Nº 31 - A crise mundial

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A crise mundial


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Política Democrática Revista de Política e Cultura www.politicademocratica.com.br

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Ficha catalográfica Política Democrática – Revista de Política e Cultura – Brasília/DF: Fundação Astrojildo Pereira, 2011. No 31, novembro/2011 200 p. 1. Política. 2. Cultura. I. Fundação Astrojildo Pereira. II. Título. CDU 32.008.1 (05) Os artigos publicados em “Política Democrática” são de responsabilidade dos respectivos autores. Podem ser livremente veiculados desde que identificada a fonte.


Política Democrática Revista de Política e Cultura Fundação Astrojildo Pereira

A crise mundial

Novembro/2011


Sobre a capa Jô Oliveira Jô Oliveira (Josimar Fernandes de Oliveira) – a quem homenageamos nesta edição –, nascido na Ilha de Itamaracá/PE, é um artista múltiplo, como podemos observar nestes seus trabalhos. Estudou Artes Gráficas na Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro e, por seus méritos e perseverança, conseguiu uma bolsa para estudar Programação Visual na Escola Húngara de Artes de Budapeste. Mas não se tornou um artista europeu. Desde então, sempre ligado às suas origens nordestinas, tem-se dedicado incansavelmente a produzir beleza e emoção, em livros, cartazes, quadrinhos e selos. Revaloriza a história do Brasil e seus personagens, os índios, nossa ligação com a África, a paisagem tropical, a fauna, a flora, o folclore, as lendas, as danças e folguedos, as festas populares. Como o estilo é uma escolha, seu traço, quase sempre figurativo e narrativo, é ligado à região que lhe serviu de berço, o Nordeste, que lhe alimenta sua rica inspiração. É da feira, dos entalhadores, dos gravadores, dos santeiros, dos pintores primitivos, dos desenhistas ingênuos, das bordadeiras, das rendeiras, dos tecelões, dos cesteiros, dos carranqueiros, dos ceramistas, dos bonequeiros, dos folhetos de cordel, da paisagem tropical que vêm a força e o equilíbrio de seu desenho, pleno de energia e vitalidade. Suas cores fortes evocam o aroma do Nordeste litorâneo: manga, jaca, sapoti, cajá, caju, abacaxi, banana, laranja, graviola, pitomba, pitanga, umbu, côco, milho, maracujá, mamão... Jornalista, ilustrador, ex-professor de Artes do Instituto de Artes da Universidade de Brasília e técnico em Comunicação Visual, Jô tem diversas histórias em quadrinhos e mais de 20 livros publicados no Brasil e no exterior (Itália, Grécia e Argentina, entre outros). Com a ilustração de Alice no País das Maravilhas, recebeu na 58ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo (1998) o Certificado de Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. São dele também as ilustrações para centenas de selos da Empresa dos Correios e Telégrafos (ECT).


Sumário APRESENTAÇÃO Os Editores.......................................................................................................... 09

I. TEMA DE CAPA: A CRISE MUNDIAL Uma crise econômica diferente de todas Tony Volpon......................................................................................................... 17

Origem, causas e impacto da crise José Luis Oreiro.................................................................................................... 24

Como respostas bonitas, mas erradas, colocaram o mundo em crise novamente José Carneiro da Cunha Oliveira Neto, Amanda Almeida Paiva e Gustavo Gomes Basso.................................................... 30

Crise econômica internacional: desdobramentos Sergio Augusto de Moraes..................................................................................... 36

II. OBSERVATÓRIO Crises e referências republicanas Washington Bonfim............................................................................................... 43

O 11 de Setembro e nós Raul Jungmann.................................................................................................... 46

O processo de modificação do Código Florestal brasileiro Ludmila Caminha Barros...................................................................................... 48

A sociedade civil: fermento da democracia Cândido Gryzbowski ........................................................................................... 52

III. BATALHA DAS IDEIAS Que herege era aquele Gramsci liberal Massimo D’Alema................................................................................................. 57


Norberto Bobbio, os comunistas e a democracia procedimental Michel Zaidan Filho............................................................................................... 61

A grave responsabilidade pela redivisão do Pará Lúcio Flávio Pinto.................................................................................................. 65

IV. QUESTÕES DO DESENVOLVIMENTO Nacionalismo e desenvolvimento: o Brasil nem tão maior Demetrio Carneiro da Cunha Oliveira..................................................................... 71

Raízes do atraso brasileiro Wanderley de Souza............................................................................................. 77

A industrialização a qualquer custo e a nova Política Industrial Amilcar Baiardi.................................................................................................... 79

V. POLÍTICAS PÚBLICAS Urgência na Saúde Paulo Kliass......................................................................................................... 85

Saúde Brasil José Eduardo Gomes............................................................................................ 89

SUS Público ou Estatal? Fernando Antunes................................................................................................ 92

VI. DIREITO & JUSTIÇA Imunidade tributária como instrumento de concretização de direitos sociais fundamentais Willame Parente Mazza......................................................................................... 97

VII. ENSAIO Direitos humanos e marxismo Marco Mondaini.................................................................................................. 105

Democracia brasileira: entre a representação e a participação Fernando Perlatto............................................................................................... 116


VIII. MUNDO Identidade nacional e globalização Paulo César Nascimento...................................................................................... 125

Perspectivas de paz entre palestinos e israelenses Dina Lida Kinoshita............................................................................................ 129

Indignação e Política Luiz Sérgio Henriques......................................................................................... 136

IX. VIDA CULTURAL Manifestações artísticas da civilização da seca Benedito Vasconcelos Mendes............................................................................. 141

Cinema e desenvolvimento regional Wolney Oliveira.................................................................................................. 149

X. HISTÓRIA Frei Veloso: pioneiro da botânica, da edição e da química no Brasil Luiz Cruz........................................................................................................... 155

XI. HOMENAGEM Itamar, o reconhecimento tardio Moacir Longo...................................................................................................... 161

Nelson Werneck Sodré, o intelectual como ofício Joel Rufino......................................................................................................... 166

Como conheci Nelson Werneck Sodré J. R. Guedes de Oliveira...................................................................................... 171

XII. RESENHA O sonho de Descartes César Benjamin.................................................................................................. 175


A Era Lula, segundo Werneck Vianna Rubem Barboza Filho.......................................................................................... 182

A esquerda democrática e a revolução cubana Fernando de La Cuadra...................................................................................... 184

XIII. O AUTOR E UM POUCO DE SUA OBRA Camões, poeta de todos os tempos Luiz Fernando de Moraes Barros......................................................................... 193


Apresentação

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pós vivenciar os melhores seis anos (2003-2008) de atividade econômica do último meio século, o mundo está em sobressalto e com imensa dificuldade de identificar o que fazer de concreto para sair da ampla e profunda crise econômica e financeira em que foi mergulhado, desde o final do ano 2008, e com sérias repercussões na vida política e social. A quase unanimidade dos economistas se refere a uma situação de abalo cósmico parecido com o deflagrado a partir de 1929, com possibilidade de ser qualitativamente maior e mais complexo. As colaborações recebidas de diferentes autores a respeito desta delicada questão, que é nosso tema de capa, procuram nos situar diante desta crise da qual ninguém arrisca dizer até quando ela poderá permanecer conosco. Elas são enriquecedoras pois cada uma delas não apenas identifica causas diferentes para o que ora ocorre, como também faz observações distintas sobretudo sobre o que vem à frente para o planeta e para o nosso país, especificamente. Há quem veja nela, como o economista Tony Volpon, não uma crise da economia globalizada, ou uma crise do capitalismo, mas exatamente o contrário, como “uma crise do sucesso da globalização, especificamente da globalização chinesa”. Tudo porque “a base do processo da globalização é tecnológica: as novas tecnologias de informática e comunicação permitem uma dispersão do processo produtivo, criando uma complexa “cadeia de oferta” permitindo às empresas explorar vantagens comparativas ao redor do mundo”. Segundo ele, nossa situação é boa, pois temos uma grande relação com a China, embora possamos enfrentar uma recessão se houver uma parada 9


brusca no fluxo de capital externo, já que não temos poupança interna. O economista José Luis Oreiro defende que a crise financeira de 2008 foi o resultado do modus operandi do “capitalismo neoliberal” implantado no final da década de 1970 e prevê que os seus efeitos sobre o nível de produção e de emprego nos países desenvolvidos serão duradouros devido ao elevado endividamento do setor privado, gerado por um regime de crescimento do tipo finance-led (um tipo de financeirização cujos resultados são negativos para a sociedade e para a economia em geral). Para os jovens economistas José Carneiro da Cunha Oliveira Neto, Amanda Almeida Paiva e Gustavo Gomes Basso “a crise subprime começou com um problema sistemático de endividamento pessoal em níveis insustentáveis no longo prazo, mas a forma como governos atuaram para enfrentá-la criou um problema de trajetória de dívida e gastos públicos insustentáveis no longo prazo”. Mas, dizem eles: “Resta saber se agora que a redução do gasto público e a melhoria de sua qualidade se fazem fundamentais para a superação do novo problema, os governos terão a mesma disposição, agilidade, patriotismo e compromisso com a população que tiveram na hora de aumentá-lo. Ou será que irão escolher a inflação e todos seus efeitos danosos como rota de fuga, trocando a nova crise de dívida por uma futura crise inflacionária?”. Já o engenheiro Sergio Augusto de Moraes frisa que essa crise global “põe novamente à mostra a incapacidade do sistema capitalista de resolver os problemas básicos da humanidade”; destaca a existência de movimentos de massa contra os efeitos desta crise, movimentos que ainda não colocam como bandeira a ultrapassagem desse modo de produção, “talvez pelo fato de ainda não ter sido formulada uma alternativa ao capitalismo do século XXI que incorpore os ensinamentos das tentativas anteriores de construção do socialismo e, ao mesmo tempo, consiga indicar caminhos que evitem os erros cometidos nas mesmas.” Além destas, há outras instigantes matérias espalhadas nas diversas seções da revista, como na Observatório, na qual o cientista social Washington Bonfim faz curiosa análise sobre o papel da inteligentzia no mundo de hoje e numa sociedade como a nossa. Em certo trecho, ele ressalta: “O que assusta, no caso brasileiro, é que parece haver poucas referências intelectuais capazes de aglutinar reflexões profundas sobre a situação mundial e seus impactos sobre a vida, a sociedade e a economia nacionais, e a principal delas está no conceito de república”. O ex-ministro Raul Jungmann examina os dez anos 10

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Apresentação

do 11 de Setembro nos Estados Unidos e faz ilações muito pertinentes a respeito de como o terrorismo é levado pouco a sério no Brasil. A advogada e consultora Ludmila Caminha Barros amplia e aprofunda alguns aspectos do Código Florestal que está sendo discutido no Congresso Nacional e dependendo do que se aprove será maléfico para o país. E o sociólogo Cândido Grzybowski analisa o papel da cidadania na sociedade brasileira e mundial, via seus vários mecanismos de ação, como as ONGs, hoje alvo de uma visibilidade negativa alimentada pela criação indiscriminada delas por atores políticos que objetivam com elas apenas ter um instrumento de arrecadação de recursos públicos, sob formas alheias à ética republicana. Dirigente de uma entidade séria e com serviços relevantes prestados ao país, como o Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas), ele denuncia esta nova tragédia vivida pela sociedade e acentua a importância de se separar o joio do trigo. Na Batalha das Ideias, há textos que nos convidam à leitura e à reflexão como o do dirigente socialista italiano Massimo D’Alema, em torno das ideias do herético pensador e ativista Antonio Gramsci, uma forte referência para o pensamento e ação não apenas em sua terra mas em muitos países de vários continentes; como o do professor Michel Zaidan Filho, que faz um registro polêmico sobre o advento no Brasil das obras do pensador e líder político liberal também italiano Norberto Bobbio, com seus conceitos e sua visão a respeito da democracia representativa e os percalços que surgem na concretude da sua vigência, na Itália e em muitos países. E o registro feito pelo jornalista e intelectual Lúcio Flávio Pinto em torno da situação hoje vivida pelo povo paraense que, na primeira quinzena de dezembro, terá que se definir se aceita ou não dividir o seu território, de forma a se criar mais duas novas unidades para a Federação brasileira. No Ensaio, além do leitor ampliar enormemente sua visão sobre o marxismo e os direitos humanos, num provocativo trabalho do historiador Marco Mondaini, ele se deleita com o belo trabalho do cientista social Fernando Perlatto, no qual este coloca em cena as dúvidas que nos assaltam quanto à continuidade da aplicação da forma representativa da democracia, nos novos tempos, e da forma participativa. A seção Questões do Desenvolvimento também é rica de temas que estão na ordem do dia dos que se preocupam com o presente e o futuro do país. Há contribuições valiosas sobre aspectos diferenciados da realidade, particularmente sobre caminhos equivocados de

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tentar fazer o Brasil alcançar um nível de desenvolvimento fora dos padrões tradicionais trilhados por diferentes governos brasileiros. Os economistas Demétrio Carneiro da Cunha Oliveira e Amilcar Baiardi, e o professor Wanderley de Souza, abordam como os conceitos nacionalismo e desenvolvimentismo são mal colocados no plano da produção industrial, como pouco ou nada se faz para que a indústria se torne contemporânea dos avanços científicos e tecnológicos, e como há uma quase absoluta despreocupação dos poderes públicos com as pesquisas científicas, importante fator de desenvolvimento econômico e social, e a ausência de uma legislação específica que facilite o registro de suas patentes. Nas seções Políticas Públicas e Direito & Justiça, há enfoques variados sobre algumas questões relevantes no país, como a da saúde pública e o fortalecimento do SUS (Paulo Kliass, José Eduardo Gomes e Fernando Antunes) e o da imunidade tributária (Willame Parente Mazza). Em Mundo, o cientista político Paulo César Nascimento faz um questionamento criterioso e profundo sobre a globalização e o espaço que existe para a continuidade do Estado-nação, defendendo que a questão nacional ainda tem um peso específico que não pode ser subestimado. E a física Dina Lida Kinoshita, membro do Conselho da Cátedra Unesco de Educação para a Paz, traça um amplo panorama da situação dominante no Oriente Médio, há muitos anos, e que envolve israelenses e palestinos na luta por seu espaço próprio, e com um elemento novo que foi o pedido formal da Autoridade Nacional Palestina feito à ONU de reconhecimento do Estado Palestino. Instigante também a análise do ensaísta Luiz Sérgio Henriques a respeito da complexa realidade política existente no mundo e certas mobilizações de massa, em diferentes países, até nos Estados Unidos, em torno de bandeiras democráticas e de equidade. Nas demais seções, como Vida Cultural, temos, além das “Manifestações artísticas da civilização da seca”, do engenheiro agrônomo Benedito Vasconcelos Mendes, um rápido comentário do cineasta Wolney Oliveira a respeito de como o cinema brasileiro está se ampliando e pode ampliar-se muito mais com a crescente produção regional da Sétima Arte, do Norte ao Sul do país; na História, o professor de história Luiz Cruz nos revela um achado da maior qualidade, o da figura de Frei Veloso, o pioneiro da botânica, da edição e da química no Brasil; na Homenagem, além de publicarmos o excelente artigo do jornalista e escritor Moacir Longo sobre a figura emblemá12

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Apresentação

tica do ex-presidente Itamar Franco, damos continuidade à publicação de textos ressaltando os grandes méritos do historiador Nelson Werneck Sodré, em seu centenário de nascimento, desta feita pelo doutor em comunicação e cultura Joel Rufino e pelo ensaísta José Roberto Guedes de Oliveira; na seção Resenha, contamos com artigos de César Benjamin (sobre o lançamento das Obras Escolhidas, de René Descartes), Rubem Barboza Filho (a respeito de Modernização sem o Moderno. Análises de conjuntura na Era Lula, de Luiz Werneck Vianna) e Fernando de la Cuadra (sobre Silêncio, Cuba. A esquerda democrática diante do regime da Revolução Cubana, de Claudia Hilb). E, finalmente, em O Autor e um pouco de sua obra, o especialista em Literatura Portuguesa, Luiz Fernando de Moraes Barros, professor da UERJ, apresenta uma análise e uma bela coletânea em “Camões, poeta de todos os tempos”. Boa leitura! Os Editores

Os Editores

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I. Tema de capa: A crise mundial


Autores Tony Volpon

Economista brasileiro, residente em Nova Iorque, onde é estrategista para a América Latina do Nomura Security International Inc. tony.volpon@nomura.com.

José Luis Oreiro

Professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília, diretor da Associação Keynesiana Brasileira e coeditor do livro The financial crisis: origins and implications, Palgrave Macmillan, 2011. joreiro@unb.br.

José Carneiro da Cunha Oliveira Neto

Pós-doutorando em economia (UnB), doutor em Administração (UnB), mestre e graduado em Economia (UCB), atualmente é professor adjunto do Departamento de Administração e atua no Programa de Pós-Graduação em Administração e do Mestrado Profissional em Economia da Universidade de Brasília.

Amanda Almeida Paiva

Graduanda em Administração de Empresas pela Universidade de Brasília.

Gustavo Gomes Basso

Graduado em Administração de Empresas pela Universidade de Brasília.

Sergio Augusto de Moraes

Engenheiro, do Conselho Diretor do Clube de Engenharia do Rio de Janeiro e mestre em econometria pela Universidade de Genebra.


Uma crise econômica diferente de todas Tony Volpon

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ausa espanto a crise que assola os Estados Unidos e a Europa. Primeiro, por sua extensão, sendo uma crise econômica, financeira, mas também política e social, como evidenciada pela alarmante alta no desemprego e a onda de protestos por todo o continente europeu, muitas vezes violento, como na Grécia, na Espanha, na Turquia e na Inglaterra. Segundo, porque as soluções usuais estão falhando, tanto as econômicas como as políticas. Aprendemos a pensar a Europa e os Estados Unidos como sociedades desenvolvidas, com instituições sofisticadas e eficientes, mas, ao mesmo tempo, diferentes; a Europa, com um modelo social-democrata, e os Estados Unidos, com um modelo liberal. Por décadas, o debate foi em torno de qual modelo era melhor (especialmente qual deveria ser adaptado pelos países em desenvolvimento). Mas hoje essa diferenciação parece inócua: tanto a resposta social-democrata europeia como a liberal americana parecem inúteis frente à crise atual. Todos esses fatos podem ser mais bem compreendidos se percebemos que o que ocorre no momento tem uma natureza estrutural inédita. Ela não é apenas diferente de uma recessão “comum”, algo já reconhecido pelas várias comparações feitas em 2008 entre a atual crise e a Grande Depressão, mas a de hoje é totalmente distinta da dos anos 30. A incapacidade dos países desenvolvidos em dar uma resposta adequada à crise é devida, em grande parte, à incapacidade intelectual e política de ver o que há de totalmente novo nessa crise, e de se ater a modelos e concepções moldados por um passado que não mais existe. 17


Tema de capa: A crise mundial

Uma globalização chinesa Alguns podem ver isso como uma crise da economia globalizada, ou talvez até uma crise do capitalismo. Mas é exatamente o contrário. Essa é uma crise do sucesso da globalização, especificamente da globalização chinesa. A base do processo da globalização é tecnológica: as novas tecnologias de informática e comunicação permitem uma dispersão do processo produtivo, criando uma complexa “cadeia de oferta” (supply chain) permitindo às empresas explorar vantagens comparativas ao redor do mundo. Tal processo mudou profundamente o já conhecido processo “imperialista” de relação entre países desenvolvidos e em desenvolvimento (as antigas colônias). Simplificando: antes da atual globalização, o processo poderia ser descrito como aquele em que matérias-primas eram exportadas para países desenvolvidos, onde seriam transformadas em produtos manufaturados para consumo local e exportados de volta aos países em desenvolvimento. Dado que o valor adicionado via tecnologia ocorria no país desenvolvido, esse processo colocava os países em desenvolvimento em desvantagem, com uma queda secular em seus termos de troca com os países desenvolvidos (o preço relativo das exportações contra o das importações). Tal processo, corretamente analisado nos anos 1940 e 1950, por vários economistas da América Latina, muitos deles ligados à Cepal, foi a base da luta pela industrialização regional. Mas, começando nos anos 1980, as novas tecnologias quebram a bipolaridade da distribuição dos meios de produção entre países ricos e pobres. Agora, empresas podem não somente transferir a produção de manufaturados para os mais “baratos” países em desenvolvimento, mas fracionar o processo entre vários países. Isso hoje tomou escala global, tendo a Ásia, e especialmente a China, como epicentro. Do ponto de vista histórico, o que vivemos hoje é resultado da coincidência da abertura econômica chinesa, promovida pelo então líder chinês Deng Xiaoping, a partir de 1978, com os avanços tecnológicos que permitem fracionar o processo produtivo. A abertura chinesa proveu o sistema econômico mundial com uma vasta, disciplinada e barata mão de obra, junto com um governo que, apesar de nominalmente comunista, fez de tudo para facilitar a vida das empresas globais que se deslocaram para a China, estabelecendo este país como nova base global para a produção e exportação de manufaturados.

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Uma crise econômica diferente de todas

A “revolta das elites” Essa profunda reestruturação do sistema produtivo mundial teve várias consequências. Ela, sem sombra de dúvida, é o fato mais importante do nosso tempo. No mundo desenvolvido, a globalização e subsequente exportação da capacidade industrial quebraram o “pacto social” entre a classe trabalhadora local e a classe dirigente. Hoje, o capitalista tem seus interesses mais alinhados com os interesses dos países em desenvolvimento do que com a classe trabalhadora local. Antes, o trabalhador no mundo desenvolvido poderia diminuir a extração de mais valia (ou, colocando de forma equivalente, receber o valor da sua produtividade marginal) pelo fato de o capitalista não ter muita opção geográfica onde colocar seus meios de produção. A realidade hoje é outra muito diferente. Frente ao esvaziamento gradual da vantagem relativa aos países em desenvolvimento, e apesar das grandes diferenças entre a Europa e os Estados Unidos, cada sociedade utilizou o mesmo expediente para enfrentar as consequências dessas mudanças: o endividamento. A dupla bolha americana A fuga da indústria do mundo desenvolvido para o em desenvolvimento gerou todo tipo de efeito econômico e social. Nos Estados Unidos, ajudou a diminuir a importância do movimento sindical. Isso e o fato que os empregos da indústria sempre foram melhores pagos em relação a um determinado nível educacional geraram forte concentração de renda. De fato, desde os anos 1970, a renda média do trabalhador estadunidense não tem aumentado: todos os ganhos têm se concentrado no topo da pirâmide. A compensação por essa estagnação da renda veio de duas fontes. Primeiro, muitos bens de consumo caíram de preço, com a maior produtividade do trabalhador asiático. Isso ajudou, depois dos choques dos anos 70, a iniciar um grande período de menor inflação mundialmente. A entrada dos trabalhadores asiáticos no mercado global representou fortíssimo choque positivo de oferta que barateou os preços, e assim ajudou a amenizar a queda dos salários nos países desenvolvidos. Com sua vontade de manter modelos baseados na forte expansão dos investimentos e das exportações, principalmente depois da crise de 1997, os países asiáticos começaram a acumular fortemente reservas internacionais. Isso ajudou a manter suas moedas competitivas, o Tony Volpon

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Tema de capa: A crise mundial

que, ao mesmo tempo, representa uma exportação de poupança doméstica (como um forte subsídio aos produtores em detrimento do consumo local). Essa poupança foi direcionada principalmente aos Estados Unidos, dado o fato que o dólar americano é a moeda reserva do mundo e tem o mais líquido mercado de divisa, as Treasuries. Vemos, desde o final dos anos 1990, o inesperado fenômeno de países pobres investindo em países ricos. Com a inflação global em queda, e com forte oferta de poupança de países pobres, os Estados Unidos, com seus dinâmicos mercados financeiros, começam a fortemente expandir a oferta de crédito para o consumo e para o mercado imobiliário. Tal processo gerou uma “dupla bolha”: a do consumo, gerando forte expansão do déficit em conta corrente, e a bolha imobiliária, uma forte alta nos preços dos imóveis. Ambos esses processos geram um falso sentido de bem-estar na população e na economia. Privado do poder de barganha e ganhos reais de salário, o trabalhador recebe crédito farto e barato para manter o consumo crescendo, apesar da estagnação da renda. Enquanto isso, a alta dos seus imóveis também gera uma falsa sensação de riqueza. O estouro dessas bolhas se deu em 2008, e continua. A opção do governo americano foi a de apoiar o mercado financeiro e o setor bancário (decisão de fato correta, vista à luz da experiência dos anos 1930), mas sem promover um “encontro de contas” entre credores e devedores. Optou-se por não atacar o estoque de dívidas acumuladas, especialmente no setor imobiliário, o que até agora impediu a recuperação desse mercado. Mas optou-se por aplicar políticas fiscais keynesianas de gastos (o déficit fiscal americano hoje chega a 10% do PIB) com também forte expansão monetária para tentar reanimar o crescimento, esperando que este resolvesse o sobre-endividamento das famílias. Mas esses expedientes, que funcionaram tão bem no passado, agora se mostram não apenas insuficientes para gerar crescimento, mas ajudam a piorar a crise por rapidamente sobre-endividar o Estado. E essa utilização de espaço fiscal ocorre no início de uma virada demográfica que vai fortemente pressionar a demanda por aposentadoria e saúde, forçando ainda mais os gastos do setor público. Chegamos ao ponto em que tanto o consumidor quanto o governo estadunidense estão sobre-endividados, enquanto suas empresas gozam de alta liquidez, baixo endividamento e boa lucratividade, por serem, de fato, muito mais globais do que americanas. A “revolta das elites” se completa.

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A aposta na moeda única Na Europa, a história não foi muito diferente em sua essência: vemos também uma fuga da indústria, mas principalmente no Sul. A indústria de grande valor agregado do Norte europeu, por enquanto ainda mantém liderança global. Diferentemente dos Estados Unidos, o modelo social-democrata minimizou a concentração de renda durante esse período. Mas a Europa também pagou um preço pelo seu modelo social, enfrentando taxas de desemprego sempre mais elevadas que a estadunidense. Mas tal como nos Estados Unidos, os trabalhadores do Sul da Europa, dos agora chamados “países periféricos” da União Europeia, perdem seus empregos industriais, mas ganham, em compensação, uma moeda única que gera forte crescimento do crédito, especialmente para o mercado imobiliário. Apesar da zona econômica manter, diferentemente dos Estados Unidos, relativa estabilidade no conjunto de suas contas externas, entre os países do euro se estabeleceu forte desequilíbrio, com os países do Norte, como a Alemanha, exportando poupança para os países do Sul. Como na relação China-Estados Unidos, em que o primeiro financia as exportações, e, portanto, o consumo do segundo, dentro da Europa, o Norte financia e exporta para suprir o consumo do Sul, que se sobre-endivida e perde competitividade. Como nos Estados Unidos, a resposta europeia à crise teve forte caráter fiscal, com grande aumento dos déficits em mais uma malsucedida aposta keynesiana. Como nos Estados Unidos, um problema de endividamento privado rapidamente se tornou público, como agravante de uma moeda única não poder cair para atender às necessidades de maior demanda de uma Grécia ou Portugal. Ao mesmo tempo, a falta de união fiscal e um temor de abalar a situação do sistema bancário impedem um necessário “encontro de contas”. Finalmente, a Europa também gasta sua munição fiscal quando está prestes a enfrentar uma virada demográfica mais problemática que a do próprio Estados Unidos. E o Brasil com isso? Felizmente, o Brasil está muito bem, porque como foi simples e corretamente explicado pelo economista de Harvard Kenneth Rogoff, em recente edição do Financial Times, “O Brasil tem tudo o que a China precisa”.

Tony Volpon

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Tema de capa: A crise mundial

A China mudou tudo. Primeiro, a secular queda nos termos de troca se reverteu. Podemos hoje comprar produtos manufaturados mais baratos, tanto por causa da produtividade chinesa como pela oferta excedente dos países desenvolvidos ainda atolados em recessão. Conseguimos exportar nossas commodities por maiores preços para o consumidor chinês, mais rico e mais urbano. Estamos, de fato, plenamente atados ao início do supply chain asiático. Não deve nos espantar, portanto, que, apesar dos crescentes problemas nos Estados Unidos e na Europa, nossas perspectivas econômicas não sejam tão negativas assim. É certo que, como em 2008, se houver uma “parada súbita” de fluxo de capital, nossa economia entrará em recessão. Tendo déficit em conta corrente e pouca poupança, o Brasil necessita de poupança externa para crescer, e qualquer queda em sua oferta necessariamente derruba o crescimento. Além dessa vulnerabilidade, há outras duas áreas de preocupação para o Brasil. A primeira é que o Brasil pode estar relativamente isolado dos acontecimentos nos países desenvolvidos, mas isso certamente não é verdade em relação à China. Ela não só se tornou nosso maior parceiro mundial, mas sua demanda estabelece os preços internacionais de nossas exportações. Isto é, a China pode receber somente 20% das nossas exportações, mas ela fixa o preço de 70% ou mais delas, dado seu peso nos mercados de commodities. A economia chinesa tem seu próprio conjunto de problemas e desafios. Primeiro, suas taxas de investimento, que chegam a 50% do PIB, podem assegurar seu forte crescimento, mas não são sustentáveis, algo que já é reconhecido pelo governo chinês. Seu modelo econômico tem que transitar mais para ao consumo, em detrimento dos investimentos e exportações, uma transição complexa e perigosa, como foi visto no caso japonês. Para financiar investimentos, especialmente em resposta à crise, houve um forte crescimento do crédito privado, o que infelizmente lembra em parte a dinâmica dos países desenvolvidos antes da crise. Mas na China, diferente dos Estados Unidos e da Europa, muito mais recursos são destinados à infraestrutura e ao investimento produtivo. No caso chinês, é difícil acreditar que um país ainda em franco desenvolvimento e com baixa renda per capita careça de boas oportunidades de investimento. Além disso, o governo chinês tem na manga uma enorme “carta” para enfrentar qualquer problema de sobre-endividamento: pode deslanchar o que seria o maior processo de privatização da história. Tal solução não existe para os países desenvolvidos. Por essas razões, mantemos uma visão mais otimista sobre o futuro 22

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Uma crise econômica diferente de todas

da China do que o dos Estados Unidos ou da Europa. Acreditamos que o deslocamento do centro de gravidade mundial para o Sul e o Oriente deve continuar nas próximas décadas. A segunda grande vulnerabilidade do Brasil nesse processo é continuar a se engajar com a Ásia de forma “passiva”, isto é, deixando a nossa economia a se especializar em função das necessidades desses países e não da nossa vontade nacional. Isso não implica ignorar nossas amplas vantagens comparativas, muito ao contrário. Deveríamos concentrar nossos esforços industriais, tecnológicos e educacionais ampliando valor adicionado nas cadeias em que detemos vantagem global. Mas tal processo não passa somente pela montagem de grandes conglomerados nacionais com dinheiro subsidiado do Estado, grupos estes que acabam ocupando posições oligopolistas na economia e assim perdem incentivos para gerar maior eficiência e investir em novas tecnologias, mas sim pelo duro e demorado trabalho de criar condições estruturais para alimentar competitividade. O nosso modelo tem que ser a Alemanha e a própria China, com suas milhares de empresas exportadoras, e não a oligopolizada economia mexicana com seus conglomerados. Se o Brasil quiser ser mais do que um apêndice do processo econômico asiático terá que rever toda a política econômica atual, especialmente a atual orientação ao consumo e ao mercado interno, em detrimento da poupança e do investimento. Temos muitas vantagens comparativas, nesse mundo voltado à Ásia, mas temos que construir vantagens competitivas, e nunca faremos isso sem aumentar fortemente nossos investimentos e nossa poupança. Um governo que opta por sempre colocar o consumo, em primeiro lugar, está condenando o país a crescer menos no futuro. Escolhas têm que ser feitas.

Tony Volpon

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Origem, causas e impacto da crise José Luis Oreiro

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crise financeira de 2008 foi a maior da história do capitalismo desde a grande depressão de 1929. Começou nos Estados Unidos, após o colapso da bolha especulativa no mercado imobiliário, alimentada pela enorme expansão de crédito bancário e potencializada pelo uso de novos instrumentos financeiros, e se espalhou pelo mundo todo em poucos meses. O evento detonador da crise foi a falência do banco de investimento Lehman Brothers, no dia 15 de setembro de 2008, após a recusa do Federal Reserve (FED, banco central americano) em socorrer a instituição. Essa atitude do FED teve um impacto tremendo sobre o estado de confiança dos mercados financeiros, rompendo a convenção dominante de que a autoridade monetária norte-americana iria socorrer todas as instituições financeiras afetadas pelo estouro da bolha especulativa no mercado imobiliário. O rompimento dessa convenção produziu pânico entre as instituições financeiras, o que resultou num aumento significativo da sua preferência pela liquidez, principalmente no caso dos bancos comerciais. O aumento da procura pela liquidez detonou um processo de venda de ativos financeiros em larga escala, levando a um processo Minskiano de “deflação de ativos”, com queda súbita e violenta dos preços dos ativos financeiros, e contração do crédito bancário para transações comerciais e industriais. A “evaporação do crédito” resultou numa rápida e profunda queda da produção industrial e do comércio internacional em todo o mundo. Com efeito, no último trimestre de 2008, a produção industrial dos países desenvolvidos experimentou uma redução bastante significativa, apresentando, em alguns casos, uma queda de mais de dez pontos base com respeito ao último trimestre de 2007. Mesmo os países em desenvolvimento, que não possuíam problemas com seus sistemas financeiros, como o Brasil, também constataram uma fortíssima queda na produção industrial e no Produto Interno Bruto (PIB). De fato, no caso brasileiro, a produção industrial caiu quase 30% no último trimestre de 2008 e o PIB apresentou uma contração anualizada de 14% durante esse período. As bolhas e a fragilidade financeira nasceram do capitalismo neoliberal adotado a partir dos anos 1970. 24


Origem, causas e impacto da crise

Os governos dos países desenvolvidos responderam a essa crise por meio do uso de políticas fiscal e monetária expansionistas. O FED reduziu a taxa de juros de curto prazo para 0% e aumentou o seu balanço em cerca de 300% para proporcionar liquidez para os mercados financeiros nos EUA. Políticas similares foram adotadas pelo Banco Central Europeu (BCE) e pelo Banco do Japão. Nos Estados Unidos, o presidente Barack Obama conseguiu aprovar uma expansão fiscal de quase US$ 800 bilhões para estimular a demanda agregada. Na área do euro, os governos foram liberados das amarras fiscais do Tratado de Maastricht, sendo autorizados a aumentar os déficits fiscais além dos limites impostos por este Tratado. Esforços similares foram realizados no Reino Unido e nos países em desenvolvimento. Na China, por exemplo, o governo aumentou o investimento público – fundamentalmente em infraestrutura – em mais de US$ 500 bilhões, com o intuito de manter uma elevada taxa de crescimento econômico. No Brasil, a expansão fiscal começou antes da expansão monetária devido a um “comprometimento irracional” do Banco Central (BC) com um regime de metas de inflação muito rígido. Nesse contexto, o governo Lula aprovou um pacote de estímulo fiscal no fim de 2008, constituído de aumento do investimento público, redução de impostos e aumento do salário mínimo e do seguro desemprego. A redução da taxa de juros começou apenas em janeiro de 2009, após o colapso da produção industrial e da disseminação de rumores quanto à possível demissão do presidente do BC. Como resultado da demora no relaxamento na política monetária, o PIB declinou 0,7% em 2009. Apesar da forte queda da produção industrial e do PIB tanto nos países desenvolvidos como nos países em desenvolvimento, a severidade da crise de 2008 ficou muito aquém dos resultados catastróficos verificados na década de 1930. No fim de 2009, a economia americana começou a apresentar sinais positivos de recuperação, apontando para um crescimento modesto em 2010. França e Alemanha saíram da recessão técnica em meados de 2009, o mesmo ocorrendo com o Reino Unido no último trimestre desse ano. Os países em desenvolvimento tiveram um desempenho econômico muito superior ao dos países desenvolvidos durante a crise. O crescimento econômico da China foi de 8,5% em 2009, mostrando uma pequena redução com respeito a 2008, quando a economia cresceu 9%. A performance econômica da Índia também foi boa. Após uma expansão de 7,3% do PIB em 2008, o crescimento foi reduzido para 5,4% em 2009. O desempenho econômico do Brasil durante a crise não foi tão bom como o da China e da Índia. Após um crescimento robusto de 5,1% em 2008, o PIB caiu 0,7% em 2009. Em 2010, contudo, a econoJosé Luis Oreiro

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mia brasileira apresentou uma forte recuperação, apresentando um crescimento econômico superior a 7%. Entre os Brics, apenas a Rússia apresentou uma queda forte do nível de atividade econômica, caindo 7,5% em 2009, após um crescimento de 5,6% em 2008. A intensidade da crise financeira de 2008 coloca duas questões fundamentais para os economistas e formuladores de política econômica. A primeira questão se refere às origens da crise. A segunda se refere às consequências dessa crise para a economia mundial. Sobre essas questões se formou uma “sabedoria convencional”, a qual será detalhada na sequência, mas que apresenta respostas essencialmente incorretas para as mesmas. No que se refere à primeira questão, a “sabedoria convencional” afirma que a crise financeira de 2008 foi apenas o resultado de uma regulação financeira inadequada, combinada com uma política monetária muito frouxa conduzida pelo FED durante a administração Greenspan. Se assim for, então não será necessária a implementação de políticas que revertam a tendência ao aumento da desigualdade na distribuição de renda nos países desenvolvidos, verificada nos últimos 30 anos. Uma mudança limitada na regulação financeira e a redefinição do regime de metas de inflação de maneira a incluir a estabilização dos preços dos ativos financeiros como um dos objetivos da política monetária, por intermédio de uma espécie de “regra de Taylor ampliada”, seria suficiente para evitar uma nova crise financeira no futuro. No que se refere à segunda questão, a “sabedoria convencional” estabelece que a crise de 2008 foi apenas um desvio temporário no curso normal de eventos (um momento Minsky), de tal forma que, no futuro próximo, as economias capitalistas irão retomar a trajetória de crescimento observada antes da crise. O crescimento mundial poderá ser novamente puxado pela expansão de crédito nos Estados Unidos e a política econômica poderá voltar a ser conduzida com base no assim denominado “novo consenso macroeconômico”, o qual estabelece que o objetivo fundamental, senão o único, da política macroeconômica é a estabilidade da taxa de inflação. A crise financeira de 2008 não foi apenas o resultado da combinação perversa entre desregulação financeira e política monetária frouxa. Essas são apenas as causas próximas da crise. Mas existe uma causa mais fundamental, qual seja: o padrão de capitalismo adotado nos Estados Unidos e na Europa a partir do final da década de 1970, o qual pode ser chamado de “capitalismo neoliberal”. Entre 1950 e 1973, as economias capitalistas avançadas vivenciaram uma “época de ouro” de crescimento econômico, no qual a distribuição pessoal e 26

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Origem, causas e impacto da crise

funcional da renda era progressivamente mais equitativa, a taxa de acumulação de capital era mantida em patamares elevados devido à existência de um ambiente macroeconômico estável (inflação baixa, juros baixos, taxas de câmbio estáveis) e forte expansão da demanda agregada. Além disso, a taxa de desemprego era inferior a 4% da força de trabalho em quase todos os países desenvolvidos (exceto, curiosamente, nos Estados Unidos). Durante esse período, os mercados financeiros eram pesadamente regulados, a movimentação de capitais entre as fronteiras nacionais era bastante restrita, as taxas de câmbio eram fixas com respeito ao dólar americano e os salários reais cresciam aproximadamente ao mesmo ritmo da produtividade do trabalho. A combinação entre estabilidade macroeconômica, crescimento acelerado e baixo desemprego permitia que os governos dos países desenvolvidos operassem com baixos déficits fiscais e uma dívida pública reduzida como proporção do PIB. O Estado do Bem-Estar Social não representava um fardo para as contas públicas. Esse “capitalismo socialmente regulado” apresentava um regime de crescimento do tipo wage-led, ou seja, um regime no qual o crescimento dos salários reais (num ritmo igual à produtividade do trabalho) permitia uma forte expansão da demanda de consumo, a qual induzia as firmas a realizar um volume elevado de investimentos na ampliação de capacidade produtiva, ao mesmo tempo em que mantinha as pressões inflacionárias relativamente contidas devido à estabilidade do custo unitário do trabalho. Com o colapso do Sistema de Bretton Woods e os choques do petróleo em 1973 e 1979, o ambiente macroeconômico muda radicalmente e o mundo desenvolvido passa a conviver com o fenômeno da “estagflação”. Esse ambiente macroeconômico permitiu o ressurgimento daquelas doutrinas liberais. Após a eleição de Margareth Thatcher, no Reino Unido, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos, as políticas econômicas nos países desenvolvidos foram progressivamente pautadas pelos motes da desregulação, privatização e redução de impostos. Os mercados financeiros foram liberalizados, os controles de capitais foram abolidos nos países desenvolvidos e os impostos foram reduzidos, principalmente sobre os mais ricos. Os sindicatos de trabalhadores foram deliberadamente enfraquecidos pelas políticas adotadas por Reagan e Thatcher, registrando-se uma forte redução da filiação sindical da força de trabalho. O resultado macroeconômico desse novo “padrão de capitalismo” foi uma crescente desigualdade na distribuição funcional e pessoal da renda, à medida que os salários passaram a crescer num ritmo bem José Luis Oreiro

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Tema de capa: A crise mundial

inferior ao da produtividade do trabalho e o sistema tributário perdeu, em vários países, o seu caráter progressivo. O aumento da concentração de renda e o crescimento anêmico dos salários reais foi o responsável pela perda do dinamismo endógeno dos gastos de consumo, notadamente nos Estados Unidos, os quais passaram a depender cada vez mais do aumento do endividamento das famílias para a sua sustentação a médio e longo prazo. Nesse contexto, a desregulação dos mercados financeiros tornouse funcional, uma vez que a mesma permitiu um aumento considerável da elasticidade da oferta de crédito bancário, viabilizando assim o crescimento do endividamento das famílias, necessário para a sustentação da expansão dos gastos de consumo. O aumento extraordinário do crédito bancário resultou num processo cumulativo de aumento dos preços dos ativos reais e financeiros, permitindo assim a sustentação de posturas financeiras cada vez mais frágeis (especulativa e Ponzi) por parte das famílias, empresas e bancos. O regime de crescimento wage-led fora substituído por um regime finance-led. Daqui se segue que no “capitalismo neoliberal” as bolhas e a fragilidade financeira não são “anomalias” no sistema, mas parte integrante do seu modus operandi. No que se refere à tese de que a crise de 2008 seria apenas um desvio temporário da trajetória de crescimento de longo prazo das economias capitalistas, os eventos ocorridos depois de 2009 parecem apontar claramente para a falsidade dessa conjectura. Com efeito, a crise de 2008 não foi apenas um “curto circuito” na máquina capitalista, o qual poderia ser corrigido por intermédio da intervenção do Estado no “mecanismo de ignição” das economias capitalistas. Isso porque o regime de crescimento do tipo finance-led teve como contrapartida uma elevação significativa do endividamento do setor privado nos anos anteriores à crise de 2008. Considerando apenas os países da área do euro, constatamos que entre 1997 e 2008, a dívida das empresas não financeiras passou de 250% para 280% do PIB, o endividamento dos bancos aumentou de 190% para 250% do PIB e o endividamento das famílias aumentou em quase 50%. Após o colapso do Lehman Brothers, o setor privado nos países desenvolvidos iniciou um processo de “deflação de dívidas”, no qual a “propensão a poupar” dos agentes privados é aumentada com o intuito de permitir uma redução do estoque de endividamento. Esse aumento da propensão a poupar do setor privado atuou no sentido de 28

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Origem, causas e impacto da crise

anular (parcialmente) o efeito sobre a produção e o emprego do aumento dos déficits fiscais. O resultado combinado do aumento da propensão a poupar do setor privado e redução da poupança do setor público foi uma pequena recuperação do nível de atividade econômica e uma “socialização na prática” de parcela considerável da dívida privada, transferida agora para o setor público. Essa “socialização das dívidas privadas” é uma das causas da crise fiscal da área do euro, a qual, na ausência de uma monetização parcial do endividamento do setor público dos países por ela afetados, irá resultar em vários anos de contração fiscal, retardando assim a recuperação econômica do mundo desenvolvido. A perspectiva para os países da área do euro (e em menor medida para os Estados Unidos) é de vários anos de estagnação econômica. Em suma, a crise financeira de 2008 foi o resultado do modus operandi do “capitalismo neoliberal” implantado no final da década de 1970 e os seus efeitos sobre o nível de produção e de emprego nos países desenvolvidos serão duradouros devido ao elevado endividamento do setor privado, gerado por um regime de crescimento do tipo finance-led.

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Como respostas bonitas, mas erradas, colocaram o mundo em crise novamente José Carneiro da Cunha Oliveira Neto, Amanda Almeida Paiva e Gustavo Gomes Basso Precedentes Ao longo dos anos 1990, o governo do presidente Bill Clinton introduziu importantes alterações no Community Reinvestment Act e em boa parte da estrutura de financiamento hipotecário americana. As mudanças tinham como foco principal a nobre ideia de permitir o acesso dos mais pobres ao financiamento imobiliário e impuseram ao Fannie Mae e Freddie Mac, então principais agências hipotecárias americanas, a obrigação de financiar hipotecas para a população de baixa renda. Para captar os recursos necessários ao financiamento, as agências securitizavam os contratos hipotecários. Tal operação permitia, teoricamente, a diluição de parte do risco dos empréstimos e aumentava a base de captação para as agências. Essa útil estrutura de financiamento apresentava um problema para a política habitacional do governo Clinton. Os títulos lastreados em hipotecas de famílias de baixa renda (os famosos subprime) eram, em virtude de seu elevado risco relativo, pesadamente descontados pelo mercado. Como solução, foi permitida a segregação desses papéis em duas categorias: títulos com prioridade de recebimento, os quais equivaliam a 20% do valor da hipoteca, por isso, eram bem classificados; e, títulos ordinários, que, em caso de inadimplência, receberiam apenas a diferença entre o valor apurado na venda do ativo colateral ao contrato (o imóvel) e os 20% originais do contrato que resgatam os papéis prioritários. Tal estratégia permitiu uma considerável expansão na capacidade de captação de financiamento habitacional para a população de baixa renda. O que não se imaginou à época era que essa estrutura apresenta grande fragilidade a riscos sistemáticos, os quais afetam a economia como um todo. A ciranda de riscos que afetam esses papéis passava pela perda de transparência que a segregação provocava, o que limitava a capacidade daqueles que compravam os títulos securitiza30


Como respostas bonitas, mas erradas, colocaram o mundo em crise novamente

dos em gerenciar suas exposições ao risco; pela endogenia entre crises no mercado imobiliário e o nível de emprego da população de baixa renda, em regra direta ou indiretamente ligada a esse mercado; e, pela natural baixa disposição do governo em restringir booms econômicos, mesmo que baseados em níveis de endividamento insustentáveis no longo prazo. É útil destacar que a baixa sustentabilidade de uma “bolha” é facilmente diagnosticada depois de sua explosão, mas de difícil avaliação ao longo de sua existência. As alterações legais e normativas não provocaram impactos imediatos nos preços dos imóveis, no entanto, ao menos parcialmente, atingiram os objetivos iniciais do governo Clinton e facilitaram o acesso dos mais pobres ao financiamento imobiliário. Em meados de 1996, o então presidente do Federal Reserve, FED, Alan Greespan, preocupado com o impressionante desempenho acionário de empresas de tecnologia, proferiu seu famoso discurso sobre a “exuberância irracional” presente no mercado “ponto-com”. Para ele, esse novo mercado, cuja origem remontava à abertura de capital da Netscape em 1995, apresentava fortes indícios de valoração exagerada, pois as companhias em questão não produziam lucros coerentes com seus valores de mercado (GREENSPAN, 2008). Fosse isso fato ou não, era para esse “novo mercado” que parte considerável da população americana direcionava suas aplicações. No começo dos anos 2000, as preocupações de Greenspan se tornaram realidade, o mercado “ponto-com” implodiu. A resposta do FED foi rápida e, na época, pareceu eficiente. Com uma forte contração nos juros, a desaceleração da economia, consequência natural da implosão da bolha, foi remediada. O que não se percebeu foi o tipo de incentivo gerado por essa resposta combinada com as alterações nas normas hipotecárias. Com taxas de juros extremamente baixas e regras flexíveis para a concessão de hipotecas, a população americana antecipou consumo com base em financiamento imobiliário. Alguns compraram casas novas, outros rehipotecaram suas casas para adquirir outros bens ou serviços. O crescimento do mercado imobiliário gerou o que pareceu no primeiro momento um ciclo virtuoso. Como a população de baixa renda tem seu emprego fortemente ligado a esse setor, os níveis de emprego melhoraram. Dado a sensação de maior riqueza, fruto da valorização de seu patrimônio imobiliário, o americano comum foi às compras e assumiu posições cada vez mais endividadas, que pela nova rodada de valorização de seu patrimônio imobiliário, era sustentada por novos contratos hipotecários. José Carneiro da Cunha Oliveira Neto, Amanda Almeida Paiva e Gustavo Gomes Basso

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Tema de capa: A crise mundial

Como em quase todas as outras crises financeiras, o excesso de alavancagem cobrou seu preço e, em meados de 2007, após uma série de aumentos nos juros promovidos pelo novo presidente do FED, Ben Bernanke (REINHART; ROGOFF, 2009), a “nova bolha” entrou em colapso. Um cuidado útil: não foi Bernanke quem provocou a crise, o presidente do FED tinha motivos sólidos para elevar os juros naquele momento, pois postergar tal ajuste só pioraria a situação. Com a desaceleração do mercado imobiliário, o desemprego entre os clientes subprime disparou, novas rodadas de inadimplência ampliaram ainda mais a oferta de imóveis em um mercado já estagnado, o que provocou novas quedas no preço dessa classe de ativo. Vários americanos de classe média que haviam contratado hipotecas para investir em novas casas perceberam que o valor dos imóveis era inferior às obrigações hipotecárias e entregaram o colateral para liquidação da dívida. Sem liquidez, as agências hipotecárias tiveram como honrar suas dívidas com as instituições que haviam adquirido os títulos securitizados e entraram em falência. A complexa e nebulosa estrutura de securitização que havia viabilizado a expansão do crédito para as famílias de baixa renda entrou em colapso, a difícil mensuração de seus desdobramentos prolongou a agonia do sistema financeiro internacional que, por cerca de duas semanas, literalmente deixou de funcionar, o mercado interfinanceiro mundial estava falido. Em muitos casos, a crise se alastrou para outros países e empresas pelo mercado de crédito. Por vezes, pelos prejuízos que alguns bancos locais sofreram ao investirem em títulos subprime, em outros casos por simples receio dos bancos em emprestar. Em Brasília, uma grande rede de farmácias, mesmo sendo cliente de um banco que pouco ou nada sofreu com a crise, teve seus limites de crédito cortados pela metade e não foi mais capaz de financiar suas despesas operacionais. Esta fechou diversas lojas e por pouco não cessa completamente suas operações. No resto do planeta, não foi diferente. As respostas Diante do risco de depressão, diversos governos iniciaram ações contracíclicas. Estados Unidos e União Europeia atuaram em conjunto para “reiniciar” o mercado interfinanceiro internacional, e uma série de medidas fiscais e monetárias foi desencadeada ao redor do mundo. Um forte e recorrente discurso sobre a necessidade de regulamentação mais rígida do mercado financeiro ganhou força e a visão de maior necessidade de intervenção governamental no sistema econômi32

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Como respostas bonitas, mas erradas, colocaram o mundo em crise novamente

co obteve um renascer vigoroso frente à dominação tácita do menor intervencionismo neoclássico, razoavelmente hegemônico no pensamento econômico desde a década de 1970. Keynes, com sua justificativa econômica para a intervenção estatal, e Roubini, com sua crise em L, ganharam os noticiários e as rodas de debate governamental. A necessidade de intervenção mais ativa estava dada, faltava apenas determinar o que deveria ser feito. Não há consenso sobre quais seriam as respostas apropriadas, mas aos que evocaram Keynes ou denunciaram o liberalismo econômico, seria útil uma breve leitura da Teoria Geral e da história institucional da crise subprime. Com a desculpa de estimular a demanda agregada, o que para graduandos em economia seria deslocar a curva IS para a direita, governos de todo o mundo adotaram uma política fiscal fortemente expansionista baseada em novos endividamentos ou na assunção de compromissos financeiros de difícil reversão, tais como aumento dos gastos com salários e outros encargos correntes. No afã de consolidar sua maior participação na economia, a política deixou algumas questões básicas de lado. Ao ingressar em uma política de gastos para “reativar” a economia, é fundamental que o governo tenha claro sua dotação financeira inicial e por quanto tempo os estímulos serão necessários. Como bem destacou Krugman em seu blog, políticas keynesianas exigem mais responsabilidade fiscal que políticas neoclássicas. Isso ocorre, segundo Krugman, pois enquanto a última prega pelo eterno equilíbrio orçamentário, a primeira demanda controle rígido nas fases de crescimento, preferencialmente com geração de poupança pública, para que os déficits no momento de crise sejam sustentáveis, caso contrário o governo quebra antes de “salvar” a economia. Um segundo ponto relevante é o verdadeiro potencial do multiplicador do investimento, o gasto deve ser direcionado para investimentos que tenham o maior multiplicador potencial. Dadas eventuais restrições na dotação inicial do governo, esse ponto passa a ser ainda mais importante. Em complemento à política fiscal, muitos governos reduziram juros, deslocaram a LM para a direita, com a economia em recessão, teoricamente com vasta capacidade ociosa. Reza a cartilha que as combinações dessas medidas não deveriam ser inflacionárias. A magnitude da expansão monetária variou de nação para nação, em todo caso torcia-se para que os resultados da crise “ponto-com” fossem repetidos. Novamente, a leitura da Teoria Geral poderia ter sido útil, pois Keynes em pessoa argumenta que tal curso de ações é inócuo quando os investimentos são inelásticos aos juros, e esse era exatamente o caso do setor imobiliário americano no pós-subprime. José Carneiro da Cunha Oliveira Neto, Amanda Almeida Paiva e Gustavo Gomes Basso

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Tema de capa: A crise mundial

As consequências A atual crise é um desdobramento inevitável da ação irresponsável de políticos que mais queriam uma justificativa para maior intervenção do governo e, consequentemente, aumento do poder da classe política diante do restante da sociedade, do que encontrar soluções duráveis e sustentáveis para os problemas advindos da crise 2007/2008. As políticas fiscais de ajuda financeira para empresas e os investimentos/gastos diretos do governo se mostram não só ineficazes para reativar a economia, como cobraram um forte preço em termos de endividamento do setor público. Grécia, Portugal, Espanha, França, Estados Unidos, Brasil, entre outros, enfrentam agora grandes dificuldades para lidar com os compromissos que foram assumidos pelos programas governamentais de auxílio. No caso específico do Brasil, soma-se ao endividamento já gerado para enfrentar a crise, que – segundo o governo – teria sido apenas uma marolinha, mas serviu para justificar vultosos gastos públicos, a necessidade brutal de recursos para investimentos direcionados à Copa do Mundo e Olimpíadas, recursos esses que o governo brasileiro claramente não dispõe. Ainda sobre o Brasil, a aceleração inflacionária ganha corpo como solução governamental para resolver seus problemas com gastos correntes e dívidas não indexadas. Desde o reajuste da tabela do Imposto de Renda até às negociações salariais, o governo utiliza a política de metas para fixar reajustes em torno de 4% (esse argumento só não é válido quando o reajuste se refere a salários de ministros, deputados, senadores e presidente), porém sinaliza claramente que a política de metas – centrada no quesito credibilidade – já foi abandonada. O controle da inflação é feito a baixo custo pelo fato de as pessoas acreditarem que o Banco Central fará tudo o que seja necessário para manter a inflação sob controle. Quebrada essa crença na ação do Banco Central, o custo da política de metas cresce tanto que ela se torna inviável. Entre os dias 30 e 31 de agosto de 2011, o Comitê de Política Monetária, do Banco Central do Brasil, esteve reunido para definir a nova taxa Selic. Para surpresa geral, o Copom optou por reduzir a taxa em 0,5%, para 12% ao ano (em outubro, baixou em mais 0,5%). A surpresa tem fontes distintas e se aprofunda quando da leitura da ata da reunião. Dado a aceleração inflacionária e o erro de diagnóstico das últimas reuniões, seria de se esperar um aumento da taxa, que chegaria a 13%. Porém, o Copom não só foi na direção contrária, como repetiu o mesmo tipo de diagnóstico que é dito desde que a inflação se descolou 34

Política Democrática • Nº 31


Como respostas bonitas, mas erradas, colocaram o mundo em crise novamente

sistematicamente do centro da meta: “o mais grave já passou, a inflação está desacelerando”. Dada a ascensão desenvolvimentista ocorrida durante a crise, fica a dúvida se o governo Dilma não busca um novo “efeito Bacha” (quando os direitos do governo são reajustados pela inflação, mas suas obrigações não) para enfrentar o atual problema de dívida interna/gasto corrente e investimento Copa/Olimpíada. O problema com esse modelo, além do fato dele já não ter dado certo, é que a crença no cumprimento da meta está muito mais na ação de fato do Banco Central do que nas negociações salariais e tributárias do governo, principalmente quando presidente e ministros não atrelam seus próprios ganhos à meta, mas se esforçam enormemente para atrelá-la a outros gastos do governo. A crise subprime começou com um problema sistemático de endividamento pessoal em níveis insustentáveis no longo prazo, a forma como governos atuaram para enfrentá-la criou um problema de trajetória de dívida e gastos públicos insustentáveis no longo prazo. As ações escolhidas apenas alteraram o foco da crise, mas não foram eficazes para resolvê-la. Resta saber se agora que a redução do gasto público e a melhoria de sua qualidade se fazem fundamentais para a superação do novo problema, os governos terão a mesma disposição, agilidade, patriotismo e compromisso com a população que tiveram na hora de aumentá-lo. Ou será que irão escolher a inflação e todos seus efeitos danosos como rota de fuga, trocando a nova crise de dívida por uma futura crise inflacionária? Referências BRASIL (BancoCentral). Ata da 160ª Reunião do Copom, 2011. ______. Ata da 161ª Reunião do Copom, 2011. ______. Ata da 162ª Reunião do Copom, 2011. GREENSPAN, A. The Age of Turbulence: adventures in a new word. Ed. Penguin Books, 2008. KEYNES, J. M. Teoria Geral do emprego, do juro e da moeda. Ed. Atlas, 1992. KRUGMAN, P. Krugman Blog, em: <http://krugman.blogs.nytimes. com/>. REINHART, C. M.; KENNETH, S. R. This Time is Different: eight centuries of financial folly. Ed. Princeton University Press, 2009.

José Carneiro da Cunha Oliveira Neto, Amanda Almeida Paiva e Gustavo Gomes Basso

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Crise econômica internacional: desdobramentos Sergio Augusto de Moraes

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os últimos decênios, depois do fim da URSS e do campo socialista, o neoliberalismo imperou de forma quase absoluta, colocando o mercado como um Deus que deveria regular não somente a economia, mas todas as outras relações sociais, aqui incluída a ética política. Assim, não é de estranhar o mar de corrupção que inundou os governos no mundo. E a inundação continuará, a menos que os povos resolvam indignar-se e intervir, como, aliás, começa a acontecer em vários países. A crise não é uma questão do neoliberalismo, mas sim uma manifestação intrínseca e periódica do sistema capitalista, porque ele tem como princípio e como fim a busca do lucro máximo e não a satisfação das necessidades humanas. A crise é uma forma de resolver seus problemas, destruindo meios de produção, reduzindo ativos financeiros a pó, ceifando vidas. Os dados a seguir mostram como a crise se armava: tomando como referência as quinhentas maiores corporações listadas na revista Fortune, observamos que a taxa de lucro média das mesmas foi de: 7,15%, entre 1960 e 1969; 5,30%, entre 1980 e 1990; 2,29%, entre 1990 e 1999; e 1,32%, entre 2000 e 2002.1 Aqui cumpre observar que “(...) a taxa de lucro diminui não porque o operário seja menos explorado mas porque se emprega cada vez menor quantidade de trabalho para o capital investido”.2 O professor de economia da Universidade de Nova York, Nouriel Roubini, entende que: “As corporações motivam-se pelos custos mínimos, para economizar e fazer caixa, mas isso implica menos dinheiro nas mãos dos empregados, o que significa que eles terão menos dinheiro para gastar, o que repercute na diminuição da receita das companhias”.3 1

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Le Monde Diplomatique, edição brasileira, jun. 2009, p. 9. K. Marx, O Capital. V. III, Ed. La Habana,1973, p. 268. Entrevista ao Wall Street Journal, 11/08/2011.


Crise econômica internacional: desdobramentos

Para Paul Krugman, Nobel de Economia, o que está em curso agora é uma tentativa de consolidar e ampliar o processo de concentração de renda vivido entre 1973 e 2010. No período, “a renda de 90% das famílias norte-americanas cresceu apenas 10%, em termos reais, enquanto o 1% dos mais ricos triplicou de renda” e “a diferença entre os salários dos executivos-chefes das grandes corporações e o rendimento mediano dos trabalhadores passou de 26 para 300 vezes”.4 Entretanto, esta crise, diferentemente das anteriores, caracterizase também: a) pela destruição dos limites político-econômicos colocados ao movimento do capital após a crise de 1929; b) pelo aumento avassalador de capital fictício atingindo volumes que superam os das outras formas de capital, (segundo o BIS – Bank of International Settlements, o mercado de derivativos atingiu US$543 trilhões no final de 2008, quase 15 PIBs dos EUA); c) pela expansão exponencial das forças produtivas mundiais originadas no cruzamento das conquistas da revolução científicotecnológica com a incorporação da China e da ex-URSS ao circuito do capital globalizado; d) pela brutal agressão ao meio ambiente praticada, nos últimos decênios, atingindo proporções que constituem uma ameaça ao futuro da humanidade. A reação dos governos capitalistas à crise, em particular os dos países mais ricos, foi, por um lado, liberar centenas de bilhões de dólares para os bancos e as grandes corporações e, por outro, atacar os direitos dos trabalhadores. Redução de empregos, aumento da idade para aposentadoria, redução do seguro desemprego etc. etc. Milhões de jovens trabalhadores não conseguem trabalho. Nos EUA, o número de pobres cresce e chega hoje a 46 milhões de pessoas, enquanto o país gasta bilhões de dólares nas guerras do Afeganistão, Iraque e Líbia. A destruição de meios de produção e de vidas humanas aparece aqui com toda sua crueza. A desigualdade aumenta, não só dentro dos países, mas também entre países. A Grécia já iniciou sua moratória, o PIB da Irlanda caiu 10%, Portugal, Espanha e Itália pedem socorro. Os ativos financeiros estão virando pó.

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Citado no site “Outras Palavras”, 12/09/11.

Sergio Augusto de Moraes

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Tema de capa: A crise mundial

O insuspeito jornal O Globo, em sua edição de 4 de setembro último, abre uma manchete significativa: “Bancos ricos, Governos pobres” e assinala que o lucro total dos bancos americanos cresceu 40,71% entre 2009 e 2010, enquanto no mesmo período a dívida bruta dos países do G-7, os mais ricos do mundo, passou de US$35,3 trilhões para US$41,2 trilhões. A situação é tão escandalosa que Warren Buffett, um dos dez homens mais ricos do mundo, apelou para que “parem de mimar os ricos” e explicou: “no ano passado a conta dos meus impostos federais... foi de US$6,9 milhões. Parece um bocado de dinheiro. Mas foi apenas 17,4% do meu rendimento tributável... enquanto a carga fiscal média das 20 pessoas que trabalham em meu escritório ficou em 36%”.5 Warren Buffett não é bobo. Ele percebe que para continuar ganhando não pode matar a galinha dos ovos de ouro, isto é, os trabalhadores. Seguindo a sugestão de Buffett, o presidente Obama enviou um projeto ao Congresso aumentando a carga fiscal dos ricos. Mas a oposição republicana, que é maioria, já declarou que o projeto não passa. Ela continua refém do Tea Party, sua ala mais reacionária, uma ameaça à democracia. Por algumas características de sua economia, os países ditos emergentes, dentre eles o Brasil, pouco sofreram até agora com a crise. Isto os colocou numa posição vantajosa com relação aos países do G-7, levando-os a reivindicar maior poder de decisão nos organismos de governança global. Este é um movimento que pode democratizar tais organismos. No entanto, é inevitável que a recessão no mundo rico acabe afetando o mundo mais pobre e o Brasil vai sofrer com isso. Já se anuncia aumento dos estoques de aço, férias coletivas nas indústrias do ABC etc. A reação dos povos em todo o mundo é significativa e diversa. Entretanto, cumpre assinalar algumas de suas características: • no mundo árabe, ela é marcada pela presença massiva de jovens, em boa parte desempregados. A bandeira política mais aparente é a derrubada dos ditadores, mas existe um vínculo forte com a luta por emprego; • na Espanha, milhares de jovens acamparam nas praças durante semanas, exigindo emprego e criticando o governo. No 5

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Entrevista ao The New York Times, 14/08/2011. Política Democrática • Nº 31


Crise econômica internacional: desdobramentos

maior dos acampamentos, o da Puerta Del Sol, em Madrid, eles não aceitavam manifestações de partidos políticos; • na Itália, realizou-se uma greve geral contra as medidas de arrocho do governo Berlusconi; os partidos de oposição tiveram participação destacada; • no Chile, um movimento estudantil pela escola pública ganhou tal força que o governo teve que sentar-se à mesa com seus líderes para discutir suas propostas. A líder deste movimento é uma jovem do Partido Comunista do Chile; • nos EUA, presenciamos um movimento pleno de potencialidades, liderado pelos jovens, o “Occupy Wall Street”. Suas reivindicações atingem o cerne do capital financeiro. Deparamo-nos com uma crise global que põe novamente à mostra a incapacidade do sistema capitalista de resolver os problemas básicos da humanidade. Entretanto, os movimentos de massa contra os efeitos desta crise ainda não colocam como bandeira a ultrapassagem deste modo de produção. Com certeza, uma razão para isso é que ainda não foi formulada uma alternativa ao capitalismo do século XXI que incorpore os ensinamentos das tentativas anteriores de construção do socialismo e, ao mesmo tempo, consiga indicar caminhos que evitem os erros cometidos nas mesmas.

Sergio Augusto de Moraes

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II. Observat贸rio


Autores Washington Bonfim

Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Piauí (UFPI).

Raul Jungmann

Ex-ministro do Desenvolvimento Agrário, ex-presidente do Ibama, ex-deputado federal e atual presidente do PPS de Pernambuco.

Ludmila Caminha Barros

Advogada pernambucana especializada em Direito Urbano, Direito Ambiental e Direito Agrário.

Cândido Gryzbowski

Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase).


Crises e referências republicanas Washington Bonfim É tanto maior a responsabilidade dos homens de pensamento quanto mais intenso é o processo de transformação da sociedade em que vivem. Nessas sociedades, em rápida mudança, é que se torna possível a tomada de consciência dos grandes problemas sociais, abrindo-se para os trabalhadores do pensamento a oportunidade única de cooperar conscientemente no aperfeiçoamento da cultura e de contribuir para o desenvolvimento do homem como ser social. (Celso Furtado)

Numa outra passagem, desta feita de Milton Santos, em Por Uma Outra Globalização, o papel dos intelectuais é ainda mais ressaltado: O terrível é que, nesse mundo de hoje, aumenta o número de letrados e diminui o de intelectuais. Não é este um dos dramas atuais da sociedade brasileira? Tais letrados, equivocadamente assimilados aos intelectuais, ou não pensam para encontrar a verdade, ou, encontrando a verdade, não a dizem. Nesse caso, não se podem encontrar com o futuro, renegando a função principal da intelectualidade, isto é o casamento permanente com o porvir, por meio da busca incansada da verdade.

Um terceiro grande intelectual, ainda vivo, Eric Hobsbawm, em entrevista para o jornal O Estado de S. Paulo, em 11 de setembro de 2011, quando perguntado sobre a sensação de falta de rumos que assombra o mundo contemporâneo, afirma: “[...] notamos a mesma sensação de desorientação ao vermos como os Estados Unidos mergulharam numa crise econômica que até parece ver o breakdown (quebra) do capitalismo liberal [...]. No entreguerras, a escolha principal de um modelo se dava entre o capitalismo reformado e o socialismo com forte

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Observatório

planejamento econômico [...]. Hoje, esses marcos sinalizadores desapareceram e os ‘pilotos’ que guiariam nossos destinos, também”. Sem nenhuma dúvida, citamos três grandes intelectuais, de envergadura internacional. Nos dois primeiros – que não viveram o suficiente para alcançar esta fase da história mundial em que, desde 2008, vivemos enredados numa teia profunda de problemas derivados de uma crise econômica gerada nas principais economias mundiais –, surge o ideal da função dos intelectuais. Mais do que isto, o debate gira em torno da necessidade de que se coloquem claramente diante do mundo, a partir de suas ideias e, principalmente, de sua postura corajosa. Hobsbawm, nesta entrevista e num livro recém-lançado nos EUA e Inglaterra, procura cumprir um papel ainda mais importante: recolocar os termos da discussão a partir da qual poderíamos visualizar saídas efetivas para o conjunto de problemas que estamos vivendo. O que assusta, no caso brasileiro, é que parece haver poucas referências intelectuais capazes de aglutinar reflexões profundas sobre a situação mundial e seus impactos sobre a vida, a sociedade e a economia nacionais, e a principal delas, veremos, está no conceito de república. O individualismo, a liberdade, o consumo e a tecnologia tornaram nosso mundo praticamente ininteligível, em função das inúmeras facetas que passa a produzir. A política, como atividade de agregação de interesses, perde vigor e legitimidade, e o grande debate intelectual contemporâneo se dá na fronteira da sua crise, segundo concepções que remetem à legitimidade do Poder Judiciário de interferir em questões, até bem pouco tempo, exclusivas do domínio da representação popular. De fato, esta “crise da política” se afigura de inúmeras maneiras. Por um lado, está personificada na falta de líderes políticos de envergadura mundial, capazes de aglutinar pensamento e musculatura política para conduzir processos de mudança de médio e longo prazos. Pode-se também notá-la na enorme perplexidade diante da necessidade de lidarmos com novas potências econômicas mundiais, os chamados Brics, que reúnem países tão distintos quanto África do Sul, Brasil, China, Índia e Rússia. A “crise da política” também aparece configurada na incapacidade de os mecanismos de representação cumprirem seus mandatos, seja pelos desvios de conduta dos que foram eleitos, seja pela deficiência dos processos de oxigenação das ideias e percepção dos interesses dos representados. Na realidade, a internet, através das redes sociais, agrava a percepção deste problema, pois descortina uma 44

Política Democrática • Nº 31


Crises e referências republicanas

contradição pulsante da vida contemporânea: vigor reivindicatório de caráter individual e falência cooperativa e/ou corporativa dos organismos de representação. Diante dessas circunstâncias, a saída está nos valores, na compreensão clara de quais valores nossas sociedades podem e devem professar. Creio, sem profundo conhecimento jurídico, que poderíamos traduzir esta noção numa máxima que assimilaria valores aos direitos. Neste caso, Norberto Bobbio é que nos dá a senha para que se coloquem parâmetros à discussão, no seu clássico A era dos direitos, publicado pela primeira vez no Brasil em 1992. No caso brasileiro, avançamos muito na busca da consolidação dos direitos, em todas as esferas, inclusive a dos direitos sociais, mas, novamente, na política estamos deixando a desejar. Nossa democracia não convive com métodos republicanos, e esta separação é sumamente danosa para o tecido social, em termos éticos, econômicos e sociais. Nas palavras de Walzer: “O interesse pelas questões públicas e a devoção às causas públicas são os principais sinais da virtude cívica”. Talvez este seja o maior desafio contemporâneo, não apenas brasileiro, aliar democracia e república, participação com responsabilização pública de gestores e cidadãos. Novamente abusando um pouco das palavras de outro autor, cito Gabriel Cohn: “Os atores sociais e políticos podem orientar suas ações por regras de eficácia – que envolvem interesses – ou por valores – que envolvem subordinação de interesses próprios a outros alvos de caráter mais universalizante. No primeiro caso, satisfazem as exigências democráticas; no segundo, entram no campo republicano”. Em todas as esferas de nossa vida social, urge a necessidade de preservação das liberdades e dos direitos, que só se concretizam na vida coletiva, a qual não prescinde, em nenhum momento, das chamadas “virtudes públicas”. Desta necessidade de convivência coletiva surge, igualmente, a necessidade de reconhecimento da pluralidade, algo cada vez mais raro em nossos sistemas políticos. República e pluralidade podem operar conceitos econômicos e fornecer compreensão para a reforma de nossas sociedades? Está aí um grande desafio intelectual!

Washington Bonfim

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O 11 de Setembro e nós Raul Jungmann

O

s atentados de dez anos atrás, às torres gêmeas do World Trade Center, tiveram o condão de introduzir três mudanças visíveis ainda hoje, dentre outras.

A primeira delas, e mais duradoura, foi a subida do tema segurança ao topo da agenda internacional, com todo seu corolário de resoluções da ONU, reforços dos aparatos de defesa, protocolos adicionais de controle de comércio entre países etc. Hoje, vivemos todos num universo muito mais invasivo, com a presença do Estado bem maior que antes nas nossas vidas, em especial nos EUA e Europa. Direitos foram podados e estendidos ao máximo os mandatos das novas agências de controle e segurança. O segundo dos impactos se deu na ordem internacional, mediante o apogeu do unilateralismo americano, cujo exemplo máximo se consubstanciou na invasão do Iraque, dissipando o capital amealhado pelos norte-americanos quando da reação inicial ao 11 de Setembro e a invasão compartilhada do Afeganistão. Como corolário, os EUA, revertendo a tendência do segundo governo Clinton, passaram a enfrentar déficits fiscais crescentes, que hoje, pós crise de 2008, foram ampliados e, no presente, exaurem, do ponto de vista fiscal, a maior economia do planeta. Por último, a governança internacional e o multilateralismo foram duramente atingidos pela opção de respostas unilaterais por parte dos Estados Unidos e seus aliados, sem o respaldo da ONU. E nós com isso, relativamente ao mundo que emergiu no pós 11 de Setembro de 2001? De lá para cá, o Brasil avançou a passos largos para um protagonismo global, na esteira do seu sucesso econômico, avanço na redução da pobreza e estabilidade democrática. Entretanto, fizemos isso sem que debate algum fosse travado pelo lado dos riscos inerentes ao novo patamar que atingimos e às novas tarefas que nos esperam, e quanto aos objetivos que perseguimos, como o assento no Conselho de Segurança da ONU.

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O 11 de Setembro e nós

Nossa elite ambiciona e discute apenas o bônus decorrente da nossa projeção, na mais completa desatenção para a sua outra face, a exemplo dos nossos riscos crescentes quanto a um ataque terrorista. Nossas fragilidades são várias e se concentram na: a) Inexistência de um marco legal que tipifique penalmente o terrorismo. Dispomos apenas de legislação conexa, o que obviamente será um embaraço à atuação do Judiciário e do Ministério Público, como também às forças de segurança. b) Desestruturação do aparato de Estado, dado que a Autoridade Antiterrorismo até hoje não saiu do papel e a linha de comando, tarefas e hierarquia permanecem ambíguas. c) Inexistência de um Plano Nacional Antiterrorismo, com linhas de ação definidas, planos de contingência para equipamentos de massa e infraestruturas críticas etc. d) “Negacionismo estatal”, isto é, a sistemática ocultação dos fatos e realidades por parte do governo federal, temendo a intrusão dos americanos e a reação por parte dos árabes, pela adoção das medidas antiterror. Essa atitude é liderada, no âmbito do governo, pelos ministérios das Relações Exteriores, da Defesa e da Justiça. e) Interdição do debate, que é a contraparte da sociedade, de uma forma tão autoritária, a ponto de tachar a quem propõe discutir tão importante tema de jogar contra o interesse nacional. f) Política externa brasileira, que perdeu o seu equilíbrio histórico vis-à-vis os conflitos no Oriente Médio e que, somada à frouxidão interna no combate ao terrorismo, tornam o Brasil uma friendly house para o trânsito e homizio de redes internacionais. Tudo isso somado leva a que o nosso país, desgraçadamente, venha um dia a repetir o feito da Argentina, a qual, golpeada em 1992 e 1994 por atentados que mataram cem pessoas, não dispunha de instrumentos, legislação ou estrutura adequada de prevenção e/ou resposta. Eles lá, antes dos episódios, como nós aqui hoje, achavam tolos e inverossímeis os que alertavam para os riscos de um ataque de uma rede internacional terrorista... Aos que acham que Deus é brasileiro, nós somos o país do samba, futebol e da alegria, não custa nada lembrar que para o próximo ano teremos a Rio+20 e, em seguida, a Copa do Mundo, em 2014, e as Olimpíadas, em 2016... Raul Jungmann

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O processo de modificação do Código Florestal brasileiro Ludmila Caminha Barros

O

modelo de desenvolvimento rural hegemônico no Brasil desde os primórdios da colonização é a monocultura exportadora. Valendo-se da superexploração da mão de obra, da apropriação ilegal de terras públicas e da destruição das florestas, o Brasil tornou-se forte no mercado global de commodities agrícolas, assegurando o equilíbrio do seu balanço de pagamentos. Esta posição também deve muito à abundância de políticas públicas de suporte: a monocultura exportadora se apropria da maior parte dos investimentos públicos para a agricultura, recebendo em face da agricultura familiar – que é quem produz os alimentos que o povo consome – a maioria dos investimentos para infraestrutura produtiva, financiamento à produção, assistência técnica e extensão rural, pesquisa e desenvolvimento, associativismo e cooperativismo etc. Isso não se consegue sem hegemonia política a assegurar o controle de governos locais e dos poderes legislativos nos três níveis da Federação. Apesar de representantes do agronegócio reconhecerem “que é possível aumentar a produção de alimentos sem a necessidade de abdicar das áreas de proteção ambiental, só com investimentos para aumentar a produtividade” e de um ex-ministro da Agricultura fazer coro aos que afirmam que “hoje as áreas degradadas de pasto ocupam o mesmo espaço das culturas de grãos”, não falta quem insista que a preservação das florestas no Brasil obsta a produção de alimentos no país. Se, no final do século XIX, os fazendeiros argumentavam que era impossível abolir a escravidão sem tirar a competitividade da produção agrícola brasileira, hoje acusam as florestas de obstar a produção de alimentos! Assim, em bases irracionais e equivocadas, está ocorrendo a modificação do Código Florestal brasileiro. Nada adiantou uma pesquisa do Instituto Datafolha mostrar que a imensa maioria da sociedade civil brasileira é contra a mudança do Código Florestal. Todo ano, durante a estação das chuvas, enchentes inundam as cidades à beira dos rios e deslizamentos de terras nas colinas urbanas matam milhares de pessoas. Mas, essas mortes repetidas não convencem da necessidade 48


O processo de modificação do Código Florestal brasileiro

de proteger a vegetação cuja integridade as impediria: o projeto de lei substitutivo permite a supressão de 50% dessa vegetação. Em uma vã tentativa de trazer racionalidade científica ao debate, um estudo conjunto da Academia Brasileira de Ciências e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência argumentou a importância da reversão da degradação ambiental e da manutenção da vegetação nativa às margens dos corpos d’água e nas encostas dos morros para o controle da erosão. O trabalho das principais instituições de pesquisa brasileiras foi desmerecido pelo deputado relator do projeto, que o acusou de ter sido financiado pelo lobby ambientalista formado pelo Greenpeace e WWF. Para piorar, o novo texto legal não apenas reduz o tamanho da área sob proteção, como também facilita a obtenção das licenças para o seu desmatamento. Foi em vão também que o subprocurador geral da República, em audiência pública no Senado, realizada em 13 de setembro com juristas, afirmou que essas mudanças impedem o Brasil de cumprir com seus compromissos internacionais em matéria ambiental, principalmente no que se refere à estabilização do clima. A observância dos compromissos internacionais do Brasil exige não apenas que se mantenham os níveis atuais de proteção, mas também que se recupere o passivo ambiental resultante da degradação das áreas hoje protegidas no Código Florestal. A presidente Dilma Roussef promete vetar quaisquer dispositivos legais que impeçam o Brasil de cumprir as metas e compromissos assumidos sobre a estabilização do clima. O maior passivo ambiental do meio rural brasileiro, apontado pelo referido estudo da ABC/SBPC, é composto pelas Áreas de Reserva Legal (ARL) que foram irregularmente suprimidas. Essas áreas consistem em percentuais de vegetação nativa a serem preservados nas propriedades rurais, pois possibilitam a conectividade dos remanescentes florestais, permitindo o deslocamento e a dispersão das espécies na paisagem. O manejo das espécies da ARL não apenas é possível, é também economicamente interessante para a diversificação da produção rural. Mas essas áreas foram, em grande parte, desmatadas e, apesar da legislação em vigor impor sua recuperação, esta não ocorreu. O novo texto de lei mantém os percentuais atuais, mas isenta quem já removeu essa vegetação da obrigação de recompô-la. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), tendo por base a área total dos imóveis rurais brasileiros e aplicando os percentuais de reserva legal previstos no atual Código Florestal para cada tipo de vegetação, afirmou que o Brasil deveria possuir uma área total de 258,2 milhões de hectares de reserva legal. Aplicando o índice de pasLudmila Caminha Barros

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Observatório

sivo obtido para cada município, o Ipea estimou um passivo total de reserva legal de 159,3 milhões de ha (61,7% da área total de reserva legal prevista na lei atual). Seria este o total da área de florestas que a nova lei isenta os desmatadores da obrigação de recuperar. O Código Florestal não é a única lei ambiental brasileira que está sendo alterada para favorecer ainda mais os interesses da monocultura exportadora. São várias as iniciativas legislativas no Congresso Nacional para diminuir a proteção ao ambiente no Brasil, que vão da flexibilização do licenciamento ambiental de grandes obras de infraestrutura à transferência da competência do Poder Executivo de criar áreas protegidas para o Poder Legislativo. Em junho de 2009, a sociedade civil brasileira publicou um manifesto contra essas iniciativas. Dois meses depois, foi instalada uma Comissão Especial na Câmara dos Deputados para discutir as modificações do Código Florestal, com muita animosidade entre os parlamentares componentes. Esta Comissão manteve o domínio dos representantes do agronegócio em sua composição e, sempre que pôde, usou mecanismos de segurança para restringir ou impedir representantes da sociedade civil de acompanhar os debates. Apesar das duras críticas, o péssimo texto produzido pela referida Comissão foi aprovado. Durante a votação, o anúncio do assassinato de um trabalhador da floresta e sua esposa foi recebido com vaias, como num macabro cântico de triunfo da lavoura arcaica brasileira. A esses dois crimes, seguiram-se mais dois assassinatos, no curto espaço de uma semana. No dia 14 de junho deste ano, já eram seis os mortos no Norte do Brasil, sendo cinco apenas no estado do Pará. Ficou para o Senado Federal a responsabilidade de minorar o dano. Mostrando-se mais sensível, a Câmara Alta já ouviu cientistas, juristas e dez ex-ministros do Meio Ambiente, que fizeram duras críticas ao projeto de lei. Apesar disso, seus poderes mais limitados do que parecem, pois as modificações que o Senado fizer deverão ser aprovadas pela mesma Câmara dos Deputados que aprovou as modificações do Código Florestal. Mais ainda, o veto presidencial deve ser apreciado em sessão conjunta das duas Casas do Parlamento brasileiro, que podem promulgar a lei mesmo assim. Restará aos opositores questionar a conformidade da nova lei perante a Constituição junto ao Supremo Tribunal Federal brasileiro. O fato é que, no novo texto, até agora, os interesses da lavoura arcaica prevalecem sobre os interesses do país e do planeta. Em nome da ‘segurança jurídica para o produtor rural’ atropela-se a Constituição Brasileira e o direito fundamental ao ambiente equilibrado; igno50

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O processo de modificação do Código Florestal brasileiro

ra-se a crise climática global; trata-se uma imensa reserva de valor como lixo; expõe-se o habitante das florestas brasileiras à perda de seu meio de vida, ao êxodo rural e à marginalização nas cidades. Teremos uma lei de florestas que, ao invés de políticas florestais, estabelece regras para a conversão do solo para a agricultura. Enquanto que, em outros países, a conservação das bases de recursos naturais estão acima das divergências político-partidárias, no Brasil ocorre o oposto, com a oposição entre ‘ruralistas’ e ‘ambientalistas’. Aqui, mais de trinta anos depois do Relatório Brundtland, ainda é preciso convencer setores importantes da sociedade de que é possível e é preciso conciliar desenvolvimento econômico com preservação ambiental. A Mata Atlântica era a segunda maior floresta tropical do Brasil, cobrindo toda a faixa litorânea do país, mas as monoculturas, principalmente da cana-de-açúcar e do café, a urbanização e o crescimento da população do litoral, fizeram com que a área original de mais de 1.300.000 km2 fosse reduzida a 50.000 km2, cerca de 7% da mata original. O Cerrado (savana brasileira) tem hoje 34% de sua área original e perde cerca de três milhões de hectares ao ano para pastagens e plantios de soja. A Floresta Amazônica já perdeu 18% de sua área original e, apesar de contida em períodos recentes, sua destruição voltou a aumentar. “A Amazônia é nossa!” bradam muitos brasileiros diante das manifestações estrangeiras em defesa desta floresta. Sim, de fato, é nossa, integra nosso território, nosso domínio e se sujeita às nossas leis. Propor a ‘internacionalização da Amazônia” é tão absurdo quanto seria sugerir que a Normandia ou a Provença saíssem do domínio da França para o domínio da ONU! Mas, para que defendemos tão ferozmente nosso domínio sobre as florestas brasileiras? Para o Brasil fazer delas uma inigualável vantagem comparativa e promover o uso sustentável de suas riquezas, em favor do bem estar dos seus habitantes? Ou apenas para assegurarmos a exclusividade da prerrogativa de destruí-las e assassinar seus habitantes?

Ludmila Caminha Barros

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A sociedade civil: fermento da democracia Cândido Gryzbowski O Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) é parte do extenso, diverso e complexo conjunto de organizações sociais sem fins lucrativos do Brasil (mais de 320 mil, segundo o IBGE) denominado ONGs, nome inventado para denominar atores públicos não governamentais quando da criação da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1945. Entre nós, o nome genérico ONG pegou exatamente quando da maior Conferência das Nações Unidas, a Eco-92, realizada no Brasil. São entidades e movimentos sociais públicos, voltados à causa pública, aos bens comuns, à defesa e promoção de direitos humanos. O Ibase se orgulha de fazer parte da Associação Brasileira das ONGs (Abong), desde a fundação, em 1991, sendo Betinho (Herbert de Souza), à época diretor geral do Ibase, escolhido como seu presidente honorário. O Ibase se autodefine como organização de cidadania ativa e assim considera todas as afiliadas da Abong e a imensa maioria das assim denominadas ONGs brasileiras. Não é minha intenção lembrar aqui as relevantes agendas de direitos e de cidadania levantadas pelo Ibase ao longo de seus 30 anos de história, comemorados em agosto deste ano de 2011, história intimamente ligada à democratização do Brasil. Isto porque é a história coletiva das ONGs que merece um lugar central na reconstrução e aprofundamento da democracia brasileira. Aí entram não só as poucas afiliadas da Abong. A democracia no Brasil deve muito às ações não governamentais das Pastorais Sociais (da Criança, da Terra, Urbana…), às redes e fóruns (economia solidária, catadores de lixo, segurança alimentar, Articulação do Semiárido, Agroecologia, Reforma Urbana…), aos movimentos sociais e suas entidades (Sem Terra, Atingidos por Barragens, Sem Teto Urbanos, Favelados, UNE e entidades de juventude…), às feministas e suas entidades, aos movimentos negros e suas entidades, aos movimentos dos LGBT, às entidades cidadãs de comunicação e iniciativas de inclusão cultural, às Apaes, às Santas Casas, aos movimentos cidadãos como o Ficha Limpa e tantas e tantas outras iniciativas. 52


A sociedade civil: fermento da democracia

Afinal, somos mais de 320 mil! Um grande tecido social, ativo e vibrante, que faz enorme diferença no enfrentamento de questões espinhosas da nossa democratização, sobretudo as múltiplas facetas da desigualdade e exclusão social que ainda nos marcam. Trata-se de uma sociedade civil emergente, com iniciativas de impacto mundial, como o Fórum Social Mundial, contraponto do Brasil emergente como potência econômica e ator geopolítico. Mas, atenção! Todo este conjunto, indistintamente, está sendo criminalizado e confundido propositadamente com um minúsculo conjunto de organizações, também ONGs, que têm sido usadas como canais de desvio de recursos públicos. São organizações criadas ou controladas por políticos, deputados, ministros e altos funcionários públicos, corruptos e corruptores, que se valem da grande falta de um marco legal cidadão para as ONGs e, através de contratos nada transparentes, desviam recursos públicos. Desconhecer os verdadeiros culpados – o nosso corrupto e antidemocrático sistema políticopartidário, o clientelismo e a privatização do bem público que estão incrustados no Estado brasileiro, todas questões no caminho da democratização – e buscar bodes expiatórios no complexo mundo das ONGs brasileiras é tarefa fácil, mas claramente antidemocrática. Considerar todas as ONGs, em sua diversidade e relevante papel cidadão, como sendo criminosas é má-fé e ataque à própria democracia. Aliás, surpreende que no mesmo clima de criminalização generalizada agora se tenta desqualificar o próprio movimento sindical, um outro pilar da sociedade civil, um dos principais artífices da cidadania entre nós. Estamos diante de um perigoso e irresponsável ataque a toda a sociedade civil, locus em que se gestam e crescem as democracias. Inspiro-me num dos maiores teóricos da transformação democrática dos sistemas políticos do século XX, Antônio Gramsci, para lembrar aqui a centralidade das sociedades civis nas democracias. Para Gramsci, as sociedades civis são o próprio berço das democracias. É nelas que se gestam as resistências ao poder e às políticas que dele emanam, se produzem as alternativas e surgem os movimentos transformadores, primeiro como trincheiras diante do poder e depois como ação pública, na praça, que varre institucionalidades e produz um novo Estado de Direito. Foi assim entre nós. Está sendo assim, hoje, no Mundo Árabe. Sorrateiramente, começa a ser na autoritária China. Nas sociedades civis se forma a própria cidadania, não a delegada pelo Estado, mas a cidadania ativa constituinte e instituinte, que forja os sujeitos coletivos ao mesmo tempo que elabora a cultura democráCândido Gryzbowski

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Observatório

tica dos direitos de cidadania, define a institucionalidade, cria e investe de legitimidade os representantes detentores do poder político. O ataque genérico que nos atinge, hoje, no Brasil, o vejo como uma tentativa de deslegitimar conquistas fundamentais da democracia que temos. Pior, se quer impedir que surja mais uma nova e poderosa onda transformadora – como as novas resistências e agendas que começam a pipocar pelo Brasil afora –, cujo impulso só pode vir donde os poderosos não querem, temendo por seus privilégios confundidos com direitos: a multifacetada e sempre surpreendente sociedade civil brasileira. O momento é difícil para a sociedade civil. Parece que após estas décadas de democratização, chegamos a um ponto em que seríamos até dispensáveis, especialmente as ONGs, a acreditar no discurso conservador que domina nossa mídia e contamina o sistema político todo. Enganam-se os que pensam que este clima de denúncias vai intimidar as entidades e movimentos. Vamos usar a adversidade como oportunidade para nos refundar e radicalizar nosso papel como fermento democrático transformador, que faz da cidadania, de todos os direitos, dos bens comuns e da sustentabilidade da vida como as bases do viver coletivo para todas e todos.

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III. Batalha das Ideias


Autores Massimo D’Alema

Dirigente do Partido Democrático, foi primeiro-ministro da Itália entre 1998 e 2000, e ministro de Relações Exteriores do governo Romano Prodi, entre 2006 e 2008.

Michel Zaidan Filho

Historiador, professor da Universidade Federal de Pernambuco.

Lúcio Flávio Pinto

Editor do Jornal Pessoal, de Belém, e autor de Guerra Amazônica.


Que herege era aquele Gramsci liberal1 Massimo D’Alema

Q

uando enfrentamos a grande crise do movimento comunista e a exigência de uma corajosa transformação, Gramsci foi um forte ponto de apoio: sua pesquisa original nos ajudou nos momentos mais difíceis e mais dramáticos de nossa luta. Ele nos permitiu ostentar no socialismo europeu o melhor patrimônio do maior Partido Comunista do ocidente, fez com que fôssemos recebidos como companheiros que, embora vindos de uma história difícil e dramática, tinham algo a trazer à casa comum: algo de original e de útil. A nosso ver, Gramsci foi um grande pensador comunista herético, numa época em que qualquer desvio da ortodoxia soviética custava um preço dramático. Creio que a heresia de Gramsci no movimento comunista seja algo de muito mais radical no tocante à diversidade de avaliação e julgamento do curso que o movimento comunista assumiu a partir da década de 1930. Uma diversidade que, sob certos aspectos, coloca Gramsci numa dimensão própria, distinta tanto da experiência leninista quanto da experiência social-democrata, em aberta polêmica a respeito de alguns pontos que, no curso deste século, se tornarão comuns à cultura de uma e de outra. Em particular, o conceito da função do Estado. Certamente não seria correto transportar a uma época anterior as escolhas e estratégias que a esquerda italiana realizou muitos anos mais tarde. Mas hoje podemos dizer que em Gramsci estavam os instrumentos para que algumas mudanças e certas rupturas pudessem acon1

Resumo de um discurso pronunciado em Cagliari por D’Alema feito para o jornal II Sole-24 Ore.

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Batalha das Ideias

tecer até algum tempo antes. Tínhamos em casa um tesouro de pensamento, de ideias, de antecipações, que podiam ajudar-nos a escolher e, se tivéssemos mais coragem, poderíamos ter escolhido antes. A peculiaridade de Gramsci está naquilo que Mario Telo define como seu paradoxo. Um paradoxo dramaticamente vinculado mesmo a sua condição humana, àquela condição de isolamento do movimento coletivo e da luta política, durante o seu confinamento no cárcere de Turi. Sozinho em sua cela – enquanto, no início da década de 1930, a Europa era dominada pelo advento dos grandes totalitarismos e por uma crise, vivida pelo movimento comunista como o anúncio do fim do capitalismo – Gramsci entende não apenas que essa interpretação da crise estava equivocada, mas também que estava surgindo uma nova sociedade e uma nova hegemonia – a do fordismo e do americanismo – e o destino da Europa teria sido o de entrar na esfera hegemônica da nova forma, expansiva, de capitalismo. Em contraposição com todo o movimento comunista, não apenas nas suas correntes mais ortodoxas e estalinistas, mas também nas suas versões mais abertas, Gramsci lê a crise como o prelúdio de uma grande e extraordinária transformação em escala mundial. Ele está convicto de que a racionalização americana representará o horizonte de referência para o desenvolvimento histórico da Itália e da Europa. Isso tornou-se um ponto central da reflexão sobre a atualidade de Gramsci porque é um aspecto rico de sugestões, mesmo do ponto de vista humano, porque descreve o mundo moral de Gramsci e sua extraordinária capacidade de olhar além do seu tempo. Graças a essas suas qualidades, Gramsci consegue transmitir ainda hoje uma grande emoção. Na análise de Gramsci, existe uma modernidade, uma capacidade de diálogo com nosso tempo que parecem verdadeiramente extraordinárias. O cosmopolitismo econômico e a grande transformação capitalista em escala mundial são vistos por Gramsci como o verdadeiro teatro – muito além do Estado nacional – no qual o movimento operário deve travar a “guerra de posições” e suas lutas pela hegemonia. Ao analisar a “grande transformação capitalista”, Gramsci coloca-se ao lado da modernidade. Encara-a como um novo campo de possibilidades. Hoje, um dos grandes problemas da esquerda é exatamente este: certa resistência diante da nova “grande transformação”. Vejamos o caso das concepções estatizantes e corporativas, tanto em nosso país como em outros grandes países europeus, em contraposição com a ideia liberal do Estado ligada à inovação. Gramsci não faz parte daquela esquerda impregnada de espírito conservador, em confronto com os que consideram a expansão das funções estatais como uma garantia de igualdade, (visão própria do comunismo e da democracia 58

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Que herege era aquele Gramsci liberal

social, em formas políticas profundamente diversas, mas, do ponto de vista cultural, substancialmente semelhantes), ele se coloca numa perspectiva diferente. Em Americanismo e Fordismo existem páginas de extraordinário interesse. A americanização – diz ele – exige um determinado ambiente, uma determinada estrutura social e um determinado tipo de Estado. O Estado é liberal, “não apenas no sentido do liberalismo aduaneiro e da efetiva liberdade política, mas no sentido mais fundamental da livre iniciativa e do individualismo econômico, que, com meios próprios, como sociedade civil”, pelo mesmo desenvolvimento histórico, chega ao regime da concentração industrial e do monopólio. O desaparecimento do tipo semifeudal do rentista é, na Itália, uma das condições da revolução industrial, não uma consequência. Há – em Americanismo e Fordismo – um capítulo que considero sugestivo até por sua impressionante contemporaneidade, intitulado Ações, Obrigações e Títulos do Estado. Aqui Gramsci coloca o seguinte problema: “Quando a poupança depende mais da garantia pública do que dos riscos do mercado, transformase em parasitismo e comprime o lucro industrial e o trabalho”. E é um comunista da década de 1930 que escreve tais coisas! Gramsci encara o problema da penetração do Estado nas atividades industriais, destacando as vantagens disso – o Estado pode investir nos setores mais arriscados, com utilidades prorrogadas, portanto mais inovadoras –, mas, ao mesmo tempo, afirma que esse processo não está absolutamente isento de perigos, porque determina o agravamento dos regimes aduaneiros e das tendências autárquicas, que se opõem à globalização e induzem ao dumping, ao resgate das grandes empresas sob ameaça ou em perigo de falência – fenômenos todos que Gramsci condena. Referindo-se depois, à guisa de exemplo, a algumas características da Itália, Gramsci afirma: “Uma outra fonte de parasitismo absoluto sempre foi a administração do Estado e ainda hoje acontece que homens relativamente jovens, com ótima saúde, no pleno vigor das forças físicas e intelectuais, depois de 25 anos a serviço do Estado, não se dedicam mais à mesma atividade produtiva, mas vegetam com aposentadorias mais ou menos satisfatórias”. Essa forma de assistencialismo é considerada por Gramsci como um fato corruptivo. Do comunismo, ele retirava o senso do processo histórico e do interesse coletivo, mas, por outro lado, estava ligado a uma cultura liberal e até liberalista, que exalta o indivíduo e sua função: o famoso “otimismo da vontade”, que encarava o profissionalismo, o trabalho, a capacidade de competir como valores positivos, como a moda de um progresso social. Nem estatismo, portanto, nem igualitarismo nivelador e parasitário. Massimo D’Alema

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Batalha das Ideias

Nós vivemos a época da crise do modelo fordista que Gramsci analisou no seu nascedouro, no momento em que assentava as bases de uma nova hegemonia. Ao mesmo tempo, vivemos numa época em que o processo de unificação do mundo parece caminhar também sobre a onda de uma nova grande revolução industrial técnica, científica, com um ritmo e uma força desconhecidas no tempo de Gramsci. A globalização da economia dos mercados, da produção, a livre circulação dos capitais com os efeitos confusos que produz: a crise dos Estados nacionais e o prelúdio da tentativa de encontrar uma resposta para essa crise pelo surgimento de instituições regionais, supranacionais. Uma das mais importantes é a União Monetária Europeia: a Europa unida com seus instrumentos. Estamos imersos nessa fase histórica e diante de nós – antes de tudo, diante da esquerda – se coloca uma grande pergunta cultural: devemos ler também essa passagem histórica com as lentes de Gramsci? Se pensarmos essa grande mudança em termos dogmáticos, surge diante de nós uma situação sem saída: o fim do fordismo é o fim geral do socialismo, seja na forma do movimento comunista, seja na forma do Welfare e do reformismo nacional. É o advento de um pensamento único, de um liberalismo absoluto, alheio a qualquer ordenamento político. Essa visão é sustentada não apenas pelos profetas da nova direita, mas também, no campo da esquerda, existem aqueles segundo os quais o fim do fordismo assinala inexoravelmente o declínio da esquerda, de suas ideias, de seus valores e, consequentemente, não restaria outra opção senão a de resistir à transformação, tornando-se assim uma força conservadora, estacionária, destinada com o tempo a ceder diante das razões prepotentes da inovação e da modernidade. Mas se, ao invés, lermos a “grande transformação” à maneira de Gramsci, com os instrumentos conceituais que ele nos deixou, veremos esta fase de mudanças como uma fase cujo desfecho está ligado à ação das forças históricas em campo. A palavra-chave é “cultura”. Em vez de defender de maneira rígida as velhas formas de proteção social ligadas ao Welfare State nacional, uma esquerda moderna deve pôr em discussão o problema de um Welfare, que tenha no centro a cultura, a formação, a educação permanente dos indivíduos: condições para que o processo inovador não empurre as pessoas para as margens, mas ofereça-lhes a possibilidade de viver melhor e de realizar plenamente a própria personalidade. Creio que Gramsci nos ajuda a ler, usando essa chave interpretativa, as transformações do mundo de hoje e podemos entender porque nesse momento ele não é apenas uma glória nacional, mas um pensador sempre mais presente no processo de revisão da esquerda em escala mundial. 60

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Norberto Bobbio, os comunistas e a democracia procedimental Michel Zaidan Filho

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recepção da obra de Norberto Bobbio no Brasil se deu basicamente na década de 1980, a partir da chamada diáspora comunista. Após uma dura e prolongada luta interna, a ala reformadora do Partido Comunista Brasileiro (PCB) – basicamente integrada por militantes do comitê estadual de São Paulo – abandonou o partido, e seus militantes se autoproclamaram comunistas da sociedade civil ou comunistas sem partido. O seu órgão foi a revista Presença, uma publicação pluralista que reunia intelectuais e militantes comunistas do país inteiro, que compartilhavam da tese, defendida por Carlos Nelson Coutinho, da democracia como valor universal. (COUTINHO, 1980) Desiludido com os rumos tomados pelo PCB e sua relação com a conjuntura brasileira dos anos 1980, um de seus mais ilustres membros, Marco Aurélio Nogueira, então professor da Unesp, resolve fazer um pós-doutorado na Itália, no Instituto Gramsci. De volta ao Brasil, traz na bagagem o livro de Bobbio, O futuro da democracia (1985a), para traduzi-lo em português, pela Editora Paz e Terra. Começaria aí a história da recepção do pensamento político de Bobbio no Brasil, na condição de um autor que fazia a defesa radical da democracia representativa. O contexto dessa recepção era naturalmente a necessidade de consolidar um pensamento na esquerda comunista a favor da estratégia democrática radical para o socialismo, derrotada pela máquina do PCB na chamada luta em duas frentes (primeiro contra os prestistas, segundo contra os eurocomunistas, como eram conhecidos os militantes daquela concepção). Norberto Bobbio era convidado a convalidar uma tendência da esquerda comunista no Brasil, de declarada inspiração gramsciana e berlingueriana. Nessa época, era comum ver livros italianos nas mãos desses militantes e a palavra de ordem do novo dicionário da esquerda era aggiornamento. O desfecho dessa história já é bastante conhecido: o PCB se dissolveu em 1992, os seus militantes se dispersaram, e os reformadores 61


Batalha das Ideias

comunistas foram para a universidade ou trocaram de identidade partidária. Voltaremos a esse ponto, no final desse artigo. Bobbio e os marxistas italianos O debate de Norberto Bobbio com os comunistas italianos tinha outro sentido, no contexto da República italiana: através da estratégia do “compromisso histórico” com a democracia cristã e o partido socialista, os marxistas tinham efetivamente a chance de integrar o governo na Itália (situação, aliás, que de fato se concretizou nos anos 1990 com a conhecida “coligação do ramo da oliveira”, Ulivo, na conjuntura da unificação europeia e da crise política italiana). Esta circunstância levou Bobbio a desafiar os comunistas a se pronunciarem sobre a democracia representativa como o terreno por excelência para a conquista do socialismo. Os termos dessa polêmica amigável estão registrados em alguns livros, também traduzidos para o português, como Marxismo e Estado (1982) e Qual socialismo? (1985b). Avaliando retrospectivamente os dois lados da controvérsia, é possível dizer que Norberto Bobbio se saiu melhor do que seus interlocutores do PCI. A tese fundamental de Bobbio é que não havia uma doutrina marxista do Estado e muito menos uma teoria das instituições ou formas de governo (BOBBIO, 1985b, p. 37-54). Essa clamorosa lacuna levava o marxismo a defender uma teoria negativa do Estado, pensado como um mal necessário, que deveria se extinguir com o fim das classes sociais. A própria expressão “ditadura do proletariado” era uma proposição algébrica, cujo conteúdo social era o governo da classe operária sobre a burguesia e seus aliados. Segundo Bobbio, de nada adiantava querer extrair de umas tantas frases de Marx, em Bad Kreuznach ou no texto A guerra civil em França, indicações precisas sobre o Estado socialista, porque o próprio Marx deixara inacabado o plano para análise do Estado moderno (1985b, p. 21-35).1 Conforme o autor italiano, o grande mérito de Marx era unir o realismo político a uma teoria revolucionária da sociedade e da história. Dizia ainda Bobbio que onde havia democracia não havia socialismo e onde havia socialismo não havia democracia. Era preciso compatibilizar democracia e socialismo (1985b, p. 93-111). O passo seguinte dessa recepção foi naturalmente o sentido do livro: O futuro da democracia (1985a). Livro que deve ser lido como uma teoria minimalista da democracia representativa, ou uma crítica da razão de

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BOBBIO, N. “Democracia socialista? Sobre a inexistência de uma ciência política marxista”. In: Qual Socialismo?, 1985b. Política Democrática • Nº 31


Norberto Bobbio, os comunistas e a democracia procedimental

mocrática. O desencanto de Bobbio com as concepções substantivas da democracia, para não dizer com as experiências socialistas realmente existentes, é patente nesse texto. Escrevendo sob a influência de Hans Kelsen e dos teóricos do elitismo democrático, chega à conclusão de que só é possível defender uma concepção procedimental, técnica de democracia, como condição de sua aceitação pelos eleitores. Definido o número determinado de regras, seria possível dizer se há ou não democracia nesta ou naquela sociedade, independentemente das ideias de bom, justo, verdadeiro etc. O positivismo do autor conduzia-o a rejeitar juízos de valor sobre a democracia, aceitando o princípio kelseniano da neutralidade da ciência e do direito como sistema de ciência positiva. Em relação ao elitismo democrático, Bobbio relaciona uma série de “expectativas não realizadas pela democracia”, bem como o que ele denomina de “paradoxos do regime democrático” (BOBBIO, 1985a, p. 29-52), e acaba por defender a ideia de que este regime é caracterizado por uma rotatividade de oligarquias políticas no poder, através da autorização política periódica do eleitor. E aqui retornamos ao ponto inicial desse texto. Quando Norberto Bobbio faleceu em 9 de janeiro de 2004, no dia seguinte os comunistas italianos lhe dedicaram uma generosa manchete no jornal L´Unità, que dizia: “Bobbio: l´Italia migliore” e colocaram um encarte com manchetes que o chamavam de “maestro” e reconheciam que ele “tinha razão” em relação ao comunismo (“E alla fine, gli abbiamo dato ragione”) (L’Unità, 2004, p. 6-9).2 E os nossos comunistas, que o introduziram no contexto da disputa interna do PCB? Só o silêncio e a indiferença. Bobbio tornou-se, no Brasil, o principal autor do chamado liberal-socialismo do governo tucano (do PSDB), usado para convalidar a reforma do Estado, a privatização de ativos públicos e a transferência das políticas sociais para o mercado, a família e as fundações filantrópicas, sob o nome de parcerias público-privadas. Mais uma vez, o nosso pensador foi instrumentalizado para a defesa de um plano de redução do Estado, num contexto bem diferente das controvérsias e debates italianos. Talvez o acento irônico e melancólico dessa recepção possa ser representado pela declaração do nosso então chanceler Celso Lafer de que as opiniões de Bobbio seriam o melhor antídoto contra o terrorismo e o fanatismo da nossa época, feitas, justamente, no mo2

Em 1989, quando o jornal ainda era o órgão oficial do Partido Comunista Italiano, por ocasião do octogésimo aniversário de Bobbio, colocou em primeira página um artigo de um alto dirigente do PCI, Aldo Tortorella, intitulado significativamente “Grazie Bobbio per la coerenza delle tue idee”.

Michel Zaidan Filho

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Batalha das Ideias

mento em que as tropas americanas desembarcavam no Oriente Médio para derrotar Saddam Hussein.3 Conclusão Como disse um estudioso da obra do pensador italiano (ASSIS BRANDÃO, 1990), ao longo de sua extensa e profícua carreira política e intelectual Bobbio foi se tornando um autor mais liberal e menos democrata, mais democrata e menos socialista, mais procedimentalista e menos participacionista, mais cético e realista e menos utópico e sonhador. É claro que esta evolução tem a ver com o desencanto de Bobbio com o cenário político italiano, marcado por denúncias de corrupção e o terrorismo das Brigadas Vermelhas. É possível que o desenrolar dos acontecimentos do Leste europeu também tenha contribuído para o ceticismo de Bobbio em relação ao socialismo estatal. O participacionismo, da época da democracia ética, vai sendo superado pelo elitismo político, de origem kelseniana e schumpeteriana, mais ainda reforçado pela ideia de que o excesso de democracia é prejudicial à democracia e que as massas não estão preparadas para tomar decisões complexas e de repercussão social. 
No Brasil, não foi muito diferente. Os pós-comunistas que o trouxeram da Itália e o difundiram entre nós emigraram para o PSDB ou PPS, partidos de centro, e tornaram Bobbio uma leitura obrigatória para a agenda americana da reforma do Estado. Bibliografia BOBBIO, Norberto. Marxismo e Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1982. ______. O futuro da democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985a. ______. Qual socialismo? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985b. BRANDÃO, Assis. Um estudo sobre o pensamento de Norberto Bobbio. Tese de Doutorado apresentada à Universidade Federal de Minas Gerais. 1990. COUTINHO, Carlos Nelson. A democracia como valor universal. São Paulo: Lech, 1980. L’UNITÀ. Bobbio, l´Italia Migliore, 10/01/2004. ______. Grazie Bobbio per la coerenza delle tue idee, 18/10/1989. 3

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A declaração foi feita na exposição do ex-chanceler no Auditório de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Política Democrática • Nº 31


A grave responsabilidade pela redivisão do Pará Lúcio Flávio Pinto

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Brasil ainda não se deu conta de que um novo capítulo da sua história está se oferecendo para ser escrito. Pela primeira vez a feição geográfica do país não dependerá de um ato de império do poder central. Ao invés disso, um plebiscito inédito será realizado, graças à regra estabelecida pela Constituição de 1988. Os eleitores votarão para definir o novo perfil do Pará, a segunda maior unidade da Federação. A consulta plebiscitária acontecerá no dia 11 de dezembro, mas nem a opinião pública se interessou até agora pelo tema, certamente por desconhecer a sua importância, nem as regras básicas estão definidas. O Tribunal Superior Eleitoral, que já baixara suas resoluções, terá que decidir se aproveita ou não as sugestões apresentadas em uma audiência pública, realizada em Brasília. O que está em causa é um território de 1,2 milhão de quilômetros quadrados, onde vivem mais de 7,5 milhões de pessoas. Se o Pará atual constituísse um país independente, seria o 25º mais extenso do mundo. No continente, só a Argentina, o próprio Brasil e o Peru o superariam. Seria um pouco maior do que a Colômbia. Pelo critério populacional, ficaria na 97ª posição mundial. A primeira ordem de grandeza que impressiona resulta do contraste entre extensão física e população. É o critério que mais pesa nas decisões tomadas pelo poder central em relação à Amazônia. Os estrategistas de Brasília acham que a dispersão demográfica é um elemento de fragilidade da região diante da cobiça internacional que provoca. Pouca gente espalhada por um espaço tão grande também dificultaria o aproveitamento das riquezas naturais da Amazônia e sua integração econômica ao país, expondo-a ao risco de interesses externos e a uma eventual usurpação por potência mundial, como os Estados Unidos. Seria necessário encurtar o espaço e adensar a presença do pioneiro nacional (o colono e o colonizador) para garantir a soberania e a segurança nacionais.

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Batalha das Ideias

Este seria o principal fundamento para dividir o Pará. Seu atual território passaria a abrigar mais dois estados: Tapajós, a oeste, e Carajás, ao sul. O Pará remanescente seria o menor territorialmente dentre os três, porém o maior em população. O novo Pará cairia da 2ª para a 12ª posição no ranking nacional por extensão, ficando quase do mesmo tamanho de Roraima e Rondônia, na própria Amazônia, e de São Paulo, a mais habitada das unidades federativas brasileiras, no conjunto nacional. A queda seria menos acentuada do ponto de vista demográfico: sairia do 9º para o 12º lugar entre os estados mais populosos. O possível estado do Tapajós, com 722 mil km2, seria o 3º maior do Brasil (superado apenas pelo Amazonas, com 1,5 milhão de km2, e Mato Grosso, com 903 mil, mas estaria no rabo da fila demográfica: teria mais habitantes apenas do que Acre, Amapá e Roraima, todos na Amazônia mesmo (os dois últimos transformados em estados pela Constituição de 1988). Já Carajás, com 285 mil km2, seria o 8º maior do país em extensão e estaria apenas uma posição acima do Tapajós em população. Mas não é só – nem principalmente – esse conjunto de grandezas que estará em jogo no plebiscito. O território que pode vir a abrigar esses três eventuais estados é o maior exportador mundial de minério de ferro, o maior produtor de alumina, o 3º maior produtor internacional de bauxita, significativo produtor de caulim (o de melhor qualidade do mercado para papéis especiais) de alumínio, e possui crescente participação em cobre e níquel. Ainda tem florestas e espaço territorial para ser um grande produtor agropecuário e madeireiro, à custa de continuar a ser líder em desmatamento. Só a pauta de exportação mineral é mais diversificada do que a da África do Sul, cuja atividade econômica é muito mais antiga do que a do Pará. Sem falar em várias outras riquezas naturais, reais ou potenciais, que fazem dessa parte do Brasil uma fonte de commodities para o mundo, que, na crise atual, verá a Amazônia como fronteira ao seu alcance. Com a exploração desses recursos, o Pará se tornou o 5º maior produtor de energia (e o 3º maior exportador de energia bruta) do Brasil, o 2º maior minerador nacional, o 5º maior exportador geral e o 2º que mais divisas fornece para o país. De cada 10 dólares recolhidos pelo Banco Central, 70 centavos são provenientes do Pará. Em compensação, ele é o 16º em desenvolvimento humano e o 21º em PIB/per capita (a riqueza dividida pela população). Está do lado do 3º Brasil, o mais pobre, na companhia de seis Estados nordestinos 66

Política Democrática • Nº 31


A grave responsabilidade pela redivisão do Pará

A nova configuração física dessa vasta área de 1,2 milhão de km2 vai mudar esse paradoxo, que submete o estado, por decisão tomada de fora para dentro, e de cima para baixo, a um processo de desenvolvimento semelhante ao do rabo de cavalo: quanto mais cresce, mais vai para baixo? Com base nessa realidade, é impossível não concluir que o Pará segue um modelo colonial. Não sendo o detentor do poder decisório, a utilização das suas riquezas beneficia mais a quem compra do que a quem produz. Os efeitos multiplicadores ocorrem fora do seu território, assuma ele sua configuração atual ou venha a ser retalhado em mais duas partes. Essa modificação não atingirá o processo decisório. Se realmente o Brasil considera a Amazônia a sua grande fronteira, a ser utilizada para poder crescer mais e com maior rapidez, o debate sobre a redivisão do Pará devia ser item importante da agenda nacional. O jurista paulista Dalmo de Abreu Dallari, com o endosso do senador – também paulista – Eduardo Suplicy, interpelou o TSE para que o plebiscito, ao invés de ser realizado apenas junto à população do Pará, se estenda a todo país. O pedido não tem fundamento legal. A Constituição, ao determinar a consulta específica à “população diretamente interessada”, eliminou a audiência generalizada. Do contrário, não precisaria fazer a restrição. Mas se não pode votar no plebiscito, o brasileiro pode – e deve – se manifestar sobre a causa. Pela primeira vez, se o Brasil mudar de feição, terá sido pelo voto do cidadão e não por ordem de Brasília. É uma responsabilidade e tanto. Os políticos, aos quais o TSE conferiu a exclusividade de iniciativa na organização das frentes que vão tentar influir sobre o eleitor no plebiscito, já se mostraram aquém dessa responsabilidade. Foi através do voto dos líderes de partido, coagidos pela contingência da votação de matérias urgentes pendentes na pauta do Congresso Nacional, e não através de discussão e votação em plenário, que o plebiscito foi decidido. Decisão grave demais para ficar restrita a esse ambiente fechado – e, frequentemente, viciado.

Lúcio Flávio Pinto

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IV. Quest천es do Desenvolvimento


Autores Demetrio Carneiro da Cunha Oliveira

Economista, ex-professor da Universidade de Brasília, especialista e pesquisador em políticas públicas, coordenador do blog Alternativa Brasil.

Wanderley de Souza

Professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), diretor de Programas do Inmetro, é membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Nacional de Medicina.

Amilcar Baiardi

Doutor em Economia pela Unicamp, professor titular da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Foi professor visitante das universidades de Aarhus, na Dinamarca, e Bolonha, na Itália.


Nacionalismo e desenvolvimento: o Brasil nem tão maior Demetrio Carneiro da Cunha Oliveira

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ode ser verdadeiro afirmar que o desenvolvimento não é para todos, dentro dos moldes do sistema-mundo capitalista (WALLERSTEIN, 2007), ou que a democracia não leva necessariamente ao crescimento econômico (CHANG, 2007), mas é igualmente verdadeiro afirmar que as oportunidades de desenvolvimento só se viabilizam dentro de determinadas condições históricas e institucionais bem definidas, demandando necessidades igualmente bem definidas, e que o desenvolvimento precisa ser visto como uma totalidade composta de diferentes momentos e que a democracia enquanto processo democratizante das instituições é parte insubstituível e inalienável do processo mais geral de desenvolvimento. Do contrário, o que poderemos ter certamente não será desenvolvimento, pelo menos não dentro dessas premissas. Nacionalismo nesse mundo globalizado é um assunto complexo e envolve debater muitas contradições. Mereceria, na realidade, um debate específico e deveria ser um dos capítulos importantes da Agenda de uma Economia Política do Desenvolvimento, se a discutíssemos a sério. Mas, quando se trata de projeto de poder, eventualmente é mais fácil manter as aparências e usar o discurso nacionalista, de forma populista, para sustentar o projeto. Faz muito sucesso em países como o nosso no qual a cultura desenvolvimentista é tão arraigada. Em se tratando de desenvolvimento e interesses nacionais, ser nacionalista não seria bem o discurso midiático, a satisfação para a mídia, mas sim uma política consistente de industrialização, por exem71


Questões do Desenvolvimento

plo. Não foi o que vimos na recente decisão governamental sobre o IPI, com relação à propalada defesa da suposta indústria nacional de automóveis. Em nome de um projeto regional, Mercosul, que abriga as montadoras tradicionais do Centro desenvolvido – EUA, França, Alemanha, Japão e Itália – o governo brasileiro barrou o ingresso de veículos das montadoras da China, da Coreia e certamente os projetos da Índia nesta área, a se crer pelo que andou sendo veiculado na mídia, tempos atrás. Nisto, o ministro Guido Mantega está certo, independentemente de crise no Centro, nosso mercado de consumo, somado à nossa cultura automobilística e aos estímulos de crédito farto,1 acabam produzindo fortes incentivos para que outras empresas se interessem pelo potencial de nosso mercado interno. Enfim, para supostamente manter empregos, nos posicionamos num embate entre montadoras do Centro e da Semi-Periferia. A lógica governamental é incapaz de pensar nos termos de reduzir impostos internos para aumentar a competitividade das “nossas” regionais, no hoje suculento mercado interno brasileiro, daí a solução de aumentar os impostos a ser pagos pelo inimigo. Certamente o governo irá ganhar mais, muito mais do que o consumidor brasileiro, que irá perder. Historicamente, toda defesa do mercado interno acaba como custo adicional no bolso dele. Brasileiros pagarão pela conservação dos empregos de brasileiros. O custo adicional pode ser visto como um tributo cobrado para a manutenção de empregos. Aliás, há um estudo mostrando, com muita competência, que nem mesmo o setor de autopeças, tão incensado como lugar de geração de emprego e das nacionais, é completamente nacional. Atualmente, a maior parte do segmento já está sob controle direto ou indireto das montadoras e/ou suas associadas no Centro. (TORRES; CAIRO, 2011) Há uma enorme coerência nisso tudo, se olharmos de uma perspectiva global. Do ponto de vista do capital, faz todo sentido produzir aqui o que será consumido aqui. A parte do leão, o que realmente dá o lucro em escala, a tecnologia é remunerada na venda do produto e esse lucro segue para as matrizes do Centro. A política de transferência das cadeias produtivas do automóvel primeiro buscou proximidade das fontes de matéria-prima e da mão de obra barata da Periferia para ganhar o melhor dos dois mundos e vender, com mais lucro, esses veículos no Centro. Eram carros montados, com peças produzidas na Periferia, e vendidos aos consumidores do Centro. Antes da crise e 1

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O farto, no caso, tem forte conexão com o modelo geral onde são as taxas de juros altas que viabilizam generosos seguros ou mesmo ganhos tão altos no financiamento que amortecem a percepção de risco. No caso específico do mercado de automóveis as taxas de juros zero apenas ocultam os juros já embutidos no preço final. Política Democrática • Nº 31


Nacionalismo e desenvolvimento: o Brasil nem tão maior

agora a crise, que confirmou a tendência, a necessidade de expansão e o crescimento das economias da Semi-Periferia, trouxe uma nova dimensão e o mercado interno brasileiro é a bola da vez, frente ao mercado interno de, agora, baixo crescimento, dos países do Centro. A produção de automóveis no Brasil e na Argentina, para venda no mercado interno brasileiro, passa a ser relevante para o capital.2 Todos os discursos governamentais são apenas discursos que ocultam o fato de uma política de industrialização subordinada. Não haver real preocupação com um projeto de implementação de ciência e tecnologia nacionais, não haver preocupação com propostas de financiamento de longo prazo que não sejam as estatais, portanto controladas, não é mera coincidência. Tem fortes correspondências com os laços de relacionamento e poder de nosso capitalismo de Estado.3 Quem mostrou esses laços, por meio não de teorias ou discursos abstratos fundados em lógicas de mais de cem anos atrás, foi Sérgio Lazzarini4 no livro Capitalismo de Laços.5 Fundamental perceber que há um tipo específico de capitalismo brasileiro e essas relações condicionam políticas públicas de uma forma muito clara. No quesito de energias alternativas, o recém promovido 12º Leilão de Energia Nova/A-3 pode ser um belo exemplo de como esses laços condicionam as coisas e acabam formatando “como” se dão as políticas públicas. Na Energia Eólica, de 44 projetos disputados, 47% foram ganhos pela Eletrosul e 20% pela Renova. Muito bem. A Eletrosul é uma subsidiária da estatal Eletrobras. A Renova, por sua vez, acaba de incorporar a participação da Light, que é subsidiária da Cemig. De qualquer forma, embora tenha participação do banco espanhol Santander, os outros participantes da Renova são o Fundo InfraBrasil e o FIP Caixa. O Fundo InfraBrasil, por sua vez, lançado por Dilma em 2006, na Fiesp, tem cerca de R$1 bi. Desse valor, a maior parte – R$613 mi – 2

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Com vistas a uma visão geral desse processo Centro/Semi-Periferia ver BRUSSI, 2011. Com relação à política de industrialização, comentários nossos em: <http://alterbrasil.blogspot.com/2011/09/e-uma-nova-economia-politica-do.htm>; <http://alterbrasil.blogspot.com/2011/09/dilemas-da-insdustrializacao-dependente.html>; <http://alterbrasil.blogspot.com/2011/09/ciencia-tecnologia-inovacoes-e-o-fazer.html>. Entrevista disponível em: <http://conhecimento.insper.edu.br/destaque/2011/01/21/leia-entrevista-comprof-sergio-lazzarini-sobre-seu-novo-livro-capitalismo-de-lacos/>. Há também vídeos disponíveis em: <http://www.youtube.com/watch?v=MonMTwQFC4>; <http://www.youtube.com/watch?v=um-Kmd-aIy0&feature=related>. LAZZARINI, Sérgio G. Campus/Elsevier, 2010.

Demetrio Carneiro da Cunha Oliveira

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Questões do Desenvolvimento

vem do Funcef e da Petros, e R$287 mi são do BNDES. A gestão do fundo é do Hong Kong, ABN-Amro. Anotamos que os Fundos de Pensão são controlados pelos mesmos sindicatos que aplaudiram a medida de aumentar o IPI na “defesa dos empregos brasileiros”. Contudo, nem a Eletrosul, nem a Renova são fabricantes dos equipamentos. Ambas irão instalar o equipamento e organizar a conexão com o sistema nacional. Quem fabrica os geradores eólicos, a parte do leão, são a alemã Siemens, a americana GM e a “argentina” Impsa. Evidentemente são indústrias “nacionais”, já que Siemens e GM fabricam aqui no país e a Impsa está protegida pelos acordos do Mercosul. Aliás, as três já reclamaram da concorrência de outros equipamentos estrangeiros e já disseram que estão no seu menor preço possível. É de se imaginar que vá aparecer um outro ato de aumento de IPI contra os invasores. Enfim, uma perfeita divisão de trabalho entre o capital público, via fundos de pensão e BNDES, e o capital internacional. Evidentemente, não se trata de recuperar os anacrônicos discursos usados de forma enganosa por esse governo ou por segmentos totalmente alienados e superados historicamente da esquerda mais radical. O Brasil é país de Semi-Periferia e como tal tem seu papel na divisão internacional de trabalho. Há uma forte correspondência entre o fato de sermos exportadores de commodities, consumidores de tecnologia do Centro e a estrutura de poder tanto na Coalizão Vencedora, na política, como os laços que a ligam com o Poder Real. Não se trata do imperialismo diabólico, mas de uma lógica de integração entre o poder local, brasileiro, e o poder em escala mundial. Do ponto de vista estritamente brasileiro, falta ainda uma clara percepção prática sobre o papel do capital social e da produção de ciência e tecnologia nacionais. Não se trata de um nacionalismo retórico, como o governamental. Trata-se de perceber que desenvolvimento tem conexão com a produção de inovações e que as inovações têm conexão com a produção de ciência e tecnologia próprias e que nada disso funciona se não houver fortes investimentos do Estado, das empresas, que vão fazendo a sua parte, e da sociedade, em capital humano. O grande problema com a atual política industrial é que ela só mira no emprego e na renda do emprego. Nesse sentido, é claro que mesmo essa aliança é melhor do que coisa alguma, mas mirar em emprego e renda nesse formato é mirar no crescimento dependente. Dependente porque a tecnologia não é nacional. Ela está submetida aos interesses produzidos fora do país. Não é por isso que mantivemos e ainda mantemos as nossas “carroças”? Nossas carroças não 74

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Nacionalismo e desenvolvimento: o Brasil nem tão maior

estavam ligadas ao interesse de usar aqui as tecnologias vencidas pela concorrência no Centro? Muito ao contrário do que imagina o nacional-desenvolvimentismo dominante nos seus delírios sobre a política econômica não vai haver despesa de governo ou corte de juros que traga o desenvolvimento, se o modelo não mudar. É, o pato somos todos nós, mas principalmente são aqueles que imaginam estar fazendo ou defendendo uma coisa e estão fazendo e defendendo justamente o contrário. Conclusão ou quem quer sair de sua zona de conforto Enfim, há uma última questão que acaba sendo a chave de todo o debate atual: quem realmente estará disposto a sair de sua zona de conforto e correr riscos? As elites dominantes dificilmente farão esse movimento, a não ser que se sintam, como se sentiram na transição entre a ditadura e a redemocratização, que é melhor perder anéis que dedos. Então, elas são demandadas e não realizam movimentos que não sejam estritamente necessários. Os amplos setores da política e do sindicalismo que acabaram cooptados e compõem esse novíssimo, historicamente falando e nos termos do Brasil, desenho de elite dominante, dificilmente colocarão em risco suas situações atuais. Até porque são incapazes de olhar além do horizonte, geralmente o foco é mais abaixo: seus umbigos. A não ser, claro, quando se trata de justificar a quebra das políticas de estabilidade. As “oposições”, em parte, assumem uma concordância discreta e envergonhada com o que vem ocorrendo, devido ao fundo ideológico comum e parecem bem satisfeitas com seu “naco” de poder, não estando muito dispostas a buscar o realmente novo e correr riscos que possam mudar as relações de poder nas estruturas partidárias. Gostaríamos muito que esse romper com zonas de conforto pudesse ser algo que viesse das redes, como a Primavera Árabe, mas, infelizmente, quando falamos de desenvolvimento, a primeira questão é como romper com 70 anos de cultura desenvolvimentista. São diversas gerações de pensamento que foram se entrelaçando e se sequenciando sem se darem conta de que o século mudou e acabam buscando glórias, plena autonomia nacional, por exemplo, que jamais obterão por não saberem distinguir o mero discurso da prática transformadora concreta. Ou talvez até mesmo tenham uma certa diDemetrio Carneiro da Cunha Oliveira

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Questões do Desenvolvimento

ficuldade de definir se existe essa plena autonomia nacional, não devido à globalização, mas devido ao fato de que o Sistema-Mundo desse capitalismo dominante é, antes de tudo, um sistema em que as peças se integram perfeitamente, gostemos ou não. Referências BRUSSI, A. J. E. Recorrência e evolução no capitalismo mundial – os ciclos de acumulação de Giovanni Arrighi. Revista Brasileira de Ciência Política, no 5, jan./jul. 2011. Disponível em: <http://www. rbcp.unb.br/artigo_html.php?id=83>. CHANG, H. J. A Hipocrisia Econômica dos Desenvolvidos. Revista Getúlio, jan./2007. TORRES R. L.; CAIRO S. A. F. O mito da industrialização como desenvolvimento: o comando do excedente na cadeia mercantil da indústria automobilística brasileira. V COLÓQUIO BRASILEIRO EM ECONOMIA POLÍTICA DOS SISTEMAS-MUNDO. Campinas, ago./2011. Disponível em: <http://www.gpepsm.ufsc.br/html/ arquivos/11TorresRLCairoS_2011.pdf>. WALLERSTEIN, I. Precipitate Decline – The Advent of Multipolarity. Harvard International Review, spring/2007. Tradução livre disponível em: <http://alterbrasil.blogspot.com/2011/10/wallerstein-declinioacentuado-o.html>. Original disponível em: <http://hir.harvard. edu/a-tilted-balance/precipitate-decline>.

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Raízes do atraso brasileiro Wanderley de Souza

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em havido uma cobrança, cada vez mais constante, a respeito da grande defasagem existente entre a posição do Brasil no ranking mundial dos produtores de novos conhecimentos e sua capacidade de gerar patentes. Isso porque o Brasil ocupa a 13ª posição mundial na produção de conhecimento, enquanto se encontra na 47a posição dos indicadores de capacidade de inovação, segundo o último levantamento do Insead, uma das principais escolas de negócios da Europa, em parceria com a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (Wipo, da sigla em inglês), agência vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU). Enquanto o Brasil depositou 101 patentes nos EUA, as empresas coreanas ali obtiveram 7.549 patentes. Vários fatores explicam essa defasagem. Primeiro, continuamos incorrendo no erro de cobrar o depósito de patentes da comunidade acadêmica, sobretudo das universidades. Talvez o fato de, por vários anos, o maior número de patentes brasileiras terem sido depositadas pela Universidade de Campinas (Unicamp) tenha criado esta falsa impressão. Em todos os países, a produção de patentes resulta da atividade de pesquisa, desenvolvimento e inovação praticada nas empresas. A título de exemplo, cabe mencionar que apenas 4% das patentes depositadas nos EUA são provenientes de suas universidades. O segundo fator está relacionado com o fato de que o Sistema Brasileiro de Ciência e Tecnologia foi montado ao longo de vários anos para dar apoio à pesquisa básica, e o fez com sucesso. Este sistema não foi e não se encontra preparado para lidar com o setor empresarial. Talvez seja o momento de se analisar as vantagens e desvantagens de se transferir esta responsabilidade para a área governamental mais conectada com a economia e o desenvolvimento econômico. O terceiro fator está relacionado com a antiquada legislação brasileira em relação às patentes, sobretudo no que se refere à área biomédica. A Lei no 9.279, de 14 de maio de 1996, não considera como objeto de patente “o todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza, ou ainda que dela iso77


Questões do Desenvolvimento

lados, inclusive o genoma ou germoplasma de qualquer ser vivo natural e os processos biológicos naturais”. Esta legislação impede que seja objeto de patente no Brasil: a) qualquer composto isolado da biodiversidade brasileira, mesmo que tenha propriedades farmacológicas ou cosméticas relevantes; b) qualquer fungo ou bactéria isolada, mesmo que ainda desconhecido e que tenha interesse industrial pelos antibióticos ou enzimas que produzam; c) cultura de células de origem animal ou vegetal que possua características interessantes do ponto de vista industrial etc. A lista é grande, incluindo variedades vegetais que venham a ser produzidas pela nossa forte pesquisa agrícola. No entanto, tudo o que foi mencionado acima pode ser objeto de patente no exterior. Mais grave ainda, pesquisadores do exterior têm se aproveitado da legislação brasileira para retirarem material da nossa biodiversidade e registrarem patentes em outros países. Logo, todo o potencial da biodiversidade brasileira, enaltecida por muitos, não tem se transformado em fator de desenvolvimento econômico e social no Brasil. Uma simples mudança na legislação fará com que um número significativo de patentes seja registrado no Brasil na área da biotecnologia. É fundamental e urgente que ocorram mudanças significativas na legislação referente à proteção da Propriedade Industrial, ou, mais uma vez, perderemos a oportunidade de nos colocarmos entre aqueles países que utilizam a moderna biotecnologia como alavanca de desenvolvimento. É ainda importante reforçar o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi) ampliando o seu quadro técnico de modo a permitir uma análise mais rápida das solicitações de patentes apresentadas a esta instituição.

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A industrialização a qualquer custo e a nova Política Industrial Amilcar Baiardi

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expansão industrial terminou por ser no Brasil um modelo de crescimento econômico baseado essencialmente no setor secundário, revelando-se, ao longo do tempo, setorialmente centralizador, espacialmente concentrador, urbanamente aglomerador e socialmente excludente. Na primeira metade na década de cinquenta, quando a economia do país ingressava na fase de implantação da indústria de bens de capital, completando o ciclo da industrialização tardia, um amplo espectro do pensamento nacional, localizado no Instituto Superior de Estudos Brasileiros, Iseb, defendia a industrialização a qualquer custo. Ignácio Rangel era, naquele ambiente, o único cético em relação aos rumos das, então, políticas de fomento industrial. Criticava nas mesmas a falta de planejamento para promover a integração e reduzir a capacidade ociosa da economia nacional, entendida como sendo constituída pelos recursos humanos e naturais colocados à margem da dinâmica expansionista. Antecipava, por outro lado, os efeitos perversos da concentração industrial, como a formação de megalópoles e os desequilíbrios regionais, antevendo a possibilidade, não muito distante, de esgotamento do padrão de industrialização baseado na substituição de importações. Como alternativa, recomendava uma política de desenvolvimento fundamentada nos usos dos recursos ociosos, a qual suporia, dentre outras medidas, a reforma agrária, o povoamento ao longo dos eixos rodoviários e a desconcentração produtiva, setorial e regionalmente. Sua voz não foi ouvida e as interpretações parciais das teses da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), de Raul Prebisch, falaram mais alto, fazendo com que a industrialização, a qualquer custo e acelerada, se tornasse a política de Estado no Brasil, por décadas. Como se nada houvesse mudado, como se revoluções científicotecnológicas não tivessem ocorrido de lá para cá, como se a assimetria nos mercados só fosse possível mediante a transformação industrial, como se não houvesse possibilidade de agregação de valor ao longo das cadeias derivadas da produção vegetal-animal e mineral e da qua79


Questões do Desenvolvimento

lificação dos serviços, anuncia-se uma nova política industrial Plano Brasil Maior, e, associada à mesma, a criação de um ente, uma Embrapa para a Indústria, a Embrapii. A industrialização a qualquer custo volta a ser agenda da política industrial. Passa-se a ideia da necessidade de intervenções que restaurem a competitividade da indústria convencional sem avaliar se haverá lugar para elas em uma nova divisão internacional da produção industrial. Em síntese, pretende-se reverter a chamada “desindustrialização” com receituário fortemente eivado de subsídios e, para modernizar o discurso, anuncia-se a criação de um órgão que, definitivamente, seria a ponte entre a pesquisa e o desenvolvimento (P&D) e as empresas do setor secundário. É ocioso lembrar que subsídios generosos desestimulam a inovação. De outra parte, convém sempre insistir que os problemas de escassa geração de patentes e de baixa apropriação de inovações pelo setor industrial no Brasil, não se devem à falta de legislação e de órgãos, pois já se tem a “lei da inovação”, a “lei do bem”, a ABDI, o Sibratec, a Anpei, a rede de INCTs etc. Esquece-se também, quando se propõe a analogia tendo em vista o sucesso da Embrapa, que o setor agropecuário é menos concentrado, com poucas barreiras à entrada, sendo comum ter-se no mesmo inovações induzidas por grupos de pressão de produtores rurais, o que foi estudado por Hayami e Ruttan na década de 1970 do século passado. Em todo o mundo, o setor agropecuário é tido como aquele no qual as forças de mercado são o determinante principal da mudança técnica, teorias da demand pull, vis à vis as influências derivadas da visão da oferta tecnológica como um impulso autônomo ou quase autônomo, teorias do technology push. Dizendo de outro modo, o que vale para o setor agropecuário, uma empresa estatal que gera e difunde inovações, não se aplica mecanicamente ao setor secundário. A primeira coisa a se fazer, quando se pensa em macropolíticas de incentivo à produção, é não se considerar como anomalia que a composição do PIB esteja mudando, favorecendo aos negócios derivados da agricultura, silvicultura e mineração e reduzindo a participação dos setores convencionais da indústria brasileira. Parque industrial convencional deixou de ser uma meta para a maioria dos países industrializados, que não abrem mão de ofertar no mercado internacional bens com elevado valor agregado, resultantes de conhecimento científico embutido. Por outro lado, a economia brasileira tem especificidades e não se pode ver este processo de mudança estrutural do PIB como sendo uma mudança precoce e não virtuosa e muito menos supor ser um apocalip80

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A industrialização a qualquer custo e a nova Política Industrial

se a redução da participação da indústria convencional na renda nacional. Entender esta mudança como sendo própria e exclusiva de economias maduras é, de outra parte, um reducionismo. A Austrália e o Chile têm tecidos produtivos com menos adensamento setorial e maior peso de agroindústrias e nem por isso perdem nas trocas internacionais. A essência da proposta de Prebisch/Cepal era reverter o comércio desigual e isso não tem, contemporaneamente, como única via, o apoio à indústria convencional. A recente onda de valorização de matériasprimas e commodities tende a se manter e o Brasil pode se beneficiar exponencialmente, se prosseguir incorporando inovações de processo e ampliar a incorporação de inovações de produto aos setores que absorvem como insumos a produção primária. Pesquisa recente do BNDES (FSP, 19/08/2011) estima que, até 2014, aumentará a concentração de investimentos no setor primário, o que é um sinal inequívoco de dinamismo setorial. O crescimento do setor não significa exclusivamente expansão da produção de commodities e bens intermediários, pois não há limites para inovar na produção de bens finais, sejam eles alimentos diferenciados, alimentos terapêuticos, biofármacos, fibras naturais, tecidos, sementes modificadas geneticamente, bioenergéticos e derivados da produção mineral que possam ir além dos metais e ligas. Da mesma forma, não há limites para inovações de processo que reduzam o custo unitário dos bens produzidos, provenham eles do campo ou das minas. A experiência italiana dos Distritos Agroalimentares sugere a possibilidade de determinados territórios, com tecido produtivo menos concentrado, se especializarem na oferta de bens derivados da produção vegetal e animal com elevado valor agregado e com facilidades de diferenciação e reciclagem expressivas. A Argentina começa também a ter sucesso com uma produção láctea modificada geneticamente, incorporando biofármacos, elevando assim sua capacidade de competição neste setor. As vantagens no comércio internacional e de participação no mercado doméstico dependem muito mais de estratégias empresariais que propriamente de benefícios de políticas como a Brasil Maior. O empresariado do chamado complexo agroindustrial tem demonstrado ser inovador, adotou boas práticas de gestão, é agressivo em termos de mercado internacional e aderiu às certificações que garantem aceitação dos seus produtos. Devidamente estimulados, estes agentes poderiam adensar as cadeias produtivas lançando novos produtos com maior sofisticação e com capacidade de serem formadores de preços. Obviamente que nesta qualificação e adensamento das cadeias produtivas no setor primário, não se pode prescindir da presença do Estado Amilcar Baiardi

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Questões do Desenvolvimento

na ampliação da competitividade sistêmica, por meio de investimentos em infraestrutura e remoção dos gargalos burocráticos. O foco do Plano Brasil Maior não deve se restringir aos setores convencionais da indústria brasileira, reeditando medidas que favorecem essencialmente aos mesmos e negligenciando aqueles com maior dinamismo. Mais sábio seria criar incentivos para acelerar a modernização tecnológica em toda a economia, inclusive as cadeias mineroagrícolas, pois delas poderão resultar inúmeros bens finais com elevado valor de mercado, alguns até se beneficiando das vantagens monopólicas temporárias. A recusa em ver com pessimismo o crescimento da participação do agronegócio no PIB brasileiro foi manifestada em recente painel intitulado Agricultura brasileira: fazenda do mundo, durante o 49º Congresso da Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural, realizado no fim de julho em Belo Horizonte, quando pesquisadores da Embrapa e professores-pesquisadores da UFV e ESALQ-USP, foram categóricos em não ver problema nessa expansão, uma vez que ela responde a vantagens comparativas inequívocas e vantagens competitivas construídas. Em um debate recentíssimo no Centro Internacional Celso Furtado no Rio de Janeiro, idêntica posição foi assumida por pesquisador da UFRJ (FSP, 19/08/2011). Em lugar de recriar velhos subsídios com nova roupagem e centrar atenções na indústria convencional com criação de novos entes com as mesmas missões de apoio à transferência de tecnologia para setor industrial, o Brasil deveria pensar em um eficiente sistema nacional de inovações que coordenasse tudo o que já existe e que estivesse voltado tanto para o setor secundário como para os setores primário e terciário, pois, o que conta, é a capacidade de produzir mercadorias que atraiam os consumidores e tenham preços competitivos, provenham elas de onde for mais viável técnica e economicamente. Nesta trajetória, conviria abrir uma interlocução intensa com a Abipti, Associação Brasileira de Institutos de Pesquisa Tecnológica (não somente com o INT e o IPT, como está previsto na Portaria do MCTI 593 que cria o grupo de trabalho da Embrapii), com a rede de Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia, INCTs, que transfiram conhecimento para a indústria e com as representações de produtores de todos os setores, CNI, CNA etc., tentando, em nível nacional, reproduzir experiências internacionais e gerar novas institucionalizações visando um sistema nacional de inovação, com governança, legitimado e que funcione.

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V. Políticas Públicas


Autores Paulo Kliass

Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal, e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.

José Eduardo Gomes

Médico em Brasília, especialista em Cardiologia pela Sociedade Brasileira de Cardiologia e pela Associação Médica Brasileira.

Fernando Antunes

Analista de finanças públicas, ex-subsecretário de Saúde do Distrito Federal, foi um dos fundadores e presidente da União Nacional dos Analistas e Técnicos de Finanças e Controle (Unacon), uma das entidades criadoras da ONG Transparência Brasil.


Urgência na Saúde Paulo Kliass

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momento atual é de defesa do SUS como modelo inspirador para uma rede pública para a saúde, com atendimento universal e gratuito. A urgência do momento é assegurar, no mínimo, condições para o funcionamento do SUS. E para tanto, torna-se essencial a aprovação de uma fonte específica de recursos orçamentários para a Saúde. Ao longo do processo de reconstrução da ordem político-institucional, no período que sucedeu ao fim da ditadura militar, o Brasil ofereceu ao mundo um exemplo significativo de arranjo na ordem social. Caminhando na contracorrente de todo o movimento desregulamentador e mercantilizador que se apoiava nas ideias e propostas do chamado neoliberalismo, os consensos construídos para a votação do texto da nova Constituição no final da década de 1980 tentavam recuperar as propostas de um Estado de Bem-Estar Social. No caso específico da saúde, o processo também chama a atenção, principalmente se analisado numa perspectiva histórica e levando em consideração as dificuldades ideológicas daquele momento. Mas o fato é que a defesa de um modelo de saúde que fosse público e de atendimento universal ultrapassou os muros da polêmica político-partidária, em função da atuação fundamental de uma articulação que passou a ser conhecida como “PS” – o chamado “partido dos sanitaristas”. Reunindo políticos de diversas orientações e filiações, sua ação unitária dava-se na defesa do modelo que veio a ser incorporado ao texto constitucional, entre os capítulos 196 e 200, que trata justamente da Seção da Saúde, no Capítulo da Seguridade Social. O Brasil apresenta85


Políticas Públicas

va ao mundo o Sistema Único de Saúde (SUS), com base naquilo que havia sido construído a partir da articulação de distintos setores da sociedade interessados em montar um sistema de natureza pública, com um amplo atendimento, com financiamento público e fundado num sistema federativo de repartição de atribuições e recursos. Apesar de sintético, o texto dos cinco capítulos é bastante claro quanto às intenções dos representantes na Constituinte. A seguir, alguns exemplos: A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” “O sistema único de saúde será financiado (...) com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes”.1

Porém, as dificuldades começaram já mesmo a partir da implementação do modelo do SUS. Havia – e ainda há! – uma série de questões complexas a serem solucionadas, tais como: i) a garantia de fontes orçamentárias de financiamento; ii) a definição clara da repartição entre as atribuições e as origens de recursos entre União, estados e municípios; iii) os limites e as tangências entre a presença do setor privado e o setor público na oferta de serviços de saúde; entre outras. Exatamente por estar sendo construído num período em que o paradigma hegemônico da ordem social e econômica no mundo era baseado na ideia da supremacia absoluta do privado sobre o público e na tentativa de reduzir a presença do Estado a uma dimensão mínima, o SUS já nasceu sendo bombardeado por setores comprometidos com tal visão reducionista das políticas públicas. Os conceitos teóricos que algumas correntes da economia haviam criado em torno do conceito de bens públicos (saúde, educação, saneamento etc.) sofreram forte oposição e a ideia de transformar todos esses direitos da cidadania em simples mercadoria passou a ganhar força. O mercado privado atuante na área da saúde recebeu grande impulso, a partir da proposta de “complementaridade” ou “suplementaridade” à ação do Estado. Ao lado das antigas e tradicionais instituições da filantropia, cresceu bastante a atuação de grupos empresariais privados, que passam a operar no setor com a lógica pura e simples da acumulação de capital e da obtenção de lucros. E o acesso a esses hospitais, maternidades, laboratórios, centros clínicos passa a contar com a sofisticação dos planos privados de saúde e os seguros de saúde. Tudo baseado em preços, contratos, condições, exceções, carências e outros elementos que confluem para re

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Ver: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Política Democrática • Nº 31


Urgência na Saúde

duzir a despesa e aumentar a receita. A saúde deixa cada vez mais de ser um direito e se transforma numa mercadoria. O espaço de disputa desse novo campo de negócio, obviamente, dá-se com a própria rede do SUS. Colabora para tanto um processo de sucateamento do sistema público, cujo principal instrumento de atuação ocorre por meio de redução de seus recursos orçamentários. Com isso, a rede pública não consegue avançar a contento em termos de equipamentos e de pessoal. E os meios de comunicação complementam com seu papel de desconstruir o modelo, apontando as falhas e as ineficiências de atendimento da população, com a mensagem sub-reptícia de que isso ocorre em função de sua natureza pública, estatal. Mas o fato é que pouco a pouco vão sendo reduzidos os gastos estatais com a saúde, enquanto que os gastos privados passam a crescer a cada ano. A política de ajustes fiscais a qualquer custo – que se tornou mais evidente a partir do Plano Real, em 1994 – terminou por estrangular os orçamentos da seguridade social como um todo, aí incluído o drama da saúde. Assim, em 1997, o governo federal acaba por lançar mão de um tributo específico e emergencial para dar conta da falta de recursos orçamentários para essas áreas. Foi aprovada a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), mas parte dos recursos ficava retida para contingenciamento e outros dribles com objetivo de contribuir para o superávit primário. Após compartilhar a dotação com previdência e assistência social, menos da metade dos recursos ficava com a área da Saúde. Esse tributo resistiu por quase dez anos, quando foi finalmente suspenso em 2007, em votação ocorrida no âmbito do Congresso Nacional. O discurso generalizado dos setores ligados ao mundo empresarial e das forças conservadoras em geral acabou prevalecendo, na figura da falsa imagem da “elevada carga tributária”. Na verdade, o grande incômodo do sistema financeiro era mesmo a possibilidade de rastreamento de todas as suas operações, uma vez que a contribuição incidia sobre as mesmas. E isso permite ao poder público uma maior capacidade de controle e fiscalização, inclusive para reduzir a prática de operações ilegais. Tendo perdido essa fonte de recursos, o SUS voltou a sofrer ainda mais o risco do sucateamento. Desde 2008, tramita no legislativo um projeto para recriar uma fonte específica para a Saúde (não mais para o conjunto da Seguridade Social). O princípio é bastante semelhante à CPMF: trata-se da Contribuição Social para a Saúde (CSS). Tal tributo incidiria sobre as transações financeiras, a exemplo da anterior, mas teria uma alíquota inferior: 0,10% ao invés de 0,38%. Alguns especialistas já apontam a necessidade de um índice mais elevado, dada a urgência de recursos para o SUS. De qualquer maneiPaulo Kliass

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Políticas Públicas

ra, o mais importante é assegurar que as verbas sejam direcionadas para o gasto na ponta do sistema e não fiquem esquentando o caixa do Tesouro Nacional para formar o superávit primário e pagar os juros da dívida. Além disso, faz-se necessário criar algum mecanismo para atenuar a regressividade implícita na CSS. Isso porque todas as camadas de renda da população sofrem a incidência do tributo, pois vivemos em um mundo marcado pela generalização das atividades bancárias e financeiras. Assim, seria importante promover uma medida de justiça tributária e isentar as faixas de renda mais baixa. A situação é de extrema urgência! Caso contrário, corre-se o risco da saúde sofrer processo análogo ao do ensino fundamental e médio. Ao longo das últimas décadas, em razão do sucateamento da rede pública de ensino, setores expressivos da classe média passaram a optar por estabelecimentos privados de educação para seus filhos. A rede pública, salvo raras exceções, padecia de falta de verbas, com baixo investimento na construção, equipamento e, principalmente, no estímulo aos professores. Estes setores médios tendem a ser vistos como “caixa de ressonância da opinião pública” e com maior capacidade de pressão sobre os representantes políticos. Como eles deixaram de pressionar pela melhoria da qualidade do ensino público pré-universitário, isso contribuiu para a situação ter chegado ao quadro atual de difícil e urgente recuperação. O momento atual é de defesa do SUS como modelo inspirador para uma rede pública para a saúde, com atendimento universal e gratuito. Um direito de cidadania, um dever do Estado. É claro que muito ainda há para ser realizado no sentido de aperfeiçoar a sua gestão, com o intuito também de reduzir as perdas do sistema. O mesmo vale para a necessidade de redefinir os cálculos dos gastos com saúde, tal como previsto pela famosa Emenda Constitucional no 29, que estabelece percentuais orçamentários mínimos para que os governos federal, estaduais e municipais apliquem no sistema. E também para introduzir maior grau de justiça social na forma de apropriação dos recursos, inclusive físicos do SUS. E aqui entram aspectos como a atual renúncia tributária para setores que gastem com saúde privada, o uso descontrolado da rede privada dos setores de excelência da rede pública nas áreas de alta complexidade a baixo custo, as facilidades de isenção tributária para os grupos empresariais que operam no sistema privado de saúde, entre tantos outros aspectos. Enfim, as tarefas são muitas e complexas. Mas a urgência do momento é assegurar, no mínimo, condições para o funcionamento do SUS. E para tanto, torna-se essencial a aprovação de uma fonte específica de recursos orçamentários para a Saúde. 88

Política Democrática • Nº 31


Saúde Brasil José Eduardo Gomes

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saúde no Brasil é protegida pelo Sistema Único de Saúde (SUS), criado pela Constituição Federal de 1988, que dispõe no art. 196: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário as ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. As deficiências dessa cobertura são muitas. Um dos principais pontos a dificultar o funcionamento é a baixa remuneração dos serviços. Isso promove o crescimento do Sistema Complementar de Saúde (Planos de Saúde). Com base em informações da ANS e do Ministério da Saúde, sabemos que, atualmente, esse sistema atende a 23% dos brasileiros. A relação direta médico-paciente (particular) chega a apenas 1% dos atendimentos médicos. As grandes instituições hospitalares assistem aos três níveis de público. Em Brasília, apenas a rede pública de saúde atende, de maneira abrangente, ao SUS. Hospitais privados atendem, através do SUS, a apenas algumas especialidades ou executam os procedimentos com melhor tabela de remuneração. Check-up A prevenção individualizada inicia-se com o check-up que, conceitualmente, é a avaliação com fins preventivos. Este serviço é provido por instituições organizadas e cônscias das vantagens de antecipação aos problemas, de forma que clínicas e consultórios dedicam-se a esse ramo da Medicina. Há empresas especializadas no assunto, com alto grau de satisfação. A dificuldade de acesso e os altos custos impedem a procura adequada por avaliações preventivas. Diagnósticos precoces ou detecção de predisposições são o arsenal mais efetivo contra as doenças. Moléstias infecto-contagiosas que, no passado, eram as maiores responsáveis por morbimortalidade hoje têm boas condições de prevenção e de tratamento. O armamentário vacinal cobre a maioria das doenças com grande risco epidemiológico. 89


Políticas Públicas

O Ministério da Saúde oferece vacinas contra 12 doenças infecciosas definidas pelo Programa Nacional de Imunizações, recomendados à população, desde o nascimento até a terceira idade e distribuídas gratuitamente nos postos de saúde da rede pública. Há novas vacinas que ainda não foram incorporadas pelo Ministério da Saúde, mas são encontradas em clínicas privadas. A medicina especializada em prevenção é a de melhor custo-efetividade. O calendário de vacinação brasileiro é definido pelo Programa Nacional de Imunização do Ministério da Saúde (PNI/MS) e corresponde ao conjunto de vacinas consideradas de interesse prioritário à saúde pública do país. Atualmente é constituído por 12 produtos recomendados à população, desde o nascimento até a terceira idade e distribuído gratuitamente nos postos de vacinação da rede pública. Modernas técnicas de gerenciamento hospitalar com responsabilidade socioambiental aproximam atualizada tecnologia e usuários. Novas instituições ou instituições renovadas ajudam a ampliar o conhecimento e o uso do que de melhor há hoje no planeta. Doenças cardiovasculares e hipertensão arterial As doenças cardiovasculares são a principal causa de morte no Brasil. Para evitá-las há as recomendações gerais: alimentação adequada; exercícios físicos; manutenção do peso corporal na faixa normal; não tabagismo; uso moderado de álcool. Associadamente, o controle de: hipertensão arterial; diabetes mellitus e dislipidemia. A hipertensão arterial sistêmica (HAS) é uma condição clínica multifatorial caracterizada por níveis elevados e sustentados da pressão arterial (PA). Associa-se frequentemente a alterações funcionais e/ou estruturais dos órgãos-alvo (coração, encéfalo, rins e vasos sanguíneos) e a alterações metabólicas com consequente aumento do risco de eventos cardiovasculares fatais e não fatais.1 Seu tratamento é feito com medidas não medicamentosas e medicamentosas. Os fármacos anti-hipertensivos disponíveis agrupam-se em sete classes: diuréticos; inibidores adrenérgicos: betabloqueadores, alfabloqueadores e inibidores de ação central; vasodilatadores diretos; antagonistas dos canais de cálcio; inibidores da enzima conversora da angiotensina; bloqueadores dos receptores A TI da angiotensina 11; e inibidor direto da renina.

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Sociedade Brasileira de Cardiologia. VI Diretrizes Brasileiras de Hipertensão. Arq. Bras. Cardiol., jul./2010. Política Democrática • Nº 31


Saúde Brasil

Todos eles podem ser usados sozinhos ou associados. A escolha baseia-se no quadro clínico individualizado. As associações mais frequentes são entre os diuréticos e os componentes das outras classes. Podem ser associados até mesmo dois diuréticos. Contudo, esses medicamentos têm diversos efeitos adversos potenciais. Podem alterar o potássio, reduzir o magnésio e aumentar o ácido úrico. Podem provocar intolerância a glicose, aumentar o risco do aparecimento de diabetes mellitus e, também, promover aumento dos triglicérides. Esses efeitos dependem das doses. Os inibidores adrenérgicos surgiram há mais de quarenta anos e estão, hoje, na terceira geração. As principais reações adversas dos inibidores centrais são: sonolência, sedação, boca seca, fadiga, hipotensão postural e disfunção sexual. Os betabloqueadores de primeira e segunda geração são contraindicados em asmáticos e portadores de doença pulmonar obstrutiva crônica. Os vasodilatadores diretos promovem retenção hídrica e taquicardia reflexa e não são usados como monoterapia. Os antagonistas dos canais de cálcio são uma classe muito usada e com representantes potentes. Seu efeito mais indesejável é o aparecimento de edema nas pernas. Os inibidores da enzima conversora da angiotensina (Ieca), descobertos pelo médico brasileiro Sérgio Ferreira, têm uso limitado pela ocorrência de tosse. Os bloqueadores dos receptores da renina (BRA) são sucedâneos dos Ieca e apresentam boa tolerabilidade. Os inibidores diretos da renina (IDR) foram lançados no século XXI e dão efeitos indesejáveis em menos de 1% dos usuários. Ieca, BRA e IDR são contraindicados na gestação. Guimarães Rosa morreu aos 59 anos de idade, em 1967. Tabagista, sedentário e com peso corporal excessivo, sofreu fulminante infarto agudo do miocárdio. Há 44 anos, a rotina dos check-ups não estava instituída. Pessoas morriam no auge da produtividade. O comportamento atual é diverso. Conhecem-se melhor as necessidades e o que fazer para prolongar a vida com qualidade. Parques, pistas de caminhadas e outras atividades existem em todas as grandes cidades e até em muitas pequenas. Academias bem equipadas espalham-se por quase todos os bairros. A Medicina do Esporte associa-se a outros ramos dos cuidados com a saúde ajudando a aumentar a qualidade de vida em todas as faixas etárias. O melhor conhecimento aproveitará melhor os recursos financeiros e técnicos levando à longevidade produtiva e prazerosa, com físico e mente saudáveis. Cuidado com as exceções: o tabagista Oscar Niemeyer, aos magníficos 103 anos de idade, está operoso, com a capacidade criativa intocada. Genial até no viver longamente.

José Eduardo Gomes

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SUS Público ou Estatal? Fernando Antunes

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o final do primeiro semestre deste ano, a presidente Dilma editou o Decreto no 7508, o qual regulamenta a Lei no 8080 (Lei Orgânica da Saúde) e trata de quatro grandes áreas do Sistema Único de Saúde (SUS): 1) organização; 2) planejamento; 3) assistência à saúde; e 4) articulação entre os entes federais. O discurso oficial é que esse decreto introduz grandes mudanças na gestão do sistema, talvez a maior reclamação da sociedade brasileira. Na prática, vai definir, por contratualização, os aportes financeiros de cada ente, gerando, assim, um escudo no caso de demandas e pressões de prefeitos, governadores, associações de pacientes, promotores, imprensa, partidos etc. A resposta padrão será: “isto é o que foi pactuado e somente no momento da revisão poderemos fazer alterações para atender essa demanda.” A União, com seu caixa super cheio, terá motivos e argumentos para recusar ajuda. Vejamos o art. 21 do citado decreto: Art. 21 - A Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde – RENASES compreende todas as ações e serviços que o SUS oferece ao usuário para atendimento da integralidade da assistência à saúde.

Uma pergunta sobre esse artigo: ele apenas esclarece os serviços que o SUS oferta ou, noutra ótica, o serviço que lá não estiver listado não pode ser atendido/prestado nas milhares de Secretarias de Saúde do país? Há outras diversas formas de olhar para essa norma. Num desses ângulos, enxergo concentração no plano federal em vez de desconcentração, como princípio do SUS. Enxergo também limitação de poderes dos detentores de mandatos, os quais poderão ser emparedados pelos Contratos Organizativos (figura jurídica criada nesse decreto). Aliás, essa nova figura jurídica pode vir a ser o substituto legal dos preocupantes TAC (Termos de Ajustamento de Conduta) sempre sacado por promotores, além de jogar por terra a figura do Consórcio, previsto na Lei no 8.080.

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SUS Público ou Estatal?

Também consigo ver possibilidades positivas, porém, preocupa-me a edição desse decreto, tão amplo em novos conceitos (típico de uma lei) e tão sintético em definições (típico dos decretos).

Além desses aspectos formais, há os de natureza conjuntural: o Congresso Nacional está em vias de votar a regulamentação da emenda 29. O surgimento do decreto 7508, neste momento, foi só coincidência? Devemos considerar que o Sistema Único de Saúde (SUS), quando visto pelo ângulo da história, ainda está na fase do nascimento. Quando visto como política pública, especialmente pelas camadas de menor renda, ainda não é compreendido em sua dimensão e em seus princípios. Porém, quando apresentado como instrumento de avanço civilizatório, é reconhecido como uma das mais exuberantes construções da humanidade. Ninguém é contra esse Sistema, mas o SUS tem adversários. Uma das bases dessa dualidade passa pelo axioma: a vida não tem preço, mas a saúde tem custos. Nosso saudoso companheiro Sergio Arouca, com o apoio de muitos seguidores e até mesmo de adversários, criaram e fincaram as raízes do SUS nos arts. 196 a 200 da Constituição Federal. Após a Constituinte, a luta continuou em torno da regulamentação, a qual ocorreu em 19 de setembro de 1990 com a aprovação da Lei Orgânica da Saúde (Lei no 8.080). A luta continua. Após duas décadas de disputas, os autointitulados “militante pró-SUS”, têm como pressuposto que são defensores exclusivos do modelo e interpretam o art. 197 da Constituição de uma maneira que reduzem o SUS de um Sistema Público para um Sistema Estatal. Art. 197 São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao poder público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.

Há na Lei no 8.080/90 diversos dispositivos que dão elementos para sustentar esse debate entre o SUS Público e o SUS Estatal. Em cada Unidade da Federação, em cada partido político, em cada universidade, nos diversos Ministérios Públicos, nas milhares de Secretarias de Saúde e, principalmente, em cada instância judiciária, há decisões num e noutro sentido. Um fato é incontestável: em toda campanha eleitoral, para qualquer nível de governo, há um compromisso que não falta nos panfletos de quem postula um mandato: “vou melhorar os serviços de saúde”. Fernando Antunes

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Políticas Públicas

Nesse contexto, ideologizado entre os conceitos de público x estatal, encontramos quatro dimensões dessa luta em “favor do SUS”: 1) as legítimas reivindicações dos profissionais por melhores condições de trabalho e remuneração; 2) As demandas crescentes por serviços de saúde (promoção, proteção ou recuperação) dos grupos básicos de pacientes: crianças, idosos, homens e mulheres; 3) as disputas políticas para alocação de recursos nos orçamentos da União, estados e municípios; e 4) também participam desse debate sobre a organização e o funcionamento do SUS o setor industrial de equipamentos e insumos médico-hospitalares, além do poderoso setor farmacêutico. Se se promovesse um amplo debate sobre o SUS, qual seria a corrente majoritária entre os brasileiros: o SUS Público ou o SUS Estatal?

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VI. Direito & Justiรงa


Autor Willame Parente Mazza

Auditor Fiscal da Fazenda Estadual do Estado do Piauí, mestre em Direito com ênfase em Direito Tributário pela Universidade Católica de Brasília (UCB), com especialização em Direito Tributário e Fiscal, em Direito Público e em Controle Interno e Externo na Administração Pública, professor universitário no Curso de Direito e professor em cursos preparatórios para concursos.


Imunidade tributária como instrumento de concretização de direitos sociais fundamentais Willame Parente Mazza

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principal papel do Estado é atender às necessidades da coletividade, aos interesses sociais, proporcionando o bem-estar da população. No entanto, o Estado não vem tendo condições de atender às demandas sociais nos aspectos quantitativos e qualitativos, já que se ocupa primordialmente com as funções de proteção da soberania nacional, elaboração, execução e fiscalização das normas legais, gestão de organizações estatais e regulamentação dos setores estratégicos da economia. Verifica-se, com isso, o crescente desenvolvimento de grupos da sociedade civil e dos movimentos sociais que se organizam em entidades ou pessoas unidas por um espírito de voluntariedade na busca do bem comum. Nesse contexto, aparece o Terceiro Setor, com a função primordial de ser um agente equalizador da igualdade social. Tal setor atua ao lado do Estado e do segundo setor, a fim de capacitar os cidadãos com recursos que os tornem ativos perante as desigualdades sociais. Dessa forma, combate o paternalismo do Estado e o individualismo social, integrando a sociedade civil com seus próprios problemas.1 Diante dessa parceria entre Estado e Terceiro Setor, o poder público tende a desenvolver essas entidades de Assistência Social, por 1

CAMARGO, Mariângela Franco de; SUZUKI, Fabiana Mayumi; SAKIMA, Mery Ueda Yuzo; GHOBRIL, Alexandre Nabil. Gestão do Terceiro Setor no Brasil. São Paulo: Futura, 2001, p. 24.

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Direito & Justiça

meio da concessão de subsídios orçamentários ou de incentivos fiscais. Contudo, no Brasil, devido à escassez de recursos, o fomento, por meio de recursos orçamentários, ainda é muito reduzido. Da mesma forma, acontece com os incentivos fiscais concedidos por leis infraconstitucionais, como na legislação do imposto de renda, que, além de ser reduzido e trazer alguns limites, só prevê a concessão de incentivos fiscais sobre determinadas modalidades de doação. Isso provoca a falta de incentivos a doações por parte das pessoas físicas e jurídicas, tornando o Brasil um dos países com menor índice no número de doadores. Assim, pode-se verificar que as doações brasileiras somaram, por exemplo, em 2007, cerca de 10 bilhões de reais, ou melhor, 0,3% do PIB, índice inferior à média da América Latina e do mundo, já que em países como Argentina e Inglaterra, esses percentuais representam 1,09% e 0,84% respectivamente. Se comparado com os Estados Unidos, percebe-se que os americanos são incentivados a contribuir com doações que, anualmente, chegam a 300 bilhões de dólares (ou 2% do PIB do país).2 Outra alternativa, ao pleno desenvolvimento dessas instituições e consequente efetivação dos direitos sociais, são as prestações positivas do Estado. No entanto, os direitos sociais passam por uma crise de efetividade que está ligada à carência de recursos disponíveis para atender as políticas sociais, devido aos custos sociais desses direitos.3 Esta é uma das problemáticas mais debatidas na doutrina quanto à efetividade de direitos sociais, já que muitos doutrinadores alegam a dificuldade de se custear tais direitos.4 Ingo Wolfgang Sarlet5 afirma que os Direitos Sociais abrangem tanto direitos prestacionais (com atuação positiva do Estado) quanto direitos defensivos (com atuação negativa do Estado). Os direitos negativos (direitos de não intervenção na liberdade pessoal e nos bens fundamentais tutelados pela Constituição) não deixam de apresentar 2

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ELSTRODT, HEINZ-PETER. A eficácia dos investimentos sociais no Brasil: um estudo sobre as atuais barreiras e possíveis ações para aumentar o volume e melhorar a efetividade dos investimentos sociais ao Brasil. 2008. Disponível em: <http://www. mckinsey.com/App_Media/Images/Page_Images/Offices/SocialSector/PDF/Relatorio_Filantropia.pdf>. Acessado em: 15/03/2011. SARLET, Ingo Wolfgang. Os direitos sociais como direitos fundamentais: seu conteúdo, eficácia e efetividade no atual marco jurídico-constitucional brasileiro. In: LEITE, George Salomão. SARLET, Ingo Wolfgang. (Coord.). Direitos fundamentais e Estado constitucional. São Paulo: RT, 2009. Cap.10. p. 239. SARLET, Ingo Wolfgang. Os direitos fundamentais sociais na Constituição de 1988. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, v. 1, n. 1, 2001. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acessado em: 15/06/2011. SARLET, Ingo Wolfang. Op. cit., 2009, p. 218. Política Democrática • Nº 31


Imunidade tributária como instrumento de concretização de direitos sociais fundamentais

também uma dimensão positiva, pois reclamam uma atuação positiva do Estado e da sociedade. O professor Marciano Buffon6 leciona que, por meio da tributação na concretização dos direitos fundamentais, pode-se chegar a uma máxima densidade normativa do princípio da dignidade da pessoa humana, já que tal princípio é núcleo de todos os direitos fundamentais. Segundo o autor, isso ocorre na tributação de duas formas: com a observância dos direitos fundamentais que limitam o poder de tributar (que seria a atuação negativa do Estado); e com a utilização da tributação, direta ou indiretamente, como meio de realização dos direitos fundamentais de cunho prestacional. Portanto, pela falta de estímulo às doações no Brasil e pelas dificuldades de se custear os direitos sociais de forma direta, tem-se como alternativa a imunidade das entidades de educação e de assistência social do Terceiro Setor, consignadas na Constituição Federal como forma de incentivo ao ideal funcionamento dessas instituições. Essa modalidade aparece como sendo uma forma mais simples e sem dispêndio de recursos orçamentários diretos, e alcança o poder de tributar do Estado, por meio da desoneração tributária dessas instituições, permitindo a efetivação dos valores sociais elencados na Carta Magna, como o desenvolvimento da educação e da assistência social. Além dos custos sociais para efetivação dos direitos sociais, discute-se a necessidade de atos jurisdicionais e de atos legislativos para a concretização de tais direitos. Alguns doutrinadores até elevam esses direitos à categoria de normas programáticas. Gomes Canotilho afirma que o reconhecimento constitucional dos direitos sociais deve ser levado a sério e refuta a posição de parte da doutrina por não acreditarem na efetividade dos direitos sociais em face de supostamente corresponderem a posições jurídico-prestacionais reguladas por normas indeterminadas.7 Esses atos jurisdicionais, para muitos juristas, se apresentam como solução, no qual geram o que se denomina de “ativismo judicial”. No entanto, o professor Lenio Luiz Streck,8 critica esse “ativismo judicial”, que substitui o juízo do legislador por juízos morais e políticos, deixando nas mãos de uma só pessoa a decisão conforme

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BUFFON, Marciano. Tributação e dignidade humana: entre os direitos e deveres fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 130. GOMES CANOTILHO apud BUFFON, Marciano, 2009, p. 141. STRECK, Lenio Luiz Streck. O que é isto – decido conforme minha consciência?. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 23.

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sua consciência. Assim o autor defende a necessidade do fortalecimento da jurisdição constitucional. Porquanto a imunidade tributária prevista no art. 150, VI, c, das instituições de educação e de assistência social, se apresenta como alternativa às prestações positivas do Estado a efetiva concretização desses direitos sociais. A imunidade em tela visa à proteção de valores prestigiados, protegidos e consagrados pela ordem constitucional, decorrentes de princípios fundamentais e essenciais à concepção do Estado brasileiro. Dessa forma, a imunidade seria um instrumento a não permitir a obstrução dos direitos sociais pela via da tributação (atuação negativa do Estado). Além dessa forma de atuação da imunidade, com a observância dos direitos fundamentais a fim de limitar o poder de tributar; essas instituições atuariam de maneira mais eficiente em suas atividades, sem o desfalque no seu patrimônio, e com uma maior efetividade na prestação dos serviços, o que favoreceria a geração de recursos, com receitas maiores do que as despesas, permitindo a aplicação desses resultados positivos em suas atividades essenciais. Percebe-se, com a imunidade tributária dessas instituições, que os direitos sociais não se concretizam somente com a disponibilidade financeira por parte do Estado, mas por meio de um instituto constitucional que limita o poder de tributar do Estado evitando qualquer nulidade dos direitos fundamentais a fim de garantir o mínimo existencial que envolve diretamente a noção de dignidade da pessoa humana. A imunidade tributária é uma regra da Constituição Federal ligada à estrutura política do país e calcada em interesses sociais, econômicos, religiosos, políticos, educacionais e culturais. Dessa forma, a imunidade veda às entidades tributantes a instituição de impostos em relação a determinadas pessoas, bens, coisas ou situações, com vistas à proteção daqueles princípios, interesses ou valores, tidos como fundamentais pelo Estado. Prescreve o art. 150, VI, “c”, combinado com o § 4º da Constituição Federal, que é vedado à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios instituir impostos sobre o patrimônio, a renda e os serviços, relacionados às finalidades essenciais das instituições de Educação e de Assistência Social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei. Essas instituições são de extrema importância para o desenvolvimento social, econômico e cultural do país, e para a efetivação dos direitos humanos e da cidadania. Ademais, elas necessitam de recur100

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Imunidade tributária como instrumento de concretização de direitos sociais fundamentais

sos para desenvolverem suas atividades e cumprirem com os objetivos constitucionais. No entanto, muitas de suas atividades podem ser tributadas por impostos que poderiam obstruir o efetivo desenvolvimento de suas finalidades institucionais necessárias à efetivação dos direitos sociais previstos no art. 6º da Constituição Federal. Essa tributação vem retratada pela tamanha carga tributária brasileira que chegou, em 2008, a 35,80% do Produto Interno Bruto (PIB), sendo 7,62% de ICMS, 6,74% de Imposto de Renda e o restante em taxas, contribuições e demais impostos.9 A imunidade prevista no art. 150, IV, “c” das instituições de Educação e Assistência Social implica em reconhecer que sua implementação visa atender aos objetivos e fundamentos estabelecidos na Constituição. Ou seja, desoneram essas instituições porque a atuação delas é importante para atingir os objetivos da sociedade, constitucionalmente estabelecidos, juntamente com o Estado, suplementando sua atuação. Dessa forma, por meio da imunidade, o Estado assegura ao cidadão seu direito à dignidade da pessoa humana, princípio plenamente adequado ao Estado Democrático de Direito, garantindo um mínimo existencial que não pode ofender a dignidade do cidadão através da tributação. Esse mínimo existencial constitui um direito fundamental que garante as condições mínimas de existência digna e as condições de liberdade que não podem ser objeto de intervenção do Estado, exigindo deste prestações positivas. Essas condições de liberdade é que vão fundamentar a imunidade tributária do mínimo existencial que irá abranger a não incidência de tributos sobre a renda mínima, os bens de consumo, as prestações estatais da educação, saúde, entre outras que aparecem explicitamente em diversos dispositivos da Constituição Federal.10 Importante destacar que a proteção não se restringe somente ao mínimo existencial, mas existem diretrizes que orientam para uma proteção bem mais ampla como no caso da saúde, que se orienta pelo princípio da universalidade do acesso e integralidade do atendimento. Da mesma forma, o Pacto Internacional dos Direitos Econô-

STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência?. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 23. 10 Id ib. 9

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micos, Sociais e Culturais, que fala em “máxima dos recursos disponíveis” para implementar os direitos sociais.11 Conclui-se que a imunidade tributária é um instituto necessário à concretização dos direitos fundamentais. Dessa forma tem-se a tributação, no campo da imunidade, um meio para densificação dos direitos sociais à educação e assistência social. Considera-se, ainda, que a imunidade dessas entidades assistenciais é um meio utilizado pelo Estado para alcançar a igualdade material necessária à efetivação do Estado Democrático de Direito. Assim, a tributação, quando leva em consideração a capacidade contributiva do cidadão, ou a não tributação e aqui entram as imunidades, são mecanismos que vislumbram a igualdade substancial, mantendo a dignidade da pessoa humana e densificando o Estado Democrático de Direito. A atuação dessas entidades concretiza o princípio da dignidade da pessoa humana que é um dos pilares que sustentam o Estado Democrático de Direito, instituído formalmente na Constituição Federal de 1988 no art.1º, III. Sendo assim, ele se torna um elemento norteador de toda a Carta Política, principalmente em relação aos direitos fundamentais. Importante destacar que o princípio da dignidade da pessoa humana está presente em todos os direitos fundamentais, inclusive, nos sociais, como a educação e assistência social. Por conseguinte, concretizando-se os direitos sociais, com a imunidade, reconhece-se uma eficácia jurídica deste princípio. Considerando esse fundamento na pessoa humana, consignado na Carta Maior, percebe-se, como afirma Buffon, que é o Estado que existe em função da pessoa humana, assegurando ao indivíduo o seu direito de existir com dignidade. Porquanto, como afirmou Häberle, o Estado tem o encargo constitucional de proteger o indivíduo em sua dignidade humana.12 Dessa forma, as instituições de educação e assistência social, quando são imunes, através dessa desoneração tributária concedida pelo próprio Estado, estão atendendo ao princípio da dignidade da pessoa humana e aos outros fundamentos e objetivos traçados na Constituição Federal (arts. 1º e 3º).

Id ib. BUFFON, Marciano. Op. cit., p. 123.

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VII. Ensaio


Autores Marco Mondaini

Professor da Universidade Federal de Pernambuco. É autor dos livros Direitos Humanos e Direitos Humanos no Brasil, ambos publicados pela Editora Contexto, em parceria com a Unesco; e Enrico Berlinguer. Democracia, valor universal e Do stalinismo à democracia. Palmiro Togliatti e a construção da via italiana ao socialismo, ambos publicados pela Fundação Astrojildo Pereira, em parceria com a Editora Contraponto.

Fernando Perlatto

Professor de Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), mestre em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e doutorando pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp-Uerj).


Direitos humanos e marxismo Marco Mondaini 1. Publicado em fevereiro de 1844 no primeiro e único número dos Anais Franco-Alemães, junto à Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, A Questão Judaica representa o ato de fundação da crítica marxista aos direitos humanos. Escrito por Karl Marx no ano de 1843 quando tinha apenas 25 anos de idade, o ensaio é um texto de polêmica contra o jovem hegeliano Bruno Bauer em sua análise da religião judaica.1 Então, o jovem Marx realiza duas distinções que acabariam se tornando recorrentes dentro da tradição teórico-política por ele fundada no decorrer do século XIX: a) emancipação política e emancipação humana; b) direitos do homem e direitos do cidadão. Por meio da primeira distinção, busca-se mostrar que a separação entre Estado e religião, isto é, a ultrapassagem da religião de Estado por meio da edificação de um Estado laico (a emancipação política da religião), não acarreta a libertação do ser humano em relação ao sentimento religioso (a emancipação humana da religião), da mesma forma que a diminuição do peso da propriedade privada na formação do corpo eleitoral, o amolecimento do sufrágio censitário, não torna o homem livre da propriedade privada. O limite da emancipação política manifesta-se imediatamente no fato de que o Estado pode livrar-se de um limite sem que o homem dele se liberte realmente, no fato de que o Estado pode ser um Estado livre sem que o homem seja um 1

O núcleo central da crítica de Marx a Bauer gira em torno do fato deste último ter limitado a sua análise do judaísmo à questão religiosa, deixando de lado o seu fundamento secular, real, isto é, a vida burguesa e seu apogeu com o sistema monetário.

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Ensaio homem livre (...) Portanto, o Estado pode ter se emancipado da religião, ainda que e, inclusive, a grande maioria continue religiosa. E a grande maioria não deixará de ser religiosa pelo fato da sua religiosidade ser algo puramente privado. (MARX, 2005, p. 19)

Assim, o problema da democracia conquistada por meio da emancipação política estaria localizado exatamente no fato de manter o homem como um ser alienado já que a emancipação do Estado político em relação à religião ou à propriedade não acarreta a emancipação do homem real em relação a estas duas, que são devidamente mantidas em pé no interior da sociedade civil burguesa. Dentro desse contexto, devido à falta de radicalidade que a move, a emancipação política sempre estaria envolta por contradições não resolvidas, diferentemente da emancipação humana, única realmente capaz de transformar o homem num ser livre, já que não recorreria ao subterfúgio da transferência do problema da religião ou da propriedade do mundo público para o mundo privado, pois que, libertando o homem no campo público e mantendo-o preso privadamente, mesmo sendo eliminadas politicamente, religião e propriedade continuariam sendo pressupostos da vida social burguesa real, não sendo suprimidas dessa esfera. A cisão do homem entre a vida pública e a vida privada, levada a cabo através da emancipação política, encontra-se na base da segunda distinção estabelecida pelo jovem Marx – aquela realizada entre os direitos do homem (droits de l’homme) e os direitos do cidadão (droits du citoyen), ou seja, por um lado, os direitos do homem burguês que não passa de uma mônada isolada dobrada sobre si mesma, os direitos do homem egoísta, os direitos do interesse pessoal, os direitos do homem separado do homem e da comunidade, enfim, os direitos do membro da sociedade civil burguesa, e, por outro lado, os direitos do membro da comunidade política, a aparência política da sociedade civil burguesa, que, como tal, se submete à essência social burguesa. Desse modo, para Marx, os direitos do homem acabam submetendo os direitos do cidadão à medida que o citoyen é declarado servo do homme egoísta, do bourgeois. Com isso, a revolução política levada a cabo pelos direitos humanos realiza a dissolução da vida burguesa sem criticá-la radicalmente, isto é, sem questionar o fato de que o cidadão na democracia política é apenas uma abstração submissa ao burguês, um ser alienado, não um ser genérico real, que não consegue ter consciência do fato de que o cidadão abstrato é a forma que mantém velado o homem egoísta. 106

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Direitos humanos e marxismo (...) Finalmente, o homem enquanto membro da sociedade burguesa é considerado como o verdadeiro homem, como homme, distinto do citoyen por se tratar do homem em sua existência sensível e individual imediata, ao passo que o homem político é apenas o homem abstrato, artificial, alegórico, moral. O homem real só é reconhecido sob a forma de indivíduo egoísta; e o homem verdadeiro, sob a forma do citoyen abstrato. (MARX, 2005, p. 41)

Daí a conclusão de Marx de que, por meio da emancipação política, o homem é apenas e tão somente reduzido, de um lado, a membro da sociedade burguesa, a indivíduo egoísta independente e, de outro lado, a cidadão do Estado, a pessoa moral, cabendo à emancipação humana a tarefa histórica desalienante de fazer com que o homem individual real recupere em si o cidadão abstrato, convertendo-se assim, como homem individual, em ser humano genérico. Marx retomaria a polêmica contra Bruno Bauer e a análise crítica dos direitos humanos no primeiro livro escrito junto a Friedrich Engels, no ano de 1845: A Sagrada Família. Nessa ocasião, em conformidade com o que havia sido argumentado dois anos antes em A Questão Judaica, indica-se que o reconhecimento da livre personalidade humana, já contida nos direitos gerais do homem, nada mais seria que o reconhecimento do indivíduo egoísta burguês, o que significa, por conseguinte, que: (...) os direitos humanos não emancipam o homem da religião, senão que lhe outorgam liberdade religiosa; que não o emancipam da propriedade, senão que lhe conferem a liberdade de propriedade; que não o emancipam das redes de lucro, senão que lhe outorgam a liberdade industrial. (MARX, 2005, p. 78-79)

Em suma, para Marx, os direitos humanos seriam o instrumento da conquista da emancipação política, mas, enquanto tais, não passariam de um produto da sociedade burguesa, na qual a conquista da liberdade do indivíduo implica sempre a limitação da liberdade dos outros indivíduos e não a sua realização junto a esta última. Os direitos humanos, dentro desse contexto, desempenhariam a função de instrumento de delimitação da individualidade dos homens livres, que, na vida real, estariam envoltos na clássica “guerra de uns contra os outros” hobbesiana. Com isso, a escravidão da sociedade burguesa ganharia a aparência da sua maior liberdade – isso, através da substituição do que antes era privilégio pelo direito. 2. Mesmo sem tratar diretamente da questão dos direitos humanos e apesar de não ser um texto de natureza filosófica, A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky, de Lênin, ocupa um lugar certo na construção da crítica marxista sobre a temática em questão.

Marco Mondaini

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Ensaio

Escrito no ano de 1918, com o escopo de defender a dissolução da Assembleia Nacional Constituinte pelos bolcheviques e rebater as teses enunciadas pelo líder da social democracia alemã, Karl Kautsky, em A Ditadura do Proletariado, o livro de Lênin foi um dos maiores responsáveis pela afirmação da dicotomia entre democracia burguesa e democracia proletária no interior do pensamento marxista e dos partidos comunistas mundo afora. Para Lênin, não haveria sentido algum em falar de democracia em geral, de democracia pura, em uma sociedade dividida em classes, podendo-se falar apenas de democracia de classe enquanto existirem classes diferentes. Por conseguinte, seria inevitável a pergunta: democracia, para que classe? Somente assim seria possível a percepção de que a democracia pura não passa de um meio para se esconder o caráter de classe da democracia burguesa. Dito de outra maneira, à medida que é compreendida como um conceito jurídico e formal, a democracia se reduz a uma aparência responsável pelo encobrimento da dominação das massas pela burguesia, uma expressão ideológica da ditadura de classe burguesa. O raciocínio desenvolvido pelo líder da Revolução Russa não deixa margem a qualquer espécie de dúvida. Em função da sua essência burguesa, a democracia contemporânea, isto é, capitalista, seria uma democracia para os ricos, sendo a igualdade formal apenas o tipo de igualdade desejado pelos capitalistas. Nesse sentido, a conclusão a que chega Lênin sobre as instituições representativas parece óbvia. O parlamento é uma instituição burguesa, comandada por uma classe hostil, uma minoria exploradora, sendo um instrumento de opressão dos proletários, inteiramente alheio aos interesses destes últimos, diversamente do instituto revolucionário de participação criado no decorrer do processo revolucionário russo – os sovietes. A democracia proletária é um milhão de vezes mais democrática que qualquer democracia burguesa. O Poder Soviético é um milhão de vezes mais democrático que a mais democrática república burguesa. (LÊNIN, 1980, p. 19).2 2

A fim de se contrapor à dicotomia leniniana entre democracia burguesa e democracia operária, o líder comunista italiano Enrico Berlinguer afirmaria ser a democracia um valor universal, quando do discurso feito no ano de 1977, em Moscou, durante as comemorações dos sessenta anos da Revolução Russa: “A experiência realizada nos levou à conclusão – assim como aconteceu com outros partidos comunistas da Europa capitalista – de que a democracia é hoje não apenas o terreno no qual o adversário de classe é forçado a retroceder, mas é também o valor historicamente universal sobre o qual se deve fundar uma original sociedade socialista. (MONDAINI, 2009, p. 116)

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Direitos humanos e marxismo

3. O filósofo francês Claude Lefort assinalou com precisão o ponto central do equívoco cometido por Marx em relação aos direitos humanos, numa análise que, de certa forma, pode ser estendida ao entendimento da questão democrática por Lênin. Para Lefort, tal equívoco estaria situado na não percepção de que a descoberta dos direitos humanos e da democracia nasce da luta de classes, dos movimentos populares e operários, não sendo uma pura invenção da burguesia. À luz de Marx, os direitos humanos não seriam mais que uma ilusão política – necessária, mas transitória – existente enquanto a emancipação política não se transformasse em emancipação humana. Com isso, a liberdade de consciência, por exemplo, deixa de ser vista como uma conquista de caráter universal nascida do combate ao Antigo Regime para se transformar em uma simples ficção democrática. Assim, Marx não se inquieta em demonstrar que os principais enunciados contidos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão são transgredidos na prática, através de uma interpretação burguesa da lei – pelo contrário, ele rejeita a própria função da lei escrita, apagando a dimensão da lei enquanto tal. Marx não consegue ver a dimensão exata da mutação histórica acontecida com o advento do Estado de Direito, no qual o político se transforma à medida que o poder passa a ter de conviver com limites, isto é, o poder começa a ter de se relacionar com uma força exterior a ele – a força do direito. Mais ainda. A partir do momento em que passou a reproduzir a ideia de que forma e conteúdo estabelecem entre si uma relação de oposição, sendo o direito nada mais que uma máscara das relações burguesas, Marx pôs o primeiro tijolo na parede que seria erguida entre uma boa parte dos marxistas e a compreensão da luta e conquista de novos direitos, a compreensão de que é na luta por novos direitos que indivíduos e grupos sociais tendem a modificar a trama da sociedade política, sem esperar por uma solução global dos conflitos ou a hora H da conquista do poder. Ora, de acordo com Lefort, as lutas sociais dos trabalhadores deitam raízes exatamente na consciência do direito e não no objetivo da tomada do poder do Estado, são lutas de minorias políticas diferentes que se percebem unidas em torno da luta por seus direitos, o que atesta a eficácia simbólica da noção de direitos. Dito de outra maneira, o que une indivíduos e grupos sociais diversos entre si, sem fundi-los num corpo só, é a luta por novos direitos e Marco Mondaini

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Ensaio

não a luta pela construção de um poder Uno, a luta pela indeterminação do social, isto é, pela democracia e pelos direitos humanos. Política dos direitos do homem, política democrática, duas maneiras, pois, de responder à mesma exigência: explorar os recursos de liberdade e criatividade nos quais se abebera uma experiência que acolhe os efeitos da divisão; resistir à tentação de trocar o presente pelo futuro; fazer o esforço ao contrário para ler no presente as linhas de sorte indicadas com a defesa dos direitos adquiridos e a reivindicação dos direitos novos, aprendendo a distingui-los do que é apenas a satisfação do interesse. E quem disser que a tal política falta audácia, que volte os olhos para os soviéticos, para os poloneses, os húngaros, os tchecos ou os chineses em revolta contra o totalitarismo: são eles que nos ensinam a decifrar o sentido da prática política. (LEFORT, 1983, p. 69)

4. O filósofo do direito espanhol Gregorio Peces-Barba também localizou o núcleo do equívoco da recusa dos direitos humanos pelo pensamento marxista no interior da própria obra de Marx, tendo sido Lênin aquele que realizou concretamente tal recusa por meio da sua crítica ferrenha ao sistema político liberal do Estado parlamentar representativo, em nome da ditadura do proletariado, que, na prática, representou a ditadura do partido-vanguarda do proletariado. Porém, o equívoco original de Marx teria raízes históricas à medida que, quando da redação de A Questão Judaica, o processo de generalização dos direitos humanos encontrava-se apenas nos seus inícios, estando a nascente classe operária desprovida de direitos políticos essenciais para a construção da luta posterior pelos direitos sociais, a exemplo do sufrágio universal e da liberdade de associação, o que obviamente acarretava a sua marginalização dentro do sistema parlamentar representativo. Por conseguinte: (...) O núcleo do erro de Marx é a sua ligação com o modelo histórico dos direitos do homem, que considera como o único possível, a sua incapacidade de compreender o sentido capaz de transformar o conceito e o seu dinamismo, através do qual os direitos escaparam da dependência da classe burguesa que os criou. (PECES-BARBA, 1993, p. 76)

Dentro desse contexto, estando a gênese do equívoco marxista em relação aos direitos humanos situada no próprio Marx, devido a razões históricas, resta indagar como um tal ponto de vista continua a pairar sobre a cabeça de certos marxistas (ou de pensadores situados no campo da esquerda radical, de maneira geral), ao invés de estar definitivamente depositada no museu do passado como uma relíquia a ser contemplada.

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5. Neste início de século XXI, o filósofo esloveno Slavoj Zizek já pode ser considerado um dos grandes responsáveis pela tentativa de manter atual a extemporânea forma de pensar os direitos humanos construída pelo jovem Marx na primeira metade do século XIX, através de uma operação intelectual que confunde os direitos humanos e a democracia com o uso instrumental que as grandes potências do planeta – tendo à frente os Estados Unidos da América – fazem dos direitos humanos e da democracia. Assim, para Zizek, a política dos direitos humanos na contemporaneidade não passaria de uma ideologia do intervencionismo militar a serviço de objetivos econômicos e políticos muito precisos. Em termos marxistas-leninistas, os direitos humanos dos povos sofridos do Terceiro Mundo representariam, efetivamente, nada mais que o direito dos poderes ocidentais de intervir política, econômica, cultural e militarmente nos países do Terceiro Mundo. (...) os ‘direitos humanos’ são, enquanto tais, uma falsa universalidade ideológica, que esconde e legitima a real política do imperialismo ocidental, as intervenções militares e o neocolonialismo (...). (ZIZEK, 2005, p. 63)

Na verdade, como o próprio Zizek faz questão de tornar explícito, para ele, tal qual no Marx de A Questão Judaica, os direitos humanos continuam tendo uma específica orientação ideológica burguesa, onde a existência concreta da universalidade é o indivíduo sem um lugar preciso no edifício social: (...) os direitos humanos universais são na realidade os direitos dos brancos, masculinos e ricos, de realizar trocas livres no mercado, de explorar os operários e as mulheres e de exercitar o predomínio político (...). (ZIZEK, 2005, p. 67)

6. Neste ponto da discussão, creio que seja oportuna a lembrança de um dos grandes nomes da historiografia marxista e, também, do pensamento de esquerda contemporâneo. Alguém que, nas décadas de 1970 e 1980, polemizou com o estruturalismo anti-humanista althusseriano em nome do princípio da historicidade, da mesma forma que criticou o reducionismo de classe a fim de defender uma das grandes bandeiras dos direitos humanos – o pacifismo. Falo aqui do historiador britânico Edward Thompson. Em 1975, Thompson daria uma contribuição decisiva para a formação de um novo ponto de vista sobre o direito dentro da tradição marxista – conflitante com a linhagem marxista-leninista – ao publicar o livro intitulado Senhores e Caçadores. Então, seu objeto de estudo foi a lei criada na Inglaterra, em 1723, que passava a punir com a pena capital cinquenta novos deliMarco Mondaini

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tos. Conhecida como “Lei Negra”, a nova lei punia com a pena de morte as pessoas armadas, com o rosto pintado de preto, que fossem flagradas nas florestas, reservas de caça, parques ou cercamentos do território inglês, dando forma a uma clara tentativa do Estado britânico de radicalizar a punição em relação a todos aqueles indivíduos que tentassem afrontar o caráter privado da propriedade. Nas conclusões desse estudo, Thompson elabora uma concepção do direito divergente em relação às visões liberal e marxista-leninista. Por um lado, questiona-se a ideia liberal de lei como algo imparcial, que paira acima de todos os interesses sociais, reinante dentro de uma sociedade marcada pelo consenso generalizado. Por outro lado, critica-se a percepção marxista-leninista de lei como um simples instrumento de dominação de classe, uma parcela da superestrutura determinada pelas necessidades da infraestrutura. Assim, o equívoco central desse marxismo estaria localizado na redução da lei a um fenômeno estrutural responsável apenas e tão somente pela realização da dominação de classe da burguesia. (...) Se a lei é manifestamente parcial e injusta, não vai mascarar nada, legitimar nada, contribuir em nada para a hegemonia de classe alguma. A condição prévia essencial para a eficácia da lei, em sua função ideológica, é a de que mostre uma independência frente a manipulações flagrantes e pareça ser justa. Não conseguirá parecê-lo sem preservar sua lógica e critérios próprios de igualdade; na verdade, às vezes sendo realmente justa (...). (THOMPSON, 1987, p. 354)

A alternativa apresentada por Thompson em relação ao liberalismo e ao marxismo-leninismo encontra a sua síntese na ideia de que o direito é um campo de conflito, no qual, na mesma medida em que os dominantes necessitam da lei para oprimir os dominados, estes últimos dela necessitam para se defender da fúria opressora dos primeiros, constituindo assim uma autêntica luta em torno da lei. Fruto direto da investigação das lutas travadas contra o poder absolutista desde os séculos XVII e XVIII, o ponto de vista construído por Thompson sobre o direito desdobra-se em duas conclusões ao mesmo tempo complexas e contraditórias. Em primeiro lugar, que à medida que a lei mediava as relações de classe existentes para proveito dos dominantes, ela também mediava essas mesmas relações de classe impondo restrições às ações dos dominantes, ou seja, se as leis podem disfarçar as realidades do poder, elas também podem refrear esse poder e conter os seus excessos. 112

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Em segundo lugar, que existe uma abissal diferença entre o exercício de um poder extralegal arbitrário e a existência do domínio da lei. A regulação e reconciliação dos conflitos por intermédio do domínio da lei representam, por conseguinte, uma conquista cultural de significado universal, pois que não há comparação, para aqueles que se encontram situados nos setores mais subalternos da sociedade, entre o exercício da força pelos opressores sem mediações legais, por um lado, e o uso da mediação através das formas da lei, por outro lado, ainda que tal mediação possa legitimar as relações de classe existentes, cristalizando-as e mascarando-as. 7. Integrante da mesma tradição historiográfica a que pertenceu Edward Thompson, Eric Hobsbawm afirmou certa feita que os direitos implicam sempre o seu reconhecimento por outras pessoas, sendo que os mesmos nunca podem deixar de ter a possibilidade de serem assegurados pela ação do homem. Ao contrário de serem abstratos, universais e imutáveis, os direitos estão situados sempre dentro de uma determinada sociedade, que, como todas as sociedades realmente existentes, os reconhece apenas para alguns dos seus integrantes, rejeitando as reivindicações dos outros. Assim, para a visão do historiador, os direitos não existem pairados abstratamente, mas somente onde as pessoas os exigem, ou elas estão conscientes de sua falta. Nesse sentido, ao serem constituídos por pessoas desfavorecidas dentro da ordem capitalista, os movimentos operários sempre tiveram de se preocupar com a exigência de proteção individual e social dos seus integrantes, desempenhando, com isso, um importante papel no desenvolvimento dos direitos humanos – isso, acrescentando ao conteúdo individual originário dos direitos do homem elementos de natureza coletiva. De toda forma, claro está para o historiador britânico que nem mesmo o núcleo originário individual dos direitos do homem, construído no curso do século XVIII, pode ser denominado de exclusivamente burguês. (...) Não os tratarei somente como direitos ‘burgueses’, tanto porque eles tiveram nítida influência que ultrapassou os limites de apoio ao liberalismo burguês – um bom exemplo é o Rights of Man, de Tom Paine – quanto também porque muito dos direitos formulados no contexto final do século XVIII ainda corresponde ao que a maioria das pessoas nas sociedades modernas desejam e precisam. (HOBSBAWM,1987, p. 415)

A abolição dos direitos dos trabalhadores pré-revolução industrial durante o século XIX, direitos estes que faziam parte daquilo que Thompson denominou de “economia moral”, no bojo da ofensiva Marco Mondaini

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do modo de produção capitalista, explica em parte o fato de os teóricos do movimento operário do período – incluso aí com destaque Marx – não apenas não terem falado a linguagem dos direitos humanos, mas terem sido abertamente hostis em relação a estes. No entanto, permanece inexplicável o posicionamento daqueles socialistas, marxistas em particular, que, após tudo aquilo que aconteceu de positivo (a edificação do Estado Democrático de Direito e do Estado Social em inúmeras partes do mundo) e de trágico (as experiências nazista, fascista e comunista) no decorrer do século XX, continuam a ignorar ou questionar asperamente os direitos humanos. Duplamente inexplicável se levarmos em consideração o fato de que, ainda no século XIX, a maioria dos movimentos operários “ainda funcionava dentro da estrutura das Revoluções francesa e norteamericana”, isto é, “lutavam pelos direitos dos trabalhadores à plena cidadania, mesmo que esperassem continuar a lutar por algo mais”. Ademais: (...) Eles deram força especial a esta luta pelos direitos do cidadão porque sua maioria era composta de pessoas que não usufruíam desses direitos, e porque mesmo aqueles direitos legais e liberdades civis, que eram aceitos na teoria, eram contestados na prática pelos adversários dos trabalhadores (...) Entretanto, como sabemos, o verdadeiro direito de expressão e reunião (...) teve de ser obtido através de uma série de ‘lutas pela liberdade de expressão’ ou manifestações de massa. Foram semelhantes as lutas pelo efetivo direito a uma livre imprensa popular, ou radical. A contribuição mais importante dos movimentos operários do século XIX aos direitos humanos foi demonstrar que eles exigiam uma grande amplitude e que tinham de ser efetivos na prática tanto quanto no papel. Esta foi, naturalmente, uma contribuição importante e crucial. (HOBSBAWM, 1987, p. 419)

Concomitantemente, o movimento operário conseguiu levar os direitos humanos para além dos seus limites iniciais, fazendo com que fosse rompida a camisa-de-força individualista de natureza políticojurídica que os mantinha confinados desde o século XVIII. Foi assim que o movimento operário acabou por realizar uma luta tanto no sentido individual como no social, tornando-se o verdadeiro herdeiro do iluminismo racionalista do século XVIII, pois que passaram a levantar, mais do que qualquer outra força social, a bandeira revolucionária da liberdade, igualdade e fraternidade, junto a da emancipação dos homens.
Com isso, o movimento operário acabou forçando, na teoria e na prática, o repensar dos direitos humanos dentro da nova sociedade capitalista, já que os modernos sistemas de bem-es-

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tar social surgiram em função da existência e exigências das classes trabalhadoras. Referências: HOBSBAWM, Eric. O Operariado e os Direitos Humanos in Mundos do Trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 409-431. LEFORT, Claude. A Invenção Democrática. São Paulo: Brasiliense, 1983. LÊNIN, Vladimir. A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky in Obras Escolhidas, v. 3. São Paulo: Alfa-Omega, 1980, p. 1-75. MARX, Karl. A Questão Judaica. São Paulo: Centauro, 2005. MONDAINI, Marco (org.). Democracia, Valor Universal. Enrico Berlinguer. Brasília/Rio de Janeiro: Fundação Astrojildo Pereira/ Contraponto, 2009. PECES-BARBA, Gregorio. Teoria dei Diritti Fondamentali. Milano: Giuffrè Editore, 1993. THOMPSON, Edward. Senhores e Caçadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. ZIZEK, Slavoj. Contro i Diritti Umani. Milano: Il Saggiatore, 2005.

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Democracia brasileira: entre a representação e a participação Fernando Perlatto As últimas décadas testemunharam um processo crescente de crítica às instituições identificadas com a democracia representativa, tomadas como incapazes de responder aos desafios colocados à vida política contemporânea. O enorme fosso a separar representantes e representados vem animando diversas propostas alternativas de democracia – tanto teóricas, quanto práticas – que, a despeito das diferenças, têm na ideia de participação sua identidade comum. A percepção quanto ao reduzido interesse em relação às disputas eleitorais e o consequente baixo comparecimento às urnas, inclusive nas democracias europeias tidas como consolidadas, somada à eclosão de movimentos como os “Indignados” que tomaram recentemente as praças espanholas, evidenciam que o modelo democrático hegemônico, consolidado no decorrer do século XX, encontra-se em crise. Importa reter que a disputa sobre o que é ou dever ser a democracia é intrínseca à própria ideia de democracia. Tomá-la como um modelo fechado e acabado é contrariar sua história e a sua própria definição, que deve ser encarada como um projeto aberto, imperfeito e em permanente reinventar-se. Se no século XIX, no rescaldo das revoluções burguesas que tiveram seu curso no final do XVIII, a reflexão sobre a democracia assumiu feições elitistas, sobretudo como decorrência da perspectiva “demofóbica” que assolava as elites políticas de então,1 no século XX ela acabou por ganhar características “elitistas”, posto que identificada como um modelo exclusivamente institucional. A teoria democrática do século XX – representada principalmente pelos nomes de Joseph Schumpeter (Capitalismo, socialismo e democra1

No século XIX, parte significativa do pensamento liberal já considerava inevitável a expansão e consolidação da democracia. Tal percepção pode ser comprovada na obra de Alexis de Tocqueville, A democracia na América, na qual o autor aponta para a inexorabilidade da marcha da igualdade e da liberdade, em um movimento de expansão crescente da democracia pelo mundo. Diante da sua inevitabilidade, os debates se concentram na forma que o sistema democrático deveria assumir. O “medo das massas” que toma grande parte da elite política do final do século XVIII e no decorrer do século XX será central para a associação da democracia exclusivamente com a ideia de representação. Sobre este ponto, ver Miguel, 2002.

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cia, 1942) e Robert Dahl (Poliarquia, 1971; Um prefácio à teoria democrática, 1985) – assumirá uma concepção restrita de democracia, seja associando-a à luta por poder entre líderes políticos rivais, seja assumindo-a exclusivamente como garantia de competição entre grupos de interesses, com proteção de minorias e de direitos de participação. Na segunda metade do século XX, propostas de democracia participativa apareceram em diversos contextos, no bojo das críticas formuladas tanto ao Estado de Bem-Estar Social, quanto ao neoliberalismo. De acordo com estas análises, ambos os modelos não conseguiram dar respostas satisfatórias à questão democrática: se por um lado, o Estado de Bem-Estar Social, hegemônico em diversos países entre as décadas de 1930 a 1960, implicou na consolidação de um Estado clientelista sobreposto à sociedade civil, objeto esta de uma ação paternalística por parte de uma burocracia pouco interessada na mobilização de outros segmentos da sociedade, que não aqueles já organizados e controlados “por cima” mediante relações heterônomas (NOBRE, 2004), por outro lado, o neoliberalismo, que dominou e ainda domina parte significativa dos países desde o final da década de 1970, focado na capacidade libertadora das forças do mercado, acabou por reforçar valores como o individualismo e a competitividade, se não opostos, ao menos contraditórios com aqueles fundamentais para a construção de uma vida democrática. Centrados principalmente no aspecto institucional e tendo como horizonte normativo apenas reformas pontuais nos desenhos partidários, os chamados “modelos minimalistas” de democracia mostraram-se e ainda vêm se mostrando incapazes de darem respostas aos desejos e aspirações do homem comum e da sociedade civil organizada. Na busca da superação desses modelos, diferentes autores como Carole Pateman, C. B. Macpherson, Benjamin Barber, Jane Mansbridge e Archon Fung, entre outros, cada qual à sua maneira, defendem propostas de “democracia participativa”, muitos deles influenciados por uma concepção rousseauniana que tem como base de sustentação a ideia de “vontade geral”, segundo a qual a noção mesma de representação deve ser superada por formas de participação direta no sistema político. Buscando um modelo alternativo, situado entre aquilo que denominou como modelos “liberal” e “republicano”, Jurgen Habermas (2004), buscou desenvolver um terceiro caminho, identificado como modelo “procedimental”, focado na ideia de deliberação. Defendendo pretensões normativas mais fortes do que a democracia liberal – a perspectiva procedimental aposta em uma esfera pública animada, como desejam os republicanos, na qual ocorram processos reais de formação da opiFernando Perlatto

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nião e da vontade –, porém, mais fracas do que o modelo republicano – apostando nas garantias estabelecidas pelo Estado liberal para a institucionalização do processo de decisão, que não deve depender do fato de os cidadãos serem suficientemente ativos ou coletivamente capazes de ação –, Habermas defende que o “assédio” às instituições liberais representativas deva ser estimulado, embora exercido sem a “intenção de conquista”, respeitando-se os limites entre as esferas do sistema político e a esfera pública envolvida no debate. No Brasil, a discussão quanto à necessidade de se ampliar os cânones democráticos para além da representação também vem ganhando força, pelo menos desde o final da década de 1970. As mobilizações que tomaram conta do país a partir deste contexto – da qual participaram, entre outros, segmentos como o “novo sindicalismo”, as comunidades eclesiais de base (CEBs), instituições científicas públicas e privadas, assim como movimentos de minorias – foram fundamentais para que instituições vinculadas à democracia participativa emergissem com força e, a despeito da composição majoritariamente conservadora da Assembleia Constituinte, entrassem de maneira destacada no próprio tecido da Constituição de 1988. No processo de transição à democracia, a nossa Carta constitucional logrou consolidar, dentro dos limites da institucionalidade democrática, instrumentos participativos, sem que, para tanto, fosse necessária a supressão dos mecanismos representativos. As inovações participativas contidas no texto constitucional foram processadas de diversas maneiras, seja mediante a inclusão da possibilidade da realização de referendos e plebiscitos, seja pelo seu desenho descentralizador, que acabou por conferir às administrações municipais recursos e independência política para reestruturar o processo de produção de políticas públicas, possibilitando o fortalecimento de conselhos gestores e a expansão de práticas democratizadoras, como o orçamento participativo (AVRITZER, 2010). Além disso, o texto constitucional também institucionalizou novos canais de participação funcional por meio das instituições do Judiciário, recuperando o tema da pedagogia cívica exercida pelo Direito, suas instituições e procedimentos, de modo a ampliar as formas da representação da sociedade civil com vias próprias para chegar à esfera pública (WERNECK VIANNA, 2008). Nos últimos anos, outras inovações institucionais buscaram trazer o tema da democracia participativa para o centro da agenda política e teórica do país. A criação em 2003 do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), constituído como espaço que busca debater e, sobretudo, construir consensos entre representantes das entida118

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des classistas de trabalhadores e empresários, além de outros setores da sociedade civil e Governo, e que garantam a efetivação dos temas considerados prioridade da agenda do governo, bem como a expansão das conferências nacionais de políticas públicas nos últimos anos, abrangendo uma enormidade de temas e mobilizando uma gama considerável de participantes, são exemplos concretos de esforços no sentido de se repensar o tema da democracia nos dias atuais. Diante deste breve quadro esboçado acima, que evidencia uma democracia que vem se consolidando nas últimas décadas mediante a combinação de instrumentos representativos e participativos, a pergunta que se faz é: há alguma necessidade de uma reforma política? Será que não atingimos um ponto ótimo, a partir do qual não se faz necessária qualquer intervenção no sistema político? Não estaríamos a caminhar para um fim da história institucional, a partir do qual basta apenas gerir o sistema, aperfeiçoando de forma reduzida os mecanismos garantidores da ordem e deixando que o sistema resolva por si só eventuais problemas? Em suma, há necessidade de mudanças no nosso sistema democrático? De fato, é inegável e ponto a ser ressaltado que a democracia brasileira vem se expandindo de maneira significativa nos últimos anos. Alternando a experiência de regimes semidemocráticos (1945-1964), com regimes autoritários (1964-1985) e novamente democráticos (desde 1986), nosso sistema político, não obstante recuos e percalços, tem se consolidado tanto do ponto de vista do recrutamento de novos segmentos – a participação do eleitorado saltou de 16,2% da população adulta, em 1945, para 69%, em 2006 –, quanto do ponto de vista institucional (SANTOS, 2007). Além de ter se mostrado resistente a um processo de impeachment no início da década de 1990 e a escândalos de corrupção que assolaram o país recentemente, as duas últimas décadas, sob a hegemonia de tucanos e petistas, testemunharam o amadurecimento do nosso sistema político e das instituições representativas, que responderam bem aos processos de transição democrática e às crises políticas. Passados mais de vinte anos da aprovação da Carta de 1988, portanto, podemos dizer que nossa institucionalidade democrática tem se robustecido, assegurando as liberdades individuais e políticas, o estabelecimento de eleições regulares e a prática da alternância de poder, fazendo com que atravessemos um momento de consolidação da rotina democrática. Contudo, é preciso ressaltar que não basta à vida democrática a rotina; nela, também se fazem necessárias a imaginação e a invenção permanentes, sob o risco da democracia se “desencantar” e funcionar como uma espécie de máquina a ser acionada Fernando Perlatto

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a cada novo processo eleitoral. Uma democracia desencantada é aquela cujas decisões políticas se dão de “cima para baixo”, que funciona amparada apenas em suas instituições e procedimentos, exercida somente no período das eleições e que prescinde até o próximo pleito da participação da sociedade. A linguagem dessa democracia desencantada é o discurso técnico, seja do mercado, seja do Estado, que não organiza e nem mobiliza a sociedade, e que constrange a emergência do novo, sob o risco deste transtornar a rotina e perturbar as regras do jogo. Nossa democracia parece, em muitos momentos, padecer desta incapacidade de imaginação e invenção. Se os últimos 16 anos de governos tucanos e petistas tiveram o mérito de consolidarem institucionalmente e no senso comum a estabilidade monetária e as políticas sociais como conquistas que não devem ser revogadas, ambos os partidos enfrentam hoje um déficit permanente de criatividade, no sentido de pensar alternativas e possibilidades para a reanimação da vida política do país. Os debates sobre desenvolvimento são centrados exclusivamente nas variáveis mercado e Estado, sendo relegadas a segundo plano propostas para o fortalecimento da esfera pública brasileira. Não se trata aqui, e é importante ressaltar, de se negar a importância desses processos de inclusão para a consolidação da democracia no país. Mas, a vida democrática exige mais: exige mobilização da sociedade e o envolvimento da mesma para que as políticas de expansão do mercado e do Estado sejam construídas “por baixo”, com a participação autônoma daqueles diretamente atingidos por elas. Será que nossa imaginação se encerra na discussão de mais inclusão no mercado e/ou mais Estado ou menos Estado? Não seria o caso de perguntarmos: mais inclusão no mercado e mais Estado para que? É fundamental que atentemos para o fato de que a sociedade brasileira está se movendo. Ao contrário dos diagnósticos que apontam para a apatia reinante, percebemos uma sociedade que se organiza e que se movimenta seja para protestar contra a precariedade das condições de vida e por baixos salários – como evidenciam as manifestações que ocorreram recentemente nas obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) em Jirau e as mobilizações dos bombeiros no Rio de Janeiro –, seja artisticamente – como testemunham as diversas manifestações culturais, como festas e círculos de forró, música brega, funk, samba etc. que explodem pelas periferias do país e das grandes cidades –, potencializadas pelas novas ferramentas da internet, como o twitter. Essa movimentação ocorre no âmbito do que tenho chamado de esfera pública subalterna (PERLATTO, 2010), mas 120

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não alcança a esfera pública institucionalizada pela incapacidade dos partidos políticos de interpretarem suas vontades, desejos e aspirações, organizando-as politicamente. Encontramo-nos, portanto, diante de uma situação que demanda mudanças capazes de fortalecer os partidos políticos, elos centrais de uma vida democrática pulsante, que, tanto por questões internas – ausência de processos democráticos de deliberação, e escolha de dirigentes e candidatos – quanto externas – domínio do Executivo sobre a agenda do Legislativo –, encontram-se fragilizados e pouco acessíveis ao homem comum, com suas aspirações e desejos por mudança. Nesse sentido, é que se faz necessária uma reforma política que fortaleça partidos capazes de contribuírem para a organização e animação da vida popular, de modo que os temas e atores emergentes “de baixo” possam disputar os rumos políticos do país na esfera pública institucionalizada. Esta reforma deve ser capaz de fortalecer e moralizar as instituições e a rotina da democracia representativa – mediante o estabelecimento, por exemplo, do financiamento público das campanhas –, mas deve também se abrir para ampliação das possibilidades da democracia participativa, apostando na sociedade brasileira, fonte do reencantamento permanente da nossa democracia. Uma democracia encantada é aquela que está enraizada nas aspirações do homem comum e é alimentada por uma sociedade vibrante e por uma cultura política de participação constante. Esta forma de democracia não se move somente a partir das forças do mercado, como se acreditava na década de 1990, nem se sustenta somente com o robustecimento do Estado, como querem crer setores importantes do atual governo. A democracia encantada encontra sua força na sociedade e pressupõe criatividade, imaginação e invenção, não devendo ser encarada como uma utopia, mas como um processo de construção e experimentação permanente, que permite que todos, inclusive aqueles segmentos não organizados que também se movimentam na esfera pública subalterna, participem frequentemente das decisões centrais sobre os rumos do país. Bibliografia AVRITZER, Leonardo (Org.). Experiências nacionais de participação social. Belo Horizonte: Cortez Editora, 2010, e DAGNINO, Evelina (Org.). Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

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Ensaio

HABERMAS, Jurgen. Três modelos normativos de democracia. In: A inclusão do outro. Estudos de Teoria Política. São Paulo: Loyola, 2004, p. 277-292. MIGUEL, Luis Felipe. A democracia domesticada: Bases antidemocráticas do pensamento contemporâneo. Dados, Revista de Ciências Sociais, v. 45, n. 3, 2002, p. 483-511. PERLATTO, Fernando. A interpretação como exercício normativo: intelectuais, subalternos e a esfera pública brasileira. Dissertação (Mestrado em Sociologia). Rio de Janeiro: Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, 2009. SANTOS, Wanderley Guilherme. O paradoxo de Rousseau: uma interpretação democrática da vontade geral. Rio de Janeiro: Rocco, 2007. VIANNA, Luiz Werneck. O Terceiro Poder na Carta de 1988 e a tradição Republicana: mudança e conservação. In: Oliven, R. G.; Ridenti, M.; Brandão, G. M. (Org.). A Constituição de 1988 na Vida Brasileira. São Paulo: Hucitec, 2008, p. 91-109.

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VIII. Mundo


Autores Paulo César Nascimento

Doutor em Ciência Política pela Columbia University (New York/EUA) e professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília.

Dina Lida Kinoshita

Membro do Conselho da Cátedra Unesco de Educação para a Paz, DDHH, Democracia e Tolerância junto ao IEA-USP e membro dos Amigos Brasileiros do Paz Agora (www. pazagora.org).

Luiz Sérgio Henriques

Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das obras de Gramsci.


Identidade nacional e globalização Paulo César Nascimento

D

esde a queda do muro de Berlim, que assinalou o fim do socialismo real, estudiosos de relações internacionais, sociólogos, jornalistas e intelectuais em geral vêm assinalando o enfraquecimento das identidades nacionais. Com o advento de um mundo globalizado, insistem essas vozes, o Estado-nação, pilar do sistema mundial moderno, estaria com seus dias contados. Os argumentos são conhecidos: nenhum governo tem mais controle sobre sua própria economia com os mercados, finanças e investimentos largamente internacionalizados. As fronteiras dos Estados já se tornaram por demais porosas para conter as crises econômicas e o fluxo de imigrantes. Blocos regionais de países são formados, com barreiras alfandegárias abolidas, mercados integrados e moeda comum. Cultura e instituições tornam-se igualmente globalizadas, assim como a defesa do meio-ambiente e outras questões contemporâneas. A esta globalização “pelo alto”, regida pelas elites políticas e o capital financeiro, e cujo maior símbolo ainda são os encontros de Davos na Suíça, corresponde outro fenômeno internacionalizado, surgido “desde baixo” por movimentos sociais alternativos, em sua maioria de esquerda ou pelo menos de oposição ao status quo. Estes grupos não são exatamente contra a globalização, mas pregam a democratização dos processos de universalização da economia e das finanças. Os protagonistas desta globalização alternativa lutam pela formação de uma espécie de sociedade civil internacional capaz de influenciar, na perspectiva dos menos favorecidos, a governança global. Um dos seus principais símbolos é o Fórum Social Mundial, mas suas manifesta125


Mundo

ções são múltiplas, como a ocupação de Wall Street e outros centros de poder do capital. O interessante é que esta não é a primeira vez que a morte do Estado-nação foi anunciada. Na metade do século XIX, Karl Marx e Friedrich Engels já haviam anunciado, no Manifesto Comunista, publicado em 1848, o fim dos nacionalismos e dos Estados-nação. Os fundadores do socialismo científico baseavam seu prognóstico na expansão mundial do capitalismo, o qual, em sua busca incessante pelo lucro, estava rompendo as fronteiras dos países e destruindo os particularismos locais e a reclusão nacional Segundo Marx, o desenvolvimento das relações econômicas que ele observava em sua época, ao transformar o capitalismo em um sistema mundial, faria com que os trabalhadores de todos os países se identificassem cada vez mais com seus “irmãos de classe”, abandonando os sentimentos nacionalistas: “As presentes condições de trabalho e sujeição ao capital”, escreve Marx no Manifesto Comunista, “que são as mesmas na Inglaterra e na França, na América como na Alemanha, têm despido o proletariado de todo traço de caráter nacional”. É curioso que tanto no século XIX como no início deste século XXI, observadores atentos às realidades de seu tempo, como o próprio Marx, negligenciaram acontecimentos que indicavam exatamente o oposto do que estavam supondo. No mesmo ano que o Manifesto Comunista foi publicado, uma explosão de movimentos nacionalistas varreu a Europa, fazendo que aquela época ficasse conhecida como a “primavera das nações”. Da mesma forma, o historiador britânico Eric Hobsbawm escreveu logo após a queda do Muro de Berlim que o nacionalismo tinha se tornado um fenômeno atávico, deixando de ser um vetor importante do desenvolvimento histórico como tinha sido no século anterior. No entanto, a queda do Muro de Berlim e o fim do socialismo real foram seguidos de uma onda nacionalista tão forte e disseminada, que poderia facilmente ser chamada de uma nova “primavera das nações”: dos escombros da União Soviética surgiram quinze novos países. Eslováquia e República Tcheca constituíram-se em Estados independentes, enquanto a fragmentação da Iugoslávia deu luz a cinco novas entidades nacionais. Além disso, movimentos nacionalistas e étnicos, pregando ou a independência de um povo ou mais autonomia de uma nação dentro de um Estado, continuaram atuantes em áreas tão diversas do globo como a Ásia menor e o Oriente Médio (curdos e palestinos), América do Norte (Québec), Europa (país Basco, Catalunha) ou África (Sudão). 126

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Identidade nacional e globalização

Como explicar tal postura em relação a um fenômeno como o nacionalismo, que tem desafiado os múltiplos anúncios de sua morte? Parte da resposta pode estar na ênfase dada ao econômico tanto no pensamento marxista como também no liberalismo. O desenvolvimento econômico globalizado tenderia a eliminar particularismos como as identidades nacionais e étnicas. Aliás, a maioria da literatura sobre nacionalismo e Estado-nação tende a ver estes fenômenos como produto do desenvolvimento econômico na era moderna. É preciso, porém, não reduzir a compreensão do nacionalismo a um mero epifenômeno de variáveis econômicas. A persistência do nacionalismo e das identidades nacionais exige que nos voltemos para as dimensões culturais e psicológicas que informam as comunidades nacionais, como o fazem certos autores. Só assim poderemos compreender a enorme força atrativa que o nacionalismo possui, fazendo com que milhões de pessoas sacrifiquem suas vidas em prol de suas nações. Como a socióloga norte-americana Liah Greenfeld colocou, o valor e importância da nação estão na gratificação psicológica de dignidade que a identidade nacional traz às pessoas. O nacionalismo se originou como uma reação às condições estruturais da sociedade dinástica medieval. Seus protagonistas foram as novas elites que, na Inglaterra, a partir do século XVI, achavam-se insatisfeitas com a impossibilidade de ascensão social a hierarquia nobiliárquica daquele país. Burgueses e commoners passaram a associar a nação – termo que designava uma elite – à ideia de povo, até então sinônimo de plebe ou ralé. O que ocorreu na Inglaterra – a mudança de significado do conceito de nação, que paulatinamente elevou o povo à dignidade existente na categoria de elite, foi reproduzida na Revolução Francesa, fazendo surgir a ideia de soberania popular e possibilitando o desenvolvimento das instituições democráticas que refletiam esta soberania. É este modelo de Estado-nação que será difundido em todo o mundo, sendo adotado em todos os recantos do planeta, formando na era moderna um sistema mundial de Estados-nação. A generalização desta experiência, contudo, não significou que a ligação originária entre democracia e nacionalismo fosse sempre reproduzida. Modelos autoritários de Estado-nação, nacionalismos xenofóbicos e racistas – basta lembrar a experiência nazista –, têm sido uma constante na história moderna. Mas, por outro lado, o nacionalismo foi o grande inspirador de lutas de libertação nacional contra o colonialismo e o imperialismo, e uma força ideológica importante em prol do desenvolvimento socioeconômico das nações do chamado “terceiro mundo”. Paulo César Nascimento

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A identidade nacional segue sendo a mais fundamental e decisiva, o único elo capaz de ligar uma sociedade perpassada por diferenças de classe, gênero, etnia etc. É este pertencimento a uma comunidade, e o sentimento de dignidade que advém de fazer parte de uma nação, a grande força psicológica que faz o nacionalismo resistir às enormes mudanças históricas que o mundo tem sofrido. Em princípio, é claro, não há qualquer razão para não admitir a possibilidade da identidade nacional ser substituída por outro tipo mais forte de gratificação. Ao longo da história, diversas tentativas internacionalistas tentaram superar o sentimento nacional – o marxismo sendo uma delas. Entre intelectuais, esta tendência várias vezes se manifesta, especialmente quando esta categoria social não é muito valorizada em suas respectivas nações. O francês Abbé Raynal acreditava que a “pátria dos grandes homens é o universo”, e Charles-Pinot Duclos escreveu, em 1802, que “os homens de mérito, seja qual for a nação a que pertençam, formam uma nação eles mesmos. Estão livres da pueril vaidade nacional. Esses homens deixam que o vulgo, que não possui glória pessoal, se contente com a glória de seus compatriotas”. Mas afirmações como essas, assim como muitas outras manifestações semelhantes de indivíduos e correntes políticas ao longo da história moderna – e isso inclui o presente processo de globalização –, não alteram o fato que a grande maioria da população do mundo ainda tem seus corações atrelados à dignidade que suas identidades nacionais proporcionam.

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Perspectivas de paz entre palestinos e israelenses Dina Lida Kinoshita O conflito palestino-israelense se parece com uma interminável telenovela onde dezenas de situações se cruzam e se interpenetram. No capítulo mais recente, em setembro, perdeu-se mais uma vez uma oportunidade de diálogo para uma paz negociada, justa e duradoura para a região. A disputa se arrasta há quase um século e tem início com a Declaração de Balfour emitida pela Grã Bretanha em 1917, uma semana após a tomada do Palácio de Inverno na Rússia. Foi uma maneira de dividir as grandes massas judaicas oprimidas que viviam no Império Czarista e viam uma possibilidade de adquirir sua cidadania no novo regime instaurado. A declaração prometia um Lar Nacional Judeu na Palestina, o que transformaria o sonho sionista em algo palpável. Contudo, a partir dos anos 1930, a Grã-Bretanha modifica radicalmente sua política para o mandato da Palestina, impedindo a imigração de judeus a partir de 1936. Milhões deles poderiam ter sido salvos do Holocausto. Mesmo com o grande constrangimento, ao fim da 2ª Guerra, os britânicos continuaram a proibir a imigração para a Palestina dos judeus europeus que sobreviveram. Detiam as embarcações que se dirigiam à Palestina e confinava-os em campos de refugiados em Chipre. Logo após a 2ª Guerra, a URSS era vista como a grande vitoriosa da guerra na Europa. A maioria dos judeus tinha grande simpatia por esse país. A URSS estava interessada em meter uma cunha no Oriente Médio contra os países colonialistas, Grã-Bretanha e França. Quem defendeu e encaminhou a proposta da partilha da Palestina, que deu ensejo à criação de um Estado judeu – e de um Estado árabe-palestino – na Assembleia Geral da ONU, em novembro de 1947, foi Andrei Gromyko, embaixador soviético neste novo organismo. Os Estados Unidos votaram a favor da proposta com muitas reticências, a Grã-Bretanha se absteve. Todos os países árabes rejeitaram a partilha e declararam guerra ao Estado recém-criado, com o apoio tácito dos britânicos, que se abstiveram na votação. 129


Mundo

A República Popular da Tchecoslováquia forneceu em grande medida as armas utilizadas pela Haganá, embrião do Exército israelense, na Guerra da Independência (1948). Note-se que o processo de descolonização na Ásia e na África estava em marcha, naquele período, com o apoio decisivo da URSS. Este quadro começa a mudar a partir da Guerra Fria, por várias razões. Em primeiro lugar, porque o novo Estado de Israel era economicamente frágil. Embora a URSS tenha se empenhado na criação de Israel, não tinha condições de prestar ajuda econômico-financeira, dado que necessitava reconstruir o seu próprio país que sofrera perdas humanas e materiais incalculáveis durante a grande guerra. Ao ser criada a República Federal da Alemanha, seu primeiro chanceler, Konrad Adenauer, firmou um tratado com o Estado de Israel (1951), pelo qual os sobreviventes do Holocausto teriam indenizações vitalícias, e a soma referente aos 6 milhões de assassinados destinar-se-ia ao novo Estado, o que deu um certo alento econômico. Com o surgimento do macartismo nos Estados Unidos, houve um certo temor de que ocorressem perseguições aos judeus norte-americanos, uma vez que havia manifestações antissemitas e racistas em vastos setores do país. Portanto, não interessava o confronto com esta superpotência. Em 1951, reorganiza-se a Internacional Socialista (IS), totalmente destroçada com a ascensão do nazismo, uma vez que o Partido Social-Democrata Alemão havia sido o grande sustentáculo desse campo político. Os partidos trabalhista (Mapai) e socialista (Mapam), majoritários na fundação do Estado de Israel, ingressaram na IS. Mais adiante, num contexto absolutamente polarizado da Guerra Fria, os países europeus, dirigidos por partidos pertencentes à IS, alinharam-se aos Estados Unidos, bem como Israel. Enquanto isso, a URSS investia nos países árabes para fincar uma posição estratégica no Oriente Médio rico em petróleo. Por fim, as denúncias sobre os crimes stalinistas – apresentadas no XX Congresso do PCUS (1956) – dão início a uma ruptura de muitos comunistas e socialistas judeus com a URSS. Os próceres da intelectualidade soviética que se expressavam em iídiche, inclusive os componentes do Comitê Antifascista (Itzik Fefer, Peretz Markish, Solomon Michoels, entre outros), que, poucos anos antes, durante a guerra, haviam viajado para os Estados Unidos para pedir a abertura da Segunda Frente na Europa, foram liquidados. 130

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Perspectivas de paz entre palestinos e israelenses

Na Guerra do Sinai (1956), Israel se alia à França e à Grã-Bretanha, enquanto a URSS passa a apoiar Abdel Gamal Nasser, do Egito. Apesar da vitória israelense, este é o marco do declínio das potências colonialistas na região. e Israel vai se aproximando cada vez mais dos Estados Unidos. Este processo tem seu ápice logo após a Guerra dos Seis Dias (1967), quando a URSS e as Repúblicas Populares do bloco soviético rompem relações com Israel. Num processo binário de “bandido e mocinho”, os países da esfera soviética dão apoio integral aos palestinos e a clivagem torna-se absoluta. Este modelo só sofrerá mudanças durante a perestroika e a glasnost de Gorbachev. O mesmo chegou a declarar que a posição soviética havia sido muito unilateral. Embora todos os países do Oriente Médio e do Norte da África tenham sido peões das duas grandes superpotências durante a Guerra Fria, setores da esquerda passaram a caracterizar Israel como ponta de lança do imperialismo norte-americano na região. Em meio à intensa pressão dos países árabes contra Israel, através do poder dos “petrodólares”, o sionismo chegou a ser caracterizado como racismo. No Brasil, a ditadura militar (“pragmatismo responsável” do chanceler de Geisel, Azeredo da Silveira) vota a favor dessa resolução na ONU, em troca da exportação de serviços, automóveis e armas à Líbia, de Kadhafi, e ao Iraque, de Saddam Hussein. Pouco a pouco, o antissemitismo clássico é substituído por um antissionismo raivoso. Como exemplos deste antissionismo antissemita, cito material recentemente divulgado pelo atual PCB – que nada tem com o PCB original, no qual havia uma grande militância judaica; posições petistas em defesa do Irã ou do Hamas; distribuição nas universidades, pelo PSTU, dos “Protocolos dos Sábios de Sião” (panfleto apócrifo antissemita forjado na Rússia Czarista) etc. As várias vertentes do antissemitismo, enrustido ou oficial, mesclam-se na lógica aristotélica simplista de que “quem é inimigo dos Estados Unidos é meu amigo”, aliança que comporta desde a “esquerda” radical até os grupos neonazistas, passando por líderes “progressistas” como Ahmadinejad. Isto não isenta o Estado de Israel – hoje governado por uma coalizão de extrema-direita nacionalista e fundamentalistas religiosos – de erros políticos e atos extremamente reprováveis com relação aos palestinos. A centro-esquerda israelense alinhada com a IS, numa realpolitik, entendeu, a partir do fim do “socialismo real”, que seria imperioso negociar a fim de acabar com o conflito. Daí decorrem os acordos de Oslo e a Iniciativa de Genebra (<www.pazagora.org/genebra>), apoiaDina Lida Kinoshita

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dos pelo governo democrata americano de Bill Clinton. Do lado judeu, os negociadores de Oslo são Itzhak Rabin e Shimon Peres, que em conjunto com Yasser Arafat mereceram o Prêmio Nobel da Paz. Não foi um palestino, mas um fundamentalista judeu que assassinou Rabin! Assim como foram fundamentalistas muçulmanos que mataram Anwar Sadat após o líder egípcio ter promovido um corajoso acordo de paz com Israel. Cada vez que se está perto de um acordo, os fundamentalistas de ambos os lados realizam algum ato que acaba atrapalhando as negociações. Para entender porque a extrema-direita israelense se fortaleceu tanto, é preciso entender a composição da população israelense. Quem vota na direita desde a criação de Israel, Estado multicultural e multiétnico (os judeus da Diáspora que chegaram a Israel de todas as partes do mundo são muito diversos entre si), são as classes mais pobres e menos instruídas, provenientes dos países do Oriente Médio e da África (iemenitas, marroquinos, iraquianos, etíopes etc.). Muitos sobreviventes do Holocausto, desprezados pelos fundadores do Estado, sob o discurso de que foram aos crematórios como carneiros, ressentidos, também votam na direita, que faz o discurso da segurança, lembrando sempre que o Holocausto pode repetir-se sob outra forma. Portanto, a lógica magnificada é de um país fortaleza que assegura sua sobrevivência física. Ao contrário do que ocorreu no começo do século XX, quando os judeus provenientes da Europa Oriental eram predominantemente marxistas e socialistas, os que saíram da URSS nos anos 1980 e 1990, tendo passado pelas experiências stalinista e brejnevista de opressão dos judeus soviéticos, não querem nem saber de socialismo. Engrossam em massa o caldo da extrema-direita israelense. O atual ministro de Relações Exteriores, Avigdor Lieberman, é o representante por excelência desse segmento sem esquecer que é, pessoalmente, colono de um assentamento na Cisjordânia, como muitos outros imigrantes recentes. Num país com 7 milhões de habitantes, os russos chegados após a queda da URSS – uma massa de 1 milhão de pessoas – desequilibram decisivamente a balança do eleitorado para a direita. Outros 20% do eleitorado são constituídos por cidadãos árabesisraelenses, descendentes dos que optaram por permanecer no país em 1948. Essa população de cerca de 1,5 milhão de pessoas tem direito de votar e ser votada. Mas tem em grande parte se abstido de votar. 132

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Perspectivas de paz entre palestinos e israelenses

Lembram-se do voto nulo durante a ditadura no Brasil? Objetivamente este é um dos mais importantes fatores que fortalecem a direita israelense. Se os palestinos votassem na esquerda e na centroesquerda, a balança penderia para o outro lado. Eles têm direito de lançar candidatos próprios, mas – em função de um alto nível de abstenção nas eleições – sua representação no Parlamento (Knesset) é muito inferior à sua proporção demográfica. Com este quadro, o diálogo por uma paz negociada justa e duradoura – com dois Estados para dois povos e suas respectivas capitais em Jerusalém – fica cada vez mais difícil. Só uma ampla frente do campo da paz poderia enfrentar a direita, mas a esquerda está muito dividida – principalmente em função da violência das intifadas palestinas que, por sua vez haviam sido desencadeadas pela intolerável ocupação de Gaza e Cisjordânia. Um fenômeno recente em Israel é a manifestação de centenas de milhares de jovens em praça pública, por uma nova ordem econômica mais justa. O neoliberalismo implantado pelos governos de direita acabou com várias conquistas sociais do Welfare State. Israel deixou de ser uma das sociedades mais igualitárias do mundo, ao lado dos países escandinavos, para hoje ter enormes diferenças de renda e crescentes parcelas de população abaixo do nível de pobreza. No entanto, poucos estão associando estes problemas com o desvio de recursos públicos para a colonização dos territórios ocupados e à segurança do país. Os colonos extremistas são cada vez mais audazes em suas atividades antipalestinas como se viu nas últimas semanas com a queima de mesquitas no norte da Galileia, sem que o main stream, embora discorde, se manifeste. Mesmo israelenses do campo da paz têm sido alvo de ameaças e atentados. Há intelectuais israelenses que comparam a situação com as ocorrências na Europa central e oriental no período de entreguerras. Enquanto Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestina, notificava a ONU de que faria um discurso solicitando o reconhecimento pleno da Palestina, o primeiro-ministro israelense, Benyamin Netanyahu, proferia discursos voltados para estes jovens, alertando para a possibilidade de uma nova guerra e a necessidade de unir o povo. Ironicamente, ministros da coalizão de governo sugeriam que quem precisasse de moradia acessível se mudasse para a Cisjordânia ocupada...

Dina Lida Kinoshita

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A esperança hoje é de que as massas de jovens que vêm enchendo as ruas e praças de Israel em busca de justiça social sejam conscientizadas de que o que lhes traz mais dificuldades é a ocupação. E que a solução que lhes fará justiça – assim como ao povo palestino – é um acordo de paz baseado na criação de um Estado Palestino ao lado do Estado de Israel. O vendaval que teve início nos países árabes no começo do ano e a “primavera árabe”, gerou muita esperança. Mas, paradoxalmente, atinge e complica o conflito mais antigo da região – e quiçá do mundo. No tabuleiro de xadrez, estão os três grandes protagonistas muçulmanos regionais, a saber: Egito, Irã e Turquia. Na Síria, apoiada pelo governo iraniano, seguem os sangrentos embates internos, com particular ferocidade do ditador Bashar Assad, não permitindo margens de manobra externos, pelo menos momentaneamente. Mas o Irã continua apostando numa solução que rompa alianças com os países ocidentais, sobretudo com os EUA, esperando exercer maior influência regional, quer religiosa como político-econômica A situação egípcia ainda é uma incógnita, na medida em que o Exército – a mesma base de poder que sustentou o governo deposto de Mubarak – vem perdendo prestígio, enquanto parcelas expressivas da população, laica ou islâmica, vêm questionando os acordos firmados por Anwar Sadat com Israel. As mudanças são críticas visto que o Egito torna a fronteira com Gaza permeável, reforçando o temor dos israelenses por sua sobrevivência. No momento em que o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, profere na Assembleia Geral da ONU um discurso moderadíssimo a favor do reconhecimento pleno da Palestina junto a esta organização, e obtém o reconhecimento da grande maioria dos países do mundo, este pleito não teve sucesso. Alguns dias depois, é anunciado que Netanyahu negociou com o Hamas a libertação do soldado israelense Gilad Shalit, sequestrado há cinco anos. Este episódio tem várias interpretações no plano internacional, trocado por mais de mil prisioneiros palestinos em Israel, muitos deles condenados por ataques terroristas no país. Quem perdeu com isto foram os campos da paz, tanto de Israel quanto da Autoridade Palestina. A popularidade do Hamas cresce ao obter, mediante ações violentas, a libertação de prisioneiros, tema dos mais candentes entre os palestinos. Enquanto isto, a atitude moderada dos membros da Fatah pouco tem rendido em termos de fim da ocupação e uma solução pacífica. Se somarmos ao fato a declaração do Hamas, logo após a troca de prisioneiros, reafirmando a intenção de continuidade dos sequestros 134

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Perspectivas de paz entre palestinos e israelenses

– assim como a retomada do bombardeio do sul de Israel por mísseis disparados de Gaza – a leitura possível é uma aposta no status quo que permite cada vez mais assentamentos na Cisjordânia ocupada, criando uma situação irreversível. Mas pode-se fazer uma leitura mais otimista uma vez que há um primeiro sinal de reconhecimento implícito do Estado de Israel pelo Hamas, na medida em que aceitou a negociação. Utilizando a frase gramsciana do “pessimismo da razão e do otimismo da vontade” é preciso mobilizar o “campo da paz em ambos os lados, desmascarando o discurso da direita israelense de que não há interlocutores confiáveis do lado palestino”. O terceiro protagonista é a Turquia, país democrático de maioria islâmica moderada, que vinha se preparando para ingressar na União Europeia. É cada vez mais clara a intenção da Turquia de mudar de rumo, sobretudo após a recente crise enfrentada pela Europa. Não por acaso, Erdogan visitou nos últimos meses países do Oriente Médio e deu guarida a revoltosos sírios. Tudo indica que gostaria de reaver pelo menos parte da influência tida durante o Império Otomano. Como esta pretensão não pode se dar manu militari, a Turquia tem interesse em liderar um processo de paz regional. Com isto, poderá assumir um papel de destaque no desenvolvimento de sistemas democráticos em substituição aos regimes autocráticos derrubados pela Primavera Árabe. Além de servir como articulação estratégica entre esses países e a União Europeia.

Dina Lida Kinoshita

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Indignação e Política Luiz Sérgio Henriques Uma das profecias mais frágeis de que se tem notícia foi aquela que anunciou há pouco mais de 20 anos, com a implosão do comunismo “realmente existente”, o fim de toda a História. Teríamos chegado a uma forma política definitiva – uma versão débil da democracia liberal, concebida como mero rodízio de elites incapazes de visões alternativas –, homóloga do funcionamento de certo tipo de mercado, com crescente dominância financeira, livre das regulações socialdemocratas do pós-guerra ou mesmo, um pouco antes, da época do reformismo rooseveltiano. A ideia, tornada senso comum, é que teríamos passado a viver um eterno presente, capturado eficientemente pelo famigerado acróstico Tina – there is no alternative –, da lavra de uma das dirigentes mais endurecidas do novo curso inevitável das coisas. A palavra “social” aparecia como um adjetivo inútil e, radicalizando esse modo de pensar, melhor seria dissolver a noção de “sociedade” e considerar apenas indivíduos e interesses particulares que a compõem, à maneira de átomos. Não cabe adotar aqui o ponto de vista do juízo final e decretar retoricamente a falência do capitalismo. Mais ainda, deve-se admitir que os espíritos animais do capital globalizado, liberados, golpearam definitivamente até as novas muralhas da China, ocasionando uma das mais surpreendentes transformações da História e promovendo a vinda ao mundo moderno de centenas de milhões de pessoas. Com todas essas cautelas, é autoevidente que os acontecimentos destes anos, com a grande recessão que remete aos idos de 1930, feriram de morte a ideia de um capitalismo sem crises e de uma democracia débil, submetida ao império das categorias econômicas. Na verdade, a dissonância entre política e economia parece estar no centro do mal-estar que nos aflige. A impotência da primeira manifesta-se, entre outros sintomas, na falta de instrumentos de governo da dimensão sistêmica da economia, que se tornou global e unificou definitivamente o gênero humano, ainda que de uma forma desigual e, ao que tudo indica, ambientalmente insustentável.

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Indignação e Política

Podemos estar no começo de um bem-vindo retorno da política – e dos sujeitos –, num movimento que, como nos anos 1960, abrange situações muito diversas, como as praças das revoluções no mundo árabe, os indignados da Porta do Sol em Madri e outras cidades europeias, para não falar dos surpreendentes “habitantes” da Praça Zuccotti, em Nova York. Neste último caso, os acampados podem até ceder diante da inclemência do inverno próximo, o que, no entanto, não autoriza a diminuir o sopro de renovação que podem vir a ter para a esquerda dos Estados Unidos, no seu sentido lato, e de todo o mundo. Os habitantes da Praça Zuccotti situam-se num mundo em que o virtual e o real se cruzam de modo muito significativo. O idioma que falam está longe de ser unívoco e talvez esteja mesmo fadado a ser plural – contraditoriamente plural –, com acentos utópicos e possivelmente irrealizáveis. Em suas assembleias-gerais, conduzidas segundo os procedimentos de uma “democracia direta”, formulam-se exigências claras de responsabilização do setor financeiro e de luta contra as desigualdades crescentes, que minaram o sonho americano de uma grande sociedade constituída majoritariamente por extensas camadas médias. Mas há mais do que isso, pois o desafio é também a um sistema político que não funciona e parece entrincheirado, como que constituído por uma só casta incapaz de representar adequadamente a cidadania. Critica-se não só o Partido Republicano – capturado sectariamente por uma direita anti-intelectual, às turras com boa parte da ciência contemporânea, especialmente a que estuda o clima, e até com Darwin –, mas também o Partido Democrata, como se ambos fossem pura e simplesmente os dois braços de um mesmo partido: o da grande propriedade. Pode haver nisso uma certa pulsão anti-institucional, uma vontade de não se dobrar à “cooptação”, o que é compreensível em momentos inaugurais. Mas a tentação de se constituir obstinadamente em contrassociedade, oposta ao mundo “convencional”, muitas vezes termina em opção pelo espírito de gueto, incapaz de falar a todos. E a experiência histórica também ensina que uma outra obstinação – a ênfase unilateral nos mecanismos da democracia direta – tem redundado em formas complicadíssimas (e, portanto, absurdamente indiretas) de exercício de poder, com escasso ou nenhum respeito pelas minorias e pelos processos de alternância normais numa comunidade política moderna. A esquerda americana e, em geral, a esquerda em toda parte só foram capazes de mudar suas respectivas sociedades, nelas impriLuiz Sérgio Henriques

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mindo a marca de justiça social, quando conciliaram produtivamente participação e representação. Foi assim no período áureo do reformismo rooseveltiano ou das social-democracias europeias: a construção do Estado de Bem-Estar Social não foi dádiva ou projeto gestado por elites “esclarecidas”, mas fruto de intenso conflito entre diferentes ideias de convivência. Um conflito travado, evidentemente, segundo as regras de uma democracia política que se reinventou e aprofundou, garantindo, por exemplo, a livre organização dos trabalhadores e universalizando os direitos políticos. É provável que estejamos no limiar de um ciclo de grandes esperanças. A nova esquerda dos anos 1960, portadora de instâncias antiautoritárias que em parte se cumpriram, em algum momento se deixou levar pela tentação da violência, favorecendo a grande maré conservadora que se seguiria. Hoje, a indignação dos jovens – e não tão jovens – merece tornar-se força transformadora e capacidade hegemônica, o que só é possível por meio de uma democracia renovada por atores comprometidos com um explícito regime de liberdades.

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IX. Vida Cultural


Autores Benedito Vasconcelos Mendes

Graduado em Engenharia Agronômica pela Universidade Federal do Ceará (1969), com mestrado em Microbiologia Agrícola pela Universidade Federal de Viçosa (1975) e doutorado em Agronomia (Fitopatologia) pela Universidade de São Paulo (1980), é professor adjunto da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Publicou vários livros sobre o desenvolvimento regional, com destaque para Alternativas tecnológicas para a agropecuária do semiárido.

Wolney Oliveira

Cineasta, organizador e responsável pela realização do Festival Ibero-Americano de Cinema e do Cine-Ceará, eventos que ocorrem, há mais de vinte anos, em Fortaleza/CE.


Manifestações artísticas da civilização da seca Benedito Vasconcelos Mendes

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enominamos de Civilização da Seca a que existe na vasta área seca e quente do sertão nordestino (Polígono das Secas), que abrange quase um milhão de quilômetros quadrados e que está localizada no interior do Nordeste brasileiro, somente atingindo a costa no litoral setentrional do Rio Grande do Norte e no litoral cearense. Essa civilização é diferente de todas as outras que ocorrem no Brasil. Ela possui hábitos, costumes, tradições, crenças e religiosidade bem particulares, somente encontrados nessa área castigada pelas secas. A denominada Civilização da Seca foi capaz de originar um cangaceirismo, uma medicina caseira, uma culinária, uma prática religiosa, uma poesia popular, uma música regional, um tipo de arte, um tipo de arquitetura e uma engenharia empírica diferentes, próprios do povo dessa região, que, em seu conjunto, forma a identidade cultural dessa civilização ímpar, pioneira e criativa, que existe no semiárido nordestino. Essa civilização começou a ser formada há pouco mais de trezentos anos, por ocasião da colonização, após a Guerra dos Bárbaros (1687-1704), sedimentando suas características culturais em um período de cem anos, de 1880 a 1980. Seu progresso econômico e cultural teve início por volta de 1880, quando a população sertaneja se tornou mais densa e as vilas e cidades regionais prosperaram economicamente, devido à expansão da cultura do algodão mocó e à introdução de novas atividades extrativistas, como o aproveitamento da cera de carnaúba, da borracha de 141


Vida Cultural

maniçoba, do óleo de oiticica e da fibra de caroá, que vieram somar com as atividades econômicas tradicionais da criação de gado e da produção de goma e farinha de mandioca, de rapadura e cachaça. O período áureo da Civilização da Seca terminou cem anos depois, ao redor de 1980, em consequência da grande seca do século XX (1979-1983) e da introdução, no Brasil, da praga do bicudo do algodoeiro, no início da década de 1980, o que fez com que as fazendas do semiárido deixassem de ser lucrativas e, em consequência, provocou o empobrecimento e o despovoamento regionais. Etnicamente, a Civilização da Seca foi formada pela miscigenação das três etnias com a mistura de suas respectivas culturas, que viviam no Nordeste seco por ocasião da colonização, ou seja, a etnia branca colonizadora/invasora das terras indígenas, a tapuia, que já vivia no semiárido, e a negra, vinda da África, como escrava. Os colonizadores eram, em sua maioria, cristãos novos (judeus recémconvertidos ao cristianismo), que à época da colonização brasileira eram perseguidos, por motivos religiosos, em Portugal. O espírito aventureiro do judeu errante, a vontade atávica de ganhar dinheiro do povo judeu e a oportunidade de se livrar da perseguição da Santa Inquisição em Portugal fizeram com que a grande maioria dos colonizadores do Polígono das Secas fosse de aventureiros judeus, que vinham de Portugal solteiros com o sonho de enriquecer com a criação de gado nos sertões selvagens do Nordeste. O único branco que participou da formação do sangue do caboclo nordestino foi o do colonizador judeu-português, pois os outros brancos que vieram para o Nordeste, na época da colonização, como invasores (franceses e holandeses) ficaram restritos ao litoral, não penetrando nos sertões secos interioranos. Os brancos das imigrações mais recentes do final do século XIX e início do século XX, como os italianos, alemães, russos e espanhóis, se fixaram nas regiões Sul e Sudeste, de modo que não chegaram ao Nordeste. Os nativos tapuias, principalmente os da valente nação tarairiu, que viviam a percorrer, da foz à cabeceira, as margens dos rios intermitentes do semiárido (rios Piranhas/Assu, Seridó, Sabugi, Espinharas, Acauã, Apodi/Mossoró, Jaguaribe e outros), eram altos, fortes, místicos, nômades, corajosos, valentes, vingativos, canibais e amantes da guerra, da música, do canto e da dança. Os destemidos tapuias reagiram à invasão de suas terras, passando a consumir os animais e as lavouras dos colonizadores e a invadir e destruir as fazendas e vilas primitivas. Os brancos, para estabelecer as fazendas de gado, necessitaram expulsar ou matar os 142

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Manifestações artísticas da civilização da seca

tapuias. Para isto, fizeram dois tipos de guerra: a de corso, que matava os guerreiros e escravizava as crianças e as mulheres, e a guerra de extermínio, que aniquilava toda a tribo, guerreiros, velhos, mulheres e crianças. Nessas guerras, os colonizadores contaram com os bandeirantes paulistas, com os bandeirantes baianos da Casa da Torre de Garcia D’Ávila, com os bandeirantes pernambucanos do Sobrado e com os índios mansos das tribos tupis trazidos do litoral. O período mais violento, mais cruel, mais sanguinário da colonização foi o correspondente ao da Guerra dos Bárbaros, que aconteceu nas ribeiras dos rios Piranhas/Assu, Apodi/Mossoró e de seus afluentes, no Rio Grande do Norte e na Paraíba, e que se expandiu para as margens do rio Jaguaribe, no Ceará. As principais tribos tapuias que se uniram contra o invasor português foram as dos Janduís, Jenipapos, Paiacús, Canindés, Pegas, Coremas, Icós, Jaguaribaras, Tremembés, Acriús, Arariús, Anacés e Quixelôs. O negro trabalhador, pacato e emotivo, que veio como escravo para o Nordeste, fixou-se principalmente nas duas regiões absorvedoras de mão de obra: litoral úmido açucareiro e garimpos baianos da Chapada Diamantina, quase não indo para o sertão seco, pois este tinha como atividade econômica principal a criação de gado, que não utilizava grande quantidade de braços humanos, pois um só vaqueiro era suficiente para tomar conta de um grande numero de reses. Como vimos, o caboclo do sertão semiárido, que representa a etnia da Civilização da Seca, é quase mameluco puro, inicialmente formado pelo cruzamento do branco aventureiro, que, vindo solteiro de Portugal, aqui encontrava uma escassa população branca, também com poucos negros, porém com uma grande quantidade de mulheres índias, que tinham sido escravizadas nas guerras de corso, por ocasião da colonização. Portanto, o caboclo do semiárido é predominantemente de sangue índio, seguido da étnica branca, com pouca participação da etnia negra. Daí por que os tipos humanos regionais, como o cangaceiro, o jagunço, o vaqueiro, o jangadeiro, o curandeiro, o raizeiro, e outros, possuem muitos traços fisionômicos, psicológicos e culturais dos nativos tapuias. Os cangaceiros eram valentes, nômades e místicos, como místicos, nômades e valentes foram também os tapuias. As danças das bandas cabaçais e o xaxado dançado pelos cangaceiros se parecem mais com as danças indígenas do que com as danças de origem europeia. A Civilização da Seca herdou da cultura material dos tapuias a rede de dormir, o pilão horizontal, a urupema, o abano, o surrão, o uru, a rodilha, a esteira, a cuia e a cuité. Da cultura imaterial, herdou o misticismo, o processo da feitura da farinha de mandioca e muitas Benedito Vasconcelos Mendes

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lendas, transmitidas pela tradição oral. Da cultura do judeu colonizador, foi herdado o costume de banhar e cortar as unhas do morto, de vestir o defunto com a mortalha, de não enterrar o defunto com objetos metálicos (anéis, medalhas, relógio, pulseiras, cordões e outros), de exumar o defunto sem o caixão, com o corpo em contato direto com a terra, o costume de colocar pequenas pedras no pé e sobre os braços da cruz, que marca o local da morte e/ou de sepultura de pessoas ao longo dos caminhos e estradas sertanejas, de derramar a água dos potes e quartinhas da casa do morto na noite do velório, a tradição do casamento endogâmico de tio com sobrinha, e varrer a casa, da porta da frente para a porta dos fundos, entre muitos outros. A arte sertaneja A arte sertaneja é completamente diferente da arte desenvolvida na região açucareira do litoral úmido nordestino e nas outras regiões do Brasil. As artes plásticas, representadas por esculturas, pinturas, desenhos e gravuras, que ornamentam as capelas, as igrejas, os conventos, os mosteiros, os palacetes e os solares dos municípios que usufruíram da riqueza proporcionada pelo ciclo da cana-de-açúcar, como Recife, Olinda, João Pessoa, Salvador e municípios do litoral alagoano, não são encontradas no sertão pobre e seco do nordeste brasileiro. No sertão semiárido, surgiram poucos pintores e escultores, pois não eram artistas plásticos que faziam a arte nos sertões atormentados pelas secas, e sim artesãos, como os carapinas, os marceneiros, os tanoeiros, os santeiros, os ferreiros, os flandreiros, os cuteleiros, os armeiros, os seleiros, as louceiras, as bordadeiras, as rendeiras, as labirinteiras, as chocheteiras, as tecelãs e outros artífices, que exercitavam as artes e os ofícios nessa região pobre e seca. A riqueza gerada pela indústria canavieira fez florescer as artes plásticas na região da Zona da Mata, enquanto as preocupações com a sobrevivência dos habitantes do Polígono das Secas fizeram surgir um tipo particular de arte, com tendência mais utilitária do que estética. O conceito de beleza no povo da Civilização da Seca era mais ligado à abundância e à utilidade do que à forma, à cor e ao brilho. Quando o sertanejo observava uma bela árvore florida, a beleza que nela ele enxergava não era estética, mas utilitária. Ao observar uma árvore, instintivamente ele raciocinava sobre qual a quantidade e a qualidade das toras de madeira que poderiam ser aproveitadas, ou qual a quantidade de rama que ele poderia colher dessa árvore para alimentar o gado, quando necessitasse. A harmonia dos ramos, a arquitetura da copa, a densidade da folhagem, o formato e o colorido das flores, fo144

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lhas e frutos não eram percebidos pelo sertanejo, já que sua mente estava sempre ocupada com as preocupações diárias da sobrevivência. Também o catingueiro não conseguia ver beleza em nada magro. O cachorro, o gato, a vaca, a ovelha, o porco, a cabra, o cavalo, e até a própria mulher, só eram bonitos a seus olhos se estivessem gordos. O tempo chuvoso, a paisagem verde, viçosa, com muito pasto e gado gordo eram o que ele achava de mais belo no sertão. Os artesãos regionais, que constituíam os verdadeiros artistas da Civilização da Seca, faziam suas obras de arte utilitária (louças de barro, carona, selas e outros artefatos de couro, rendas, bordados, labirintos, crochês, artesanatos de palha, de cipó e de fibras vegetais, carros de boi, bolandeiras, ancoretas, pipas, dornas e roladeiras, prensas de madeira, caixões de farinha, móveis e muitas outras peças de uso cotidiano), com o objetivo único de facilitar a vida dos habitantes do semiárido. Tais artistas engendravam, fabricavam e consertavam objetos, utensílios domésticos, apetrechos de trabalho, implementos agrícolas, máquinas e equipamentos do setor produtivo (agroindústrias, como casa de farinha, engenho de rapadura, alambique de cachaça, descaroçador de algodão, casa de beneficiamento de cera de carnaúba, galpão de preparo de borracha de maniçoba, galpão de beneficiamento de fibra de caroá, usina de prensagem de oiticica, cozinha de queijo de coalho e de manteiga do sertão e sala de fiar e tecer). Usavam a matéria-prima que a natureza oferecia em abundância, como madeira, couro, barro, palha, cipó e fibras vegetais. No início do século XX, começaram a aparecer no mercado regional, a preços competitivos, outras matérias-primas de origem industrial, como ferro, aço, cobre, bronze, zinco, alumínio, borracha, vidro e plástico. Os artistas que surgiram no sertão seco do Nordeste eram dotados de invulgar senso de improvisação e criatividade. Eles direcionavam todo o seu talento, toda a sua inventividade, toda a sua criatividade para criar coisas úteis, de modo a facilitar o modus vivendi da população. Uma das poucas manifestações artísticas puramente contemplativa que surgiram no interior do Nordeste, foi a expressada pelo mestre Vitalino de Caruaru/PE, que idealizou e difundiu a feitura de bonecos de barro retratando as atividades humanas, o homem e os animais do Nordeste. Ele vivia no Alto do Moura, nos arredores de Caruaru, dedicado à sua arte figurativa. A arte religiosa regional (imagens e ex-votos) foi muito estimulada pelas romarias que os sertanejos realizavam a Juazeiro do Norte e a Canindé, no Ceará, para veneração ao Padre Cícero e a São Francisco das Chagas, respectivamente. Os santeiros da Civilização da Seca, usando a imburana, o cedro, com a força do talento, popularizaram Benedito Vasconcelos Mendes

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as imagens do Padre Cícero, do Frei Damião e do Padre Ibiapina, além dos santos oficiais da Igreja Católica mais venerados na região, como São Francisco, São José, Nossa Senhora de Fátima, Santa Luzia, Santo Antônio, Santa Rita de Cássia, e vários outros. Essa arte tão particular desenvolvida pela Civilização da Seca, aproveitando os embasamentos culturais herdados das etnias que lhe deram origem, com as marcantes adaptações proporcionadas pelas condicionantes climáticas e edáficas do Polígono das Secas, retrata, com fidelidade, a riqueza cultural dessa civilização. Dos tapuias, herdou-se o rico artesanato feito de palha, cipó, fibras vegetais e de barro. Dos portugueses, a técnica de produzir lindos bordados, rendas, labirintos e crochês, bem como os embasamentos técnicos utilizados pelos velhos carapinas, marceneiros, tanoeiros, ferreiros e seleiros. Na área musical, as maiores expressões artísticas da Civilização da Seca foram as bandas cabaçais, os violeiros, os rabequeiros e a música regional propriamente dita, constituída pelo baião, pelo xote e pelo xaxado. As bandas cabaçais, formadas por dois pífanos de taboca, um zabumba, uma caixa e um prato surgiram no interior do Ceará, da Paraíba e de Pernambuco, e se apresentavam dançando, tocando e cantando, numa coreografia muito própria, animando os forrós, as festas de batizado e casamento, nas fazendas, as festas religiosas e, até, acompanhando enterro de anjinhos. Uma das bandas cabaçais mais famosas foi a dos Irmãos Aniceto, de Crato/CE, que ainda hoje faz apresentações na região do Cariri, nos municípios limítrofes dos estados do Piauí, do Ceará, de Pernambuco e da Paraíba. A música popular regional, antigamente restrita ao Nordeste, tornou-se de aceitação nacional, graças ao genial cantor e sanfoneiro pernambucano Luiz Gonzaga (Luiz Gonzaga do Nascimento, 19121989), ao compositor cearense Humberto Teixeira (Humberto Cavalcanti Teixeira, 1915-1979) e ao cantor e ritmista parabiano Jackson do Pandeiro (José Gomes Filho, 1919-1982), os quais introduziram o baião, o xote e o xaxado no cerne da música popular brasileira, ritmos hoje apreciados em todo o Brasil. Os poetas populares da poesia de improviso geralmente se apresentavam com suas violas, às vezes, com rabecas. Esse gênero de poesia passou a ser mais estudado e valorizado pelos intelectuais e pelas academias, graças ao gênio poético do cearense Patativa do Assaré (Antonio Gonçalves da Silva, 1909-2002), ícone dos menestréis do povo da Civilização da Seca. Além de Patativa, outros cordelistas, também geniais, já haviam imortalizado esse tipo de arte dos repentistas-violeiros, como os paraibanos Romano da Mãe D´Água 146

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(Francisco Romano Caluete, 1840-1891), (Inácio da Catingueira (?1879), João Martins de Athayde (1880-1959), Pinto do Monteiro (Severino Lourenço da Silva Pinto, 1895-1990) e Leandro Gomes de Barros (1868-1918), os norte-rio-grandenses Elizeu Ventania (Elizeu Elias da Silva, 1924-998) e Fabião das Queimadas (Fabião Hermenegildo Ferreira da Rocha, 1848-1928), o cearense Cego Aderaldo (Aderaldo Ferreira de Araújo, 1878-1967), o alagoano Rodolfo Coelho Cavalcante (1919-1986), o baiano Cuica de Santo Amaro (José Gomes, 1910-1965), os pernambucanos Irmãos Batista (Otacílio Batista Patriota, 1923-2003; Dimas Batista Patriota, 1921-1986 e Lourival Batista Patriota, 1915-1992). Ao som melódico das violas, com desafios e motes provocantes, os versos eram produzidos de repente, na improvisação, encantadora e genial, dos menestréis do povo, que no passado, em sua maioria, eram analfabetos ou semianalfabetos, porém dotados de talento poético extraordinário. A xilogravura é a arte de gravar na madeira. É um tipo de carimbo em que a ilustração é formada pelo entalhe na madeira. A matriz, de madeira, é entintada e impressa no papel. As matrizes de impressão das ilustrações são talhadas em tábuas de madeira mole, como a cajazeira, a imburana ou o cedro. O xilógrafo utiliza apenas um canivete ou uma pequena faca, bem amolada, para talhar a madeira. Essa arte foi introduzida há muito tempo no Nordeste, mas só no começo do século XX, com o seu uso na ilustração de capas de folhetos de cordel, foi que ela se tornou popular na região. Foi um casamento perfeito, o da literatura de cordel com a xilogravura. No Nordeste, essa técnica foi também usada para ilustrar jornais e rótulos de garrafas de cachaça e de vinagre. Juazeiro do Norte, no Ceará, e Caruaru, em Pernambuco, são dois importantes centros produtores de xilogravuras. Mestre Noza, xilógrafo e santeiro de Juazeiro do Norte, foi um dos expoentes dessa técnica. Um dos mais talentosos xilógrafos do nordeste brasileiro foi João da Escóssia (1873-1919). Quando este exercia o cargo de diretor do jornal O Mossoroense, fundado por seu pai, Jeremias da Rocha Nogueira (1848-1881), ilustrava seu jornal com artísticos trabalhos de xilogravura, notadamente entre os anos de 1902 e 1919, como se pode ver nos jornais conservados pelo Museu Municipal de Mossoró. A arquitetura de taipa, com piso de chão batido e coberta de palha de palmeiras (carnaubeira, babaçu ou ouricuri), usada nas habitações e construções rurais (galpões, armazéns e agroindústrias), transformou-se na arquitetura símbolo do semiárido nordestino.

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A casa de taipa típica do sertanejo humilde, construída por ele mesmo, possui um copiá com porta e janela de frente, uma janela na camarinha, outra na cozinha e uma porta nos fundos (cozinha). As portas, invariavelmente, eram de pau-branco, imburana ou de cumaru, madeiras típicas das caatingas. As linhas da cobertura eram de carnaubeira, aroeira, angico ou de pau d´arco. Os caibros, de paubranco ou de pereiro, e as ripas de marmeleiro. O quintal e o chiqueiro das galinhas eram de varas de marmeleiro. Os ganchos, para armar as redes, eram de mofumbo. As duas portas da casa eram divididas ao meio (meia porta). Durante o dia, ficava aberta a banda de cima. As portas e as janelas eram trancadas por tramelas e trancas de madeira, pois somente a porta da frente possuía fechadura. Para construir a casa, primeiramente o sertanejo escolhia um local elevado, de preferência onde houvesse um pé de juazeiro, para deixálo no terreiro. Depois de marcar o chão com as divisões da casa, armava-se o madeiramento, que se constituía de forquilhas de aroeira, para receber a cumeeira e as outras linhas, os portais de aroeira, angico, pereiro ou pau-branco para receber as portas e janelas, e os esteios para sustentar as paredes, que geralmente eram de sabiá, pau-branco ou pereiro. Nos esteios, eram amarradas, na posição horizontal, as varas de marmeleiro. Para o amarradio, usava-se embira de palha de carnaubeira ou de entrecasca de caule de árvores das caatingas, como a jurema de embira e o mororó. A pequena e humilde casa, de apenas um quarto, era formada pelo copiá, sala, camarinha, corredor, cozinha e quintal, onde ficavam o banheiro, o galinheiro e o jirau para secar as panelas. Na sala, situava-se o oratório com figuras de santos em quadros e as imagens de gesso ou madeira dos santos canonizados pelo povo (Padre Cícero, Frei Damião, Padre Ibiapina, Beato Antônio Conselheiro e Beato Zé Lourenço). O excelente acervo do Museu do Sertão, localizado nas proximidades da cidade de Mossoró-RN, mostra, com muita exatidão, como as artes e os ofícios eram praticados pelos nossos antepassados que habitavam os sertões semiáridos do Nordeste. Lá estão expostos os fornidos e grandes caixões de armazenar rapadura e farinha de mandioca, as complexas e gigantescas bolandeiras, os variados tipos de prensa, usados nos descaroçadores de algodão, nas casas de beneficiamento de cera de carnaúba, nas casas de farinha, nas queijarias e nos galpões de preparar fardos de fibras de coroá. Lá, o visitante pode observar os modelos de pilão, catavento de talos de carnaúba, pipas, ancoretas, dornas, roladeiras, balanças de madeira, engenhos de pau, carros de boi, e os mais diversos objetos, utensílios domésticos, apetrechos de trabalho, implementos e máquinas fabricadas pelos artistas regionais. 148

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Cinema e desenvolvimento regional Wolney Oliveira É inegável o avanço do cinema brasileiro na primeira década do século XXI, desde a realização do I Congresso Brasileiro de Cinema (CBC). A partir daquela reunião histórica, quando estiveram presentes representantes dos mais diversos elos da cadeia produtiva do audiovisual para discutir um projeto nacional para o cinema, foram criadas novas instituições de regulamentação e de fomento e houve uma imensa mobilização dos produtores-realizadores independentes por meio das suas associações, um processo democrático intenso e bastante positivo, pelos resultados que alcançamos. Hoje, o Brasil retomou a sua posição de grande produtor de cinema da América Latina, embora ainda se mantenham alguns gargalos: a existência de poucas salas de exibição, o antigo e sempre sufocante problema da distribuição e a concentração de recursos nas mãos de poucos, faltando uma política mais ousada para alavancar os pequenos e médios produtores, bem como uma política de regionalização da produção audiovisual (ou de nacionalização, como compreende Manfredo Caldas), afirmando-se e ampliando-se o pacto federativo. Temos hoje um fenômeno positivo, não apenas como fenômeno econômico, mas, sobretudo, como processo cultural e artístico, que é a quantidade e a qualidade da produção de cinema nas diversas regiões do país. O Nordeste destaca-se entre as regiões pelo seu crescimento econômico, acima da média nacional e pelas rápidas mudanças sociais e culturais desencadeadas pelo processo desenvolvimentista. O cinema feito nesta região, quase a metade da produção brasileira de filmes, é realizado em boa parte com recursos oriundos da própria região e é compreendido como fator de desenvolvimento regional, gerando emprego e renda. O maior acesso aos recursos federais fera esta produção crescer ainda mais, e o resultado positivo será não apenas regional, mas nacional, sobretudo na geração de emprego e renda e na superação das assimetrias e dos desníveis regionais. A Associação de Produtores e Realizadores do Norte de Nordeste (APCNN), da qual sou o atual presidente, tem-se destacado por essa luta de pensar a região como importante polo de desenvolvimento econômico e cultural, tendo o audiovisual um importante papel. O audio149


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visual é pensado como importante fator de progressão, e são propostos novos paradigmas para a região. A APCNN tem proposto no conselho Superior de Cinema (CSC), por meio do conselheiro Rosemberg Cariry (em pensador e um entusiasta dos chamados Fundos Regionais de Desenvolvimento Sustentável do Audiovisual e de amplo nacional para o audiovisual, com inclusão de micro, pequenas e médias empresas), uma proposição estrutural de “nacionalização” da produção, atendendo as cinco regiões geopolíticas da Federação. No Ceará, acontecerá no mês de novembro, com patrocínio da Secretaria de Cultura e a realização da Associação de Produtores e Cineastas do Estado do Ceará (Aproece), o I Seminário para o Desenvolvimento Audiovisual Nordestino, no intuito de discutir políticas públicas para a otimização da indústria cinematográficas no Nordeste, por meio da discussão das políticas culturais e econômicas nas esferas federal e estadual. O seminário visa também ampliar a discussão com os diversos setores culturais como o Ministério da Cultura, a Secretaria Nacional do Áudiovisual, o CSC e entidades e empresas de cinema e vídeo do Nordeste. Pensando nestas potencialidades e possibilidades econômicas e culturais do Nordeste, este I Seminário buscará uma unidade articuladora e agregadora das diversas cadeias e segmentos que abrangem o audiovisual em seus aspectos mais amplos. O objetivo principal é discutir a produção audiovisual como uma indústria em expansão, geradora de um grande número de novas empresas e de serviços, de mão de obra especializada em emprego, participando do crescimento econômico da região nordestina. Se o Nordeste está mais avançado nesse propósito, isto não implica que não pensemos nas outras regiões. Um plano como este é bem amplo e pensa não apenas a produção, mas pensa também a distribuição, as convergências digitais, as novas mídias, as novas salas (incluindo cineclubes, escolas, conjuntos populares, vilas e cidades do interior), os cursos universitários e cooperação via intercâmbio internacional. Acreditamos que, por meio dos recursos dos fundos constitucionais, os recursos regionais, somados aos recursos federais para o fomento do audiovisual, implicarão um salto qualitativo e quantitativo. Existe ainda uma expectativa em torno da regulamentação do Projeto de Lei Complementar no 116 que, por meio dos tributos recolhidos pelo Serviço de Acesso Condicionado, destina, obrigatoriamente, um significativo percentual desses recursos para as regiões 150

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Cinema e desenvolvimento regional

Nordeste, Norte e Centro-Oeste. Teremos um quadro realmente animador, e a região se destacará como um dos maiores polos produtivos do país, invertendo o processo de emigração dos nossos cérebros para a região Sudeste. Os avanços tecnológicos e as convergências digitais permitem esta descentralização e no Nordeste, hoje, realizam-se quase todos os serviços da cadeia produtiva. Atualmente a emigração de mão de obra especializada acontece do Sudeste para o Nordeste. O PLC 116 propõe separar as atividades de produção, programação e empacotamento dos conteúdos das atividades de transporte e distribuição das TVs por assinatura. Para a produção independente, essa lei traz a “criação de cotas para produção de conteúdo nacional nos canais de televisão estrangeiros e a abertura do mercado de TV por assinatura para as operadoras de telefonia e para as empresas de capital estrangeiro”. É uma cota ainda pequena, de apenas “três horas e meia de programação no horário nobre”, mas mesmo pequena essa produção nacional. A produção independente hoje veiculada na TV está entre as melhores, e a tendência é que cresça cada vez mais, ocupando maior número de produtoras e de mão de obra especializada em todas as regiões do país. O cinema independente brasileiro precisa não apenas conquistar o mercado interno, pela ampliação das salas de exibição, ampliação de obrigatoriedade de dias e exibição, mas também pela presença na televisão. No Brasil, é precária a parceria TV-Cinema, enquanto experiências em alguns países europeus mostram que essa parceria pode dar excelentes resultados, fazendo crescer a produção, dano-lhe maior visibilidade e conquistando amplas parcelas do público para cada produção de cada país. A acessibilidade é outro fator importante e fundamental para que sejam barateados os suportes para os filmes e os produtos audiovisuais, notadamente em DVD, possibilitando o consumo pelas classes D e E, diminuindo, de forma drástica, a pirataria. A internet, com a venda e a distribuição de filmes on line, é um mercado em expansão que também democratizará acessos, por meio de preços baixos. As TVs por assinatura hoje no Brasil têm pouca oferta de produtores brasileiros e estão entre as mais caras do mundo. A regulamentação pelo PLC 116 obrigará a presença de 30% de conteúdo nacional e a maior concorrência, com certeza, ajudará a baixar os preços ainda proibitivos para a maioria da população. No Nordeste, junto com a APCNN e a Aproece, estamos trabalhando coletivamente, dentro desta ampla possibilidade de integração naWolney Oliveira

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cional, para um projeto de desenvolvimento sustentável. Acreditamos que o novo plano de Diretrizes e Metas da Ancine, formulado com o apoio do CSC, trará mudanças significativas para o desenvolvimento do audiovisual no país, por meio de políticas públicas republicanas e de abrangência nacional, considerando as cinco regiões geopolíticas que fazem parte do pacto federativo.

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X. Hist贸ria


Autor Luiz Cruz

Professor de História, artista plástico, editor do site São João Del Rey Transparente e fundador dos bombeiros voluntários de Tiradentes/MG.


Frei Veloso: pioneiro da botânica, da edição e da química no Brasil Luiz Cruz

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rei Veloso nasceu na Vila de São José, a atual cidade de Tiradentes/MG, em 14 de outubro de 1742. Era filho de José Vellozo da Câmara e Rita de Jesus Xavier. Foi batizado José Veloso Xavier, na Matriz de Santo Antônio dessa vila. Sua mãe sendo irmã de Antônia da Encarnação Xavier, então, Frei Veloso era primo de Joaquim José da Silva Xavier (1746-1792). Provavelmente os primos passaram alguns anos juntos, quando Joaquim José ficou órfão e esteve na companhia de sua tia Rita. Não se sabe em qual casa do núcleo arquitetônico de Tiradentes nasceu Frei Veloso. Aos 19 anos, ele deixou a Vila de São José e foi para o Convento de São Boaventura – também conhecido como Convento de Macacu, edificado ainda no século XVII e situado no interior fluminense, no arraial Porto das Caixas, atualmente integrando o município de Itaboraí, ali tornando-se franciscano. Ordenado no Convento de Santo Antônio, no Rio de Janeiro, onde estudou Filosofia e Teologia, deve ter sido aí que adotou o nome de José Mariano da Conceição Veloso. No período de 1768 a 1771, foi pregador e ministrava aula de História Natural no Convento de Santo Antônio. Lecionou Retórica no convento e trabalhou na aldeia indígena de São Miguel, ambos em São Paulo. Como a Coroa Portuguesa expulsou a Companhia de Jesus, devido ao seu amplo trabalho missionário-mercantil, em 1760, o navio Nossa Senhora de Arrábida levou os últimos jesuítas para o exílio. Com isso, os franciscanos assumiram as margens do rio Ururaí, hoje Tietê, região atualmente conhecida como São Miguel Paulista. A denominação 155


História

desta localidade deve ter sido por causa do padre José de Anchieta. Com a presença franciscana, Frei Veloso comanda a reforma e ampliação da igreja de São Miguel Arcanjo. Paredes foram erguidas, o pé direito da nave aumentado, janelas abertas e uma capela erguida em homenagem à Nossa Senhora do Rosário. Frei Veloso utilizou o adobe, tijolo artesanal cozido ao sol, muito empregado na arquitetura da Vila de São José, em Minas. A igreja de São Miguel foi um dos primeiros bens tombados pelo Iphan. Ainda morando no Convento de Santo Antônio, Frei Veloso transformou o seu claustro em um herbário e como autodidata passou a estudar botânica. Em 1782, quando ainda estava trabalhando na aldeia indígena de São Miguel, foi convidado pelo vice-rei Luís de Vasconcelos de Souza para chefiar uma expedição botânica pela capitania do Rio de Janeiro. Essa expedição realizou-se ao longo de sete anos, acompanhada por religiosos, militares, desenhistas e escravos. O material coletado de espécimes da flora e fauna foi encaminhado para o Real Museu e Jardim Botânico da Ajuda, de Lisboa, em Portugal. A expedição botânica chefiada por Frei Veloso resultou na publicação póstuma, em onze volumes ricamente ilustrados de Florae Fluminensis – seu descriptionum plantarum praefectura (1825-1827). Em 1790, Frei Veloso foi para Lisboa. Em Portugal, constatou que havia uma lacuna em se tratando de textos impressos. Aproveitando as intenções de oferecer informações objetivas e de interesse dos produtores agrícolas e sobre técnicas industriais, fomentadas pelo iluminismo, ele vai se tornar uma figura de relevância no cenário das luzes e das ciências de Portugal setecentista. Dom Rodrigo convidou Frei Veloso para a direção da recém-criada Tipografia do Arco do Cego. Com isso, conseguira unir um grupo de brasileiros que poderiam estar envolvidos com as causas republicanas, mas ao contrário, promove indiretamente o desarme das tensões entre a metrópole e a colônia, através do projeto iluminista que estava em implantação. E, neste caso, a grande contribuição dele foram as publicações de técnicas modernas que poderiam ser aplicadas nas colônias e especialmente no Brasil. Assim, a produção da Arco do Cego ganhou importância, pois veio a difundir as luzes das ciências, da agricultura, da arte e da poesia. No curto período em que funcionou, vinte e oito meses, de 1799 a 1801, a Tipografia do Arco do Cego criou a Aula de Gravura, uma oportunidade para se formar novos gravadores. Concentrou várias atividades pertinentes às artes gráficas, como tipografia, calcografia e tipoplastia. Chegou a ter 24 gravadores. Era intenção de Frei Veloso 156

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Frei Veloso: pioneiro da botânica, da edição e da química no Brasil

dotar a Arco do Cego com profissionais capacitados e dispensar trabalhos feitos por outras oficinas. As obras ali editadas eram ricamente ilustradas (as imagens foram recursos indispensáveis para a instrução e o entretenimento), tornando-se uma característica do editor Frei Veloso. As áreas de publicação abrangiam a História Natural, a Agricultura, a Poesia, o Desenho, a Medicina, a Náutica, as Ciências Exatas, a Química e a História. Foram 83 títulos publicados, sendo 36 autores portugueses, 41 traduções e seis em latim. Dos 83 títulos, 44 eram ilustrados na calcografia, com o total de 360 gravuras. Sendo que muitas gravuras, devido à acuidade técnica, eram vendidas em avulso. O pesquisador e historiador Caio Boschi levantou 51 títulos publicados antes ou depois do período da existência da Tipografia, que também podem ser considerados integrantes do projeto editorial da Arco do Cego. No período de 1798 a 1806, Frei Veloso organizou uma publicação em cinco tomos, divididos em onze volumes, intitulada O Fazendeiro do Brasil Cultivador, com textos recolhidos de autores americanos e europeus. Apresentava textos monográficos que tratavam desde a fabricação do açúcar, o cultivo de especiarias, o preparo do leite, seus derivados e outros. Encontramos, pela primeira vez o registro de um brasileiro preocupado com as queimadas florestais que comprometiam a flora e a fauna, além de destruir os nutrientes do solo e provocar erosão. Ele alertava para o perigo das queimadas destruírem plantas ainda sem levantamentos e desconhecidas. Como tradutor para língua portuguesa e introdutor no Brasil das propostas do projeto iluminista do império, participou do nascimento da Química Moderna, com a obra Alographia dos alkalis vegetal ou potassa, mineral ou soda e dos seus nitratos, em volume único, três tomos com mais de trezentas páginas, editado por solicitação do próprio príncipe regente. Frei Veloso conseguiu reunir artigos e outras publicações dos centros mais avançados da época, especialmente da França e Inglaterra. Ele já era detentor de vasto conhecimento das plantas tropicais e até meados do século XIX tanto a “potassa” quanto a soda eram produzidas principalmente pela queima de certos tipos de vegetais. Quando Frei Veloso chegou a Lisboa, em 1790, portava os manuscritos de sua obra botânica: Florae Fluminensis, mas que fora publicada postumamente. Por ser uma obra amplamente ilustrada, as páginas iam sendo arrancadas, o que veio a comprometer sua longevidade. Atualmente, existem apenas duas coleções completas no Brasil, uma na Biblioteca Nacional, que também possui chapas Luiz Cruz

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História

originais em cobre, e outra na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, na Universidade de São Paulo. É necessário registrar que o bibliófilo José Mindlin conseguiu colecionar o maior número de obras publicadas pela Tipografia Arco do Cego, mais do que qualquer outra biblioteca, inclusive de Portugal. Com as invasões napoleônicas de 1808, a Corte Portuguesa fugiu para o Brasil e Frei Veloso retornou acompanhando Dom João VI, o qual, logo, abre a Impressão Régia, utilizando-se da mão de obra especializada de Lisboa. Com a saúde comprometida pelo desgaste e dedicação as suas diversas atividades, Frei Veloso passou seus últimos dias no Convento de Santo Antônio, do Rio de Janeiro, onde veio a falecer em 13 de junho de 1811 e onde foi sepultado. A cidade de Tiradentes presta homenagem a Frei Veloso, ilustre figura tiradentina no ano em que se completam duzentos anos de sua morte. Dentre os eventos já realizados, um ciclo de palestras, com a participação dos seguintes professores pesquisadores: Caio César Boschi/PUCMinas e UFMG, Aníbal Francisco Alves Bragança/ UFF, Fernando José Luna Oliveira/UENF e Valeria Mara da Silva/ UFMG. Ou seja, sua cidade já teve oportunidade de se inteirar sobre a vida, obra e o ambiente iluminista em que viveu o célebre primo do alferes Tiradentes.

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XI. Homenagem


Autores Moacir Longo

Jornalista, escritor e militante comunista, autor de vários livros, dentre os quais se destaca Brasil, os descaminhos do país das terras achadas, lançado pela Edições FAP.

Joel Rufino

Doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, de cuja Faculdade de Letras é professor aposentado. É autor de mais de 50 obras (ensaios históricos, romances, contos, peças de teatro infanto-juvenís), das quais a última é Assim foi (se me parece), memórias das quais extraímos excertos para o texto aqui publicado.

J. R. Guedes de Oliveira

Ensaísta, biógrafo e historiador, autor de mais de uma dezena de livros, alguns publicados pela Edições Fundação Astrojildo Pereira, como Viva Astrojildo Pereira e Astrojildo Pereira In Memoriam. guedes.idt@terra.com.br.


Itamar, o reconhecimento tardio Moacir Longo

F

ez muito bem a direção da Fundação Astrojildo Pereira em publicar livro com textos, depoimentos e ilustrações, valorizando o histórico do homem público exemplar que foi o ex-presidente Itamar Franco.1 Pena que só depois de sua morte se descobriu que suas qualidades como político e como governante sempre estiveram muito acima dos demais, embora sua modéstia e simplicidade não deixassem transparecer. É bom lembrar como se deu a descoberta da figura maior que foi Itamar Franco. Temos que começar com a primeira eleição presidencial pelo voto direto em 1989, após a escuridão ditatorial de mais de 20 anos. Do bipartidarismo imposto pelo regime militar, passamos para um pluripartidarismo sem limites garantido pela Constituição de 1988. Itamar que ascendera ao cenário político pelo MDB, quando do reordenamento partidário acabou ficando um tanto quanto à margem do PMDB, sucessor do seu antigo partido que já abrigava quadros do regime ditatorial. Assim é que vem a eleição presidencial de outubro de 1989 e o esquecido Itamar recebe convite para ser o vice-presidente na chapa de Fernando Collor, lançado pelo PRN, uma das novas legendas surgidas então.

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Itamar Franco. Homem público democrata e republicano, organizado por Francisco I. de Almeida e Ivan Alves Filho, Edições FAP, 2011.

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Homenagem

Aceita o convite e concorre, mas o titular da chapa o deixa no anonimato, pois jamais teve presença no transcorrer da campanha, menos ainda após as eleições, o que não deixou de ser positivo, já que ficou imune às trapalhadas e práticas condenáveis do “caçador de marajás”. É no desdobramento do processo que Itamar Franco vai aparecer e tornar-se referência no jeito de governar. A eleição e posterior deposição de Collor da Presidência da República foi uma experiência traumática e ao mesmo tempo didática para o povo brasileiro. Naquele momento ficou claramente demonstrado que as soluções salvacionistas não funcionam. O “caçador de marajás”, depois de aventuras e desmandos, caiu a partir da combinação de um formidável movimento de massas com a ação dos agentes políticos no âmbito das instituições democráticas. Foi um raro momento de afirmação da cidadania, que, se bem exercida, pode fazer valer sua vontade na busca de mudanças fundamentais nos destinos do país. Com a queda de Collor, a Presidência da República passa às mãos de Itamar Franco, que assume-a não só para dar continuidade à consolidação da democracia no país, mas, também para demarcar uma referência e um divisor de água no processo político brasileiro, conforme os fatos posteriores provaram. Era outubro de 1992 e à crise política se somava o caos econômico devido às estripulias do governo caído. Além disso, era a primeira vez na história do país que teríamos um presidente assumindo o cargo que não saíra de esquemas montados em gabinetes, cercado por grupos políticos oligárquicos que ditam ordens ao mandatário levado por eles ao topo do poder. Se, no plano político, essa era a novidade, no plano econômico o Brasil iria executar um plano de estabilização da moeda, que derrubaria uma cultura inflacionária de mais de 40 anos, desafiando pacotes ortodoxos e heterodoxos, enquanto as camadas de menor renda da população pagavam o preço da inflação, vendo seus minguados rndimentos serem engolidos pelas altas de preços, sem paradeiro, ao longo dos anos. Aquela sensação de que estava ocorrendo um vazio na cúpula do poder, diante do inusitado aparecimento de um presidente que não estava nas cogitações de ninguém, era reforçada pelo modo de ser de Itamar, visto como um político acostumado a exercer seus dois mandatos de senador um tanto quanto solitário e remando contra a maré. Eleito pelo MDB naquela eleição histórica de 1974, e reeleito em 1982, fora um oposicionista persistente ao regime militar no Senado. 162

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Itamar, o reconhecimento tardio

Ao ser chamado para compor a chapa de Collor, estava terminando o seu segundo mandato senatorial. Sua escolha foi vista como sendo uma mera formalidade diante da obrigatoriedade de inscrever um vice para secundar o titular na eleição que viria. De modo que nunca teria passado pela cabeça de nenhum brasileiro que o mineiro que fora prefeito de Juiz de Fora seria, um dia, presidente da República. O mesmo deve ter ocorrido com o próprio Itamar. Mas, aconteceu. Começou pedindo apoio e participação em seu governo dos partidos que tiveram um papel relevante na condução do processo que defenestrou Collor da Presidência. Um certo partido de trabalhadores recusou-se a participar e apoiar o novo governo que seria formado por um solitário Itamar, em meio a uma crise gravíssima. Esse mesmo partido de trabalhadores não só não deu apoio, como se destacou por exercer uma oposição obstinada e predadora. Outros partidos se colocaram à disposição. O novo presidente escolhe, ele próprio, os nomes para compor sua equipe, alguns do seu círculo de relacionamento, porém habilitados; outros desconhecidos da opinião pública. Enfim, um Ministério modesto. Como líder do governo na Câmara Federal, designou o deputado Roberto Freire, do Partido Popular Socialista, sucessor do PCB, que acabara de deixar a cena política, cuja bancada era composta de três parlamentares. A impressão que se tinha naquele momento era de que os grupos oligárquicos, os fisiologistas de sempre, não acreditavam no que estava acontecendo. A perplexidade tomava conta dos espíritos da fauna conservadora que compõem as classes dominantes do Brasil. Viam que jogaram pesado, apostando na eleição de Collor, e acabaram presenciando um movimento de opinião e de ação da sociedade que colocou um ponto final na aventura collorida, patrocinada por eles. Assim é que ficaram afastados das gestões para montar o núcleo administrativo do país. Os primeiros passos do novo governo foram titubeantes, um tanto quanto inseguros. Era preciso enfrentar a tormenta inflacionária e a recessão econômica. O primeiro ministro da Fazenda, dos seis que passaram pelo governo de dois anos e meio de Itamar, foi o desconhecido Gustavo Krause, deputado de Pernambuco, que se autodefinia politicamente como um PFLdoB. Tentou buscar uma saída para resolver quatro questões centrais, envolvendo a crise na área econômica; intensificando a renegociação da dívida externa, buscando reabrir linhas de créditos internacionais; reduzindo os gastos públicos para estancar o crescente déficit orçamentário, cobertos com recursos inflacionários; e procurando tirar a economia da recessão, com estímulos à retomada do crescimento e geração de emprego. Moacir Longo

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Homenagem

O plano não andou. Três meses depois, o ministro era substituído. Mas a renegociação da dívida com os banqueiros internacionais começava a avançar porque as exportações brasileiras ganhavam impulso e a balança comercial começava a gerar superávits significativos, aumentando rapidamente as reservas cambiais do país. O setor produtivo também vai se reanimando com os acordos estabelecidos na câmaras setoriais, envolvendo empresários, trabalhadores e governo, com incentivos fiscais e creditícios. O setor automotivo, com os incentivos à produção de carros populares, puxa a retomada do crescimento da produção em geral. E a inflação? Continuava elevada tanto quanto antes. Depois da passagem de três ministros da Fazenda em menos de um ano de governo, Itamar chama um intelectual uspiano, um sociólogo e pensador político, para assumir o Ministério da Fazenda. Seu nome: Fernando Henrique Cardoso. Era o quarto ministro a tomar posse com a inflação nas alturas. Discursa, como acontece sempre nessas ocasiões, e diz: “Vamos dar uma paulada na inflação”. Combinou com o presidente formar uma comissão de economistas para preparar um plano de estabilização da moeda. A comissão, com todo apoio de Itamar, trabalhou durante cerca de quatro meses, ouviu economistas e políticos, incluindo toda a cúpula do PSDB. No dia 1° de março de 1994, ano em que haveria a eleição para a Presidência da República, o Plano Real entrava em vigor. As reações foram as mais diversas, em geral de incredulidade, pois os brasileiros já estavam cansados de planos mirabolantes e fracassados. Aquele partido de trabalhadores apressou-se em atacar o plano, classificando-o como uma peça de propaganda eleitoral, que se transformaria em estelionato eleitoral, porque não daria certo, pois tratavase de um engodo. O plano que despertou dúvidas sobre sua eficácia, mas com grande repercussão na opinião pública, vai ajeitando as coisas à nova realidade. Começava a aparecer na população a sensação de que estava havendo a estabilização dos preços. O cruzeiro, moeda de então, já não servia para mais nada, e Fernando Henrique Cardoso, o ministro da Fazenda, que vinha sendo cogitado para ser o sucessor de Itamar Franco, e aparecia com 3% nas pesquisas de intenção de voto, ganha fôlego. Sua candidatura se transforma em natural e fato consumado. Ele deixa o Ministério no dia 1° de abril, um mês após o lançamento do Plano Real. Começa a campanha eleitoral com o plano de estabilização servindo de bandeira levantada pelo PSDB e pelo seu candidato. Itamar elege seu sucessor. Fernando Henrique der164

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Itamar, o reconhecimento tardio

rota o candidato daquele partido de trabalhadores, Luiz Inácio Lula da Silva, no primeiro turno. No dia 1° de julho de 1994, começava a circular o Real. A inflação, o dragão da maldade, levou uma “paulada” e se aquietou. Nos meses seguintes, o consumo tem nova explosão, mas havia reservas cambiais, e as importações garantiram o abastecimento. No dia 1° de janeiro de 1995, Fernando Henrique toma posse e assume o compromisso de manter a saúde da moeda e a estabilidade da economia. Quando se diz que o governo Itamar foi uma referência e um divisor de águas na política brasileira, não se quer dizer que tenha sido um governo revolucionário, nem mesmo reformista avançado. A intenção é assinalar a possibilidade que existe de governar sem se submeter às injunções impostas por grupos oligárquicos, sem precisar montar o balcão do toma-lá-dá-cá do fisiologismo que infelicita a nossa sempre Velha República. O mineiro de Juiz de Fora fez um governo transitório, tampão, marcado pela simplicidade e humildade. Na sua gestão não ocorreu nenhum escândalo, nenhum mensalão, não apareceram vampiros, nem sanguessugas. A chamada “República de pão de queijo” funcionou sem traumas ou solavancos, mesmo tendo que operar um Estado colonial-monárquico, centralizador e impregnado de parasitas. Itamar Franco deixou como legado um elevado espírito republicano, uma postura de governante comprometido com a ética, com o respeito aos postulados do Estado de Direito Democrático e um estilo de gestão sem pirotecnia, sem discursos bombásticos e demagógicos, sem desperdícios de recursos públicos em infindáveis viagens pelo mundo, sem festanças e mordomias, próprias dos deslumbrados com as benesses do poder. Suas realizações foram modestas, mas fundamentais, como modesto foi seu governo e o tempo em que exerceu a Presidência: quebrou a espinha da cultura inflacionária com o Plano Real, sendo este seu maior feito. E não foi pouco. Uma conquista da sociedade que dura até os dias atuais, iniciando a cultura de responsabilidade para com a saúde da moeda nacional. Não seria nenhum exagero afirmar que todos os avanços posteriores alcançados, econômicos e sociais, teve como ponto de partida a gestão Itamar Franco. Lembraria, para finalizar, que essa avaliação da figura de Itamar e de seu governo, o autor dessas linhas fez, em 2007, no livro Brasil, os descaminhos do país das terras achadas, portanto, cinco anos antes de sua morte.

Moacir Longo

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Nelson Werneck Sodré, o intelectual como ofício1 Joel Rufino

N

o dia 13 de janeiro de 1999, abri o jornal e li que morrera Nelson Werneck Sodré. Não fui ao seu enterro, como não fui ao de Antônio Rufino. Que tipo de intelectual foi esse homem? Remontando, grosso modo, a história dos intelectuais no Brasil, sua modalidade mais antiga e duradoura é o pedante, aquele que pertencia a um grêmio, confraria ou irmandade com requisitos de admissão. Um destes era o capricho formal, o estilo rebarbativo; só entravam os capazes de afetar conhecimento, saber, cultura, profundidade. Werneck Sodré foi a negação desses, exercendo a vocação intelectual antes de tudo como ofício, fazendo questão de se distanciar dos que a vêem, ainda hoje, como simples marca de distinção, terapia para spleen, cavação ou alpinismo social. Entre 1900 e 1930, mais ou menos, o intelectual crítico, aquele que já não precisava exibir como adorno certos códigos culturais, começou a substituir o pedante, ainda que o tipo sobreviva hoje. A substituição se deu no bojo da Revolução de 1930, denominação ampla para o conjunto de transformações – algumas formidáveis — que a sociedade brasileira conheceu aproximadamente entre o fim da Grande Guerra (1918) e o fim da Segunda (1945), prolongadas um pouco além. Essa substituição é um dos seus aspectos, e decorreu de um fato extrínseco às letras, intrínseco à literatura – o surgimento do público ledor. Ele não existia antes, escritores escreviam para escritores e adjacências, daí as igrejinhas em que o mérito é escrever, a cada vez, mais bonito, mais caprichado, mais difícil, na competição com os pares. Daí, também, o hábito entre homens de letras, até hoje, de “rasgar seda”, triste e ridículo. O que transformou em fantasmas o pedante e seus irmãos foram o público, as modernas editoras (a Monteiro Lobato, a José Olympio, a Companhia Editora Nacional, a Globo, de Porto Alegre, a Brasiliense) 1

Trechos de textos extraídos da obra Assim foi (se me parece), de Joel Rufino, Rio de Janeiro: Rocco, 2008.

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Nelson Werneck Sodré,o intelectual como ofício

e os grandes jornais diários (o Correio Paulistano, o Diário de Minas, o Jornal do Brasil, o Correio da Manha). O que é esse intelectual crítico? Sumariamente, aquilo que foram Werneck Sodré e tantos outros de seu tempo e de ainda hoje, algo impossível sob o predomínio da sociedade escravista, colonial ou neocolonial, de suas maneiras de ser e de pensar. Intelectual crítico: aquele que a partir de um conhecimento específico qualquer — a história, a geografia, a matemática, a engenharia, a física, seja qual for –, ou de um talento específico – o literário, o artístico culto, o artístico popular, o magistério, o jornalismo – interpela a sociedade global, dialoga com ela. É também aquele que tem consciência de não haver inteligência nem cultura universais, já que todo saber é de classe, socialmente interessado e historicamente produzido; nem pensamento único: qualquer unanimidade é burra. Para esquecer no bonde Das conversas que tivemos sobre livros de ficção, adotei uma das suas sentenças mais terríveis: “É bom para esquecer no bonde”. Sodré leu obras inteiras naquelas tediosas viagens, apenas quebradas pelos pequenos vendedores de jornal, pendurados nos estribos, sábado de volta para casa, do internato, em Copacabana, até o Centro, daí até o Alto da Boa Vista – duas horas de bonde para ir, duas para voltar, na segunda-feira. Como hoje, não era na escola que se faziam leitores. Como tantos garotos do seu tempo e condição (falamos da República Velha), aos 12, 13 anos, leu Júlio Verne (1828-1905), Jack London (1876-1916), Michel Zevaco (1860-1918), Alexandre Dumas, pai (1802-1870), o Sherlock de Conan Doyle (1854-1930), o David Copperfield (“foi talvez”, dizia, “o que mais me impressionou”), de Charles Dickens (1812-1870). Criança, leu contos de Hans Christian Andersen (1805-1875) e dos irmãos Grimm, Histórias da vovozinha e lendas medievais, como as dos cavaleiros de Carlos Magno, ou as portuguesas, também muito antigas, de José do Telhado, publicadas em folhetos pelo editor Quaresma. Irmãos Matusalém Sodré buscou na literatura algo que outras disciplinas não davam. Tendo sido, originalmente, resenhista e crítico literário, só mais tarde historiador, insistia em que a literatura produz conhecimento singular da realidade social. O romance e a poesia não são conhecimento seJoel Rufino

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Homenagem

cundário, acessório, subsidiário das ciências sociais, mas essencial, dão uma informação única sobre o funcionamento da sociedade, em cada momento. Literatura nada mais é que o arquivo artístico da condição humana, enquanto as outras disciplinas só arquivam fatos específicos – econômicos, políticos, administrativos, de política internacional etc. O que se encontra exclusivamente nela? Os desejos e as afeições, os fantasmas e os monstros, as angústias e os sonhos – precisamente aquilo que é universal em nós, nossas expressões sinceras. Nelson W. Sodré gostava de lembrar a seus alunos (eu fui seu assistente sem deixar de sê-lo) que o objeto por excelência da literatura são as relações de família, as relações amorosas, as sentimentais, o amor, o ódio, a inveja, os vícios, os insólitos. Personagens convincentes Sendo o marxismo uma filosofia variada e complexa, com certa influência na crítica e história literária brasileiras, muitas vezes me perguntei qual era o de Werneck Sodré. O denominador comum entre os diversos marxismos é a consideração da materialidade das coisas do mundo. O marxismo é um materialismo, quem se aproxima dele deveria sabê-lo. Sumariamente, o que significa materialismo – não crer em Deus, subestimar a religião etc.? Não exatamente. Necessária à nossa espécie, a crença em Deus, ou deuses, integra o fenômeno complexo da alienação; o materialismo e seus correlatos (ateísmo, agnosticismo, existencialismo) talvez só tenham podido se elaborar na civilização moderna ocidental – eles e a capacidade de autocrítica são os melhores patrimônios desse processo civilizatório que vem, quase em linha reta, da Grécia. Materialismo é a concepção do mundo que nos autoriza a explicá-lo por si próprio, com base na experiência histórica do homem, sem recorrer a qualquer fenômeno transcendental, seja Deus, “Estrutura”, “Designer Inteligente”, “Organização” etc. Explicar inclusive a arte e a literatura – embora nesse caso se trate mais de compreender do que explicar. Os fatos literários podem parecer abstratos, efetivamente o são; podem parecer de uma ordem especial, a ordem simbólica, o que é verdade; podem pertencer a diversas outras ordens, e efetivamente pertencem; mas têm explicação, em última análise, na sua materialidade. Em que consiste a materialidade da literatura? O livro (enquanto objeto e mercadoria), as editoras, as instituições de promoção da leitura, os assalariados que trabalham na indústria do livro, o próprio escritor enquanto assalariado e/ou rentista que é, as faculdades de letras, as academias – todas essas entidades e instituições materiais. 168

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Nelson Werneck Sodré,o intelectual como ofício

A expectativa social por certo tipo de literatura e não outro, que a história literária pedestre chama de escolas, está na base dinâmica da explicação dos fenômenos literários. A linguagem, fenômeno também material, é o seu veículo. Aspecto decisivo do marxismo de Werneck Sodré, na análise de fenômenos ideológicos e artísticos, era a utilização dos conceitos de conteúdo de ideias e de consciência possível. Na medida em que a moderna sociedade capitalista se desenvolve, caminhando para uma complexidade cada vez maior, as relações de classe (ou de grupo, ou de camada) vão se deslocando; este deslocamento provoca um outro, o deslocamento das ideias, dos sentimentos, das formas artísticas, jurídicas, religiosas e assim por diante que, por sua vez, invertendo a mão, provoca deslocamentos nas relações de classe. Essa espécie de atmosfera móvel que paira todo o tempo sobre a sociedade (em mudança menos rápida que a base social) os marxistas chamam, tradicionalmente, de superestrutura e, com mais propriedade, de conteúdo de ideias. Quando Sodré publicou, em 1937, História da literatura brasileira. Seus fundamentos econômicos, choveram mais elogios que críticas. Uma destas, contudo, que achava parcialmente justa, o perseguiria muito tempo: o economicismo da abordagem, indicando, já no título, que tudo – movimentos, autores, obras – decorreria das nossas transformações econômicas. Ele não era economicista (o subtítulo original, aliás, era Seus fundamentos materialistas), o economicismo é uma distorção pueril do materialismo histórico mas, no livro, é verdade, base social e literatura corriam paralelas, quase sem interação. Aos 26 anos, Sodré não estava pronto, ele o reconhecia, nem em condições para uma obra tão ambiciosa; embora tivesse lido muito, não lera com a finalidade de escrever um livro daquela natureza; não lera todos os textos fundamentais; desconhecia obras que mereciam referência; e desconhecia, enfim, parte do que já se escrevera em história e em crítica da nossa literatura. A questão, porém, que estava no fundo, não era essa. Para o bem ou para o mal, fosse ou não uma boa história da literatura brasileira, a obra dividiu as águas: crítica não dialética, a partir das mais variadas filosofias (nova crítica, estruturalismo etc.); e crítica dialética, a partir do materialismo histórico. Estava também naquilo que Sodré tinha, ou teria, em comum com outros historiadores da nossa literatura, mais ou menos influenciados pelo materialismo histórico, um Alfredo Bosi, um Antonio Candido (e mesmo com um Afrânio Coutinho, tão distante dessa filosofia): o conceito de nação conectado à hipótese de que no Brasil ela teria evoluído, em linha ascendente, de colônia ao estágio atual, arrastando consigo as manifestações literárias. Joel Rufino

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Homenagem

Surge o esforço [nos anos 1960] do velho pela sobrevivência, na ficção pretensamente psicológica, artificial, difícil, acrobática, num formalismo que se anuncia reformador e que é velhíssimo, num maneirismo vulgar, que abusa do idioma e que o deforma. Mas surge, também, uma ficção que se volta para os problemas nacionais e situa o povo diante desses problemas, de uma poesia que busca libertar-se dos formalismos esterilizadores, de interpretações que buscam as raízes populares da arte, de um teatro que apresenta a plateias viciadas por fórmulas externas aquilo que a realidade exige. Os julgamentos finais, as sanções, o prêmio a que aspira o artista saem dos meios estreitos, dos círculos de pares, para ser atributo do público, isto é, da parcela do povo que participa da criação artística. Esse vínculo começa a definir com precisão o sentido nacional. A questão crítica é se a ficção de Rosa tem sentido nacional. Para Sodré não tinha e, embora não lhe negasse valor artístico, seu regionalismo permanecia disfarce insuficiente para o tom nacional, representando, portanto, o velho. O critério é justo, não a avaliação: a obra de Rosa não é regionalista. O certo é que, coerentemente, entre o realismo lógico de Machado e o cósmico de Rosa, ficava com aquele. O realismo social – não o realismo socialista, que rejeitava – é a modalidade literária que casa o particular e o geral, aquilo que é específico de uma situação, de uma pessoa, de um momento, com aquilo que não é específico de uma pessoa, nem de um momento ou situação, aquilo que é universal, geral, lógico (por contraposição a-histórico); e, pela qualidade da forma, tanto na obra em seu conjunto quanto na construção dos cenários e personagens, se ergue acima da literatura de puro entretenimento, e/ou de massa. A cada momento, o que chamamos de realidade se institui pelo encontro dessas coordenadas principais, uma a que se pode chegar por observação e experiência; e outra a que só se pode chegar por abstração, em pensamento. Desse jeito, os grandes escritores realistas são criadores de tipos e situações típicas e isso, precisamente, é que faz deles realistas: nem permanecem na particularidade concreta, nem na generalidade abstrata, mas fundem, dialeticamente, os dois aspectos com que a vida se nos apresenta, o da percepção e o do pensamento. Suas personagens, imersas em situações convincentes, têm vida, convencem.

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Como conheci Nelson Werneck Sodré J. R. Guedes de Oliveira Devo dizer que nos anos 1960, na euforia de mudanças políticas no país, sabia da existência de um escritor-general que pensava e escrevia sobre o Brasil, com especial atenção. Efervescendo as campanhas do então presidente João Goulart, já em 1963/1964, devorava os livros de Nelson Werneck Sodré e me orgulhava de estar em plena sintonia com os seus mesmos ideais. Contudo, só vim mesmo a manter um contato com ele, pelo ano de 1997, quando cursava Direito, em Itu, cidade que ele mantinha a sua casa, dividindo-a com a sua residência no Rio de Janeiro. Preparava um livro sobre a vida e obras de Rodrigues de Abreu, quando soube que o general acompanhara, na década de 1920, a trajetória do poeta capivariano. Assim, recorri a ele e obtive informações precisas e o estímulo para a elaboração da obra, resgatando a memória do autor da Casa Destelhada. Trocamos algumas cartas. As minhas, datilografadas; as dele, escritas de próprio punho. Tenho-as guardadas comigo. Passarei, em breve, para a sua filha Olga Regina. Em princípio de 1998, participando de reunião de professores e estudiosos no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, propus que fosse feito um depoimento vivo e em vídeo com Werneck Sodré, para compor a memória do referido instituto. A ideia foi acatada com muito entusiasmo. Materializariam a entrevista, quando da estada do general em Itu, já que o seu apartamento era bem no centro da cidade e lá rumariam os integrantes da memória do IFCH. Contudo, os meses passaram na preparação do material e das perguntas a serem formuladas. E, por infelicidade, houve o desenlace de Werneck Sodré, no dia 13 de janeiro de 1999. Estava bem de saúde, mas uma indisposição o levou, com urgência, ao hospital de Itu e lá veio a falecer. Estive em seu velório, feito com honras militares. Depois, na missa de 7º dia, na Igreja Matriz de Itu. Visitei Dona Yolanda, viúva do general e de ilustre tronco Frugoli, mulher de espírito aberto, que me contou o quanto ele era no lar, sempre ativo e que não deixava transparecer a ela os seus problemas com a ditadura instalada. Recebi, 171


então, alguns livros e revistas, de recordação. Conversamos muito sobre o saudoso general. Quando o meu rumo é Itu, aproveito o trajeto obrigatório de entrada na cidade e passo no cemitério local. Lá, bem no corredor principal, está o jazigo de quem pensou, agiu e lutou pelo nosso país a quem não deixo de reverenciar.

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XII. Resenha


Autores César Benjamin

Editor da Editora Contraponto, do Rio de Janeiro, e colunista da Folha de S. Paulo.

Rubem Barboza Filho

Professor titular de Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora.

Fernando de La Cuadra

Sociólogo chileno e membro da Rede Universitária de Pesquisadores sobre a América Latina (Rupal).


O sonho de Descartes César Benjamin

D

ez de novembro de 1619. Trancado sozinho em um quarto aquecido, que ele chama de “estufa”, sentindo a chegada do inverno alemão, um homem vive intensa excitação intelectual. “Fatigou-se de tal maneira”, conta Adrien Baillet, seu primeiro biógrafo, “que seu cérebro se incendiou, entregando-se a uma espécie de frenesi.” Deita-se e tem três sonhos em sequência, nos quais, ao acordar, reconhece uma missão. Implora a Deus e à Virgem que o mantenham no reto caminho para realizar a descoberta que havia antevisto. O homem é René Descartes, então com 23 anos. Recebe em sonhos a missão de bem conduzir sua razão, e o que pede aos céus é confiança em si mesmo. Começa então uma longa jornada que podemos acompanhar em detalhes, pois toda sua obra e grande parte de sua prolífica correspondência foram preservadas. Para quem quiser conhecê-las, é leitura imprescindível a ótima edição das Obras Escolhidas que acaba de ser reimpressa, ampliada, pela Editora Perspectiva, com organização de J. Guinsburg, Roberto Romano e Newton Cunha. Filho de uma família ilustrada, Descartes passou nove anos no colégio jesuíta de La Flèche, onde recebeu boa formação intelectual. Mas saiu insatisfeito, em busca de novos caminhos: “Embora a filosofia tenha sido cultivada pelos espíritos mais excelentes que já viveram, nada há que não seja objeto de disputa e duvidoso.” A busca do conhecimento certo exigia “destruir tudo e começar de novo dos fundamentos, [...] uma tarefa interminável, muito além da capacidade de uma só pessoa”. 175


Resenha

Sabe disso, mas se lança: desliga-se aos poucos das obrigações do mundo, adota um comportamento prudente e reservado, concentra-se nos pensamentos, decide viver na Holanda, relativamente isolado. Escreve uma vasta obra que não separa metafísica, filosofia e ciência. Morre em 1667, com 53 anos de idade. John Cottingam, no Dicionário Descartes (Jorge Zahar Editor, 1995), apresenta um resumo do que ele fez: Tentou resolver os grandes problemas estruturais da metafísica e da epistemologia, criou uma teoria geral sobre a natureza e as origens do mundo físico, elaborou um trabalho detalhado em matemática pura e aplicada, escreveu tratados em mecânica e em fisiologia, investigou a natureza do homem e as relações entre mente e corpo, e publicou reflexões abrangentes em psicologia e em ética.

Esforço semelhante para construir um sistema tão completo de conhecimento não acontecia desde Aristóteles. Tentemos acompanhá-lo. Para não correr o risco de se enganar, Descartes decide considerar falso o que é só verossímil. Começa, pois, por submeter tudo à dúvida: Suponho que todas as coisas que vejo são falsas. Fixo-me bem que nada existiu de tudo o que minha memória me representa. Penso não ter nenhum órgão de sentidos. Creio que o corpo, a figura, a extensão, o movimento e o lugar são invenções do meu espírito. Então, o que posso considerar verdadeiro?

Não é uma dúvida psicológica e nem a dúvida dos cépticos. Ao contrário. Essa dúvida hiperbólica está a serviço de fortalecer um espírito que busca a certeza. Eis o que resta: Embora eu quisesse pensar que tudo era falso, era preciso necessariamente que eu, que assim pensava, fosse alguma coisa. Observando que essa verdade, ‘penso, logo sou’, era tão firme e sólida que nenhuma das mais extravagantes hipóteses dos cépticos seria capaz de abalá-la, julguei que podia aceitá-la como o princípio primeiro da filosofia que procurava.

O ponto de partida firme, pois, é a consciência de si como ser pensante, o famoso cogito que Santo Agostinho propusera bem antes, na Cidade de Deus. Como sair dele? Como estabelecer, seguramente, que o mundo exterior também existe e não é apenas uma ilusão desse eu? É um salto muito difícil. Descartes, como Agostinho, só consegue realizá-lo passando pela ideia de Deus. Pois esse eu que existe é um ser finito, imperfeito e, acima de tudo, contingente, como contingentes são todas as coisas que o cercam: eu existo porque meus pais existiram e se conheceram, essa mesa de madeira 176

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O sonho de Descartes

existe porque existiu uma árvore, que por sua vez nasceu de uma semente, e assim por diante. Não adianta caminhar para trás, nessa via, se quisermos encontrar a explicação última do mundo: realidades contingentes sempre dependem de outras realidades igualmente contingentes, em regressão infinita. Nossa mente só encontra repouso quando propõe a existência de um ser de outro tipo: infinito, perfeito e necessário. Existe esse ser? Sim, por definição, pois a existência é um atributo da perfeição: um ser perfeito inexistente é uma contradição em termos. É o argumento ontológico de Santo Anselmo. No ato de criar o mundo, esse ser necessário fixou as leis de seu funcionamento, para que a criação perdurasse. Com o uso da razão, que nos deu, podemos descobri-las. A razão pressupõe a liberdade, pois o sujeito só pode atingir a verdade se o esforço de conhecimento não for constrangido por nenhuma autoridade externa que lhe imponha limites, e a liberdade pressupõe a razão, pois ser livre é poder agir de acordo com o conhecimento da verdade. É uma reviravolta: em nome de Deus, por muito tempo, se tentou bloquear o desenvolvimento da ciência; agora ele aparece como o fiador dessa empreitada. Sendo nosso criador, assegura que a razão e nossas demais faculdades podem cumprir suas funções; sendo perfeito, não nos engana. Ele é a garantia suprema da correspondência entre realidade e razão, pois fundou e sustenta a racionalidade do mundo. Contrariando o nosso atual senso comum, Descartes conclui que não é possível que um ateu seja homem de ciência, pois não deve confiar na razão quem não crê na realidade última que a legitima. Poderia a razão assumir tão elevado papel? O pensamento tradicional, ancorado na revelação, era seguro de si. Faltava demonstrar que um novo pensamento sistemático poderia encontrar um caminho próprio para descobrir a verdade, construindo uma consistente teia de conceitos, com princípios e normas universais que não fossem mera opinião. Imensa tarefa. O simples acúmulo de evidências empíricas jamais poderia estruturar um conhecimento alternativo e firme. Quem poderia fazê-lo era o método. Era preciso trabalhar com ideias claras e distintas, articuladas segundo regras igualmente claras de análise e de síntese, “graças às quais todos quanto as observem jamais possam supor verdadeiro o que é falso e cheguem ao conhecimento sem se fatigar com esforços inúteis”. A matemática mostrava o caminho: “As longas cadeias de raciocínios simples e fáceis, que os geômetras usam para chegar às suas demonstrações mais difíceis, me fazem supor que toCésar Benjamin

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Resenha

das as coisas que caem no escopo do conhecimento humano interligam-se da mesma maneira”. Seguro da própria existência, confiante na racionalidade do mundo e na capacidade do homem, Descartes pode agora tentar conhecer os objetos naturais. Avança com prudência para evitar o erro. Pega um pedaço de cera: “Aproximo-o do fogo e mudo sua consistência. Mantenho-o aquecido até ver desaparecer cor e odor. Transforma-se em fumaça. A mesma cera permanece após as mudanças? Cumpre reconhecer que permanece”. Mas o quê permanece? Não cor, sabor, consistência e demais propriedades qualitativas, que se mostraram transitórias. Só permanece uma forma indeterminada que contém todas as formas possíveis. A única propriedade objetiva das coisas é serem extensas, propriedade que se conserva mesmo nas deformações. Se matéria é extensão, conhecê-la é medi-la para ordená-la. Deve ser possível construir uma ciência pura das relações e das proporções que independa das peculiaridades de cada objeto. É a mathesis universalis, que Descartes então procura. A geometria e o manejo dos números, que aprendeu e tanto admira, devem ser apenas expressões dessa ciência geral e desconhecida. Para encontrá-la, é preciso unificar a matemática, superando a dicotomia entre forma e quantidade, entre grandeza contínua e grandeza discreta. Mas, como? O elemento último e indivisível da extensão é o ponto, que, sendo adimensional, pode ser associado ao número. O deslocamento do ponto produz a linha; o deslocamento da linha produz a superfície; o deslocamento da superfície produz o sólido. Assim, a diversidade das formas geométricas pode ser reduzida à diversidade de movimentos de pontos. Tais movimentos, por sua vez, podem ser descritos por meio de equações algébricas. Eureka! Os problemas da geometria podem ser traduzidos em problemas de álgebra, assumindo formas muito mais manejáveis. Nasce a geometria analítica, uma das maiores descobertas da matemática, que liberta a geometria da dependência das figuras e confere significado espacial às operações da álgebra. Em seguida, a descoberta da lei da refração, também conhecida como lei do seno, reforça a ideia de que sempre há uma estrutura matemática sob as aparências das coisas. Descartes está a um passo da física: se o mundo físico é extensão e movimento, então é uma realidade mecânica, sujeita a leis quantificáveis. É a pá de cal no mundo animista permeado de espíritos e no 178

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O sonho de Descartes

mundo aristotélico das substâncias. O Deus cartesiano criou e conserva um mundo sem qualidades, aberto à razão e ao cálculo. O último resíduo da análise é o puro espaço geométrico no qual as coisas existem e se movem. Porém, cuidado! É preciso não esquecer que no universo também há algo inextenso, algo que é capaz de pensar o espaço. Pois o eu do cogito, ponto de partida de toda a construção, é apenas coisa pensante. Extensão e pensamento são irredutíveis entre si. Eis, portanto, as duas realidades primárias do mundo. Elas se encontram no homem, só no homem, ser ambíguo, dotado de corpo mas capaz de pensar. Fiel ao método, que exige ideias claras e distintas, avesso a conceitos mistos, Descartes constrói sua imagem dualista do homem, separado em alma pensante e corpo extenso. Corpos são máquinas, animais são autômatos. Eis o ponto de partida de seus amplos estudos em fisiologia. Ao longo da vida, como se vê, Descartes buscou um conhecimento unitário, sem transições bruscas entre os diferentes domínios. Desde a dúvida hiperbólica até a fisiologia animal, passando por Deus, o homem e o mundo, cada grupo de problemas se desdobra em um grupo de problemas afins, buscando-se garantir sempre a coerência do conjunto. O objetivo final desse esforço era estender o rigor matemático a todos os domínios. A ideia não era descabida: durante séculos a física fora uma disciplina qualitativa, dominada por categorias vagas. Por que não se devia imaginar a possibilidade de replicar em outras áreas o espetacular êxito da física matemática recém-proposta por Galileu? Era plausível, mas se revelou impossível. O avanço do conhecimento frustrou o sonho de Descartes. Com mais de 350 anos de distância é fácil criticá-lo, a começar por sua fé mística na razão, revelada em sonho, que gerou nele uma postura estreita e sectária. Na busca da verdade, os antigos colocavam em pé de igualdade a demonstração analítica, fundada na lógica formal, e a argumentação dialética, que se move no campo do que é meramente provável e extrai conclusões verossímeis, tentando persuadir. Descartes rompe com essa longa tradição. Sua obsessão com a certeza e sua confiança no método logo o conduzem à armadilha minimalista do cogito, da qual, realisticamente, não se pode sair. O argumento ontológico de Santo Anselmo, que constrói a ponte entre eu e mundo, passando por Deus, não satisfaz: ele só garante que o conceito de existência é inseparável do conceito de perfeição, mas não que o César Benjamin

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Resenha

ser perfeito exista de fato. Quem percebeu isso foi ninguém menos que Santo Tomás de Aquino. Creio que duas coisas deixariam Descartes especialmente chocado, se pudesse nos visitar. Ambas atingem o cerne de sua formulação. A primeira é que, em vez de a matemática eliminar as nossas incertezas, tornando tudo previsível, ela mesma foi penetrada por incertezas crescentes: trabalhamos cada vez mais com sistemas não lineares intrinsecamente imprevisíveis, descobrimos que muitas sentenças lógicas não são nem verdadeiras nem falsas, sabemos que não podemos medir todas as grandezas físicas e assim por diante. O zoológico atual das ciências exatas abriga animais bem estranhos, que Descartes nunca pôde imaginar. O segundo desdobramento chocante ocorreu no terreno do método, que ele considerava a sua maior descoberta. Ele usa conceitos – como infinito, contínuo e perfeição – que estão longe de ser claros e distintos, uma exigência sua. Mas o mais importante é que a ideia de um método científico positivo tem sido cada vez mais questionada. Gaston Bachelard sugere que não há métodos perenes, pois todos envelhecem: “Chega sempre a hora em que o espírito científico só pode progredir se criar métodos novos” (O novo espírito científico, Tempo Brasileiro, 2000). Paul Feyrabend radicaliza essa ideia e propõe uma espécie de anarquismo metodológico: “O único princípio que não inibe o progresso é: tudo vale” (Contra o método, Editora Unesp, 2007). Karl Popper também se afasta da abordagem cartesiana (Textos escolhidos, Contraponto/Editora PUC-Rio, 2010). Para ele, a procura de um método é um problema sem solução, pois, quando buscamos um critério para distinguir o que é certo e o que não é, somos remetidos à questão de saber se esse critério é certo ou não, e assim indefinidamente. Nenhum critério – nem mesmo êxitos técnicos ou previsões acertadas – permite demonstrar a veracidade de nenhuma teoria sobre o mundo real. Todas as teorias são conjecturas. O que diferencia as teorias científicas das demais é tão-somente que as primeiras são formuladas de maneiras que as deixam expostas à refutação. Contra o programa de Descartes, Popper afirma que o conhecimento científico não acumula um estoque crescente de verdades irrefutáveis, pois vive imerso na dialética de conjecturas e refutações. As teorias válidas, em cada momento, são as que ainda não foram refutadas. Teorias incertas, ideias injustificadas e antecipações ousadas são essenciais ao progresso da ciência, pois desempenham o papel de programas de pesquisa. Sem elas, não há mutações. 180

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O sonho de Descartes

A história da ciência, nos últimos séculos, mostra bem isso. Nenhuma das grandes teorias científicas que aceitamos hoje surgiu ao modo cartesiano. Ao descrever a gravitação, Newton admitiu a ação à distância, que ele mesmo não sabia explicar (e que se demonstrou inexplicável). Darwin propôs a evolução das espécies, mas não podia descrever como os organismos mantinham, herdavam e alteravam as suas características. A geração que criou a mecânica quântica tateou, literalmente, no escuro, mas mesmo assim não deixou de avançar. O cientista trabalha com dúvidas, lacunas e ambiguidades. A boa ciência contém um componente especulativo. O programa de Descartes, é claro, não é o programa da filosofia e da ciência atuais. Ninguém mais se considera cartesiano. Mas talvez seja mais justo dizer que, de alguma forma, todos somos cartesianos. Descartes é um desses pensadores inescapáveis, cuja obra penetrou profundamente no espírito de nossa época e se confunde com ele, para o bem e para o mal. Não seríamos o que somos, sem ele. Sobre a obra: René Descartes. Obras Escolhidas, organizadas por J. Guinsburg, Roberto Romano e Newton Cunha. Editora Perspectiva, 2011.

César Benjamin

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A Era Lula, segundo Werneck Vianna Rubem Barboza Filho

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ste livro – uma coletânea de artigos de conjuntura – trata do sentido verdadeiro do segundo mandato de Lula e da política brasileira nos últimos anos. Um leitor cético e inteligente logo dirá que não existe na política – o reino por excelência das coisas humanas – um “sentido verdadeiro” para os fatos, eles mesmos submetidos à incontrolável e flutuante força das versões e das opiniões, sem as quais a própria democracia não existe. E que é impossível, inútil e suspeito, a busca de um ponto de vista externo e superior, capaz de iluminar, com o despótico poder da verdade, a ordem subjacente ao caos aparente dos eventos e acontecimentos da política. A pretensão da verdade anula aquilo que a política tem de mais humano e produtivo: a nossa capacidade de imaginar, fantasiar e inventar, pela ação, a nossa própria liberdade e o nosso destino, ainda que levando em conta constrangimentos de natureza vária. A ilusão da verdade, diria ainda este inteligente leitor, é politicamente conservadora, ao dissociar a nossa vontade e o mundo, oferecendonos uma versão fatalista da vida. A verdade da política, e sobretudo de uma democracia política, reside na nossa capacidade de viver e explorar o seu único fato irremediável: o de que não existe a verdade, mas possibilidades, e a disputa constante pela opinião de todos. É por concordar integralmente com o leitor que reafirmo este livro de Luiz Werneck Vianna como a revelação – a denúncia – do sentido verdadeiro da conjuntura brasileira dos nossos últimos cinco anos. Há nele uma história – condição para que os eventos particulares ganhem significado e explicação –, tecida pela contraposição entre a imaginação das nossas possibilidades democráticas e o nosso cotidiano. Uma história que não recusa e desqualifica os avanços econômicos e sociais constitutivos do ciclo definitivo de implantação de um capitalismo moderno entre nós, iniciado com o Plano Real. Mas uma história que não hesita em flagrar, na glorificação do êxito deste ciclo econômico, a raiz de uma operação que faz coincidir a nossa imaginação com a mera apoteose das formas existentes de um capitalismo emergente. Emagrecimento de nossa imaginação que autorizou a continuidade dos governos Fernando Henrique e Lula, do 182


A Era Lula, segundo Werneck Vianna

PSDB e do PT, e que presidiu a sensaboria da disputa de dois possíveis gerentes do capitalismo – Dilma e Serra –, ambos aprisionados por esta redução do possível ao real, como se este desfrutasse de uma despótica e intocável objetividade. O dinamismo econômico poderia, na dimensão da política, sustentar materialmente a existência de uma sociedade plural e ativa, capaz de enriquecer o horizonte de nossas possibilidades e escolhas. Não foi o que aconteceu, nos alerta Werneck Vianna. Na defensiva ao final do primeiro mandato, e por ensaio e erro, Lula reativou a velha tradição da estadofilia brasileira, jogando às traças a disposição antitradicionalista que fez nascer o PT. Dispensando qualquer justificativa pública para esta “viagem redonda”, Lula e o PT levaram para dentro do Estado tudo o que estava vivo e se movia na sociedade, estatalizando todos os interesses e submetendo-os à administração carismática do presidente. Só há vida e só pode haver vida e significado dentro do Estado, proclama este enredo que esvazia a sociedade, destrói sua autonomia e condena o parlamento a um apêndice irrelevante da política. E que cria “uma verdade” por ser a única a ter o privilégio da existência, arranjo oposto à aspiração de uma nova hegemonia – para usar o conceito de um pensador caro ao nosso autor – pretendida pelo PT. Razão pela qual, salienta Werneck Vianna, o Judiciário e o Ministério Público se vêem obrigados a um protagonismo contraditório, protegendo a sociedade deste arranjo estatalizante e sancionando a expulsão da política de nossa vida democrática. O leitor cético e inteligente já terá percebido que o autor desta coletânea não mobilizou nenhum ponto de vista externo e superior, com a ambição da verdade, para dar corpo à sua análise. Bem ao contrário, o que ele denuncia é a dulcificação do real como a soma de todas as nossas possibilidades, a construção de uma verdade que conspira contra a democracia. E se o leitor acompanhá-lo até o final, será presenteado com argumentos para uma previsão: a de que, se a riqueza da política foi expulsa por Lula pela porta da frente, com Dilma ela voltará pela porta de trás. Junto com o leitor democrata, só é possível dizer: tomara. Sobre a obra: Luiz Werneck Vianna. A modernização sem o moderno. Análises de conjuntura na era Lula. Brasília/Rio de Janeiro: Fundação Astrojildo Pereira/Editora Contraponto, 2011. 191p.

Rubem Barboza Filho

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A esquerda democrática e a revolução cubana Fernando de La Cuadra

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uando os tanques soviéticos invadiram Praga e o socialismo real se apresentava aos nossos olhos – junto com o fascismo – como um grande pesadelo do século XX, a revolução cubana surgia como uma experiência inédita, diáfana e enaltecedora. E, inclusive, os fuzilamentos que se seguiram ao triunfo de Santa Clara foram considerados consequências inevitáveis das dores do parto. Mas como fazer a crítica de uma revolução que gerou tanta esperança na região e no mundo? Como questionar um processo que se enraizava nos valores mais elevados da humanidade, o fim da exploração dos mais desprovidos, dos mais vulneráveis? Como abordar as práticas autoritárias do regime cubano, sem fazer causa comum com os setores mais “reacionários”? Estas e outras perguntas de similar teor acabaram por imunizar Cuba da crítica da própria esquerda democrática. Por isso, já passadas mais de cinco décadas desde aquele 1º de janeiro de 1959, ainda existe um silêncio cúmplice sobre os erros de rumo de uma revolução que continua assombrando os intelectuais progressistas e a esquerda assumidamente democrática. É precisamente esse silêncio incômodo que estimula a reflexão de Claudia Hilb. Esta socióloga e cientista política argentina, militante da esquerda radical, teve de sair para o exílio depois do golpe de 1976. Em Paris, realizou estudos de pós-graduação e frequentou os seminários de Claude Lefort, sua principal fonte de inspiração intelectual. Colocada diante da pergunta sobre a razão pela qual a esquerda democrática tem guardado um conspícuo silêncio frente aos traços autoritários do regime cubano, ela tenta responder através da seguinte hipótese: a recusa desta esquerda a se pronunciar a este respeito se deve, em grande parte, ao fato de que reconhece o esforço realizado pelo regime em termos de justiça social, ou seja, este setor da esquerda reconhece “algumas realizações indiscutíveis do regime em questão, particularmente o fato de igualar as condições sociais e universalizar o acesso à saúde e à educação”. (HILB, 2010, p. 14) 184


A esquerda democrática e a revolução cubana

Mas isso é suficiente para legitimar um regime político que diz lutar por um mundo mais justo, livre e solidário? Certamente não. Claudia Hilb decompõe os meandros deste dilema e conclui com a certeza inquietante de que os esforços pela igualação radical das condições de vida do povo cubano, na primeira década da revolução, foram um fenômeno entrelaçado com o processo de concentração total do poder nas mãos de Fidel Castro. Ainda mais, no percurso do texto, a autora demonstra consistentemente como uma vocação de dominação total, sustentada na vontade do líder máximo, transformou o entusiasmo e a virtude revolucionária em obediência acrítica. De modo análogo, a gesta revolucionária de inspiração emancipadora produziu, através do medo, um comportamento oportunista e paralisador dos mesmos sujeitos ativos da revolução. Ela argumenta que o processo de concentração de poder nas mãos do Comandante Fidel foi um fenômeno de teor organicista, pelo qual o líder se vê como reitor de uma sociedade, situado legitimamente no topo de uma pirâmide a partir da qual o social torna-se visível em sua plenitude. Foi assim que, como consequência inevitável desta visão, Fidel Castro se transformou na encarnação suprema da revolução. Tudo o que provém dele representa a revolução, e, como ele mesmo sentenciou na mensagem dirigida aos intelectuais cubanos no ano seguinte ao seu triunfo, “dentro da Revolução, tudo; contra a Revolução, nada.” Desta forma – relata Hilb –, o regime passou a cooptar ou subordinar a totalidade das dimensões que conformavam a realidade cubana – as universidades e o movimento estudantil, as fábricas e os sindicatos, os intelectuais e as entidades da cultura –, numa velocidade vertiginosa e arrasadora que se consolida já nos primeiros anos do regime socialista, sepultando qualquer vestígio de critica, ainda que fosse realizada por eminentes figuras surgidas no seio da própria luta revolucionária, como Huber Matos, Carlos Franqui ou Heberto Padilla. O caso deste último foi o mais dramático e patético: “A lamentável paródia da sua confissão de culpa foi o sinal definitivo de que a possibilidade de discordar dentro da área cultural revolucionária ficava eliminada e também foi um sinal que, apesar dos esforços por ignorar o rumo que a Revolução tomava já há muito tempo, muitos dos seus antigos amigos já não conseguiram ou quiseram deixar de ouvir”. (HILB, op. cit., p. 35) A excepcionalidade da experiência cubana se transformou no mesmo pesadelo de matriz stalinista, em que o poder do povo se transforma em poder do partido revolucionário, deste se transfere para o coFernando de La Cuadra

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Resenha

mitê central e, finalmente, o dito poder acaba concentrado nas mãos do ditador. Mas o que salienta a autora, e certamente representa uma importante afirmação, é que este processo de concentração do poder foi concomitante com as intensas e veementes ações em prol do nivelamento das condições de vida da população cubana. As mobilizações espontâneas de apoio à revolução – como a campanha pela alfabetização, o trabalho voluntário durante a safra do açúcar – foram constituindo-se numa prática formal destinada a obter maiores benefícios e prebendas da parte do regime. Por sua vez, à vasta e incondicional adesão e ao entusiasmo inicial captado pelo movimento revolucionário seguiu-se um período de desconfiança e medo, causado pelo crescente e perverso patrulhamento ideológico, a espionagem e a delação entre vizinhos, fato este não só amplamente documentado em milhares de relatórios sobre direitos humanos na ilha, mas também em inumeráveis expressões no campo da cultura (literária e artística), como o romance de Guillermo Cabrera Infante, Três tristes tigres, ou o livro autobiográfico de Reinaldo Arias, Antes que anochezca, levado posteriormente para o cinema. Assim, o regime cubano foi institucionalizando apoios e alimentando medos, e, paradoxalmente, o custo político evidente de uma manifestação de descontentamento também se estendeu a uma postura neutra. A neutralidade, afinal, era uma posição mais sintomaticamente política que qualquer adesão resignada e conservadora marcada pelo interesse individual para obter benefícios do governo ou como disfarce diante de possíveis represálias dos aparelhos de vigilância (por exemplo, os Comitês de Defesa de Revolução-CDR). A “neutralidade” gerava igual ou maior suspeita que uma posição decididamente opositora e, em definitivo, resultava ser tanto ou mais perigosa que o enfrentamento direto: se falo, sou um inimigo, mas, se não falo, também sou um inimigo em potencial. Como depois seria emulado pelo “socialismo bolivariano”, o regime cubano foi criando uma extensa trama de aduladores e seres desprezíveis que fazem da complacência acrítica uma fórmula fácil para ganhar as simpatias do líder e aceder aos privilégios proporcionados pelo Estado, no melhor estilo stalinista descrito magistralmente por George Orwell em seu romance distópico 1984. Neste breve e contundente ensaio, a autora nos lembra também que o ponto de vista organicista não é privilégio somente das correntes “reacionárias” do pensamento, mas também de certas vertentes que se dizem de esquerda ou socialista. No caso cubano, é sintomático que qualquer arroubo de crítica tenha sido automaticamente reprimido, qualquer sinal de pensamento dissidente imediatamente expurgado, 186

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qualquer indício de criatividade distinto do cânon institucionalizado igualmente extirpado, como um câncer maligno que pretendesse se alastrar pelo conjunto do corpo social. Sistemas conceituais fechados de explicações absolutas e totalizadoras não dão espaço para o debate democrático, pois, qualquer que seja a natureza do questionamento das restrições às liberdades políticas e individuais, a resposta quase sempre será que aquele que age dessa forma pensa a partir de uma perspectiva “pequeno-burguesa”, razão pela qual possui valores deturpados e uma compreensão ofuscada da realidade derivada da sua condição privilegiada de classe. Portanto, não existe espaço para devaneios e diletantismos teóricos: “dentro da Revolução tudo; contra a Revolução, nada”, segundo o axioma mencionado. O Comandante encarna, em última instância, o fulgor e a epopeia revolucionária e, consequentemente, é também quem decide o que está dentro e o que está fora. Atribuindo-se a si mesmo o espírito e o comando da revolução, Fidel conseguiu num breve período de tempo – durante a primeira década do regime – concentrar todo o poder do Estado cubano e sufocar qualquer tipo de iniciativa política que pudesse colocar em risco sua liderança e autoridade. E precisamente neste ponto a autora nos conduz para uma reflexão perturbadora a respeito do fato de que a experiência revolucionária acumulada – Rússia e China, entre outras – nos demonstraria que a afinidade entre personalização e concentração de poder revolucionário representa uma tendência constante e inevitável, baseada na “convicção de que o afã construtivista, a pretensão de moldar de cima a sociedade está indissoluvelmente ligada à convicção de que esta tarefa deve ser encarada de modo onipotente desde o ponto mais alto da sociedade”. É aí que a figura do líder emerge como uma espécie de alquimia para organizar o todo social, para definir metas, funções e responsabilidades de cada um dos membros desse organismo. Assim, durante o processo de construção da Revolução Cubana esse papel foi concentrado na pessoa de Fidel, que com seu carisma e liderança resolveria, “definitiva e brutalmente”, a polissemia revolucionária. No entanto, esta síntese que define o destino do povo cubano perde desde muito cedo seu verdadeiro caráter emancipatório. Se bem que o projeto revolucionário tenha conseguido resolver drasticamente a desigualdade prevalecente nos tempos de Batista, ele não permitiu, simultaneamente, realizar os anseios de autonomia e participação democrática entre os habitantes da ilha. Pelo contrário, a aspiração liberadora das “garras” da ditadura batistiana transformou-se num breve espaço de tempo no império da censura, do medo e da submissão. Fernando de La Cuadra

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Resenha

Tal contradição do socialismo “realmente existente” já tinha sido denunciada, há anos, por Rudolf Bahro no seu livro Die Alternative (1977).1 Nele o escritor alemão constata – entre outros aspectos – como o socialismo real dos países da Europa Oriental optou por priorizar (ainda que com evidentes limitações) a resolução da questão da igualdade e da justiça social, à custa dos princípios da liberdade civil e política e do respeito aos direitos de participação democrática e autorrealização dos cidadãos. Também em Cuba a pretensão construtivista e igualitária supôs que um conjunto de valores coletivistas poderia ser inoculado nas pessoas para que elas superassem o individualismo e o egoísmo particularista, criando uma entidade – com características do tipo puro ideal weberiano – chamada de “homem novo”. Mas este projeto transformador se realizou desde cima, desprezando e coibindo qualquer pulsão dos indivíduos em prol da formação de um novo organismo ou corpo social em que primassem os princípios igualitários consagrados pela épica revolucionária: “A fabricação vertical da sociedade exige que cada um cumpra um papel que o poder, desde a cúpula, lhe atribui; se não cumprir por consciência, cumprirá por temor”. De tal modo, o desejo de liberdade se transformou em aceitação da opressão, o terror e o medo substituíram a adesão e o fervor revolucionário do povo cubano. Quem não compartilha estes princípios converte-se em traidor e pária: um gusano.2 A execração das “Damas de Branco”, que viraram arquétipo da deslealdade e alvo do repúdio dos populares, que descarregam contra elas a palavra de ordem: “as ruas são de Fidel”, expressa sem maiores subterfúgios a consagração de uma sociedade amordaçada e imobilizada pelo temor. Por isto, nos interrogamos – tal como se interroga a autora –, o que resta da promessa da Revolução? O que resta do sonho libertário e emancipatório que encarnava a façanha revolucionária dos barbudos? O que dele pode restar para uma esquerda democrática e plural que acredita na construção de uma sociedade mais justa, igualitária e livre da opressão? Muito pouco ou nada. A Revolução que se fez para igualar e libertar os “de baixo” acabou por se construir pelo alto, domesticando a população através 1

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No Brasil: A alternativa – Para uma crítica do socialismo real. São Paulo: Paz e Terra, 1980. Este temor ao linchamento social cria paralelamente uma “dupla moral”, uma dissociação entre a moral pública de fidelidade e apoio ao regime e a moral privada, de sobrevivência, que utiliza inúmeros recursos ilegais para resolver restrições e problemas da vida cotidiana.

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de mecanismos de persuasão e de coerção. Transformou-se, assim, na negação da esperança de um mundo pluralista e tolerante, marca iniludível de um socialismo moderno que não pode abjurar dos princípios democráticos. Ou quiçá, também, na negação da esperança de um tipo de socialismo associativo que, segundo a formulação de Paul Hirst, aspire a constituir-se numa democracia social alternativa ao socialismo autocrático de Estado e ao liberalismo do livre mercado.3 Nesse contexto, adquirem maior significado as palavras do recentemente falecido Antonio Cortés Terzi, para quem os ideais inovadores e pioneiros de Allende têm mais de “socialismo do século XXI” que as práticas ortodoxas dos irmãos Castro ou de Chávez. Estas últimas parecem aproximar-se mais do legado stalinista do século passado que de um socialismo renovado e projetado para resolver os desafios futuros de nossas sociedades. Sobre a obra: Silêncio, Cuba. A esquerda democrática diante do regime da Revolução Cubana. Claudia Hilb. Trad. Miriam Xavier. São Paulo: Paz e Terra, 2010. 111p.

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Paul Hirst. A democracia representativa e seus limites. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.

Fernando de La Cuadra

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XIII. O autor e um pouco de sua obra


Autor Luiz Fernando de Moraes Barros

Professor, graduado (Letras) e especializado (Literatura Portuguesa) na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Concluiu o seu mestrado em Literatura Portuguesa na Universidade Federal do Rio de Janeiro com dissertação sobre o teatro de Camões (2004) e doutorou-se, também pela UFRJ, com tese sobre o lirismo em Gil Vicente. Em 2010, foi palestrante convidado pela Universidade de Basilicata, na Itália e, em 2011, integrou a delegação brasileira no Encontro Internacional Por um Pensamento do Sul, participando da comissão de educação, ao lado de Edgar Morin.


Camões, poeta de todos os tempos Luiz Fernando de Moraes Barros

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ntre 1962 e 1982, a convite de Manuel Bandeira, a professora Cleonice Berardinelli, decana dos estudos de Literatura Portuguesa no Brasil, apresentou um programa na rádio MEC em que lia e comentava poemas do maior vate da poesia lusitana. Sob o título “Camões, poeta de todos os tempos”, tomado agora como empréstimo, o programa escreveu uma página na história da divulgação do texto camoniano no país. Luís Vaz de Camões, de fato, é representante da mais alta expressão poética até hoje. O impacto da língua de Camões, nos dois lados do Atlântico, ainda permanece em nossa cultura, o que faz do poeta um fenômeno sem precedente na Literatura de Língua Portuguesa. E esse impacto se deu, principalmente, pela penetração d’Os Lusíadas no Brasil e em Portugal, terras que reforçariam – depois da influência de Camões – laços culturais em constante e complexa definição.1 Mas a Épica camoniana não foi única responsável. Oceano a banhar, fértil, diferentes continentes, a epopeia teve a seu lado um grandioso compus lírico, que atingiu com extrema eficácia, como densos rios, a vida cultural luso-brasileira. Também a obra Dramática teve sua importância, embora suas águas sejam mais suaves. Camões, portanto, é autor da maior Épica de sua língua, poeta do mais grandioso lirismo sobre o desconcerto do mundo e o amor, além de dramaturgo refinado. Um gênio em três gêneros. Por isso, vale

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Os dois volumes de Brasil e Portugal: 500 anos de enlaces e desenlaces, publicados pelo Real Gabinete Português de Leitura, reúnem os melhores estudos sobre as relações culturais entre as duas nações; rotas em constante cruzamento.

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O autor e um pouco de sua obra

observar o que há de mais evidente em cada uma dessas três naturezas discursivas em que manifestou o seu engenho e a sua arte. Comecemos nas águas mais suaves da comédia. Realizada em apenas três autos (Auto dos Enfatriões e Filodemo, publicados pela primeira vez em 1587, e El-Rei Seleuco, em 1645), a obra dramática de Camões – que nunca foi atraente aos olhares da crítica – precisa ser encarada como textos de fundamental importância para a compreensão da filosofia amatória nos versos do Poeta. Tudo porque o Amor, maiúsculo e central na Lírica e na Épica, é também nuclear no teatro, terreno que comporta a rica possibilidade do diálogo e, portanto, de debate sobre os efeitos do tirano caçador. Nos três autos de Camões, encontramos longas reflexões sobre o sentimento amoroso, muitas vezes regido pela impossibilidade: o adulterino de Júpiter por Almena, em Os Enfatriões, tendo Plauto como influência primeira; o também adulterino e quase incestuoso de Antíoco por Estratônica, sua madrasta, em El-Rei Seleuco, de influência plutarquiana; e os pares amorosos separados pela diferença social, em Filodemo, mais próximo da visão amorosa observada no D. Duardos vicentino. Mesmo estando entre os melhores textos de teatro de seu tempo, as comédias camonianas desceram do paço, tomaram a praça e quase ninguém deu por elas. Poucas foram as edições do teatro de Camões e a única capaz de reunir todas as comédias, margeando-as por um aparato crítico indispensável, é a publicada em 2005, pela Caixotim, sob a coordenação da professora doutora Vanda Anastácio. O estudo é, portanto, ponto de partida para quem deseja conhecer melhor a dramaturgia camoniana. As águas mais densas da Obra Lírica evidenciam que o Amor em Camões, como pode ser verificado também em seu teatro, inscreve-se na tensão dialética entre carne e espírito; entre aquele amor profano e sensorial, e o platonizante amor do Amor. Camões, portanto, não apresenta esses dois conceitos amatórios como radicais opostos que, incomunicáveis, se repelem. As diferentes pulsões são sentidas e descritas a partir da estética da dúvida e da incerteza, própria do Maneirismo, por estarem regidas por uma ordem dialética. Agravados pelo desconcerto do mundo (ou causadores dele, porque não mais podemos separar causa e consequência), os impulsos carnais e espirituais apresentam-se como duas possibilidades discursivas, e portanto poéticas, pelas quais o poeta transita, munido de pena, a dialogar com esses dois mundos que também dialogam entre si, mesmo sendo diferentes. Diante desse quadro, o universo 194

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configura-se como pura angústia e o testemunho desta experiência nos é dado pelo próprio poeta, já que nem a morte pode libertá-lo das amarras da Fortuna, restando apenas o questionamento sofrido que tanto fecundou a sua Lírica: Quem pode ser no mundo tão quieto, Ou quem terá tão livre o pensamento? Quem tão exprimentado e tão discreto, Tão fora, emfim, de humano entendimento Que, ou com púbrico efeito, ou com secreto, Lhe não revolva e espante o sentimento, Deixando-lhe o juízo quase incerto, Ver e notar do mundo o desconcerto?2

A experiência amorosa, vivida em mundo tão desconcertado, leva o sujeito a questionar também a natureza do Amor. O resultado são belíssimas lamentações e incertezas diante do grande conflito: embora deseje a dama fisicamente, também por ela sofre do Amor que lhe foi escrito na alma. E essa dialética tipicamente maneirista corre, quase sem desvio, pelas águas da Obra Lírica: Pede o desejo, Dama, que vos veja; Não entende o que pede, está enganado É neste amor tão alto e tão delgado que,quem o tem não sabe o que deseja. Não há i cousa que natural seja, que não queira pertétuo seu estado; não quer, logo, o desejo o desejado, porque não falte nunca onde sobeja.

Amor e desejo formulando a ventura e confundindo amador e coisa amada. Ora, é esse estar-se preso por vontade, tão famoso, que impede o sujeito de ter seu objeto em detrimento da manutenção do desejo. Em face desse quadro complexo, muito se disse sobre a natureza do Amor em Camões. Jorge de Sena, contudo, foi o primeiro a abordar o Amor e o desejo não como opostos inconciliáveis, mas a partir da relação dialética entre eles, derrubando a dicotômica interpretação bipolar feita até então.3 Só a partir daí os estados contraditórios do cânone modelar petrarquista abrem lugar para o estado da incerteza, tão camoniano e tão maneirista.

2

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Oitava A Dom Antônio de Noronha, sobre o desconcerto do mundo. In: AZEVEDO FILHO, Leodegário de A. Luís de Camões – seleção. São Paulo: Global, 2001, p. 73. O andamento dialético característico da poesia camoniana foi posto em relevo por Jorge de Sena no texto A poesia de Camões, ensaio de revelação da dialética camoniana In: Trinta anos de Camões. V. 1, Lisboa: Edições 70, 1980.

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O autor e um pouco de sua obra

Publicada postumamente, a Obra Lírica de Camões veio primeiro à lume como Rhythmas de Luís de Camões, em 1595. À edição RH, como é conhecida, sucedeu-se outra, três anos depois, sob a grafia simplificada Rimas, a chamada RI. Ao longo dos séculos, outras edições foram acrescentando ao corpus camoniano um conjunto de textos contestáveis, inchando o seu já vasto universo de poemas de medida nova – sonetos, odes, canções, elegias – e de redondilhas, em que o amor revela sua face jocosa. O movimento de sístole do então monumental índice começa em 1932, com a edição histórica e pitoresca de José Maria Rodrigues e Afonso Lopes Vieira, na qual afirmavam os editores que D. Maria, filha de el-rei D. Manuel I de Portugal, era a inspiradora da quase totalidade de textos camonianos. A Tese da Infanta seria posta abaixo imediatamente após a sua divulgação. Afinal, Camões ultrapassou, e em muito, o homem preso à experiência sensorial, ligada à natureza concreta dos amores vividos. Foi capaz também de teorizar – metafisicamente – o universo sentimental em que estava inserido. Mas os estudos literários, ainda herdeiros de uma romântica e viciosa noção de vida e obra, diante do silêncio biográfico que cobre Camões, tentaram depreender dos versos as informações que faltavam. Ora, diante dessa persona poética, o homem autêntico pouco importa, apesar do caráter confessional que claramente imprime em seus versos, assumindo-se escritor de verdades puras: Em quanto quis Fortuna que tivesse Esperanças de algum contentamento, O gosto de um suave pensamento Me fez que seus efeitos escrevesse. Porém, temendo Amor que aviso desse Minha escriptura a algum juízo isento, Escureceo-me o engenho, com o tormento, Para que seus enganos não disesse. Ó vós, que Amor obriga a ser sujeitos A diversas vontades, quando lerdes Num breve livro casos tão diversos! Verdades puras são e não defeitos; E sabei que, segundo o amor tiverdes, Tereis o entendimento de meus versos.

O conflito amoroso inscrito na dialética do desejo encontra sua indicativa explosão no canto 9, de Os Lusíadas, quando os portugueses vão ter com as ninfas no episódio da Ilha dos Amores. Aliás, to196

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das as questões que podem ser depreendidas das Obras Lírica e Dramática possuem, na epopeia camoniana, desenvolvimento grandioso, não somente porque épico, mas porque o que se discute n’Os Lusíadas é a experiência humana em dimensão profunda e ampla. Não restam dúvidas, portanto, de que a teoria amatória em voga é um forte motor da epopeia. Também temos por certo que Camões apresenta em sua épica os feitos da nação e sua aventura rumo ao desconhecido em nome da honra e da glória. Do mesmo modo, não se pode desconsiderar que, ao cantar o Império, também cantou a fé como suporte (e pretexto) para as conquistas lusitanas. Mas há, contudo, que se reconhecer o canto de inúmeras categorias universais que alçam Os Lusíadas a um ponto que transcende o âmbito nacional. A mensagem da épica camoniana diz respeito à humanidade que, para todos os efeitos, Portugal representa. Jorge de Sena nos conduz com maestria à universalidade do texto: O que não seja levado a cabo com espírito de sacrifício, coragem, isenção, tolerância em tudo desde a religião às licenças eróticas, e não seja iluminado por um ideal de supremo e universal amor da Humanidade e do Mundo, não poderá ter o favor dos deuses, e está inexoravelmente fadado ao desastre.4

E é a partir dessa leitura – que considera as esferas nacionais e universais – que devemos compreender os diferentes episódios que dão vida à narrativa: o assassinato de Inês de Castro, retomando a tópica da morte por amor que a dama passa a simbolizar (canto III); a voz crítica e condenatória sobre aventura marítima, profeticamente lançada da boca do Velho do Restelo às naus (canto IV); o Gigante Adamastor como metáfora da dificuldade (canto V); a própria novela de cavalaria que corresponde à narração dos Doze de Inglaterra (canto VI); a chegada dos portugueses às Índias, símbolo da conquista autorizada pela ação divina e ratificada pela determinação humana (canto VII); e o prêmio pela ultrapassagem do métron, quer de ordem sentimental (Ilha dos Amores – canto IX), quer de ordem racional (Máquina do Mundo – canto X); entre muitos outros. Única obra publicada em vida (excetuando-se três textos,5 a grande aventura portuguesa por mares nunca dantes navegados saiu em 1572, impressa por Antônio Gonçalvez, em Lisboa, com privilégio real e uma famosa licença inquisitorial, assinada pelo Frei Bartolomeu Ferreira, na qual recomenda a obra por sua erudição e alerta 4 5

SENA, Jorge de. Trinta anos de Camões – v. 1. Lisboa: Edições 70, 1980, p. 271. Trata-se de poemas de elogio: uma ode em que recomenda o livro de Garcia de Orta ao vice-rei da Índia; um soneto e uma epístola também encomiásticos.

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para a ficção dos deuses do gentio. O censor, que autorizara a circulação da obra sem grandes cortes, pelo menos é o que se compreende pela manutenção da Ilha dos Amores, teve diferente conduta em 1584, na conhecida Edição dos Piscos, assim intitulada por conta de uma equivocada nota.6 Com “algumas glosas” emendadas, Frei Bartolomeu Ferreira não apenas cortou, mas alterou e desvirtuou muitos episódios, principalmente naquilo que dizia respeito à fé e bons costumes (motivação ético-religiosa) e ao tratamento dado aos castelhanos, que já exerciam o poder sobre Portugal desde 1580 (motivação política).7 Se no fim do século XVI não faltavam motivos ideológicos para uma reorientação dos versos da epopeia camoniana, nos seguintes também podemos verificar semelhante aproveitamento. Isso porque a grande obra da aventura humana serviu a diferentes propósitos, afinados ou não com a realidade política que Portugal foi desenhando no tempo. O que se percebe, ao longo dos séculos, é que a crítica camoniana, principalmente aquela feita sobre Os Lusíadas, reduziu em grande escala a visão do pensamento de Camões ao colocar em relevo apenas o caráter nacional do poema épico. Foi o que fizeram os intelectuais oitocentistas, por ocasião das comemorações do terceiro centenário de morte do Poeta, em 1880. De certo, a afirmação da grandeza nacional era um imperativo político no final do século XIX, quando Os Lusíadas foram tomados como uma voz modelar em defesa da liberdade, muito favorável aos republicanos que empreendiam uma voraz campanha contra a Monarquia. Principalmente se tivermos em conta o golpe que a soberania portuguesa sofreria em 1890, com o ultimátum imposto pela Inglaterra. No século XX, Os Lusíadas também tiveram a sua leitura reorientada pelo regime fascista de Salazar. O valor literário da obra deu espaço às ideologias da ditadura, divulgando a mensagem de que “lusíada” é todo homem que, identificado com a imagem do guerreiro, defende – messianicamente – a concretização no presente das glórias passadas; a reconstrução nostálgica do Quinto Império. E assim, de literatura de alto valor, a obra de Camões serviu à propaganda política ao longo das crises pelas quais passou Portugal. Talvez esse tenha sido o maior crime já realizado contra os versos do poeta. 6

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A edição é a primeira a ser feita com notas explicativas. Entretanto, a nota do v. 2 da estrofe 65 do canto III tornou o volume famoso: a “piscosa Cisimbra”, vila de Setúbal, famosa pela variedade de peixes, foi explicada como uma região em que “se ajunta ali grande cantidade de piscos pera se passarem a África." BERARDINELLI, Cleonice. De censores e de censura. In: Estudos camonianos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: Cátedra Padre António Vieira: Instituto Camões, 2000.

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Camões, poeta de todos os tempos

Mesmo no pós 25 de abril, a obra de Camões foi lida a partir de uma ótica progressista, democrática e até marxista. Era a celebração da existência coletiva do povo português, contra o mito do “orgulhosamente sós” propalado pelo ideário salazarista, alavancando o grande salto de desenvolvimento político-social do país. De todo modo, o que vale ressaltar é que Camões tem servido, em cada período de crise, como motivador de discussões sobre o projeto cultural português. E a epopeia de tão sublime preço foi sendo atualizada, para o bem e para o mal, a partir de cada contexto, possibilitando o nascimento de contraepopeias contemporâneas, segundo Eduardo Lourenço, como as que nos deixaram Saramago e Lobo Antunes, por exemplo. O que importa é que o diálogo com o texto camoniano nunca foi interrompido, desde a edição Princeps de 1572. Poeta de biografia imprecisa, senão por pequenos dados como uma imagem que atesta a perda do olho direito em combate com os mouros em Ceuta, uma contestável data de nascimento e uma definida data de morte, assumida hoje como Dia de Portugal, além de um breve testemunho de Diogo do Couto na Década Oitava e do documento que concede à Ana de Sá, sua mãe, uma tença pela publicação d’Os Lusíadas. E mesmo diante de tantas incertezas, temos por certo que a influência de seus versos é inapagável e incontornável: o diálogo constante entre a mitologia camoniana e a consciência histórica moderna nos faz ter certeza de que Camões será sempre poeta de todos os tempos.

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