Essencial Padre Antonio Vieira
Ano XI Nº 32 MARÇO DE 2012
ALFREDO BOSSI Organização e Introdução
Revista de Política e Cultura • Ano XI • Nº 32
Editora Penguin/Companhia das Letras www.companhiadasletras.com.br 756 p.
Despesa pública e corrupção no Brasil RUSZEL CAVALCANTE Edições FAP www.fundacaoastrojildo.org.br 208 p.
Cavalinho Branco 50x60cm, 1967
O Sol refletido no Lago Paranoá 120x160cm, 2010
O último Repórter Esso Alberto Aggio
Editora Fatorama alofatorama@gmail.com 132 p.
Alfredo Reichlin
Julio Cerqueira Cesar Neto
André Luiz Marques Serrano
Ligia Bahia
Anivaldo Miranda
Luiz Eduardo Soares
Curral da Morte JORGE OLIVEIRA Editora Record www.record.com.br 206 p.
Rio Doce MARCO ANTONIO TAVARES COELHO Editora Autêntica www.autenticaeditora.com.br 208 p.
José Goldemberg
Arnaldo Jardim
Marcos Sorrilha Pinheiro
Aziz Ab'Sáber
Maria Lúcia Fattorelli
Délio Mendes
Martin Cezar Feijó
Fernando Alcoforado
Mauro Victor
Flávio Paiva
Raimundo Santos
Flávio R. Kothe
Renata Cabrera
Gil Castello Branco
Sérgio Augusto de Moraes
Jorge Madeira Nogueira
Vladimir Carvalho
José Antonio Segatto
Willame Parente Mazza
Tan-gran amarelo 50x60cm, 2003
O PCB-PPS e a cultura brasileira: Apontamentos IVAN ALVES FILHO Edições FAP www.fundacaoastrojildo.org.br 110 p.
Crônicas subversivas de um cientista
RIO+20
Política Democrática • 2012
JOTA ALCIDES
Délcio Marinho, diretor teatral, Niterói, RJ
Mais do que um leitor, posso afirmar que sou um admirador da Política Democrática. E isso por alguns razões. Primeiro, pela qualidade editorial da publicação, sempre aberta às contribuições de caráter pluralista. Depois, por seu comprometimento com as grandes batalhas do nosso povo, da luta pelas mudanças no modelo econômico à denúncia das nossas carências sociais, entre quais eu alinharia a plena inclusão dos afrodescendentes. Sionei Leão, jornalista e militante do movimento negro, Brasília, DF
Italiano, residente há muitos anos no Brasil, onde represento o Partito Democratico de meu país e a central de trabalhadores CGIL, sou leitor regular desta publicação altamente qualificada, a qual me faz lembrar algumas revistas teóricas e culturais da esquerda italiana em seus melhores momentos. Considero da maior importância ler, com assídua frequência, em suas páginas, artigos de grandes intelectuais e políticos da Itália, o que me prende ainda mais a esta instigante revista.
LUIZ HILDEBRANDO editora@vieiralent.com.br 480 p.
Andrea Lanzi, dirigente político, Rio, RJ E o circo chegou 160x135cm, 2003
Parábolas em vermelho 50x70cm, 2004
J.B. SERRA E GURGEL Editora Funprev – Fundação Anasps www.anasps.org.br 368 p.
DISTRIBUIÇÃO: FUNDAÇÃO ASTROJILDO PEREIRA
Tel.: (61) 3224-2269 Fax: (61) 3226-9756 contato@fundacaoastrojildo.org.br
www.fundacaoastrojildo.org.br
www.politicademocrativa.com.br
Casamento em Dia de São João 60x50cm, 1967
Pé de laranja, 50x40cm, 1966
Evolução da Previdência Social
Na condição de diretor de teatro e homem interessado pelos assuntos culturais em geral, devo dizer que a revista Política Democrática é, para mim, leitura obrigatória. Bem escrita, quase didática, ela cumpre uma função social das mais importantes. Qual seja, a de informar com qualidade, pluralidade e isenção. Gostei muito na nova seção O Autor e um pouco de sua obra, contendo vários e imortais versos de Camões.
Leio esta revista, há vários anos. Considero-a exemplar, no que tange à divulgação daquilo que a nossa produção cultural tem de melhor e nos situar diante das grandes questões de nosso país e do mundo. Os dois últimos números, por exemplo, sobre a reforma política e sobre a crise mundial, merecem nota 10, com louvor. Não me canso de admirar também a sua capacidade inesgotável de renovação. Seus editores e colaboradores estão de parabéns. Inês Damaceno, gestora pública, Boa Vista, RR
Rio+20
Fundação Astrojildo Pereira SEPN 509, Bloco D, Lojas 27/28, Edifício Isis – 70750-504 Fone: (61) 3224-2269 Fax: (61) 3226-9756 – contato@fundacaoastrojildo.org.br www.fundacaoastrojildo.org.br Presidente de Honra: Armênio Guedes Presidente: Caetano Pereira de Araujo
Política Democrática Revista de Política e Cultura www.politicademocratica.com.br
Conselho de Redação Editor Marco Antonio T. Coelho Editor Executivo Francisco Inácio de Almeida
Alberto Aggio Anivaldo Miranda Caetano E. P. Araújo Davi Emerich Dina Lida Kinoshita Ferreira Gullar
George Gurgel de Oliveira Giovanni Menegoz Ivan Alves Filho Luiz Sérgio Henriques Raimundo Santos
Conselho Editorial Ailton Benedito Alberto Passos Guimarães Filho Amilcar Baiardi Ana Amélia de Melo Antonio Carlos Máximo Antonio José Barbosa Arlindo Fernandes de Oliveira Armênio Guedes Arthur José Poerner Aspásia Camargo Augusto de Franco Bernardo Ricupero Celso Frederico Cesar Benjamin Charles Pessanha Cícero Péricles de Carvalho Cleia Schiavo Délio Mendes Dimas Macedo Diogo Tourino de Sousa Fabrício Maciel Fernando de la Cuadra
Fernando Perlatto Flávio Kothe Francisco Fausto Mato Grosso Gilson Leão Gilvan Cavalcanti de Melo Hamilton Garcia José Antonio Segatto José Carlos Capinam José Cláudio Barriguelli José Monserrat Filho Lucília Garcez Luiz Carlos Azedo Luiz Carlos Bresser-Pereira Luiz Eduardo Soares Luiz Gonzaga Beluzzo Luiz Werneck Vianna Marco Aurélio Nogueira Marco Mondaini Maria Alice Rezende Martin Cézar Feijó Mércio Pereira Gomes Michel Zaidan Milton Lahuerta
Oscar D’Alva e Souza Filho Othon Jambeiro Osvaldo Evandro Carneiro Martins Paulo Afonso Francisco de Carvalho Paulo Alves de Lima Paulo Bonavides Paulo César Nascimento Paulo Fábio Dantas Neto Pedro Vicente Costa Sobrinho Ricardo Cravo Albin Ricardo Maranhão Rubem Barboza Sergio Augusto de Moraes Sérgio Besserman Sinclair Mallet-Guy Guerra Socorro Ferraz Telma Lobo Ulrich Hoffmann Washington Bonfim Willame Jansen William (Billy) Mello Zander Navarro
Copyright © 2012 by Fundação Astrojildo Pereira ISSN 1518-7446
Ficha catalográfica Política Democrática – Revista de Política e Cultura – Brasília/DF: Fundação Astrojildo Pereira, 2012. No 32, março/2012. 200p. CDU 32.008 (05) Os artigos publicados em Política Democrática são de responsabilidade dos respectivos autores. Podem ser livremente veiculados desde que identificada a fonte.
Política Democrática Revista de Política e Cultura Fundação Astrojildo Pereira
Rio+20
Março/2012
Sobre a capa Marysia Portinari
S
obrinha do genial Cândido Portinari, Marysia nasceu em Araçatuba/SP (1937), onde fez os primeiros estudos (do jardim de infância ao antigo ginasial). Nas férias, com parentes e amigos, ia para Brodowski, onde se situava o casarão da sua família materna, de imigrantes italianos, hoje transformado no Museu Portinari. No mesmo vasto terreno, havia uma capelinha com maravilhosas pinturas do renomado tio. Em 1950, a família de Marysia mudou-se para São Bernardo do Campo e, logo depois, para São Paulo, onde completou seus estudos e fez o curso de desenho e pintura no Museu de Arte de São Paulo. Em seguida, foi para o Rio de Janeiro, onde iniciou também seu aprendizado com o tio Candinho, tendo vivido na casa carioca dele, até 1955. De 1955 a 1958, voltou a morar na capital paulista pintando figuras, casamentos caipiras, flores e naturezas mortas, assim como um painel para a Lloyd Sul Americano. Retornou ao Rio, no início de 1959, então trabalhando como auxiliar de Portinari, em painéis e retratos. Em 1961, voltou em definitivo para São Paulo, onde se casou com o crítico de arte e pintor Paolo Maranca. No ano de 1976, a Galeria Bonfiglioli realizou exposição retrospectiva dos seus 20 anos de carreira artística, já tendo participado de inúmeras mostras coletivas e individuais no Brasil e no exterior: Portugal, França, Itália, Estados Unidos, México e Argentina. O curador de sua bela exposição, “Retalhos de Fantasias”, em Brasília, o baiano Afrisio Vieira Lima, no catálogo da mostra, ressalta que “a obra de Marysia apresenta multiplicidade temática, manifestando toda a sua versatilidade no decurso de uma diversidade de séries, que representa uma evolução artística com fundamento num veemente cromatismo impregnado de alegria e brasilidade. De feição expressionista, imbuída muita vezes de forte lirismo, deixa também transparecer em sua pintura a inerente pureza, ingenuidade e fantasias que marcam a sua personalidade, evidenciando um quê de naïf”. Para ele, Marysia emociona ao “pintar as memórias da sua infância, das cidades interioranas e circos de seus arredores, paisagens rurais, suas raízes e tradições, sua terra. Sua arte chega para nos fazer sonhar, fantasiar, afaga os nossos olhos e o coração. Com suas cores quentes e vibrantes, vem nos fartar de regozijo, trazer doces reminiscências, orgulho dos nossos valores, crenças e cultura, assim como do nosso chão”.
Sumário APRESENTAÇÃO
Os Editores.......................................................................................................... 07
I. TEMA DE CAPA: RIO+20 Rio+20 e o futuro que queremos
José Goldemberg............................................................................................................ 11
Crise ambiental ou crise da civilização?
Mauro Victor................................................................................................................... 15
Caatinga: solução e não um problema para a Rio+20 Anivaldo Miranda........................................................................................................... 19
II. QUESTÕES AMBIENTAIS Biodiesel: desafios distributivos de fontes alternativas de energia
André Luiz Marques Serrano e Jorge Madeira Nogueira................................................ 25
A quem serve a transposição das águas do São Francisco?
Aziz Ab’Sáber............................................................................................................. 34
Retrocessos no governo Dilma sobre Agenda Socioambiental...................................................
37
III. ECONOMIA Defender a indústria nacional
Arnaldo Jardim........................................................................................................... 45
A inflação e a dívida pública
Maria Lúcia Fattorelli.................................................................................................. 49
A Copa 2014 e a Torre de Babel
Gil Castello Branco..................................................................................................... 56
IV. PROBLEMAS METROPOLITANOS A atual problemática dos recursos hídricos na RMSP
Julio Cerqueira Cesar Neto......................................................................................... 61
Além do bem e do mal na cidade sitiada
Luiz Eduardo Soares................................................................................................... 69
V. POLÍTICAS PÚBLICAS Financiar o SUS universal sem tergiversar
Ligia Bahia................................................................................................................. 75
Política de avaliação da pós-graduação: um balanço crítico
Renata Cabrera.......................................................................................................... 82
VI. TERCEIRO SETOR O papel político das ONGs
Flávio Paiva................................................................................................................ 95
Terceiro Setor e a desoneração tributária no direito comparado
Willame Parente Mazza............................................................................................. 105
VII. BATALHA DAS IDEIAS Os ganhos ideológicos da direita. A morte do não nascido
Délio Mendes............................................................................................................ 113
Flores Galindo e a leitura de Gramsci
Marcos Sorrilha Pinheiro........................................................................................... 119
VIII. ENSAIO Uma crítica marxista ao mito da caverna de Platão
Flávio R. Kothe.......................................................................................................... 125
IX. MUNDO A crise europeia vista a partir do Brasil
Alberto Aggio............................................................................................................. 137
Para retomar o controle da própria vida
Alfredo Reichlin......................................................................................................... 146
Causas prováveis da 4ª Guerra Mundial
Fernando Alcoforado................................................................................................. 154
X. VIDA CULTURAL A gênese da cena roqueira brasiliense
Vladimir Carvalho..................................................................................................... 163
XI. HISTÓRIA Marxismo e política
José Antonio Segatto................................................................................................. 169
Relembrando o PCB nos nossos tempos
Raimundo Santos...................................................................................................... 179
XII. RESENHA Estudos culturais: a prática de um olhar contemporâneo
Martin Cezar Feijó..................................................................................................... 187
Silêncio, Cuba – com outros olhos
Sérgio Augusto de Moraes............................................................................................ 193
Apresentação
E
ntregamos aos leitores uma edição que presta um auxílio de inegável valor aos que compartilham da luta pelas transformações da sociedade brasileira e a todos os que se interessam pela causa em defesa da vida das novas gerações neste planeta. Ao examinarmos qual seria a questão básica em que deveríamos centralizar nosso trabalho jornalístico, impôs-se a proposta de destacarmos o tema da Conferência da ONU sobre Desenvolvimento Sustentável, a RIO+20, que será realizada, em junho próximo, na cidade do Rio de Janeiro. Cremos ser dispensável justificar essa opção. Por muitas razões, valorizamos tudo o que for possível para que esse conclave corresponda ao que dele se espera, com diretrizes que impulsionem povos e nações para ultrapassarmos a crise vivida pela civilização. Entretanto, tal responsabilidade dos brasileiros é maior porque muito se espera dos anfitriões para que essa conferência seja plenamente vitoriosa. Um dado reforçou esse entendimento porque, de conformidade com opiniões de duas personalidades eminentes em nosso país – José Goldemberg e Rubens Ricupero – há justificadas críticas aos organizadores da RIO+20, a partir das Nações Unidas até o governo brasileiro, por não trabalharem como a situação exige. Face a essa deficiência, consideramos impositiva a necessidade de uma mobilização muito mais acentuada para que ela não seja apenas um elenco de exortações em favor dessa causa, mas indicativa de soluções concretas a serem adotadas em escala mundial. Simultaneamente, na presente edição, damos o merecido destaque a diversas questões ambientais, desde problemas que afetam diretamente nossas maiores metrópoles – como São Paulo e Rio de 7
Janeiro – ao lado de textos que enfrentam, de um ponto de vista crítico, questões vitais na economia, como é o caso da desindustrialização, e transmitem uma visão a respeito da situação do SUS, da política de pós-graduação e da atuação do Terceiro Setor no Brasil. Sem falar na seção Mundo, em que há resumo da exposição que o professor Alberto Aggio, dirigente nacional da FAP, fez na sede do Partito Democratico, em Roma, mostrando a visão de um intelectual brasileiro sobre a crise financeira mundial com seus violentos reflexos sobre a Itália, outros países do Euro e o Brasil, e um texto do italiano Alfredo Reichlin, com também arguta análise sobre a crise mundial e a busca de saídas dela, dentro das novas particularidades nas relações internacionais em tempos de globalização. Na seção Ensaio, há um curioso texto do professor Flávio R. Kothe, contendo uma crítica marxista ao mito da caverna de Platão. Como revista também dedicada à Cultura, os leitores aqui encontram ainda estudos e artigos voltados para análises de temas atuais e para aspectos históricos essenciais sobre a trajetória dos comunistas brasileiros, que comemoram, com justo orgulho, no dia 25 deste mês de março, os 90 anos de fundação do PCB. Os Editores
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Política Democrática • Nº 32
I. Tema de capa: Rio+20
Autores José Goldemberg
Físico e membro da Academia Brasileira de Ciências, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Física (1975-1979). Professor catedrático da Universidade de São Paulo, da qual foi reitor (1986-1990). No governo federal, foi secretário de Ciência e Tecnologia (1990-1991), ministro da Educação (1991-1992) e secretário Especial do Meio Ambiente da Presidência da República (março-julho,1992). Desde 2002, é secretário do Meio Ambiente do estado de São Paulo. Em 2000, recebeu o Prêmio Ambiental Volvo e, em 2008, o Prêmio Planeta Azul, concedido pela Asahi Glass Foundation, considerado um dos maiores da área do meio ambiente.
Mauro Victor
Engenheiro agrônomo pela USP-Esalq, especializado em Ciências Florestais, com pósgraduação em Wageningem, Holanda. Ex-diretor do Instituto Florestal de São Paulo, coordenou a criação da Reserva da Biosfera do Cinturão Verde da cidade de São Paulo. Assessorou a FAO das Nações Unidos, em Roma, Santiago e em diversos países do Caribe e da América Central. Estruturou e dirigiu o Centro Nacional da Embrapa (CNPDA). Ajudou a redigir o capítulo Florestas, da Agenda 21, em Genebra, a convite da Unced, Nações Unidas, vinte anos atrás.
Anivaldo Miranda
Jornalista, mestre em meio ambiente e desenvolvimento sustentável pela Universidade Federal de Alagoas e superintendente da Secretaria do Meio Ambiente e Recursos Hídricos de Alagoas.
Rio+20 e o futuro que queremos
José Goldemberg
S
erá realizada, no Rio de Janeiro, de 19 a 22/06/2012, uma conferência internacional da Organização das Nações Unidas para marcar o 20º aniversário da Rio-92. Duas décadas se passaram desde a realização dessa conferência sobre meio ambiente e desenvolvimento, que é considerada a mais importante realizada até hoje sobre o tema e à qual compareceram mais de 100 chefes de Estado. A Conferência recebeu o apropriado nome de Rio+20 e o seu objetivo é fazer um balanço do que se conseguiu fazer nos últimos 20 anos na direção de um desenvolvimento sustentável e, eventualmente, propor novos caminhos e novas ações. A Rio-92 ocorreu num momento em que o movimento ambientalista mundial estava em ascensão, o que favoreceu os resultados alcançados – os mais importantes dos quais foram a Convenção do Clima e a Convenção de Biodiversidade. Outros resultados foram a Declaração de Princípios sobre Florestas, a Declaração do Rio de Janeiro e a Agenda 21, que, apesar de meramente retóricos, fizeram avançar a agenda ambiental em muitos países. As perspectivas de sucesso da Rio+20 são ainda incertos e mais esforço é necessário por parte do governo brasileiro para evitar que ela se torne apenas um palco para declarações retóricas e politicamente corretas. A própria Organização das Nações Unidas, ao convocar a Rio+20, limitou seu escopo: ela terá apenas três dias de duração. A Conferência do Rio, em 1992, teve duração de 15 dias, o que deu tempo para 11
Tema de capa: Rio+20
ampla mobilização das organizações sociais e até para os negociadores dos países que vieram ao Rio A razão para um certo pessimismo tem origem no documento preparado pelas Nações Unidas em janeiro e que deverá ser discutido, e provavelmente adotado pelos países em junho. Este documento, com o sugestivo título “O Futuro que Queremos”, tem 128 parágrafos, a grande maioria dos quais não passa de exortações aos países membros das Nações Unidas para que façam mais na direção do desenvolvimento sustentável, mas não delineia planos de ação para torná-los realidade. As palavras “reafirmar”, “reconhecer”, “encorajar”, “apelar” aparecem em 118 dos 128 parágrafos. Em contraste, a Conferência do Rio, em 1992, foi precedida de intensivas negociações e preparação das Convenções que foram assinadas. Depois dela foram necessários cinco anos, até 1997, para a adoção do Protocolo de Kyoto, que fixou metas para a redução das emissões de gases responsáveis pelo aquecimento da Terra e um calendário para cumpri-las. A Convenção do Clima foi ratificada e seguida pela adoção do Protocolo de Kyoto, em 1997, que deu “dentes à Convenção”, fixando reduções mandatórias de emissões de gases que provocam o aquecimento da Terra apenas para os países industrializados. Os Estados Unidos, contudo, não ratificaram o Protocolo de Kyoto (que só entrou em vigor em 2005), o que reduziu muito sua eficácia. A Convenção da Biodiversidade só teve o seu primeiro protocolo adotado em Nagoya, em 2010, e ainda não entrou em vigor. Os progressos alcançados desde 1992 foram modestos, o que não significa que nada foi feito, apesar dos Estados Unidos não terem aderido ao Protocolo de Kyoto. Os países da União Europeia cumpriram razoavelmente bem seus compromissos. Muitos municípios e até estados seguiram as recomendações da Agenda 21 e alguns adotaram metas para a redução de emissões como o estado da Califórnia, nos Estados Unidos, e São Paulo, no Brasil. O que se esperava, portanto, é que na Rio+20 fossem aprofundados os compromissos adotados em 1992 e assumir novos. Não é o que transparece do documento preparado pelas Nações Unidas que está em consideração pelos Estados-membros. De concreto mesmo o que ele propõe é: i) Transformar o Pnuma (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente) numa agência das Nações Unidas, como a Organização Mundial de Saúde ou a Organização Mundial do Co12
Política Democrática • Nº 32
Rio+20 e o futuro que queremos
mércio, o que lhe dará mais poderes e mais recursos. Esta é uma boa ideia, mas de caráter burocrático. ii) Criar até 2015 indicadores para medir os progressos feitos. Existem sugestões de criar um indicador de desenvolvimento que leve em consideração, além do GDP, os custos causados ao meio ambiente por um desenvolvimento predatório. O documento também faz propostas na área de energia, o que não ocorreu na Agenda 21. O documento endossa a proposta do secretário-geral das Nações Unidas de dobrar até 2030 a eficiência com que a energia é usada e, o que é mais importante, dobrar até 2030 a fração de energia renovável na matriz energética mundial. Reconhecer a importância da energia como um fator fundamental para o desenvolvimento sustentável não é mais do que reconhecer a realidade, mas sua inclusão nas resoluções da Rio-92 foi vetada, na ocasião, pelos países produtores de petróleo. Infelizmente, 2030 está longe e até a Conferência de Durban foi mais ambiciosa ao acertar que até 2020 deverá entrar em vigor um acordo internacional que substitua o Protocolo de Kyoto e que fixe os compromissos mandatórios de todos os países em reduzir suas emissões de gases de “efeito estufa”. As emissões da China já superam hoje as emissões dos Estados Unidos. A Conferência de Durban mudou a arquitetura de implementação da Convenção do Clima e abriu caminho para o abandono de compromissos multilaterais e a adoção de metas nacionais voluntárias que foi a tônica da Conferência de Copenhague. Em particular, no caso do Brasil, não é sem tempo que o Itamaraty decida como e onde quer ficar. Por um lado, o país aspira ser um dos grandes no cenário mundial e conseguir lugar de membro permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, com as responsabilidades que isso implica. Por outro, alinha-se com países que não têm realmente como enfrentar o problema das mudanças climáticas e são dependentes de doações dos países ricos para tal. Esse é, no fundo, um comportamento bipolar que, na prática, só favoreceu até agora a China e a Índia que, protegidas pelo Protocolo de Kyoto, se tornaram grandes emissores. Para salvar a Rio+20 seria preciso a adoção de Protocolos e prazos para cumpri-los através de instrumentos legais nas várias áreas que o documento das Nações Unidas (O futuro que queremos) aborda superficialmente. José Goldemberg
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Tema de capa: Rio+20
Foi isto que não aconteceu até agora para a Rio+20 e até a presença de um grande número de chefes de Estado é incerta. Em última análise quem terá que tomar ações concretas são os países membros ou associações de países, como fez a União Europeia em relação às emissões de gases de “efeito estufa”. Por essa razão, o Brasil tem excelentes condições de assumir a liderança deste processo junto com a África do Sul, China e Índia com programas que já adotou e que tiveram sucesso como o Luz para Todos ou a produção de etanol da cana de açúcar. Outros países têm excelentes programas de energia eólica como a Espanha. Dinamarca e até Estados Unidos. Os problemas que a humanidade enfrenta hoje são sérios e comprometem efetivamente as gerações futuras. A exploração predatória dos recursos naturais está levando à exaustão dos combustíveis fósseis e da biodiversidade dos ecossistemas que são essenciais para garantir a continuidade da produção de alimentos. A euforia com descobertas de petróleo no pré-sal no Brasil não muda o fato que as reservas mundiais de petróleo e gás não deverão durar muitos anos e que seu uso é a principal fonte da poluição urbana e poluição global que enfrentamos. A percepção de que preocupações com a proteção ambiental são um obstáculo ao desenvolvimento econômico é equivocada e precisa ser desmitificada. A Rio+20 oferece uma oportunidade para fazê-lo.
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Política Democrática • Nº 32
Crise ambiental ou crise da civilização? Mauro Victor
N
a opinião dos entendidos, a Rio+20, que o Brasil hospedará em junho deste ano, poderá ser um rotundo fracasso. Não tem o apelo midiático da Copa do Mundo de 2014, nem o charme discreto das Olimpíadas, em 2016. Mas deveria atrair para o nosso país o interesse global, com a presença de mais de 150 governantes e chefes de Estado. Gente subindo a Rocinha para conferir as dezenas de ONGs dedicadas à promoção humana e à conservação da natureza. E a Cidade Maravilhosa será blindada por forte esquema de segurança, como foi na conferência de vinte anos atrás, na chamada Cúpula da Terra. Agora, o projeto é decidir na Rio+20 o destino de nosso planeta doente. Tudo indica, porém, que isso poderá não acontecer. Por qual razão? A respeito disso não há um acordo generalizado. Para uns, existe um tema maior, que eclipsa os demais: a crise econômica nos países hegemônicos. Afirmam outros que falta uma agenda objetiva, o que levará a Conferência a abusar da retórica vazia. Parece-me que ambas as correntes têm certa dose de razão, mas a verdadeira causa precisa ser dissecada. Senão, vejamos. Desde o começo, a temática da Conferência foi galvanizada por duas óticas divergentes que podem ser assim contrastadas – Sachs versus Sachs. No primeiro caso, a opinião de Ignacy Sachs (prestigiado apóstolo da sustentabilidade e defensor da chamada economia verde) traz em seu bojo certo reducionismo conformista, afirmando que as nações desenvolvidas deveriam direcionar uma percentagem de seus Produtos Internos Brutos (PIBs) para o avanço da tecnologia verde nos países periféricos e centrais. Ora, como não há dinheiro sobrando no mundo, automaticamente não há recursos à vista (No money, na Rio+20). Faz sentido. A segunda posição, defendida por Jeffrey Sachs, é radical e prega a reformulação dos fundamentos da economia, já que o atual modelo neoliberal não se sustenta. Jeffrey Sachs é economista da Universidade de Colúmbia, conselheiro de presidentes, amigo de reis e majestades. Entre essas duas posições balança o coração da Rio+20. 15
Tema de capa: Rio+20
Minha posição é maniqueísta para efeitos analíticos e didáticos, sem o matizado das produções acadêmicas do gênero. Aqui prevalece a percepção do observador externo. Não somos, não estamos no poder e não somos comensais dele. Afinal, quem quer saber o que pensa o rei deve viver permanentemente na corte. Não é o nosso caso. Somos cidadãos independentes que não buscam o controle social sobre fatos que vão determinar nossas vidas e as de nossos descendentes. Por isso mesmo pensamos e atuamos mais livremente, sem as peias e convenções que inibem as relações entre governos, com a prevalência de normas diplomáticas e posturas que, muitas vezes, beiram o cinismo, as firulas de estilo, segundo o embaixador Rubens Barbosa. Na verdade, nosso desejo inicial era escrever uma saga futurista sobre a Rio+20. Chegaremos lá? É ocioso dizer que o mundo caminha para um futuro pouco promissor não somente na questão ambiental, mas também nas questões econômicas, financeiras, sociais e éticas, com uma crise de valores sem precedentes. Os estudiosos afirmam que se trata de uma crise da civilização. Ou seja, a marcha do homem sobre o planeta Terra está ameaçada e isto não é uma visão catastrofista. As dezenas de teses e estudos estão aí para comprovar o que todos estão cansados de saber. Apenas na área ambiental vale conferir que a deterioração do meio ambiente segue inexorável, apesar das inúmeras conferências, tratados e acordos internacionais, com juras e promessas solenes de que a situação vai melhorar. Vale conferir. Mais atual do que nunca cabe lembrar o comentário do senhor da guerra Henry Kissinger, perpassado por certa ameaça subjacente. Ele afirmou: o destino do Homem inexoravelmente será a Paz; esta virá através de um conflito universal, provavelmente o inverno nuclear ou o aquecimento global, ou através de um melhor entendimento entre os homens. Claro, nos alinhamos à segunda hipótese. E por ela lutamos (autoridades britânicas de renome comentam que o aquecimento global será a própria guerra, afetando ainda neste século a economia internacional, numa escala maior que os dois conflitos mundiais juntos). Mas, voltando à esvaziada Rio+20, as coisas evoluem, têm uma dinâmica própria e em Nova York, na sede das Nações Unidas, definiram o chamado Draft Zero, com 15 eixos temáticos a serem examinados na conferência de junho: florestas, oceanos, rios, águas subterrâneas, grandes cidades etc. Um conjunto de boas intenções, wishful thinking, mais do mesmo, com compromissos vagos e difusos. 16
Política Democrática • Nº 32
Crise ambiental ou crise da civilização?
Todavia, parece que há vida inteligente no planeta Terra e a diplomacia brasileira começa a mudar o tom do discurso. A Rio+20 é o fórum ideal para se discutir a crise planetária em sua dimensão global e em toda sua complexidade, a começar pela crise econômico-financeira e do modelo neoliberal e a consequente turbulência da economia de mercado. Para o embaixador Correia do Lago, essa conferência deve ser o G-20 (fórum mundial que reúne as principais economias do mundo com um viés nitidamente financeiro) para discutir economia, inclusão social e meio ambiente. Concordamos plenamente com essa postura, menos com a subordinação hierárquica, pois entendemos que a economia é um capítulo da questão ambiental, do qual a economia depende, pois não há economia sadia construída num ambiente doente. As leis biológicas, as cadeias tróficas (nutricionais) e o capital natural falam mais alto que o dólar, o rublo, o euro, o real, a peseta e todo esse papel-moeda pintado. Contudo, vamos além. A crise econômico-financeira veio em boa hora, pois nos obriga a pensar o todo e suas partes, numa relação inseparável, bio-unívoca e umbilicalmente conjugada. Tudo muito bem, tudo muito bom, mas há um fator complicador: os países hegemônicos não aceitam misturar todos esses temas num mesmo caldeirão. Não aceitam a visão holística da ciência e da prática ambiental. Cada coisa é uma coisa, não pode misturar a estação, na velha fórmula de Niccolo Machiavelli – dividir para administrar. Parece que a postura da Casa de Rio Branco é mais do que bravata, pois a presidente Dilma Rousseff deixou de comparecer à reunião em Davos e preferiu participar do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, onde deitou falação progressista e embarcou para Cuba e Haiti. Lá pontificou – menos armas e mais amparo econômico. Segundo suas palavras, é preciso mais ousadia e determinação. O recado está dado e nós, como sociedade civil independente, apartidária, devemos saber decodificar a fala do trono. Agir com discernimento ante esses caminhos que se cruzam, buscando a alternativa correta que melhor atenda ao nosso destino como povo e como cidadãos do planeta Terra, comprometidos com os valores maiores da ética planetária, da solidariedade, da inclusão social, da maior simetria entre povos e nações, da sobrevivência do Homem e da Gaia, como organismo vivo, do qual fazemos parte. Para nós, a Rio+20 deve discutir um novo marco da civilização, em toda sua complexidade e ambiental por inteiro, nunca um meio ambiente pela metade. Com este objetivo, vale mobilizar todos os recursos e as forças vivas do planeta, já que ele está vivo, ainda que Mauro Victor
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Tema de capa: Rio+20
doente. Se for para discutir amenidades, temas irrelevantes, mais do mesmo, melhor não ir ao Rio, melhor ficar em casa, não legitimar mais um embuste, como tantos já foram perpetrados. A constelação fulgurante dos homens e mulheres que decidem nossos destinos, o jet set internacional, perderá a viagem. Não venham para o Rio legitimar um espetáculo triste de hipocrisia, farisaísmo e alienação coletiva. Melhor ficar em casa, insistimos. Com este objetivo, contribuiremos objetivamente para a estruturação do ideário e da prática da Rio+20 e para tanto desejamos ouvir líderes da cidadania nos vários setores da atividade humana, especialmente os identificados com a causa ambiental e compromissados com a transformação que o planeta exige.
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Política Democrática • Nº 32
Caatinga: solução e não um problema para a Rio+20 Anivaldo Miranda
O
Banco do Nordeste do Brasil (BNB) e outros parceiros irão patrocinar no próximo mês de maio, em Fortaleza, no Ceará, uma Conferência Regional para colocar em debate a problemática do bioma Caatinga, que, a exemplo dos seus congêneres no Brasil, enfrenta grandes ameaças à manutenção de um nível seguro de preservação. A Conferência Regional Caatinga e Desenvolvimento Sustentável, cujo processo preliminar já está se desenrolando nos estados que conformam o bioma, notadamente os do Nordeste brasileiro, está inserida nos marcos da reunião de cúpula Rio + 20 e pretende construir uma agenda de compromissos de vários atores do poder público, da sociedade civil e da iniciativa privada com vistas à combinação de práticas preservacionistas e de manejo da vegetação de Caatinga com modelos de desenvolvimento e crescimento econômico que tenham como eixo a sustentabilidade, sobretudo em sua dimensão ambiental. Embora concebida com acentuada conotação “chapa branca,” uma vez que os representantes do poder público aparecem com participação hegemônica em seu desenrolar, a Conferência tem o mérito de colocar o bioma Caatinga como ponto de partida e não como tema periférico da espinhosa problemática que envolve o semiárido brasileiro. Ademais, é preciso ressaltar que o fato do BNB encabeçar a realização do evento é de significativa importância porque detém as principais ferramentas (leia-se, o dinheiro) para evitar que as demandas do crescimento econômico continuem a se fazer com o estúpido sacrifício do bioma que é o principal condicionante do atual e futuro equilíbrio natural de toda a região. No contexto do aquecimento global que nos empurra para uma época na qual os extremos climáticos começam a modificar de forma significativa o funcionamento dos ecossistemas terrestres e afetar a produção e reprodução das condições de existência do gênero humano, o semiárido aparece inevitavelmente como a região brasileira a ser mais impactada pelas mudanças do clima, sobretudo no que diz res19
Tema de capa: Rio+20
peito ao agravamento dos índices de escassez hídrica e degradação de solos, vegetação e das condições sociais e econômicas da população. Levando em consideração que a região semiárida brasileira compreende um território equivalente a 982.563 km² (quase um milhão de quilômetros quadrados) que abarca nada menos do que 1.133 municípios, com população aproximada de 20 milhões de habitantes, não é difícil compreender o quanto é necessário antecipar-se à eclosão dos efeitos mais graves do aquecimento global e promover urgentemente ações de mitigação desses efeitos tendentes a aumentar a capacidade de adaptação das populações locais aos novos cenários climáticos e incorporar a sustentabilidade (sobretudo ambiental) às práticas produtivas do semiárido. E se lembrarmos que o mapa das chamadas Áreas Susceptíveis à Desertificação (ASDs), elaborado a partir do somatório das áreas semiáridas com as áreas do sub-úmido seco e do seu entorno, cobre uma superfície de 1.340.863 km², abrangendo 1.488 municípios do Nordeste brasileiro e do norte de Minas Gerais e do Espírito Santo, então o problema dos futuros impactos do aquecimento global sobre as regiões de alta vulnerabilidade vai se mostrar bem mais preocupante e complexo do que tem sido até agora. Para vencer esse caráter desafiador da problemática do semiárido, a escolha de um foco prioritário e inspirador de um novo modelo de desenvolvimento local, que tenha a sustentabilidade como eixo, é essencial. E esse foco não poderia ser outro senão o bioma Caatinga, que abrange aproximadamente 7% do território brasileiro, é predominante na região semiárida e vital para o seu equilíbrio natural, para a garantia de seu potencial produtivo e para assegurar a capacidade de suporte adequada ao atendimento das futuras demandas da expressiva população que nele habita. Ocorre, porém, que além de ser alvo de elevado grau de desconhecimento, visões distorcidas, falsas avaliações sobre o seu potencial produtivo e serviços ambientais que presta e de insuficiente acúmulo de conhecimento científico, o bioma Caatinga ainda se debate com enormes pressões antrópicas, porque a área de semiárido onde está inserido é considerada como uma das regiões, com limitações hídricas, mais populosas do mundo. E é aqui onde se localiza, talvez, o ponto mais crítico do desafio climático e da sustentabilidade do desenvolvimento no Brasil, uma vez que a região potencialmente mais problemática é também aquela que poderá fornecer algumas soluções para as futuras ameaças do 20
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aquecimento global. E é aqui, também, onde entra o papel importante que o bioma Caatinga poderá representar. Adaptada por uma longa evolução aos rigores da seca, baixa umidade, altos índices de evapotranspiração, calor e luminosidade tropicais, a extraordinária vegetação da Caatinga poderá fornecer respostas científicas e práticas ao esforço de estudiosos e pesquisadores na busca por variedades vegetais particularmente adaptáveis aos aumentos de temperatura (que poderão oscilar de 2 a 5 graus centígrados, conforme os cenários mais ou menos otimistas/pessimistas) com repercussões positivas sobre a biodiversidade, a produção de alimentos e a agricultura em particular. Reconhecer as notáveis virtudes da Caatinga é, pois, uma tarefa urgente, já que não haverá solução para os desafios do desenvolvimento e do crescimento econômico sustentáveis do semiárido sem a inevitável e imprescindível harmonização desses processos com o correto manejo e preservação, em níveis seguros, do bioma Caatinga. Infelizmente essas são obviedades ainda não incorporadas ao consciente coletivo local e nacional, sobretudo no que se refere às elites do poder público e do mundo empresarial. Bioma mais ameaçado do Brasil, a Caatinga está sendo devastada por atividades produtivas absolutamente ultrapassadas, através da exploração extrativista mais rudimentar, ou virando carvão para abastecer siderúrgicas, indústrias de gesso ou cerâmica e similares que já reduziram suas dimensões a 53,62% da cobertura vegetal original.1 Talvez por ter aspecto enganosamente seco e pobre durante as estiagens, o bioma Caatinga não seja entendido como solução e sim como problema, configurando uma trágica percepção que poderá custar caro ao Brasil e sua sociedade nos futuros e prováveis cenários de temperaturas mais severas. De fato, é pertinente indagar o que se fará com população tão numerosa de 20 a 30 milhões de pessoas que serão empurradas a novos fluxos migratórios, se não nos anteciparmos aos cenários pouco animadores das mudanças climáticas extremas já em curso e se não entendermos que o semiárido é uma prioridade climática de primeiro plano e que a preservação e correto manejo do bioma Caatinga é a meta estratégica por excelência dessa prioridade?
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Os dados apresentados foram retirados do Atlas das Áreas Susceptíveis à Desertificação no Brasil. Brasília: MMA, 2007.
Anivaldo Miranda
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Tema de capa: Rio+20
Nos marcos da Rio+20, que se fará sob o lema do “pensar globalmente e agir localmente,” estimular debates e assegurar compromissos concretos para solução de problemas, é algo incontornável se quisermos que a nova cúpula do meio ambiente, desenvolvimento sustentável, economia verde e combate à pobreza não se perca mais uma vez no mero jogo diplomático das grandes intenções e do pouco compromisso dos governos mundiais para com a urgência da crise ambiental planetária. Voltando à Caatinga, é preciso compreender que a partir desse bioma é possível instrumentar um novo modelo de desenvolvimento através do manejo florestal, das práticas produtivas sustentáveis, da transferência de tecnologia, da educação ambiental, da gestão responsável dos recursos hídricos, da manutenção da biodiversidade, da oferta de biomassa oriunda de florestas energéticas, da pesquisa científica, da agregação de valor aos produtos locais e de outras práticas, algumas delas já de comprovada eficiência produtiva. A Conferência da Caatinga, portanto, se encarada como uma iniciativa realmente séria e não apenas como um evento “pra inglês ver”, poderá se converter em marco da virada que o semiárido brasileiro espera para entrar de cabeça na Rio+20 e na modernidade do século XXI.
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II. Quest천es Ambientais
Autores André Luiz Marques Serrano
Graduado em Matemática, mestre em Economia Florestal, doutorando em Economia e professor assistente do Departamento de Administração da Universidade de Brasília. e.mail: andrelms@unb.br.
Jorge Madeira Nogueira
Graduado em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestre em Engenharia de Produção (COPPE/UFRJ), doutor em Economia (Univ. de Londres) e professor titular do Departamento de Economia da UnB. e.mail: jmn0702@terra.com.br
Aziz Ab’Sáber
Geógrafo, professor e escritor. Doutor em Geografia Física (USP), ganhador do prêmio Ciência e Meio Ambiente da Unesco, também foi presidente da SBPC e do Condephaat e diretor do Instituto de Geografia da USP. Nossas homenagens a este importante intelectual, falecido a 16 de março último, enquanto editávamos este número da PD.
Biodiesel: desafios distributivos de fontes alternativas de energia
A
André Luiz Marques Serrano e Jorge Madeira Nogueira
pesar da recente crise econômica ter diminuído o consumo de energia, a tendência do cenário econômico de médio e longo prazo aponta para o aumento na demanda por energia. Há, em paralelo, a tentativa de atender a essa demanda sem aumentar a dependência de combustíveis fósseis, com a preocupação de não acirrar ainda mais as possibilidades de mudanças climáticas globais. A preocupação em se obter fontes de energia limpas e renováveis surge como consequência dessa nova agenda planetária. Centros de pesquisas e universidades brasileiras têm desenvolvido estudos sobre áreas potenciais de aplicação de energias limpas e sua incorporação em um planejamento energético estratégico. Esses estudos, no entanto, têm subestimado a importância dos elos entre ações de políticas internacionais, relacionadas ao aquecimento global, e as escolhas brasileiras de fontes alternativas de energia, em especial as relacionadas com fontes vegetais. Muitos desses elos estão relacionados a avaliar quem arca com os custos e quem recebe os benefícios dessas buscas de alternativas. No caso do Brasil, o Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel (PNPB) foi elaborado por meio de uma parceria entre um grupo de trabalho interministerial, instituído por decreto pelo presidente da República – encarregado de apresentar estudos sobre a viabilidade de utilização de óleo vegetal – e associações empresariais, como a Anfavea e a Associação Brasileira da Indústria de Óleos Vegetais (Abiove).
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Questões Ambientais
O PNPB é uma iniciativa inovadora, criada em 2005, para fomentar a produção e uso desse combustível no Brasil. Não se trata apenas de uma fonte alternativa de energia, mas também de uma oportunidade para a geração de emprego e renda no campo. Outrossim, esse artigo explora os elos entre preocupações globais e decisões locais de produção de fontes vegetais de biodiesel. Busca contribuir para um detalhado entendimento das ligações entre decisões globais e locais, em especial, avalia o desempenho do programa de biodiesel no Brasil em termos de geração de produção, renda e emprego em regiões geográficas pobres do país. Avalia a eficácia das prioridades declaradas de incentivos à agricultura familiar, visando a inserção social e a integração regional de comunidades e espaços geográficos. Nessa perspectiva, existem diversos desafios para o sucesso da produção de biodiesel no Brasil, tais como alocar mão de obra desempregada, investimentos em capacitação profissional dos agricultores e oferecer educação e infraestrutura. Inclusive, o fato de optar por outras fontes vegetais provenientes de pequenas estruturas agrárias, que não produzem excedentes em larga escala para colocação no mercado, também tornaria seu abastecimento questionável. Logo, o biodiesel pode substituir total ou parcialmente o óleo diesel fóssil em motores ciclo diesel automotivos (de caminhões, tratores, camionetas, automóveis etc.) ou estacionários (geradores de eletricidade, calor etc.). Pode ser usado puro ou misturado ao diesel em diversas proporções. A mistura de uma porcentagem de biodiesel ao diesel mineral é chamada de “BX”, em que “X” representa o teor do biocombustível, sendo o B5 correspondente a uma mistura de 5% de biodiesel ao diesel e assim sucessivamente, até o biodiesel puro, denominado B100. A implementação do biodiesel na matriz energética nacional tem componentes de caráter econômico, social e ambiental, sendo, portanto um programa estratégico de governo. De forma a se atingir as metas governamentais de obrigatoriedade do uso da mistura B2 no ano de 2008 e da mistura B5 no ano de 2012, é fundamental que haja produção suficiente para atender esta demanda. Para a implantação dessa política é necessário um investimento do governo não apenas na desoneração de tributos, mas também no incentivo a produção. Cabe salientar que a indústria de biodiesel no Brasil é recente, mas já mostra sua importância para um segmento muito promissor do setor agrícola nacional: o da produção de oleaginosas. Há no Brasil uma extensa gama de espécies que podem ser utilizadas, como a 26
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Biodiesel: desafios distributivos de fontes alternativas de energia
soja, a palma, a mamona, o girassol, o algodão, o babaçu, o amendoim, o pinhão manso, a canola, o crambe e o gergelim, dentre outras. Apesar do fato desse setor ter atraído grandes grupos mundiais desde a última década para atuar na cadeia de produção da soja, é na diversificação de produção de outros tipos de oleaginosas que o Brasil hoje vive um momento de expansão único. Portanto, de acordo com o Ministério das Minas e Energia, cerca de 800 milhões de litros de biodiesel devem ser produzidos no Brasil por ano, o que contribuiria para reduzir as importações de diesel de petróleo, estimadas em 4 bilhões de litros no ano de 2005 (cerca de 20% do óleo diesel consumido no país é importado). Considerando um consumo de óleo diesel de 38 bilhões de litros por ano, a adição de 2% de biodiesel regulamentada por lei deve gerar uma demanda de 760 milhões de litros/ano (LICHT, 2005). Metodologia A análise do conteúdo de documentos técnicos e acadêmicos parte da definição dos polos de biodiesel brasileiros. Estes são uma tentativa de se aproveitar as vantagens comparativas de cada região, incentivando a produção e o desenvolvimento de tecnologia para culturas tradicionais e de maior produtividade para o tipo de solo e mão de obra disponível. No caso do biodiesel pelo mundo, os principais países produtores e consumidores são a Alemanha, França e Itália, possuindo subsídios para incentivar as plantações de matérias-primas agrícolas em áreas não exploradas, mais isenção de 90% nos impostos. Estes países possuem legislações aprovadas que estimulam o uso do biodiesel como oxigenador do óleo de petróleo num percentual de 5%. Nos Estados Unidos os produtores também usufruem de incentivos tarifários e creditícios, em função da necessidade de dar vazão aos estoques extras de óleo de soja em vários estados, ajudando a equalizar o excesso de oferta agrícola para alimentação animal e humana (PAULILLO et al., 2006). Pode-se perceber aqui que a produção do biodiesel permite a continuidade das políticas agrícolas subvencionistas adotadas no pós-guerra. Outro fato é que os combustíveis são para uso em veículos e não para gerar energia. Como uma segunda etapa, identificou-se a localização geográfica das plantas produtoras de biodiesel no país. Atualmente existem, no Brasil, 64 plantas produtoras de biodiesel autorizadas pela ANP (Agência Nacional de Petróleo) para operação, correspondendo a uma André Luiz Marques Serrano e Jorge Madeira Nogueira
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Questões Ambientais
capacidade total autorizada de 13.219,33 m3/dia. Há ainda 5 novas plantas de biodiesel autorizadas para construção e 5 plantas de biodiesel autorizadas para ampliação de capacidade. Elas são elos essenciais da cadeia produtiva do biodiesel, responsáveis pela etapa mais significativa de agregação de valor. De acordo com as plantas já existentes e as que serão instaladas, os investimentos na produção de biodiesel no Brasil alcançou 515 milhões de dólares em 2008, quando a produção foi de 800 milhões de litros do combustível, volume necessário para a mistura de 2%. Em 2013, a cifra deverá aumentar para 1,5 bilhão de dólares, com 2 bilhões de litros no mercado nacional. A produção de biodiesel permitirá a redução da importação de diesel, gerando uma economia anual de 1,2 bilhão de dólares. Em uma etapa final, são cruzadas as informações anteriores com dados sobre produção, renda, comercialização e emprego das atividades produtoras de biodiesel em diversos municípios dos diferentes polos de biodiesel nacionais. Assim procedendo, buscamos avaliar diferenças espaciais (regionais) e sociais (entre classes de produtores rurais) nos resultados obtidos pela estratégia brasileira de produção de biodiesel.
Resultados e discussão Estudos têm evidenciado que a cada 1% de substituição de óleo diesel por biodiesel produzido com a participação da agricultura familiar podem ser gerados cerca de 45 mil empregos no campo, com uma renda média anual de aproximadamente R$ 4.900,00 por emprego. Admitindo-se que para 1 emprego no campo são gerados três empregos na cidade, seriam criados, então, 180 mil empregos. Numa hipótese otimista de 6% de participação da agricultura familiar no mercado de biodiesel, seriam gerados mais de 1 milhão de empregos. Vale lembrar que 20% do biodiesel produzido no país é oriundo da agricultura familiar e cerca de 90% desse volume refere-se à soja cultivada por agricultores familiares, notoriamente na região Sul. O cultivo da soja no sistema familiar emprega um trabalhador a cada 10 ha, e para o sistema empresarial um trabalhador a cada 100 ha. Considerando essa proporção, com a produção de biodiesel no Brasil, quando contabilizada apenas a produção procedente da soja (1,6 milhão de m3), são gerados cerca de 100 mil empregos no campo. Estima-se que, para cada emprego direto no campo, sejam gerados 12 empregos na cadeia de produção agroindustrial. Nesse caso, somente a produção 28
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Biodiesel: desafios distributivos de fontes alternativas de energia
de biodiesel oriundo da produção de soja seria responsável por cerca de 1,3 milhão de empregos, considerando-se toda a cadeia envolvida. As análises desenvolvidas neste estudo, no entanto, sugerem que os resultados obtidos na geração de empregos por meio dos incentivos à agricultura familiar divergem daqueles almejados pelo Programa Nacional do Biodiesel. Não obstante, os resultados sobre o setor de produção de energia alternativa serem positivos, o nível de emprego geral da economia sofre um decréscimo de acordo com dados do setor. Isso pode ser decorrente do aumento nos custos de produção sofridos também pelos setores demandantes de óleo vegetal e de álcool, forçando-os a reduzir a quantidade de trabalho empregada. Outro fator positivo associado ao programa do biodiesel, e que de acordo com seus proponentes, o programa tem como capacidade estimular o crescimento da renda, principalmente nas áreas rurais e para os pequenos produtores. O que se nota a partir dos resultados, no entanto, é que esse aumento de renda tem sido pequeno. Esperava-se que o aumento no consumo dos setores de óleo vegetal e álcool resultasse em um incremento real do PIB, o que não ocorre devido ao aumento dos custos de produção, os quais foram sentidos pelos vários setores demandantes. Levou-se em consideração, que a utilização de combustíveis fósseis acaba influenciando negativamente a qualidade e o equilíbrio do meio ambiente. O que faz do biodiesel um combustível renovável é o fato de que todo o CO2, emitido na queima no motor, consegue ser capturado pelas plantas e utilizado por estas durante o seu crescimento e existência. Estas mesmas plantas serão utilizadas mais tarde como fonte para a produção de novos biocombustíveis, por esse motivo, chamados de energias renováveis. Em relação à balança comercial, esperava-se que a redução no consumo de óleo diesel levasse a uma queda nas importações de petróleo e óleo diesel. De fato, verificou-se uma queda nas importações dos setores de refino de petróleo e na indústria extrativa de petróleo e gás. Porém, na economia como um todo, verificou-se uma elevação das importações totais, devido a maior demanda de bens intermediários pelos setores de óleo vegetal e de álcool. (PETROBRAS, 2010) O sucesso para implantação de biodiesel depende também, da redução da carga tributária, da disponibilidade local de óleos vegetais, da garantia de conformidade quanto à qualidade (padrão e controle), do apoio para iniciativas ecologicamente corretas, da sensibilização e motivação da sociedade para alternativas ecologicamente corretas, da competitividade relacionada com estímulo e incentivo ao André Luiz Marques Serrano e Jorge Madeira Nogueira
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Questões Ambientais
uso, das adaptações para que o biocombustível seja similar ao diesel fóssil, a garantia de desempenho dos motores e veículos alimentados a biodiesel e aos novos usos para a glicerina, em novos mercados Assim, percebe-se que o mercado do biodiesel vem crescendo nos últimos anos em função das preocupações de grupos organizados e do governo federal com o meio ambiente e a redução da dependência do petróleo importado. Vale salientar, que a partir de 2004, alguns países lançaram programas de incentivo à produção e consumo de biocombustíveis. Como nos principais países produtores de biodiesel a produção é suficiente para cobrir a demanda interna, o comércio mundial destes produtos ainda é insignificante. O principal produtor e consumidor de biodiesel está na União Europeia, que vem fabricando o produto em larga escala desde 1992. Apesar da implementação do programa do bioetanol, o biodiesel continua dominando a cena dos combustíveis alternativos na Europa. O Quadro 1 resume o estágio em que se encontram os programas de biodiesel em alguns países e no Brasil. Percebe-se que existem várias fontes de matérias-primas e que a questão ambiental é um fator de suporte importante para as pesquisas e programas de biocombustíveis.
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Estados Unidos
2% de mistura em Minnesotta, autorização de 20% no país, mas com possibilidades de tornar obrigatória.
Brasil
Em 2004, o governo autorizou 2% de mistura de óleos vegetais ao óleo diesel. Entretanto, só a partir de 2008 este percentual será obrigatório, aumentando para 5% em 2013.
Alemanha
Lei exige pelo menos 5% de mistura, dando permissão para usar o combustível em qualquer proporção.
França
5% de mistura, devendo aumentar para 8%. Os ônibus urbanos utilizam mistura com até 30% de biodiesel.
Canadá
Programa em desenvolvimento. Algumas companhias de ônibus estão fazendo testes com biodiesel importado com uma mistura de 20%. O governo canadense concedeu isenção fiscal de 4% sobre a produção e uso do biocombustivel e estabeleceu uma meta de produção de 500 milhões de litros/ano até 2010.
Argentina
O governo iniciou um programa em 2001, oferecendo vantagens fiscais para a produção do biocombustível. Atualmente, há 7 unidades de produção de biodiesel no país, mas apenas uma fábrica está produzindo em baixa escala. Política Democrática • Nº 32
Biodiesel: desafios distributivos de fontes alternativas de energia
Japão
Empresas locais produzem biodiesel a partir da reciclagem do óleo de cozinha usado (5 mil litros/dia). O produto é utilizado nos veículos das próprias empresas, nos veículos governamentais e em caminhões de lixo de algumas cidades japonesas, numa proporção de mistura de 20%. Falta regulamentar lei sobre o assunto, sendo que o país está considerando a possibilidade de adição de 1% em 2006, com possibilidade de aumentar para 5% e 10%, posteriormente. Com uma mistura de 5% (B5), a demanda gerada será de 2,5 bilhões de litros de biodiesel/ano.
Índia
Está em construção a primeira unidade de produção de biodiesel. Para a elaboração do programa nacional de biodiesel, vem fazendo parcerias com a Alemanha na questão tecnológica.
Fonte: PAULLILO et al.
Conclusão A produção de oleaginosas em lavouras familiares torna o biodiesel uma alternativa importante para a redução da pobreza no país, pela possibilidade de ocupação de enormes contingentes de pessoas. A inclusão social e o desenvolvimento regional, especialmente via geração de emprego e renda, devem ser os princípios orientadores básicos das ações direcionadas ao biodiesel, o que implica dizer que sua produção e consumo devem ser promovidos de forma descentralizada e não excludente em termos de rotas tecnológicas e matérias-primas utilizadas. O potencial de desenvolvimento de outras oleaginosas é bastante alto. O PNPB deverá ser o principal agente para o desenvolvimento tecnológico de culturas oleaginosas, que antes do programa apresentavam pequena expressão no agronegócio brasileiro. Esse avanço se dará tanto em pesquisa e desenvolvimento de novas variedades e cultivares, como em programas de assistência técnica. Os empregos gerados pela cadeia de valor da indústria do biodiesel são bastante elevados no setor agrícola, tanto nas culturas com alto índice de mecanização, como a cadeia da soja, como em culturas mais intensivas em mão de obra mais bem trabalhadas pela agricultura familiar, caso da mamona e do dendê. A contribuição da indústria do biodiesel é relevante também em relação ao desenvolvimento tecnológico, pois representa importante vetor de difusão de conhecimento na área agrícola, em que a busca pela matéria-prima competitiva incentiva o constante investimento em novas variedades e técnicas de produção. Na área industrial, o treinamento de pessoal para o aperfeiçoamento técnico tem sido constante e importante para André Luiz Marques Serrano e Jorge Madeira Nogueira
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Questões Ambientais
manter a competitividade das empresas no setor, haja vista a característica de média-alta concorrência do mercado. A indústria de biodiesel no Brasil tem também se caracterizado pela participação de agentes públicos e privados, tais como entidades públicas, usinas, agricultores, distribuidoras, montadoras, consumidores entre outros, os chamados stakeholders, que apresentam papel relevante para o desenvolvimento desse setor. Pode-se destacar a participação da Embrapa, que vem realizando importante trabalho nas pesquisas de novas matérias-primas com alto rendimento de óleo, além do desenvolvimento das atuais oleaginosas, como a palma, em parceria com universidades. Essas e muitas outras iniciativas estão sendo levadas a cabo em todo território nacional impulsionadas pelo PNPB. No campo tecnológico, o PNPB é considerado como o principal agente para o desenvolvimento de diversas culturas oleaginosas, com pouca expressão no agronegócio nacional até então. Os cenários estudados neste trabalho indicam avanços em pesquisa e desenvolvimento de novas variedades e cultivares, além de programas de assistência técnica e extensão rural. O marco regulatório é fundamental para transformar pesquisas em arranjos produtivos. Com relação à questão ambiental, sabe-se que o Brasil é hoje um dos poucos países com condições de expandir a produção agrícola sem grandes impactos em sua biodiversidade. Além disso, a adoção de maiores teores de biodiesel misturado ao diesel fóssil representa uma redução importante de emissões de poluentes. Na ótica social, a descentralização e o aumento da produção de oleaginosas serão fatores estruturantes para o desenvolvimento de polos de produção, inclusive em regiões atualmente menos favorecidas, incluindo a agricultura familiar (assentamentos e comunidades rurais tradicionais) e promovendo a fixação do homem no campo. Por fim, a política de produção e uso do biodiesel traz vantagens ecológicas intrínsecas no processo de reforma da matriz energética do Brasil, pois contribui sobremaneira para a redução das emissões de gases de efeito estufa (GEE). Assim, com a ratificação do Protocolo de Kioto, projetos para produção de biodiesel podem ser candidatos a obter recursos financeiros via o mecanismo de desenvolvimento limpo (MDL). Estudos preliminares apontam que para cada tonelada de biodiesel produzida poderá reduzir cerca de 2 a 3 toneladas de CO2, na atmosfera dependendo do processo de produção do produto.
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Biodiesel: desafios distributivos de fontes alternativas de energia
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André Luiz Marques Serrano e Jorge Madeira Nogueira
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A quem serve a transposição das águas do São Francisco? Aziz Ab’Sáber
É
compreensível que em um país de dimensões tão grandiosas, no contexto da tropicalidade, surjam muitas ideias e propostas incompletas para atenuar ou procurar resolver problemas de regiões críticas. Entretanto, é impossível tolerar propostas demagógicas de pseudotécnicos não preparados para prever os múltiplos impactos sociais, econômicos e ecológicos de projetos teimosamente enfatizados. Nesse sentido, bons projetos são todos aqueles que possam atender às expectativas de todas as classes sociais regionais, de modo equilibrado e justo, longe de favorecer apenas alguns especuladores contumazes. Nas discussões que ora se travam sobre a questão da transposição de águas do São Francisco para o setor norte do Nordeste Seco, existem alguns argumentos tão fantasiosos e mentirosos que merecem ser corrigidos em primeiro lugar. Referimo-nos ao fato de que a transposição das águas resolveria os grandes problemas sociais existentes na região semiárida do Brasil. Trata-se de um argumento completamente infeliz lançado por alguém que sabe de antemão que os brasileiros extranordestinos desconhecem a realidade dos espaços físicos, sociais, ecológicos e políticos do grande Nordeste do país, onde se encontra a região semiárida mais povoada do mundo. O Nordeste Seco, delimitado pelo espaço até onde se estendem as caatingas e os rios intermitentes, sazonários e exoreicos (que chegam ao mar), abrange um espaço fisiográfico socioambiental da ordem de 750.000 quilômetros quadrados, enquanto a área que pretensamente receberá grandes benefícios abrange dois projetos lineares que somam apenas alguns milhares de quilômetros nas bacias do rio Jaguaribe, no Ceará, e Piranhas/Açu, no Rio Grande do Norte. Portanto, dizer que o projeto de transposição de águas do São Francisco para além Araripe vai resolver problemas do espaço total do semiárido brasileiro não passa de uma distorção falaciosa.
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A quem serve a transposição das águas do São Francisco?
Um problema essencial na discussão das questões envolvidas no projeto de transposição de águas do São Francisco para os rios do Ceará e Rio Grande do Norte diz respeito ao equilíbrio que deveria ser mantido entre as águas que seriam obrigatórias para as importantíssimas hidrelétricas já implantadas no médio/baixo vale do rio – Paulo Afonso, Itaparica e Xingó. Devendo ser registrado que as barragens ali implantadas são fatos pontuais, mas a energia ali produzida, e transmitida para todo o Nordeste, constitui um tipo de planejamento da mais alta relevância para o espaço total da região. Segue-se na ordem dos tratamentos exigidos pela ideia de transpor águas do São Francisco para além Araripe a questão essencial a ser feita para políticos, técnicos acoplados e demagogos: a quem vai servir a transposição das águas? Os “vazanteiros” que fazem horticultura no leito dos rios que “cortam” – que perdem fluxo durante o ano – serão os primeiros a ser totalmente prejudicados. Mas os técnicos insensíveis dirão com enfado: “A cultura de vazante já era”. Sem ao menos dar qualquer prioridade para a realocação dos heróis que abastecem as feiras dos sertões. A eles se deve conceder a prioridade maior em relação aos espaços irrigáveis que viessem a ser identificados e implantados. De imediato, porém, serão os fazendeiros pecuaristas da beira alta e colinas sertanejas que terão água disponível para o gado, nos cinco ou seis meses que os rios da região não correm. Um projeto inteligente e viável sobre transposição de águas, captação e utilização de águas da estação chuvosa e multiplicação de poços ou cisternas tem que envolver obrigatoriamente conhecimento sobre a dinâmica climática regional do Nordeste. No caso de projetos de transposição de águas, há de ter consciência que o período de maior necessidade será aquele que os rios sertanejos intermitentes perdem correnteza por cinco a sete meses. Trata-se, porém, do mesmo período que o rio São Francisco torna-se menos volumoso e mais esquálido. Entretanto, é nesta época do ano que haverá maior necessidade de reservas do mesmo para hidrelétricas regionais. A afoiteza com que se está pressionando o governo para se conceder grandes verbas para as obras de transposição das águas do São Francisco terá consequências imediatas para os especuladores de todos os naipes. O risco final é que, atravessando acidentes geográficos consideráveis, como a elevação da escarpa sul da Chapada do Araripe – com Aziz Ab’Sáber
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Questões Ambientais
grande gasto de energia! –, a transposição acabe por significar apenas um canal tímido de água, de duvidosa validade econômica e interesse social, de grande custo, e que acabaria, sobretudo, por movimentar o mercado especulativo, da terra e da política. No fim, tudo apareceria como o movimento geral de transformar todo o espaço em mercadoria.
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Retrocessos no governo Dilma sobre Agenda Socioambiental1
O
primeiro ano do governo da presidente Dilma Rousseff foi marcado pelo maior retrocesso da agenda socioambiental desde o final da ditadura militar, invertendo uma tendência de aprimoramento da agenda de desenvolvimento sustentável que vinha sendo implementada ao longo de todos os governos desde 1988, cujo ápice foi a queda do ritmo de desmatamento na Amazônia no governo Lula. Os avanços acumulados nas duas últimas décadas permitiram que o Brasil fosse o primeiro país em desenvolvimento a apresentar metas de redução de emissão de carbono e contribuíram decisivamente para nos colocar numa situação de liderança internacional no plano socioambiental. Ao contrário do anúncio de que a presidente aprofundará as boas políticas sociais do governo anterior, na área socioambiental, contrariando o processo histórico, há uma completa descontinuidade. A flexibilização da legislação, com a negociação para aprovação de um Código Florestal indigno desse nome e a Regulamentação do art. 23 da Constituição Federal, através da Lei Complementar 140, recentemente aprovada, são os casos mais graves. A lista de retrocessos inclui ainda a interrupção dos processos de criação de unidades de conservação desde a posse da atual administração, chegando mesmo à inédita redução de várias dessas áreas de preservação na Amazônia através de medida provisória (MP), contrariando a legislação em vigor e os compromissos internacionais assumidos pelo país. É também significativo desse descaso o congelamento dos processos de reconhecimento de terras indígenas e quilombolas ao mesmo tempo em que os órgãos públicos aceleram o licenciamento de obras com claros problemas ambientais e sociais. 1
Documento dado a público, no dia 6 de março de 2012, pelo Instituto Socioambiental (ISA), Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), Fundação SOS Mata Atlântica, Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), Instituto Vitae Civilis Rios Internacionais – Brasil, Rede de ONGs da Mata Atlântica (RMA), Grupo de Trabalho Amazônico (Rede GTA), Associação de Preservação do Meio Ambiente e da Vida (Apremavi), Associação Alternativa Terrazul e WWF Brasil.
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Esse processo contrasta com compromissos de campanha assumidos de próprio punho pela presidente em 2010, como o de recusar artigos do Código Florestal que implicassem redução de Áreas de Proteção Permanente e Reservas Legais e artigos que resultassem em anistia a desmatadores ilegais. Todos esses pontos foram incluídos na proposta que deve ir à votação no Congresso nos próximos dias, com apoio da base do governo. Os ataques às conquistas socioambientais abrem espaço para outros projetos de alteração na legislação já em discussão no Congresso. São exemplos a proposta de emenda constitucional (PEC) que visa dificultar a criação de novas Unidades de Conservação e reconhecimento de Terras Indígenas; o projeto de lei que fragiliza a Lei da Mata Atlântica; os inúmeros projetos para diminuição de unidades de conservação já criadas; a proposta de Decreto Legislativo para permitir o plantio de cana-de-açúcar na Amazônia e no Pantanal e a discussão de mineração em áreas indígenas. As organizações da sociedade – que apoiam o desenvolvimento não destrutivo e estão preocupadas com a preservação do equilíbrio socioambiental no país – subscrevem este documento, alertando a opinião pública para o fato de que o Brasil vive um retrocesso sem precedentes na área socioambiental, o que inviabiliza a possibilidade do país continuar avançando na direção do desenvolvimento com sustentabilidade e ameaça seriamente a qualidade de vida das populações atuais e futuras. Código Florestal – É o ponto paradigmático desse processo de degradação da agenda socioambiental a iminente votação de uma proposta de novo Código Florestal que desfigura a legislação de proteção às florestas, concede anistia ampla para desmatamentos irregulares cometidos até julho de 2008, instituindo a impunidade que estimulará o aumento do desmatamento, além de reduzir as reservas legais e Áreas de Proteção Permanente em todo o país. A versão em fase final de votação nos próximos dias afronta estudos técnicos de muitos dos melhores cientistas brasileiros, que se manifestam chocados com o desprezo pelos alertas feitos sobre os erros grosseiros e desmandos evidentes das propostas de lei oriundas da Câmara Federal e do Senado. Em outras oportunidades, durante os oito anos da administração Fernando Henrique Cardoso e nos dois mandatos da administração de Luís Inácio Lula da Silva, houve tentativas de reduzir os mecanismos legais de proteção a florestas e ao meio ambiente. Mas a maior parte delas foi barrada pelo Executivo, devido à forte contestação da sociedade. Hoje, o Executivo se mostra inerte e insensível à opinião pública, a começar pelo Ministério do Meio Ambiente 38
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que interrompeu a realização das Conferências Nacionais de Meio Ambiente e tem sido conivente e passivo frente ao desmonte da legislação pertinente à sua área de atuação. Invertendo aquela tradição, a atual administração deixou sua base parlamentar fazer o que bem entendesse, entrando na discussão quando o fato já estava consumado e de forma atabalhoada. Setores do governo interferiram para apoiar, às vezes veladamente, às vezes nem tanto, as propostas que reduzem as florestas, enquanto a tendência mundial, diante das mudanças climáticas, é aumentar a cobertura florestal. Redução de Unidades de Conservação – Nesse primeiro ano, o governo Dilma não criou nenhuma Unidade de Conservação e, numa atitude inédita, enviou ao Congresso a Medida Provisória nº 558 que excluiu 86 mil hectares de sete Unidades de Conservação federais na Amazônia para abrigar canteiros e reservatórios de quatro grandes barragens, nos rios Madeira e Tapajós. Além de não ter havido prévia realização de estudos técnicos e debate público sobre as hidrelétricas do Tapajós, a Constituição Federal estabelece que a alteração e supressão de áreas protegidas só poderia se dar através de lei, o que levou a Procuradoria Geral da República a impetrar Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) junto ao Supremo Tribunal Federal contra o uso de MP pela presidente. Redução do poder de fiscalização do Ibama – O governo federal eleito com a maior bancada de apoio da história do país, que deveria ser capaz de implementar as reformas necessárias para avançar o caminho da democracia, da governança política, da economia ágil e sustentável, vem dando sinais de ser refém dos grupos mais atrasados encastelados no Congresso. O que o levou a aceitar e sancionar sem vetos a citada Lei Complementar no 140, que retirou poderes de órgãos federais, tais como o Ibama e o Conama, fragilizando esses órgãos que tiveram importância fundamental na redução do desmatamento da Amazônia e na construção da política ambiental ao longo dos últimos anos. Atropelos no licenciamento – Mais do que omitir-se diante dos ataques à floresta, o governo federal vem atropelando as regras de licenciamento ambiental, que visam organizar a expansão dos projetos de infraestrutura no Brasil. Diferente do tratamento dado ao licenciamento da BR 163 num passado recente, quando o governo construiu junto com a sociedade um Plano de Desenvolvimento Sustentável da região de abrangência da obra, o licenciamento da Hidrelétrica de Belo Monte é marcado pelo desprezo às regras, às condicionantes ambientais e à necessidade de consulta às populações indígenas afetadas. Esse novo modus operandi vem tornando-se prática rotineira, o que Aziz Ab’Sáber
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ameaça a integridade da região amazônica, onde pretende-se instalar mais de 60 grandes hidrelétricas e 170 hidrelétricas menores. O conjunto de grandes e pequenas hidrelétricas provocará não só mais desmatamento associado à migração e especulação de terras como, ao alterar o regime hidrológico dos rios da região, afetará de forma irreversível populações indígenas e comunidades locais. Paralisia na Agenda de Mudanças Climáticas – Entre 2005 e 2010 o Brasil vinha dando passos decisivos ano após ano para avançar a agenda de enfrentamento das mudanças climáticas no cenário nacional e internacional. Esse esforço culminou, em 2009, com a acertada definição de metas para redução de gases de efeito estufa incorporadas na Lei da Política Nacional de Mudanças Climáticas que pautaram a virada de posição das economias emergentes. A regulamentação da lei em 2010 determinou a construção dos planos setoriais para redução de emissões em 2011. Porém o que se viu em 2011 foi uma forte retração da agenda e nenhum dos planos setoriais previstos para serem desenvolvidos no primeiro ano do governo Dilma foram finalizados nem sequer passaram por qualquer tipo de consulta publica. Lentidão na mobilidade – A agenda socioambiental caminha vagarosamente mesmo nas áreas apontadas pelo governo como prioritárias – a construção de obras de infraestrutura. O PAC da Copa, lançado em 2009, prevê investimentos de R$ 11,8 bilhões em melhoria da mobilidade urbana, mas só foram efetivados 10% desse montante. Já é de conhecimento público que os sistemas metroviários não estarão em operação em 2014. No início deste governo foi lançado o PAC da Mobilidade, mas até o presente momento ainda não foram selecionados os projetos e nenhum contrato para desembolso de verba foi assinado. Lentidão no saneamento – Os investimentos em saneamento também andaram mais devagar do que fazia crer a intensa propaganda eleitoral. Com um orçamento inicial de R$ 3,5 bilhões, o governo investiu efetivamente apenas R$ 1,9 bilhões, valor 21% menor que em 2010. A liberação de recursos pela Caixa Econômica Federal também deixou a desejar (R$ 2,3 bilhões até novembro, apenas 25% do contratado). Peça fundamental de uma estratégia de redução da poluição de nossas águas, o saneamento básico no Brasil tem números vergonhosos: apenas 44,5% da população brasileira está conectada a redes de esgotos; e desse esgoto coletado, somente 38% é tratado (o que significa que mais de 80% do esgoto produzido no Brasil é despejado na natureza). 40
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Lentidão na regularização fundiária e aumento da violência no campo – Não é apenas na criação de unidades de conservação e terras indígenas e quilombolas que a hegemonia dos setores mais retrógrados do país se faz presente. O primeiro ano do governo Dilma foi marcado pelo pior desempenho na área de criação de assentamentos da reforma agrária desde, pelo menos, 1995. O desembolso de recursos com ações para estruturar produtivamente os assentamentos já existentes foi o mais baixo da última década: R$ 65,6 milhões. O processo de titulação de terras indígenas e de quilombos também se arrasta – em 2011, só uma terra de quilombo foi titulada e três terras indígenas homologadas. Esses retrocessos coincidiram com o aumento da violência no campo. Segundo levantamento do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), 38 índios foram assassinados nos nove primeiros meses do ano passado, sendo 27 no Mato Grosso do Sul, cenário de tensas disputas por direitos territoriais. Esses números são engrossados por pelo menos oito assassinatos de agricultores familiares e/ou extrativistas em disputas com grileiros de terras, principalmente na região norte. Ministério do Meio Ambiente inerte – Diante desses ataques contra a estrutura e competências de sua pasta, o Ministério do Meio Ambiente, de forma inédita, tem acatado com subserviência inaceitável os prejuízos para as atribuições de órgãos, como a fragilização do Conama e a redução dos poderes do Ibama na fiscalização e no licenciamento. Frente às agressões ao bom senso e à ciência contidas na proposta do Código Florestal, a ministra deu seu beneplácito ao aceitar a alegação de que o texto não continha cláusulas de anistia, quando ele claramente concede perdão amplo, geral e irrestrito para a grande maioria dos desmatadores ilegais. Diante desses retrocessos apontados, as organizações sociais signatárias apelam para que a presidente cumpra os compromissos assumidos em campanha e retome a implementação da agenda de sustentabilidade no país. Somente uma ação forte nesse sentido evitará os graves prejuízos para a sociedade brasileira e que o Brasil viva o vexame de ser ao mesmo tempo anfitrião e vilão na Rio+20, em junho deste ano.
Aziz Ab’Sáber
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III. Economia
Autores Arnaldo Jardim
Engenheiro, deputado federal (PPS-SP) e presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Infraestrutura Nacional.
Maria Lúcia Fattorelli
Graduada em Administração e Ciências Contábeis, auditora fiscal da Receita Federal desde 1982, é coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida e membro da Caic (Comisión para la Auditoría Integral de Crédito Público) criada pelo presidente Rafael Correa, do Equador, em 2007.
Gil Castello Branco
Economista e fundador da organização não governamental Associação Contas Abertas. e-mail: gil@contasabertas.org.br
Defender a indústria nacional Arnaldo Jardim
O
recuo do Produto Interno Bruto (PIB) de 7,5% (em 2010) para 2,7% (em 2011) é brutal, gera instabilidade, pois impede planejamento de médio e longo prazos. Estamos crescendo a passos de tartaruga se comparados aos demais países emergentes e, mais grave, a queda contínua da participação da indústria de transformação no PIB. A situação é ainda mais séria se observarmos a nossa pauta de importações, crescente em bens de consumo ao invés de bens de capital, enquanto as commodities vêm ganhando cada vez mais espaço em nossas exportações, em detrimento de produtos de maior valor agregado. Mantida esta tendência, estaremos colocando em risco o legado de estabilidade deixado pelo Plano Real e estimulando um processo de desindustrialização que não será facilmente revertido. Todos nós sabemos o resultado desta equação perversa, no longo prazo: desemprego, aumento da dependência do capital estrangeiro, comprometimento dos investimentos prioritários, surtos inflacionários, alta variação cambial, só para citar alguns.
Indústria em crise A participação das commodities nas exportações brasileiras vem aumentando num ritmo espantoso nos últimos 15 anos. Desde a década de 90, as chamadas commodities primárias respondem por cerca de 40% da pauta de exportações. Entre os anos de 2007 e 2010, sua participação saltou para mais da metade de tudo o que exporta45
Economia
mos para o mundo, inversamente proporcional ao market share de produtos manufaturados. Concomitantemente, a participação da indústria da transformação no PIB vem decaindo ano a ano. Em 1985, a indústria de transformação representou 27% do PIB, em 2011 deve ter chegado a menos de 16% e, mantida a atual situação, chegaremos ao fim de 2012 com menos de 15%. Basta lembrar que em 1980 o parque industrial brasileiro era equivalente aos parques de Tailândia, Malásia, Coreia do Sul e China somados. Em 2010, a indústria brasileira representou menos de 8% em comparação com as indústrias desses mesmos países. Enquanto as exportações de produtos industrializados se reduzem e a indústria de transformação perde seu papel relativo no PIB, mercadorias importadas invadem nosso mercado e fomentam uma competição “desleal” com os produtos made in Brazil. Em 2011, por exemplo, o déficit na balança comercial de manufaturados foi de US$ 93 bilhões. Gargalos estruturais Trata-se de uma competição “desleal”, pela supervalorização cambial, pela perda de competitividade de produtos de maior valor agregado. Culpa do Custo Brasil! Baixa qualidade da educação, rigidez das leis trabalhistas, a “sanha arrecadatória” para financiar os altos custos correntes da máquina pública, elevadas taxas de juros, baixo desenvolvimento tecnológico e a cara e insuficiente infraestrutura. São gargalos que não se resolvem da noite para o dia, mas que dependem de políticas públicas específicas e perenes no sentido de não comprometermos os alicerces de um Projeto Nacional de Desenvolvimento. O contágio da crise financeira global de 2008 no Brasil foi aplacado pelas cotações ascendentes das commodities no mercado global e pela força do nosso mercado interno. Defensor do nosso agronegócio e ciente da oportunidade do Brasil crescer em meio à estagnação americana e o quase colapso da Zona do Euro, acredito que o Brasil pode conciliar o papel de exportador de matéria-prima, de Celeiro do Mundo, com um papel mais preponderante nas exportações de bens manufaturados que possam assegurar mais empregos de qualidade para as gerações futuras. No curto prazo, é fundamental estabelecermos um controle de capitais, no sentido de separar o investimento especulativo do produtivo. O governo federal lançou mão de aumentos no IOF, o Banco 46
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Defender a indústria nacional
Central tem comprado dólar, o mesmo BC vem promovendo cortes na taxa de juros e foi anunciada a revisão de acordos comerciais, tais como o automotivo com o México, e a elevação da taxação de determinados produtos importados. Ainda é pouco, precisamos modificar a política monetária e transformar o câmbio em um instrumento de desenvolvimento! É evidente que um país que não produz conhecimento de forma competitiva também não pode exportar tecnologia. Por isso, políticas de inovação cada vez mais profundas e eficientes são fundamentais para agregar valor à estrutura produtiva no longo prazo. Aproveitar o bom desempenho de setores tradicionais para fomentar setores relacionados. Podemos aproveitar a competitividade brasileira em produtos agropecuários para dinamizar, por exemplo, a produção de bens de capital agrícolas ou da indústria química (em insumos agrícolas). Destaco a nossa expertise no setor de biocombustíveis, como do etano e a bioeletricidade. Assim como o setor de petróleo que depende de uma ampla cadeia de fornecimento de bens e serviços, alguns muito intensivos em tecnologia, para explorar o pré-sal. As políticas industrial e de inovação devem caminhar de mãos dadas e com o foco em atividades estratégicas para o desenvolvimento tecnológico. Atualmente, cerca de 35% da pesquisa e desenvolvimento mundial está concentrada em setores ligados às tecnologias de informação e comunicação, tais como softwares e equipamentos e serviços de informática e telecomunicações. O Brasil não pode estar alheio a esse movimento, principalmente ante o desafio da universalização do acesso a estas tecnologias que são fundamentais para o crescimento da produtividade e para geração de inovações em outros setores. É preciso reduzir o custo dos investimentos no país, coisa que o governo já está fazendo em setores tradicionais, como o de linha branca e o automotivo, mas é preciso uma política de promoção de investimentos mais voltada para a qualidade que para a quantidade, ou seja, contemplar setores intensivos em tecnologia não tradicionais, para aumentar sua competitividade. Outro aspecto fundamental está na desoneração do crédito, principalmente do crédito público. Por fim, mas não menos importante, é fundamental estimular políticas de apoio à exportação voltadas para diversificação da pauArnaldo Jardim
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ta de exportações. Atualmente, ao analisarmos programas como o BNDES-Exim, Drawback e Proex, constatamos que os mesmos servem para apoiar setores que já são competitivos e consolidados no mercado internacional. Neste texto, busquei mapear algumas iniciativas que podem contribuir para estancar o processo de desindustrialização em curso no país. Precisamos de um Projeto Nacional de Desenvolvimento com ênfase na educação, capaz de tornar o Estado mais eficiente, de avançar na geração de bens de maior valor agregado e estimular a poupança interna e o investimento. Que seja capaz de perpassar administrações, pessoas e colorações partidárias, fazendo com que o “gigante adormecido” chamado Brasil se levante e ocupe um lugar de cada vez maior destaque na economia global.
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A inflação e a dívida pública
Maria Lúcia Fattorelli
E
m razão da marca negativa deixada pela inflação galopante dos anos 1980 até início dos anos 1990, não foi difícil convencer à população, parlamentares e poderes constituídos de que o país necessitava de um Regime de Metas de Inflação. Na realidade, tal regime foi imposto pelo FMI, em ambiente econômico afetado por crises financeiras que abalaram diversas economias, no final da década de 1990. A opção do governo brasileiro por recorrer ao Fundo, em 1998, abriu caminho para a interferência da instituição em diversos assuntos internos do país, entre eles a exigência de que a definição de metas inflacionárias deveria ser uma das principais diretrizes da política monetária. Colocando em prática o compromisso assumido com o FMI, foi editado o Decreto 3.088, em junho de 1999, estabelecendo a sistemática de “metas de inflação” como diretriz para fixação do regime de política monetária. Na mesma época, o Banco Central editou a Circular 2.868/99, por meio da qual criou a taxa Selic e, desde então, tem utilizado a referida taxa de juros como instrumento de controle da inflação, forçando sua elevação toda vez que a expectativa de alta de preços ameaça superar as metas estabelecidas. Outro instrumento colocado em prática pelo Banco Central para regular a inflação tem sido o controle do volume de moeda em circulação, realizando as chamadas “operações de mercado aberto”, por meio das quais entrega títulos da dívida pública às instituições financeiras em troca de eventual excesso informado pelos bancos, de moeda nacional ou estrangeira. Dados oficiais demonstram o equívoco desses dois instrumentos utilizados pelo Banco Central: 1. A elevação da Selic não ajuda a controlar o tipo de inflação de preços existente no país. Tal medida tem servido para elevar continuamente as já altíssimas taxas de juros, impactando no 49
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crescimento acelerado da dívida pública, além de prejudicar a distribuição de recursos para todas as áreas do orçamento e impedir investimentos na economia real. 2. As operações de mercado aberto estão servindo para trocar dólares especulativos que ingressam no país, sem controle, por títulos da dívida pública que pagam os juros mais elevados do mundo. Tal mecanismo tem provocado megaprejuízos operacionais ao Banco Central – R$ 147 bilhões, em 2009, e R$ 50 bilhões, em 2010 –, o que representa significativo dano ao patrimônio público. É evidente que toda a sociedade apoia o controle da inflação, porém, os instrumentos que vêm sendo utilizados pelo Banco Central não estão de fato combatendo a alta de preços, mas se prestam a promover uma brutal transferência de recursos públicos para o setor financeiro privado – nacional e internacional – a elevadíssimo custo interno, tanto financeiro como social, e por isso precisam ser revistos. Selic não controla a inflação A teoria ortodoxa que defende a elevação da taxa de juros como remédio para controlar a inflação se aplicaria somente quando a alta de preços decorresse de excesso de demanda. Em tese, a elevação dos juros tentaria dificultar o consumo e frear a demanda, buscando conter a subida de preços provocada pelo excesso de procura dos produtos e serviços. Essa teoria não é unânime, pois, mesmo diante de processo inflacionário causado por excesso de demanda, a solução recomendável não seria a elevação dos juros, pois essa alta provoca aumento dos custos financeiros das empresas, que são repassados aos preços dos produtos. Além disso, juros altos provocam a queda dos investimentos de longo prazo em novas plantas produtivas. Isso reduz a oferta futura de produtos e serviços, dando margem a leituras equivocadas de que a demanda estaria mais alta que a oferta, o que justificaria novas elevações de juros em um círculo vicioso e danoso para a economia. No Brasil, ao contrário do que alegam governo e rentistas, a inflação atual não é causada por suposto excesso de demanda, mas tem sido provocada por contínuos e elevados reajustes dos preços de alimentos e preços administrados, tais como combustíveis, energia elétrica, telefonia, transporte público, serviços bancários.1 Esses itens 1
Dados do IBGE sobre a inflação de janeiro a abril de 2011 comprovam que 73% da inflação verificada no período e medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) foi causada por problemas de oferta de alimentos ou por preços
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A inflação e a dívida pública
afetam todos os preços de bens e serviços vendidos no país, pois fazem parte da composição de seus custos. Adicionalmente, o preço dos alimentos e demais preços administrados não são reduzidos quando o governo promove uma elevação da taxa Selic. Para combater esse tipo de inflação – denominada inflação de preços –, o remédio adequado é o efetivo controle de tais preços, o que poderia ser feito pelo governo sem grandes dificuldades, já que estamos falando justamente de preços administrados, que em tese devem ser geridos pelo poder público. O problema é que a maioria desses setores passou pelo processo de privatização – cuja justificativa, na década de 1990, era o pagamento da dívida externa. Em mãos privadas, a reivindicação de lucros cada vez maiores leva ao fornecimento de serviços cada vez mais caros. É o caso, por exemplo, da telefonia no Brasil, que após a privatização passou a ser a mais cara do mundo, ao mesmo tempo que é campeã de reclamações dos consumidores. As empresas de telefonia auferem lucros espantosos anualmente e não realizam os investimentos necessários. O mesmo ocorre com empresas de energia elétrica e transportes públicos, serviços altamente lucrativos, em decorrência do alto preço das tarifas cobradas. A elevação contínua desses preços tem pesado no cômputo da inflação e não sofre redução quando os juros sobem. Os combustíveis, então, nem se fala: exercem influência direta na composição de todos os preços e serviços no país. O preço da gasolina é um dos maiores do mundo, apesar de nossa autossuficiência, das recentes descobertas de imensas jazidas e dos significativos lucros da Petrobras. A parcela dos lucros correspondentes às ações da Petrobras vendidas ao setor privado é distribuída na forma de dividendos, mas a fração do lucro correspondente ao capital estatal é destinada ao pagamento da dívida pública. Isso porque a Lei no 9.530 trata do privilégio na destinação de recursos para o pagamento da dívida, determinando que todos os lucros das estatais destinados ao governo, superávits financeiros e demais disponibilidades de estatais, fundos e autarquias têm essa finalidade. administrados pelo próprio governo. Na expressiva parcela de 73% está considerada a variação dos preços de alimentação, taxa de água e esgoto, transporte público, combustíveis de veículos, educação, plano de saúde, energia elétrica, telefonia, serviço bancário. Interessante observar que até mesmo o setor bancário – que mais se beneficia com a elevação da Selic, pois é aquele que detém a maior parte dos títulos da dívida – promoveu a elevação de suas tarifas em 5,46% no período, número muito acima da média geral da inflação estabelecida, de 3,23%. Tal fato denota a contradição entre o discurso e a prática do referido setor. Maria Lúcia Fattorelli
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Da forma como está regulamentado o Regime de Metas de Inflação, toda vez que a inflação ameaça ultrapassar a meta estabelecida (atualmente em 4,5% ao ano), seu controle é feito por meio da elevação da taxa Selic, desconsiderando-se as verdadeiras causas do aumento de preços no Brasil. O resultado tem sido o crescimento explosivo da dívida pública, cujo montante supera R$ 2,5 trilhões, enquanto o pagamento de juros e amortizações consumiu 45% dos recursos do Orçamento Federal em 2010, conforme mostra o gráfico.
A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Dívida Pública, concluída em 2010, na Câmara dos Deputados, comprovou que as altas taxas de juros foram o principal fator responsável pelo contínuo crescimento da dívida pública, apesar dos vultosos pagamentos anuais de 52
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juros e amortizações. A CPI comprovou que a dívida pública brasileira não tem contrapartida real em bens ou serviços, mas se multiplica em função de mecanismos e artifícios meramente financeiros, bem como da incidência de “juros sobre juros”, o que configura “anatocismo”, prática considerada ilegal pelo Supremo Tribunal Federal. Em resumo, as mesmas autoridades monetárias que defendem a elevação das taxas de juros com a justificativa de controle inflacionário permitem contínua elevação nos preços administrados, o que é um total contrassenso. Adicionalmente, os órgãos de defesa da livre concorrência não têm conseguido combater adequadamente os cartéis privados que também afetam a formação dos preços. Como são definidas as taxas de juros A CPI da Dívida realizou importante e inédita investigação sobre aspectos do endividamento interno e externo brasileiro, tendo se dedicado também a investigar como são determinadas as taxas Selic, já que os juros são o principal responsável pelo crescimento acelerado da dívida brasileira. O Banco Central informou à CPI que para estabelecer o patamar das taxas de juros não utiliza fórmulas científicas, mas realiza consultas a “analistas independentes”, em reuniões periódicas. O resultado dessas reuniões constitui o fundamento para a definição da Selic pelo Comitê de Política Monetária (Copom), pois nelas são apresentadas estimativas sobre a evolução futura de variáveis como inflação, evolução de preços e taxa de juros. A CPI requereu ao Banco Central os nomes dos participantes dessas reuniões. A resposta permitiu confirmar o que já se esperava: a imensa maioria deles (95%) faz parte do setor financeiro, ou seja, são representantes de bancos, fundos de investimento ou consultores de mercado. São justamente os maiores interessados nas elevadas taxas de juros, que lhes proporcionam elevados lucros, configurando evidente conflito de interesses. O mais grave é que muitos desses participantes das reuniões do Banco Central são também os mesmos analistas consultados por grandes meios de comunicação, que passam a alardear temores relacionados ao temerário crescimento da inflação e a necessidade de combater tal previsão, recomendando sempre a elevação das taxas de juros como se fosse o único remédio eficaz para frear o retorno inflacionário. Em poucos dias de governo, ao mesmo tempo que a presidente Dilma Rousseff procedeu ao contingenciamento recorde de R$ 50 Maria Lúcia Fattorelli
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bilhões para fazer “ajuste fiscal”, a taxa Selic subiu três vezes com a justificativa de que tal medida era necessária para reduzir o ritmo da atividade econômica, diminuir a demanda e controlar a inflação. As operações de mercado aberto Desde a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), o Banco Central ficou proibido de emitir títulos da dívida brasileira, o que é feito exclusivamente pelo Tesouro Nacional. Na prática, essa proibição não tem valor, pois o Tesouro emite títulos e os entrega ao Banco Central, sem qualquer contrapartida ou limite, para que aquela autarquia exerça a política monetária. A justificativa para essa prática, que dribla a LRF, é, mais uma vez, a necessidade de o Banco Central “enxugar” o excesso de moeda em circulação, tendo em vista que isso pode provocar inflação. O volume dessas operações de mercado aberto já ultrapassa a cifra dos R$ 500 bilhões, e estatísticas oficiais costumam não incluir esse valor no saldo da dívida, com a justificativa de que seriam títulos da dívida em poder do Banco Central. Isso não corresponde à realidade, pois tais títulos são entregues aos bancos em troca do “excesso de moeda” nacional ou estrangeira e fazem parte dos compromissos assumidos pela República. Desde que o dólar começou a se desvalorizar em todo o mundo, o volume dessas operações de mercado aberto passou a aumentar aceleradamente, pois os especuladores viram o gatilho acionado pelo “Regime de Metas de Inflação” como uma tremenda oportunidade para trazer seus dólares para o Brasil e trocá-los por títulos da dívida pública brasileira, que pagam os maiores juros do mundo, isentos de qualquer tributo, podendo fugir do país quando bem entenderem, engordados pela variação cambial.2 Como esse gatilho é acionado? O Banco Central acompanha o volume das reservas bancárias – principalmente depósitos e saldos de caixa – dos bancos e das instituições financeiras instaladas no país. Se esse volume supera determinado patamar, entende-se que há excesso de moeda em circulação que precisa ser enxugado a fim de evitar o risco inflacionário. Para diminuir esse excesso, o Banco Central realiza as chamadas operações de mercado aberto, entregan2
A variação cambial tem favorecido os investidores e especuladores que trazem dólares para o Brasil e convertem tais dólares em reais, aplicando-os na Bolsa ou em títulos da dívida. Considerando que o dólar tem se desvalorizado continuamente em relação ao real, decorrido algum tempo, quando resgatam suas aplicações e as reconvertem a uma taxa de dólar mais baixo, obtêm um volume de dólares bem maior.
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A inflação e a dívida pública
do títulos da dívida aos bancos e ficando com a moeda excedente, que ultimamente pode ser representada por montanhas diárias de dólares que vêm para o país em busca do negócio mais generoso do mundo: troca de dólares por títulos da dívida brasileira. Por sua vez, o Banco Central fica com os dólares e os destina às Reservas Internacionais, que já superam US$ 300 bilhões e não rendem quase nada ao país, pois estão aplicadas em grande parte em títulos da dívida norte-americana, que pagam juros próximos de zero. Além disso, ainda temos de arcar com os custos de senhoriagem. Conforme citado anteriormente, esse mecanismo tem sido um dos principais responsáveis pelo enorme prejuízo operacional do Banco Central – R$ 147 bilhões em 2009 e R$ 50 bilhões em 2010 –, que é repassado para o Tesouro Nacional e pago com recursos do orçamento que deixam de ser destinados ao atendimento de necessidades urgentes do povo brasileiro, ou pago mediante a emissão de mais títulos da dívida pública. Em resumo, para combater o risco inflacionário, estamos “enxugando” o excesso de moeda que evidentemente não decorre de superaquecimento da atividade econômica no país, mas de movimento especulativo que tem beneficiado escandalosamente o setor financeiro nacional e internacional, cujos lucros batem recordes anuais e superam dezenas de bilhões de dólares. Com essas reflexões, verificamos a necessidade urgente de rever a política monetária vigente no país. Com o rótulo de combater a inflação, estamos garantindo os maiores lucros do mundo ao setor financeiro privado, por meio da escandalosa transferência de recursos públicos que fazem muita falta no combate à infame miséria que acomete mais de 100 milhões de brasileiros. Estes nem sequer têm acesso a saneamento básico, apesar de arcarem com pesada carga tributária embutida em todos os produtos de primeira necessidade que conseguem comprar com esmolas, Bolsa Família ou pífios salários. Alternativas para o efetivo combate à inflação existem e são muito mais eficientes: redução da taxa de juros; controle e redução dos preços administrados; reforma agrária para garantir a produção de alimentos não sujeitos à variação internacional dos preços de commodities; controle de capitais para evitar o ingresso de capitais abutres, meramente especulativos, e fugas nocivas à economia real; adoção de medidas tributárias apropriadas ao controle de preços. Para que essas medidas sejam adotadas, é necessário enfrentar o endividamento público, cancro que adoece nosso rico país e impede o curso da Justiça. Maria Lúcia Fattorelli
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A Copa 2014 e a Torre de Babel
Gil Castello Branco
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Torre de Babel, segundo a Bíblia, foi construída na Mesopotâmia, pelos descendentes de Noé. A decisão era fazê-la tão alta que alcançasse o céu. Esta soberba provocou a ira de Deus que, para castigá-los, confundiu-lhes as línguas e os espalhou por toda a Terra. O mito vem à tona no acompanhamento dos gastos da Copa 2014. Para começar, existem pelo menos cinco portais na internet com dados globais sobre o evento, criados pela Controladoria Geral da União (CGU), Senado Federal, Tribunal de Contas da União (TCU), Ministério do Esporte e Instituto Ethos. Apesar da louvável intenção de dar transparência ao megaevento, faz-se necessário o trânsito permanente de informações entre os governos municipais, estaduais e federal para que os sites estejam sempre atualizados, o que infelizmente não está acontecendo. Assim, ganha um doce quem conseguir dizer quanto custará a Copa do Mundo 2014. A Controladoria Geral da União (<www.portaldatransparencia. gov.br>), por exemplo, informa que os investimentos em aeroportos, portos, estádios, mobilidade urbana e os financiamentos para novos hotéis custarão R$ 26,5 bilhões. Aliás, faltando 27 meses para o início do mundial, o próprio site do governo federal evidencia o atraso da programação, ao mostrar que somente R$ 9,9 bilhões (37%) foram contratados e apenas R$ 2,1 bilhões (7,8%) foram pagos. A execução pífia explica a reclamação do secretário-geral da Fifa, Jerôme Valcke, embora não justifique a sua falta de educação. Lentidão à parte, convém ressaltar que os R$ 26,5 bilhões correspondem somente ao chamado Primeiro Ciclo, não incluindo itens como segurança, telecomunicações, infraestruturas energética e turística, saúde e qualificação profissional. Os projetos de infraestrutura de suportes e serviços do “Segundo Ciclo” ainda estão em discussão. O Terceiro Ciclo, que abrange, por exemplo, a montagem de estruturas temporárias para o evento e adaptações nos modais de transporte, sequer foi discutido ou quantificado. 56
A Copa 2014 e a Torre de Babel
Mesmo o valor previsto para a etapa inicial (R$ 26,5 bilhões) está longe da realidade. Os financiamentos públicos para hotelaria, por exemplo, deverão ser muito maiores do que os que estão lançados no portal. Os R$ 368,0 milhões contratados até agora destinam-se à implantação de três novos empreendimentos, em Natal (RN), em Botafogo (RJ) e Copacabana (RJ). Também incluem a revitalização do Glória (RJ) e a instalação de hotel em Aparecida do Norte (SP). Muito provavelmente, outros hotéis serão construídos. O valor total disponibilizado pelas linhas de financiamento do BNDES e dos Fundos Constitucionais (Norte, Nordeste e Centro Oeste) para essa finalidade é de R$ 1,9 bilhão, podendo ser ampliado conforme a demanda. Outro exemplo de discrepância gritante entre o valor orçado e o real é o Estádio Nacional de Brasília Mané Garrincha. O custo frequentemente divulgado é de R$ 688,3 milhões. Nesse montante, porém, não está incluída a cobertura da arena que acaba de ser licitada, elevando o dispêndio para cerca de R$ 920 milhões. Também não constavam da previsão original as despesas com o gramado, a iluminação, as cadeiras, os elevadores, dentre outros “detalhes”. Ou seja, a estimativa do Governo do Distrito Federal refere-se, basicamente, à estrutura de concreto. Algo como se fosse possível calcular o custo de uma casa sem telhado, piso, luz etc. De fato, encontrar o custo real do elefante branco em construção na capital não é tarefa fácil. Conforme pesquisa realizada no último 5 de março, o valor de R$ 688,3 milhões (sem cobertura, gramado etc.) ainda é informado nos sites da CGU, do Instituto Ethos (<www. jogoslimpos.com.br>) e do Ministério do Esporte (<www.copa2014. gov.br>). No site do Senado (<www.copatransparente.gov.br>) consta R$ 671,1 milhões. Até mesmo a foto do estádio que ilustra o portal do Tribunal de Contas da União é a da versão inicial do projeto, já completamente alterada. Quanto à execução financeira, embora estejamos em março de 2012, os dados mais recentes computados no portal do Senado (30/6/2011) mostram que foram pagos R$ 223,8 milhões dos R$ 671,1 previstos (33%). No site da CGU, os valores executados até 23 de fevereiro de 2012 somam R$ 287,6 milhões dos R$ 688,3 milhões previstos (42%). Para o governador Agnelo Queiroz, as obras já estão na metade. Assim como ocorre com o estádio em Brasília, os portais divulgam informações desatualizadas, incompletas e até contraditórias sobre outros empreendimentos, nas diversas cidades-sede. A título de exemplo, no site da CGU, encontramos entre os projetos a construção do Módulo Operacional Provisório (MOP) do Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre. O valor previsto para a obra era de R$ 5,2 Gil Castello Branco
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Economia
milhões, com execução zerada, pelo menos até 5 de março. No entanto, no site da Infraero (<www.infraero.gov.br>) constata-se que a obra já está concluída. A promessa de que qualquer cidadão poderia acompanhar os custos da Copa ainda não foi cumprida. É urgente, portanto, que seja criada sistemática regular de alimentação e atualização desses portais, para que atendam à finalidade para a qual foram criados. Até porque – ao contrário do que foi dito inicialmente – os recursos públicos é que irão custear a festa. Do montante total previsto para o Primeiro Ciclo, no valor de R$ 26,5 bilhões, R$ 11,3 bilhões serão provenientes de financiamentos federais. Outros R$ 7,4 bilhões sairão dos cofres do Tesouro Nacional. Aproximadamente R$ 5,4 bilhões e R$ 1,2 bilhão serão bancados pelos estados e municípios, respectivamente. Apenas R$ 1,2 bilhão será custeado por outras fontes. Assim, é natural que os brasileiros queiram saber o total dessa conta. Com a verdadeira “babel” de informações, não se chegará ao céu. Na prática, até agora, ninguém sabe quanto custará a Copa.
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IV. Problemas Metropolitanos
Autores Julio Cerqueira Cesar Neto
Engenheiro e professor de Engenharia Hidráulica da USP e da Fundação Armando Alvares Penteado e coordenador da Divisão Técnica de Engenharia Sanitária Ambiental do Instituto de Engenharia de São Paulo.
Luiz Eduardo Soares
Antropólogo, foi secretário nacional de Segurança Pública (2003). É autor, entre outros, do livro Justiça. Nova Fronteira, 2011.
A atual problemática dos recursos hídricos na RMSP Julio Cerqueira Cesar Neto 1. O abastecimento de água Há oito anos, isto é, em 2004, havia a preocupação com a deficiência da capacidade dos nossos mananciais, 66,1 m³/s, face à demanda, 68 m³/s. Isto porque um sistema desse porte e complexidade estava trabalhando sem nenhuma folga, pior, já no vermelho. Sem plano de contingência. O Plano Diretor de Abastecimento de Água (PDAA) da Sabesp previa a entrada de 5,7 m³/s do Sistema Produtor do Alto Tietê (Spat) para 2005. Os reservatórios de Biritiba e Paraitinga, que forneceriam esses 5,7 m³/s, ficaram prontos em 2005, como previsto, e durante 6 anos ficaram vertendo água sem aproveitamento para distribuição, porque as obras de ampliação da Estação de Tratamento de Taiaçupeba só foram concluídas em 2010. Além disso, a deterioração da qualidade das águas do Guarapiranga (20% do total) em franco progresso levantava a perspectiva da eventual perda desse reservatório como manancial. A possibilidade latente da reversão de uso das águas subterrâneas (cerca de 8m³/s) para a Sabesp devido à poluição ou interdição dessa fonte assim como as perspectivas de eventos hidrológicos desfavoráveis, que a evolução histórica dessas ocorrências não descarta fechavam no final de 2004 um quadro extremamente preocupante com o nosso sistema de abastecimento. Em 2003, o Sistema Cantareira, por pouco (2 ou 3 dias), não entrou em colapso. Essa situação mostrava a urgente necessidade de 61
Problemas Metropolitanos
se pensar num manancial de grande porte e com melhor qualidade para equilibrar o sistema. Já em 2010, com uma população de 20 milhões de habitantes, o consumo total chegava a 85 m³/s, disponibilidades de 80 m³/s e um déficit do sistema de 5 m³/s. Numa previsão para 2025, com uma população de 24 milhões de habitantes, o consumo chegaria a 98,3 m³/s e a disponibilidade seria mantida em 81,7 m³/s tendo em vista que os novos aportes previstos pela Sabesp – Juquitiba, Itatinga e Itapanhaú – dificilmente serão viabilizados ambientalmente. O déficit atingiria 16,6 m³/s. Com relação à qualidade das águas, uma situação que, no final de 2004, se apresentava ainda meio nebulosa hoje está perfeitamente caracterizada: a presença no nosso meio ambiente e especialmente nos mananciais de produtos emergentes tóxicos de diversos tipos e natureza que não são retidos nos processos convencionais ainda adotados nas estações de tratamento de água da Sabesp. Esses produtos, certamente, já estão sendo distribuídos à população através das redes de água e podem ocasionar doenças a curto, médio ou longo prazos. Embora seja necessário avançar nesses estudos e definições, não resta a menor dúvida de que já deveríamos estar implantando nas nossas estações, tratamentos avançados cujas tecnologias já são disponíveis. A nova problemática para o abastecimento de água na RMSP envolve decisões e providências importantes todas urgentes e de grande porte e complexidade. Além da necessidade da ampliação da capacidade dos mananciais para diminuir a incidência de rodízios e racionamentos ainda será preciso pensar na implantação dos processos avançados nas estações de tratamento, monitoramento dos mananciais, no estabelecimento de padrões de qualidade para os produtos emergentes e na promoção de estudos epidemiológicos. Tudo urgente. Esses tratamentos avançados certamente permitirão o uso para abastecimento de águas de qualidade inferior. Assim poderíamos pensar que não precisaremos mais nos preocupar com a proteção dos nossos mananciais. Trata-se de uma alteração profunda de mentalidade muito além daquela que aboliu o conceito antigo de mananciais protegidos. Evidentemente, estamos frente a um problema que não poderá ser resolvido pelas autoridades de plantão sem a participação ativa da sociedade.
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A atual problemática dos recursos hídricos na RMSP
2. O reuso da água – instrumento de gestão O professor Ivanildo Hespanhol nesse excelente trabalho defende a tese de que não podemos continuar a importar água de bacias vizinhas para atender ao crescimento populacional e industrial, de um modo geral, e especialmente para a RMSP, mas procurar continuar o atendimento das suas necessidades através da implantação de novo paradigma que consiste na redução do consumo através da gestão da demanda, principalmente o reuso da água, e controle de perdas e redução do desperdício. Concordo com a tese quando trata o assunto de um modo geral, porém, discordo quando se trata da RMSP. Considerando a relevância do assunto aproveito a oportunidade para aprofundar o debate com as observações que seguem: • Concordo inteiramente que a água é um recurso finito e vulnerável e deve ser considerado como um bem econômico. • Concordo que os avanços de caráter legal e institucional experimentados pelos recursos hídricos, entre eles a cobrança pelo uso da água, não serão suficientes para manter o equilíbrio entre a demanda e a oferta de água especialmente em grandes conturbações com perspectivas de crescimento populacional e industrial. • Concordo que o custo do m³ de água potável do “próximo” projeto pode ser equivalente a duas a três vezes o custo do anterior. • Concordo que se deva buscar um “novo paradigma” para a gestão dos recursos hídricos baseado nas palavras-chave conservação e reuso da água para minimizar os custos e os impactos ambientais associados aos novos projetos, através do estímulo do uso de água recuperada, águas pluviais e água subterrânea inclusive com recarga artificial de aquíferos. • Concordo que a falta de recursos hídricos e o aumento dos conflitos pelo uso da água geraram a emergência da conservação e do tratamento e reuso, como componentes formais da gestão de recursos hídricos. • Concordo que na RMSP dos 70 m³/s aduzidos não mais que 30 m³/s sejam utilizados para fins potáveis e que os 40 m³/s restantes representam o potencial de reuso e poderiam ser substituídos por água de reuso para o atendimento de fins domiciliares e urbanos não potáveis (descarga sanitária, lavagem de pisos, lavagem de veículos e ruas, irrigação de áreas verdes e quadras esportivas, na construção civil e na indústria e ainda para recarga gerenciada dos aquíferos). Julio Cerqueira Cesar Neto
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Problemas Metropolitanos
Entretanto, não acredito que o reuso assim como as outras ações de gestão da demanda e ainda o controle das perdas sejam capazes de dar solução para o abastecimento de água da RMSP especialmente por dois motivos: • o tamanho da redução de consumo possível dessa forma em face das necessidades; • o tempo para atingi-las. 3. (Des) proteção dos mananciais A serra da Cantareira, uma das maiores florestas urbanas do mundo, além de ser reconhecida pela Unesco como Reserva da Biosfera, abriga os reservatórios do maior sistema de abastecimento de água do mundo, o Sistema Cantareira com produção de 33 m³/s de água, quase 50% da demanda da Região Metropolitana de São Paulo. Constitui-se em Área de Proteção Permanente (APP) e Área de Proteção de Mananciais (APRM). Os reservatórios do Sistema Cantareira foram incorporados ao patrimônio da Sabesp há quase 40 anos quando ainda se encontravam praticamente virgens com água de excelente qualidade. Reportagem de O Estado de S. Paulo, de 16/03/2008 “Cantareira: 180 morumbis desmatados” davam conta do avanço da destruição dessa importante reserva ecológica autorizada por 865 licenças emitidas por prefeituras e órgãos estaduais. Não houve repercussão sobre a matéria. Um ano depois, nova reportagem do mesmo jornal, agora de 15 e 18/02/2009, repete a matéria e informa sobre ação do Ministério Publico Estadual lastreada em levantamentos do Inpe que classifica as ocupações em curso como assustadoras e preocupantes. O MPE pretende pedir a suspensão de todos os processos em análise no estado e nas prefeituras diante da gravidade da situação. Após essa 2ª reportagem, a matéria repercutiu. As autoridades se mobilizaram. Os reservatórios de montante (Jaguari, Cachoeira, Atibaia e Atibainha) ainda com boa qualidade de suas águas já apresentam uma dinâmica de ocupação do território que oferece risco para o abastecimento. Cerca de 80% da área dessas bacias, desde o sul de Minas está alterada por atividades econômicas que vão da agricultura à mineração. Além disso, e pior, é que o reservatório Juquerí que recebe todo o volume de água dos demais e o encaminha para o tratamento apre64
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A atual problemática dos recursos hídricos na RMSP
senta altos índices de poluição por esgotos domésticos que são despejados no seu corpo sem nenhum tratamento. Nesse reservatório as águas incorporam boa dose de poluição antes de serem encaminhadas para tratamento. A situação da bacia do Alto Tietê, a montante da Barragem da Penha, está no mesmo caminho e em situação talvez mais avançada, colocando em risco os 5 reservatórios que compõem o Spat (responsável por 20% da demanda da RMSP). Pelo exposto se conclui que a situação desses importantes mananciais responsáveis por 70% da demanda da RMSP não é nada confortável. Quando lembramos que o restante da demanda vem do Guarapiranga e Billings a situação fica ainda mais desconfortável. 4. Os esgotos sanitários Tendo em vista que a Sabesp está dando início à 3ª fase do Projeto Tietê julguei oportuno tentar fazer uma análise da situação dos esgotos na RMSP embora reconheça as dificuldades de sintetizar um tema tão grande e complexo. Na minha opinião, ao lado do Uso e Ocupação do Solo e do Trânsito se constitui num dos maiores desafios dessa região não só pelo tamanho como principalmente pela extrema dificuldade em solucioná-lo satisfatoriamente. Os demais problemas da região também são grandes porém têm soluções mais claras. Me propus a enfrentar essas dificuldades porque estou convencido de que da mesma forma que existe uma tremenda desproporção entre o volume de esgotos produzidos na RMSP e a capacidade do rio Tietê de recebê-los, existe também a mesma desproporção entre a sua realidade e a informação que é transmitida para a sociedade, o que não é razoável no caso de um problema dessa magnitude e importância. Hoje, a região produz cerca de 54 m³/s de esgotos sanitários dos quais apenas 14 m³/s, 26%, são tratados. Mais de 40m³/s são lançados in natura no rio Tietê que durante as estiagens apresenta vazão natural menor do que 15 m³/s. Por isso que nas estiagens não observamos mais o rio baixar o seu nível. Não é mais um rio, é um canal de esgotos. Vamos aos problemas. No tocante à responsabilidade, a Sabesp responde pelas redes coletoras do município de São Paulo (50% da região) e de mais alguns municípios, representando a grande fatia da coleta. Responde também, em nível metropolitano, pelos coletores tronco, interceptoJulio Cerqueira Cesar Neto
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Problemas Metropolitanos
res, emissários e estações de tratamento (ETE). O problema que fica é o seguinte: Sabe-se que o Projeto Tietê já gastou US$ 1,5 bilhões e a situação é a descrita acima. Vai gastar mais US$ 800 milhões nesta 3ª fase e já se sabe que a situação dos nossos rios em 2018 estará pior do que está hoje. Já está sendo considerada a poluição difusa que a Sabesp estima em 30% do total. O tamanho e importância do problema não indica que ele deva continuar a ser decidido pelas áreas técnicas da Sabesp. Deverá haver uma instância adequada para a sua discussão inclusive para que possa ter legitimidade. Na realidade, o Projeto Tietê não dispõe de metas claras aonde pretende chegar. Parece mais um projeto interno da Sabesp tendo em vista os seus próprios objetivos sem relação com a sociedade e com o meio ambiente.
5 Caracterização da situação atual das enchentes na RMSP Essa situação pode ser considerada como extremamente crítica tendo em vista as perspectivas de ocorrência de inundações que embora geradas apenas por precipitações intensas que normalmente acontecem nos períodos chuvosos, apresentam intensidade e frequência incompatíveis com a grandeza e importância da região. As calhas do Tietê e Pinheiros têm extravasado 3 a 4 vezes todos os anos, o Tamanduateí e seus afluentes todas as semanas, além dos altos riscos da continuidade do processo de urbanização à montante da barragem da Penha. A calha do Tietê, ampliada há apenas 5 anos, apresentaria capacidade de vazão no Cebolão de 1.048 m3/s se estivesse desassoreada; hoje não cabe mais do que 750 m3/s quando as vazões de projeto para T = 100 anos são da ordem de 2.000 m3/s. Déficit de quase 100% da capacidade. O Tamanduateí tem capacidade para 487 m3/s e as vazões de projeto para T = 100 anos atingem mais de 850 m3/s. Se conseguisse escoar esses 850 m3/s as inundações no Tietê seriam catastróficas. Déficit também de quase 100% da capacidade. Os córregos municipais, afluentes desses rios maiores apresentam o mesmo nível de deficiências. Esse é o tamanho do problema. No tocante às causas dessa situação, antes de tudo, deve-se à decisão equivocada do governo do Estado, oriunda do PDMAT 1 – 66
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A atual problemática dos recursos hídricos na RMSP
1998 –, no limiar da ampliação da 2a fase da Calha do Tietê, trecho Cebolão – barragem da Penha com 24,5 km. O governo do Estado, mesmo sabendo que as dimensões projetadas para a ampliação da calha estavam superadas em cerca de 25%, decidiu mantê-las e se propôs a corrigir essa diferença e mais as que adviriam daí para a frente, em consequência do processo de urbanização, com a construção de 134 piscinões. A partir daí, e até hoje, passou a ser proibida qualquer ampliação de galerias, canais ou rios para solucionar alagamentos mas apenas a construção de piscinões. Passaram-se 13 anos, a ampliação da Calha – 2a fase foi executada com dimensões superadas, foram construídos apenas 44 piscinões e ficaram faltando 90. De acordo com informações da secretária Dilma Pena, já no final do governo Serra, o estado já havia investido nos 44 piscinões que construiu R$ 1,5 bilhões e teria que investir ainda mais R$ 3,5 bilhões com os 90 que faltaram – total: R$ 5 bilhões. Lembre-se que o custo total da obra de ampliação da calha atingiu apenas R$ 1,7 bilhão. O PDMAT 1 descartou a alternativa de ampliação das dimensões da calha em favor dos 134 piscinões porque considerou a solução cara! O governo do Estado optou por uma solução três vezes mais caras e a região ficou sem as ampliações do seu sistema de drenagem e sem os piscinões considerando que dos 44 construídos pouca ou nenhuma eficácia foi conseguida. Senão vejamos: A calha do Tietê que, em 1998, estava superada em 25%, hoje essa superação é de quase 100%, ou seja, quase 1.000 m3/s. Na bacia do Tamanduateí, foram construídos 19 piscinões com capacidade para 3,8 milhões de m3 e como resultado se constata: extravasamentos semanais da calha do Tamanduateí praticamente em toda sua extensão, o mesmo no córrego dos Meninos, no centro de São Bernardo do Campo e em São Caetano, córrego dos Couros na Praça Piraporinha, e Km 13 da Via Anchieta, córregos Oratório, Moóca e Ipiranga. O mesmo acontece no Aricanduva, Cabuçu de Baixo e outros que já dispõe de piscinões. É por isso que a situação chegou a esse ponto, ou seja, extremamente crítica. Porque os piscinões devem ser evitados em áreas urbanas, especialmente na região metropolitana de São Paulo? Resolve um problema (hidráulico) e cria outro (urbano) que é ele mesmo. Não existe espaço para sua construção. Quando se força o espaço deteriora a paisagem urbana podendo gerar desequilíbrio ambiental. Retendo Julio Cerqueira Cesar Neto
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Problemas Metropolitanos
esgotos domésticos in natura e poluição difusa passam a funcionar como decantadores primários de estações de tratamento de esgotos no meio da cidade. Custos totais (construção + manutenção e operação) superiores aos custos da solução tradicional de ampliação dos canais ou galerias. Os piscinões dependem para a sua eficácia “manutenção e operação” permanentes (inclusive após cada precipitação). Eles também não funcionam quando ocorre uma segunda precipitação em tempo menor que aquele necessário para o seu esvaziamento. Estudos feitos por Edna de Cássia Silvério da Faculdade de Saúde Pública nos piscinões Anhumas e Caguaçu na zona Leste concluíram que eles se constituem em criadouros de mosquitos com potencial epidemiológico de transmissão de doenças como a malária, filariose cancroftiana, dengue etc.
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Além do bem e do mal na cidade sitiada Luiz Eduardo Soares
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retórica ufanista e o moralismo simplificador do bem contra o mal, ainda comum na mídia, sobretudo carioca, não ajudam a entender a unidade de fundo entre crime e polícia, cuja lógica explica o drama da insegurança no Rio de Janeiro. O que se ganha na demagogia política dos símbolos, perde-se em acuidade analítica. Em 1997, dois representantes colombianos do cartel de Cali vieram ao Rio de Janeiro para um encontro clandestino com dois empresários atuantes no comércio de cocaína – um brasileiro, outro sul-africano. O objetivo era avaliar as perspectivas desse ramo de negócios na cidade. Vieram estimulados pelo reconhecimento de que o mercado dava sinais de prosperidade e seu futuro parecia promissor, sobretudo face ao aumento do poder de consumo da classe média, nos novos tempos de estabilização e crescimento inaugurados pelo Plano Real. Calcularam custos e benefícios, e, finalmente, desistiram. Concluiram que seria inviável organizar uma estrutura de distribuição economicamente racional, em grande escala, à semelhança da rede que funcionava na Europa, abastecida por transporte marítimo, via Inglaterra. O obstáculo no Rio era o faccionalismo dos grupos armados, cuja irracionalidade era agravada pelo envolvimento policial. Tudo isso gerava instabilidade e imprevisibilidade: péssimo ambiente para investimentos. Passaram uma noite no antigo templo da prostituição turística carioca, a boate Help, e voltaram para casa, frustrados e exauridos – por motivos diferentes. O episódio ilustra um aspecto frequentemente negligenciado: o modelo de organização e operação do tráfico de drogas no Rio sempre foi irracional e tenderia a tornar-se insustentável. É muito caro manter controle armado e ostensivo sobre territórios e populações, dividindo lucros com policiais. Exercer esse controle exige a organização de equipes numerosas, disciplinadas, hierarquizadas, dispostas a assumir riscos extremos. Os benefícios podem ser obtidos com muito menos gastos e riscos, quando se opera com estruturas leves, adotando-se vendas por delivery ou por agentes nômades, circulando em áreas selecionadas – como ocorre nas grandes cidades dos países centrais. 69
Problemas Metropolitanos
As UPPs – ótimo programa, sem dúvida necessário –, ao sepultarem o antigo regime, induzem, paradoxalmente, a modernização da economia do tráfico. Não o digo para criticar o programa, vale sublinhar, mas para analisar suas condições de possibilidade, seus efeitos e suas perspectivas futuras. Até porque essa modernização, considerando-se a inviabilidade de extinguir o negócio das drogas, será benéfica, reduzindo as armas em circulação e a violência, além do despotismo a que são submetidas tantas comunidades. O modelo tradicional do tráfico é fruto de uma história bastante peculiar e não o resultado de um plano de negócios ou de um projeto “político”. A geografia social da cidade já situava, nos anos 1960 e 70, enclaves de pobreza, as favelas, no coração de zonas afluentes. O abandono das áreas pobres por parte do Estado favorecia seu uso como depósito de mercadorias ilegais e esconderijo para os operadores do tráfico no varejo. A contiguidade espacial permitia que os consumidores das camadas médias fossem alcançados sem dificuldades. Graças à aliança com segmentos policiais, a venda de drogas acabou por estabelecer-se nas próprias favelas, em pontos de venda fixos, as “bocas”, de conhecimento público. Inaugurava-se, assim, uma das únicas experiências duradouras de comércio sedentário e varejista de produtos ilícitos em zonas urbanas do mundo industrializado. Observe-se que desde sua origem o sistema dependia, naquilo que tinha de singular e distintivo, da participação policial. Para garantir a continuidade dos negócios, tornou-se necessário proteger a “boca”, assegurando o livre trânsito de mercadorias e clientes. As armas, o recrutamento de equipes, sua organização à moda militar e o treinamento adequado converteram-se em vantagens competitivas. A consequência inevitável foi o controle de territórios e populações, exercido pela combinação perversa entre a intimidação pela força e a subordinação de tipo clientelista – padrão já incorporado à cultura local por décadas de tutela política. Choques de interesses, disputas de poder e caprichos histórico-biográficos ensejaram a formação de três polos agregadores e antagônicos, em cujas órbitas passaram a gravitar os grupos de traficantes. Ordenavam-se, portanto, as rivalidades, fortalecendo-se, simultaneamente, a coesão interna de cada comando e as respectivas identidades. A relevância prioritária do armamento impôs-se nesse contexto, gerando uma curiosa e nefasta autonomização da economia das armas, cujo resultado foi a existência de mais armas e mais poderosas do que seria necessário para o uso rotineiro. O estoque excessivo de armas – ao instaurar uma capacidade “produtiva” ociosa – animou o desenvolvimento de práticas de aluguel e leasing, entre outras, em 70
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Além do bem e do mal na cidade sitiada
condições baratas e acessíveis, o que terminou por universalizar o emprego da arma de fogo, inclusive na prática de crimes menores contra o patrimônio, tradicionalmente perpetrados sem esse recurso – convertendo-os em potenciais crimes contra a vida e, por essa mediação, reproduzindo em escala ampliada a espiral da violência. Lembremo-nos que o Bope, em meados da década de 1990, deixou de aceitar rendição e fazer prisioneiros, o que também contribuiu para que traficantes intensificassem o investimento em armas e na cooptação de militares para a formação de seus quadros. As histórias da crescente ingovernabilidade policial e do tráfico articulam-se, desde a origem. Não podem ser compreendidas separadamente. Nunca houve tráfico de armas e drogas, no Rio, dada sua natureza sedentária e territorializada, sem ativa participação de segmentos policiais, os quais se emancipavam do controle institucional, social e governamental, em função de vários fatores, entre os quais o modelo policial legado pela ditadura, refratário à governança racional, legalista e democrática. Nesse contexto, as UPPs, retomando experiências anteriores (os mutirões pela paz, em 1999, e os GPAEs, entre 2000 e 2002), constituem um caminho mais do que promissor, indispensável. Elas substituem as incursões bélicas em que morriam suspeitos, inocentes das comunidades e policiais, sem que nada mudasse. Sua novidade: a provisão nas favelas do serviço público, que é a segurança, 24 horas, nos moldes oferecidos aos bairros nobres, isto é, com respeito às leis e aos direitos humanos. Nada de mais. Entretanto, decisivo, uma vez que a presença policial constante e legalista impede o controle do território por parte de grupos armados e permite que o Estado atue, cumprindo seu dever nas áreas de saúde, educação, saneamento, urbanização, transporte etc. Qual o desafio? Transformar o programa em política pública, ou seja, dotá-lo de universalidade e sustentabilidade, o que exige o envolvimento do conjunto das instituições policiais em sua aplicação. No Rio, não há esta hipótese, tal o nível de comprometimento das polícias com o tráfico, as milícias e a criminalidade em geral. Portanto, sem a refundação das polícias não haverá futuro para as UPPs. Elas se limitarão a intervenções tópicas, insuficientes para mudar o panorama geral da segurança pública e continuarão a conviver com nichos policiais, milicianos ou não, que têm sido fonte de violência e não instrumentos da ordem cidadã e democrática. No Rio, é preciso exorcizar a retórica tão patética quanto mascaradora do bem contra o mal e inscrever a mudança das polícias no centro da agenda pública.
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V. Políticas Públicas
Autores Ligia Bahia
Professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Renata Cabrera
Graduada em Ciências Biológicas (1997) e mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso (2004). Atualmente é aluna do Curso de Doutorado em Educação para Ciência, da Unesp-Bauru. É professora efetiva do Depto. de Biologia e Zoologia da UFMT e pesquisadora do Grupo de Políticas Educacionais de Mato Grosso. E-mail: renatacabrera@terra.com.br
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singular combinação de universal-particular, público-privado do sistema de saúde brasileiro subverte as classificações internacionais tradicionais. Ainda que sua realidade seja sempre mais complexa e, por vezes, muito menos descontínua do que as tipologias que pretendem explicá-la, o Brasil pode ser categorizado como um outlierno que se refere à organização de sistemas de saúde no mundo contemporâneo. Tal posição extravagante decorre da existência do SUS. A Constituição de 1988, ao promulgar o direito universal à saúde, distanciou-nos de vários países populosos e em desenvolvimento que não construíram sistemas públicos nacionais. Contudo, a formalização do direito à saúde não foi suficiente para romper definitivamente com o padrão segmentado herdado do seguro social. É possível afirmar, sem mentir, que o Brasil possui um sistema universal de saúde, dotado de atributos similares aos de países desenvolvidos. Quem disser que abrigamos um mercado de planos privados de saúde vigoroso, semelhante ao dos Estados Unidos também não estará faltando com a verdade. O desenvolvimento simultâneo de dois subsistemas contraditórios não suscita reações de surpresa porque nos acostumamos a atribuir toda e qualquer estratificação à distribuição da população por faixas de renda. Assim, o encaixe natural entre o poder de pagar e a dimensão das redes assistenciais pública e privada deriva das estimativas sobre o tamanho das classes médias. A profusão de descrições da realidade rasas, mas convincentes e não de todo destituídas de substrato real, sobre a conformação das instituições de atenção à saúde traçam um panorama simplificado, no qual 75
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aos ricos e pobres correspondem dicotomicamente serviços privados e públicos. A ausência da política, das bases nas quais se assenta o poder, nessas narrativas, esconde as engrenagens coletivas e estatais que organizam os modernos sistemas de saúde. A saúde pública é contemporânea à industrialização. Embora a humanidade tenha desenvolvido sofisticados modelos explicativos a respeito do processo saúde-doença e meios para intervir sobre as enfermidades, os avanços relacionados ao controle de riscos, precisão dos diagnósticos e efetividade das terapias acompanharam a consolidação dos Estados modernos, especialmente os Estados de bem-estar social. Foi exatamente porque a saúde se politizou, no sentido de se tornar objeto da ação estatal, que os sistemas nacionais de saúde puderam se desenvolver e dinamizar o complexo industrial setorial. Medicamentos, equipamentos, vacinas e outros insumos são requeridos e pesquisados pelas amplas redes de serviços criadas em função da socialização dos riscos à saúde. Essa digressão é necessária por dois motivos. Em primeiro lugar, para acentuar a importância da denominada desfamiliarização dos cuidados e assistência à saúde.1 O trabalhador assalariado – doente, gestante, acidentado ou velho – afastado da atividade laboral não poderia manter-se e reproduzir sem o apoio de benefícios e serviços dos seguros sociais. O segundo feixe de justificativas para revisitar o passado diz respeito ao acionamento do mesmo dispositivo que apaga da paisagem os alicerces políticos do sistema de saúde para atribuir os avanços da medicina exclusivamente a grandes invenções obtidas em fantásticos laboratórios, desconectando-as das instituições estatais que as estimulam. Por isso, é imprescindível tomar como ponto de partida para avaliar o atual sistema de saúde no Brasil a situação pré-Constituição de 1988. A Previdência Social, que vinha ampliando progressivamente a cobertura de seus benefícios, era, naquela altura, responsável pelo atendimento à saúde de cerca de 60% da população. Os elegíveis ao seguro social estavam vinculados ao mercado formal de trabalho e consequentemente residiam nas regiões Sudeste e Sul. As disparidades nos indicadores de saúde entre regiões, cidades e mesmo bairros de um mesmo município e os problemas de fraudes decorrentes da dinâmica de compra de serviços expressavam os resultados de um modelo de desenvolvimento autoritário e concentrador. As insti1
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GOSTA ESPING-Andersen. Social foundations of postindustrial economies. Nova York: Oxford University Press, 1999. Política Democrática • Nº 32
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tuições responsáveis por quem não tinha carteira de trabalho eram o Ministério da Saúde e secretarias de saúde. Com base no diagnóstico da inviabilidade de preservar um sistema fragmentado com duplicidade de atribuições ministeriais e sob o lema “democracia é saúde”, intelectuais, técnicos e entidades de profissionais de saúde e do movimento social levaram à Constituição o debate sobre o projeto de Reforma Sanitária Brasileira, o qual procurou articular as duas dimensões da saúde: estado vital e sistema de saúde, sob a perspectiva de disputar a hegemonia com projetos racionalizadores e romper com acepções e práticas de mercadorização da doença e da vida. O SUS – componente assistencial da Reforma Sanitária, compreendido como um processo de construção técnica e política – seria uma das chaves para alterar o predomínio de interesses privatizantes e responder às pressões de outros grupos sociais, especialmente os segmentos populacionais não abrangidos pela Previdência Social em favor da responsabilização de prestação de serviços pelo Estado.2 A elevação da saúde à condição de direito de cidadania foi uma importante conquista da Constituição de 1988. A inclusão da saúde no capítulo da seguridade social e a vinculação do financiamento do SUS a um orçamento compartilhado com a Previdência e a Assistência Social, acrescido por duas novas fontes de receita (a Cofins e a CLSS), certamente contribuíram para adjetivá-la cidadã. O que ocorreu logo depois é fácil lembrar. A declaração de Sarney sobre a inviabilidade de governar o país com a Constituição recém-aprovada prenunciou contradições entre o texto constitucional e a natureza das políticas sociais dos governos que o sucederam. A onda liberal Desde a vitória de Collor, a modernidade liberal se impôs mais intensamente. As diversas reformas pautadas no tripé estabilização, privatização do patrimônio estatal e abertura comercial promoveram uma radical transformação no papel estratégico do Estado.3 Embora o texto constitucional tenha resistido às propostas destinadas a suprimir ou relativizar a garantia do direito universal à saúde, o descrédito de autoridades governamentais na necessidade de efetivar PAIM, Jairnilson. Reforma sanitária brasileira: contribuição para a compreensão e critica. Salvador/Rio de Janeiro: EDUFBA/Fiocruz, 2008. 3 BOSCHI, Renato; SOARES LIMA, Maria Regina. O Executivo e a construção do Estado no Brasil: do desmonte da era Vargas ao novo intervencionismo regulatório. In: WERNECK VIANNA, Luiz (org.). A democracia e os três poderes no Brasil. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: UFMG/Iuperj/Faperj, 2002. 2
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um sistema de saúde público, abrangente e qualificado, acompanhado por uma dieta de fome de recursos financeiros, mitigou a transposição do direito formal ao real. Mesmo assim, a universalização, para determinadas ações de saúde, saiu do papel. Uma das primeiras e notórias realizações do novo sistema de saúde foi garantir o acesso à prevenção, ao diagnóstico e ao tratamento para todos os expostos ao HIV/Aids. Contudo, o tráfego na contramão da agenda nacional e internacional atrasou e cerceou a criação do SUS constitucional. Entre avanços e impasses, a garantia do direito à saúde ficou no meio do caminho. Passamos pela etapa dos discursos que estendiam automaticamente os efeitos benéficos do programa Bolsa Família aos problemas de saúde, por momentos de euforia em relação às promessas de privatização e descobertas da gestão como bálsamo infalível para consertar a saúde pública. Enquanto isso, a União retraiu aportes para o SUS. Entre 1980 e 2008, a participação do governo federal diminui de 75% para 46% no total dos gastos públicos. Nem o significativo incremento da receita corrente da União deteve a tendência de queda das despesas federais com saúde. A ultrapassagem de gastos com pessoal do Ministério da Fazenda em relação aos do Ministério da Saúde em 2004 sinaliza a corrosão do subfinanciamento, inclusive nas bases organizacionais do SUS. Para efetivar o SUS, o Brasil deveria ter expandido a rede de serviços e, necessariamente, o financiamento para a saúde pública. Ocorreu o contrário: políticas fiscais incentivaram a privatização da assistência. Hoje, temos um sistema público subfinanciado e um sistema privado dependente da expansão dos vazamentos (nunca explicitados) de recursos públicos. Os gastos para quem está vinculado a planos são pelo menos três vezes maiores do que para o restante da população. Junto com a ascensão dos brasileiros a classes superiores de renda e o aumento da busca de vinculação a planos privados vieram filas, profissionais da saúde que “não olham na cara” dos pacientes, dificuldades para discernir no emaranhado de guias de autorização de procedimentos quem é responsável pelo quê – problemas anteriormente considerados apanágio do SUS contaminaram empresas privadas que arrogavam deter excelência na gestão. Tornou-se difícil distinguir as críticas aos planos de saúde daquelas dirigidas ao SUS. As greves de médicos contra planos de saúde, a contratação de falsos profissionais em hospitais, o uso de medicamentos adulterados, as empresas de ambulâncias movidas a propina e as burocracias de organizações privadas tão ou mais insensíveis e menos profissionalizadas do que as públicas denunciam os limites estruturais da segmentação do sistema de saúde. 78
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Quem acompanha esses nítidos sinais de esgotamento das instituições públicas e privadas fica com a impressão de que o sistema de saúde brasileiro bateu no teto. O escanteamento da saúde na agenda governamental, recursos financeiros insuficientes para alavancar a extensão de coberturas do SUS e o estímulo à demanda e oferta de planos de saúde baratos e com restrição de coberturas agravam a crise. A saída encontrada para atender novos clientes de planos de saúde tem sido a abertura de duplas portas em hospitais da rede SUS. A devolução de pacientes cobertos por esquemas assistenciais privados ao Estado sugere que o rei está nu! Apesar de uma parte de nossos representantes políticos temer contrariar supostas inclinações privatizantes das classes médias ou não ter compreendido o real valor de sistemas universais, as evidências são acachapantes: não ingressaremos no mundo desenvolvido sem um SUS para valer. Um sistema de saúde segmentado e fragmentado turbina injustiças, discriminações e privilégios. Enquanto o padrão de atendimento aos problemas de saúde ainda depender do status social herdado ou de espertezas e maracutaias, os critérios republicanos não vão se impor: um país no qual a gravidade das condições clínicas, e não a capacidade de pagamento, determina a ordem do atendimento protege com mais eficiência e eficácia a saúde de todos os cidadãos. Tarefa inadiável Portanto, apostas baixas e dúbias não são respostas adequadas ao enfrentamento dos cruciais problemas de saúde. Conquistar mais recursos para o SUS e gastá-los bem é uma tarefa inadiável. Em termos de proporção do PIB, os gastos com saúde somam, atualmente, cerca de 8,5%. Se alcançarmos 10%, estaremos, a princípio, pareados com países que possuem amplos sistemas de proteção social. Mas não é só nos gastos totais que se percebe o problema da carência de recursos para o SUS. O obstáculo adicional são as proporções privadas e públicas das despesas. No Brasil, apenas 45% são gastos públicos e, nos países onde há sistemas universais, as parcelas dos investimentos públicos situam-se sempre acima de 70% do total.4 Perante esse duplo desafio, é essencial reafirmar o SUS como vetor de desenvolvimento social. O que tem de ser levado em conta é a importância de efetivação de um sistema universal em um país marcado por fortes desigualdades sociais. Consequentemente, a padroni4
Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Agenda estratégica para a saúde no Brasil, 2011. Disponível em: <www.saudeigualparatodos.org.br>.
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zação de direitos perante as pressões das indústrias setoriais referentes à incorporação de novas tecnologias depende de políticas sistêmicas que articulem atenção à saúde com políticas industriais e de desenvolvimento científico e tecnológico. Até aqui os embates sobre financiamento do SUS ficaram reduzidos a uma polêmica sobre o aumento da carga tributária. O desacoplamento do projeto de regulamentação da Emenda Constitucional no 29 (EC-29) da criação de uma contribuição específica (CSS) permitirá a substituição da discussão plebiscitária sobre o sim ou não a uma contribuição social pela discussão do SUS que queremos e podemos ter. Trata-se de buscar alternativas que procurem manter a coerência dos objetivos do SUS com a natureza das receitas e a quantidade de recursos para viabilizá-lo, trazendo para o centro da formulação de políticas a análise das bases de financiamento previstas pela Constituição. Antes de sair tirando coelho da cartola é preciso examinar acuradamente as possibilidades de reorientação das receitas do orçamento da seguridade social. As fontes destinadas originalmente para o financiamento da saúde, em função de características de relativa progressividade da incidência de tributos sobre o faturamento e o lucro, são coerentes com a universalização. As possibilidades de mobilizar as atuais contribuições sociais para que a União aumente o aporte de recursos para o SUS – seja por meio da desoneração dessas receitas da incidência da Desvinculação de Recursos da União (DRU), que extrai uma parcela do orçamento da seguridade em observância aos ditames do ajuste fiscal, seja mediante a destinação de uma maior parcela dessas fontes à saúde ou ainda em função de aumento de alíquotas – devem ocupar lugar de destaque no equacionamento do financiamento do SUS. Só conseguiremos escapar do dilema fiscal sintetizado na contradição entre a crescente carga tributária e impacto negativo na saúde se alargarmos as bases de financiamento do SUS e reduzirmos os vazamentos fiscais à privatização da saúde. A experiência com as brigas em torno da CPMF ensinou que a alocação de mais recursos para a saúde pública é antes uma questão de prioridade política do que de criação de uma fonte específica de recursos. Aprendemos ainda que botar os termos do debate de cabeça para cima auxilia a compreensão da complexidade das decisões envolvidas com o financiamento do SUS. O que estamos pleiteando é o direito à saúde, a melhoria das condições de vida e de saúde e o atendimento oportuno, digno e resolutivo. O financiamento e a qualidade dos gastos são 80
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meios essenciais para o alcance desses objetivos. A conversa sobre o SUS não se inicia nem termina no financiamento. Um sistema de saúde degradado, pobre para pobres, adultera o nome e sobrenome de batismo do SUS constitucional. Não erradicaremos a miséria e a pobreza enquanto nos situarmos entre os países com maior PIB e nossos indicadores específicos sinalizarem a perseverança de profundas iniquidades na exposição aos riscos e no acesso e utilização de ações e serviços de saúde. Sobre a mesa de negociações da regulamentação da EC-29 serão apresentados interesses e valores políticos, simbólicos e financeiros. Esforços concentrados em torno de concepções sobre a indissociabilidade do financiamento com a ampliação do direito à saúde aumentam as chances de aprovar no Senado uma regulamentação baseada na projeção de um SUS cujos tamanho e qualidade se ajustem às necessidades de saúde e qualidade de vida das atuais e futuras gerações de brasileiros.
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Política de avaliação da pós-graduação: um balanço crítico Renata Cabrera Introdução Na reunião de dezembro (2011), minha orientadora já me pediu para fichar alguns livros e para entregar a produção em janeiro (2012). Ela quer que eu defenda antes do prazo, pois o curso está, há alguns anos, com nota 3 e é preciso melhorar a pontuação, pois o programa pode ser descredenciado. (Depoimento de uma candidata aprovada em, dezembro de 2011, um curso de mestrado acadêmico, de uma Instituição Federal de Ensino (IFE), cuja matrícula foi efetivada em fevereiro de 2012). A aprendizagem da pesquisa e a formação de pesquisadores são mesmo processos demorados e custosos, tanto mais se levarmos em conta a própria realidade social, cultural e educacional do Brasil, marcada por grandes carências em todos os planos e níveis. [...] O modelo de avaliação pauta-se mais no produto do que nos processos da pós-graduação [...] daí a pressão que o processo avaliativo faz para que todos os envolvidos produzam como se estivessem numa linha de montagem industrial. (SEVERINO, A. J., 2011).
O depoimento da mestranda, recém-aprovada, é revelador da situação de pressão à qual estão submetidos muitos programas da pós-graduação brasileira – sob a égide de um sistema de avaliação calcada exageradamente no produto e minimamente na qualidade, um ritmo é imposto ao que se espera do seu produto. Da candidata, que nem era aluna oficialmente, solicita-se um conjunto de atividades, cumprimento de tarefas que, ainda que contribuam para o seu desenvolvimento acadêmico e intelectual, não são atribuídas inicialmente com esse objetivo que deveria ser primordial. Pelo contrário, a justificativa vem em torno da necessidade de se adiantar a produção para que o produto seja apresentado antes do prazo máximo estabelecido – que já é exíguo –, no caso dos mestrados acadêmicos de 24 meses. Dessa forma, como recompensa, o programa que está na berlinda com uma nota 3 consecutiva pode “ganhar uns pontinhos” e “subir” no processo de avaliação implantado pela Capes. Não se de82
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nota qualquer preocupação com o ser humano que é a aluna, mas com o programa. Tomo como base os argumentos apresentados pelo autor Antônio Joaquim Severino, apresentado em epígrafe, a respeito do tempo, que não é curto, para a formação do pesquisador e aprendizagem da pesquisa. Parto da compreensão de que o Estado tem o papel de avaliador e fiscalizador das políticas públicas implementadas. Dessa forma, os argumentos aqui apresentados não têm a conotação contrária a uma política de avaliação, mas sim pelo debate crítico em torno da forma como esta vem sendo desenvolvida e suas implicações nas relações entre professores, pesquisadores e alunos. A reflexão aqui estabelecida é parte das minhas inquietações, enquanto docente de uma universidade pública, no que se refere à lógica do produtivismo, da produtividade exacerbada imposta a essa instituição social, e, atualmente, como aluna de um curso de doutorado. Ao reler Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire (1981), e ser solicitada a produzir um trabalho de conclusão de disciplina, sobre aspectos da obra do referido autor, encontrei alguns subsídios que julgo pertinentes para discussão entre estrutura opressora e a avaliação da pós-graduação brasileira. A reflexão aqui realizada toma como base os subsídios apontados na Pedagogia do Oprimido, por entender que é o texto nuclear da obra de Freire e por conter nele os elementos necessários para a discussão que eu pretendia neste trabalho realizar. Em Freire (1981), encontra-se longo detalhamento das relações estabelecidas entre aqueles que detêm o modo de produção da vida material, os opressores, que lutam para manter a sua condição social, e os oprimidos, aqueles que não detendo os meios de produção vendem sua força de trabalho e são submetidos às relações opressoras. As discussões na referida obra centram em torno das relações de opressão estabelecidas numa sociedade capitalista, da concepção bancária da educação como instrumento da opressão, da dialogicidade e da antidialogicidade como matrizes de teorias da ação cultural, sendo que a primeira serve à libertação e a segunda à opressão. O texto foi escrito em 1968, período em que Freire esteve no exílio. Essa época foi marcada pela disputa de dois projetos de sociedade bem delineados: um de cunho conservador, calcado na defesa dos interesses das elites, detentoras dos meios de produção e do poder econômico e político, e outro, de cunho progressista, calcado na defesa dos interesses da grande massa de excluídos, o proletariado. Nesse contexto, a luta de classes é bem visível, de modo que é possível Renata Cabrera
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identificar as ações daquele que oprime e do que sofre as ações de opressão, ainda que o oprimido guarde dentro de si a imagem do seu opressor, ou nas palavras de Freire os oprimidos “hospedam ao opressor em si”. (1981, p. 32) Nos dias atuais, em que a noção de classe está diluída no contexto de uma economia globalizada, na qual se pode verificar não mais a disputa polarizada entre dois projetos de sociedade, mas a de vários projetos, as relações entre o opressor e oprimido também se misturam a esse emaranhado que é a teia social em tempos de globalização. No campo educacional, atualmente, é possível identificar, com facilidade, opressores e oprimidos? Acredito que não o seja. E no que se refere ao tema da reflexão sobre a política de avaliação da pós-graduação brasileira julgo que o termo mais apropriado para definir a relação que aqui se pretende discutir é o de estrutura opressora. Freire ao discutir a “cultura do silêncio” faz breve menção a essa estrutura, que, de acordo com ele, é “dentro da qual e sob cuja força condicionante vem realizando sua experiência de quase-coisas”. Ou seja, as relações em torno dos “homens que estão aderidos à figura do opressor”, que são “homens proibidos de estar sendo”. (1981, p. 205) Assim, a estrutura opressora é todo o aparato no qual se estabelecem as relações de opressão, estando estas explícitas ou não. No caso da pós-graduação brasileira, ainda que a avaliação em si não se constitua em um sistema opressor, as relações que se estabelecem em função dela acabam por gerar um ambiente em que o ser (professor, pesquisador, discente) confunde-se com o ter (artigos publicados, participações em congressos, apresentações de trabalhos, produto apresentado em tempo mínimo etc.). É comum, nas reuniões de departamento das IFEs, a referência aos colegas, de modo a evidenciar sua produtividade, quantitativa ou não. Paira um clima em torno do: “lá vai o mais produtivo, lá vai o que nunca publica”. Pouca ou quase nenhuma menção se faz a respeito do que se tem publicado, da qualidade do que se publica, do impacto dessa produção na melhoria das condições de vida da população. O sujeito vale o quanto produz sem, necessariamente, abordar a qualidade do seu produto. O Estado avaliador impõe uma métrica que deve ser seguida à risca, sob pena de punições como descredenciamento de cursos e de professores, redução do número de vagas e de bolsas. Nas palavras de Severino, esse processo: (...) vem se revelando mais classificatório do que avaliativo; transformou-se numa competição, em que cada Programa fica na expectativa de situar-se num
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Política de avaliação da pós-graduação: um balanço crítico bom lugar no ranking, pois essa posição torna-se um troféu e um trunfo, aval de outros benefícios tanto no interior das instituições como nas agências de fomento. (2011, p. 66)
Gatti et al. (2003, p. 04), ao discutirem o modelo de avaliação da Capes, argumentam que: (...) o modelo atual está baseado fundamentalmente na avaliação externa e centrado nos produtos. No caso dos programas de pós-graduação, é preciso ter presente que se está avaliando um processo educacional, formativo, e não medindo e pesando produtos produzidos por técnicos e cientistas, estes sim objetos de ponderação das agências de fomento científico e tecnológico. No caso dos mestrados e doutorados, trata-se de cursos, de atividades de formação de pessoas que poderão vir a ser, ou não, cientistas e pesquisadores, mas, com certeza, serão ou continuarão a ser profissionais atuantes no ensino superior e em outras instituições sociais ou empresariais.
A competição, na qual estão imersos os programas de pós-graduação, seja pela garantia de uma fatia maior no bolo do financiamento, seja pelo status de curso de excelência, desvirtua o sentido emancipatório que deve ter a avaliação e acaba por fazer emergir a necessidade em torno das conquistas, em termos de bolsas, número de artigos, projetos aprovados, entre outros. Sobre a necessidade de conquistas, Freire nos diz que: (...) o primeiro caráter que nos parece poder ser surpreendido na ação antidialógica é a necessidade da conquista. [...] O desejo de conquista, talvez mais que o desejo, a necessidade da conquista, acompanha a ação antidialógica em todos os seus momentos. (1981, p.161 e 163)
Substituir uma ação antidialógica por uma dialógica significa pautar a humanização do homem como um processo permanente, em que este, na prática da produção de sua existência, exercitando a sua liberdade, humaniza-se. Se há algo que está excluído dos sistemas de avaliação é exatamente o diálogo com os avaliados – isso em todos os níveis de ensino. O processo de produção de conhecimento, existente na pós-graduação, não pode ser pautado por uma ação antidialógica, alienante, no qual o autor se configura em um mero ator, expropriado da sua obra. Pelo contrário, deve ser marcado pela busca constante da vivência da plenitude humana, seja pelo processo do autoconhecimento, seja pela busca de soluções para os problemas existentes, seja pela incessante capacidade criativa e reflexiva que nos torna animais distintos dos demais. A produção quantitativa deveria ser apenas um Renata Cabrera
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dos elementos da dimensão da totalidade do que se produz nos cursos stricto sensu. Ou seja, o diálogo não poderia se dar, por exemplo, somente entre a elite intelectual das áreas, mas abranger a todos aqueles que são avaliados. Sem isso, o processo pode ser caracterizado como opressor – na linguagem freireana. Avaliação dos cursos stricto sensu no Plano Nacional de PósGraduação (PNPG) Ao longo da sua existência, a pós-graduação brasileira contou com seis planos nacionais, sendo o último promulgado em dezembro de 2010 e com a vigência até o ano de 2020. No PNPG atual, há uma retrospectiva das principais ações de cada um dos planos anteriores, que de acordo com o documento (CAPES, 2010, p. 15-16): O 1º Plano (1975-979) teve como principal missão introduzir o princípio do planejamento estatal das atividades da pós-graduação, então recentemente implantada em âmbito federal, integrando-as na graduação e fomentando a pesquisa, com o objetivo de formar especialistas – docentes, pesquisadores e quadros técnicos – para o sistema universitário, o setor público e o segmento industrial. O 2º Plano (1982-1985) mantém as ênfases do Plano anterior, e acrescenta-lhes o crivo da qualidade nas atividades da pós-graduação, tendo como instrumento a avaliação, que já existia em estado embrionário desde 1976 e que será então aperfeiçoada e institucionalizada. O 3º Plano (1986-1989) subordina as atividades da pós-graduação ao desenvolvimento econômico do país, mediante a integração das atividades ao sistema nacional de ciência e tecnologia. O 4º Plano (1982-1985), aquele que não foi promulgado, mas cujas diretrizes foram adotadas pela Capes, se caracterizou pelas ênfases na expansão do sistema, na diversificação do modelo de pós-graduação, na introdução de mudanças no processo de avaliação e na inserção internacional do SNPG. O 5º Plano, o PNPG 2005-2010, caracteriza-se pela introdução do princípio de indução estratégica nas atividades de pós-graduação em associação com as fundações estaduais e os fundos setoriais, o aprimoramento do processo de avaliação qualitativa da pós-graduação (conceito de nucleação, revisão do Qualis e introdução do Proex), a preocupação com a solidariedade entre os cursos e seu impacto social, a expansão da cooperação internacional, o combate às assime-
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trias, a formação de recursos humanos para a inovação tecnológica no mundo globalizado e competitivo, e a ênfase na formação de docentes para todos os níveis de ensino, bem como de quadros técnicos via mestrado profissional para os setores de serviços público e privado.
O PNPG 2011-2020, por sua vez, está organizado em cinco eixos: 1. a expansão do Sistema Nacional de Pós-Graduação (SNPG), a primazia da qualidade, a quebra da endogenia e a atenção à redução das assimetrias; 2. a criação de uma nova agenda nacional de pesquisa e sua associação com a pós-graduação; 3. o aperfeiçoamento da avaliação e sua expansão para outros segmentos do sistema de C,T&I; 4. a multi e a interdisciplinaridade entre as principais características da pós-graduação e importantes temas da pesquisa; 5. o apoio à educação básica e a outros níveis e modalidades de ensino, especialmente o ensino médio. (CAPES, 2010, p. 15)
Em relação à questão específica da avaliação, no período de existência da Capes, dois sistemas de avaliação foram implantados. No primeiro, 1976 a 1997, a escala de classificação conceitual adotada foi a alfabética de A a E, sendo que os cursos contemplados com o conceito A eram os considerados de padrão internacional. A partir de 1997, passa a ser utilizada a escala numérica de 1 a 7, sendo considerados de padrão internacional os cursos com conceitos 6 e 7. No que se refere aos quesitos avaliados, consta na lista de avaliação da área Ensino de Ciências e Matemática, para o triênio 20072009, os seguintes itens e seus respectivos pesos correspondentes, como pode ser observado no Quadro 01: Quadro 1. Itens que constam na ficha de avaliação dos cursos da área – Ensino de Ciências e Matemática – triênio 2007-2009 Quesitos/itens
Peso
1.
Proposta do Programa
0
2.
Corpo Docente
15%
3.
Corpo Discente, Teses e Dissertações
35%
4.
Produção intelectual
35%
5.
Inserção social
15%
Fonte: <www.capes.gov.br>.
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Este quadro é apenas um resumo do que contém o documento da área, disponível no portal da Capes. Para cada um dos quesitos avaliados, no documento de origem, há detalhamento em subitens. Os quesitos de maior peso, corpo discente, teses, dissertações e produção intelectual, têm, entre o seu detalhamento, o foco na publicação. No item 3, 40% do peso referem-se à qualidade das teses e dissertações produzidas, no entanto, estas são aferidas por publicações e outros indicadores, não citados, da área. No item 4, produção intelectual, 80% do peso é centrado nas publicações qualificadas e a distribuição das mesmas entre os docentes credenciados. Dessa forma, ficou na promessa a ideia de avaliar pela qualidade desses produtos. É natural que seja dada atenção ao que se produz nos programas de pós-graduação, no entanto, é preocupante quando a avaliação da sua qualidade fica subjugada à sua dimensão quantitativa, sobretudo, quando há uma grande desproporcionalidade entre o número de revistas existentes, nos estratos mais valorizados (A e B), e a quantidade de mestres e doutores que são formados todos os anos. A divulgação dos dados da avaliação da pós-graduação também é centrada na quantidade do que se produz. De certa maneira, com as informações quantitativas dos últimos vinte anos, fornecidas pela Capes, é possível “acompanhar” o que se tem feito com o investimento que o poder público faz na pós-graduação. No entanto, a avaliação de tal natureza não pode ter seu foco na quantidade do que se produz. Há que se indagar, também, sobre a que tem servido a divulgação de dados da avaliação que aglutina os programas existentes em realidades distintas e com características específicas. Os resultados da avaliação têm estimulado a busca da produção com qualidade, com impacto e inserção social? Ou está a serviço do acirramento da competição entre programas, pesquisadores e professores? A respeito do modelo de avaliação da pós-graduação brasileira, Severino argumenta que ele: (...) pauta-se mais nos produtos do que nos processos da pós-graduação, ou seja, não é capaz de identificar expressão de qualidade na vida acadêmica e científica de um Programa a não ser mediante um balanço positivo de resultados imediatamente palpáveis, como se um Programa que não tiver, todo tempo, um acervo de produtos para apresentar necessariamente não seja um programa qualificado, sério e competente. (2011, p. 66)
Qualquer modelo que não dê ao processo o mesmo peso que aquele atribuído ao produto não encontra respaldo em Paulo Freire. 88
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Política de avaliação da pós-graduação: um balanço crítico
Os processos precisam ser ricos, prazerosos e libertadores – ideais que estão longe dos critérios de avaliação do Estado brasileiro. A crítica à ênfase da avaliação da pós-graduação, centrada no produto, não torna inválida a necessidade de avaliar e acompanhar as ações desenvolvidas nos seus cursos. No entanto, é preciso buscar o equilíbrio entre as dimensões quantitativas e qualitativas, que fazem parte da totalidade que se constitui a avaliação. Para isso, exige-se dos que estão imersos no âmbito dos cursos stricto sensu constante reflexão crítica sobre os objetivos que se espera da pesquisa e do trabalho que realizam e o que têm levado a cabo. Estrutura opressora na pós-graduação brasileira Num primeiro momento, talvez a relação estabelecida entre a pós-graduação brasileira e uma possível estrutura opressora possa causar estranheza, sobretudo, porque é consenso a necessidade e importância do processo avaliativo. Sobre essa necessidade aqui não se discute e se reafirma. No entanto, ao ser evidenciada a ênfase na quantidade do que se produz, via artigos publicados, teses e dissertações defendidas, cada vez num prazo menor, e os impactos dessa situação na relação entre os pares e entre os orientadores e seus orientandos, entre os que publicam mais e os que publicam menos, nos dá elementos para analisarmos a situação via a constituição de uma estrutura opressora, que tem colocado obstáculos no caminho da humanização do homo sapiens. Na Pedagogia do Oprimido, Freire (1981, p. 30) aponta que: “a desumanização, que não se verifica, apenas, nos que têm sua humanidade roubada, mas também, ainda da vocação do SER MAIS.” As relações estabelecidas na pós-graduação, muitas vezes, são pautadas pela busca do SER MAIS: ser mais produtivo, mais citado, mais lido, mais convidado para palestras, ser o primeiro na lista de classificação para recebimento de bolsa, entre outros. É o rankeamento desumanizante. A produção do SER que deseja cada vez ser MAIS é submetida ao crivo da avaliação dos pares que julgam e decidem se o produto pode ser publicado ou não. Como quantidade de publicação é poder, a distribuição desse poder, ao segregar os que avaliam e os que são avaliados, institui elementos constitutivos da estrutura opressora existente na pós-graduação e em todas as instâncias em que as práRenata Cabrera
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ticas avaliativas têm estado mais a serviço da competição do que do diagnóstico e da formação humana. Os que hoje avaliam são amanhã avaliados e muitos, mesmo que no presente se queixam dos critérios nem sempre tão explícitos, da censura e da patrulha ideológica expressa no autoritarismo e na recusa, no dia de amanhã, na condição de avaliadores, repetem o mesmo comportamento do qual antes se queixavam. Ao discutir a relação entre opressores e oprimidos, Paulo Freire nos deixa uma lição importante, uma síntese máxima da Pedagogia do Oprimido, que é a importância que tem “matarmos” no oprimido a vontade que ele tem de ser opressor. Como diz o autor (1981, p. 148): (...) se são levadas ao processo de seres ambíguos, metade elas mesmas, metade o opressor “hospedado” nelas, e se chegam ao poder vivendo esta ambigüidade, que a situação de opressão lhes impõe, terão, a nosso ver, simplesmente a impressão de que chegaram ao poder. A sua dualidade existencial pode, inclusive, proporcionar o surgimento de um clima sectário – ou ajudá-lo – que conduz facilmente à constituição de “burocracias” que corroem a revolução.
Se a história é produto da construção do homem, que ao produzirem a sua existência produzem os conhecimentos advindos da transformação que realizam no mundo por meio da sua atividade, essa produção não pode ser restrita a uma parcela da sociedade e, nem tampouco, ser submetida a burocracias que a impeçam de vir a público. Assim, há que se questionar: por que a necessidade de filtros cada vez mais rígidos e seletivos para o conhecimento que deve ser “publicizado”? Por que será que temos um número bem reduzido de revistas que não comportam a grande maioria das pesquisas desenvolvidas nos cursos stricto sensu? Certamente isso não se deve à falta de qualidade do que se produz, nem tampouco à ausência de pesquisadores que poderiam se envolver nos editoriais de mais periódicos. Por que, então, o “controle” no número de revistas? Não estaria essa lógica a serviço da concentração do poder nas mãos dos que decidem o que pode ser publicado? A estrutura na qual essas relações se desenvolvem não tem sua marca calcada na opressão? O que fazer? Freire (1981, p. 148) nos diz que: (...) impõe-se, pelo contrário, a dialogicidade entre liderança revolucionária e as massas oprimidas, para que em todo processo de busca de sua libertação, reconheçam na revolução o caminho da superação verdadeira da contradição em que se encontram, como um dos polos da situação concreta da opressão.
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Política de avaliação da pós-graduação: um balanço crítico
No processo de libertação do homem, para a vivência da sua plenitude humana, há que se ter criticidade perante o mundo e as atitudes em relação a ele – elemento ausente no perfil dos grandes produtores sob a ótica da Capes, que dominam as suas questiúnculas, porém, ignoram as condições reais de existência humana. Conhecem profundamente a ferrugem asiática da soja ou a mosca do chifre do gado; porém, ignoram totalmente as condições de existência e de trabalho dos homens na agricultura. Freire (idem, p. 152-153) argumenta que: (...) críticos seremos, verdadeiros, se vivermos a plenitude da práxis. Isto é, se nossa ação involucra uma crítica reflexão que, organizando cada vez o pensar, nos leva a superar um conhecimento estritamente ingênuo da realidade. Este precisa alcançar um nível superior, com que os homens cheguem à razão da realidade.
No que se refere à avaliação da pós-graduação não se trata de negá-la, mas de resignificá-la constantemente de modo que ela esteja a serviço da qualidade de vida não só dos que estão no âmbito da produção do conhecimento, mas, também, e, sobretudo, na melhoria de vida dos milhares de cidadãos que não tiveram a mesma chance de adentrar ao universo do mundo letrado, no qual se inicia um estágio do poder que o conhecimento do saber sistematizado nos traz. Referências BRASIL. CAPES. Plano Nacional de Pós-Graduação 2011-2020. Brasília, dez./2010. Disponível em: <http://www.capes.gov.br/ sobre-a-capes/plano-nacional-de-pos-graduacao/pnpg-2011-2020>. Acessado em: 01/2011. ––––––. Plano Nacional de Pós-Graduação 2005-2010. Brasília, dez./2004. Disponível em: <http://www.capes.gov.br/images/ stories/download/editais/PNPG_2005_2010.pdf>. Acessado em: 01/2011. GATTI, B; ANDRÉ, M; FÁVERO, O; CANDAU, V. O modelo de avaliação da Capes. Revista Brasileira de Educação (RBE) – Anped. n. 22, 2003. FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 10. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. SEVERINO, A. J. A avaliação no PNPG 2005-2010 e a política de pósgraduação no Brasil. In: FERREIRA, N. S. C. (org). Políticas públicas e gestão da educação: polêmicas, fundamentos e análises. 2. ed. Brasília: Liber Livro, 2011. Renata Cabrera
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Autor Flávio Paiva
Jornalista e escritor, autor de dezenas de livros dentre os quais: Os cinco elementos da gestão compartilhada (2001), Como braços de equilibristas (2001), Mobilização social no Ceará (2002), Anel de barbante – ensaios de cultura e cidadania (2005), Eu era assim – Infância, Cultura e Consumismo (2009). Tem participado também de coletâneas, a exemplo de Rumos Brasil da Música: pensamentos e reflexões (2006), ONGs no Brasil – perfil de um mundo em mudança (2003) e Guia Cultural Brasileiro (2010). Nas três últimas décadas, integrou-se a ações culturais e de cidadania em várias ONGs.
Willame Parente Mazza
Auditor fiscal da Fazenda Estadual do Piauí, doutorando em Direito pela Unisinos/RS, mestre em Direito com ênfase em Tributário pela Universidade Católica de Brasília (UCB), especialização em Direito Tributário e Fiscal, em Direito Público e em Controle interno e externo na Administração Pública. Professor universitário e em cursos preparatórios para concursos.
O papel político das ONGs Flávio Paiva
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travessamos um tempo em que ainda predomina o senso de dominação e subordinação como sustentáculo da nossa razão política. A sociedade civil brasileira tem amadurecido bastante, mas não o suficiente para conseguir colocar na agenda nacional as afirmações da sua diversidade singular. Nesse processo de evolução merece destaque o papel político desempenhado pelas ONGs – organizações não governamentais – cujo motivo de existir produz naturalmente situações de constantes embates na dinâmica social e suas diferentes circunstâncias históricas. A concentração excessiva de poder e de riqueza prevalecente no Brasil causa um inconveniente embaraço cultural e social aos avanços em favor do equilíbrio democrático. Diante dessa conjuntura, qualquer movimentação que represente a possibilidade de alternativas sinalizadoras da diminuição de privilégios passa a ser alvo de uma congênita decomposição progressiva. As ONGs têm se defrontado com o agravamento desse problema à medida que ganha corpo uma ampla campanha de alteração da sua imagem. Na frente de batalha, a infantaria dos órgãos oficiais e da iniciativa privada avançou diluindo o significado da expressão ONG ao chamar, desta mesma forma, um sem-número de organizações com semelhança jurídica, mas imbuídas dos mais variados propósitos. Essa sabotagem sistêmica para desvirtuar junto à opinião pública o sentido político das ONGs chegou a um ponto que muitas dessas organizações foram contaminadas com a ideia de que estavam em crise de identidade. E muitas estão. Nesse sentido torna-se mais e mais urgente a intensificação do debate com a finalidade de contribuir para 95
Terceiro Setor
a elucidação do entrave que tem abalado o perfil das organizações não governamentais. Clarear os parâmetros que distinguem as ONGs, como organizações apartidárias, mas absolutamente movidas por consciência crítica e política, é um exercício indispensável a quem quer que acredite na força da democracia participativa e, consequentemente, um assunto de interesse profundo da sociedade civil. A diferença entre as ONGs, no sentido político da expressão, e as demais associações sem fins lucrativos, mesmo que consideradas oficialmente de utilidade pública, está no efeito da sua ação e não na verborragia das respectivas missões e objetivos. Não é difícil observar se tais ações são transformadoras e direcionadas para o longo prazo ou se concorrem como paliativo para acalmar os pobres, conformá-los e fazê-los compreender as razões divinas, comerciais e naturais das desigualdades. No Brasil, as ONGs desempenham um papel fundamental na melhoria do padrão político da sociedade civil, por atuarem diretamente na reforma da base do alicerce cultural que suporta as instituições ainda duramente vulneráveis ao poder do Estado patriarca e do mercado padrasto, tradicionalmente coniventes entre si. A ação inclusiva das ONGs soma-se aos impulsos dos movimentos sociais no intuito de assegurar que os interesses da população partam de processos locais e da sociedade civil para uma relação integrada com as suas instituições públicas e privadas, configuradas nas esferas do Estado e do mercado. Pela capacidade da sociedade organizada de perceber o que quer, de interferir na formulação de políticas públicas e na lógica do comportamento comercial, se mede o potencial de construção da sustentabilidade de um país. E para isso, dentro da realidade de superabundância e insuficiência brasileira, é fundamental que as ONGs não percam a direção do trabalho de instigação da mudança cultural e de transformação das práticas políticas e econômicas dando solidez e sentido de destino à nação e sua integração continental e planetária. Apesar de pagar impostos, votar, produzir e comprar, para manter o poder público, como organismo regulador do benefício coletivo, e a feira, como espaço de vitalização da vida econômica, a sociedade é, via de regra, tratada por ambos como uma instância de inutilidades. O senso comum sobrevive aprisionado a essa regra dramática da existência simbólica. Os agentes do Estado e do mercado no Brasil fazem as vezes de duas macrocorporações, com desigualdades e discriminações internas, mas, como em qualquer conjunto de proveito corporativo, quando se sentem ameaçados de perder privilégios, agem em bloco para evitar o decréscimo de vantagens. 96
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O papel político das ONGs
Por desenvolverem ações que no longo prazo tenderiam a criar defesas culturais orgânicas contra esse tipo de prática aristocrática fora de tempo, as ONGs são indesejáveis. A intervenção das organizações não governamentais no processo de preparação do Brasil para ser um país decente e bem-afortunado tem sido fundamental porque contribui para o restabelecimento do sentimento de comunidade, como possibilidade de um mundo a ser alcançado com mobilização e organização social. Quando tudo parecia nebuloso, as janelas da cidadania estavam fechadas e o ambiente coletivo abafado, as ONGs ensejaram sensações de aconchego nos mais distantes lugares do país. A consciência comunitária gera segurança e, por consequência, indivíduos mais afoitos a lutarem pelo que acreditam e a superar a busca da salvação individual para os problemas compartilhados. Com todo o mérito resultante de uma atuação em forma de mecanismo de impulsão à vida civil, política, social, cultural, econômica e na relação com o meio ambiente, nas mais recônditas comunidades brasileiras, as ONGs ainda não foram entendidas pela população a ponto de serem amplamente consideradas como parte do patrimônio da cidadania. Para a opinião pública talvez não passem de entidades incidentais que não pertencem ao governo, por não serem oficiais, nem ao mercado clássico, por não visarem lucro, sem grandes interpretações do que isso realmente possa significar. Foi nesse ponto, relativo a aspectos burocráticos, que os agentes do mercado e do Estado verificaram que poderiam investir para a desconstrução das ONGs, enquanto sociedade civil organizada, e estabelecerem uma relação de utilização do seu conhecimento, como um mal necessário. No período em que as forças armadas assumiram o poder político no Brasil (1964-1984), mesmo entre trancos e barrancos, Estado e mercado acomodaram interesses enquanto macrocorporações. Em ambos os lados, porém, muitos cidadãos perderam seus direitos civis, foram torturados e escorraçados, sofrendo toda sorte de crueldade. Entretanto, enquanto instância de poder genuíno da coletividade, a sociedade civil organizada foi terminantemente segregada. Essa apartação, somada ao golpe militar e a tudo o que ele representa, derivou com o passar dos anos em uma íntima aversão ao regime ditatorial e no ressurgimento dos movimentos sociais. Foi neste cenário que nasceram as ONGs. A expressão organização não governamental tinha nesse sentido a intenção de estabelecer um outro parâmetro para a sociedade. Ou seja, de que era possível constituir um poder público que não se assemelhava com o que comandava o país de maneira fechada. Era a sociedade civil se preparando para assumir o seu poder de categoria Flávio Paiva
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política, de ator mobilizador e realizador no processo de redemocratização do país. Tanto que muitos dos fundadores de ONGs foram os anistiados que retornaram ao Brasil no final dos anos 70. O exemplo mais notório é o caso do querido e lendário sociólogo Betinho (Herbert de Souza) que, ao lado da companheira Maria Nakano e outros intelectuais comprometidos com a democracia, iniciaram, desde o exílio, a fundação do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, Ibase, no Rio de Janeiro, formalizado em 1981 como organização política da sociedade civil. Naquele momento, mesmo havendo a preocupação de se distinguir da empresa privada com fins lucrativos, a marca das ONGs era uma referência explícita ao não governo e trazia um certo espírito da clandestinidade. Na maioria dos estados brasileiros, além dos cidadãos e cidadãs que retornaram do exílio, ex-militantes das entidades de juventude católica, remanescentes do movimento estudantil, profissionais liberais, empresários progressistas, lideranças dos partidos políticos alijados e dos movimentos populares e sociais também se mobilizaram para fundar entidades de assessoramento à sociedade civil na luta pela redemocratização brasileira. Com a legitimação do trabalho realizado, o que inicialmente era uma tendência política de participação migrou para a consolidação das ONGs. A promoção dessa mudança foi sedimentada com base no compromisso assumido por entidades que construíram confiança pela maneira digna com que fizeram do propósito ações concretas. A expressão ONG foi, assim, aquilatada pela ação de um grupo de organizações da sociedade civil caracterizadas pela ousadia de ter entre os seus objetivos a luta pela emancipação social e política, calcada no apoio efetivo aos movimentos sociais e populares, no empenho em favor da democracia participativa e na busca por alternativas solidárias de desenvolvimento. Com o declínio da ditadura militar no Brasil esses atores passaram a vivenciar seus compromissos no plano da formação de uma cultura de valorização do sujeito e da expansão dos direitos humanos e sociais, através de proposições de alternativas políticas, econômicas, sociais, culturais e ambientais. Da mesma maneira que é comum existirem reações de grupos folclóricos em relação às companhias artísticas que os representam, sob a alegação de que tais organizações tendem a ofuscar a imagem dos brincantes tradicionais, as ONGs sofreram algumas incompreensões dos movimentos sociais, porém conseguiram se firmar. É que elas representavam pontos de vista e ações da sociedade civil que, de certo modo, eram confundidos com os movimentos sociais, com os quais se somavam “como organizações de apoio, de assessoria, de 98
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formação política, de prestação de serviços para os movimentos populares”, conforme definição do sociólogo Juarez de Paula. Essa sinergia entre ONGs e movimentos sociais favoreceu a visibilidade de vários temas que passaram a merecer a atenção da opinião pública, constituindo-se na base de uma nova agenda política construída a partir da sociedade civil (...) a dívida externa, a reforma agrária, a agricultura alternativa, o direito de moradia, os direitos da mulher, a discriminação racial, a violência urbana, a defesa das populações indígenas, entre outros. Estes foram os temas que, na maioria dos casos, foram assumidos como objeto de trabalho das ONGs, associados a novos movimentos sociais em processo de construção (...). Novos temas foram incorporados na década de 90: meio ambiente, desenvolvimento sustentável, desenvolvimento local, prevenção da Aids e doenças sexualmente transmissíveis – DST, segurança alimentar, direitos da criança, direitos do consumidor, políticas públicas, entre outros (...). No aspecto político, as ONGs têm abandonado a postura de agentes construtores da democracia social, entendida como capacidade de autonomia e autogestão da sociedade civil, inclusive como reguladora do Estado e do mercado.
A guerra fria, evidenciada pelas tensões causadas na disputa pela hegemonia mundial, existente entre EUA e a então URSS, teve influência positiva na consolidação das organizações não governamentais brasileiras. Na tentativa de retardar os efeitos diplomáticos, ideológicos e econômicos das duas superpotências, vários países europeus ampliaram suas contribuições a essas articulações de cidadania. O papel instigador assumido pela igreja progressista ganhou reforço financeiro das agências de cooperação internacional não oficiais e, com isso, as organizações não governamentais ampliaram sua força participativa. A parceria internacional é política, econômica e cultural. Muitas agências de cooperação internacionais não governamentais estão retirando o apoio às ONGs brasileiras sob a alegação de que o Brasil é um país rico e que o maior problema dos brasileiros é o elevado índice de concentração de riqueza. Esta é uma verdade que aumenta a importância da ação transformadora com a participação das ONGs. Essa compreensão sugere que se traga à memória o significado real dessas organizações para que, fortalecidas, interajam com o Estado e o mercado pelos olhos da sociedade civil e não a título de simples terceirizadas. As ONGs tiveram, portanto, seu papel no desmonte da ditadura, com apoio da igreja progressista que dava uma espécie de chancela ou passaporte para os financiamentos internacionais dos fundos cristãos. Tanto que na disputa pela hegemonia internacional receberam apoio financeiro e político de muitos países da social-democracia europeia que viam nas ONGs pequenos focos de resistência contraFlávio Paiva
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-hegemônico à ocupação estadunidense no Brasil. Com o início do processo democrático, a sociedade continuou se organizando em ONGs. Tinha nascido um modelo de comprovada eficiência para o fortalecimento da sociedade civil organizada, capaz de continuar influindo na preparação do país para o futuro. Em que pese o fato do restabelecimento da ordem democrática no Brasil ter contado com a participação ativa das organizações não governamentais, ironicamente elas começaram a entrar em crise de sustentação financeira. As ONGs identificaram sutilezas da gente brasileira e trabalharam com o seu espírito participativo, obtendo resultados sociais surpreendentes. Mas não alardearam o feito. Os governos brasileiros, nos últimos vinte anos, criaram projetos, envoltos num intenso apelo de propaganda, como instrumento para o combate à pobreza e a exclusão social, mediante a promoção de parcerias entre Estado e sociedade. Por terem desenvolvido uma tecnologia de relacionamentos comunitários destacada pelo diálogo, mobilização e credibilidade, com custo bastante inferior aos praticados pelos programas oficiais, além de atuarem em todo o território nacional, as ONGs passaram a ser vistas como potenciais tarefeiras da nova estratégia. Os consultores de empresas, por sua vez, descobriram as ONGs e embarcaram no filão da Responsabilidade Social com os coletes salva-vidas do vale tudo da filantropia e do assistencialismo. Estado e mercado se aproximaram das ONGs para a realização de parcerias, partindo da premissa de que elas deveriam passar a olhar o mundo pelas lentes dos seus binóculos. As menos convictas deixaram de lado as demandas oriundas da sociedade para atender as necessidades dos novos clientes e seus “recursos carimbados”. Houve as que mesclaram interesses e encontraram pontos de convergência. Outras resolveram testar a resistência à exaustão. Depois que as ONGs ultrapassaram os limites dos movimentos sociais houve uma verdadeira inflação conceitual. A sinalização de que haveria dinheiro para empreendedorismos sociais e ambientais terceirizados, na perspectiva da geração de trabalho e renda, gerou uma proliferação de organizações não governamentais, com as mais variadas bandeiras, reduzindo a concentração do teor dos princípios instituidores desse modelo de ação da sociedade civil. A convicção cedeu lugar à conveniência e a retórica da inclusão social ganhou unanimidade. Em termos de foco, pode-se dizer que essa concordância generalizada é desejável, embora no que diz respeito à transformação concreta da situação de desigualdade social tudo isso mais pareça com uma recomposição de comando do Estado e do mercado na condução da sociedade. 100
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Tem sido cada vez mais crescente o número de empresas que apelam para as ditas vantagens filantrópicas, na tentativa de serem percebidas como organizações com responsabilidade social. Destituídas, muitas vezes, de um maior aprofundamento da onda em que estão metidas muitas dessas organizações acabam confundindo situações emergenciais com regularidade desejada, contribuindo para que a exceção vire regra. O uso derrisório das ferramentas de marketing, com o intuito de beneficiar imagens corporativas e de conquistar a simpatia da população com base no infortúnio da grande massa de excluídos, é uma prática temerária e condenável. Sem dúvida que muitas das campanhas ditas de “solidariedade” agregam sedativos evanescentes em focos sociais marginalizados, embora a prova dos nove do imediatismo resulte na sofisticação da dependência. Traídas pela carência, as pessoas acabam esquecendo que solidariedade pressupõe uma ligação recíproca com autonomia das partes. Em períodos de necessidade extrema, fica difícil pensar se o “bom samaritano” não é, na verdade, um cleptomaníaco lavando dinheiro em ação de graças. Marketing quer dizer troca, portanto, ao ser utilizado com vista a retorno, mesmo institucional, em cima da pobreza, é uma farsa técnica e ética que rompe com as regras mais elementares da polidez humana e empurra mais e mais os excluídos à condição de pedintes, aviltando reservas sociais de indignação. A caridade sempre foi praticada por razões compensatórias de remorsos dolosos e culposos, embora sirva de meio salutar aos que intuitivamente elevam o espírito fazendo pequenas diferenças. Ela está na gênese do assistencialismo. Sobre a sua evocação, pouca chance há para a construção da cidadania. Ajudar é o verbo mágico da submissão atávica. Não existe nada de novo na prática de benesse filantrópica e assistencialista. Que o digam os clubes de serviços, a maçonaria e as primeiras-damas. A mobilização da sociedade para a superação das condições emergenciais presas ao plano escorregadio do subdesenvolvimento crônico precisa ser estimulada fora do âmbito da esmola. Ao invés de ficarem com pirotecnias evasivas, para causar boa impressão com a miséria dos outros, os promotores dessas empreitadas poderiam ganhar bem mais, no plano do equilíbrio coletivo, pagando impostos, cumprindo com as suas obrigações de respeitar a qualidade de vida, dando impulso à empregabilidade e melhorando as condições de renda da população. A Constitutição Federal, de 1988, tenta romper com a acepção de necessitado, contida no conceito de assistência social, alterando-a para seguridade. A ideia é boa e sinaliza para a universalização dos direitos sociais, porém não consegue nem ser absorvida nem enconFlávio Paiva
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trar repercussão transformadora. O acesso à educação, saúde, terra, moradia, transporte, alimentação, lazer, entretenimento, bens culturais e informação de qualidade ainda é visto como um perigo bem maior do que o estopim que se mantém aceso para a crescente marginalidade explosiva. Existem inúmeros questionamentos que podem e devem ser feitos com relação aos critérios e usos de recursos públicos retidos de tributos com aplicação facultada ao mercado. Entretanto, ninguém pode deixar de reconhecer que ele só existe porque existe uma empresa que é produtiva, gera lucro e imposto devido. A falta de discussão sobre esse assunto tem sido um dos maiores problemas na aplicação da Lei de Incentivo ao esporte, à cultura, à educação e a projetos sociais. No ato de convencimento do patrocínio, o proponente muitas vezes alega que o dinheiro a ser repassado “não é mais da empresa” e o responsável pela liberação do recurso normalmente raciocina do mesmo jeito. O resultado desse encontro de ignorâncias é que o recurso público salta ao vento. Caso tão grave quanto é o da doação do excedente da sonegação, garantindo a sujeição forçada pela privação e segurando as rédeas do controle da criatividade e da capacidade de produzir das pessoas. Mas esse negócio de, por um lado oculto, ser responsável pela fomentação da miséria e, por outro, aparecer com riso de manequim em coloridas peças de publicidade e em fastidiosa propaganda de pura necrofagia social. A sustentação do Estado de bem-estar passou a depender de novas alianças e a produzir a necessidade de uma gestão compartilhada entre os poderes públicos, a iniciativa privada e a sociedade civil. Para discutir soluções efetivas de desconcentração de renda e de equalização de poder não são tantos os interessados, mas para dizer que precisam socializar os problemas sociais com as cidadãs e os cidadãos brasileiros o Estado e o mercado aparecem incontáveis atores com desenvoltura e eloquência. O que ou em que o dinheiro enviado tem alterado a vida das pessoas nas regiões de atuação das ONGs é uma indagação difícil de responder, mas existe e quer respostas. Atribuir mudanças a um determinado conjunto de ações é sempre um risco. Sabe-se que a intensidade da participação tem sido um dos pontos considerados importantes pelas agências bi e multilaterais, entretanto a avaliação da qualidade da participação é particularmente problemática. Todas essas ocorrências influenciaram para que as organizações não governamentais de consistência política seguissem meio à deriva 102
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e muitas deixassem de existir ou reduzissem significativamente suas áreas de atuação. Apesar do funcionamento da Associação Brasileira de ONGs (Abong), desde o início dos anos 90, a indefinição do que é ou não uma ONG acabou se tornando mais importante do que a discussão do papel político dessas organizações. A tentação cartesiana da burocratização é sempre mais forte do que a conceituação como efeito das ações. O que é ou não uma ONG é o resultado do que fazem as ONGs, não há como ser diferente. Se o Brasil ficou cheio de organizações da sociedade civil sem fins lucrativos, muitas delas criadas por oportunistas de plantão, não é uma carta de princípios que vai convencer às pessoas o que é joio e o que é trigo. As ONGs brasileiras precisam azeitar a ligação com as organizações afins existentes nos países latinoamericanos, mas necessitam simultaneamente acelerar a aproximação interna e não deixar de manter estreita aproximação com as agências de estudos e de financiamentos com as quais mantêm relações de cooperação. Para conseguirem manter a imagem que construíram com suor, risco, coragem, determinação e resultados concretos, não há mais como deixar de divulgar os efeitos das suas ações. Se as pessoas tivessem acesso a pelo menos uma parte do tanto que as ONGs têm feito pelo país, estaria resolvido o problema da crise de identidade e a opinião pública passaria a ser um escudo especial em defesa dessas organizações. Sem dúvida que as ONGs brasileiras tendem a ampliar a interação com o Estado e com o mercado sem serem cooptadas. O Brasil tem muitas experiências de gestão compartilhada do interesse comum e coletivo. E não existe gestão compartilhada sem a autonomia dos seus agentes de desenvolvimento. A clareza e a eficiência do novo papel político das ONGs passa pela compreensão do público e do privado. As ONGs cumpriram um papel de especial importância para a redemocratização brasileira, mas para continuarem influindo no aperfeiçoamento sociopolítico e cultural do país, bem como participando de uma política contra-hegemônica, precisam ajustar melhor os padrões éticos que diferenciam as suas ações e dar visibilidade a eles. O cumprimento desse desafio transformador carece, portanto, de equalização pública no entendimento da missão das ONGs entre si, na relação com os poderes públicos e com a própria sociedade civil, de modo que possam manter o nível de confiança e de competência mobilizadora alcançado pelo trabalho daquelas que se arriscaram a ser pioneiras quando o país ainda se encontrava submetido à ditadura militar. E, evidentemente, de todas as que vieram depois impregnadas de vontade de interferir na produção de diferenças redutoras das desigualdades. Flávio Paiva
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A bem da verdade, só existem duas situações de dificuldade real no âmbito das ONGs e nenhuma é essencialmente de identidade: existe uma complicação financeira, ocasionada pelos efeitos do realinhamento geopolítico mundial, e um ponto crítico proporcionado pela falta de clareza dos padrões éticos fundadores dessas organizações da sociedade civil. Ambas têm corroborado significativamente para a existência de uma grande crise na pulsão de vida das ONGs, que é a competição sem parâmetros. Este sim é um grande problema multiplicador de desconfiança, inibidor da cooperação e do companheirismo civil, condições indispensáveis para a formação da teia do grande sonho de participação da construção de um país justo, próspero e de gente feliz. Dentro da sua função política, as ONGs devem continuar trabalhando para o restabelecimento do sentimento de comunidade, através da influência na sedimentação de uma cultura política que fortaleça a sociedade civil, a fim de que seja estabelecido o equilíbrio de poder e força na relação com o Estado e o mercado. Para isso acontecer, a sociedade civil organizada precisa se posicionar como categoria política, com autonomia e instrumentos mobilizadores. Já foram muitos os avanços nessa trajetória de conquistas e não há razão para capitular na hora do salto democrático experimentado pelo Brasil no início deste século, um país que é um mercado comum, com uma só língua e uma expressiva população futurista no brio da sua miscigenação.
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Terceiro Setor e a desoneração tributária no direito comparado Willame Parente Mazza
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erceiro Setor é o conjunto de organizações ou instituições sem fins lucrativos dotados de autonomia e administração própria, que tem como função atuar voluntariamente junto à sociedade civil visando ao seu aperfeiçoamento.1 O termo teve sua primeira utilização por pesquisadores, nos Estados Unidos, nos anos 1970. Esse termo, segundo Simone de Castro Tavares Coelho, expressa “uma alternativa para as desvantagens tanto do mercado, associadas à maximização do lucro, quanto do governo, com sua burocracia inoperante. Combina a flexibilidade e a eficiência do mercado com a equidade e a previsibilidade da burocracia pública”.2 O Terceiro Setor nos Estados Unidos foi o que mais se desenvolveu, nos últimos anos, servindo como parâmetro mundial de comparação, motivado por uma cultura política voltada para o associativismo e o voluntarismo.3 Esse associativismo e voluntarismo se desenvolveram nos Estados Unidos por influência da religião e do aumento de associações científicas e literárias.4 Segundo Tocqueville,5 o associativismo é uma prática importante na sociedade americana, fundamental na formação do Estado, de tal forma que os americanos resolvem vários problemas do Estado sem esperar pelo governo, como fazem várias outras sociedades. Insta salientar que, nos Estados Unidos, essas organizações têm um campo mais propício para sua formação e funcionamento, devido a um modelo com uma estrutura jurídica permissiva, incentivadas PAES, José Eduardo Sabo. Fundações, associações e entidades de interesse social: aspectos jurídicos, administrativos, contábeis, trabalhistas e tributários. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 134. 2 COELHO, Simone de Castro Tavares. Terceiro setor: um estudo comparativo entre o Brasil e Estados Unidos. 3. ed. São Paulo: Senac, 2000. p. 58. 3 Ibid., p. 21. 4 Ibid., p. 33. 5 TOCQUEVILLE apud COELHO, S. C. T. p. 33. 1
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por leis com benefícios fiscais que criam mecanismos legislativos de captação e estímulo de doações, como a possibilidade de dedução de tais valores no Imposto de Renda.6 Dessa forma, os americanos são incentivados a contribuir com doações que, anualmente, chegam a 300 bilhões de dólares (ou 2% do PIB do país). Se comparado ao Brasil, pode-se verificar que as doações brasileiras somaram, por exemplo, em 2007, cerca de 10 bilhões de reais, ou melhor, 0,3% do PIB, índice inferior à média da América Latina e do mundo, já que em países como Argentina e Inglaterra, esses percentuais representam 1,09% e 0,84% respectivamente.7 Isso se dá devido aos estímulos do governo americano às doações concedidas pela Lei 501(c), seção 3, na qual é oferecida uma dedução no limite de 50% da renda bruta do doador, do imposto de renda das pessoas físicas, nas doações feitas a entidades públicas de caridade. No caso de doações feitas por pessoas jurídicas, a dedução no imposto de renda é limitada a 10% do lucro bruto tributável. No entanto, para que essas organizações americanas tenham esses incentivos, devem ser certificadas, assim como ocorre no Brasil,8 como entidades que atendem às necessidades coletivas. No caso americano, passam a ser consideradas public charities, que têm uma ampla finalidade social, como, por exemplo, a promoção da assistência social, fomento à educação e à pesquisa científica, o incentivo às competições nacionais e internacionais de esporte amador, a assistência religiosa e o combate à violência contra animais e menores. No entanto, elas têm suas proibições, previstas na lei 501(c), que traz hipóteses de desqualificação da entidade; entre elas, tem-se: proibição de aplicação de seus recursos em atividades estranhas à sua finalidade social, proibição de distribuição de parcela de seu patrimônio ou renda sob qualquer pretexto, vedação na condução ou participação em campanhas políticas.9
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GONÇALVES, Valério Pedroso. A concessão de incentivos fiscais como estímulo à transferência de recursos privados ao Terceiro Setor. 142p. Dissertação (mestrado em Direito). Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2010, p. 105-106. ELSTRODT, Heinz-Peter. A eficácia dos investimentos sociais no Brasil: um estudo sobre as atuais barreiras e possíveis ações para aumentar o volume e melhorar a efetividade dos investimentos sociais ao Brasil. 2008. Disponível em: <http://www.mckinsey.com/App_Media/Images/Page_Images/Offices/SocialSector/PDF/Relatorio_Filantropia.pdf>. Acessado em: 15/03/2011. No caso do Brasil, essas organizações recebem um certificado de utilidade pública nas diversas instâncias governamentais. GONÇALVES, V. P. op. cit., 2010, p. 107.
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Terceiro Setor e a desoneração tributária no direito comparado
Nos Estados Unidos, a legislação americana que concede os benefícios fiscais passou por várias evoluções desde 1894, quando, pela primeira vez, foi concedida isenção fiscal. Houve, em todas as transformações legislativas, a preocupação com uma possível concorrência desleal que essas entidades poderiam causar no mercado em que atuavam. Várias restrições, proibições e requerimentos passaram a ser exigidos de algumas organizações beneficentes, o que causou uma queda nas doações.10 Com a queda das doações, o governo americano e os líderes de entidades filantrópicas, preocupados, fizeram uma avaliação da situação, concluíram que os descontos nas deduções prejudicaram profundamente o setor, e recomendaram a continuidade das deduções, já que esta é a forma mais eficaz de encorajamento às doações.11 Essas recomendações provocaram significativas mudanças no setor, favorecendo o aparecimento de leis que facilitavam e incentivavam as doações, por meio de deduções para o imposto de renda.12 Percebe-se ainda que um dos principais motivos da qualidade do Terceiro Setor americano, além dos incentivos fiscais, é o acompanhamento e a fiscalização por parte do governo americano nas atividades dessas instituições.13 Neste sentido, é realizada uma avaliação, a cada três anos, e “somente as organizações que comprovarem que, pelo menos um terço de seus recursos, é proveniente de agências governamentais, mantêm o status de utilidade pública”. Ainda assim, “juntamente com a declaração de renda anual, as organizações do Terceiro Setor devem entregar um relatório bastante detalhado de todas as suas atividades financeiras (compra e venda de imóveis, leasing, empréstimos, transferências de parte da renda ou de ativos da entidade etc.)”.14 Continua a autora que, comparado com o sistema brasileiro, o processo de fiscalização e controle no Brasil é muito mais difuso e feito de modo indevido. Esse controle, realizado nos Estados Unidos e em outros países, demonstra a preocupação com o paternalismo fiscal, a fim de evitar privilégios às entidades beneficentes assegurados pelo Estado. Assim, governos, tal como o americano, mudam sua legislação rapidamente e evitam o enriquecimento das instituições que não prestam a finalidade que a Constituição determina. COELHO, S. C. T., op. cit., 2000, p. 86-90. Id. ibid. 12 Id. ibid. 13 COELHO, S. C. T., op. cit., 2000, p. 90. 14 Id. ibid. 10 11
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Terceiro Setor
Diante do exposto, o que se percebe é que a desoneração tributária americana se dá em nível de leis infraconstitucionais, já que não existe expressamente na sua Constituição a figura da imunidade tributária, como acontece com o Brasil. No entanto, no Direito americano, a imunidade tributária existe, mas não de forma expressa na Constituição. Acrescente-se que a evolução do princípio da imunidade tributária americana surgiu a partir das decisões da Corte Suprema, sobretudo a partir do julgado Mac Culloch contra o estado de Maryland, relatado pelo juiz John Marshall. Dessa forma, entende-se que o Direito americano sempre procurou proteger os valores que a sua Carta política escolheu, como ocorre no caso das imunidades tributárias, mesmo sem estar expressamente consignados em seu texto. Essas três fases demonstram que “as Constituições são instrumentos para viver e não teses doutrinárias”, por isso, é possível que a Corte à qual se defere a sua guarda possa adequar, sempre, a Constituição jurídica, escrita ou formal, à Constituição real, tal como o fazem a Suprema Corte norte-americana, o Tribunal Constitucional Federal da República Federativa da Alemanha, e vem fazendo o nosso egrégio Supremo Tribunal Federal, especialmente, na construção do conteúdo semântico do signo “imunidade tributária”, à semelhança de como, sempre, procedeu a sua coirmã norte-americana, tanto para modificar os elementos dessa categoria jurídica, como para ajustá-los, sempre em decorrência de uma nova realidade, nisso consistindo a pragmática da comunicação normativa em matéria de “imunidade tributária”. No que diz respeito à imunidade e sua interpretação no Direito americano, leciona Ricardo Lobo Torres: Nos Estados Unidos, a sua afirmação surgiu na via da interpretação, pois a Constituição silenciava a seu respeito; posteriormente o positivismo, no afã de alargar as garantias da liberdade individual e de consolidar o federalismo, deu interpretação ampla às imunidades, especialmente às recíprocas, estendendo-se inclusive aos funcionários públicos e às agências governamentais descompromissadas com os direitos humanos. [...]
Nos Estados Unidos, a partir do New Deal, restringiu-se a interpretação das imunidades, embora tenha se ampliado o campo dos incentivos e das concessões estaduais para a garantia dos direitos econômicos e sociais; mas hoje as renúncias de receitas entraram em refluxo e a tendência é o rígido controle da despesa pública, assim na via das imunidades quanto nos gastos tributários. 108
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Terceiro Setor e a desoneração tributária no direito comparado
Ao comentar as imunidades explícitas ou implícitas, o autor assevera que as imunidades no Direito americano são implícitas na Constituição, lidas pelo trabalho casuístico da Corte Superior. Afirma ainda que, no Direito argentino, a imunidade recíproca não está escrita e que, na Constituição alemã, a imunidade também não é expressa, cabendo à jurisprudência e à doutrina buscá-la nos direitos fundamentais, o que ocorre também na Itália, Espanha e Portugal. Assim, na Alemanha, não existe o instituto da imunidade. O Código Tributário Alemão chama essa “desoneração de impostos” de “incentivos de impostos”. Na verdade, a maioria dos países, além de conceder incentivos a impostos, confere subvenções a estas instituições humanitárias. Na Itália, usa-se, assim como no Brasil, a dispensa legal de tributos também pela isenção. Segundo a Enciclopédia Garzanti del Diritto, o termo isenção significa: “a não taxação de determinados fatos geradores que, diferentemente dos casos de exclusão, situam-se no campo impositivo, mas que, no âmbito dos favorecimentos tributários, uma norma derrogatória não exige o tributo por razões de política fiscal ou de outra natureza”. Assim, em muitos países, a desoneração tributária a entidades beneficentes aparecem sob o apelido de isenção, já que eles não desenvolveram a teoria das imunidades. No entanto, o fundamento, a extensão e o significado devem ser o mesmo que prevalece entre o visto na doutrina nacional. Dessa forma, o alicerce da imunidade dessas instituições beneficentes no Direito estrangeiro, em geral, é o amparo e a assistência aos pobres. Na Alemanha, por exemplo, a doutrina e a legislação sempre utilizaram o termo que literalmente significa “liberdade diante do imposto” (Steuerfreiheit ou Stewerbefreiung), mas que comumente se aplica às isenções. Já na Itália, a intributabilidade aparece também como isenção. No Brasil, as entidades beneficentes, para terem direito aos benefícios da imunidade tributária, devem respeitar diversos requisitos: não devem ter finalidade lucrativa; não podem distribuir os lucros; devem aplicar os recursos no país; e sua imunidade envolve os impostos sobre o patrimônio, renda e serviços, entre outros requisitos. Acontece que, no Direito comparado, também se exigem requisitos para que as entidades gozem do benefício da imunidade ou isenção tributária. Assim, por exemplo, no que diz respeito a não distribuição de lucros, o art. 14, I, do Código Tributário Nacional, estabelece a vedação às entidades de distribuírem qualquer parcela de seu patrimônio ou de suas rendas, a qualquer título. Nos Estados Unidos, Willame Parente Mazza
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“pesa também sobre as entidades isentas idêntica proibição, que se estende inclusive aos fringe benefits pagos aos seus funcionários”. Já na Alemanha, o Código Tributário prevê que “os membros ou associados (membros no sentido desta norma) não podem participar nos ganhos da entidade, nem dela receber, na qualidade de membros, quaisquer vantagens”. No Direito argentino, as entidades do Terceiro Setor, associações e fundações, necessitam de autorização estatal para existir. Segundo o Código Civil argentino, é necessário, para suas constituições e funcionamentos, que tenham o bem comum como objetivo principal; que possuam patrimônio próprio e sejam capazes, por seus estatutos, de adquirir bens; que não subsistam, exclusivamente, de subvenções estatais. Esses requisitos são necessários para que as instituições beneficentes na Argentina gozem das isenções tributárias, já que, no Direito argentino, não existe a figura da imunidade tributária, em nível constitucional, como no Brasil. As isenções concedidas, por sua vez, devem ser temporárias, por dois anos. No entanto, ao se verificar falsidade nos documentos necessários ao benefício da isenção ou a falta de atendimento aos requisitos legais, ela deve ser revogada a qualquer tempo. Por fim, no Brasil, a desoneração tributária é necessária para se garantir a atuação e os objetivos dessas entidades do Terceiro Setor, consignados na Constituição Federal, assim como acontece com vários outros países em relação a suas imunidades em geral, que, embora não tenham expressamente o termo “imunidade” em suas Constituições, buscam essa desoneração na interpretação dos direitos fundamentais.
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VII. Batalha das Ideias
Autores Délio Mendes
Doutor em Ciência Política e Sociologia pela Universidade de Deusto, Espanha, e professor adjunto da Universidade Federal Rural de Pernambuco.
Marcos Sorrilha Pinheiro
Professor assistente e doutor do Departamento de História da Unesp/Franca.
Os ganhos ideológicos da direita. A morte do não nascido Délio Mendes
O
poder tudo pode e pode muito. Veja-se o passado recente em que foi morto o modo comunista de relações entre os seres humanos antes mesmo da sua existência em qualquer momento da vida social e em qualquer território do mundo em que vivemos. Ou seja, o não nascido foi morto em nome do fim de uma história que seguia apenas o seu caminho, a história das lutas de classes,1 a qual se desenrola com todas as contradições de um mundo andando de crise em crise. Todavia, se o poder pode tudo e pode realmente, o modo de produção capitalista através dos seus aparelhos ideológicos tenta, por seus meios de comunicação, eliminar um não nascido na esperança de que esta morte antecipada impeça de nascer o futuro de leite, mel, ternura e paz entre os humanos. Melhor, a busca pelo aniquilamento do comunismo tenta impedir o nascimento do futuro diferenciado, do futuro negação do passado e do presente de todos os carecimentos. O poder no capitalismo, pela via de expressão dos aparelhos ideológicos do Estado e da sociedade, aparelhos estatais e privados, não desperdiça um momento no afã de destruir e matar a ideia do comunismo, antes que a mesma possa impulsionar os oprimidos do mundo inteiro a lutar por melhores condições de vida. Aponte-se para essa prática de morte ao comunismo logo depois da queda do Muro de Berlim. Em 1993, é lançado, entre outros, no Brasil, um texto de Norberto Bobbio, um desses monstros sagrados da Ciência Política, brindando1
MARX, K.; ENGELS, F. O Manifesto Comunista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p. 33.
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-nos com essa maravilha de discurso: “É inegável, porém, que o fracasso não é apenas dos regimes comunistas, mas da revolução inspirada pela ideologia comunista – ideologia que postulava a transformação radical de uma sociedade vista como injusta e opressora em uma sociedade bem diferente, livre e justa”.2 Eis o mestre italiano ideologicamente posto, esquecendo seu passado, dobrando-se a uma forma ideológica em uma guerra midiática, que tem como finalidade tolher o caminho real para uma sociedade de leite e de mel. Esse texto de Bobbio, que tem como referência a queda do Muro de Berlim ocorrida alguns anos antes, anuncia a felicidade dos anos noventa, colocando aos ouvidos da humanidade o belo hino do FIM da HISTÓRIA, de um compositor, aliás, bem ao gosto dos ouvidos das classes dominantes. Classe dominante esta que esbraveja: “Vencemos, eles (os trabalhadores) não voltam mais de forma organizada”. E nesta “baita vitória” no mundo global, tudo são luzes e privatizaria. “Portanto, uma nova classe global vem surgindo, com, digamos, passaporte indiano, castelo na Escócia, apartamento em Manhattan e ilha particular no Caribe. O paradoxo é que os membros dessa classe global jantam privativamente, compram privativamente, veem obras privativamente, tudo é privativo, privativo, privativo”.3 Este é o mundo depois do “fim do comunismo”, da completa insensatez, dos ricos mais ricos e ainda, cada vez mais, menos preocupados com a população que sobrevive na miséria da exclusão e da marginalidade. Falsas compreensões do mundo real, haja vista, tratar-se tanto uma como a outra de variantes da face de exploração e expropriação da lógica do capital global. Vive-se o tempo pós-tragédia quase farsa de 11 de setembro, duas torres e o sentimento do mundo, abre-se a dualidade entre o bem e o mal. O peso de 11 de setembro é grande na luta ideológica contra o comunismo, desde este momento, a colocação ocidental/americana é da guerra do bem contra o mal. Este último, inclusive, expressa qualquer posição crítica aos EUA. Sentada à beira do caminho, a esquerda, inclusive os comunistas, assiste a direita passar triunfal e poderosa, aceitando a ideia de que a crise de 2008 é prenhe de imprevisibilidade e de que a mesma surgiu do nada para atingir os mercados. Existe um esquecimento proposital de Marx na Queda Tendencial da Taxa de Lucros, que está na base de uma crise, a qual, para além, agrega a tudo uma financeirização da economia, em que o capital dinheiro cresce por si mesmo, sem passar pela produção e 2
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BOBBIO, Norberto. O Reverso da utopia, in. BLACBURN, Robin (org). Depois da queda. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993, p.17. ZIZEK, Slavoj. Primeiro como tragédia, depois como farsa. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 17.
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Os ganhos ideológicos da direita. A morte do não nascido
realização de mercadorias. Existe uma crise, os prejuízos são muitos, os quais impõem sofrimento, e esses sofrimentos devem ser pagos por todos os contribuintes. Esses padecimentos deveriam ficar nas costas de quem tomou as decisões que levaram às crises. Diga-se que, por necessidade de sair da crise – sem a resolução, entretanto, da totalidade dos problemas da humanidade –, a retomada do capitalismo real sem a companhia da roleta financeira seria, nos quadros do capitalismo atual, o melhor caminho para vencer as dificuldades do modo de produção de mercadorias. Volte-se a produção de bens e serviços para atender às necessidades das pessoas, reintroduzindo a fórmula central do processo de acumulação D-M-D’. Todavia, a economia está sob o domínio do capital financeiro e o propósito, então, é aumentar a circulação financeira por ela mesma. Na crise atual, o capitalismo aumentou seu poder ideológico e persuasivo, inclusive manifestando-se no seio da sociedade como modo de produção definitivo e insuperável. Em situação de defensividade, a esquerda não promove debates, e quando o faz, lança mão de subterfúgios do tipo “construir uma sociedade democrática”, como se fosse possível construir uma democracia real em uma sociedade capitalista em que o elemento central é a exploração do homem pelo homem, acorrendo para isso à expropriação dos trabalhadores e das camadas que lhes são assemelhadas. A esquerda não coloca a construção do comunismo como saída, nem para a crise, nem para o benefício da própria humanidade. Perde-se, então, neste momento, um vasto espaço para mostrar que nunca houve, no mundo, qualquer projeto de sociedade que tivesse verdadeiramente se aproximado das ideias do socialismo, muito menos do comunismo, modo de organização social, voltado, sobretudo, para a realização do homem enquanto humano. Existe na mídia de todo o planeta uma guerra ideológica extremamente forte no sentido de negar e anular toda e qualquer discussão sobre o comunismo. “É por isso que a propaganda inimiga contra a política emancipatória radical é cínica, não no sentido simples de não acreditar em suas próprias palavras, mas num nível muito mais básico: ela é cínica exatamente na medida em que acredita de fato em suas próprias palavras, já que sua mensagem é a convicção resignada de que o mundo em que vivemos, ainda que não seja o melhor dos mundos possíveis, é o menos ruim, de modo que qualquer mudança radical só pode piorar a situação.”4 Evidentemente não se pode deixar de analisar o real apenas porque a classe dominante teme que qualquer mudança piore a situação, pois, enquanto estes se negam a reflexões 4
ZIZEK, Slavoj. Primeiro como tragédia, depois como farsa, op. cit. p. 35.
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mais profundas sobre a sociedade, as suas vidas seguem muito bem. Razão total para a expressão popular “se melhorar, estraga”. Todavia, a grande maioria do povo trabalhador e assemelhados não pensa assim, já que só há o que piorar nas suas situações socioeconômicas. Nada de melhora, só mais exploração e mais expropriação. Para falar do comunismo enquanto momento maior de realização do humano e mostrar sua superioridade em relação às outras formas de organização social até agora existentes, analise-se uma afirmação dos críticos do marxismo de que uma falha teórica de Marx, desde sempre apontada, é a inexistência em sua obra de uma teoria política acabada que trate, sobretudo, do Estado no presente e no futuro. Entretanto, deve-se ter em mente que o pensador alemão via o comunismo como fase superior da emancipação social, só atingida com o fim da Ditadura do Proletariado e da entrada dos homens em uma sociedade sem classes sociais, sem diferenças e, sobretudo, em que os seres humanos voltariam ao estado de natureza, de natureza humana. Marx sempre pensou na superação do Estado e da política da maneira como ambos estão postos. “Se a teoria do Estado em geral e do Estado capitalista em particular é tão incerto nos textos de Marx, a razão talvez seja bastante simples. No fundo, além das análises muitas vezes luminosas, Marx não tem absolutamente necessidade de uma teoria geral do Estado, visto que ele todo tende para o futuro, um futuro que ele pensa sob o ângulo do desaparecimento do Estado, de seu definhamento progressivo. O Estado é a expressão da divisão da sociedade em classes, mas esta não é eterna”.5 Esta sociedade sem classes nega o Estado e, por consequência, o tipo de política praticado no reino da burguesia. O comunismo nascido com o desaparecimento das classes não precisa de um poder separado da sociedade como o Estado, haja vista a concretização de uma sociedade que se autogoverna produzir uma natureza humanizada, que destrói a propriedade privada ao mesmo tempo em que faz o mesmo com a autoalienação. “Primeiramente, considera-se a propriedade privada só no aspecto objetivo, concebendo-se, no entanto, o trabalho como a sua essência. Consequentemente, o seu modo de existência é o capital que como tal importa extinguir (Proudhon). Ou então, a forma específica do trabalho como trabalho nivelado, subdividido e, deste modo, não livre olha-se como a fonte da nocividade da propriedade privada e da sua existência alienada em relação ao homem”.6 Deste modo, o comunismo elimina a propriedade privada, extinguindo-a, ao tempo em que transforma o trabalho não alienado, 5 6
COLLIN, Denis. Compreender Marx. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 251. MARX, Karl. Manuscritos econômicos filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 135.
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Os ganhos ideológicos da direita. A morte do não nascido
fazendo deste trabalho humanizado a primeira busca do ser humano na realização da sua natureza humana. Sem embargo, o fim do trabalho alienado destrói o homem-mercadoria. Este processo começa na ditadura do proletariado, período de transição para o comunismo, atravessando toda esta fase na qual ainda existe o Estado, agora a serviço dos trabalhadores e seus assemelhados, transformados em classe dominante. Entenda-se que não se pode reduzir este período da ditadura do proletariado (ainda difícil da vida social), há um período puro e simplesmente de alargamento da democracia. “Mas a Ditadura do Proletariado, isto é, a organização de vanguarda dos oprimidos em classe dominante para o esmagamento dos opressores, não pode limitar-se, pura e simplesmente, a um alargamento da democracia. Ao mesmo tempo em que produz uma considerável ampliação da democracia, que se torna pela primeira vez a democracia dos pobres, a do povo e não mais apenas a da gente rica, a ditadura do proletariado traz uma série de restrições à liberdade dos opressores, dos exploradores, dos capitalistas. Devemos reprimir-lhes a atividade para libertar a humanidade da escravidão assalariada, devemos quebrar a sua resistência pela força; ora, é claro que onde há esmagamento, onde há violência, não há liberdade, não há democracia”.7 Evidentemente, só na sociedade comunista há a verdadeira sociedade humana. É possível a instalação de um sistema de relações sociais livres na expressão popular e real, em que tendo destruído todos os opressores, os proletários e os seus assemelhados poderão usufruir da paz e da felicidade. “Só na sociedade comunista, quando a resistência dos capitalistas estiver perfeitamente quebrada, quando os capitalistas tiverem desaparecido e já não houver classes, isto é, quando não houver mais distinções entre os membros da sociedade, só então é que o Estado deixará de existir e se poderá falar em liberdade. Só então se tornará possível e será realizada uma democracia verdadeiramente completa e cuja regra não sofrerá exceção alguma. Só então a democracia começará a definhar-se pela simples circunstância de que, desembaraçados da escravidão capitalista, dos horrores, da selvajaria, da insânia, da ignomínia sem nome da exploração capitalista, os indivíduos se habituarão pouco a pouco a observar as regras elementares da vida social, de todos conhecidas e repetidas, desde milênios, em todos os mandamentos, a observá-las sem violência, sem constrangimento, sem subordinação, sem esse aparelho de coação que se chama Estado”.8 O Estado definha é uma ex7 8
LENIN, V. I. O Estado e a Revolução. São Paulo: Hucitec, 1979, p. 109. Op. cit. p. 110.
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pressão que cabe exatamente na argumentação de Lênin. O Estado que definha acontece enquanto são destruídos os opressores e os exploradores, dando lugar à sociedade comunista, sem classes, sem opressões ou explorações, em que o homem se realizará como homem natural humano. Vive-se, neste início de século XXI, a plenitude da globalização capitalista e, principalmente, vive-se o mundo sob a égide do capital financeiro, o que asfixia e tolhe o crescimento produtivo, o da ciranda financeira. Aponta-se para este período como o fim da história, como se pudesse chegar ao fim da vida, ao fim da vida humana. Para tanto, só uma catástrofe, e os cientistas não apontam nesta direção. Deste modo, a globalização não é o fim da história. “Com ela, reacendem-se, também, pari passu, as crises de caráter mundial, as epidemias de superprodução e de subconsumo; projeta-se o desemprego estrutural, a massificação da miséria, da fome, da violência e da exclusão social, pré-anunciando novas ondas de turbulência que apenas fazem demonstrar que a história da luta de classes, ainda que sob novas roupagens, continua – e assumindo, cada vez mais, um caráter também global”.9 Esta sociedade necessita, principalmente, neste cruel momento, de sua libertação política, embora esta libertação seja, apenas, um meio para realização da vida na sociedade política. “A emancipação política libera os indivíduos para a consecução dos seus fins singulares, ou seja, dos seus interesses individuais”.10 Entretanto, é um passo essencial na luta pela construção de uma sociedade humana. A globalização coloca a luta de classes também globalizada. Existe uma necessidade dos comunistas e libertários do mundo inteiro de promover a luta pelo comunismo, o único caminho para o encontro do ser humano com ele mesmo. Superemos, pois, o modo capitalista de exploração do homem pelo homem. “Daí a necessidade de sua superação o que só pode ocorrer em uma outra formação social que não a produtora de mercadorias – o capitalismo. Esta, portanto, deve ser negada.”11 Assim sendo, este projeto tem como objetivo aprofundar o estudo da “guerra ideológica” que abate circunstancialmente qualquer perspectiva da esquerda e então ajudar esta esquerda a construir um instrumento de superação da inércia.
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MELLO, Alex Fiúza de. Marx e a globalização. São Paulo: Boitempo, 2001, p. 259. GUSMÂO, Ivanilde Morais. Um caminho para Marx. Olinda: Livro Rápido, 2011. MAGALHAES, Fernando. 10 lições sobre Marx. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 37. Política Democrática • Nº 32
Flores Galindo e a leitura de Gramsci Marcos Sorrilha Pinheiro
A
lberto Flores Galindo (1949-1990) figura como um dos principais intelectuais peruanos do século XX.1 Historiador de formação, foi um profícuo articulista, intervindo constantemente em questões relacionadas aos dilemas sociopolíticos de seu país, principalmente nas décadas de 1970 e 1980. Intelectual “das antigas”, entendia que a História deveria ser posta a serviço do presente e, por conseguinte, o seu trabalho historiográfico deveria ser sobretudo resultado das inquietações de seu tempo. Socialista convicto, buscou desenvolver um tipo de interpretação que atendesse às necessidades de sua realidade. Como forma de mesclar o socialismo com a cultura peruana, realizou uma profunda releitura da obra de José Carlos Mariátegui. Assim como Mariátegui, Flores Galindo tornou-se adepto de uma concepção do marxismo geralmente caracterizada como heterodoxa. Tal heterodoxia encontra relação com um momento específico da história das esquerdas: a crise do stalinismo, as revoluções cubana e chinesa, a morte de Che, o boom mariateguista da década de 1970 na América Latina, entre outros. Mas, além disso, existem elementos próprios de sua formação que nos ajudam a compreender a opção pela heterodoxia. Já na época de faculdade, a aproximação à História Social Inglesa e a autores como Thompson permitiu que Flores Galindo rompesse com uma interpretação meramente econômica do marxismo, típica das formulações ortodoxas, como fica claro em sua monografia de conclusão de curso intitulada Los Mineros de la Cerro de Pasco (1971). Logo após o término de sua formação acadêmica, Flores Galindo viajou para a França, dando início a suas pesquisas para a obtenção 1
Recentemente Flores Galindo apareceu elencado na lista dos dezoito pensadores/ políticos peruanos mais importantes do século XX, organizada por Rodolfo Loayza Saavedra (2009). Além disso, seu principal livro Buscando un Inca: utopia e identidad en los Andes, figura como um dos “50 livros que todo peruano culto deve ler”, segundo ranking organizado por Cristóbal Alvojín, Max Hernandez e Francisco Sagasti (2000).
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do seu doutoramento. Permaneceu por dois anos em Paris. Esse período foi decisivo para a definição de suas concepções historiográficas e seu posicionamento intelectual. É na França, por exemplo, onde decide não se vincular a qualquer partido, alegando que o partidarismo limita a liberdade, princípio fundamental para o desempenho das atividades de um intelectual. Foi na França, também, que Flores Galindo se aproximou de algumas concepções historiográficas da escola francesa de História, como os conceitos de mentalidades e longa duração. Além disso, a presença em território europeu e o seu envolvimento amoroso com uma jovem historiadora italiana levaram-no a se aproximar da historiografia da península e adquirir algumas obras em viagens feitas àquele país. Todas essas informações são fornecidas pelo próprio Flores Galindo em cartas escritas entre novembro de 1973 e junho de 1974.2 As epístolas endereçadas a Manuel Burga, no Peru, além de informarem ao amigo a respeito das novidades francesas, funcionavam como uma espécie de diário, uma conversa não apenas com seu interlocutor, mas uma forma de superar o isolamento e a solidão. Nessas cartas/anotações surgem os temas mais diversos. No entanto, um que realmente chama a atenção de qualquer leitor é a “sua descoberta de Gramsci”. Apesar de muito provável, não sabemos se o pensador italiano já lhe havia sido apresentado em algum outro momento de sua vida. No entanto, a aproximação à literatura italiana feita em solo europeu lhe deu a oportunidade de realmente ler Gramsci. Vejamos como isso aparece em suas cartas. Em 16 de fevereiro de 1974, após regressar da Itália, anuncia: “[...] o mais importante que eu fiz foi comprar livros [...]. Comprei obras de Croce e Gramsci, que são os pais da historiografia italiana”.3 Um mês e meio e cinco cartas depois, a leitura das obras do líder comunista italiano começa a surtir efeito em sua correspondência. Em 2 de abril, informando ao amigo sobre suas recentes atividades, adverte: [...] de minha parte, tenho tratado de terminar um artigo sobre o problema nacional e o problema camponês, avançando em minha tese e lendo Gramsci: as coisas que ele escreveu sobre política e os conceitos que desenvolveu serviriam para reescrever a história política do Peru. Estou convencido de que é uma tolice pensar a história política, em ‘si mesma’, como história auxiliar. Tem sido auxiliar por conta do enfoque que se tem dado: descritivo, empirista, su-
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As 17 cartas foram organizadas em forma de livro em 2010 sob o título de Alberto Flores Galindo: cartas de Francia (1973-1974). BURGA, Manuel. Alberto Flores Galindo: cartas de Francia (1973-1974). Lima: Sur/ ANR. 2010, p. 49.
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Flores Galindo e a leitura de Gramsci perficial. A análise histórica de Gramsci sobre o Ressurgimento Italiano mostra outras possibilidades.4
Na carta seguinte, de 20 de maio, o que era uma atividade complementar se converte em item de destaque em sua rotina. As “novidades” trazidas pela leitura deixam Flores Galindo muito impressionado e motivado, como se pode ler: [...] durante os últimos dias [...] empreendi uma leitura sistemática de Gramsci. É realmente um marxista muito lúcido: suas prerrogativas sobre o problema político, os conceitos que utiliza e seu raciocínio são indispensáveis para pensar qualquer história política ou cultural. A análise que realiza Gramsci dos intelectuais na Itália pode servir para pensar o problema do Peru [...]. O conceito de “revolução passiva” aplicado ao Ressurgimento Italiano pode ajudar a esclarecer a independência em termos mais claros do que os apresentados por Bonilla.5 Os de partido, hegemonia e bloco histórico seriam indispensáveis para analisar no Peru a atuação dos personagens principais da via política contemporânea: o exército, o comunismo e o aprismo. Graças a Gramsci, na Itália não se descuidaram da história política como ocorreu na França, onde é sinônimo de história évéméntielle, o que me parece uma estupidez.6
Para Flores Galindo, o texto de Gramsci não seria apenas uma ferramenta fundamental para pensar a história do Peru, mas aparecia como uma resposta à própria historiografia daquele momento que havia classificado a história política como sinônimo de positivismo. Seguimos com sua pena: Pode-se fazer história política sem permanecer no anedótico ou no superficial. O marxismo não é somente um instrumento para pensar a história econômica: Gramsci, Lenin e o próprio Mao mostram o contrário. [...] O revelador desse mundo teórico é que, ao que parece, o centro do marxismo não está dado pela economia, pelo estudo da estrutura, e sim pelo estudo da política, mas a política como confluência do político propriamente dito (um território determinado, conceitos, leis e métodos), no qual confluem a economia, a cultura, a sociedade: voltar ao fio condutor da luta de classes. Pensar a história em termos de classe mais do que estruturas. Voltar ao marxismo 4
Ib. p. 70. Referência ao artigo “La independencia en el Perú” de Heraclio Bonilla de 1971. Entre as várias críticas que o texto faz à independência do país, destacam-se o ataque à elite criolla e à ausência da nação, apresentando uma emancipação sem heróis nacionais, como o resultado de falência do sistema colonial ou um constructo importado por Bolívar e San Martín. 6 Ib. 73. Parece-nos que a grafia aqui está equivocada. Ao invés de évéméntielle, o autor quis dizer événementielle, que significa “evento”. 5
Marcos Sorrilha Pinheiro
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Batalha das Ideias
vivo, guia da ação, romper com as marcas do passado-presente, pensar que toda história é história presente. Como vê, estou entusiasmado. O entusiasmo é sempre um bom remédio contra o isolamento e a solidão.7 É muito interessante ler essas observações feitas por Flores Galindo a partir da leitura de Gramsci. Como sabemos, no final da década de 1970 a história política finalmente empreendeu o seu ressurgimento, conseguindo apresentar novas abordagens e metodologias que lhe permitiram estabelecer resultados relevantes no cenário acadêmico. Nesta retomada, Gramsci teve um papel fundamental, influenciando historiadores de várias partes do mundo. Não é difícil perceber que esta tendência foi antevista pelo peruano. De qualquer maneira, a importância de Gramsci para Flores Galindo está justamente nesta perspectiva: pensar a história política seguindo novos referenciais, colocar a história sempre no presente e produzir um marxismo vivo. Este marxismo vivo estaria diretamente relacionado ao socialismo heterodoxo característico de sua trajetória. Pode-se afirmar com clareza que Flores Galindo não foi um gramsciano. No entanto, é inevitável anotar que, no momento de sua formação intelectual, foi com Gramsci que entendeu o sentido do marxismo como guia da ação e não como modelo pronto e acabado. Tal aprendizado resultou na formulação de uma nova maneira de compreender o Peru e sua História, conforme se anunciava em suas cartas. No lugar de um passado de derrotas e oportunidades perdidas, o que se vê é a busca por novos agentes revolucionários presentes num passado capaz de inspirar o futuro do país. Neste ponto, o andino ganhou uma centralidade que se refletiu não apenas em seus livros, mas em sua atuação intelectual junto às comunidades andinas e de trabalhadores de origem indígena, o que demonstra essa maneira de buscar viver o socialismo para além das reflexões conceituais. Analogamente, assim como o passado é posto em função do presente, o pensamento é colocado em perspectiva para a ação.
7
Ib. 74.
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VIII. Ensaio
Autor Flávio R. Kothe
Professor titular de Estética na Universidade de Brasília. Publicou recentemente o livro Ensaios de Semiótica da Cultura, pela Editora da UnB, que também publicou os seus ensaios: O cânone colonial, O cânone imperial, O cânone republicano I e II, A narrativa trivial, Fundamentos da Teoria Literária. Traduziu autores como Nietzsche, Marx, Adorno, Benjamin, Habermas, Kafka, Celan.
Uma crítica marxista ao mito da caverna de Platão Flávio R. Kothe
A
duplicação metafísica do mundo, consagrada pelo cristianismo, pelo romantismo e por movimentos políticos totalitários, aparece em diferentes momentos da obra de Platão. Na República, que seria melhor chamar de O Estado (Politeia), o mundo das ideias é proposto como contrapartida ao “mundo das cópias”, para “resolver” de modo mágico um impasse para o qual o autor parecia não ter a solução. Ele quer saber o que é a justiça, já que não basta a resposta de que ela é a vontade do mais forte, e qual é a melhor forma de governo, já que todas as existentes são problemáticas. Ao contrário da crença habitual hoje, dominada por pressupostos teológicos de igualdade, o protagonista Sócrates não está convencido de que a melhor forma de governo seja a democracia, pois esta é para ele uma feira livre em que todos gritam, achando que podem dar palpite em todos os assuntos, mais ainda naqueles de que não entendem nada. O político promete aí mundos e fundos a todos para ascender ao poder, onde ele não vai poder cumprir o prometido. A democracia leva à manipulação demagógica. O demagogo vai ficando cada vez mais sozinho, tendendo a locupletar-se no poder. Frustradas as expectativas, ele só se mantém ainda no governo pela força, e pela força é que acaba sendo apeado. Tem-se então uma ditadura militar. Os militares no poder vão tomando gosto pelas benesses do poder, ficam se regalando e corrompendo, privatizam o bem público e acabam perdendo as virtudes militares. Provocam assim uma rebelião popular que, ao ter êxito, restabelece a democracia, reiniciando todo o ciclo. Para romper esse círculo que ele considera vicioso, pois há enormes desgastes, destruições e sofrimentos nesse percurso, Sócrates 125
Ensaio
propõe outra forma de governo: a aristocracia do mérito. Ela difere da aristocracia do sangue, pois o filho de um homem de ferro pode ser um homem de ouro, assim como o filho de um homem de ouro pode ser apenas de ferro. Esse modelo já existiu sob a forma da teocracia, em que a casta sacerdotal governava, como aconteceu na antiga Grécia e no Egito. A Igreja Católica adotou essa forma de governo, com a variante de uma monarquia eleita, em que os pares escolhem seu príncipe. O celibato dos religiosos serviu para enriquecer a instituição e resolveu a questão do nepotismo. Um ponto central que falta discutir na Politeia é o que se entenderia por mérito. O que a uns parece mérito, conforme determinado paradigma, pode ser visto como demérito ou carência de méritos conforme outros paradigmas. A correta aplicação parece verdadeira para quem não vai além deles. Juízes julgam conforme paradigmas, mas quem julga os juízes, os paradigmas? Na Igreja essa questão é reprimida pelo voto de obediência, pela propaganda sacralizadora, pela ideologia da eternidade da instituição. Freud disse, ao querer a expulsão de jovens brilhantes, que preferia a instituição aos gênios. Um vetor central na “República” é que a sucessão de formas de governo ocorre pelas características de cada uma delas, pela dialética interna de suas contradições, e não pela ação externa de uma entidade como uma Divina Providência. A rigor, nesse sentido, dispensa-se a autoridade de um “mundo das ideias” que ditasse as regras do devir laico dos governos. Quando os cardeais escolhem um deles como papa, diz-se que eles foram inspirados por Deus, como se eles fossem apenas os executantes, os coroinhas da vontade da divindade. Se não há necessidade de um fator divino na evolução da história, o mundo das ideias também não precisaria existir como algo aparte. A “aristocracia grega do mérito” não admitia mérito em quem não tivesse sangue nobre: o “filósofo” somente pode surgir entre os membros da “classe ociosa”, assim como, na trilogia tebana de Sófocles, aquele que chega ao poder por mérito, Édipo, é filho do rei anterior. A tese implícita de Sócrates é que alguém nasce pronto para governar, mas precisa ter uma formação escolar especial. Somente há de se desenvolver o país que tiver escolas de elite. Como escolher, no entanto, os mais aptos? Platão deixa isso por conta do milagre de alguém se libertar das cadeias que o prendem.
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Uma crítica marxista ao mito da caverna de Platão
O filósofo como iniciado Platão propõe uma parábola, conhecida como mito da caverna, no livro VII da República. Tem-se aí uma síntese da sociedade da época sob a forma de duas classes presas dentro da caverna: a classe ociosa, dos aristocratas, e a classe dos que servem a ela, os escravos. Estes se subdividem em dois tipos: aqueles que cuidam do sustento material e aqueles que providenciam diversão. Radical nessa crítica é que não há razão para os ociosos serem servidos: são vistos como parasitários manietados, amarrados, iludidos por aparências. Eles tomam sombras projetadas na parede como se fossem a própria realidade e não querem sair disso. Para resolver o impasse de achar um escolhido sem fazer eleição, um dos manietados se solta das amarras e vai em direção à saída, onde ele será iniciado no segredo de que o Sol tudo determina e é o centro do universo. Ele acha que o Sol determina tudo sozinho, inclusive as estações do ano, como se o movimento da Terra não tivesse importância. Ou seja, o que Sócrates propõe é a doutrina egípcia de Athon (que foi imposta ao povo judeu e endossada pelo cristianismo). No primeiro momento, o liberto não consegue olhar as coisas muito iluminadas e precisa se voltar para suas sombras e seus reflexos na água; no segundo, ele volta à caverna para libertar seus colegas do ócio, mas estes não querem sair de sua acomodação. Ele não cogita libertar os que trabalham. Outra “iluminação” é que esse “iniciado” não apenas acha que é o dono da verdade e, por isso, se considera no direito de assumir o poder, mas consegue transformar todo o sistema sem ação política. São passes de mágica para tentar dissolver impasses. Supõe que está gerando um mundo mais justo, como se pessoas mais escoladas já estivessem por isso mais dispostas a trabalhar pelo bem comum, não em amealhar benesses. O modo estratégico de defender aí a nova proposta é deixar o “antagonista” apenas a dizer amém, feito um coroinha, não admitir críticas nem ver a necessidade de reformular o sistema, não estabelecer controles para preservar o interesse público, para impedir a corrupção e a manipulação. Quem iria propor a revisão do sistema seria o gênio: ele teria de ser, então, expulso. Ou seja, a dialética cessa aí quando convém se tornar conservador, o preservador de uma forma de governo. Não se admite mais aí na fala a antítese nem o contraditório. Que o sujeito não queira admitir isso não significa, no entanto, que a negatividade, a repressão, a propaganda falsificadora e a contradição não continuem a existir em atos e fatos. Flávio R. Kothe
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O dono da verdade Aquele que se apresenta aí como “filósofo” acha que é dono da verdade. O senso comum e a religião grega acreditavam que o Sol gira em torno da Terra levado por uma carruagem conduzida por Apolo (um deus antropomórfico que ainda persiste na versão loira de Cristo). O pretenso filósofo está certo ao dizer que a Terra gira em torno do Sol, mas errado ao supor que este é o centro do universo e determina tudo sozinho. Ele pretexta ser o primeiro a sair da caverna e contemplar a realidade externa, mas antes dele já tiveram de ir lá os manipuladores de bonecos, ao buscarem seus modelos, e os escravos, ao procurarem alimentos e madeira para a fogueira. O que a classe dominada aí faz e pensa é considerado simplesmente como não tendo valor, é como se não existisse. Ele é arrogante, prepotente e totalitário. Se ele já é assim quando está sozinho e ainda não tem o poder, pode-se imaginar o que ele faria quando tivesse o governo, a máquina do Estado e um partido organizado. Se aquilo que aí o pseudofilósofo, o candidato ao poder, supõe e afirma ser a verdade é fundamentalmente corrompido e não é verdadeiro, o sistema daí derivado não vai poder ser mais justo nem mais voltado ao bem comum. Esse bem comum acaba sendo, na prática, o bem privado de uma classe, mas sempre em detrimento do bem comum de outras comunidades exploradas. Assim como não é questionada a exploração interna dos escravos, também não seria questionada a espoliação de outras comunidades. Pelo contrário, considerando-se mais justa, ela iria se sentir no direito de explorar as outras. O termo “filósofo” revela-se aí inadequado. Ele não ama o saber, ele ama o poder. Mente para alcançar o poder. Ignora a atividade dos escravos e dos artistas, ignora que já saíram da caverna antes dele. A rigor, ele é um teólogo, um sacerdote de Athon. Logo essa casta poderia considerar parte do bem comum eliminar os que ela consideraria inimigos do Estado. Portanto, a obra Politeia não é a proposição de uma “República”, conforme vem sendo traduzido, como algo progressista, contrário à monarquia e à aristocracia de sangue, mas é uma proposta reacionária, a teocracia de uma casta sacerdotal, em que se extingue o avanço de separar o poder civil do religioso. O mito da caverna Heidegger fez a leitura desse mito da caverna em diversas partes de sua obra, como as aulas de 1933-34, há um livro específico sobre 128
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Uma crítica marxista ao mito da caverna de Platão
o mito da caverna, que reaparece quando ele trata da concepção de verdade, nos livros sobre Nietzsche etc. Ele queria fazer uma leitura exata e profunda do texto, da concepção de “verdade” aí fundada e do que deveria ser o filósofo. Ele foi omisso, porém, em alguns aspectos básicos. Heidegger fez, na época, uma crítica explícita ao marxismo, mas, em plena vigência do nazismo, ele defendeu a liberdade como fundamento da verdade. Ele foi impedido de lecionar por 15 anos durante a era da “libertação democrática”. Se alguém, no período das aulas de 1933-34, tivesse feito observações como as seguintes, ele poderia ter se tornado suspeito. O que Heidegger parece não perceber no mito da caverna é: 1) a espoliação do trabalho a que são submetidos escravos e artistas; 2) os artistas saíram antes do filósofo para fora da caverna, porque se não eles não teriam modelos visuais e sonoros para imitar nas projeções dentro da caverna; 3) os escravos também saíram antes, para prover madeira para o fogo e alimentos para os senhores ociosos; 4) Sócrates tinha origem não aristocrática, mas no relato do mito apregoa que o filósofo não pode se originar senão da aristocracia ociosa, embora artistas e escravos estivessem já a fazer o percurso para fora e para dentro da caverna; 5) o que ele chama aí de filósofo não é um filósofo e sim um ideólogo da classe dominante, que quer um novo modo de assegurar o velho poder à oligarquia; 6) o “filósofo” não tenta libertar os escravos e os artistas, que tinham menos a perder e mais a ganhar, mas se volta apenas para membros da classe ociosa; 7) o “filósofo” não tem aí um compromisso vital com a verdade, mas ele ajuda a ocultá-la, para ele conseguir o poder para si; 8) a “verdade” central do filósofo não é verdadeira, pois o Sol não é o centro do universo nem determina sozinho o calor e a luminosidade na Terra; 9) o aí apregoado culto ao monoteísmo, baseado no culto egípcio ao deus Rah-Athon, não é reconhecido como uma crença religiosa, mas tanto melhor serve para fundar o platonismo cristão; 10) comprometido com o poder da aristocracia de sangue, o pseudofilósofo busca apenas um modo de aperfeiçoar seu modelo, sem ver os impasses de uma meritocracia que se recusaria a questionar o que entende por mérito; 11) apresenta-se como filósofo quem é guardião dos interesses de uma classe; 12) apresenta-se como verdade o que oculta verdades mais substanciais da situação. Nietzsche já havia, no entanto, colocado sob suspeita a figura do filósofo, por sua pretensão de ser dono da verdade e do poder. Heidegger leu Nietzsche intensamente, deve ter lido essa suspeita. A questão central da filosofia é a verdade. Marx não a examinou devidamente e isso se mostra no modo confuso com que usa o termo “ideologia” Flávio R. Kothe
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como: 1) falsa consciência; 2) consciência histórica revolucionária do proletariado; 3) conjunto de áreas do saber que envolvem relações sociais. Aí, uma vez a ideologia é falsidade e outra vez pretende ser a verdade da história. Freud também não deixou bem claro o fundamento de como distinguir um raciocínio de uma racionalização. O impasse que envolve o filósofo afeta o que se entende por verdade. São questões complementares. Se o “filósofo” é um ideólogo de classe, ele não se reconhece como tal; se ele se reconhece, isso não garante que seja verdadeiro o que diz. Ele poderia ser um ideólogo dos escravos ou dos serviçais artistas, mas isso não significaria ter um compromisso maior com a verdade. Ele defenderia apenas a prioridade da ida destes para fora da caverna, poderia até propor que senhores e servos invertessem suas posições, sem que isso alterasse a estrutura fundante do pensamento. Nada mais conservador do que tal “revolução”. Problema similar aparece na trilogia tebana de Sófocles. Aparentemente, já se tem nela a proposta revolucionária de uma monarquia do mérito, em vez de ser de sangue. Édipo assume o poder porque foi o único, diz-se, a conseguir decifrar o enigma da esfinge, figura que causava graves prejuízos sociais. Ninguém sabia, diz-se, que Édipo tivesse sangue real. Ele ascende ao poder por mérito. Só que, como no mito da caverna, o que melhor pensa somente pode surgir da aristocracia. Com isso, anula-se o avanço. Desloca-se a questão para a de conseguir determinar quem teria mais mérito entre os aristocratas. Nem sempre seria o filho mais velho. A alternativa seria transformar a classe do mérito em nova aristocracia. Sendo apresentado como filósofo quem é apenas um ideólogo de classe, que disfarça o seu caráter e sua natureza, num texto que não propicia a menor abertura a um debate sobre isso, propõe-se como guardião da verdade quem é o depositário da confiança de uma classe em detrimento das demais, mas que ainda ousa se apresentar como ameaçado pela classe dominante enquanto está a serviço dela, sendo seu agente disfarçado. Ainda que Heidegger admita que a inverdade faça parte da verdade, que todo desencobrimento envolve o encobrimento de outros aspectos, ele mesmo se mostra incapaz de decifrar esse condicionamento de classe, para estudar a possibilidade de ir além dele. Como é que alguém tão inteligente não viu certos aspectos básicos do texto platônico? É como se não houvesse classes para a filosofia. Por mais que ele critique professores de filosofia, tem dificuldades no horizonte ideológico. Filosofia não é, porém, teoria sociológica, mas um poder ir além dos limites ideológicos e de classe. 130
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Que a figura do filósofo possa se originar de classes que não a aristocracia de sangue ou a burguesia é algo largamente atestado pela história. Aristóteles, filho de um médico, ainda que fosse o médico do rei da Macedônia, era alguém que vivia do seu trabalho. Descartes provinha da terceira classe, não era membro da aristocracia tradicional francesa. Kant era filho de um carpinteiro. Vários dos grandes nomes do pensamento alemão só conseguiram aparecer porque foram internos de escolas de elite do Estado ou até da Igreja Luterana: Fichte, Hoelderlin, Schelling, Hegel, Nietzsche. Poucos eram, como Schopenhauer, oriundos de famílias ricas, não tendo de trabalhar para sobreviver. Dificuldades materiais e políticas podem ter estimulado os talentos pobres a pensar e a produzir. A repressão quebra, no entanto, a espinha do pensador ao lhe tirar as condições de produzir. A aristocracia, que pode fornecer todas as condições educacionais, ambientais e materiais para que seus jovens membros evoluam e se tornem filósofos, artistas ou cientistas, quase não produziu membros de maior destaque. É como se as boas condições de produção sabotassem os melhores resultados. O próprio Heidegger provinha de uma família católica relativamente pobre e só pôde se desenvolver com auxílio da Igreja, da qual se tornou um apóstata. Heidegger não saiu da Alemanha durante o período nazista não só por causa de simpatias que chegou a ter com aspectos do movimento, mas porque estava preso à língua alemã. A Áustria deixou de existir, a Suíça não tinha uma tradição de receber filósofos germânicos. Quando ele assumiu a reitoria da universidade de Freiburg, para defender a instituição de expurgos, ousando pedir demissão quando voltaram a ocorrer, ele fechou para si muitas portas, inclusive das universidades norte-americanas. Ele ainda não tinha o renome que hoje tem, embora Sein und Zeit fosse uma obra reconhecida por especialistas. Heidegger supõe que somente o ser humano pensa e tem linguagem e senso para o ser. Isso parece ser teologia cristã disfarçada: somente ao homem seria dada uma alma por Deus. Assim se facilita o domínio do planeta, a utilização indiscriminada e cruel de todos os seres vivos, faz-se uma massagem no ego narcisista de quem pretende ser superior. É um erro central. Não se trata de bater boca à base de uma crença. Quem já conviveu com animais, sabe que eles se comunicam, têm noção do próprio morrer, conseguem derivar conclusões a partir de experiências singulares, são éticos ainda que sua ética varie conforme a espécie. Nietzsche viu isso com maior clareza e está, nesse sentido, mais avançado que Heidegger. Flávio R. Kothe
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Dilemas da meritocracia A posição do artista, nesse sistema totalitário da República, é precária. Ele não tem o que dizer. O labor dele só quer ser diversão agradável, não leva à elevação da consciência, não tem compromisso com a verdade ou, se tem alguma, isso não é reconhecido pelo público. Ele é um escravo da classe dominante, existe para o seu passatempo. Ele sequer chega a ser necessário para restaurar as forças de produção e manter as relações de produção. O único artista maior aí é o autor de toda a proposição, Platão, mas ele parece totalitário ao delegar o monopólio do dizer ao protagonista Sócrates, pois este fala praticamente sozinho, já que o seu “antagonista” não chega a ser antagônico e fica apenas concordando com que o principal diz. Não há uma objeção mais contundente sendo articulada por outros personagens, como ocorre no Simpósio. Na República diz-se que há três tipos de pessoas: homens de ouro, homens de prata e homens de ferro. As mulheres não contam. Democraticamente diz-se que não é pelo fato de alguém ser um homem de ouro que o seu filho há de ser de ouro. Na teoria, um filho de ouro pode surgir de um pai de ferro. Estranho é que ele não aplique esse princípio na organização da vida dentro da caverna e exclua do acesso à filosofia todos os que fazem trabalhos manuais ou artísticos. Os escravos, que precisam ter uma resistência de ferro para fazer tudo, não são sequer homens de ferro. Não se rompe tão fácil com a aristocracia de sangue se ela está na base do sistema teológico politeísta. Os homens de ouro tenderiam a considerar como parte de sua obrigação como pais promover os estudos e a profissionalização dos filhos em termos dourados, tratando de gastar mais na educação deles. Por outro lado, haveria a tendência de criar o máximo de dificuldades aos “espertos oportunistas” oriundos das classes baixas. A maneira de definir a diferença entre os metais, em sua passagem para o plano simbólico, já não seria mais tão clara. Demandaria interpretações. A exegese tenderia a ser feita de acordo com as conveniências de quem estivesse no poder. Se desde o começo a luta pelo poder demanda a mentira sistemática, na manutenção do poder isso tenderia a piorar. Quanto mais acerba a luta de classes, maior o sacrifício da verdade. Não se discutir o caráter histórico e classista do mérito, os paradigmas de sua avaliação, supondo que possam ser sempre os mesmos, isso é sintomático. Acaba sendo de ouro quem consegue mais poder, por piores que tenham sido os métodos adotados. Pode-se objetar que, na Igreja Católica, o filho de um camponês polonês ou da classe média alemã chegou a ser papa. Demorou vinte séculos 132
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para chegar a isso. Nunca houve até hoje um papa preto, chinês ou sul-americano. Também não faria diferença: ele faria parte do mesmo esquema, seria até um traidor de sua origem. Roma chegou a ter um César de origem espanhola, sem que a província ibérica fosse emancipada. Um sujeito só vai chegar ao poder e se manter nele por mais tempo caso se sujeite aos esquemas e propósitos da instituição. A meritocracia é tão problemática quanto outras formas de governo, pois pressupõe que quem chega ao poder tenha todo mérito por isso, sendo ele divinizado e impedindo-se que se relatem fatos denegridores. Sufoca-se a discussão pública do que seja mérito. O Santo tem todo espaço na mídia. Dá-se a ele uma autoridade moral que a instituição não merece. A escolha dele feita por um colegiado de eminências rubras é alardeada como se decorresse de uma inspiração divina. A autoridade dele é vista como decorrente de ele ser o representante de Deus ou do Ideal na Terra. Nos Estados governados pelo partido comunista pretendeu-se a meritocracia e acabou-se tendo uma gerontocracia incapaz de fazer as renovações e mudanças que permitissem melhores condições de vida à população. A divinização de genocidas se baseia em o líder ser visto como representante do ideal, do caminho para toda a humanidade. A meritocracia proposta por Platão tinha um caráter revolucionário. Todas as famílias aristocráticas gregas se diziam descendentes de alguma divindade, o que lhes dava o direito a terras, gado e gente. Não é por acaso que Sócrates, Platão, Eurípides e outros foram perseguidos. Platão percebeu o perigo totalitário da utopia da República: para manter real a sua ficção, teria de eliminar dela todo gênio criativo que fosse capaz de imaginar uma alternativa a ela. Não apenas teria de ser banido um escritor admirável como Homero, mas também o próprio autor ou seu equivalente. Com isso ele sepulta o próprio projeto, que vale como teoria, não como prática, embora tenha virado religião no ocidente. O genial em Platão, que o leva além do platonismo, é que ele questiona o próprio sistema que ele propôs, assim como no fim diz que o mundo das ideias é uma ficção virtual, como as imagens que aparecem num espelho. É preciso distinguir, portanto, o que Sócrates diz, como personagem, daquilo que Sócrates pensa e não diz; aquilo que é dito em conceitos e o que é mostrado em imagens; aquilo que Platão escreve como dramaturgo de ideias e o que ele sugere. Além desse sistema de caixinhas em caixas, ou de bonecas dentro de bonecas, há o que se pode pensar para além do conteúdo manifesto do escrito. Cada ampliação modifica o sentido de cada parte; cada parte modificada altera a parte maior seguinte. Não há um todo, pois ele é sempre parte. Como não há todo, não há espaço para totalitarismos. Flávio R. Kothe
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IX. Mundo
Autores Alberto Aggio
Graduado em História pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas das USP (1982), mestre (1990) e doutor (1996) em História Social pela mesma faculdade. Realizou estudos de pós-doutoramento na área de História da América Contemporânea na Universidade de Valencia (Espanha), entre 1997 e 1998. Atualmente é professor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), campus de Franca.
Alfredo Reichlin
Foi membro da secretaria, da direção e do comitê central do PCI, além de responsável pelo Departamento Econômico e ministro do “governo sombra” daquele partido. Foi também presidente da Direção Nacional dos DS (Democratas de Esquerda). Esteve à frente da comissão responsável pela redação do “Manifesto dos valores” do PD (Partido Democrático), em 2008. Dirige a Fondazione Cespe – Centro Studi di Politica Economica, em Roma.
Fernando Alcoforado
Engenheiro e doutor em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Regional pela Universidade de Barcelona, professor universitário e consultor nas áreas de planejamento estratégico, planejamento empresarial, planejamento regional e planejamento de sistemas energéticos, é autor de mais de uma dezena de livros em que se destacam Globalização (1997), De Collor a FHC – O Brasil e a Nova (Des)ordem Mundial (1998), Um Projeto para o Brasil (2000), todos pela Editora Nobel, de São Paulo, e Os condicionantes do desenvolvimento do Estado da Bahia (Tese de doutorado. Universidade de Barcelona, <http://www.tesisenred.net/handle/10803/1944>, 2003).
A crise europeia vista a partir do Brasil1 Alberto Aggio
E
m primeiro lugar, gostaria de agradecer ao convite do Departamento de Relações Internacionais do Partido Democrático (PD) por poder estar aqui falando de política, do mundo e do Brasil. É uma emoção muito grande estar aqui no PD, um grande partido que, nascido do PCI – que sempre foi um estimulante ponto de referência para uma parte importante da esquerda brasileira – mantém aquela visão aberta e crítica da realidade do mundo, da esquerda e do futuro que sempre caracterizou vivamente o PCI. Gostaria de agradecer também aos diversos companheiros e amigos brasileiros que estão aqui presentes e, obviamente, aos amigos italianos e latino-americanos que vieram prestigiar uma conversação como essa, sobre o Brasil e a crise que está a nos envolver a todos. Antes de começar, quero mencionar também que essa reunião tem um significado que precisa ser registrado. Faço parte da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), que vem publicando nos últimos anos uma coleção denominada “Brasil e Itália”, cujo espírito está aqui presente, nas palavras do seu “presidente de honra”, Armênio Guedes: trata-se de “reacender o diálogo entre o pensamento progressista dos dois países e trazer elementos para o surgimento e a consolidação de um vigoroso reformismo de esquerda entre nós, capacitando-o para enfrentar conceitualmente os desafios inéditos que o século XXI nos propõe”. 1
Este texto foi base da exposição realizada no seminário com o mesmo título no Departamento de Relações Internacionais do Partido Democrático (PD), em Roma, em 02/02/2012. A proposição, organização e condução do seminário foi de Francesca D’Ulisse, diretora daquele Departamento.
Mundo
Por fim, desejo esclarecer que esta não será a fala de um economista, pelo simples fato de que não é essa minha especialidade. O que orienta e dirige essa exposição é mais a perspectiva da política e da história, duas linhas convergentes não apenas da minha trajetória pessoal como também, se excluir a economia, da perspectiva que a Fundação que represento assume e se esmera em alimentar como esteio de um pensamento crítico cada vez mais necessário entre nós brasileiros, um espaço que busca permanentemente a renovação da nossa cultura política. Como o Brasil está vendo a crise europeia ou como desde o Brasil se vê a crise da União Europeia? A resposta a essas questões depende, é claro, do olhar do analista e depende também de como esse analista vê o Brasil. A mirada brasileira não é única e nem poderia ser: um analista que vê a Europa pode coincidir ou não com outro analista dependendo da visão que ambos têm do próprio Brasil. Um grande estudioso do Brasil, o cientista político Luiz Werneck Vianna, diz, sem muita exatidão, mas com muita propriedade, que “o Brasil é o que é mais a interpretação sobre ele”.2 Ele é sempre uma realidade e o que se diz dela, tornando-se tantas vezes quanto foi interpretado um enigma paradoxalmente decifrado ou revelado pela fala de quem quer vê-lo de uma determinada maneira e vaticinar o seu futuro. Pois bem, com a crise que começa em 2007 e se arrasta, ou se aprofunda, até os dias que correm, os brasileiros não poderiam senão expressar visões bastante díspares apesar de alguns consensos. Estas disparidades correspondem de alguma forma às maneiras distintas pelas quais o Brasil – e quem se julga apto a falar em seu nome – o percebe ou o interpreta nesse contexto de crise. Muito sinteticamente poderíamos dizer que o consenso básico a respeito da crise, desde sua emergência, é de que a crise é mundial apesar de afetar mais profundamente as economias (ou algumas economias) norte-atlânticas, especialmente EUA e União Europeia (UE). É possível extrair esse consenso da maioria dos comentadores que estão todos os dias na imprensa e na mídia. Assimila-se claramente de que se trata de uma crise financeira e não uma crise das estruturas econômicas produtivas em si. Argumenta-se corretamente que se trata de uma crise ocasionada pela ausência de regulação das finanças internacionais. Contudo, não se avança mais na construção de pontos consensuais além destes acima sumariados.
2
VIANNA, L. W. Prefácio a BARBOZA FILHO, Rubem. Tradição e artifício. Belo Horizonte: UFMG, 2000. p. 17.
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A crise europeia vista a partir do Brasil
Particularmente, em relação à Itália é possível recolher algumas visões que se manifestaram no seguinte sentido: a crise financeira atingiu o coração do governo Berlusconi, um governo que se revelou incapaz de confrontá-la já que perdia rapidamente prestígio e capacidade de condução política para gerir a crise que vinha se acumulando. Foi obrigado a renunciar. A partir de então se abre uma etapa difícil para a Itália, com a assunção de um governo técnico comandado por Mario Monti. A avaliação da solução política dada no caso italiano é vista de maneira negativa. O pano de fundo dessa leitura quer enfatizar o caráter da crise italiana como uma crise tardia do neoliberalismo que, no essencial, não será debelada, muito ao contrario: as medidas do governo Monti apenas viriam no sentido de aprofundar o receituário neoliberal na Itália, agora sob legitimação da UE. De acordo com esses analistas, as receitas até o momento propostas – sempre enfatizando os aspectos econômicos – são as mesmas adotadas há alguns anos por muitos países, inclusive o Brasil: desregulamentação, liberalização, privatização, perda de proteção social estatal etc. Projeta-se assim um cenário absolutamente negativo, especialmente em seus resultados políticos. Por essa leitura, realiza-se um enquadramento da crise italiana na mesma chave de entendimento da crise grega, portuguesa e espanhola. A formulação é rígida, límpida e conclusiva: para a manutenção do Euro como moeda única, a governança europeia aceita e assume a substituição da democracia (pelo menos no plano eleitoral e na esfera da representação da sociedade) pela tecnocracia! Vence a ideia de que a política é suprimida pela economia, tanto nas causas quanto nas consequências da crise. Condena-se a resolução da crise de governo por meio da indicação do governo técnico de Mario Monti, desconhecendo, diga-se de passagem, a institucionalidade italiana. Desta forma, nessa leitura, em termos institucionais, o governo Monti não seria senão um governo ilegítimo, assim como o atual governo grego; Portugal e Espanha teriam passado por eleições cujos resultados foram condicionados integralmente pelas determinações da UE e seus tecnocratas, suprimindo a essência da legitimidade democrática da mesma maneira. A crise financeira estaria assim anunciando uma débâcle da democracia europeia já que o fim do Euro resultaria numa previsível ruptura da União e, ao contrario, sua manutenção cobraria como pedágio o sacrifício da democracia, um dos pilares da UE. Não demoraria muito para se começar a falar no “fim da Europa” como desconstrução filosófica. Vê-se que não há muita coisa comum além do consenso que havíamos mencionado. A nosso ver, o que fica evidente são as limitaAlberto Aggio
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ções intrínsecas destas análises que vêm a causa e as consequências da crise de maneira reducionista. Além de equívocos e imprecisões, o que se vê também é muita ideologização. E é preciso dizer que essa é uma visão que marca especialmente alguns intelectuais à esquerda, inclusive aqueles que apoiam o governo Dilma Rousseff. Efetivamente, para a cultura política do principal partido de governo no Brasil, é explicável a dificuldade que ele demonstra em compreender a orientação e as decisões práticas do PD em apoio ao governo Monti e ao seu programa de enfrentamento da crise a partir da Itália. Uma mediação muito difícil de assimilar a partir dos seus próprios termos: um governo de “salvação da Itália”, com tudo o que isso implica de críticas, dúvidas e em aberta polêmica no Parlamento. A despeito disso, como afirma Alfredo Reichlin, “salvar a Itália” não é retórica. “É a condição para mover-se no terreno em que hoje, não amanhã (quando vencermos), se constroem as alternativas”; demonstra uma capacidade muito grande de transformar uma crise dramática em saída e orientação política, de perspectiva não retórica mas realista. Um texto como esse não teve acolhida e nem foi difundido no Brasil.3 Tanto o reducionismo de ver a crise apenas pelo lado econômico, nublando a capacidade de ver na política um dos elementos potentes de gestação da crise, quanto a ideologização, levando à condenação quaisquer saídas de caráter político para a crise, deixaram de alimentar na opinião publica brasileira uma discussão a respeito do caráter histórico da crise, desviando-se de alternativas mimetizadoras das crises históricas anteriores. Perdeu-se assim uma oportunidade de afiarmos nossa capacidade de elaboração concreta dos dilemas da hora presente num contexto de globalização! Assim, penso que deveríamos partir de uma leitura mais precisa da crise e deveríamos buscar compreender quais as possibilidades de se adotar uma perspectiva política para enfrentá-la. A crise é global, é uma crise de reprodução do capitalismo, mas não é uma “crise orgânica” do capitalismo, no sentido de Gramsci. Giuseppe Vacca, na revista TamTam Democrático (n. 5, janeiro, 2012, p. 134-139), editada pelo PD, afirma que a atual crise não pode ser vista como a crise de 1929-1932 na qual era essencial encontrar uma resposta que anunciasse uma nova estruturação das formas de se produzir a vida material por meio da alteração profunda dos nexos entre economia, política e vida social.4 Naquele contexto, as alternativas do New Deal, 3
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O PD e o orgulho de salvar a Itália, L’Unitá, dezembro de 2011. Apenas o sítio Gramsci e o Brasil publicou o texto de Alfredo Reichlin, cf. <http://www.acessa.com/gramsci/ ?page=visualizar&id=1432>. Há uma tradução para o português desse artigo. Ver VACCA, G, Gramsci e a análise
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do fascismo e mesmo do comunismo soviético eram reais e foram implementadas como alternativas à crise. Mencionando a Gramsci, Vacca chama a atenção para o fato de que em relação àquela crise há uma referência que permanece: a contradição entre uma economia cada vez mais global e cosmopolita e a expressão política do poder de alguns Estados, como a Alemanha, principalmente, no caso da UE. Contudo, Vacca enfatiza também que hoje, principalmente em relação a Europa, a política não assume as mesmas feições nem a mesma dramaticidade do início da década de 1930, não havendo na cena europeia nenhum movimento salvacionista, como foi o fascismo. A globalização econômica é hoje um fato muito mais amplo do que naquele momento, com muito mais atores relevantes em presença, o que dificulta sobremaneira soluções de tipo particularista, notadamente as de caráter nacionalistas. Ainda que sua reflexão seja bastante ampla e ataque o centro da questão, isto é, o problema da estabilidade financeira a partir do controle e da regulação monetária, não deixando de considerar o contexto global da economia, gostaria aqui de observar que a leitura da crise feita por G. Vacca aponta para uma sugestão de saída que não conta imediatamente com a presença brasileira como ator importante na resolução da crise, nem mesmo dos chamados Brics. Vacca anota a necessidade de resolução da contradição apontada colocando “ênfase na estabilidade monetária internacional como solução da crise da economia mundial”. Nesse sentido, um novo Bretons Wood, poderia nascer a partir de uma nova moeda eu se constituir inicialmente como “uma cesta de moedas de reserva negociadas em nível mundial” que não coincidisse com nenhuma moeda nacional. É claro que isso, “somado ao número dos atores e às assimetrias de poder que originam suas tensões, não permite prever se e quando se poderá alcançar o objetivo”. Mas, o mais significativo da sua análise vem em seguida: “Incidentalmente, pode-se observar que as economias do Atlântico Norte, no seu conjunto, constituem o maior agregado de recursos que poderiam ser postos à disposição de uma nova ordem mundial e são a parte mais integrada e interconectada do globo. Mas não se vê como elas poderão convergir para criar novos equilíbrios e uma nova estabilidade da economia mundial, sem superar preliminarmente o dualismo entre euro e dólar, cujo antagonismo talvez seja a verdadeira causa das crises paralelas, americana e europeia, da última década”. Uma crise nova, de novo tipo, do mundo globalizado e que, portanto, deve contar com uma perspectiva política na sua resolução das crises, cf. <http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=1444>. Alberto Aggio
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distinta das crises históricas anteriores e que consiga propor um novo rearranjo minimamente capaz de estabelecer, a partir daquilo que de mais avançado em termos de modernidade se alcançou, um vetor para novas possibilidades emancipatórias. Como “ler” o papel do Brasil nesse contexto e frente a essa grande orientação? O Brasil está presente nesse quadro como uma economia que cada vez mais assume um papel mundial importante. Como em outros momentos da sua história, o Brasil busca uma via de passagem para a sua atualização ao tempo do mundo, o que vem significando, de várias maneiras, uma atualização à globalização. O capitalismo é reconhecidamente um processo não só vitorioso na sociedade brasileira, mas também o lastro para que a economia brasileira assuma vigorosamente uma perspectiva mundial. Em síntese: o capitalismo está definitivamente estabelecido entre nós, a democracia da Constituição de 1988 funciona, a despeito de inúmeras dificuldades, e houve um processo de inclusão social à economia de mercado que repete em escala maior o que ocorreu durante a ditadura militar, especialmente no início da década de 1970. Mas há mais: a partir da estabilização monetária, há uma perspectiva nova para o capitalismo brasileiro que foi ganhando força e se consolidando. Como afirma Luiz Werneck Vianna, a partir dos governos de FHC e Lula, o capitalismo brasileiro passa a afirmar um projeto grão-burguês de inserção mundial e de reorientação interna da sociedade nessa direção. De acordo com o mesmo autor, “a expansão do capitalismo no país é vitoriosa em todas as suas frentes, a que não falta a sua projeção política e econômica para além de suas fronteiras nacionais, e a modernização burguesa é um empreendimento vitorioso, a essa altura reforçada pelos êxitos do agronegócio, que ainda encontra espaço para sua expansão. A era Lula deve ser reconhecida como aquela que precipitou mais um ciclo de modernização entre nós, na esteira de Vargas, de JK e do regime militar, em particular no governo Geisel”.5 Matizando um pouco mais, mas ainda permanecendo no campo da síntese, poderíamos dizer que esse projeto grão-burguês nos idos de FHC se estabelecia por meio de uma integração à globalização que realizasse as mudanças exigidas pelas finanças e pelo capital globalizado, tais como a estabilidade monetária, as privatizações, a liberalização de diversos setores da economia etc. Isso foi feito e, no essencial, o governo FHC foi exitoso nesse processo. Tanto interna quanto externamente os resultados foram visíveis e palpáveis. Nos tempos de Lula, há uma evidente continuidade desse processo e rigorosa5
VIANNA, L. W. A modernização sem o moderno. Brasilia/Rio de Janeiro: FAP/Contraponto, 2011, p. 19-20.
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mente nenhum passo atrás. O ingresso das classes populares de forma massiva na esfera do consumo – sua realização mais auspiciosa – é o resultado de um redesenho do mesmo projeto, agraciado circunstancialmente por um crescimento significativo dos preços das commodities em mercados emergentes, particularmente na China. Entretanto, no conjunto, o êxito não deve esconder um desempenho problemático da economia brasileira. Como enfatizam os economistas, a realidade dos números é implacável: o Brasil é um país que, em média, cresce pouco, às vezes dá saltos, outras vezes recua a crescimento zero ou negativo; essa situação parece dar sinais de continuidade nos próximos anos.6 Mesmo assim, o ambiente de positividade que o país vive por conta desse crescimento acaba gerando a sensação de que comparativamente estamos bem agora porque, conforme afirmou Kenneth Rogoff, no Financial Times, “o Brasil tem tudo o que a China precisa”. Fica claro, portanto, que o Brasil ainda não superou sua histórica vulnerabilidade. De acordo com Tony Volpon, jovem economista brasileiro, “se houver uma ‘parada súbita’ de fluxo de capital, nossa economia entrará em recessão”, como em 2008. E complementa: “tendo déficit em conta corrente e pouca poupança, o Brasil necessita de poupança externa para crescer, e qualquer queda em sua oferta necessariamente derruba o crescimento”.7 De qualquer maneira, a despeito da instabilidade latente desse padrão de crescimento, os vetores que o induziram resultaram em significativas transformações na sociedade brasileira. Isso iria influenciar a visão do governo brasileiro a respeito da crise financeira das economias norte-atlânticas. É, de certa forma, temerária a manifestação da presidente Dilma Rousseff, evidenciando a perspectiva grão-burguesa do capitalismo brasileiro acima mencionada quando ela dita conselhos aos países europeus para que eles enfrentem a crise com melhores e mais eficazes resultados. Sem ter sido protagonista das reformas liberalizantes da época de FHC (mas sempre admitindo a sua validade), a presidente esquece os dois momentos da modernização brasileira a que nos referimos: a inserção na globaliza6
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Acaba de ser divulgada a taxa de crescimento de 2011: entre 2,7 e 2,8%. A previsão de 3% não se confirmou. O Fundo Monetário Internacional (FMI) avalia que as economias de países emergentes também sofrerão deterioração em 2012 e 2013. Para 2013, o crescimento previsto é de 5,9%. Para o Brasil, o FMI espera alta de 3% em 2012 e 4% para 2013. Entre os países do Brics, a China é o que mais crescerá, com 8,2% em 2012 e 8,8% em 2013. Para a Índia, se espera expansão de 7% e, para a Rússia, 3,3%. Fonte: Estado de S. Paulo (20/01/2012). Tanto a citação de Kenneth Rogoff quanto o argumento desenvolvido estão em VOLPON, T. Uma crise econômica diferente de todas. Política Democrática, n. 31, 2011, p. 17-23.
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ção por meio de reformas liberalizantes e o seu redesenho com Lula, ampliando as bases do mercado consumidor brasileiro. Dilma, como se sabe, representa essa segunda etapa, desconsiderando as agruras da primeira! Contudo, o mais paradoxal nesse caso é que a receita aos países europeus de ampliar os investimentos e não simplesmente injetar recursos monetários na economia, não é aplicada no Brasil: o governo Dilma vem gastando mais com o custeio da máquina pública do que com investimentos; aquele encerrou 2011 em R$ 140,2 bilhões, alta de 13% em relação a 2010; já estes, que englobam as obras públicas e a compra de equipamentos, tiveram alta de apenas 0,8%, somando R$ 47,5 bilhões.8 A perspectiva de um capitalismo grão-burguês de pés de barro mas muito imagético fez com que ocorresse também uma mudança no âmbito das representações simbólicas na sociedade brasileira. Ao solidarismo e ao familhismo brasileiro, típicos da nossa cultura social e política, agregasse agora novas representações sociais: passa-se tanto a divinizar a ascensão ao consumo por meio de uma irrefletida noção de “classes médias” – que são, a um só tempo, realidade e desejo –, quanto se assume de forma hiper-positiva a marcante consigna do líder chinês Deng Xiaoping de que “enriquecer é glorioso”, transformação registrada na capa da revista Veja há poucas semanas atrás! Para muitos analistas, ambas dimensões se combinam também com a restauração do um “capitalismo de Estado” que funciona com o crescimento de recursos para o funcionamento da maquina governamental no plano federal, com a unidade pétrea entre grandes capitais nacionais em expansão pelo mundo, auxiliados providencialmente por um banco de financiamento, como o BNDES, atuando de forma a assegurar o protagonismo de empresários como Eike Batista, num momento em que a industria como conjunto dá sinais alarmantes de perda de vitalidade senão de sucateamento. Nada de casual, por fim, na exumação do discurso de “Brasil grande” e com ele a reiteração dos nossos mais perversos descaminhos, reafirmando uma mudança outra vez conservadora, um mudar conservando que ainda persiste no nosso presente. Tem razão Luiz Werneck Vianna quando observa que “há algo em nossa História, as marcas profun8
De acordo com um importante jornalista da capital da República, Luiz Carlos Azedo, tal fato “garante à presidente Dilma um poder enorme do ponto de vista da relação com os agentes econômicos, principalmente as grandes empresas que prestam serviços ou dependem de financiamentos e da intermediação do Executivo para fazer negócios. Críticos do governo acreditam que a presidente Dilma adotou o capitalismo de Estado como modelo de desenvolvimento, como ocorre na China e na Rússia, com a diferença de que o Brasil é um país mais democrático”. Correio Braziliense, 29/01/2012.
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das do seu pathos conservador, que conspira para que velhos repertórios (...) nunca saiam de moda, pois não se pode mais ignorar a ressurgência da síndrome típica dos nossos ciclos de modernização autoritária, já visível no retorno às práticas de centralização administrativa, ao modelo de capitalismo politicamente orientado, ao decisionismo que campeia na ação do Executivo e às esdrúxulas manias de grandeza nacional”.9 Em síntese, as transformações das últimas décadas mudaram profundamente o Brasil. O país passa efetivamente a ser tudo isso, mas infelizmente continua a ser também o que ele é: um país precário, com educação desfuncional e de baixa qualidade, um país sem rede de saneamento básico para a maioria da população, um país no qual a questão da saúde vive uma contradição entre o que é oficial, o SUS, e o cotidiano trágico da maioria das pessoas. O Brasil é hoje a expressão política de um capitalismo grão-burguês em rápida estruturação, mas de hegemonia débil! Aqui a expansão do mercado em todos os sentidos da vida não tem encontrado nem o cenário nem os atores que poderiam fincar o moderno no coração da vida social brasileira. Em outras palavras, e para mencionar mais uma vez Luiz Werneck Vianna, a acepção mais vigorosa do moderno, “marcado pela emancipação da sociedade diante do Estado10 por meio de um contínuo aprofundamento da democracia, de valorização da auto-organização social e da autonomia da vida associativa diante do Estado” ainda não encontrou no Brasil o seu par com o processo de modernização. E por isso, o moderno ainda não é uma nova civiltà, assimilada e praticada por todos os brasileiros.
VIANNA, L. W. Problemas de repertório, o Barcelona e nós. Estado de S. Paulo, 11/01/2012. 10 ______. A modernização sem o moderno. Brasília/Rio de Janeiro: FAP/Contraponto, 2011, p. 20 9
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Para retomar o controle da própria vida1 Alfredo Reichlin
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que resta da verdade (isto é, da capacidade de ler a crise e o quadro social) depois do declínio da era dos populismos midiáticos? É a pergunta que se puseram recentemente Umberto Eco e outros em Turim. É uma pergunta interessante porque induz a pensar sobre a complexidade da crise com categorias não só econômicas. A resposta a esta pergunta não pode ser dada só olhando as ruínas deixadas na Itália pelo longo “Truman Show” de Berlusconi, mas encarando as razões pelas quais o destino da Europa é tão incerto. Finalmente, começa-se a reconhecer que uma destas razões reside no fato de que vem se esfarelando o compromisso político e social que esteve por quase um século na base da democracia europeia. Quando falamos de reformismo, seria preciso, antes de mais nada, compreender melhor a grandeza e a dramaticidade desta transformação. O que está em jogo, que tipo de ordenamento da vida social está em discussão, quais compromissos históricos radicais estão se desmanchando? As palavras não correspondem às coisas. Por trás da abstrusa linguagem dos economistas que nos falam de spreads, existem fatos grandiosos. Entre outros, a crise da hegemonia americana, com a consequência da ruptura daquilo que foi até agora a “ordem” econômica mundial. A guerra das moedas é uma das consequências: uma espécie de guerra mundial até agora incruenta. Quanto tempo vai durar a senhoriagem do dólar? E, se o euro sobreviver, qual será o lugar da Europa no mundo de amanhã? Em todo caso, estamos assistindo – como muitos já repetem – ao fim da chamada “ocidentalização do mundo”. A saber, ao fim daquele tempo e daquele lugar histórico que viram nascer o Estado, os direitos do homem, a ideia de progresso, Karl Marx e Adam Smith, o Iluminismo e as guerras de religião. Este é o cenário no qual deve se colocar o reformismo. Nem tudo é decadência. Certamente, o entrelaçamento de economia, política e ciência se tornou muito mais estreito. Para dar só um 1
Este texto foi publicado originariamente em Italianieuropei, Roma, n. 1, 2012, e traduzido por Luiz Sérgio Henriques.
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exemplo, ainda não avaliamos suficientemente o modo pelo qual o “clique” no computador revolucionou a economia. Sem a rede informática e telemática, seriam realmente impensáveis a capacidade e o extraordinário poder do capital financeiro de se tornar independente dos territórios e das velhas regras da economia real. Os automóveis devem ser construídos e em seguida movimentados. Ao contrário, os capitais se movimentam em tempo real. Foi assim também que se criou um desequilíbrio sem precedentes entre o cosmopolitismo da economia financeira (capaz de movimentar a riqueza do mundo) e a subalternidade da política, cujos poderes permaneceram locais. Não é só por isso, mas é também por isso que o cidadão perdeu sua soberania (os direitos iguais, a proteção do próprio Estado) e que se afirmou uma nova “teologia”. A ideia segundo a qual a sociedade, isto é, aquela rede de laços históricos, culturais e mesmo ancestrais que chamamos sociedade não existe. Só existem os indivíduos, imersos num eterno presente. E estes indivíduos, sozinhos, sem identidade e sem passado, definem-se de um único modo: na relação que têm com o dinheiro. Os famosos mercados, que não casualmente são indicados com a reverência e a submissão que se reserva às divindades, as quais – como sabemos – são “ocultas” e até caprichosas, como eram os antigos deuses que habitavam o Olimpo. Um Olimpo que, desta vez, reside parcialmente em Wall Street e parcialmente nas mãos poderosas de quem controla as redes de comunicação, das linguagens, do imaginário. Referimo-nos aqui àquela grande ideologia segundo a qual acabaram as ideologias e, portanto, os mercados governam, os técnicos administram, os políticos vão à televisão para se tornarem alvo de zombaria. Não basta a análise econômica. A nova ordem econômica com dominância financeira caminhou em estreitíssima relação de causa-efeito com uma estrutura cultural de extraordinária força e penetração. Um modo de pensar a realidade que torna incerto o limite entre o verdadeiro e o verossímil. Criou-se assim espaço para as “expectativas”. Exatamente as expectativas é que são o combustível da nova economia financeira. Por isso, são decisivos o mundo da comunicação, seus valores, sua capacidade de criar necessidades e expectativas. Eis por que podemos dizer que estamos numa verdadeira transição histórica. De um modo ou de outro, é o fundamento das coisas que volta à discussão. É aquela extrema concentração da riqueza imaterial que consiste no controle das consciências. O poder dos poderes. É a visão da realidade como o meio mais poderoso para controlar a ação humana. Em suma, o chamado “pensamento único”, ou seja, it’s the economy, stupid. Mas, afinal, não se trata de nenhuma Alfredo Reichlin
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novidade; de diferentes modos e em diferentes épocas sempre houve um “pensamento único”. Pensemos na Idade Média, quando durante séculos os artistas – muito variados entre si – pintavam um só tema: as histórias de Cristo. As ideias dominantes – dizia Marx – são as ideias da classe dominante. Mas a novidade é que nos lugares mais diversos, na Itália e em Nova York, em Madri e em Roma, começa a mexer-se algo mais profundo. Um protesto, sobretudo entre os jovens. O protesto contra Wall Street. É uma coisa considerável, muito positiva. Mas atenção: devemos desconfiar dos extremismos, que se esgotam numa labareda. Uma luta séria, que redunde num desfecho novo, requer uma análise diferenciada, uma ideia menos grosseira das economias de mercado e, portanto, das alianças possíveis. A financeirização da economia, com toda a sua carga de riqueza fictícia, é só uma nova forma do capitalismo ou é algo verdadeiramente novo? Desconfiemos das simplificações, se quisermos que o protesto se baseie numa visão mais clara da realidade e, portanto, em novos alinhamentos democráticos. Não se pode pensar numa transformação do mundo sem compreender melhor a “coisa” que queremos transformar. Lembremos que o capitalismo histórico foi a maior revolução humana depois da agricultura. Conjugando mercado e técnica, o capitalismo desencadeou uma desmedida potência produtiva num tempo histórico irrisório, três séculos. Mas o capitalismo não foi só mercado: também foi capacidade criativa e difusão de bens e de valores. Eis agora a questão. Por que chegamos a este ponto, isto é, ao fato de que os mercados (os quais, de resto, não são mercados, mas uma caricatura deles, sendo os chamados mercados financeiros não regulados, não transparentes e não garantidos pelas leis) tiveram licença para agredir e arruinar o trabalho, o bem-estar, as empresas, o Estado social de um país como a Itália, que, afinal, é a sétima economia do mundo? De onde vem a força dos poderes que nos levaram a este ponto? A resposta só pode vir de uma análise mais longa, que aqui só podemos mencionar. Pensemos na importância crucial da guinada política ocorrida entre os anos 1960 e 1970, isto é, na decisão sem precedentes históricos tomada pela direita anglo-americana (Thatcher e Reagan) de retirar todo e qualquer limite à circulação dos capitais e dar aos grandes bancos privados o direito de ir muito além da tarefa de conceder crédito aos empresários, para assumir a de criar moeda fictícia, emitindo títulos ao infinito. De fato, o poder de emitir moeda. Foram decisões cruciais que mudaram a história e sobre as quais, a seu tempo, certamente se falou, mas como fatos técnicos que só interessavam aos especialistas. Ao contrário, assim se criou um mar 148
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de dinheiro que não aumentava a riqueza real, mas atraía a poupança do mundo com a ideia de que se podia fazer dinheiro manipulando dinheiro, e foi deste modo que a América, dada a sua força política, pôde viver acima dos seus recursos. Um mar de dinheiro de tal ordem que as atividades financeiras já superaram em quase quatro vezes o produto real do mundo. Mas agora quem paga a conta? A quem cabe pagar as dívidas que pesam acima de tudo sobre as novas gerações? É tempo de uma nova subjetividade política e cultural – o reformismo – voltar a campo para nos restituir o sentido daquilo que aconteceu, por que aconteceu e quais forças é preciso controlar. O inimigo não são os bancos como instrumento essencial para fornecer crédito à economia, mas o modo pelo qual uma oligarquia financeira criou uma renda imensa que pesa sobre o mundo. Coloquemo-nos novamente a pergunta: sobre o que estamos falando? Estamos falando de algo que põe em questão muito mais do que a eficácia desta forma de capitalismo: põe em discussão sua própria legitimação ética. E isso por uma razão que está emergindo em toda a sua complexidade, ou seja, o mundo não pode ser governado deste modo. O problema da Grécia, isto é, o do destino de um povo e de uma civilização milenar, não pode se tornar um fato negligenciável diante do risco de que vão à falência alguns grandes bancos alemães que se expuseram demais. Nisto está a diferença com o capitalismo histórico. Este, afinal, foi uma civilização, a civilização da Europa moderna. Foi o instrumento extraordinário que num breve lapso de tempo (a partir do início do século XVIII, não antes) permitiu à humanidade dar um salto impressionante. Mudou aquilo que por milênios só havia mudado bem pouco. No século XVIII, os galeões espanhóis ainda navegavam à vela, como as felucas dos fenícios, e os lordes ingleses se tratavam mais ou menos como no tempo dos antigos romanos. Nasceu uma “máquina” que multiplicava a riqueza real como nunca acontecera antes e que permitiu à Europa povoar o mundo em dois séculos. É importante recordá-lo, pois o que está acontecendo é o fim deste mundo, é a mudança de um modo de produção que também foi, ainda que nas formas mais cruéis, um processo de emancipação do homem em relação a velhos vínculos. É verdade, como Marx nos explicou, que coisas como a igualdade jurídica e os direitos de cidadania eram direitos formais. Mas, por mais “formais” que fossem, mesmo assim representavam uma enorme diferença em relação à servidão da gleba. Nasceram o cidadão e o Estado democrático. Ford explorava seus operários, mas se preocupava com que ganhassem bastante para poder comprar seus carros.
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Só agora começamos a avaliar o que aconteceu entre os anos 60 e 70 do século XX. Uma mudança imensa estimulada por uma revolução científica e técnica – o digital – só comparável à revolução do maquinismo de um século antes. Ao mesmo tempo, uma nova oligarquia nascida das elites políticas e financeiras anglo-saxãs abolia toda e qualquer limitação e controle sobre o movimento de grandes volumes de capital e transformava a finança de infraestrutura de serviços da economia numa indústria para fabricar dinheiro. Os efeitos foram perturbadores. O grosso das atividades manufatureiras deslocou-se para os países de mão de obra barata, enquanto o trabalho e toda a ordem europeia da economia social de mercado entraram em crise: uma civilização e uma cultura foram postas em discussão. Ocorreu assim uma ruptura na vida histórica do capitalismo. É o que Paolo Prodi (o economista irmão de Romano) chama de “fim do dualismo”. Um dualismo (cito suas palavras) como não coincidência do poder político com o econômico e como criação de normas éticas e normas de direito positivo, as quais representaram o fator que progressivamente levou ao desenvolvimento do homem moderno e, portanto, à criação do Estado social e à velha supremacia da Europa. Eis por que se fala de cesura histórica. Porque o que conhecemos até agora como civilização capitalista foi este dualismo. Um dualismo que é também um fato histórico, possibilitado pela existência de grandes “contenedores” (Estados, culturas, sistemas) que garantiam uma determinada relação entre política e economia. Os “espíritos animais” da ganância se legitimavam na medida em que eram forçados a se haver com direitos, conquistas de liberdade, difusão do bem-estar e até com impulsos para uma certa igualdade social. Eis por que, para compreender e saber o que enfrentamos, temos necessidade de um pensamento político menos economicista e mais histórico. O que nos dá a medida do problema é que a ordem mundial do capitalismo financeiro foi construída nos anos 70 não só por razões econômicas, mas em consequência de uma verdadeira “conjunção dos astros”. É nos anos 60 que o modelo de desenvolvimento de tipo keynesiano – isto é, aquela espécie de pacto implícito entre o Estado e o capitalismo industrial, o chamado compromisso entre a democracia e o capitalismo – começa a entrar em crise. E isso por uma série de fatores, entre os quais fundamental foi a internacionalização dos mercados e, portanto, a geração de uma bifurcação crescente entre o poder de uma economia que se mundializava (basta pensar na força das multinacionais) e a velha soberania do Estado tradicional referida a mercados que eram ainda amplamente domésticos. Mas tudo isso se entrelaçou com fenômenos históricos absolutamente grandio150
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sos. Uma revolução técnico-científica que superava as velhas fronteiras do espaço, do tempo e da natureza (o digital, a informação, as biociências). E isso no quadro, também de alcance histórico, produzido pelo colapso do socialismo real e pela afirmação de uma “superpotência” sem mais rivais, só comparável à Roma de Augusto. De fato, a elite política anglo-americana delegou à grande finança este poder imenso que consiste em decidir como alocar os recursos do mundo. E o fez pensando que, por possuir a moeda de reserva (o dólar), poderia condicioná-lo. De quais economias de mercado estamos falando? Inverteram-se as relações de força entre o governo e as multinacionais, entre o capital e o trabalho, entre a política e a economia. Tornou-se abissal a distância entre quem produz a riqueza real e quem especula com os movimentos financeiros. Sem pretender acrescentar nada às muitas análises já realizadas, é correto perguntar, no entanto, se já avaliamos suficientemente os efeitos do enorme desequilíbrio que está em curso na distribuição da riqueza e, portanto, no mundo dos valores e dos significados da existência. Não é um problema pequeno. A busca sem limites de lucros na conta capital fez com que valores como lealdade, integridade, confiança, significados da vida fossem progressivamente postos de lado para dar espaço ao resultado em curto prazo. Conseguiu-se fazer com que milhões de pessoas acreditassem que, usando o cartão de crédito (foi a promessa de Bush), poderiam se enriquecer e, portanto, aceitassem a diminuição dos salários. É difícil tirar conclusões, dizer aonde estamos indo. Tudo nos diz que está se verificando a “grande transformação” de que falava Karl Polanyi, isto é, a crescente contradição entre, por um lado, a lógica do capital financeiro, que tende a invadir não mais só o mundo das mercadorias, mas também os significados e os valores da vida: as necessidades, as culturas, os modos de pensar e de viver, até mesmo a lógica das empresas produtivas (vale o seu produto ou o valor de bolsa?); e, por outro, o fato de que inexoravelmente o desenvolvimento humano avança e tenderá cada vez mais a fazer valer sua própria autonomia e, portanto, por seu turno, a condicionar a economia a ponto de subverter seus mecanismos. Por isso, os grandes economistas e os dirigentes políticos se contradizem e não sabem mais o que fazer. Tal como é, o mundo não vai bem; é verdade que 1 bilhão de pessoas saiu da miséria, mas em amplas zonas do mundo se assiste à dissolução de todo e qualquer poder estatal, de modo que grandes massas humanas não só são pobres, mas não mais conhecem leis, direitos, instrumentos e serviços públicos elementares. Não sabem bem quem são. Basta observar as faces desesperadas dos miseráveis que Alfredo Reichlin
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desembarcam no nosso litoral e os olhares das suas crianças para nos darmos conta do ódio que estamos semeando e dos espaços enormes que se abrem para a violência, o tráfico de drogas e armas, a corrupção e a destruição dos bens ambientais, as guerras civis endêmicas. Que humanidade está se formando? Esta é a pergunta principal que seria preciso propor. É verdade que também está emergindo uma sociedade civil global estimulada pela rapidez com que os novos instrumentos de informação e comunicação se difundem sobretudo entre as novas gerações. Trata-se de movimentos ainda fragmentados, os quais, no entanto, tendem a reforçar um sentido de solidariedade humana. O problema fundamental é estimular de todos os modos um movimento capaz de provocar um aumento da capacidade e da vontade das pessoas de retomar o controle da própria vida. Tomar o controle da própria vida: é uma tarefa fundamental, aquela que se choca mais profundamente com a lógica do capitalismo financeiro. Algo análogo ao que representou a formação de uma consciência de classe no tempo do capitalismo industrial. A televisão e, em seguida, o computador e a internet são os condicionadores mais formidáveis do pensamento, não só no sentido de que nos dizem o que pensar, mas em sentido mais profundo, porque modificam nosso modo de pensar. Penaliza-se o pensamento analítico e sequencial, aquele que há séculos forma a cultura e que a escola até agora ensinou. Está se formando um pensamento novo, mais holístico. A interrogação é se esta transformação é ou não necessariamente uma desdita. O pensamento analítico fez a história do Ocidente. Mas até agora os homens não tiveram e não podiam ter o sentido global do mundo real. Hoje, talvez sim. Poderia ser esta a função da rede, uma rede que envolve a todos? Assim como ela pode nos levar às grandes mentiras, pode nos permitir estabelecer um novo nexo entre verdade e democracia. O que infunde confiança é o fato de que a democracia tem necessidade da verdade. Porque, se decido sozinho, não sei o que fazer com a verdade, mas, se é preciso deliberar em conjunto, então tenho necessidade absoluta dela. Certamente, na web tudo parece verdadeiro, até mesmo o falso, mas aumentaram os recursos de compreensão, avaliação e, sobretudo, a pluralidade das fontes à nossa disposição. Não são só os corifeus da ciência, da religião e do poder político que nos dizem como estão as coisas. Hoje, é possível um novo pensamento coletivo inspirado por uma crescente exigência de sentido, de verdade e de conhecimento. O movimento das mulheres é o fenômeno mais significativo. Talvez pela primeira vez possa se formar uma maioria que construa de modo novo os instrumentos para pensar a realidade e o destino do homem. 152
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Para retomar o controle da própria vida
Devemos nos reapropriar das nossas vidas. Devemos impedir que os indivíduos sejam isolados, deixem de ser pessoas para se transformarem em “máscaras” sob as quais não existem homens e mulheres diferentes e, portanto, reais, donos de si, mas só indivíduos cuja personalidade se mede com uma única medida: o dinheiro. É o caso de perguntar se a extremada exaltação do individualismo não está se transformando numa espécie de “exaltação e morte da pessoa”. Deveríamos definir assim o capitalismo financeiro? Mas, então, voltam às nossas mãos não só a bandeira da justiça, mas também a da liberdade humana.
Alfredo Reichlin
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Causas prováveis da 4ª Guerra Mundial Fernando Alcoforado
A
situação atual do planeta é dramática. A humanidade se sente esmagada pelas grandes potências mundiais a serviço dos grupos monopolistas que comandam suas economias e que tudo fazem em defesa de seus interesses, desrespeitando leis, culturas, tradições e religiões. Invasões em países periféricos, de forma aberta ou sub-reptícia, com argumentos pouco convincentes fazem parte do cotidiano das grandes potências na sua busca incessante pelo poder mundial mesmo que para isso tenham que desrespeitar leis internas e tratados internacionais. No contexto internacional atual, é possível identificar três conflitos potenciais que podem dar início à 4ª Guerra Mundial: 1) O declínio dos Estados Unidos e a ascensão da China como potência hegemônica mundial; 2) O conflito Israel-Palestina; e, 3) O conflito Israel-Irã. O declínio dos Estados Unidos e a ascensão da China como potência hegemônica mundial Há uma suposição em muitas partes do mundo de que a crise geral do sistema capitalista mundial de 2008 acelerará a mudança geopolítica de longo prazo, anunciando o declínio do poder americano. O jornal Estado de S. Paulo publicou em 21/11/2008 artigo sob o título Força dos EUA no mundo diminuirá, diz inteligência americana...1 O texto é o seguinte: O Conselho de Inteligência Nacional dos Estados Unidos, parte do aparato de segurança de Washington, publicou uma previsão impressionante. O sistema internacional como elaborado após a Segunda Guerra Mundial estaria, como previsto, “irreconhecível” em 2025, graças à globalização, à ascensão dos poderes emergentes e “uma transferência histórica de riqueza relativa e poder econômico do Ocidente para o Oriente”. Nesta publicação, constata-se que “os próximos 20 anos de transição para um novo sistema serão repletos de riscos”. 1
Ver o site: <http://www.estadao.com.br/noticias/geral,forca-dos-eua-no-mundo-diminuira-diz-inteligencia-americana,281283,0.htm>.
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Causas prováveis da 4ª Guerra Mundial “As rivalidades estratégicas provavelmente girarão em torno do comércio, investimentos e inovação e aquisição tecnológica, mas não podemos descartar um cenário do século 19 de corrida armamentista, expansão territorial e rivalidades militares”.
Paul Kennedy afirma que o exercício da liderança consensual global, a prosperidade econômica e o poderio militar norte-americano do pós-guerra estariam em crise (KENNEDY, 1989). O declínio dos Estados Unidos se acentuou na primeira década do século XXI ao tempo em que ocorreu a ascensão econômica da China que pode assumir a condição de maior potência mundial em meados do século XXI. Entretanto, não fica claro se haverá um final feliz para a humanidade. Será que a ascensão da China aumenta a probabilidade de guerra entre as grandes potências? Haverá uma nova era de tensão entre Estados Unidos e China tão perigosa quanto foi a guerra fria (3ª Guerra Mundial) entre Estados Unidos e a União Soviética? Se a China conseguir manter elevadas taxas de crescimento do PIB da ordem de 10% ao ano que se registrou nas últimas décadas, produzirá um grande estrago nas economias de vários países com a invasão de produtos chineses de baixo custo. Esta situação contribuirá ainda mais para a desindustrialização de quase todos os países do mundo porque suas indústrias quebrarão ou se deslocarão para a China para viabilizar sua competitividade no mercado mundial. O desemprego atingirá níveis gigantescos tanto nos países capitalistas centrais quanto nos periféricos fazendo com que sua estabilidade social e política seja insustentável. Em outras palavras, a prosperidade da China poderá produzir, em contrapartida, a inviabilização da recuperação das economias dos Estados Unidos e da União Europeia e, consequentemente, da economia mundial, porque vivemos em uma economia mundial de soma zero, isto é, enquanto alguns países ganham outros perdem. Se a prosperidade da China acontecer às custas da inviabilização da recuperação das economias dos Estados Unidos e da União Europeia e, também, da economia mundial, ����������������������������� poderia levar os Estados Unidos e outros países a confrontá-la como propõe Robert D. Kaplan, jornalista norte-americano estudioso de política internacional, que afirma que a emergência da China como uma superpotência é inevitável e que conflitos de interesses com os Estados Unidos serão incontornáveis. Para enfrentar com vantagem essa ameaça, Kaplan propõe que os Estados Unidos devem adotar uma “estratégia bismarckiana de contenção centrada no Comando Americano do Pacífico, conhecido como Pacon.” (BRUSSI, 2008) Fernando Alcoforado
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Outra possibilidade é a de que a China seja bem-vinda à ordem existente e que se admita que prospere dentro dela. Esta situação resultaria da interdependência econômica existente entre os Estados Unidos e a China porque esta depende do mercado e dos investimentos norte-americanos e os Estados Unidos precisam do Banco Central chinês para comprar boa parte dos títulos da dívida dos Estados Unidos. Esta situação reforça a posição defendida por Henry Kissinger, ex-secretário de Estado norte-americano, que entende que o interesse americano será muito mais facilmente alcançado a partir da cooperação com a China (Ibidem). James Pinkerton, escritor e analista político norte-americano, é um duro crítico da estratégia de contenção militar de Kaplan e da proposta de acomodação de Kissinger. Pinkerton se opõe a Kaplan porque considera inviável uma coalizão suficientemente ampla para o enfrentamento da China nos moldes da organizada para derrotar a Alemanha na Segunda Guerra Mundial. Pinkerton propõe que, ao invés do enfrentamento direto, o governo dos Estados Unidos coloque as atuais potências asiáticas (Índia, China e Japão) umas contra as outras (Ibidem). Se a direita fascista norte-americana ocupar o poder, as estratégias de confrontação propostas por Kaplan ou Pinkerton poderão ser levadas avante. A estratégia de Kissinger só acontecerá se a direita fascista não assumir o poder. O conflito Israel-Palestina O conflito Israel-Palestina tem 3 dimensões: 1) local; 2) regional; e 3) global. A dimensão local é aquela que coloca em confronto os interesses de dois povos: o palestino e o judeu pela ocupação do mesmo território em disputa. A dimensão regional diz respeito ao confronto entre Israel e os países árabes em que estes últimos se aglutinam contra o primeiro em solidariedade ao povo palestino e, também, por identificar Israel como “ponta de lança” dos interesses dos Estados Unidos no Oriente Médio. Finalmente, existe a dimensão global pelo fato de se contrapor, de um lado, a Civilização Ocidental, representada por Israel e as potências ocidentais e, de outro, a Civilização Islâmica, representada pelos palestinos e países árabes. O conflito de dimensão local alimenta o de dimensão regional e ambos alimentam o conflito global. Os palestinos querem estabelecer um Estado Palestino soberano e independente. Apesar da devolução da Faixa de Gaza e de partes da Cisjordânia para o controle palestino, um acordo final ainda precisa ser estabelecido. Para isso, é preciso resolver os principais pontos de 156
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Causas prováveis da 4ª Guerra Mundial
discórdia, que são o status de Jerusalém e o destino de refugiados palestinos e de assentamentos judeus. Apesar de vários outros acordos e planos de paz, como os de Camp David e das negociações do chamado Quarteto para o Oriente Médio (Estados Unidos, União Europeia, Rússia e ONU), a situação ainda se encontra em um impasse. Israel e a Autoridade Nacional Palestina (ANP) não são os únicos a protagonizar disputas na região. Marcados por diferenças religiosas, culturais e políticas, os Estados árabes e persa (Irã) que integram a região vivem inúmeros conflitos alimentados pelo jogo de influências das grandes potências. Desde a criação do Estado de Israel, o conflito que o opõe aos palestinos tem sido o epicentro de um conflito entre Israel e o conjunto dos países árabes, com fortes repercussões mundiais. Houve guerras de Israel com o Egito, a Jordânia, a Síria e o Líbano, mas sem que a tensão na região diminuísse. Além de assumir a dimensão local e regional, o conflito Israel-Palestina pode se tornar global pelo fato de ser considerado como a matriz de um possível confronto de civilizações. Representando a civilização ocidental se encontram os judeus que são vistos como assimilados pela civilização ocidental, apesar de suas origens na região da Palestina em disputa, e representando a civilização islâmica estão a ANP e os países árabes. É pouco provável que o conflito entre palestinos e judeus seja solucionado na atualidade porque os Estados Unidos e as instituições internacionais existentes não são capazes de construir uma saída negociada para o conflito entre estes dois povos e entre Israel e os países árabes. O conflito Israel-Irã No artigo de Lluís Bassets sob o título “O mundo está prestes a entrar em guerra”, publicado em 03/02/2012 no jornal El País da Espanha, é informado que Israel desencadeará contra o Irã bombardeios de precisão realizados por aviões não tripulados e por bombardeiros carregados com obuses perfuradores com o objetivo de eliminar o perigo nuclear iraniano. O motivo deste ataque de Israel seria evitar que o Irã se transforme em uma potência nuclear que possa vir a ameaçar sua existência como nação. A república islâmica do Irã jamais reconheceu a existência do Estado judeu, e muito em particular seu atual presidente, Ahmadinejad, que repetidamente clama por sua destruição. Javier Valenzuela publicou no jornal El País da Espanha de 08/02/2012 artigo sob o título Governo de Israel pode atacar as insFernando Alcoforado
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talações nucleares iranianas, afirmando que o Irã khomeinista tem inúmeras razões para querer possuir armas nucleares. Começando por sua vontade de ser uma potência regional – enraizada tanto no nacionalismo persa como no islã xiita – e terminando por seu temor de ser vítima de uma agressão bélica americana e/ou israelense. Os iranianos se convenceram de que só a verdadeira posse de armas de destruição em massa pode livrá-los de um ataque externo. Valenzuela afirma que Israel poderá iniciar as hostilidades militares na primavera ou no verão próximos. Esta ação não é descartável mesmo que Obama tente impedir. No entanto, Israel não está em condições de infligir um dano irreparável ao programa nuclear iraniano porque suas instalações se encontram muito dispersas, protegidas e em alguns casos em profundidades inatingíveis, mesmo pelas megabombas antibunker. Só os Estados Unidos poderiam lhe causar um dano mais sério, mas às custas de empregar durante longo tempo todo o seu potencial de bombardeio com mísseis e a partir de aviões. E mesmo assim os especialistas acreditam que também não conseguiriam encerrar o caso definitivamente porque a Rússia e a China se envolveriam, também, no conflito apoiando o Irã. Ficaria, então, o recurso à invasão terrestre, a guerra total, algo inatingível para Israel e impensável hoje para os Estados Unidos em face dos problemas econômicos que enfrenta. O ataque israelense contra o Irã daria oxigênio político ao regime dos aiatolás, que se encontra no ponto mais baixo de sua legitimidade doméstica e sua influência regional. Permitiria que se apresentassem como vítimas de uma agressão. No interior apelariam tanto para o sentimento nacional persa como ao islâmico para mobilizar sua população. No exterior poderiam revigorar seu prestígio entre setores anti-imperialistas do mundo inteiro, principalmente o mundo árabe e muçulmano. Poderia haver ataques de aliados do Irã que são o grupo libanês Hizbollah e o palestino Hamas. Não seria descartável uma guerra total no Oriente Médio. Como tampouco uma campanha de ações terroristas no resto do mundo contra alvos israelenses e judeus. Para não falar em uma tentativa de fechamento do estreito de Ormuz por parte do Irã, com a consequente crise petrolífera planetária. Além disso, o Irã poderia sabotar refinarias e oleodutos em território saudita. Bassets afirma que o ataque preventivo israelense aumentará ainda mais o grau de incerteza sobre o futuro do mapa geopolítico do Oriente Médio. Os Estados Unidos e a União Europeia já se engajaram ao decidir bloquear os negócios com o banco central do Irã e não comprar um só barril de petróleo iraniano. Se há grande incerteza em relação aos resultados imediatos de um ataque, maior ainda é em 158
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Causas prováveis da 4ª Guerra Mundial
relação aos efeitos sobre a geopolítica de uma zona submetida a um terremoto de mudanças. Israel se encontra em um momento crucial para seu futuro, em isolamento internacional e dependente do rumo do Egito, assim como da possibilidade de ruptura ou modificação do tratado de paz de Camp David, que lhe garantiu mais de 30 anos de estabilidade na fronteira ocidental. Também na Jordânia poderão se precipitar os acontecimentos em direção a um endurecimento das relações com Israel. Como evitar a 4ª Guerra Mundial? Por que há guerras? Ambições de conquistas, interesses econômicos e comerciais e competições políticas e/ou ideológicas são as verdadeiras causas das guerras ao longo da história. Como evitá-las? É chegada a hora da humanidade se dotar o mais urgentemente possível de instrumentos necessários ao controle de seu destino e colocar em prática um governo democrático do mundo. Este é o único meio capaz de impedir a ocorrência de guerras e assegurar a sobrevivência da espécie humana. Se tudo continuar como está nenhuma estrutura, nem mesmo a ONU, que funciona, na prática, a serviço dos interesses das grandes potências, especialmente dos Estados Unidos, será capaz de governar o mundo. Referências ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX. São Paulo: Unesp. 1996. ARRIGHI; Silver. Caos e governabilidade no moderno sistema mundial. Rio de Janeiro: Contraponto. 2001. BONIFACE, Pascal. Vers La 4e. Guerre Mondiale. Paris: Armand Colin. 2009. BRUSSI, Antônio José Escobar. A pacífica ascensão da China: perspectivas positivas para o futuro? Revista Brasileira de Política Internacional, v. 51, n.1. Brasília. 2008. HUNTINGTON, Samuel. O Choque de Civilizações. Rio: Objetiva. 1996. KENNEDY, Paul. Ascensão e Queda das Grandes Potências: Transformação Econômica e Conflito Militar de 1500 a 2000. Rio de Janeiro: Campus, 1989.
Fernando Alcoforado
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X. Vida Cultural
Autor Vladimir Carvalho
Cinesta com inúmeros documentários, sendo o último lançamento: Rock Brasília – Era de ouro. Jornalista e professor da Escola de Cinema da Universidade de Brasília. Foi o 1o presidente nacional da Fundação Astrojildo Pereira.
A gênese da cena roqueira brasiliense Vladimir Carvalho
O
s últimos anos da década de 1970 e início dos anos 1980 vieram encontrar Brasília vivenciando as dificuldades para – ao vencer a fase mais longa do regime discricionário da ditadura militar – realizar a volta ao Estado de Direito e reinstalar a democracia no país. O espírito mítico da marcha para o oeste e o sonho de uma capital da esperança ainda dominante no período pós-construção e inauguração haviam se extraviado com o advento do golpe de 1964. Mas, saliente-se que, mesmo antes, no alvorecer dos 1960, quando aportaram aqui as primeiras famílias, vindas de diversos pontos do Brasil, os jovens que as acompanhavam puderam sentir, além do choque diante do belo e surpreendente espaço arquitetônico, e dos rigores do clima, os resquícios de uma mentalidade arcaica que dificultara aqui, por exemplo, a existência de uma coletividade universitária e de uma classe trabalhadora típica dos grandes centros, de acordo com as perspectivas da nação. Mesmo que essa atitude ideológica que, inclusive, negava o modelo e a mística do desenvolvimentismo então proposto, nunca tenha sido de fato formulada, a sua virtualidade pairava no ar, a ponto de Darcy Ribeiro, sempre perspicaz e ativo, denunciar categórico, quando da implantação da Universidade de Brasília (UnB), que “não se queriam aqui nem estudantes fazendo baderna, nem operários fazendo greve”. O fato é que, depois de inaugurada, Brasília tomou seu destino nos dentes e caminhou firme abrindo-se para a vida como amplo canteiro em que aos poucos seriam lançadas as sementes de uma 163
Vida Cultural
possível identidade, o que só ocorrerá em longa e demorada gestação. De todo modo, ali se encontrava o terreno virgem e sem memória, onde tudo estava por acontecer. Foi então que, vencendo resistências e preconceitos, surgiu a UnB, trazendo consigo todo um séquito do que havia de melhor na inteligência brasileira, a fina flor das artes e das ciências. Para ficarmos só no âmbito das artes, mobilizou-se o cinema de Nelson Pereira dos Santos, Paulo Emilio Salles Gomes e Jean Claude Bernardet; as artes plásticas de Athos Bulcão, Vicente do Rego Monteiro, Rubem Valentim e Glênio Bianchetti; o time da arquitetura incluía o gênio criador de Oscar Niemeyer; e a música erudita pontificou sob a batuta notável de Cláudio Santoro. Noutra esfera não menos importante – a da cultura popular – o samba, arte do povão, ficou por conta da presença de modestos servidores dos ministérios, sobretudo dos que vinham já saudosos do carnaval e nostálgicos das suas escolas de samba do subúrbio carioca, como os exemplos de Bide, Brigadeiro e, de certa maneira, Avena de Castro e Waldir Azevedo, para citar só os que nos ocorrem no momento. Nessa mesma linha espontânea, o folclore chegou e sobrevive até hoje pelo esforço solitário de Teodoro do Boi, mestre inconteste que, com seu Bumba, marcou indelevelmente nossa paisagem cultural. O maranhense seo Teodoro morreu em fevereiro último. Na verdade, todo esse quadro corresponde em diversos planos a uma natural herança e transplante de experiências em princípio alheias a um espaço onde avultava somente árida natureza e escassa população. Essas premissas têm muito a ver com o que terminou ocorrendo, cerca de vinte anos depois, já ao apagar das luzes da vigência do regime militar, por obra e graça da intervenção quase involuntária dos filhos da classe média em Brasília estabelecida. Era natural que na sede do governo e do parlamento inexistisse o convencional mercado de capitais, reflexo direto da presença da grande empresa e do capital empreendedor, à sombra dos quais costuma crescer a atividade artística e cultural. E foi nesse cenário, quase exclusivo de funcionalismo público, de tecnocratas, professores e servidores da diplomacia que surgiram as primeiras gerações adventícias ou nascidas na capital. Justamente no período de surda, mas intensa luta pelo restabelecimento das liberdades democráticas. De forma insuspeita, mas legítima e em perfeita consonância com as condições políticas e históricas da cidade e do país, aqueles moços ainda adolescentes, alguns recém-chegados do exterior, enfrentaram o chamado vazio cultural, e sem opções de lazer, se inquietavam sob os pilotis de suas quadras, como aquele ser entediado “sentado em164
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A gênese da cena roqueira brasiliense
baixo do bloco / sem ter o que fazer / olhando as meninas que passam”, da música do Trovador Solitário, o hoje celebrizado Renato Russo. Imantados de dispersos sentimentos punham em marcha, talvez sem perceberem, o seu ensaio de utopia, quando as guitarras eram pouco mais que um brinquedo. Mas nada era gratuito naquele universo que principiava, e essa eclosão de um movimento musical que já dura mais de vinte e cinco anos se prefigura como a mais autêntica resposta às peculiaridades de Brasília e do estado de coisas vivenciado por aqueles bravos rapazes e suas estridentes bandas, moldadas no “faça você mesmo” dos proto-punks. Este rock and roll, que ganharia a mais extraordinária visibilidade nacional, é o primeiro e o mais bem sucedido produto de toda a cultura saída da estufa brasiliense. O documentário que resultou de esparsos registros e entrevistas que realizamos desde 1987 e da observação ininterrupta da trajetória dos três conjuntos principais, Legião Urbana, Capital Inicial e Plebe Rude (com participações importantes de Herbert e Hermano Vianna que viveram aqui, e no Rio de Janeiro, abriram caminho para o pessoal de Brasília) narra os lances mais relevantes dessa jornada e dessa experiência do pop brasileiro, que ficou conhecida como o rock de Brasília. A pesquisa garimpou especialmente o período que se inicia na década de 80, e não dispensou a correlação existente entre a vida social e política da cidade como sede do poder, cenário por onde transitam as magnas questões nacionais e a formação intelectual de jovens da classe média local, atraídos pela música. Esse provavelmente é o ponto crucial da gênese de tudo, pois precisamente aqui aflora no espírito da Turma uma forte noção de pertencimento e identificação com a capital que quase viram nascer. Há uma recíproca troca em que ambas entidades se interpenetram. Em Rock Brasília – era de ouro, filme que abriu o último Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, debruçamo-nos sobre um tempo em que a chamada Turma da Colina dava os seus primeiros passos, motivada pelos apelos da cena roqueira, ocasião em que eclodiram os feitos intramuros e as inocentes noitadas da banda-mãe, a festejada, embora de vida efêmera, Aborto Elétrico. A nossa intenção foi recompor o caminho da rapaziada com o pé na estrada como numa homérica travessia, ilustrando-a com os eventos mais significativos até a repercussão nacional e o sucesso fora dos limites do Distrito Federal. A empostação está também, e quem sabe principalmente, nas vicissitudes e dificuldades de quem se aventurou, ainda sem nome nem experiência, em busca de um lugar junto ao miVladimir Carvalho
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rabolante mundo do showbusiness. Isso inclui todo o ritual de iniciação, a revoada para o Rio de Janeiro e São Paulo, todo um desconforto de quem estava habituado ao aconchego da família, a peregrinação por gravadoras, as eventuais e tímidas e, às vezes, temerárias incursões em programas de TV, os contatos sempre difíceis com os chefões superpoderosos do negócio fonográfico. Enfim, a memória de uma jornada de vida que ainda não se esgotou e que mistura lances dramáticos e ao mesmo tempo divertidos, permeados pela extraordinária força juvenil diante dos desafios da existência.
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XI. Hist贸ria
Autores José Antonio Segatto
Professor Titular do Departamento de Sociologia da Faculdade de Ciências e Letras, da Unesp/campus de Araraquara.
Raimundo Santos
Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Autor de vários livros, dentre os quais se destaca Agraristas Políticos Brasileiros, lançado por Edições FAP, 2007.
Marxismo e política José Antonio Segatto
S
e estivesse vivo, o PCB estaria comemorando agora, em março, seus 90 anos. Um dos mais longevos – se não o mais – dos partidos políticos da história brasileira, teve sete décadas de intensa e ativa intervenção sociopolítica – sua influência e sua capacidade articuladora e movimentista surpreende os historiadores e ultrapassou em muito sua grandeza e representação numérica; ou seja sua força gravitacional e sua relevância político-ideológica foi inversamente proporcional aos seus efetivos ou ao seu contingente orgânico. Referência política indiscutível – reconhecida em amplos círculos de opinião pública pela perspicácia e sensatez –, é possível mesmo afirmar que tenha sido uma das mais importantes instituições da história do país no século XX, sem as quais não é possível entender o Brasil, ao lado da Igreja Católica, do Exército, da universidade pública e de algumas outras agências. Sua herança constitui um patrimônio histórico-político que continua a se fazer sentir, mesmo após duas décadas de seu desaparecimento, e insiste em continuar patente e presente na cultura política, nas instituições da sociedade civil e do Estado etc., como por exemplo nos principais partidos políticos: do PPS ao PCdoB, do PT ao PSDB, do PMDB ao PSOL, do PDT ao PSB. Várias de suas proposições e projetos – muitas delas extemporâneas e/ou anacrônicas – insistem em sobreviver e continuam a influenciar e direcionar a intervenção sociopolítica de organizações e movimentos, agentes e intérpretes. Há casos inclusive em que a tradição pecebista, continua “a oprimir como um pesadelo o cérebro dos vivos”. (MARX, 1974, p. 17) 169
História
1. Seção brasileira da Internacional Comunista O PCB surge no momento mesmo em que começava a se esboçar a organização de uma sociedade civil no Brasil. É fundado no emblemático ano de 1922, rico em fatos e acontecimentos que marcam o início de um processo de mudanças que culminariam no movimento político-militar de 1930. Além da criação do PCB, nesse mesmo ano é realizada a Semana de Arte Moderna, marco cultural na difusão de novas concepções estéticas; há uma cisão nas oligarquias, provocando a articulação de oposições na reação republicana; eclode o levante do Forte de Copacabana dando início ao ciclo de revoltas tenentistas; é feita a primeira transmissão radiofônica, que iria ampliar em muito a circulação de informações; é organizado o Centro Dom Vital, instituição católica tradicionalista, de larga influência nas décadas seguintes; é erigida a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino visando conscientizar a mulher de sua condição e seus direitos políticos, sobretudo o direito de voto; além de alguns outros de menor monta. A fundação da Seção Brasileira da Internacional Comunista, o PCB, diferentemente de quase todos os partidos comunista da Europa, América Latina e Oriente, não foi resultado da cisão no interior do movimento socialista, pois este era extremamente frágil no Brasil. Na vanguarda do movimento operário predominava, naquele momento, grupos libertários e/ou anarcossindicalistas – e foi da divisão e conversão destes, sobretudo, que surgiu o PCB. Divisão essa gerada, de um lado pelos impactos da revolução de 1917 na Rússia e seus desdobramentos e, por outro, pela rápida ascensão dos movimentos reivindicativos dos trabalhadores, seus impasses e sua crise organizacional e ideológica. Na reunião de fundação do PCB, em março de 1922, participam nove delegados (oito de extração anarcossindicalista e um socialista) representando grupos comunistas de várias cidades e 73 militantes – quase todos ligados ao artesanato (sapateiro, barbeiro, alfaiates, vassoureiro, eletricista, jornalista, professor) e nenhum à grande indústria manufatureira ou mecanizada. Isso pode ser uma amostragem de que nasce franzino, mas que é também reflexo da incipiência do proletariado brasileiro da época. É necessário esclarecer, por outro lado, a origem predominantemente anarcossindicalista dos pioneiros do PCB. É fato que o movimento anarquista (e também o socialista) no Brasil do início do século XX teve características bastante particulares. Além de débil, reinava entre os grupos de militantes uma enorme barafunda ideológica – estavam impregnados por um “ecletismo ideológico”, onde se 170
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Marxismo e política
misturavam traços liberais, jacobinos, positivistas, monistas, evolucionistas etc. Michel Zaidan Filho (1988, p. 12-13) lembra que “[...] antes de terem sido anarquistas, anarcossindicalistas, socialistas [...] ou comunistas, uns e outros foram vítimas desse ecletismo ideológico, tendo suas ações por ele influenciadas até o final de suas carreiras de militantes políticos.” Não obstante ter aceito as 21 condições da IC para os partidos a ela filiados, só seria por ela aceito e reconhecido em 1924, devido às desconfianças ideológicas do Kominterm. Mas mesmo sendo seção nacional da IC, as relações entre ambos serão precárias e pouco estreitas – mesmo após a criação do Bureau Latino-Americano (1926) – até o final da década. Fato esse que permitirá ao PCB, nos anos 1920, ter uma certa autonomia na elaboração política e em suas ações. Com isso, a partir de 1925 e tentando romper com seu isolamento e sua baixíssima inserção no quadro político no sentido lato, formula uma política de alianças com o movimento político-militar do tenentismo, denominada de revolução democrático-pequeno-burguesa, cujo desdobramento dará origem ao Bloco Operário e Camponês (1928). A breve fase autônoma chega ao fim nos anos 1929/30. Daí em diante o PCB será subordinado às diretrizes políticas da IC, definidas em seu VI Congresso (1928) para os países coloniais, semicoloniais e dependentes, desconsiderando a específica realidade histórica nacional. Partindo do pressuposto de que nestes países a revolução não estava na sua etapa socialista (pois não havia condições objetivas para isso), as teses da IC alegavam que o processo revolucionário deveria ser realizado por etapas, sendo que a próxima seria a da revolução democrático-burguesa, anti-imperialista e antifeudal. Ela serviria para eliminar os entraves ao desenvolvimento capitalista autônomo e à constituição do proletariado como classe. Os entraves fundamentais seriam constituídos pelo imperialismo e seus agentes internos (latifundiários e burguesia comercial e usurária). O imperialismo seria o principal sustentáculo do latifúndio e das relações semifeudais no campo, além de entravar o desenvolvimento das forças produtivas, de se apropriar do excedente produzido na agricultura, descapitalizar o país através da remessa de lucros, impedir a criação do mercado interno e, em consequência, dificultava a expansão da indústria nacional. Dessa forma, seria necessário, nesta etapa da revolução, desenvolver as duas contradições básicas: entre a nação e o imperialismo e entre o desenvolvimento das forças produtivas e o monopólio da José Antonio Segatto
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terra. Assim, a revolução estaria intimamente ligada à luta pela libertação nacional ou à luta anti-imperialista e contra as sobrevivências feudais. As tarefas desta etapa da revolução teriam que ser realizadas pela aliança operário-camponesa, com o apoio da burguesia nacional e da pequena burguesia. A burguesia manufatureira ou industrial teria interesses nacionais e autônomos e, portanto, apoiaria o movimento nacionalista. Porém, sua postura tendia a ser ambígua: ao mesmo tempo em que se opunha à dominação e exploração imperialista, temia a participação popular e a revolução – sua posição seria assim nacional-reformista. O proletariado, “educado” e dirigido pela sua vanguarda, o Partido Comunista, seria a força realmente consequente. Isso significaria passar a “receber de fora um marxismo-leninismo codificado e aplicá-lo ao Brasil” (KONDER, 1988, p. 165). Absorvia-se assim uma doutrina fundada em dogmas e preceitos metafísicos, no determinismo e no finalismo, reduzindo sua práxis a um revolucionalismo abstrato, com fantasias onipotentes e profissões de fé – com isso seu papel de agente viu-se reduzido e tornou-se muito mais um observador da dinâmica histórica. Exemplar disso é sua postura diante do movimento político-militar de 1930, do qual ficou omisso e isolado, limitando-se a denunciá-lo como uma “quartelada pequeno-burguesa contra o povo” e para “evitar a revolução das massas” (CARONE, 1974, p. 237). Ademais, isso implicaria no afastamento do comando partidário de dirigentes considerados responsáveis pela política “pequeno-burguesa”, de direita e revisionista, como Astrojildo Pereira e Octávio Brandão. Após um momento de recaída obreirista exacerbado e romântico, incorporará em suas fileiras muitos militares e ex-militares – entre os quais Luís Carlos Prestes – que trazem para o interior do partido uma série de problemas político-ideológicos (golpismo), mas que colaboram efetivamente para tirá-lo do isolamento. Em 1935, tem participação importante e de vanguarda na Aliança Nacional Libertadora (ANL), amplo movimento de massas de caráter antifascista, antilatifundiário e anti-imperialista, mas, após poucos meses de vida legal, é posta, pelo governo, na ilegalidade. Em seguida, orientado pelo IC e alentado pelas concepções autoritárias do tenentismo envolveu-se no aventureirismo golpista, através de quarteladas fracassadas. As consequências deste ato seria um pesadíssimo fardo que teve que carregar para o resto de seus dias. Extinta a IC em 1943, e momentaneamente livre do jugo soviético, recupera – agora de forma ampliada – sua condição de um partido 172
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nacional-popular. Situação que, no entanto, duraria pouco. Em 1947 é jogado na clandestinidade e nesse mesmo ano, já em plena “guerra fria” é criada a Agência de Informação dos Partidos Comunistas (Kominform) retornando em muitos aspectos a política de centro dirigente do movimento comunista mundial, da extinta IC, com sua orientação fortemente marcada pelas concepções do PCUS e pela dogmática stalinista. Ilegalizado e influenciado por essa agência e pela “guerra fria”, passa a ser perseguido, isola-se e adota uma política dogmática e sectária e perde grande parte de sua influência política – retoma a política de libertação nacional da IC, com forte apelo insurrecional, mesmo que só retórico. Mesmo após a extinção do Kominform, do XX Congresso do PCUS, do início do processo de renovação e da elaboração de uma “nova política” (1958-60), mantém sua identidade com o “socialismo real” da URSS e do Leste Europeu e plenamente integrado ao Movimento Comunista Internacional. Apesar de ganhar certa autonomia, essas relações e ligações impunham muitas vezes condições de dependência e mesmo de subalternidade, condicionando mudanças mais radicais na teoria e práticas políticas. Como filho legítimo da Revolução de Outubro e da IC, sua ligação umbilical e sua identidade com a via autoritário-burocrática do socialismo soviético eram uma herança genética – a cultura política terceiro-internacionalista era intrínseca a sua natureza. 2. Partido nacional-popular O PCB manifestaria sua vocação nacional-popular em diversos momentos de sua história. Já em seus primeiros anos de existência, dada sua situação de relativa autonomia em suas relações com a IC, pôde elaborar e colocar em prática uma política – revolução democrático-pequeno-burguesa – com a qual procurava fazer convergir o movimento operário-sindical sob sua direção com o movimento tenentista, visando inserir-se na grande política nacional por meio de um instrumental político, o Bloco Operário e Camponês, fundado em 1928; experiência essa abortada pela IC nos anos 1929-1930. Sua condição de partido nacional-popular volta a se apresentar nos anos 1930, quando acolhe em suas fileiras muitos militares e ex-militares da “esquerda tenentista”; muitos deles ascenderam rapidamente aos cargos de direção. A incorporação desses militares reforçaria no interior do PCB concepções voluntaristas, golpistas e insurrecionais – a revolução deveria ser desencadeada nos quartéis, seguida do assalto ao aparato estatal, como caminho mais fácil e ráJosé Antonio Segatto
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pido. Há que se reconhecer, no entanto, que apesar de todos os problemas – políticos, organizacionais, ideológicos – advindos da absorção desses quadros militares, eles colaboraram efetivamente para tirar o PCB de um certo isolamento político e torná-lo um partido influente na vida política nacional. Isso se refletiria no papel de relevo que o PCB desempenhou na organização da ANL. Malgrado o levante de novembro de 1935, a incorporação de Prestes, “[...] uma personalidade de grande densidade política, instalou o PCB como ator da crise do processo de modernização. Com ele, a ação do partido vai transcender em muito o reduzido efetivo de seus quadros.” (VIANNA, 1989, p. 135). Deixa de ser um reduto exíguo e, de certa maneira, reduzido ao espaço proletário-sindical para inserir-se no mundo da grande política – integra estudantes e intelectuais, servidores públicos e militares, setores das camadas médias e das classes subalternas em geral. “Em contrapartida sofre um esvaziamento da presença operária, que, após a derrota do levante militar da ANL, será massivamente incorporada ao sindicalismo corporativo.” (VIANNA, 1989, p. 135). Nesse sentido é válida a análise segundo à qual “[...] com Prestes, a partir da ANL, o PCB tornou-se mais popular e menos operário, enquanto a preocupação com os problemas da nação predominaram sobre os da classe.” Fundamentalmente, “o partido não estaria mais orientado para o proletariado, mas para todos os patriotas e democratas” (RODRIGUES, 1981, p. 371). Torna-se enfim um partido nacional-popular. Em 1945, no bojo do processo de redemocratização, reorganiza-se, conquista a legalidade e transforma-se num grande partido de massas, flexível e democrático. Passa a ter um porcentual eleitoral significativo, cria uma imprensa com diversos jornais diários e revistas periódicas, insere-se nas grandes empresas e no proletariado urbano, conquista a simpatia e apoio de extensos setores das camadas médias e da intelectualidade. Faz-se presente na luta democrática procurando dar-lhe uma direção radical, visando inverter o processo histórico autoritário e excludente do país. Sua política tinha como mote a “união nacional, dentro da lei e da ordem, para a consolidação democrática” assentada num “regime republicano progressista e popular”. (PRESTES, 1947, p. 86) O período de legalidade foi, no entanto, curto – os reflexos da guerra fria e as pressões da classe dominante colocam o PCB na ilegalidade. Clandestino e perseguido, isola-se e adota uma política dogmática e sectária, informada por um marxismo doutrinário e paupérrimo. Adota um projeto de instauração, no país, de um “governo democrático de libertação nacional”, por meio de “uma frente 174
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única de todas as forças anti-imperialistas e antifeudais”, forjada “na luta libertadora”. (PRESTES, 1951, p. 4) De fato, a ilegalização do PCB em 1947 demarca os limites da democracia instalada no Brasil no pós-guerra. E suas implicações seriam múltiplas: contribuiu para amesquinhar o processo eleitoral e partidário, aviltar as relações entre Estado e sociedade civil, reforçar uma cultura política autoritária, refrear a expansão e efetivação dos direitos de cidadania, interdição da participação política organizada das classes subalternas. No fim dos anos 1950, o PCB daria início a um processo de renovação e de elaboração de uma “nova política” – expressa na Declaração de Março de 1958 – que criaria as condições para sua inserção crescente na vida sociopolítica brasileira, até 1964. Não obstante continuar juridicamente ilegalizado, ou sem registro eleitoral, o PCB reemerge à luz do dia, passa a atuar abertamente e conquista uma “legalidade de fato”. Transforma-se em importante protagonista no processo histórico em curso naqueles anos (195864), ou seja, torna-se uma organização com capacidade decisória reconhecida. Movimentando-se com desenvoltura na articulação da sociedade civil e política, ganha forte inserção no movimento sindical urbano e rural e no estudantil, influência na intelectualidade e nas campanhas por reformas e de caráter nacionalista e anti-imperialista. Isso implicou em que o PCB passasse a ter responsabilidades e papel destacado e marcante nos principais episódios e acontecimentos do período, chegando mesmo a fazer um exercício de hegemonia. Mas na medida em que se insere cada vez mais na vida política, o PCB passa a se defrontar com diversos problemas conjunturais e estruturais postos pelo desenvolvimento e desdobramento do quadro sociopolítico, num momento de polarização de forças, envolvendo alternativas diferenciadas e antagônicas. Questões oriundas de sua teoria e prática, como aquelas derivadas de sua política de alianças, de suas relações com o poder, de sua inserção na sociedade civil e política e, em particular, aquelas provenientes do dilema, ou mesmo dicotomia, entre reforma e revolução iriam colocar em teste ou, por que não, em xeque seu projeto político e seu paradigma revolucionário. O revés de abril de 1964 significou a derrota ou mesmo o fenecimento de sua condição e/ou de seu projeto nacional-popular. O que lhe daria sobrevida seria sua bem sucedida “política de frente democrática” para enfrentar o regime ditatorial, absorvida e encampada por amplos setores políticos, inclusive alguns dominantes.
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3. Uma política para a democracia Nos anos 1958-60, o PCB sofrerá uma série de mutações teórico-políticas. Sob o influxo do XX Congresso do PCUS (1956) e das mudanças na economia e sociedade brasileiras, iria rever e repensar suas concepções e programa, desencadear um processo de renovação e de elaboração de uma “nova política” ou ainda de “uma política para a democracia na perspectiva do socialismo”. Tanto na Declaração de Março de 1958 como nas Resoluções do V Congresso de 1960, vários são os aspectos inovadores da “nova política”. Por exemplo: reconhecia que o capitalismo (apesar dos entraves) vinha se desenvolvendo no país e que isso era um elemento transformador por excelência e de superação das relações pré-capitalistas e do atraso – verifica, inclusive, que vinha se constituindo um capitalismo monopolista de Estado no Brasil; apesar das relações de dependência, a partir de 1930, o desenvolvimento, num ritmo desigual, do capitalismo destrói relações pretéritas, apesar de manter ainda a condição de subdesenvolvimento – avançava-se assim para a superação das concepções estagnacionistas; a identificação do Estado brasileiro como sendo heterogêneo, composto por forças e frações diversas e discrepantes, que se compunham no poder através do compromisso; a admissão de que o Estado não seria impermeável à ação e aos interesses das classes subalternas e que, inclusive, seria passível de transformação (ainda nos marcos do regime vigente) sem que, necessária e obrigatoriamente, se promovesse seu assalto – descartam-se assim concepções demiúrgicas revolucionarista próprias da cultura política terceiro-internacionalista; a constatação de que a democracia (ainda que numa concepção instrumental) seria fundamental aos trabalhadores; a compreensão da revolução socialista com um longo processo de conquista da hegemonia pelos trabalhadores etc. É claro que estas teses não são absorvidas de imediato, foram colocadas e utilizadas de forma parcial e restrita, mescladas com análises e projetos pretéritos, elaboradas ainda de forma embrionária, e assim por diante. Muitas não são nem originais, pois já estavam presentes em elaborações de comunistas de outras partes do mundo (como os soviéticos, os italianos). É preciso consignar que as ilações políticas que se fizeram delas não invalidam sua importância. Deve ser lembrado, por fim, que quando apresentadas, nos documentos de 1958/60, foram vistas, pela maioria da esquerda, com desconfiança e como sinal de “reformismo”, “revisionismo”, “pacifismo” etc. do PCB – anos mais tarde, entretanto, muitas delas foram reelaboradas, sistematizadas e ganhariam até mesmo legitimidade 176
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acadêmica; é o caso, por exemplo, da “teoria da dependência” e a do “Estado de compromisso”. O desencadeamento do processo renovador, operando mudanças na política, nas concepções e métodos, lança os pressupostos para “um marxismo de ator político”, politizando “sua própria práxis de esquerda revolucionária” o que permite ao PCB descentrar “[...] sua práxis da ideia de revolução stricto sensu e apostar na democratização política da vida nacional.” (SEGATTO; SANTOS, 2007, p. 15-17). São esses pressupostos que permitirão, por exemplo, pensar e elaborar a política de frente única democrática contra a ditadura e não deixar-se cair na tentação de aventuras insurrecionais. E são eles que, no fim de seus dias e com o encerramento da época histórica do “socialismo real” e dos partidos comunistas inaugurada em 1917, lhe autorizaram a ousar propor, em seu IX Congresso de 1991, um novo projeto político e a criação de uma nova formação política de esquerda, democrática e socialista. Pode-se dizer, sem exageros e sem presunções louvatórias, que o “marxismo político” pecebista emanado da Declaração de Março de 1958 seria de fato um divisor de águas histórico da esquerda brasileira. Quase todas as correntes, grupos, seitas, partidos, sejam eles comunistas, católicos de esquerda, socialistas, social-democratas etc., ou se colocariam contra ou ao menos manifestariam desconfianças daquelas concepções. Muitos deles nascidos de divisões do PCB como o PCdoB, MR-8, ALN, PCBR ou à parte de sua tradição como é o caso do PT. Alguns irão, tardiamente, incorporar seletivamente aspectos e elementos daquela práxis política. Referências CARONE, E. A República nova (1930-1937). São Paulo: Difel, 1974. KONDER, L. A derrota da dialética. Rio de Janeiro: Campus, 1988. MARX, K. O 18 do Brumário e cartas a Kugelmann. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. PRESTES, L. C. Manifesto de 1º de agosto de 1950. Fundamentos, ano 3, n.17, p. 4, jan. 1951. São Paulo. ______. Problemas atuais da democracia. Rio de Janeiro: Vitória, 1947. RODRIGUES, L. M. O PCB: dirigentes e organização. In: FAUSTO, B. (Org.). História geral da civilização brasileira. São Paulo: Difel, 1981. t. 3, v. 3, p. 361-443.
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SEGATTO, J. A.; SANTOS, R. A valorização da política na trajetória pecebista: dos anos 1950 a 1991. In: RIDENTI, M; REIS, D. A. (Org.). História do marxismo no Brasil. Campinas: Ed. Unicamp, 2007. p.13-63. VIANNA, L. W. A transição. Rio de Janeiro: Revan, 1989. ZAIDAN FILHO, M. O PCB e a Internacional Comunista (1922-1929). São Paulo: Vértice, 1988.
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Relembrando o PCB nos nossos tempos Raimundo Santos Minha matéria é o presente,/os homens presentes,/a vida presente. Carlos Drummond de Andrade
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estes tempos avessos a qualquer tipo de narrativa, a recusa à ação política teoricamente orientada, pode encerrar perigos do “mero ativismo” e de “saltos no vazio sem se conhecer suas consequências”, como, já distante da filosofia da consciência, tem advertido Habermas. O clássico se refere à possibilidade de uma “fecunda simbiose” entre teoria e prática que evite o abismo entre o “ideal” e o “possível” – “sem adiar nada para o final dos tempos” (VELASCO ARROYO, 1999). Num campo de esquerda que aceite sem reservas o Estado democrático de direito, usando ainda proposição do mesmo Habermas, aquela reação não dispensa, ao contrário, requer tanto explicitação dos fins do agir como avaliação e racionalidade interdiscursiva do ambiente político. Essa é a tradição da teoria do partido de Marx a Gramsci aggionarta pelo filósofo alemão a que o campo pecebista procurou se aproximar por meio das suas melhores expressões dos nossos tempos. Nestes 90 anos do PCB, estamos diante de um olhar retrospectivo que só tem sentido se for para reavivar traços do seu pensamento político em alguma relação de proximidade com aquele marco de referência da esquerda democrática de hoje. A primeira revisita diz respeito ao Partidão na circunstância na qual foi refundado nos últimos anos 1950. Assim, interessa relembrar o PCB trazendo da Declaração de Março de 1958 a “nova política”, então aprovada, conquanto ela tinha vigor na compreensão da segunda metade dos anos 1950 e cânones de ação democrático-reformista. Recordar da época das “reformas de base” realça, para nós situados na Era Lula, que as suas grandes movimentações não ganhavam a opinião pública nem eram vividas por seus protagonistas de esquerda e de centro-esquerda como resultado de lutas de classes e operações às cegas.
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Ao contrário, tiveram curso contando com um lastro de ideias, que as coloria e indicava rumos, proveniente de três vertentes muito marcantes no imaginário do pré-64: o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), o influxo da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) brasileira (por meio de Furtado, mas não só dele) e o pecebismo contemporâneo. São fontes intelectuais e políticas que, por assim dizer, fundamentavam o movimento reformista na sua área de gravitação e ativavam o campo de militância daquele tempo. A propósito, com a distância do tempo, significativa parte da bibliografia brasileira, até hoje, é devedora do reconhecimento pleno dessa presença intelectual-política no pré-64. Acrescente-se que o PCB e o Iseb dispunham inclusive de uma estrutura de “material ideológico” (usando o conceito gramsciano) nada desprezível: jornais e revistas (Editora e Revista Brasiliense, Novos Rumos, Estudos Sociais e Cadernos do Nosso Tempo, do Ibesp; as editoras Brasiliense, Vitória e Fulgor; cursos, seminários; livros e seguidos folhetos isebianos); e numerosos intelectuais da melhor qualidade e persistente publicística, o que contava muito. Com todo o seu empenho, os protagonistas em ação naquele tempo não foram suficientemente eficazes em conjugar de esforços de convergência capazes de evitar o isolamento e derrota daquele processo reformista e democrático. Depois do golpe de 1964, aquela função (e capacidade) intelectual da esquerda marxista e leninista e da centro-esquerda (mannheimiana) que nos falavam em etapa “nacional-democrática (PCB) e em revolução democrática (expressão isebiana), parece apagar-se da cena discursiva militante da oposição ao regime militar. Não só sufocada pela ditadura como também enfraquecida por concepções economicistas que surgiram, em não poucos ambientes intelectuais, como já foi observado por um estudioso. Elas colocavam no centro das explicações da derrubada de Goulart a tese da impossibilidade de se desenvolver no país um capitalismo de caráter nacional, o que teria, afinal de contas, provocado uma espécie de “autoritarismo estrutural”. Essa propensão levava a prever (sem atentar para a atuação do Estado) o colapso da economia sob a ditadura de 1964, fracasso esse que encurtaria o fim do regime de exceção. (PÉCAUT, 1990) Essas visões minimizavam a passagem – indispensável aos protagonistas – à formulação dos aportes oriundos da compreensão da circunstância em termos da atividade política. Ao contrário da aposta catastrofista, em outras áreas da oposição, a reabilitação da política passou a ser o labor principal, pois se percebia que era decisivo explorar o terreno da política como a dimensão mais eficaz para dar corpo à resistência à ditadura, como, aliás, pregava o PCB desde o 180
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começo do novo regime em texto de 1965. Partir da história política anterior para entender as causas do golpe de 1964 (Ibdem) e recuperar a importância da política exigiam vários esforços – de publicistas no plano teórico, estudo da realidade nacional e capacidade intelectual formulativa – que poderiam levar os atores oposicionistas a discernir coordenadas para a ação possível e efetiva. Podemos relembrar o PCB no breve tempo de distensão entre 1965 e 13 de dezembro de 1968, quando a oposição se movimentou em torno da defesa das liberdades, tendo, pode-se dizer, o seu epicentro fincado no mundo político (partidos, líderes etc.). Nesses anos também se formaram espaços oposicionistas em alguns níveis, como nas áreas intelectuais e culturais, nas quais os pecebistas tiveram presença marcante. Citemos apenas dois ambientes intelectuais-“publicísticos” daquele curto momento de arejamento: as revistas Civilização Brasileira e Paz e Terra e as editoras. Esse movimento político-cultural ensejava discussões em uma esfera pública que, aos poucos, se espalhava pelo país, mas, como outras esferas e atividades da vida nacional, foram sufocados pelo AI-5 de 1958. Por isso, não constitui evento livresco o volume Desenvolvimento e dependência na América Latina. Ensaio de interpretação sociológica (1966; 1970), no qual Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto (coautor do livro) desconstruíam o ponto de apoio das citadas teses do fim do regime militar por colapso econômico e chamavam a atenção para o advento de um novo ciclo econômico, cuja natureza de alto custo social Maria da Conceição Tavares e José Serra logo depois mostraram os seus contornos no texto Além da estagnação, de 1969. Tampouco são meros panfletos de agitação e propaganda os textos comunistas dessa época. Eles argumentavam a favor da centralidade das liberdades no movimento antiditatorial (1965) e faziam a defesa da resistência pelo caminho da política (VI congresso de 1967). Não foi de pouca importância que a Resolução de 1970, de autoria de Armênio Guedes, se debruçasse sobre os anos de chumbo, sistematizando e formulando uma alternativa às posturas radicais que consideravam que o regime de 1964 já havia se fechado por completo, só restando recorrer às ações armadas. Naquele texto, Guedes dispõe às oposições uma reflexão sobre aquela conjuntura na qual tudo parecia impossível. A sua argumentação visava convencer os protagonistas de que havia na sociedade energias capazes de reverter a radicalização reacionária então em curso. Guedes apresentou ao seu partido e, por meio dele, às oposições os traços de uma estratégia de desenvolvimento progressivo – assim nesta ordem – de “resistência, isolamento e derrota” do então (1970) poderoso regime militar. Raimundo Santos
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Quando da passagem da resistência à fase do isolamento do regime de 1964, fez-se presente um campo de intelectualidade literária e publicística e de várias outras posturas (oposicionistas) nas esferas artísticas (música, cinema, teatro) que ampliava com suas próprias atividades as ações da resistência, formando, digamos, uma espécie de “arco-íris” intelectivo-cultural de grande abrangência. Tanto os movimentos oriundos do mundo político como os influxos que se originavam na área cultural foram indispensáveis para o êxito do caminho que iria permitir a derrota do regime de 1964. Ao contrário do que se observa no caminho que Lula e o PT vêm trilhando, nada disso dispensou ideias, interpretações, formulações e, como mencionado anteriormente. que se organizasse, novamente, uma estrutura de “material ideológico, com o objetivo interdiscursivo de explicitação dos fins do agir e avaliação. Já no Brasil mais contemporâneo, a esquerda de visibilidade, a grande esquerda que abrigava várias tendências, o PT, passa a ser o novo partido à frente dos movimenstos sociais, no tempo em que o MST foi consolidado sob balizas teóricas da Igreja. Eram os anos subsequentes à derrota da Perestróica ousada por Gorbatchov e vésperas dos governos de FHC. Ante a nova circunstância de mundialização da economia não havia nada que autorizasse a dizer que as esquerdas viviam em uma situação de marco zero. Para equacionar os novos tempos, os protagonistas dispunham não só de uma larga tradição publicística como também do nosso próprio pensamento social e de conhecimentos multivariados das ciências sociais e seus grandes autores. As novas esquerdas nucleadas pelo PT poderiam recolher deles lineamentos e estímulos proveitosos para mirarem o curso da globalização com mais lucidez quanto à integração do país e maturidade em relação à experiência de se administrar em tal contexto o Brasil capitalista. Orientado pela interpretação da publicística daquele tempo ainda de transição, seguindo sua formulação de frente democrática, o pequeno grupo de deputados (3; 4) integrou o governo político de concentração democrática de Itamar Franco, com seu Plano Real e o controle da inflação, aliás, depois tornado um valor nacional. E mencione-se ainda a atitude desse pequeno PPS durante os governos tucanos, negando-se a fazer oposição sistemática às iniciativas brasileiras de ajuste globalista, nisso relembrando a antiga “tática” pecebista dos idos dos anos 1950, quando os comunistas se viram ante o desenvolvimentismo de JK, tendo como referência o sentido do texto da Declaração de Março (apoio aos “aspectos positivos” e oposição aos “aspectos negativos”). 182
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No entanto, as novas esquerdas militantes não assumiram missão como partido político, deixando ao presidente Fernando Henrique Cardoso a direção do processo modernizador que aqui chegara. Como não era da sua natureza (defesa de interesses sem valorização da política), elas não mobilizaram intelectuais de partido para que se debruçassem sobre a circunstância nem tinham formulações sobre a globalização. Insularam-se no movimentalismo social, recusando-se a influir no curso do processo modernizador em andamento no país. Sua recusa à política e à concertação pluriclassista, que, aliás, é o que leva ao tema da democracia representativa, não é praticado pelo PT apenas ao mero acaso nem derivam do seu crescimento natural com base na sua atividade no terreno popular, também veio acompanhado de toda uma considerável literatura desses anos 1980/1990 dedicada, aqui e na América Latina, a realçar o descrédito no Estado e na política; literatura que lhe deu alento para o seu gesto infundado de não assinar a Constituição de 1988. Na inesperada circunstância que começa em 2002 – a meu ver, até hoje ainda não suficientemente compreendida –, a Era Lula, as novas esquerdas viram-se, pela primeira vez, postas no poder central, chamadas agora a gerir o capitalismo nacional. Pela sua trajetória de partido novo sem teoria, esta questão era estranha ao repertório do PT. Este tema, ao contrário, havia acompanhado o PCB durante toda a sua vida contemporânea (com muita publicística, debates em seus jornais etc.), como se pode ver nos documentos desse partido e em registros de vários intelectuais seus. A grande esquerda não teria perfil e ação autônomos ante a gestão petista pragmática do país modernizado. Diferentemente da esquerda clássica, sem o costume pecebista de buscar compreensão da circunstancia, o PT administra o capitalismo, como tem insistido Luiz W. Vianna, fortalecendo-o como um “grão capitalismo”, não se conhecendo discussão intelectual e política relevante no campo petista. Aliás, nesses nossos tempos, a ensaística de Vianna é exceção por demais visível, sobremaneira por que ele apresenta os problemas vivos da Era Lula no registro de um marxismo ampliado com outras interlocuções e sempre fincado o pé no pensamento social brasileiro. É o que se pode ver diretamente no seu recente livro Modernização sem o moderno. Análises de conjuntura na Era Lula, publicado pela Fundação Astrojildo Pereira e a editora Contraponto, em 2011. As esquerdas militantes, sem leitura formulativa da circunstância e visão prospectiva do seu próprio agir (assim, passível de avaliação), aderidas a Lula, acomodam-se às ao assistencialismo que, hoje, está sendo considerado elemento estratégico de um projeto de poder. Raimundo Santos
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As novidades de agora não são apenas as políticas sociais, mas também os apelos populistas, sobremaneira verbalizados pelo ex-presidente da República com audiência sem precedentes, que vêm se convertendo, progressivamente, na pregação do imaginário de uma grande transformação petista do país. Em lugar de reflexão, ideias políticos e formulação, esse popularismo ora tornado partidário se mostra cada vez mais eficaz, expande-se e também cumpre função dissolvente das instituições (Congresso, partidos, associativismo). Não se há visto o campo petista defendê-las de modo direto e consistente, a indiferença revelando descompromisso com a democracia representativa ou interesse por outro projeto já começado a partir do mandato longo vivido até agora e posto no horizonte sem prazo. Em cenário pessimista, mas cada vez menos improvável, caminhamos para uma situação próxima de um impasse: ao tempo em que as instituições e os valores vêm perdendo legitimidade, a figura do presidente adquire popularidade altíssima e agora também a dirigente do novo governo. Cada vez mais já perto desse limite, a esfera da política-teoria-valores adquire grande relevância, como também o próprio mundo político – por mais combalido que hoje esteja – ganha um realce que muitos não acreditam. Importância no sentido de ter função para restituir inteligibilidade ao processo político em andamento, quando muitas coisas hoje parecem turvas. Aliás, como nos ensina a experiência da resistência democrática nos anos de chumbo, época como esta – aqui é o motivo da alusão – de grande descrédito na política e nos partidos, tendo o Partidão se envolvido com sua reabilitação, então mais do que nunca necessária. Se hoje o mundo político (partidos, líderes etc.) ainda não pode ser visto como epicentro de onde se possa extrair energias para encaminhamentos de afirmação mais avançada da democracia política e retomada da racionalidade intercomunicativa do ambiente político. De onde mais podem vir? Referências VELASCO ARROYO, J. C. Orientar la acción, la significación política de la obra de Habermas (introducción), in: HABERMAS, J. La inclusión del otro. Estudios de teoria política. Barcelona-Buenos Aires, 1999. PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil. São Paulo: Ática, 1990.
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XII. Resenha
Autores Martin Cezar Feijó
Professor na Faculdade de Comunicação e Marketing da Faap (desde 1988). Professorpesquisador no programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura no Mackenzie (desde 2002). Bacharel e licenciado em História pela FFLCH-USP. Doutor em Ciências da Comunicação pela ECA-USP. Autor de vários livros.
Sergio Augusto de Moraes
Engenheiro, do Conselho Diretor do Clube de Engenharia do Rio de Janeiro e mestre em Econometria pela Universidade de Genebra.
Estudos culturais: a prática de um olhar contemporâneo Martin Cezar Feijó
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terrorista neonazista norueguês, Anders Behring Breivik, 32 anos, em seu manifesto (em parte copiado de outros manifestos de extrema-direita na internet), justificando o pior atentado na história da Noruega, no dia 22 de julho de 2011, que matou 76 pessoas, na maioria jovens, afirmou que temia que a Noruega se transformasse em um Brasil: multicultural e mestiço. Seu alvo literal, pessoas que buscavam um mundo melhor; seu alvo simbólico: o temido “multiculturalismo”. Foi também um nazista, na época de Hitler, que afirmou que ao ouvir a palavra “cultura”, logo carregava seu revólver. Tanto o neonazista norueguês, quanto o nazista alemão, sabiam do que estavam falando, entendiam o significado do que diziam, mesmo que pelo pior lado: cultura implica em liberdade, diversidade, alteridade; tudo que fundamentalistas de qualquer espécie mais rejeitam, alguns com armas e bombas nas mãos e nos corpos e outros com os discursos irônicos em jantares inteligentes ou festas de chá que promovem a intolerância contra o diferente. Vivemos, apesar de tantas conquistas, ainda em um mundo sombrio, em que se precisa estar sempre alerta com a intolerância em qualquer nível. Neste sentido, no final do século XX, um breve século marcado pelos extremos, como o definiu um de seus melhores historiadores, Eric J. Hobsbawm, surgiu uma nova proposta de pesquisa acadêmica, que desse conta deste novo mundo multicultural, que nazistas e neonazistas tanto odeiam: os chamados Estudos Culturais. 187
Resenha
Nascido a partir de reflexões de marxistas britânicos sobre a cultura – o que quer dizer, o papel decisivo da “superestrutura” nas relações sociais –, que buscavam alternativas ao marxismo dogmático patrocinado pela hegemonia stalinista no movimento comunista internacional, logo se tornou uma saída para as ciências humanas nas principais universidades norte-americanas, que, mesmo entre as melhores universidades do mundo, estavam um tanto debilitadas – e ainda estão – em ciências humanas, entre outros motivos, por ataques dos “inimigos da esperança”. (WATERS, 2006) Neste sentido, a publicação de um livro como este, organizado por Tatiana Amendola Sanches (São Paulo: Sesc, 2011), com a participação de vários pesquisadores e professores em Estudos Culturais, contribui na atualização a partir de várias propostas de pesquisas interdisciplinares, que envolvem Comunicação e Cultura, abordando temas variados, como semiótica, seriados de televisão, filmes, imagens, reality shows, novas mídias, até uma esclarecedora entrevista com uma estudiosa pioneira no Brasil, Maria Elisa Cevasco, se tornando assim uma importante referência não apenas para pesquisadores, como para estudantes de graduação em várias áreas em que o campo de humanidades se faz presente e necessário, apesar de tantos percalços. Estudos Culturais: uma ponte entre conhecimentos Desenvolvido no pós-II Guerra Mundial, os Estudos Culturais trouxeram uma possibilidade de incorporar tudo que no âmbito acadêmico foi apresentado como interdisciplinar, permitindo uma ampliação de pesquisas que antes estavam presentes apenas no plano do jornalismo ou em algumas reflexões isoladas de alguns escritores, que buscavam pontes entre conhecimentos distintos. Um grande desafio para o reconhecimento científico da nova “disciplina” – na verdade, formada por várias disciplinas, quase uma “indisciplina” – estava exatamente no enfrentamento de uma tradição acadêmica, exclusivamente disciplinar, que exigia uma perspectiva convergente, pouco propícia a um novo paradigma, que se propunha para as pesquisas em humanidades, que levasse em conta não apenas a alta cultura, mas principalmente os impactos provocados pela comunicação de massa. Em 1959, o historiador da ciência Thomas Kuhn (1922-1996] fez uma comunicação no III Congresso sobre identificação do talento criativo na ciência, na Universidade de Utha, EUA, com o título “Tensão 188
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essencial: tradição e inovação na pesquisa científica”. Em um momento, Kuhn afirma: “Um pensamento convergente é tão essencial ao avanço científico quanto o divergente. Uma vez que esses modos de pensamento se encontram inevitavelmente em conflito, segue daí que a capacidade para suportar uma tensão que ocasionalmente pode beirar ao insustentável, é uma das principais condições para o que há de melhor em termos de pesquisa científica”. (KUHN, 2011, 242) No mesmo ano em que Thomas Kuhn abordou uma “tensão essencial” entre o pensamento convergente e o divergente na criação científica, o escritor inglês Aldous Huxley (1894-1963) fez uma série de conferências na Universidade da Califórnia, Santa Bárbara, com o tema A Situação Humana, o que gerou postumamente a publicação de um livro com o mesmo título. Nessas conferências fica evidente a vocação intelectual do grande escritor, principalmente sobre os desafios para as pesquisas que se julgam interdisciplinares. Em sua apresentação sobre o que intitula “educação integrada” – que pode ser traduzida em termos contemporâneos por “educação interdisciplinar” –, em palestra proferida no dia 09 de fevereiro de 1959, Huxley destacou que “aprender pouco é perigoso, mas um aprendizado altamente especializado pode até ser mais perigoso”. (HUXLEY, 1992) Aldous Huxley defendia que o papel do escritor contemporâneo deveria ser o de um pontifex, um construtor de pontes entre os conhecimentos objetivamente observados (científicos), a experiência imediata e as artes. De uma certa forma, como em outras de suas fundamentais obras, Huxley antecipava uma condição primordial que estaria presente nos Estudos Culturais. Chamava a atenção dos riscos de uma ênfase tecnocrática nas pesquisas e, consequentemente, no ensino superior, que deveria buscar um outro tipo de conhecimento; mais abrangente, que ele chamava de “integrado”. O que poderia ser traduzido em linguagem para o século XXI, de “interdisciplinar”, princípio básico dos Estudos Culturais. Huxley se utiliza para esclarecer seu raciocínio de uma metáfora doméstica: O problema de todo o conhecimento especializado é ser uma série organizada de celibatos. Os diversos assuntos vivem em suas celas monásticas, apartados uns dos outros, e simplesmente não se casam entre si, nem produzem os filhos que deveriam produzir. O problema é tentar arranjar casamentos entre esses vários assuntos, na esperança de produzir uma geração valiosa. E o celibato não existe apenas entre os diferentes aspectos do intelecto; é também um celibato das paixões, um celibato dos instintos. (HUXLEY, 1992)
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Resenha
O diagnóstico de Aldous Huxley era preciso e pioneiro. Seriam necessários alguns anos para a academia quebrar os muros que separavam a literatura da comunicação, a história da cultura, as novas tecnologias das percepções alteradas. Foi também neste mesmo ano de 1959, mais exatamente no dia 3 de março, que Marshall McLuhan (1911-1980), fez uma palestra para mais de mil educadores patrocinada pela American Association for Higher Education (Associação Americana do Ensino Superior), com o título A Revolução Tecnológica: dos Novos Meios de Comunicação, onde afirmou a famosa frase “o meio é a mensagem”, abrindo um caminho para novas pesquisas que levassem em conta o impacto das transformações na educação e na cultura: À medida que se sai da era do mecanismo e das formas de análise de sucessão linear e se entra no mundo da simultaneidade, é, não, só, possível penetrar no mundo do artista, mas também assistir ao desaparecimento das velhas oposições entre arte e natureza, negócio e cultura, escola e sociedade. Na realidade, não interessa para que fase da cultura se olha agora. O hábito da visão simultânea de todas as fases do processo é o que caracteriza, no terreno, a compreensão articulada. (MCLUHAN, 2009) As sociedades pós-industriais se tornaram mais complexas, mas também mais abertamente debatidas e enfrentadas pela universidade em vários campos. O advento dos Estudos Culturais, de uma certa forma, correspondeu a estas preocupações de Thomas Kuhn, Aldous Huxley e Marhall McLuhan, mesmo que eles não tenham tido nenhum vínculo pessoal com o surgimento dos Estudos Culturais, o que apontaram explica a pertinência desta nova área de conhecimento, propícia às transformações radicais do final do século XX. Outro aspecto que explica a emergência de uma nova forma de conhecimento, com sua multiplicidade de métodos, novas abordagens e novos objetos, é também a transformação cultural do capitalismo tardio, naquilo que foi definido por Guy Debord, como a “Sociedade do espetáculo” em 1967. (DEBORD, 1997) Com a arte pop, a contracultura, o papel da televisão, o impacto da revolução informática, e depois, das novas mídias, exigiram dos pesquisadores em ciências humanas uma atenção diferenciada para um novo contexto histórico. No plano da estética, por exemplo, antes demarcada por uma hierarquia bem definida entre “alta-cultura”, “media” e “baixa” (high-brow, middle-brow e low-brow, em inglês), em que as próprias vanguardas modernistas preservaram, surgia uma nova condição pós-moderna, que já foi intitulada Nobrow (SEABROOK, 190
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2000), com a quebra as hierarquias, nivelando tudo a partir da consolidação do mercado como regulador dos valores culturais, em que o diagnóstico de Debord se torna ainda mais atual para o século XXI. Os Estudos Culturais souberam se preparar para enfrentar isto, como se pode ler neste livro, superando os preconceitos elitistas que marcaram uma cultura de fundo aristocrática, mas não abrindo mão de uma perspectiva crítica acumulada por uma rica tradição epistemológica. E é curioso como as contribuições de intelectuais brasileiros podem adquirir nisto, desde a antropofagia oswaldiana do modernismo brasileiro, resgatada pelo tropicalismo dos anos 1960, passando pelas reflexões de um Sérgio Buarque de Holanda ou de um Gilberto Freyre, cada vez mais estudados em vários departamentos de humanidades de importantes universidades estrangeiras. É por isto que tem sentido o temor do neonazista norueguês, que, mesmo com o horror da violência demonstrada, não apresentou novidade alguma em sua intolerância contra o diferente, mesmo porque a própria Noruega, apesar de ser o país do Prêmio Nobel da Paz, foi cúmplice de Hitler no contexto da II Guerra, entregando muitos judeus para serem mortos em campos de concentração. Novidade está, felizmente, no país que soube se democratizar no pós-guerra e se tornar um país marcado pela tolerância, que agora corre o risco, se não se precaver, como toda a Europa, com estas demonstrações de “ovos da serpente” (aliás, excelente metáfora sobre o nazismo apresentada por um outro escandinavo, o cineasta sueco Ingmar Bergman). A contribuição, portanto, do conhecimento gerado pelos Estudos Culturais vai além do plano acadêmico; ela se torna político-cultural no alerta da importância de se aprender a conviver com a complexidade e diversidade do mundo contemporâneo. E como resposta aos conservadores, sejam explícitos e violentos ou suaves e sutis que não escondem seus preconceitos de classe, gênero e etnia; a resposta dos Estudos Culturais, com todas as dificuldades, deve sempre lembrar a frase do poeta e compositor brasileiro Jorge Mautner: “Ou o mundo se brasilifica, ou se torna nazista!”... Não há neutralidade possível, quando as maiores conquistas da humanidade correm risco. Os Estudos Culturais vieram para ficar como uma importante prática de um olhar contemporâneo. E este livro – Estudos Culturais: uma prática – é uma demonstração das várias possibilidades que este novo campo de pesquisa traz.
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Resenha
Referências DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. HUXLEY, Aldous. A situação humana. Tradução de Lya Luft. São Paulo: Globo, 1992. KUHN, Thomas. A tensão essencial. Estudos selecionados sobre tradição e mudança científica. Tradução de Marcelo Amaral PennaForte. São Paulo: Unesp, 2011. MCLUHAN, Marshall. Compreender-me. Conferências e entrevistas. Org. Stephanie McLuhan e David Staines. Introdução de Tom Wolfe. Tradução de Isabel Lopes da Silva. Lisboa: Relógio D’Água, 2009. SEABROOK, John. Nobrow. The culture of marketing. The marketing of culture. New York: Vintage, 2000. WATERS, Lindsay. Inimigos da esperança. Publicar, perecer e o eclipse da erudição. Tradução de Luiz Henrique de Araújo Dutra. São Paulo: Unesp, 2006.
Sobre a obra: Estudos Culturais – uma prática. Organizado por Tatiana Amendola Sanches. São Paulo: Sesc, 2011.
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Silêncio, Cuba – com outros olhos Sérgio Augusto de Moraes
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ntes de comentar o livro de Claudia Hilb, faço uma consideração sobre uma frase de Fernando de la Cuadra, autor de resenha sobre o mesmo publicada no último número da Política Democrática. Não me parece condizente com a história – não a contada pelos escribas ou pela mídia ligados ao sistema hegemônico liderado pelos EUA, mas a história real – a afirmação de de la Cuadra: “[...] o socialismo real se apresentava aos nossos olhos – junto com o fascismo – como um grande pesadelo do século XX [...]”. Não fazer uma distinção clara entre esses dois sistemas – por suas origens, teorias inspiradoras, seus valores, seus fundamentos políticos, econômicos e filosóficos, suas realizações – é miopia histórica e não contribui para enriquecer a biografia do jovem pesquisador. Mas vamos ao ensaio de Claudia Hilb [CH]. Seu ponto de partida declarado é desvendar o porquê do silêncio da esquerda democrática frente aos traços autoritários do regime cubano. Entretanto, por mais que se busque, não aparece em seu livro se a esquerda democrática à qual CH se refere visa ultrapassar ou não o capitalismo. Daqui a primeira carência do ensaio: que alternativa, que via deveriam os revolucionários cubanos buscar para, nas condições dos anos 1960 e 70, fazer uma revolução na educação, uma reforma agrária profunda, levar saúde para todos e instaurar um regime com mais justiça social e mais democracia? Também não me parece correto assinalar um “silêncio cúmplice” das esquerdas em relação aos erros da revolução cubana, deixando de lado as inúmeras críticas que partidos e personalidades de esquerda, em todo o mundo, dirigiram aos métodos e concepções dos dirigentes cubanos. O próprio Partido Comunista Brasileiro, logo após o golpe de 1964, encaminhou críticas aos dirigentes cubanos, em particular ao modo como eles encaravam o combate às ditaduras na América Latina.
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Resenha
CH aponta com relativa precisão problemas que me parecem reais no curso da Revolução Cubana. A concentração de poder nas mãos de Fidel Castro, o cadente entusiasmo de boa parte do povo, a redução progressiva do espaço interno para críticas etc. Mas ao buscar as fontes de tais desvios ela comete alguns erros: em primeiro lugar não leva na devida conta o que marcava a fundo aquela época, a guerra fria, a luta de morte entre dois sistemas mundiais, um deles liderado pela URSS, o outro pelos EUA. Se estes fizeram o que fizeram no Vietnã, do outro lado do mundo, não é difícil imaginar sua reação a uma tentativa de implantar o socialismo a 160 quilômetros da Flórida. “Só nos primeiros 14 meses após a invasão da Baía dos Porcos (abril de 1961), os EUA patrocinaram, financiaram ou organizaram 5.780 ações terroristas contra Cuba, 700 delas contra fábricas, usinas de açúcar e equipamentos industriais, causando prejuízos incalculáveis e tirando a vida de 234 pessoas [...]. Em 1971, com Nixon na Casa Branca, a CIA desembarcou em Cuba um contêiner contaminado com um desconhecido vírus africano da peste suína, que provocou o sacrifício de 500 mil porcos [...]. Não houve um só dia, ao longo desses 47 anos, em que o país não tivesse sido vítima de atentados a bomba, sequestros e provocações de toda sorte”. Como ignorar que Cuba era (e continua sendo) um país sitiado e que em tais casos é difícil tratar de maneira democrática as divergências e dissidências políticas? Outra falha de CH é não considerar devidamente o viés negativo das condições internas de Cuba, anteriores à Revolução, nos acontecimentos posteriores à mesma. Cuba só chegou à independência em 1898 e daí até 1959 sofreu várias ditaduras, tinha uma sociedade civil pouco desenvolvida, uma economia centrada na monocultura da cana-de-açúcar, uma indústria pouco diversificada, e era um paraíso das máfias. CH também parece menosprezar as consequências da forma principal que a luta contra a ditadura de Batista assumiu em Cuba, a luta de guerrilhas e a constituição do Exército Rebelde, sobre o desenvolvimento posterior da revolução. Os fatos são cabeçudos, diz o dito popular. Os anos de ditadura deixaram um vazio institucional enorme que inicialmente foi ocupado pelas incipientes organizações da sociedade civil e pelo Exército Rebelde. Mas, à medida que a Revolução contrariava os interesses das aristocracias locais e internacionais, ficava evidente que aquelas organizações não estavam preparadas para enfrentar a reação daquelas elites, e o Exército Rebelde passou a assumir um papel cada vez maior no país. Criaram-se novas organizações populares, de massa, mas elas não chegaram a om194
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brear o protagonismo daquele. É claro que isso se refletiu e se reflete na superestrutura política e na cultura do país. CH acusa as dificuldades na economia cubana, cita rapidamente alguns avanços e se estende sobre os fracassos e retrocessos nesta área. Assinala o fracasso das tentativas “ultravoluntaristas” realizadas na década de 60 e alguns avanços nas décadas de 70 e 80, quando “[...] o regime cubano aceitou seguir completamente as indicações e as condições da URSS [...]” (p. 92). Cuba fez dezenas de tentativas na área da economia, algumas delas exitosas, em busca de uma alternativa de desenvolvimento independente. Não foi só pelo voluntarismo dos dirigentes, como de fato aconteceu, que muitas dessas experiências fracassaram. Dadas as características do país – seu tamanho, a dimensão de sua população, seus parcos recursos, sua carência de fontes de energia –, um caminho independente, nas condições de globalização da época e na América Latina, era praticamente irrealizável. Considerando as razões alinhadas acima, que enorme desafio tentar neste pequeno país da América Latina enveredar no caminho para uma organização social superior ao capitalismo! Tal projeto só podia ter alguma chance de êxito com a permanente renovação de condições políticas excepcionais. É isso que foi e está sendo tentado em Cuba, a isso está ligada a transformação de Fidel no símbolo da Revolução. Por quanto tempo, com quantos erros, quantos acertos, a história ainda não clareou. Nem por isso os povos deixarão de tentar uma via alternativa, antes de o capitalismo cair de podre. Porque correm o risco, se esperarem isso acontecer, de o mundo não ser mais habitável. Em tais condições, havia duas alternativas fortes: ou a capitulação diante dos EUA ou a busca de aliança com a URSS e outros países que também tentavam uma transição ao socialismo. Para seguir no caminho escolhido, a opção por esta última era obrigatória. Em 1970-73, o povo chileno tentou uma terceira via, pacífica e democrática, sem luta armada, para fazer essa transição. A reação dos EUA foi terrível. Junto com a direita golpista chilena foi estabelecido um plano para inviabilizar o governo Allende, que ia do financiamento de grevistas a ataques terroristas e assassinatos. A Unidade Popular tentou até o último lance manter a legalidade democrática. A direita chilena e os EUA impuseram duas alternativas: a demissão de Allende ou a guerra civil. O que aconteceu no Chile com o golpe de Pinochet foi objeto de inúmeros livros, filmes, relatos, e CH talvez tenha conhecimento disso. Mas creio que a derrota da revolução chilena não significa que os povos devam abrir mão da luta por uma via Sérgio Augusto de Moraes
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Resenha
democrática ao socialismo. Até hoje a Revolução Chilena inspira lutas e movimentos sociais em todo o mundo. É por não levar em consideração os fatos acima que CH vê a concentração de poder nas mãos de Fidel Castro como fruto, não só da vontade do líder, mas principalmente como função da busca de um “igualitarismo radical”. Ela correlaciona a busca da igualação social, as medidas para estender a todos boa saúde e boa educação, com a concentração do poder. As duas coisas aconteceram em Cuba? Sim. Mas a simultaneidade não significa correlação, a concentração de poder tem outras raízes, algumas apontadas acima. A partir das premissas de CH pode-se concluir que os milhões de miseráveis do mundo podem continuar morrendo de fome, de doenças ou mesmo sendo assassinados – em 2009, no Brasil, segundo a Unesco, 11 adolescentes foram assassinados por dia. Parece que, para ela, a igualação social pode ser feita lentamente, com as migalhas que caem da mesa onde se banqueteia o capital financeiro, e os pobres, os deserdados do mundo podem esperar. A luta pela ampliação da democracia é sem dúvida o melhor caminho para frear a voracidade do capital. Mas o problema aparece, na via para outra sociedade, quando a revolução avança: aí o adversário, as grandes corporações e os governos que as representam apelam para a violência, como aconteceu centenas de vezes pelo mundo e, em particular, no Chile e em Cuba. As condições do mundo mudaram, a guerra fria acabou, mas eles continuam aplicando os mesmos métodos. Depois da vitória do Exército Rebelde em Cuba, em 1959, as forças revolucionárias queriam e lutaram pela democracia com justiça social. E o acordo que colocou Urrutia na Presidência comprova isso. Os problemas surgiram com a reação violenta e odiosa das elites nacionais e internacionais às primeiras medidas de democratização massiva e de justiça social. Em 17/05/59 é proclamada a Lei de Reforma Agrária; poucos meses depois, em outubro, o presidente Eisenhower aprova um programa de ataques piratas aéreos e navais e a promoção de apoio direto às organizações contrarrevolucionárias dentro de Cuba. E as ações contra Cuba não param de crescer, chegando, menos de dois anos mais tarde, à invasão da Baía dos Porcos, com 1.400 homens, apoiados pela aviação norte-americana. Depois, em 1962, a URSS coloca foguetes em Cuba, ameaçada de outra invasão, agora direta, dos fuzileiros e da força aérea norte-americana. Chegou-se perto de uma guerra nuclear, porque um país independente não podia se armar com foguetes sem a autorização dos EUA. São eles que impõem a militarização de uma sociedade que bus196
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ca uma via independente, se esta contraria seus interesses, mesmo que não seja para o socialismo. Até hoje. Os exemplos abundam. No final, CH chega a uma conclusão reveladora: “Talvez o balanço da Revolução Cubana, o balanço das revoluções de tipo socialista do século XX, deva concluir com o caráter ilusório desse sonho. [...] As revoluções, tal como as sonhamos – como a instauração de uma sociedade na qual o homem em sua livre igualdade estaria acima de qualquer forma de opressão – fracassaram” (p. 98). Analisando as revoluções, como faz CH, sem levar em consideração a história e as condições objetivas, pode-se chegar a esta conclusão. Já que estamos falando de todas as revoluções de tipo socialista, me permito uma citação de alguém que estudou seriamente o assunto: “[...] uma organização social nunca desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela é capaz de conter; nunca relações de produção novas e superiores se lhe substituem antes que as condições materiais de existência destas relações se produzam no próprio seio da velha sociedade” . Pois bem, depois de escrever isso em 1859, diante da possibilidade de derrota da Comuna de Paris (1871), Marx que, anteriormente, havia manifestado sua discordância com a oportunidade dessa revolução, diz: “Graças à Comuna de Paris, a luta da classe operária contra a classe dos capitalistas e contra o Estado que representa os interesses desta última entra agora em uma nova fase. Seja qual for o desenlace imediato, conquistou-se dessa vez um ponto de partida novo de importância histórico-mundial”. No século XX, o capitalismo passou, em escala mundial, à etapa de domínio do capital financeiro, à sua fase parasitária. E as revoluções desse século, com seus erros e acertos, aqui incluída a revolução cubana, representam um novo patamar de importância histórico-mundial na luta por uma sociedade onde novas e superiores relações de produção dominarão. Muitos procuram esconder a contribuição da URSS para viabilizar a via democrática para o socialismo. Ela foi muito grande. Não me refiro à sua luta pela coexistência pacífica entre sistemas econômico-sociais diferentes, iniciada logo após a Revolução de 1917, ou à sua contribuição à derrota do nazifascismo. Destaco particularmente o seu retorno ao capitalismo de mercado, realizado de maneira pacífica. A partir daí o caminho para uma nova sociedade não se apresenta mais como algo sem volta, como algo linear. Essa transição, sabemos agora, será complexa, com idas e vindas, avanços e retrocessos. Por isso a esquerda democrática não silencia diante da Revolução Cubana. Ela se manifesta, encaminha críticas, aponta problemas. Sérgio Augusto de Moraes
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Mas acima de tudo ela defende essa e as outras revoluções, revela e valoriza seus acertos na busca de novas vias para superar a formação social capitalista. Com muito mais democracia.
Sobre a obra: Silêncio, Cuba. A esquerda democrática diante do regime da Revolução Cubana. Claudia Hilb. Trad. Miriam Xavier. São Paulo: Paz e Terra, 2010. 111p.
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