaculares” (Sodré, 1990, p. 30). Um processo com várias “etapas”, que se iniciou no final do século XIX, acelera-se com o “movimento de 1930” e segue seu cur-

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so na década de 1950 e, com avanços e recuos, desemboca na ditadura militar do pós-1964. Tal processo se assemelha mais aos movimentos de uma roda quadrada, que vai se tornando redonda na medida em que rola, primeiro aos tombos, abalando as estruturas, depois mais suavemente. Nossa revolução burguesa não tornou ainda redonda esta roda gigantesca... Vamos, então, pelos trancos e barrancos de uma revolução burguesa que se desenvolve por patamares, sacudida de crises e acompanhada pelo imperialismo, que intervém no processo a cada passo (Sodré, 1990, p. 31).

Tal revolução burguesa reproduz as condições do pressuianismo, condicionada pela dependência ao imperialismo e limitada pelo latifúndio e pela sobrevivência de relações pré-capitalistas – situação que gera uma burguesia frágil que “prefere transigir a lutar, débil e, por isso, tímida, que não ousa apoiar-se nas forças populares senão episodicamente, que sente a pressão do imperialismo, mas receia enfrentá-lo, pois receia mais a pressão proletária”, burguesia que constantemente se vale de recursos escusos e perversos “para assegurar a via prussiana e a exploração cômoda da força de trabalho” (Sodré, 1990, p. 114-5). Portanto, trata-se de uma revolução burguesa com características distintas das que ocorrem na Europa nos séculos XVII, XVIII e XIX. No Brasil, o processo da revolução se desenrolava em uma situação específica, de um país dependente e na fase imperialista do capitalismo, um processo limitado pela situação de dependência e submetido às relações de dominação e exploração políticas e econômicas imperialistas, uma realidade em que o imperialismo e seus agentes internos (latifundiários, burguesia comercial e usurária, principais sustentáculos do latifúndio e das relações semifeudais no campo) entravaram o desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção, dificultando a expansão do mercado interno e da indústria nacional, por meio da apropriação do excedente produzido na agricultura e da descapitalização do país pela remessa de lucros para o exterior. Para que o processo da revolução brasileira pudesse seguir seu curso, seria necessário eliminar os entraves que se expressavam na “contradição fundamental entre a nação e o imperialismo e seus agentes internos” bem como que “se desenvolvesse paralela e intimamente associada à contradição entre as forças produtivas em desenvolvimento e o monopólio da terra que as entrava” (Sodré, 1973, p. 267, 269). Naquela fase histórica, ou naquela etapa da revolução brasileira, cumpria-se, pois, a superação daqueles entraves. As tarefas, naquela José Antonio Segatto

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Memória

etapa, seriam nacionais e democráticas e realizadas pelo “povo brasileiro”, que compreenderia em tal fase “o proletariado, o campesinato, a pequena-burguesia e a parte da alta e média burguesia conhecida como burguesia nacional” (Sodré, 1973, p. 271). Havia, no entanto, “contradições no seio do povo, destacando-se, pelo seu caráter antagônico, aquela entre a burguesia e o proletariado” (Sodré, 1973, p. 27) – além disso, se, por um lado, a burguesia nacional teria interesses autônomos e, portanto, apoiaria e movimento nacionalista, por outro, sua postura tenderia a ser ambígua, vacilante e conciliadora: ao mesmo tempo que se oporia ao imperialismo, temeria a participação popular e a radicalização democrática. Sodré esclarece, no entanto, que: Só a compreensão de que as contradições também evoluem e que uma contradição antagônica pode ser superada por outra, recebendo tratamento adequado à fase histórica, permitirá fazer da unificação das forças que formam contra o imperialismo a sólida base política que permitirá alterações na composição do poder (Sodré, 1973, p. 272).

Se o agente da revolução seria o “povo brasileiro”, seu instrumental político e orgânico seria a frente nacionalista e democrática: movimento político que, pela práxis, criaria uma ampla mobilização de caráter nacional-popular, visando não só afirmar a nacionalidade, mas conduzir à criação dos pressupostos para um capitalismo autônomo, não subalterno ao imperialismo e capaz de superar o atraso, eliminando formas pretéritas de opressão e de exploração (relações semifeudais e outras). Um movimento sociopolítico que levaria à inversão do processo de revolução burguesa de bases autoritárias, conservadora, excludente, não democrática e sem participação popular. Nesse processo, ênfase especial deveria ser conferida à ampliação do regime democrático: “a defesa do regime democrático, no processo da Revolução Brasileira, não se prende, assim, ao supersticioso respeito a uma legalidade formal, mas na compreensão que a democracia é o caminho apropriado ao seu desenvolvimento” (Sodré, 1973, p. 272). Após o golpe político-militar que implantou a ditadura no pós1964, N. W. Sodré concluía que aquele regime só poderia ser derrotado por uma ampla frente democrática (1967). E mais, afirmava que a ditadura não havia interrompido o processo da revolução brasileira em curso, mas se inseria nele como mais um episódio: “esse processo não foi paralisado por ela, prossegue com ela, apesar dela, contra ela; superada essa etapa, a revolução brasileira será retomada, em nível mais alto e, é bem possível, com significativa mudança qualita-

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tiva. De qualquer forma, impossível é apenas deter o “carro da história” (1978, p. 256). Se nos anos 1960 via a possibilidade de a revolução burguesa (ou revolução brasileira) ganhar contornos democráticos e autônomos, no fim do decênio de 1980 concluiu que, ao contrário, ela seguiu o caminho excludente, antidemocrático, de modernização conservadora, dependente do imperialismo e inconcluso. Seria necessário repensar aquele processo, no sentido de invertê-lo. Mas isso é outra história que o autor não teve tempo para analisar amiúde. Após o golpe de 1964, e em especial, nos anos 1970, sua obra passou a sofrer ataques virulentos, tanto pela direita por ser comunista, como pela esquerda por ser militar e identificado com o PCB. Passou a ser visto como um dos principais formuladores do PCB e suas interpretações apontadas como exemplo de análises equivocadas e responsáveis pela derrota de 1964. Um dos motes dos críticos seriam categorias que utilizou para explicar a formação social brasileira, como: feudalismo, burguesia nacional, revolução brasileira etc. Acusado de “ortodoxo”, “esquemático”, “etapista”, “reducionista”, respondeu aos críticos mais consistentes e respeitosos com convicção de suas posições e de forma sóbria e serena e, aos detratores, de maneira dura ou mesmo áspera. Sobre os juízos depreciativos de sua obra, por parte de alguns acadêmicos ou da mídia, cabe fazer uma digressão. Otto Maria Carpeaux, nos anos 1950, resenhando um livro, infeliz e sectário, de Octávio Brandão sobre Machado de Assis, observa que havia uma proposta de se erigir no Rio de Janeiro um monumento ao grande escritor brasileiro. Lembra, porém que, em geral, as estátuas em praça pública têm pouca utilidade; poucos lhes prestam atenção, ficando expostas aos caprichos e intempéries da natureza – dos ventos, do sol, das chuvas –, “que gosta de comer o nariz dos grandes homens de pedra, e os pássaros, que os homenageiam de maneira menos limpa”. E conclui que o monumento, apesar de ainda não existir, a “chuva de adjetivos” utilizados por O. Brandão para caracterizar a obra de Machado (“escritor decadente”, “grosseiro”, “oportunista” etc), já haviam comido seu nariz e mais: “o Sr. Octávio Brandão já fez o que em torno dos monumentos costumam fazer os pássaros” (1999, p. 884 e 888). Guardadas as devidas e possíveis analogias, entendemos que os comentários de Carpeaux sobre o livro de O. Brandão, serviriam

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Memória

também para caracterizar muitas das críticas que procuram depreciar a obra de N. W. Sodré. É significativo que, após sua morte (1999), a obra de N. W. Sodré passou a ser rediscutida, revista e, em muitos casos, revalorizada, inclusive na universidade de onde partiram a maioria das críticas e ataques – livros, artigos, teses, estudos, seminários sobre o autor e sua obra foram realizados. Exemplar disso é o livro Nelson Werneck Sodré: entre o sabre e a pena (Ed. Unesp, 2006), organizado por Paulo Cunha e Fátima Cabral e o Dicionário crítico Nelson Werneck Sodré (Ed. UFRJ, 2008), organizado por Marcos Silva, além de outros. E, no momento de seu centenário, é importante não só dar continuidade ao resgate da figura do intelectual nacional-popular, público e revolucionário, como de sua obra que tem muitos elementos para a compreensão da formação social brasileira e sua transformação. Referências CARPEAUX, O. M. Em torno de um monumento. In: ______. Ensaios reunidos: 1942-1978. Rio de Janeiro: Topbooks/Universidade, 1999, v. I, p. 884-888. SODRÉ, N. W. Formação histórica do Brasil. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 1973. ______. Introdução à revolução brasileira. 4. ed. São Paulo: Ciências Humanas, 1978. ______. Capitalismo e revolução burguesa no Brasil. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1990.

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Três homenagens Ivan Alves Filho 15 anos sem Ênio Silveira Alguém já escreveu alhures que, quando morre um sábio africano, desaparece também com ele uma enciclopédia inteira. Nada mais justo. Quando morreu Ênio da Silveira, dir-se-ia que o Brasil perdeu não uma, mas muitas universidades, tamanha a força de sua contribuição para a cultura nacional. Nada mais justo também. Para muitos observadores e estudiosos da cena nacional, Ênio Silveira foi a personalidade mais influente dos meios editoriais do país durante décadas. Em plena ditadura militar, por exemplo, ele chegou a editar, na sua memorável Civilização Brasileira, um livro por dia – e isso em um país então com menos de 70 milhões de habitantes. No total, ele editou cerca de seis mil livros, um record mundial, praticamente. Sobretudo quando sabemos que a Civilização Brasileira era uma casa de corte quase artesanal. Nascido a 18 de novembro de 1925, no estado de São Paulo, e falecido a 11 de janeiro de 1996, no Rio de Janeiro, cidade que o acolhera por longos anos, Ênio Silveira foi, sem dúvida, um homem exemplar. Editor, escritor, tradutor, amigo de seus amigos e militante histórico do Partido Comunista Brasileiro – cujo Comitê Central integrou, na década de 80 –, foi ele quem apresentou à nossa intelectualidade alguns dos melhores nomes do pensamento ocidental de seu tempo, lançando obras de Antonio Gramsci, György Lukács, Ernst Fischer e Roger Garaudy, entre nós. Isso não era pouco, dadas as condições daquele tempo. Além do que, editou autores como Nelson Werneck Sodré, Ferreira Gullar, Lúcio Cardoso, Paulo Mendes Campos, Moacyr Felix, vale dizer, a nata da produção político-literária do país. Em 1966, Ênio encomendaria a Antonio Houaiss a tradução de Ulisses, de James Joyce, um dos maiores sucessos da editora e um verdadeiro marco editorial no país. No período mais tenebroso da ditadura militar, logo após a assinatura do AI-5, em 13 de dezembro de 1968, a editora Civilização Brasileira enfrentou invasões por parte dos esbirros do regime (aliás, a própria residência de Ênio foi invadida) e, até mesmo, um misterioso incêndio atingiu suas dependências. Centenas de obras foram apre169


Memória

endidas pela repressão, nesse período. Ficava cada vez mais complicado resistir, sem dúvida. Ásperos tempos aqueles. Sempre muito elegante, de porte altivo, extremamente aberto ao novo, Ênio Silveira nunca se deixou abalar, contudo, pelas perseguições e inúmeras prisões que sofreu ao longo da vida. Sete prisões ao todo, ao que me consta. Sua editora havia se transformado, na realidade, em um verdadeiro baluarte da resistência cultural ao famigerado golpe de 64, representando ademais, para todos nós, jovens e menos jovens, a vanguarda da nossa criação. Muitos de nós, quando nos sentíamos desorientados, olhávamos para a Civilização Brasileira, que nos dava uma espécie de norte. Com efeito, torna-se impossível pensar o Brasil moderno sem a arquitetura de Brasília, a Bossa Nova de João Gilberto e Tom Jobim, o Cinema Novo de Glauber e Nelson Pereira, a seleção de Pelé e Garrincha e a editora Civilização Brasileira e sua revista homônima – que chegou a encantar ninguém menos do que o filósofo Jean-Paul Sartre. Afinal, a revista Civilização Brasileira chegou a imprimir cerca de 40 mil exemplares, nos anos 60, sem abrir mão de sua qualidade. Nem mesmo a célebre Le Temps Modernes, na França, alcançaria tal marca. Ênio Silveira deixou saudades. Eu o conheci pouco, tendo com ele alguns breves contatos em 1979 e 1980, quando passei a publicar resenhas na revista Encontros com a Civilização Brasileira. Eu me recordo ainda hoje do ambiente fraternal que existia na sede da Civilização, no aprazível bairro carioca de Botafogo. Os papos com ele e com Moacyr Felix, seu eterno colaborador. Para mim, era uma honra colaborar com a revista da Civilização Brasileira. em sua segunda fase. Foram, inclusive, os primeiros textos de caráter mais ensaístico que publiquei no Brasil, após o meu retorno da Europa, no bojo de uma permanência forçada de quase sete anos na França e na Alemanha, sobretudo. Foi um empurrão e tanto, como se diz. Devo essa ao Ênio para sempre. Tempos depois, eu o procuraria ainda para discutir a viabilidade editorial de obras que eu estava escrevendo, como Brasil, 500 anos em documentos. Da parte dele, só encontrei palavras fraternas e de grande incentivo intelectual. Homem generoso, sobretudo para com os jovens à época como eu, Ênio Silveira era o que poderíamos considerar um grande brasileiro. Um homem raro, realmente um homem raro. E que, como eu disse, deixou saudades.

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Três homenagens

Manoel Fiel Filho: 35 anos de seu assassinato Em depoimento recente para a série Brasileiros e Militantes, editada pela Fundação Astrojildo Pereira, o engenheiro carioca Sérgio Augusto de Moraes, militante histórico do PCB e do PPS, lembrava que o assassinato do dirigente sindical comunista Manoel Fiel Filho pela ditadura militar, em 1975, abriria a via para a ascensão de outras figuras na área trabalhista, mais dóceis ao regime de 64. Sérgio de Moraes se referia explicitamente ao caso do operário metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva. Faz todo sentido: o crescimento de determinadas lideranças sindicais e políticas se deu no vácuo deixado pelo alijamento de dezenas de militantes do Partido Comunista Brasileiro da cena nacional. Assim, para além do drama humano que representou para a nação brasileira o assassinato de homens como Manoel Fiel Filho e tantos outros valorosos lutadores, existia igualmente uma questão de natureza política. Para o regime, liquidar o PCB era uma forma de evitar que a esquerda que lutava pelo restabelecimento da democracia retornasse com certa força ao cenário político-social após a ditadura se exaurir. Nascido em Quebrângulo, em Alagoas, terra de outra grande figura humana, o escritor comunista Graciliano Ramos, Manoel Fiel Filho tinha apenas 49 anos de idade quando foi preso pelo DOI/Codi de São Paulo, a 16 de janeiro de 1976. No dia seguinte, já seria morto, por estrangulamento, nas dependências do II Exército. Seu assassinato levou ao afastamento do general Ednardo D’Ávilla Mello do comando da instituição. A medida, ainda que importante, foi recebida com certa cautela pelos setores democráticos do país. Conforme declarou à época o respeitado advogado Heleno Fragoso, “de nada valerá trocar os comandos se se mantiver o terror policial, que viola a Constituição e as leis do país. A segurança nacional não pode ser defendida com a ilegalidade e a insegurança do cidadão”. O fato é que a morte do operário Manoel Fiel Filho – como aquela do jornalista Vladimir Herzog, aliás – significou um verdadeiro divisor de águas na política de redemocratização do país. Foi como que um despertar da consciência cívica nacional, que, doravante, se sentia mais fortalecida para denunciar crimes dessa natureza. Mais: revelava que sua luta não fora em vão. A figuras como Manoel Fiel Filho e à luta incessante e obstinada de sua viúva e suas três filhas pelo restabelecimento da verdade e da justiça, devemos, todos nós, a democracia que temos hoje.

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Memória

Centenário de Nelson Werneck Sodré Apesar da velha amizade que existia entre meu pai e Nelson Werneck Sodré, eu mesmo só viria a conhecer o grande historiador em meados da década de 70, em Paris. Sua filha, Olga Sodré, morava havia alguns anos na capítal francesa e o pai foi visitá-la. Foi quando o conheci, após receber um recado de Olga. Desloquei-me até a Cidade Universitária e lá travei contato pessoal pela primeira vez com o general. Ele me recebeu muito bem, referindo-se várias vezes à amizade que tinha por meu pai. Aproveitei a oportunidade para agradecer a ele o envio do livro O reino negro de Palmares. Acontece que eu havia dado início à minha pesquisa sobre o célebre quilombo alagoano e Nelson tomara a iniciativa de me mandar o livro, de sua biblioteca pessoal. O trabalho foi de grande valia para mim, uma vez que era praticamente impossível obter na França todos os livros relativos à questão palmarina. Seu gesto comoveu o historiador iniciante que eu era. Ele compreendeu o drama de alguém que queria aprofundar seus estudos sobre seu próprio país e que, ao mesmo tempo, se encontrava afastado dele, por motivos alheios à sua própria vontade. Pude sentir, por intermédio desse episódio, sua imensa generosidade. Anos mais tarde, quando publiquei o livro Memorial dos Palmares, fiz questão de ir à sua casa lhe entregar um exemplar da obra. Não poderia proceder de outra forma. Foi um encontro muito agradável, em Paris. Um grupo de estudantes e intelectuais convidara Nelson para uma conferência, bastante informal, sobre o Brasil e as perspectivas da luta contra o regime. Ele discorreu sobre o papel das Forças Armadas na vida brasileira, alertando-nos para a necessidade de bem compreendermos que os militares não estavam desligados da realidade nacional. Pelo contrário. Eram parte integrante de todo um processo feito de avanços e também de recuos. Lembrava, por exemplo, o papel positivo deles na Proclamação da República ou durante a chamada Revolução de 30, e, sobretudo, no bojo da campanha do “Petróleo é nosso”. Da palestra dada por ele, retive uma lição: a necessidade de nos abrirmos para os fatos da vida, a chamada realidade objetiva. Nelson, como marxista que era, sabia, melhor do que ninguém, que a sociedade era regida por leis e que essas leis eram mutáveis. Percebia-se isso claramente, quando discorreu sobre as intervenções militares na História recente do país.

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Três homenagens

Vivíamos, no Brasil, uma ditadura. Uma ditadura que, inclusive, o encarcerara duas vezes e ceifara a vida de inúmeros companheiros seus. Apesar disso, como historiador, Nelson Werneck compreendia a complexidade da atuação das Forças Armadas no Brasil republicano. Nem sempre, dizia ele, elas se colocaram contra os interesses populares. Ele tinha que reconhecer isso, até por uma questão de honestidade intelectual. E era muito rigoroso com ele mesmo, muito responsável na emissão de juízos. Mais: ele chegou a declarar nesse dia, em Paris, que no seu livro História militar do Brasil não hesitara um segundo sequer em reconhecer a participação, na defesa da nacionalização do petróleo, de grupos militares que, poucos anos antes, haviam se envolvido na repressão aos comunistas. Para Nelson, o importante naquele momento era unir forças com todos aqueles que queriam o melhor para a pátria – e o melhor para a pátria era a nacionalização do petróleo, a criação da Petrobrás. Vale dizer, pelo viés de uma questão conjuntural, Nelson Werneck nos ensinava que a História era um processo e que os homens também mudavam. Que a subjetividade, enfim, era parte integrante do conhecimento objetivo. “Não há passado nem futuro. Tudo que abarco se faz presente” – escreveu certa vez Cecília Meireles. Ou teria sido Nelson Werneck Sodré?

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XI. Resenha


Autor Pedro Luiz Lima

Doutorando em Ciência Política do Iuperj e professor substituto do Departamento de Ciências Sociais da Uerj

Otávio Brum

Jornalista e escritor

Dimas Macedo

Mestre em Direito e Professor da Universidade Federal do Ceará (UFC)


Lulismo e interpretação do Brasil Pedro Luiz Lima

I

nterpretar uma conjuntura política qualquer sem contar com a prerrogativa do distanciamento temporal; escrever, portanto, no calor dos acontecimentos, dando de ombros à prudência crepuscular do pássaro de Minerva hegeliano, constitui, por si só, gesto de bravura analítica que deve ser saudado. Quando se trata da atual conjuntura política do Brasil, em particular, com sua efervescência eleitoral e a cada vez mais cerrada demarcação entre o amor e o ódio ao governo Lula, o que temos é uma notável manifestação de ousadia intelectual associada, por suposto, à vontade de intervir nos debates públicos que ora tomam (ou deveriam tomar) conta do país. É assim, em princípio, que podemos louvar esta empreitada de Rudá Ricci. Outro mérito do livro de Ricci que pode, desde já, ser destacado, reside na forma como o autor consegue superar as simplórias adesões/rejeições ao seu objeto, tratando do tema com o rigor crítico necessário a qualquer interpretação séria do processo sociohistórico. Aplaudir tal incidência crítica poderia ser um mero símbolo formal de cortesia do resenhista para com o autor; mas nesse caso específico, longe disso, trata-se de efetiva conquista que se tenha conseguido elaborar a crítica de um período histórico cuja (des)caracterização é tão facilmente encontrada – seja nos textos chapa-branca de partidários, seja nos libelos preconceituosos e demofóbicos dos conjunturalmente alijados do poder. Vejamos, pois, como se estrutura o argumento de Ricci, em que pontos seu rigor crítico se detém e quais são os temas principais de sua análise, bem como aqueles outros que não recebem o devido tratamento que talvez merecessem, para um mais agudo enquadramento do lulismo. 177


Resenha

É preciso destacar, em primeiro lugar, o formato um tanto enganoso do livro. Não se dá grande destaque ao decisivo fato de que se trata de uma coletânea de artigos, “revisados e desenvolvidos com maior profundidade” (p. 9), que, não obstante o esforço de conferir um caráter unitário à obra, permanecem relativamente desconexos entre si no correr da leitura. Entre uma versão de texto escrito em 2004 (capítulo 1) e outra versão da tese de doutorado defendida em 2002 (capítulo 4), o leitor tem a sensação de que não apenas falta coerência ao encadeamento dos capítulos, como também há longos trechos desnecessários para a construção do argumento. Salta aos olhos, sobretudo, a descontinuidade que marca a passagem da parte I, com os três primeiros capítulos, para a segunda parte, com os últimos três, cuja relevância é discutível. Para além de questões formais, contudo, partamos do princípio. O que quer dizer o autor com a expressão “lulismo”? Não se trata aqui de alusão ao fenômeno eleitoral. Pelo contrário, por mais curioso e contraintuitivo que pareça, o lulismo de Ricci guarda pouca relação com a adesão eleitoral a Lula. Diferentemente, portanto, de André Singer, que em seu Raízes sociais e ideológicas do Lulismo busca apreender a transformação qualitativa e quantitativa no eleitorado do Lula, lançando mão dos dados das eleições de 1989 a 2006 para fundamentar sua argumentação, Rudá Ricci trabalha seu conceito de lulismo numa outra direção. Não se trata, tampouco, de pensá-lo como símbolo de uma relação apaixonada que se estabelece entre líder carismático e povo – como nos casos do “brizolismo” e do “varguismo” que, por analogia automática, vêm à mente. O lulismo, de Ricci reflete, antes, uma forma de governar o país, ou em suas palavras, um “paradigma de gerenciamento estatal” (p. 12). Nesse sentido, esse lulismo que aqui temos por objeto se constrói mais na relação entre políticos e seu modo de governar do que no nexo governantes-governados. Essa forma de gerenciamento do Estado e de manutenção da governabilidade é pensada em termos estritamente de “engenharia política” (p. 23), num passo analítico em que se misturam o método do autor com a finalidade subjetiva da obra. Em outros termos: reduzir a priori o lulismo a um “modelo de engenharia política” talvez seja a melhor forma encontrada pelo autor para concluir com a constatação de que o lulismo não é muito mais do que um “modelo de engenharia política” e de manutenção da governabilidade. Trata-se, então, de mais uma tentativa de apreender o governo Lula como “demiurgo da finalização da modernização do país iniciada por Getulio Vargas” (p. 11), modernização esta que seria, ainda uma vez, conservadora e 178

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Lulismo e interpretação do Brasil

autoritária, na medida mesma em que o lulismo teria se distanciado de alguns dos preceitos fundamentais do primeiro petismo. A narrativa do lulismo passa assim a ser constituída pelos movimentos sucessivos de metamorfose do anti-institucionalismo que caracteriza o projeto inicial petista até o definitivo desenlace final com a adesão pragmática ao centralismo quase “varguista” que marcaria o governo Lula. Em termos não utilizados pelo autor, a trajetória do PT ao longo da década de 1990 seria um trágico sucumbir à lei de bronze da oligarquização, de Robert Michels. Troca-se uma legitimação oriunda do debate e da ampla participação das bases do partido pela legitimidade que advém da “precisão técnica”, da “negociação” e do “controle político” (p. 27). E é este tom de lamento pelo abandono do petismo puro e original que marca boa parte do livro, levando o autor a cometer, por vezes, alguns deslizes analíticos. Em dado momento, por exemplo, traça-se o paralelo: “se o petismo se apoiou nas classes trabalhadoras organizadas em estruturas tradicionais, o lulismo se apoia nas classes trabalhadoras desorganizadas, desideologizadas e pragmáticas” (p. 157). Ora, este ponto da desorganização da base de apoio lulista é diretamente contrário a uma das teses centrais do livro, que vê na “estatalização” dos movimentos sociais e sindicais um dos principais problemas do arranjo lulista. Com efeito, seria possível, seguindo o argumento de Ricci, defender coerentemente as duas coisas de uma só vez: o lulismo teria como eixos tanto a classe organizada estaticamente no interior do Estado quanto a classe simplesmente desorganizada e perdida nos surtos consumistas da nova classe C. Mas essa dialética é apenas sugerida ao longo do texto. Importa aqui manter em mente que este uso do “lulismo” como grande categoria capaz de conferir inteligibilidade aos últimos oito anos de nossa vida política não é desprovido de riscos. Antes de tudo, há uma precaução de método da sociologia em geral que convém lembrarmos: não se explica nenhum período histórico e nenhuma transformação social conferindo prioridade causal a indivíduos. Como zelosamente recorda um querido professor, em paralelo cabível, explicar décadas da história soviética com a categoria “stalinismo” induz a um notável contrassenso sociológico, pois se antepõe um indivíduo ao objeto por excelência da sociologia, a sociedade. Movimento similar ocorre, ou pode ocorrer, quando enxergamos o Brasil através do lulismo. Além disso, corre-se o risco da reificação, quando o conceito ganha vida própria e passa a ser o sujeito mesmo da história: nesse caso, leem-se frases tais como “o lulismo opera a partir...” (p. 17) e “o lulismo fez sua opção...” (p. 35). Em suma, é preciso cuidar para que o objeto da explicação não passe a sujeito. Pedro Luiz Lima

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Resenha

Para Rudá Ricci, o lulismo cristaliza um duplo movimento pleno de consequências políticas para o Brasil: por um lado, haveria uma subsunção dos movimentos sociais na sua própria burocratização e na tutela do Estado e da máquina pública; por outro, a ascensão sem precedentes da classe média reforçaria uma cultura política indesejável, aos olhos do autor. Há, contudo, diversas maneiras de se encarar a transformação por que passaram os “novos movimentos sociais” nesses últimos vinte anos, culminando no período do governo Lula. O autor leva adiante ao menos dois caminhos diversos (e talvez complementares) para explicar este fenômeno. Um enfatiza o processo “interno” de burocratização dos movimentos sociais. Segundo essa vertente de análise, as “ONGs e movimentos sociais ingressaram, pouco a pouco, no mundo das técnicas e tecnicalidades da administração pública” (p. 172), alcançando uma “encruzilhada política”, com o imperativo da busca por “mercados” e por financiamento (p. 175). Nesse quadro, a despolitização é subproduto da tecnicização; a “lei de Michels” teria alcançado também os movimentos sociais, e haveria, pois, uma ampla configuração histórica em que “a trajetória do petismo, superada pelo lulismo, converge com a mutação dos movimentos sociais ao longo da década de 1990” (p. 248). Já para o outro caminho analítico, a precedência estaria em um processo de “estatalização” dos movimentos sociais. Herdando o conceito de Claus Offe, Ricci gasta muitas páginas de seu livro reformulando a “tradicional” leitura do Brasil que vilaniza o Estado no que seria uma relação parasitária e de cooptação com relação à sociedade civil. A incorporação dos movimentos sociais e dos sindicatos ao Estado se daria por uma relação de tutela (p. 16 e 17). Mantém-se, assim, o Estado “como demiurgo da sociedade civil” (p. 17), como “protagonista da ação pública” (p. 44), enfim, como o vilão que subverte a autonomia originária da heróica sociedade civil. Nesse passo, deixa-se relativamente de lado a experiência das dezenas de conselhos e conferências que vem sendo realizadas desde o início do governo Lula, cuja compreensão é condição necessária para qualquer acesso mais denso à maneira como efetivamente se relacionam Estado e sociedade civil no Brasil de hoje. Parece mais fácil, entretanto, repetir a surrada cantilena da relação negativa, de opressão, entre Estado e sociedade civil, lamentando que os “movimentos sociais foram engolidos pela agenda do Estado” (p. 170). Compreender essa “estatalização” e aquele processo de burocratização vivido pelos movimentos sociais nos anos 1990 como duas faces de um mesmo processo histórico talvez seja uma chave profí180

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Lulismo e interpretação do Brasil

cua para uma leitura menos maniqueísta das relações entre sociedade civil e Estado, visto que a “despolitização via técnica” não se abateria simplesmente como imposição estatal, mas sim por uma dinâmica da própria sociedade civil e dos próprios movimentos sociais. Nesse caso, portanto, o lulismo deixaria de ser o mero agente reificado de uma história de retrocessos na luta social, e passaria a componente de um quadro mais abrangente e complexo. Quanto à ascensão das classes médias no país, Rudá Ricci conceitua esse novo componente da realidade socioeconômica brasileira de forma ambivalente: o êxito econômico viria, assim, acompanhado por uma negativa repercussão político-social. Num primeiro momento, portanto, “o fato relevante é que o lulismo gerou e se alimenta da emergência da nova classe média brasileira. Mais da metade dos 190 milhões de brasileiros é, hoje, classe média, sendo 49% classe C” (p. 11). O problema adviria, contudo, da forma como tal ascensão se faria acompanhar de uma suposta “desideologização”. Vejamos como argumenta Ricci: “Lula fala para essa nova classe média, estes milhões de brasileiros que rompem com histórias familiares de exclusão do consumo de massas. Por este motivo, são brasileiros pragmáticos como o lulismo. Não são afetos a teorias ou ideologias. São descrentes da política” (p. 11). O salto lógico, na passagem, é espantoso. O fato de as milhares de pessoas romperem com histórias de exclusão dá o suposto “motivo” para um pragmatismo que, na leitura de Ricci, aproxima os brasileiros emergentes da classe C do pragmatismo e do vazio ideológico que sintetizaria “o lulismo”. Em princípio, não é evidente essa passagem do pragmatismo à desideologização; pelo contrário, poderíamos bem supor que a tal conduta pragmática traz consigo uma ideologia de tipo específico, a ser decifrada. Em outro momento do texto, ademais, resta evidente a maneira apriorística com que se caracteriza a nova classe média: “a nova classe média é muito distinta, em imaginário e representação social, da classe média tradicional de nosso país. É composta por quem não tem hábito de leitura e é absolutamente pragmático. Assim, valores universais e regras gerais são colocados sob suspeição com facilidade, a não ser que vinculadas aos valores religiosos” (p. 76). Aqui, acidentalmente talvez, o autor flerta com o discurso que inscreve na composição da classe média uma incapacidade pragmática de condenar moralmente a corrupção e os desvios de ordem ética – discurso esse que recorrentemente vem à tona no cenário de competição partidária brasileiro, deslocando o debate propriamente político.

Pedro Luiz Lima

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Resenha

Ainda no tratamento da ascensão da classe média, Ricci apela mais uma vez ao lugar-comum do protagonismo parasitário do Estado. A inserção de “amplas massas despossuídas” teria, para o autor, o defeito de haver se dado “pelo consumo e não pelas práticas políticas ou sociais. Uma inclusão a partir do Estado burocrático nacional” (p. 74). Ora, salvo melhor juízo, o “consumo” não deixa de ser uma “prática social”. Prática essa, aliás, em que o “Estado burocrático nacional” interfere bastante pouco, dada a nossa suficientemente moderna sociabilidade capitalista. Seria preciso, enfim, que se abrandasse o apego dualista na separação entre o político e o social, para que se pudesse alcançar uma compreensão menos mecanicista do sentido político que a ascensão social de milhões de pessoas tem na nossa conjuntura nacional. Por fim, é imprescindível observarmos como a análise de conjuntura elaborada por Rudá Ricci dialoga com célebres componentes das grandes interpretações do Brasil produzidas por nossa tradição de pensamento político e social. Estão presentes, na prosa do autor, o estamento de Raymundo Faoro, o patrimonialismo de Sérgio Buarque de Holanda e Florestan Fernandes, a revolução passiva de Werneck Vianna e até mesmo o populismo de Francisco Weffort. Compondo o mosaico desse panorama do lulismo, esses conceitos e linhas de interpretação do Brasil revelam, a um só tempo, a pungência de nossas grandes linhagens do pensamento social e a sua carência por um aggiornamento. Seria preciso, portanto, atentar mais para as especificidades e novidades do presente do que para sua faceta de perpétua reiteração de alguma maldita tradição – em um movimento que talvez nos levasse a uma compreensão ainda mais crítica do atual estado de coisas. Não pelo ranço tradicionalista, patrimonialista, autoritário, estatista, estamental ou pré-moderno que nosso mundo viesse a aparentar; e sim pelos atributos positivos, no sentido de presença e não de ausência, característicos da modernidade à brasileira. Após a crítica de Rudá Ricci ao lulismo, permanecem, como não poderia deixar de ser, alguns dilemas para aquele que se aventura a compreender o Brasil de hoje. E porque não desejamos repetir o equívoco (nem tampouco o elitismo) dos teóricos do populismo, devemos aprender a levar em conta as manifestações eleitorais do povo e a legitimidade democrática como mais do que meras formas. Sobre a obra: Lulismo – Da era dos movimentos sociais à ascensão da nova classe média brasileira. Rudá Ricci. Brasília/Rio de Janeiro: Fundação Astrojildo Pereira/Contraponto, 2010. 250p. 182

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O astro Jildo – livro comemora os 120 anos de nascimento deste célebre brasileiro Otávio Brum

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Fundação Astrojildo Pereira (FAP) lançou, no final do ano passado, o livro Astrojildo Pereira – in Memoriam, organizado por José Roberto Guedes de Oliveira, que celebra os 120 anos do nascimento de Jildo (como era carinhosamente conhecido). A obra é uma homenagem póstuma ao importante ativista e intelectual brasileiro, nascido no interior fluminense na cidade de Rio Bonito em 1890, e reúne alguns de seus artigos, críticas literárias, reflexões e estudos históricos estampados nos jornais, principalmente os que foram publicados no Rio de Janeiro, além de muitos depoimentos sobre o homenageado. Apesar de anunciado em sua introdução, a edição final optou por excluir as fotos mencionadas sabe-se lá por qual motivo. Mas, não podemos deixar de registrar aqui este lapso e esperamos o ajuste em uma edição futura. Ainda no prefácio, o organizador registra que a FAP, ao prestar este tributo ao seu patrono, editou este livro como preito de gratidão e, que com certeza, seria de estímulo às novas gerações que buscam se espelhar em homens que fizeram a história e amaram o seu povo. Astrojildo Pereira nasceu após o fim do escravismo e da monarquia e morreu logo depois da instauração da ditadura militar que consolidaria a ordem burguesa no Brasil. Com isso, sua trajetória de vida coincide com o nascimento e formação da modernidade capitalista no Brasil. Contudo, sempre se manteve ao lado e na perspectiva do que havia de mais progressivo na vida social e cultural do país. Na juventude, como jornalista e gráfico, iniciou sua militância política fazendo parte de organizações operárias de orientação anarcossindicalistas, sendo um dos organizadores do segundo Congresso Operário Brasileiro, em 1913. Já nesta primeira fase de vida, o jovem Astrojildo vivia três amores que lhe seguiriam por toda a vida: a luta por seu ideal e povo, sua companheira Inêz Dias e a obra do escritor Machado de Assis.

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Resenha

No dia 28 de setembro de 1908, ao ler nos jornais que Machado estava gravemente doente, pega a barca da Cantareira rumo à Praça XV e de lá se enfia num bonde e parte para o Cosme Velho. Chegando lá, bateu à porta do casarão do Cosme Velho onde Machado morava e identificou-se apenas como “um grande admirador do escritor” e implorou para que o deixassem entrar e ver o mestre de perto. Em vigília na sala de estar, Euclides da Cunha, Coelho Neto, José Veríssimo, Raimundo Corrêa, Graça Aranha e Rodrigo Otávio manifestaram-se contra a entrada do rapaz desconhecido. Acordado pelo burburinho, Machado permitiu que Astrojildo entrasse em seu quarto, ajoelhasse ao lado da cama e lhe beijasse a mão, partindo logo depois sem se identificar. O escritor morreria na madrugada seguinte. Euclides da Cunha então escreveu a crônica “A última visita” (que você poderá ler na íntegra, ao final deste texto. Fica também a dica de procurar o curta-metragem de mesmo nome produzido por Zelito Viana) e seu único equívoco foi afirmar que fosse qual fosse o destino daquele jovem, jamais subiria tanto na vida novamente. Não foi o que aconteceu. Astrojildo se tornou um dos principais nomes da história política brasileira. O ilustre desconhecido construiu uma história e tanto de vida e que neste livro organizado por Guedes ficou registrada como exemplo. Em 1918, Jildo foi preso, pela primeira vez, por organizar uma fracassada insurreição anarquista no Rio de Janeiro. Libertado em 1919, tornou-se simpatizante do bolchevismo russo, fundando, em 1921, o Grupo Comunista do Rio de Janeiro. Em março de 1922, reuniu os vários grupos bolchevistas regionais para criar o Partido Comunista do Brasil, reconhecido dois anos depois como a Seção Brasileira da III Internacional. O partido, fundado com a participação de nove delegados oriundos de diversos pontos do Brasil, nasceu com discussões na casa de duas tias idosas de Astrojildo que sequer imaginavam que ali estava sendo fundado um dos partidos brasileiros mais polêmicos de todos os tempos. Ao ponto de pedir para que se usasse de parcimônia ou “menos entusiasmo” para não despertar a atenção de suas tias enquanto cantavam o hino “A Internacional”. O livro traz pitorescas histórias sobre a participação de Astrojildo na política e na literatura, como crítico, enfim, a participação ativa deste personagem na cultura deste país e suas andanças pela Europa e pela antiga União Soviética. Os textos concisos e de fácil leitura em momento algum deixam de fazer jus ao grande mestre. Como por

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O astro Jildo – livro comemora os 120 anos de nascimento deste célebre brasileiro

exemplo, citamos o do professor Marcos del Roio, que aprofunda a trajetória de militância de Jildo no PCB, das origens aos rompimentos que o afastaram do “Partidão” e que marcaram idas e vindas, porém sem jamais abandonar seus ideais comunistas. Também não poderemos deixar de citar “O comunista que beijou Machado”, de Sérgio Augusto, que, na abertura, lembra o momento de sua última prisão em 1964, na casa de número 11 da rua do Bispo, no Rio Comprido, que a polícia invadiu, saqueou e onde prendeu o perigoso subversivo Astrojildo Pereira Duarte Silva, de 74 anos, armado de livros até o teto. Astrojildo faleceu logo após este episódio, no dia 21 de novembro de 1965. Personagem ímpar, morreu convencido de que o partido sempre acertava, até quando errava. Pois acreditava que era melhor errar coletivamente do que acertar individualmente. Trata-se, sem dúvida, de um acerto coletivo esta decisão da FAP de homenagear o seu patrono. Uma forma de resgatar o passado e exaltar a origem para que não caiam no esquecimento os referenciais por onde outrora foram conduzidos: o de estar ao lado do povo nas lutas sociais e em posições progressistas para conduzir o Brasil no rumo certo. Astrojildo foi e será sempre um grande exemplo para todos os que carregam em si o desejo de viver num mundo melhor e mais justo. “A última visita” Na noite em que faleceu Machado de Assis, quem penetrasse na vivenda do poeta, em Laranjeiras, não acreditaria que estivesse tão próximo o desenlace de sua enfermidade. Na sala de jantar, para onde conduzia o quarto do querido mestre, um grupo de senhoras – ontem meninas que ele carregara no colo, hoje nobilíssimas mães de família – comentavam-lhe os lances encantadores da vida e reliamlhe antigos versos, ainda inéditos, avaramente guardados em álbuns caprichosos. As vozes eram discretas, as mágoas apenas rebrilhavam nos olhos marejados de lágrimas, e a placidez era completa no recinto, onde a saudade glorificava uma existência, antes da morte. No salão de visitas, viam-se alguns discípulos dedicados, também aparentemente tranquilos. E compreendia-se desde logo a antilogia de coração tão ao parecer tranquilos na iminência de uma catástrofe. Era o contágio da própria serenidade incomparável e emocionante em que ia a pouco e pouco extinguindo-se o extraordinário escritor. Realmente, na fase aguda de sua moléstia, Machado de Assis, se por acaso traía com um Otávio Brum

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Resenha

gemido e uma contração mais viva o sofrimento, apressava-se a pedir desculpas aos que o assistiam, na ânsia e no apuro gentilíssimo de quem corrige um descuido ou involuntário deslize. Timbrava em sua primeira e última dissimulação: a dissimulação da própria agonia, para não nos magoar com o reflexo da sua dor. A sua infinita delicadeza de pensar, de sentir e de agir, que no trato vulgar dos homens se exteriorizava em timidez embaraçadora e recatado retraimento, transfigurava-se em fortaleza tranquila e soberana. E gentilissimamente bom durante a vida, ele se tornava gentilmente heroico na morte... Mas aquela placidez aguda despertava na sala principal, onde se reuniam Coelho Neto, Graça Aranha, Mário de Alencar, José Veríssimo, Raimundo Correia e Rodrigo Otávio, comentários divergentes. Resumia-os um amargo desapontamento. De um modo geral, não se compreendia que uma vida que tanto viveu outras vidas, assimilando-as através de análises sutilíssimas, para no-las transfigurar e ampliar, aformoseadas em sínteses radiosas – que uma vida de tal porte desaparecesse no meio de tamanha indiferença, num círculo limitadíssimo de corações amigos. Um escritor da estatura de Machado de Assis só devera extinguir-se dentro de uma grande e nobilitadora comoção nacional. Era pelo menos desanimador tanto descaso – a cidade inteira, sem a vibração de um abalo, derivando imperturbavelmente na normalidade de sua existência complexa, quando faltavam poucos minutos para que se cerrassem quarenta anos de literatura gloriosa... Neste momento, precisamente ao enunciar-se este juízo desalentado, ouviram-se umas tímidas pancadas na porta principal da entrada. Abriram-na. Apareceu um desconhecido: um adolescente, de 16 a 18 anos, no máximo. Perguntaram-lhe o nome. Declarou ser desnecessário dizê-lo: ninguém ali o conhecia; não conhecia, por sua vez, ninguém; não conhecia o próprio dono da casa, a não ser pela leitura de seus livros, que o encantavam. Por isto ao ler nos jornais da tarde que o escritor se achava em estado gravíssimo tivera o pensamento de visitá-lo. Relutara contra essa ideia, não tendo quem o apresentasse: mas não lograra vencê-la. Que o desculpassem, portanto. Se não lhe era dado ver o enfermo, dessem-lhe ao menos notícias certas do seu estado. E o anônimo juvenil – vindo da noite – foi conduzido ao quarto do doente. Chegou. Não disse uma palavra. Ajoelhou-se. Tomou a mão do mestre; beijou-a num belo gesto de carinho filial. Aconchegou-o depois por algum tempo ao peito. Levantou-se e, sem dizer palavra, saiu. 186

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O astro Jildo – livro comemora os 120 anos de nascimento deste célebre brasileiro

À porta José Veríssimo perguntou-lhe o nome. Disse-lho. Mas deve ficar anônimo. Qualquer que seja o destino dessa criança, ela nunca mais subirá tanto na vida. Naquele momento, o seu coração bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade. Naquele meio segundo – no meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis – aquele menino foi o maior homem de sua Terra. Ele saiu – e houve na sala, há pouco invadida de desalentos, uma transfiguração. No fastígio de certos estados morais concretizam-se às vezes as maiores idealizações. Pelos nossos olhos passara a impressão visual da Posteridade.” Sobre a obra: Astrojildo Pereira In Memoriam. José Roberto Guedes de Oliveira (org.), Brasília: Fundação Astrojildo Pereira, 2010. Resenha saiu na newsletter Algo a Dizer. contato@algoadizer.com.br)

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O contratualismo e o Estado Moderno Dimas Macedo

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filosofia política do contratualismo representa, ao que penso, o argumento constitucional definitivo para a organização do Estado Moderno. A sua dimensão ideológica se destaca, essencialmente, pelo traço distintivo que aparta a teologia da política, a racionalidade da abstração e o imperativo categórico do ilusionismo messiânico. Entre as teses de Thomas Hobbes e as ideias de Rousseau, o que se pode dizer é que houve uma mudança completa de paradigma da filosofia política: a globalização teológica cedeu lugar à globalização racionalista, operando-se, pois, o milagre da descoberta do Estado secularizado, o reconhecimento dos direitos Humanos e a invenção do sujeito político. A Constituição empírica de Aristóteles, no universo da cultura grega, não conseguiu senão a justificação das desigualdades e da escravidão, enquanto elementos da democracia e do organicismo; e o organicismo totalitário de Platão não serviu senão à tirania dos donos do poder e dos arquitetos do discurso político oficial. Hobbes, apesar da sua postura antidemocrática e da sua servidão ao discurso da força, teve a virtude, para mim inquestionável, de haver proclamado o triunfo do poder temporal. Mas a conquista memorável que a ele se deve é a de ter concebido o soberano racionalizado e secularizado como fundamento da legitimidade e da obediência. Na filosofia do contratualismo o direito natural funde-se com o direito positivo ou, às vezes, afasta-se do direito positivo. Contudo, em qualquer circunstância, o direito aí aparece como fundamento e limite do poder temporal, o que já constitui uma mudança de sentido sobre a ideia e o conceito de Constituição e de organização estatal. Para toda a filosofia do contratualismo, Hobbes será sempre um ponto de partida; e Rousseau, sem dúvida, será sempre um ponto de chegada. E se entre Hobbes e Rousseau existe uma distinção no que tange à conceituação do soberano, o que me ocorre pensar é que eles se irmanam em um ponto: se Hobbes defende o soberano a partir do

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O contratualismo e o Estado Moderno

Leviatan antidemocrático, não se pode dizer que o paradoxo de Rousseau não o tenha elevado à condição defensor simultâneo da democracia e do totalitarismo. Mas pelo sim, pelo não, este não é o espaço para conjectura de ordem doutrinária, nem um lócus para discussões sobre conflitos de ideias, ainda porque o contratualismo tem as suas vertentes, as suas diferenças e uma profusão de cores filosóficas remarcando as suas partituras. John Locke, por exemplo, é um defensor intransigente da liberdade e dos direitos humanos; Hugo Grócio é muito mais um jurista do que um filósofo do Estado; enquanto Pufendorf e Thomasius são muito mais vulcânicos com a inteligência e o discernimento do que com as questões que cercam o aparelho da política e da organização do Estado. Já quanto à contribuição Espinosa, me parece visível que ela fundamenta-se tanto mais na ética e na cosmogonia do espírito do que nas razões de existência do Estado Moderno; e de Kant o que se pode dizer é que ele representa a corda filosófica de todo o universo e de toda a crítica do juízo, e que jamais caberia tão somente nas exigências do contratualismo. No entanto, não sendo este livro um tratado de filosofia política, ele não deve ser visto senão como um conjunto instigante de ensaios, que tem o seu lugar entre os objetos culturais que importa sejam discutidos no universo do saber acadêmico. Assim, esta recolha de escritos filosóficos – Estado Moderno: Doutrinas Contratualistas (Rio-São Paulo-Fortaleza, 2010) – constitui, de saída, uma tribuna de debates, e uma provocação sutil e prazerosa assestada para uma grande discussão acerca do Estado Moderno e da filosofia política que o legitima. Oscar D’Alva e Souza Filho é o grande arquiteto deste livro, e não somente o curador do projeto de pesquisa que o antecedeu, pois que o tracejou com a linha socrática da provocação e da metodologia científica, uma vez que o livro foi concebido para pontuar uma descoberta (a partir da iniciação de jovens pesquisadores do direito) e uma realização madura e proveitosa de um filósofo do direito de largo tirocínio. Os coautores deste livro são todos desconhecidos do mundo acadêmico brasileiro. Escreveram os seus textos às vezes de maneira a imitar os seus objetos de pesquisa, mas é certo que entre eles Bruno de Sales Tames e Mariana Gomes da Fonseca se destacam, mormen-

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Resenha

te pelo seu estilo sincopado e denunciador de um discreto enlevo para a pesquisa mais aprofundada. São jovens, muito jovens, é certo, mas totalmente abertos para o sonho e a cidadania, a reflexão e a construção do senso de democracia e responsabilidade, pois que encaram a vocação de servir ao direito e à filosofia como se caminhassem serenos para a maturidade de um projeto político grandioso. Sei, perfeitamente, que não é simples abrir uma janela na temática traçada neste livro sem que tenhamos também de conter o coração e a mente para a sua sedução humana e filosófica. Gigante da investigação jurídica e científica, o organizador deste livro é, no Ceará, o maior pesquisador da cultura grega e também do direito natural, como provam os seus livros até agora publicados. A filosofia nunca lhe deu trégua e a ética, com certeza, sempre o seduziu, fazendo do seu nome e da sua personalidade discreta e cativante um dos raros monumentos que sempre estiveram de pé no Ceará, com reflexos na cultura jurídica e filosófica do Brasil. Sobre a obra: Estado Moderno – Doutrinas Contratualistas. Oscar D’Alva e Souza Filho (org.). Rio-SãoPaulo-Fortaleza: ABC Editora, 2010.

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XII. O autor e um pouco de sua obra


Autor Vicente de Percia

Escritor, ensaísta, crítico de arte, professor de literatura, de estética, de relações internacionais, membro da Associação Internacional e Brasileira de Críticos de Arte; da Bow Art International. Possui vários livros publicados, em que se destaca Vertentes do Amor e Morte – Reflexão sobre a obra de Richard Wagner, 2009, Edit/ Bow Art SRL. Premio Master de Literatura


Paleta Tonal na Obra de Cecília Meireles Vicente de Percia Para Nelson Werneck Sodré no seu centenário

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uitos estudiosos abordam a semelhança do espaço musical como espaço pictórico. Existem em ambos os espaços um processo de construção que assinala as características do artista, ou seja, seu estilo e linguagem. A sonoridade não é uma particularidade registrada somente nas partituras. Há poetas que, simultaneamente, compuseram arranjos e detalhes com seus textos, na sua obra. Por exemplo: o domínio dos fonemas compõe e permite a abordagem auditiva e visual, assinala uma experiência correlata de instrumentos pictóricos e auditivos, mostra a intenção visual; aponta outra existência que integra a obra de arte. O uso dos fonemas gera significados, palavras, criando imagens e notas de uma escala cromática e musical. Chegar à proposta exata, mesmo com proximidade da certeza, ou motivado pela probabilidade, ou pela experimentação, é um longo percurso que envolve a tarefa artística. As ciências especulativas são um núcleo e dela se desprendem informações; mexem com significados diversos, tocando à percepção de ver, sentir, ouvir, decifrar, analisar toda a dinâmica que envolve o Homem. São propostas diretas às qualidades sensuais do mundo, o entendimento com ele, o captar e representar através da criação. A presença do criador (o escritor e artista) se adapta, constrói, se distancia não somente daquilo que acontece ou aconteceu, mas, daquilo que poderia ter acontecido: é a presença do imaginário compondo o universo repleto de situações miméticas, ou mesmo a tônica mais distanciada de uma ordem filosófica. Somente através dos fatos, é impossível captar a visão profunda da vida e, consequentemente, da arte. Há o caráter de aparência sob diversos aspectos, entre eles: a correlação do autor e do leitor, no caso especifico uma abordagem literária. 193


O autor e um pouco de sua obra

Constatamos que alguns autores nos apresentam um flash do real como alicerce da sua obra, sem, contudo, abdicar dos seus impulsos. A fruição da vida, a psique do artista é um dado relevante para melhor compreensão da obra. Afirmo que na obra de Cecília Meireles a imagem é um determinante – o lápis, a tinta imprimem com firmeza o direcionar das mãos. Neste contexto, surge o potencial que substitui os meios materiais e instrumentais tão imprescindíveis nas artes plásticas. É o uso da palavra visto como instrumento estético. O encaminhar dos olhos envolto em estratégias contidas no texto, alimentando, ainda mais, a percepção. Epigrama do Espelho Infiel A João de Castro Osório (do livro Vaga música) Entre o desenho do meu rosto e o seu reflexo, meu sonho agoniza, perplexo. Ah! Pobres linhas do meu rosto, desmanchadas do lado oposto, e sem nexo ! É a lágrima do seu desgosto Sumida no espelho convexo! O desenho é a tônica do poema, o símbolo imediato, o ponto de partida. O traçar existe como ápice do poema, colocando imediatos valores formais, acionando a composição como uma espécie de colagem. Não estamos diante de uma foto estática, mecânica, tecnológica, nem tão pouco de uma escolha precisa situando determinado tipo de composição. A ficção se mescla com vivências. Estamos diante de múltiplos espaços demarcados pela poetisa entre o desenho do rosto e o seu reflexo e, neste intervalo passamos a observar a visão estilizada própria, interpretativa, ligada às experimentações, a elementos simbólicos, juntados num redesenhar conjunto, como se multifacetássemos o processo criador, utilizando do real para o imaginário e vice-versa. Trata-se do cantar de Cecília Meireles, intensificando sua proposição: o inter-relacionamento do aspecto formativo com suas significativas figurações que, no real, servem para documentar trajetórias em uma organicidade previamente ordenada onde o belo da composição se entrelaça em constâncias suas entre elas: a solidão. 194

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Paleta Tonal na Obra de Cecília Meireles

O risco, o símbolo, se “animam” através da imagística de Cecília Meireles. É, ao mesmo tempo, um entendimento do real como construção do “real”, registrando a significação do ser humano, indicando e identificando seu destino e particularidades. Rimance (do livro Viagem) Onde é que dói na minha vida, para que eu me sinta tão mal? Quem foi que me deixou ferida de ferimentos tão mortal? Eu parei diante da paisagem: levava uma flor na mão. Eu parei diante da paisagem procurando o nome de imagem para dar à minha canção. Nunca existiu sonho tão puro, como o da minha timidez. Nunca existiu sonho tão puro, nem também destino tão duro como o que para mim se fez. Estou caída num vale aberto, entre serras que não têm fim. Estou caída num vale aberto: nunca ninguém passara por perto, nem terá notícias de mim. Eu sinto que não tarda a morte, e só há por mim esta flor; eu sinto que não tarda a morte e não sei como é que suporto tanta solidão sem pavor. E sofro mais ouvindo um rio que ao longe canta pelo chão, que deve ser límpido e frio, mas sem dó nem recordação, como a voz cujo murmúrio morrerá como o meu coração... Vicente de Percia

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O autor e um pouco de sua obra

A primeira estrofe atende à indagação do existencial. Na segunda estrofe aparece o elemento intencional inserido no cenário e que se superpõe à realidade. No transcorrer, há as aquarelas e pinceladas. É o suporte preenchido como se fosse a tela ou o papel. Na continuidade do poema há uma sistemática maleável. O tempo não pode ser descartado e ele é situado, transfigurando a realidade. Pode-se dizer que a pintura sobressai-se na sua extensão tanto como a alusão ao som, sem a necessidade de utilização dos vocábulos onomatopaicos e sim, através da reiteração (repetição das palavras); a policromia no texto. Sim, há uma expressividade como um prelúdio contínuo inserindo tons constantes, alegorias, repetições propositais e enfáticas que com conteúdo descarta o hermético. O rio, o mar, o céu, o negrume, as estrelas são elementos sigmáticos de fácil assimilação. Do ponto de vista visual, assistimos à escolha de determinantes: a rosa, o rosto, o vale, o campo, personagens diversas, todas compondo constâncias visuais com colocações abrangentes; expressam o conflito íntimo, perceptivo nas imagens melancólicas, onde a sonoridade monta coloraturas, altos e baixos relevos tonais. São métodos que sublinham também uma realidade metafísica. Desenho (do livro Mar absoluto) Fui morena e magrinha como qualquer polinésia. e comia mamão, e mirava a flor da goiaba. E as lagartixas me espiavam, entre os tijolos e as trepadeiras, e as teias de aranha nas minhas árvores se entrelaçavam. Isso era em um lugar de sol e nuvens brancas, onde as rolas, à tarde, soluçavam mui saudosas... O eco, burlão, de pedra em pedra ia saltando, entre vastas mangueiras que choviam ruivas horas. Os pavões caminhavam tão naturais por meu caminho, E os pombos tão felizes se alimentavam pelas escadas que era desnecessário crescer, pensar,escrever poemas, pois a vida completa e bela e terna ali já estava. Como a chuva caía das grossas nuvens, perfumosas! E o papagaio como ficava sonolento! O relógio era festa de ouro; e os gatos enigmáticos 196

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Paleta Tonal na Obra de Cecília Meireles

Fechavam os olhos, quando queriam caçar o tempo. Vinham morcegos, à noite, picar os sapotis maduros, e os grandes cães ladravam como nas noites do Império. Mariposas, jasmins, tinhorões, vaga-lumes moravam nos jardins sussurrantes e eternos. E minha avó cantava e cosia. Cantava canções de mar e de arvoredo, em língua antiga. E eu sempre acreditei que havia música em seus dedos e palavras de amor em minha roupa escritas. Minha vida começa num vergel colorido, por onde as noites eram só de luar e estrelas. Levai-me aonde quiserdes, aprendi com as primaveras a deixar-me cortar e a voltar sempre inteira. Uma projeção foi feita como depoimento, a maneira simples de escolher e delimitar o espaço inicial. Aspirações, limitações etc. Surgiram dentro do contexto visual, no caso estabelecendo a relação entre o personagem (autorretrato) e a poetisa. Não parto do pressuposto de que a personagem é um ser fictício, porém indico elementos visuais que formam estruturas básicas, dando cor, volume e ambiência no quadro poema. É uma composição em um relacionamento de palavras, conjuntos poéticos como as estrofes marcando os intervalos, as interferências com uma metalinguagem: frio, calor, rudeza, suavidade, enfim linhas e cores que preenchem espaços e produzem a plasticidade desejada. Temos o tema e a observação de comparação e semelhanças e, também, o que chamo de desterritorialização – um espaço de imagens e emoções adequadas à representação do poema e a língua na sua construção plena. Canção para Van Gogh (do livro Poema de Viagens) Os azuis estão cantando no coração das turquesas: formam lagos delicados, campo lírico, horizonte, sonhando onde quer que estejas. E os amarelos estendem frouxos tapetes de outono, Vicente de Percia

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O autor e um pouco de sua obra

cortinados de ouro e enxofre. luz de girassóis e dálias para a curva do teu sono. Tudo está preso em suspiros, Protegendo o teu descanso. E os encarnados e os verdes e os pardacentos e os negros desejam secar-te o presente. ................................................ Estas três estrofes iniciais permitem captar o mergulho de Cecília Meireles na obra de Van Gogh. É uma experiência estética. Cecília também pintava e o seu desejo de transmitir a luminosidade neste poema acaba montando o seu visual. Ao lado da proposta estética, ela nos diz que algo está realmente do lado da resposta: o prazer, ou as tensões, a vida. Exemplificando: não cabe neste poema colocar a experiência estética apenas como elemento técnico ou acabamento de observações rotineiras. Cecília imprime sua luz, coparticipando nas obras do gênio da pintura. O expressionismo é nítido, os contornos que marcam o cenário são construídos com palavras, remarcam as figuras assegurando tonalidades. Desenho da Holanda. III Paisagens com Figuras. (do livro Poemas de Viagens) As toucas de rendas, as pesadas saias franzidas, preto, encarnado, azul, tarde de domingo na ilha de Marken. Cabelos amarelos, meninos de colo, Tudo – casas, jardins, árvores... Parece de papel recortado e colorido. ............................................................. A teoria da experiência estética de Dewey dá ênfase ao desligamento e à ilusão, situa diretamente a estética. Neste poema, os modos especiais da visão da poetisa são significativos, não só para linguagem repleta de cores e imagens, como para uma caracterização de personagens, objetos, cenários em função de “ver como”. É a emo198

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Paleta Tonal na Obra de Cecília Meireles

ção aliada à inteligência, tentando polemizar correntes atuais da arte. É atitude da poetisa em criar uma montagem que assinala segmentos de acordo com o visual. “Desenhos da Holanda” fiel com sua plasticidade, em função do suporte escolhido, são modos natos de percepção. Como se em uma obra de arte, ter um conteúdo fosse uma falácia. Diálogo de Van Gogh com Gauguin contido no livro de Irving Stone: A Vida Trágica de Van Gogh”. – Diabos me levem se entendo aonde você quer chegar, rapaz. – A isto Gauguin. Os campos que alimentam o trigo, a água que desce a encosta, o suco da uva e o passado de uma criatura humana. Tudo é a mesma coisa. A única unidade da vida é a unidade do ritmo universal: homens, maçãs, encostas, campos lavrados, carros de trigo, casas, cavalos e o próprio sol. A substância que hoje pulsa dentro de você Gauguin, amanhã estará numa maçã, porque você e a maçã são uma mesma coisa. Quando pinto um camponês, trabalhando no campo, quero exprimir que ele tem raízes no solo, como o trigo, e que a força da terra o anima. Quero que se sinta o sol entrando no homem,no campo,no trigo, no arado e nos cavalos, e recebendo a força que deles se evoca. Quando você começar a sentir o ritmo universal, dentro do qual tudo se move, então você estará começando a compreender a vida. E deus é isso!

Nos Poemas para Van Gogh e Desenhos para a Holanda, Cecília Meireles toca no ritmo universal visto no texto criado por Irving Stone. Vê outras terras pincelando, desenhando e dando sonoridades com o calor da sua sensibilidade e de um Sol significativo e metafórico, com os olhos acostumados com o verde e amarelo intenso dos Brasis. Cecília Meireles é tela, sonho, desenho, gravado e sons sempre construindo o universal que parte de dentro para fora (os poemas de Cecília Meireles foram transportados tanto para a música clássica quanto a popular). Possui, no seu acervo literário, a imagem também épica de obras que situam a nossa história, como o Romanceiro da Inconfidência, mostrando nossas raízes, a infância, os costumes, vínculos e essência do individual de cada ser e com propriedade assinala fronteiras geográficas e do pensamento.

Vicente de Percia

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FICHA TÉCNICA Corpo do texto: Bookman Old Style Títulos: Bookman Papel: Reciclado 75g/m2 (miolo) Papel off-set 100% reciclado, produzido em escala industrial, a partir de aparas pré e pós-consumo

Distribuição FUNDAÇÃO ASTROJILDO PEREIRA Tel.: (61) 3224-2269 Fax: (61) 3226-9756 contato@fundacaoastrojildo.org.br www.fundacaoastrojildo.org.br


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