O 2014 que nos espera
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Política Democrática Revista de Política e Cultura www.politicademocratica.com.br
Conselho de Redação Editor Marco Antonio T. Coelho Editor Executivo Francisco Inácio de Almeida
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George Gurgel de Oliveira Giovanni Menegoz Ivan Alves Filho Luiz Sérgio Henriques Raimundo Santos
Conselho Editorial Ailton Benedito Alberto Passos G. Filho Amilcar Baiardi Ana Amélia de Melo Antonio Carlos Máximo Antonio José Barbosa Arlindo Fernandes de Oliveira Armênio Guedes Arthur José Poerner Aspásia Camargo Augusto de Franco Bernardo Ricupero Celso Frederico César Benjamin Charles Pessanha Cícero Péricles de Carvalho Cleia Schiavo Délio Mendes Dimas Macedo Diogo Tourino de Sousa Edgar Leite Ferreira Neto Fabrício Maciel Fernando de la Cuadra
Fernando Perlatto Flávio Kothe Francisco Fausto Mato Grosso Gilson Leão Gilvan Cavalcanti de Melo Hamilton Garcia José Antonio Segatto José Carlos Capinam José Cláudio Barriguelli José Monserrat Filho Lucília Garcez Luiz Carlos Azedo Luiz Carlos Bresser-Pereira Luiz Eduardo Soares Luiz Gonzaga Beluzzo Luiz Werneck Vianna Marco Aurélio Nogueira Marco Mondaini Maria Alice Rezende Martin Cézar Feijó Mércio Pereira Gomes Michel Zaidan Milton Lahuerta
Oscar D’Alva e Souza Filho Othon Jambeiro Paulo Afonso Francisco de Carvalho Paulo Alves de Lima Paulo Bonavides Paulo César Nascimento Paulo Fábio Dantas Neto Pedro Vicente Costa Sobrinho Pierre Lucena Ricardo Cravo Albin Ricardo Maranhão Rubem Barboza Filho Rudá Ricci Sérgio Augusto de Moraes Sérgio Besserman Sinclair Mallet-Guy Guerra Socorro Ferraz Telma Lobo Ulrich Hoffmann Washington Bonim Willame Jansen William (Billy) Mello Zander Navarro
Copyright © 2013 by Fundação Astrojildo Pereira ISSN 1518-7446 Obra da capa: Cena con gli Amici a Saint Tropez – 2008, olio su tela, 2,00cm x 1,50cm
Ficha catalográica Política Democrática – Revista de Política e Cultura – Brasília/DF: Fundação Astrojildo Pereira, 2013. No 37, nov./2013. 200p. CDU 32.008 (05) Os artigos publicados em Política Democrática são de responsabilidade dos respectivos autores. Podem ser livremente veiculados desde que identiicada a fonte.
Política Democrática Revista de Política e Cultura Fundação Astrojildo Pereira
O 2014 que nos espera
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Sobre a capa Antigo e moderno, tradicional e extravagante, relexivo e extrover tido, simples e extraordinariamente contraditório. Assim se apresenta ao mundo o homem e o artista Bruno Pedrosa (nascido Raimundo Pinheiro Pedrosa), natural da Fazenda Catingueira, no sertão cearense, cujos primeiros desenhos foram concebidos entre cinco e seis anos. Depois do primário em um colégio do Crato e do liceu cl ássico em Fortaleza, Bruno decidiu, aos 18 anos, ir para o Rio de Janeiro estudar na mais antiga e melhor Academia de Belas Artes do país, pois desejava tornar-se um artista. Também com apoio do pai, formou-se em História da Arte, Filosoia e Arqueologia na UFRJ. Nos seus anos de estudo (1969 a 1975), aproveitou suas férias de verão para viajar e explorar o Brasil, Argentina, Chile, Bol ívia, Equador e Peru, conhe cendo lugares, pessoas, culturas e histórias diferentes, que o enriqueceram na mente e no espírito. Pietro Maria Bardi, diretor do Museu de Arte de S ão Paulo, foi seu mentor e organizou uma série de exposições dos seus trabalhos nos Estados Unidos e México. Terminados seus estudos universitários, decidiu, em 1976, entrar para o Mosteiro de São Bento, do Rio, onde o Raimundo se transformou em Bruno, dali saindo alguns anos depois. Recomeçando sua vida, abriu atelier ao público e conheceu Elinor, com quem se casou em 1982. Indo morar em Nova Friburgo, esta reviravolta pessoal aproxima o artista da pintura, o seu estilo muda, o desenho continua a ser o alicerce das obras, mas o fulcro da sua atenção se põe nas cores. Em 1990, uma nova e importante decisão: a Europa. Transferiu-se com a família para Busca, província de Cuneo, cidade natal do tenor Giovanni Garnero, seu sogro. No Piemonte, sentia-se em casa e daí em diante sua arte se modiicou muitas vezes, mas sem voltar ao igurativo, que abandona completamente. No ano seguinte, transferiu-se para Bassano del Grappa, no coração do Veneto. Sua arte cresce com ele, é inluenciada pelos seus estudos, viagens, descobertas. Assim, reinventa-se continuamente navegando por todos os continentes das artes e do mundo, da pintura à escultura, da América Latina à Europa, atravessando o vidro, a cerâmica, o bronze, a joalheria, os totens em papel, expondo suas obras no Brasil, Estados Unidos, Itália, Holanda, França, Espanha, Portugal, Bélgica e Alemanha. Constata-se que seu estilo é único e bem delineado, suas inúmeras expressões artísticas representam igualmente sua complexa pessoa. É, portanto, inútil e supérluo procurar nas suas formas um signiicado concreto, já que estas são sua arte, sua visão do mundo, sua vida. Seu percurso artístico evoluiu ao longo de todo o arco da sua vida e ainda não se concluiu.
Sumá rio
APRESENTAÇÃO Os Editores .................................................. 07
I. TEMA DE CAPA: O 2014 QUE NOS ESPERA As eleições das ruas Rudá Ricci ...................................................... 13
O governo Dilma e a heran ça de Lula Marco Antônio Tavares Coelho ....................................... 20
2015 vai determinar 2014 Armando Castelar ................................................ 27
Amplia-se o ca mpo da o posi ção Sérgio Fausto .................................................... 29
Levar os cidadãos das ruas às urnas Arnaldo Jardim .................................................. 32
Conveniências ociosas Wilson Figueiredo ................................................ 35
Um novo blo co de centro -esquerda Júlio Martins .................................................... 38
Black Blocs, já vimos isso antes Anivaldo Miranda ................................................ 45
II. NOS 25 ANOS DA NOVA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA Marco da reconquista da democracia Roberto Freire ................................................... 51
A Carta de 1988 e a nossa tradi ção republicana Luiz Werneck Vianna .............................................. 60
O acesso à Justiça Social Dimas Macedo ................................................... 72
III. OBSERVATÓRIO Uma antiga e pol êmica proposta Tarcísio Holanda ................................................. 77
O enig ma do Porto do A çú Fabrício Maciel ................................................... 80
Terceira gaveta, no canto esquerdo Maurício Rudner Huertas ........................................... 86
IV. ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO A economia brasileira hoje César Benjamin .................................................. 95
Impostômetro, sonegômetro e previdência social Paulo Kliass ..................................................... 102
Pá de cal na reforma agrária Zander Navarro .................................................. 109
V. BATALHA DAS IDEIAS Teologia e política: registros rápidos Flávio R. Kothe ................................................... 115
A história (in)inita da democracia direta Gian Luca Fruci .................................................. 125
A propósito de uma resenha Michel Zaidan Filho ............................................... 130
VI. QUESTÕES DO ESTADO E DA CIDADANIA A Reforma do Código Florestal Habib Jorge Fraxe Neto ............................................ 137
Municipalização da Educação no Estado do Rio de Janeiro Comte Bittencourt ................................................ 149
“Acabou chorare” Zulu Araújo ..................................................... 152
Fundamentos ilosóicos dos Juizados Especiais Oriana Piske .................................................... 155
VII. ENSAIO Gra msci disputado: As interpreta ções do seu pensamento político no Brasil João Cláudio Bonim .............................................. 167
VIII. HOMENAGEM Centenário de Giocondo Dias Ivan Alves Filho .................................................. 181
Rui Facó, um intérprete do Brasil Arildo Dórea ..................................................... 184
Prêmio Vladimir Herzog celebra 35 anos Ana Luisa Zaniboni Gomes ......................................... 187
IX. RESENHA Gra msci nos anos de cárcere José Antonio Segatto .............................................. 191
Um pioneiro do jornalismo cientíico no Brasil Karina Toledo ................................................... 196
Apresenta ção
questão central hoje da vida política no Brasil é a sucessão
A
presidencial. Não podemos desconhecer isso. Pela primeira vez, temos lideranças e grupos políticos que se desgarraram da base governista e já começam a aparecer no cenário como forças que se juntam à oposição para a disputa do próximo ano. A aliança entre o governador de Pernambuco, Eduardo Campos, candidato do PSB, e a ex-senadora Marina Silva, representando a Rede Sustentabilidade, boicotada pelo esquema lulopetista sobretudo em cartórios do ABCD paulista, identiica uma séria fratura no esquema que governa o país nos últimos onze anos. E outras mais poderão advir. Tema tão importante para a vida brasileira não poderia deixar de ser considerado por quantos se dedicam a produzir esta revista (com este número, adentra ao seu 13º ano de existência), os quais, ampliando seus laços com parte signiicativa dos bons analistas brasileiros, organizaram o tema de capa desta edição em torno de 2014, para revelar ao leitor os mais diversos ângulos dos preparativos de uma das que se prenuncia das mais acirradas disputas presidenciais de nossa história. As colaborações teóricas são as mais variadas, desde a do sociólogo Rudá Ricci que, em seu artigo ―As eleições das ruas‖, nos coloca diante da possibilidade das inluências que as mobilizações via redes sociais e ruas do país, em junho e julho últimos, e que talvez se reproduzam em 2014, terão no pleito de outubro do próximo ano; a do advogado e escritor Marco Ant ônio Tavares Coelho que, em ―O governo Dilma e a herança de Lula‖, nos sugere um indispensável exame 7
do desempenho do lulopetismo, nesses onze anos de sua vigência, com sérias distorções do ponto de vista democrático e republicano, assim como da condução da economia e da máquina estatal; a do pesquisador do IPEA e professor da UFRJ, Armando Castelar, que alerta para o fato de que a situação econômico-inanceira internacional, particularmente a dos Estados Unidos, e as medidas que as autoridades monetárias tendem a adotar, terão graves consequências no Brasil, e destaca que 2015 provocará problemas entre nós, no ano eleitoral; a do cientista político Sergio Fausto e membro do Gacint da USP, que nos relembra como historicamente dissidências (o racha inicial de Marina e do PSB) constituem um problema para quem está no poder e relata o que ocorreu com os dom ínios do PRI (no México), da Concertación, no Chile, e do PSDB, no Brasil, que come çou a perder a sucessão quando se rompeu a aliança com PMDB e PFL, em 2001; a do engenheiro e deputado federal Arnaldo Jardim que, ao analisar os eventos dos que foram às ruas protestar e exigir mudanças, acredita que se ―a poeira baixou‖, as causas permanecem e o anseio persiste e pode estourar em 2014, daí defender que os candidatos levem aos palanques os seus projetos, suas prioridades, a im de remobilizar o País e levar os brasileiros das ruas às urnas; a do conhecido jornalista Wilson Figueiredo que, em ―Conveniências Ocio sas‖, ressalta que não pode ser descartada, pelo menos em tese, a questão entre o terceiro mandato de Lula e o segundo de Dilma, dadas as expectativas sombrias que sobrecarregam as incertezas desses ―dois pretendentes siameses‖; já para o ensaísta Júlio Martins, as tentativas golpistas contra Marina/Rede e Eduardo/PSB, feitas pelos petistas, empurraram-nos para um descolamento cada vez maior do campo governista, com naturais desdobramentos, como a possibilidade de que a aliança PSB-Rede e outros partidos se torne um novo polo na política brasileira e, ao chegar ao segundo turno, galvanize a oposição e lidere um novo bloco de centro-esquerda com reais chances de vitória; e, por im, a do jornalista Anivaldo Miranda, que examina o surgimento em cena dos Black Blocs, grupelhos que não servem aos propósitos de quantos foram às ruas para protestar contra a péssima qualidade dos serviços no Brasil e, por tabela, contra as grandes mazelas do país, a começar pela corrupção, passando pela violência e pelos gastos públicos de necessidade discutível, dentre outros. Na verdade, a violência desses grupos, de origens as mais variadas, vai no sentido de desestabilizar a democracia e, por isso, merecem ser desmascarados, porque a democracia atual, mesmo com todas as suas imperfeições e lacunas, é a maior conquista que os brasileiros conseguiram em séculos de enormes sacrifícios e lutas por uma sociedade mais livre, mais justa e mais igual. 8
Outro tema desta edição é o 25º aniversário da Constituição de 1988, documento hist órico que – segundo manifesta ções do advogado e deputado federal Roberto Freire, do cientista político Luiz Werneck Vianna e do jurista Dimas Macedo – implantou as ideias e deinições básicas para uma vida democrática e republicana no País. No discurso, aqui reproduzido, o parlamentar ressalta que a nova Carta cria instrumentos para o exercício da soberania e da cidadania, no contexto de um Estado permeável às intervenções das massas e à participação popular, ao tempo em que amplia e aprofunda suas possibilidades de tornar-se uma Nação que trilhará o caminho democrático, de uma vida melhor e de uma sociedade mais justa. Para o professor Werneck, encontra-se agora disponível à sociedade, quer pela iniciativa de qual quer cidadão, quer pela iniciativa da comunidade de intérpretes da Constituição, o recurso ao Judiciário, a im de encontrar remédio para uma eventual omissão do poder público quanto aos direitos que lhe foram outorgados constitucionalmente. Acentua que a Constituição de 1988 é resultado de processos de mobiliza ção de massas sem para lelo na história do país e da obra de juristas especializados em Direito Constitucional, alguns deles exercendo papel de assessores de inluentes parlamentares, embrião de uma verdadeira mutação institucional na rela ção entre os três Poderes e na da sociedade com o Poder Judiciário. Nessa linha, o jurista Dimas frisa que a nova Carta nos mostra o quanto avançamos na criação de um discurso jurídico e no tocante ao acesso à Justiça Social. Na seção Observatório, há artigos do jornalista Tarcísio Holanda sobre os percalços em torno da reforma política; do professor Fabrício Maciel a respeito do enigma em torno do Porto de Açu, em São João da Barra/RJ; e do também jornalista Maurício Rudner Huertas que aborda uma série de questões da atual conjuntura nacional. Na Economia e Desenvolvimento, o editor Cesar Benjamin e o doutor em Economia Paulo Kliass fazem instigantes análises de aspectos essenciais da economia brasileira, enquanto o sociólogo Zander Navarro põe o dedo na ferida no tocante à abandonada questão da reforma agrária no País. Já na seção Batalha das Ideias, temos as colaborações do professor de Est ética, Flávio Kothe, que nos provoca face ao tema teologia e política; do pesquisador italiano Gian Luca Fruci, a respeito da complexa e sempre presente questão da democracia direta; e do historiador Michel Zaidan Filho, que abre fraterna polêmica com o pensador Leandro Konder e com o jovem historiador Antônio Ianni Segatto. Na seção Questões do Estado e da Cidadania, o biólogo Habib Jorge Fraxe Neto aborda a complexa questão da reforma do Código Apresentação
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Florestal; o educador e deputado estadual Comte Bittencourt levanta seu protesto contra o descumprimento das políticas educacionais, constantes do Programa de Municipalização do Estado do Rio de Janeiro; o arquiteto e ativista do movimento negro Zulu Araújo que pede para que se identiique as razões da atual desmobilização, das diiculdades na relação com o governo e de como enfrentar os novos desaios; e a juíza Oriana Piske, que faz uma relexão sobre a importância dos Juizados Especiais. O Ensaio, do jovem estudante de Filosoia, João Cláudio Bonim, aborda aspectos da obra do pensador italiano Antonio Gramsci; enquanto temos a Homenagem, dedicada a Giocondo Dias, pelo seu centenário de nascimento (por Ivan Alves Dias), a Rui Facó, também pelo seu centenário (por Arildo Dórea), e a Marco Antonio Coelho, que recebeu a Medalha Vladimir Herzog (por Ana Luisa Zaniboni Go mes). Por im, na Resenha, temos a do historiador José Antonio Segatto sobre Vida e Pensamento de Antonio Gramsci , de Giuseppe Vacca, e da jornalista Karina Toledo sobre Médico e Repórter. Meio século de jornalismo cient íico, do jornalista e médico Júlio Abramczyk.
Boa leitura! Os Editores
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I. Tema de capa: O 2014 que nos espera
Autores Anivaldo Miranda Jornalista e Mestre em Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustent ável pela Universidade Federal de Alagoas.
Armando Castelar Pesquisador do Instituto de Pesquisa Econ ômica Aplicada (Ipea) e professor da Universi dade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Arnaldo Jardim Engenheiro e deputado federal (PPS/SP). Contato: arnaldojardim@arnaldojardim.com.br.
Júlio Martins Ensaísta.
Ma rco Antô nio Ta va res Co elho Advogado, jornalista, ex-deputado federal, autor de vários livros, entre os quais se desta ca Herança de um sonho.
Rudá Ricci Sociólogo, doutor em Ciências Sociais, é diretor geral do Instituto Cultiva (www.tvcultiva. com.br).
Sérgio Fausto Cientista político, membro do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional, da Universidade de São Paulo (Gacint-USP) e diretor executivo do Instituto Fernando Henrique Cardoso.
Wilso n Fig ueiredo Analista político e jornalista.
As eleições das ruas
Rudá Ricci Evitem dizer que algumas vezes cidades diferentes sucedem-se no mesmo solo e com o mesmo nome, nascem e morrem sem se conhecer, incomunicáveis entre si. Às vezes, os nomes dos habitantes parecem iguais, e o sotaque das vozes, e até mesmo os traços dos rostos; mas os deuses que vivem com os nomes e nos solos foram embora sem avisar e em seus lugares acomodaram-se deuses estranhos. É inútil querer saber se estes são melhores do que os antigos, dado que não existe nenhuma relação entre eles, da mesma forma que os velhos cartões portais não representam a Maurília do passado, mas uma outra cidade que, por acaso, também se chamava Maurília. Ítalo Calvino. As cidades invisíveis
1 As ruas são sempre uma novidade As ruas sempre foram objeto de estranhamento para um pacato observador. A começar por seu nascedouro. Baudelaire, Edgar Alan Poe, Engels foram muitos que observaram os desenhos labirínticos das ruas europeias, tomadas por rostos tensos e desesperados. A aventura de compreender o espaço urbano permaneceu desde então, tanto no campo liter ário (destacaria o belo Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino), quanto nas análises sociológicas (como os desconcertantes ensaios de Walter Benjamin). Não é uma novidade teórica, portanto, que a saída dos jovens brasileiros às ruas tenha causado tanta perplexidade. Principalmen13
te nas instituições políticas. A multidão nas ruas desigura o traçado urbano. Muda a paisagem e embaralha os pontos de referência. Este quase sentimento de vertigem e redescoberta do espaço público transborda para a percepção daqueles que formalmente deveriam representar esta multidão. As ruas são sempre uma novidade, principalmente se tomadas pela multidão. Mas esta novidade é ainda mais aguda se a multidão se conecta pelas redes sociais, criando um mosaico de relacionamentos invisíveis que solapa todas as formas de reconhecimento de grupos de interesses. Este é o foco deste artigo: compreender em que medida as eleições de 2014 podem se inluenciar por esta vertigem de momento. A partir de agora, duas questões devem organizar nosso olhar sobre a dinâmica eleitoral. A primeira, a vitalidade da energia moral que se expressou nas ruas nesses dias de junho de 2013. A segunda, as iniciativas dos partidos e lideranças partidárias para acolher ou desmobilizar as demandas difusas que apareceram em milhões de cartazes escritos à mão que emolduraram as passeatas país afora. O cruzamento destas duas variáveis pode indicar uma importante mudança na lógica política e até mesmo no sistema de representação formal do Brasil. Pode, ainda, renovar a ira de grande parte de eleitores que poderão inundar as urnas com votos brancos e nulos. Finalmente, não seria anormal se o país mergulhasse, novamente, no que os jovens, nestes dias de maio de 68 tupiniquim, denominavam de ―gigante adormecido ‖.
2 O discurso do campo institucional A representação formal no Brasil é manca há algum tempo. Pesquisa realizada pelo Datafolha no inal de maio de 2010 revelou que 44% dos entrevistados entre 18 e 70 anos não votariam se o voto não fosse obrigatório. O eleitor lulista era o que mais continuaria comparecendo às urnas (64% airmaram que votariam mesmo o voto sendo facultativo). Mais: os petistas eram os que mais desejavam a manutenção do voto obrigatório (55% deles cravaram esta opinião). Mas foram os mais ricos os que iriam às urnas em qualquer hipótese: 62% dos que ganhavam mais de dez salários mínimos e 65% dos mais escolarizados.
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Rudá Ricci
Por seu turno, o Índice de Coniança na Justiça (ICJBrasil) de 2012, elaborado pela Direito GV, indicava que os partidos políticos iguravam em último lugar no índice de coniança nas instituições, co m 5% de satisfa ção. Er am superados pelo Co ngresso Nacio nal, q ue apresentou um índice de 22%. As campanhas eleitorais se realizam a partir deste substrato de baixa coniança e daí sempre aparecerem como um interregno na vida cotidiana dos brasileiros, o que faz dos eleitos distantes do cidadão e não seus representantes. Partidos e políticos se estruturam a partir desta lógica, como máquinas eleitorais, adotando mecanismos e dinâmicas internas que os aproxima da lógica de empresas. São os segmentos administrativos da estrutura partidária que contratam empresas de marketing e pesquisa de opinião, que orientam gastos, padronizam protocolos de apresentação pública e acertam acordos com setores privados e aliados. São, para a grande maioria dos eleitores, desconhecidos. Os candidatos, por sua vez, movem-se num campo muito mais identiicado com o que se poderia denominar de ―construção do discurso hegemônico‖. Como nos ensinou Antonio Gramsci, a hegemonia é um cimento de interesses difusos que se articula a partir do convencimento, mas também da habilidade em unir, como um quebra-cabeça semântico, as aspirações de agrupamentos sociais, frações de classe, orientações políticas, valores religiosos e assim por diante. O marketing é apenas um dos instrumentos desta dinâmica de construção do discurso hegemônico. Mas, no mundo da fragmentação social do século XXI, não basta. É fundamental a construção de uma rede de apoiadores que se enraíza nos municípios e desce aos bairros, aos bares e campos de futebol. Uma das máximas da prática política é que o que conta nunca é o fato, mas a versão. Daí a importância desta poderosa rede de apoiadores que se insinua pelos escaninhos das ruas, desde que elas não estejam tomadas pela emoção (como nos dias de junho deste ano). Desde que as ruas sejam espaços abertos para a conquista deste operador político de fala mansa. O discurso político-eleitoral do campo institucionalizado, dos partidos e governos, é, assim, marcado em ano eleitoral pela tentativa de sair dos gabinetes e de dialogar com a vontade dos cidadãos. Trata-se de interpretar e de convencer. Marketing e rede de contatos (o tão propalado network) forjam este contato. Ora, temos, por aí, um apelo emocional que vem do peril contraditório e puro de Marina Silva. Contraditório porque fala aos jovens a partir de bandeiras ambientalistas, mas também fala aos fundaAs eleições das ruas
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mentalistas religiosos que abominam qualquer inovação no comportamento social. Marina Silva teria apelo para uma parcela signiicativa dos brasileiros e já revelou seu potencial no inal do primeiro turno das eleições de 2010. Não teria, contudo, a rede de operadores políticos. A aliança com Eduardo Campos a fortalece. Primeiro, porque a chapa ganha grande mobilidade, tendo em Marina a possibilidade de ser mais ousada e dialogar com os jovens das prováveis manifestações durante a Copa do Mundo de Futebol e Campos, dialogando com os setores mais tradicionais da política e da economia. Os excessos de um podem ser balanceados pela intervenção imediata do outro. Eduardo Campos se posiciona numa situação mediana em termos de apelo e estrutura política. Nas pesquisas nacionais, a aliança Marina/Campos oscila do terceiro para o segundo lugar na intenção de voto mas mesmo no Nordeste, em estados limítrofes do seu Pernambuco, não igura em boa posição na disputa eleitoral de 2014. O tempo parece curto para conquistar musculatura, corações e mentes e chegar, de fato, a ameaçar o lulismo em 2014. Mas é a principal novidade eleitoral do próximo pleito e por sair das entranhas do lulismo confere, ao mesmo tempo, segurança aos eleitores governistas e ousadia para parcela do eleitorado descontente com os rumos da política federal. A possibilidade de se transformarem em força hegemônica das oposições ao cabo das eleições presidenciais do próximo ano é signiicativa, podendo destronar o PSDB deste lugar que ocupa desde 2002. Com efeito, Aécio Neves é portador, até o momento, de discurso defensivo, sem grandes apelos, ainda mirando na indisposição da classe média tradicional que não consegue, há anos, forjar a opinião pública e carrear votos ao candidato mais próximo de seus interesses e valores. O senador mineiro, contudo, tem uma poderosa máquina partidária e eleitoral. Seu problema de momento é atrair seus correligionários paulistas, donos da maior parcela da máquina partidária. Finalmente, ainda apresenta diiculdades para penetrar no segundo maior colégio eleitoral regional: o Nordeste. Até entre os manifestantes mineiros, Aécio Neves amargou um quarto lugar na intenção de votos capturada pelo Instituto Innovare, durante a manifestação de 23 de junho realizada na capital mineira. Aécio Neves foi citado por apenas 6,6% dos manifestantes, atrás de Dilma Rousseff, com 14,2% das citações. Finalmente, Dilma Rousseff tem em suas mãos a herança política de Lula e a estrutura governamental, poderosa para construir a rede de apoiadores e operadores políticos. Mas sofre de dois males. O primeiro, o seu estilo gerencial de governar que a distanciou das ruas e 116
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aliados de longa data. As reclama ções vazam por todos os poros. Também sofre com o im do clima de euforia da melhoria da qualidade de vida dos brasileiros mais pobres. Foram tr ês anos de administração do impacto negativo da crise econ ômica internacional e uma tentativa de pouco sucesso para substituir o crescimento pelo consumo doméstico dos anos Lula para o crescimento pelo investime nto produtivo. A rápida recuperação nas pesquisas de intenção de votos ao longo de 2013 sugere falta de consistência de todo sistema partidário brasileiro. Parte do eleitorado demonstrou, durante o mês de junho e parte do mês seguinte, que não se identiicava totalmente com a presidente lulista. Contudo, não migrou sua intenção de voto com convicção para qualquer candidatura oposicionista. Dilma Rousseff não recuperou os votos perdidos em junho, mas oscilou positivamente aos levantamentos de todos institutos de pesquisa, com mais vigor que qualquer outro candidato. O eleitor parece sentir-se inseguro com os candidatos de oposição, embora não tenham grande convicção em relação à atual gestão federal. O fato é que todos receberam seu quinhão de ataques nas ruas mobilizadas dos últimos dias. Nenhum saiu ileso. 3 O discurso das ruas As ruas são muitas. As pesquisas que procuraram capturar o peril das mobilizações de junho revelaram uma maioria de jovens de classe média. Pesquisa nacional realizada pelo Ibope na última semana de junho indicava que os manifestantes eram, em sua maioria, jovens entre 14 e 24 anos de idade, 52% estudantes e 76% trabalhadores, com a seguinte distribuição de renda familiar: 23% acima de dez salários mínimos, 26% entre cinco e dez SM; e 30% entre dois e cinco SM. O mais interessante, contudo, é o peril político dos manifestantes: 46% das pessoas que estiveram nas passeatas de sábado (21/06) nunca participaram de uma manifestação de rua. 78% disseram que se organizaram pelas redes sociais. 75% dos entrevistados disseram que também usaram as redes sociais para convidar amigos para as manifestações. 83% dos entrevistados disseram não se sentir representados por políticos e 89%, por partidos; 96% não são iliados a partidos políticos e 61% se declararam muito interessados por política. As motivações são múltiplas, embora o transporte público tenha sido a mais citada. As eleições das ruas
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Augusto de Franco, citando David Ugarte sugere o conceito de swarming, ou enxameamentos c ívicos que formam ―grandes manifes tações de massa, caso haja possibilidade de conexão em tempo real (por telefone móvel ou email, por exemplo), em horas ou at é minutos‖. 1 Trata-se de uma manifestação dinâmica, móvel, em que cada participante ou agrupamento é uma manifestação em si. As demandas e palavras de ordem seguem a lógica do sistema de convocação: as redes. Cada um vai porque um conhecido faz um convite, muitas vezes, nem isto, apenas socializando uma informação. Trata-se de uma adesão afetiva, não uma convocação. Nada mais distante que as organizações sociais e políticas do século XX. O enxame, contudo, é previsível como intuição natural. Mas as mobilizações de junho revelaram que sua força é a ausência de liderança ixa. O que indica uma lacuna entre o mosaico que se forma e qualquer tentativa de organização e formação de representações. O enxame passa a ser imprevisível. Quando as demandas das mobilizações começaram a ser disputadas, a partir do dia 19 de junho, as organizações apareceram. Neste momento, o método já era outro, longe do enxame. O discurso vinha de agrupamentos já formados anteriormente. A situação se agravou com o convite que alguns governantes (a presidente Dilma Rousseff e os governadores Tarso Genro e Antonio Anastasia foram os primeiros) izeram aos organizadores das manifestações. Como, a partir daí, eleger representantes de um mosaico? O discurso da rua é polifônico. É natural, portanto, que suas demandas sejam multifacetadas. Mas, então, como saltar do enxame para o campo institucional? O que apresentar como alternativa para o modelo de representa ção vigente? Esta lacuna organizacional pode se expressar nas eleições de 2014. Como frustração. Como avalanche de votos nulos e brancos. A pesquisa do Instituto Innovare, de 23/06, realizada entre manifestantes de Belo Horizonte, indicava que 31% airmavam que votariam em branco ou anulariam o voto nas próximas eleições. Outros 27% airmaram que votariam em Joaquim Barbosa, ministro do STF que não é candidato. Mas também podemos vivenciar o retorno do cinismo popular, travestido de pragmatismo. Em junho as ruas dialogaram, parado1 Cf. FRANCO, Augusto. A Rede. Visualizado em: 28/06/2012. Dispon ível em: http:// nethcw.ning.com/page/a-rede. Cf. ―Swarming civil espanhol‖ in UGARTE, David (2004). 11M: Redes para ganar una guerra. Barcelona: Icaria, 2006.
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Rudá Ricci
xalmente, com a política institucional. Ao criticarem, interpelavam o campo da representação institucional. Interpelando, sussurravam sua esperança de mudança. Mas os representantes formais não tiveram sensibilidade para entender esta aproximação raivosa. Temeram. A partir daí, as ruas retornaram à desconiança de sempre. Podem votar sem paixão. Naquilo que lhes parecer mais seguro. E segurança, neste caso, é consumo familiar.
4 O possível cruzamento de discursos Onde se encontram o discurso dos candidatos oiciais para as eleições de 2014 com o discurso das ruas deste mês de junho? Num cruzamento tortuoso, um labirinto discursivo que constrói e corrói o vencedor de mo mento. As ruas desvelaram o rei e sua corte. Em seguida, a tentativa de canalização desta energia de massas para o campo institucional, via plebiscito ou reforma política, redeiniu o campo de disputa. Contudo, não produziu ofensiva do campo institucional, que continuou perplexo. O Congresso Nacional passou a votar pautas que estavam engave tadas há anos. Tentava responder de maneira atabalhoada, como se pressentisse a guilhotina sendo engraxada. Governo federal, autor da proposta de plebiscito, passou a se explicar quase diariamente. Mas as ruas também não conseguiram impor alternativas. As assembleias de preparação das mobilizações seguintes reproduziam a polifonia das passeatas. Houve situação em os jovens votaram se deveria existir votação como método de deinição de agenda. Entramos no século XXI mantendo como sistema de representação política a lógica societal do século XX. Um dique envelhecido que já expõe rachaduras e que contém, com diiculdades, a massa de água que pressiona suas paredes. Se a novidade das ruas não desaguar numa alternativa, a frustração desmobilizará paulatinamente os manifestantes. Mas o recado permanecerá. Assim como a lacuna entre as ruas e as instituições de representação política.
As eleições das ruas
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O governo Dilma e a heran ça de Lula
Marco Antônio Tavares Coelho stá na ordem do dia o debate sobre a sucessão presidencial.
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Segundo a imprensa, pesquisas sobre as possibilidades de eventuais candidatos na próxima eleição informam ser provável a reeleição da presidente Dilma. Diante desse prognóstico é indispensável um exame do desempenho do atual governo. Tal análise é essencial e oportuna porque o Palácio do Planalto abusa ilegalmente de uma incomensurável massa de recursos para apresentar uma versão fantasiosa da política oicial. Concordando que a atuação do PT trouxe benefícios para a população, essa apreciação não é acompanhada de dados essenciais. Em primeiro lugar, está claro que os maiores grupos econômicos do país são largamente favorecidos pela pol ítica implantada por Lula e segui da sem qualquer discrepância por Dilma. Aí estão os balanços fantásticos do Bradesco e do Itaú. Nunca se viu discordância fundamental dos governantes com os empresários que estão à testa desses bancos. E recentemente várias medidas foram tomadas, pela Receita Federal, beneiciando diretamente as grandes empresas. Como se entender essa incongruência. Ou seja, a declaração de que o governo Dilma realiza uma pol ítica que privilegia massas populares e, na verdade, defende a elite privilegiada? Lembro que não é um fato inédito esse comportamento audacioso e contraditório de governantes com uma visão esperta da administração pública, de que são exemplos históricos, dentre outros, os comportamentos do líder do fascismo na Itália, Mussolini, e do líder do nazismo na Alemanha, Adolf Hitler, que se empenharam em atender a certas reivindicações populares, enquanto zelavam pelos interesses dos plutocratas de seus países.
A essência do lulopetismo O ponto central de nossa critica ao lulopetismo reside em que ele não está engajado na defesa da democracia. Que fatos comprovam essa conduta? 20
Quando da Assembleia Nacional Constituinte, em 1988, o PT votou contra o projeto da Constituição, elaborado após um processo muito amplo e democr ático. É que PT e Lula haviam apresentado e defende ram intransigentemente um projeto de texto constitucional que, em vários aspectos, não foram contemplados na Carta aprovada. Recente mente, o próprio Lula reconheceu que a proposta petista era um absurdo e que ―se fosse aprovada, o pa ís seria ingovernável‖. Diversos outros fatos reletem as convic ções políticas vigentes dentro do PT. Algumas vezes elas não predominam no partido, mas em outras oportunidades emergem com força dentro dessa agremiação.
O maior escândalo da História Cito, como exemplo, o ―mensalão‖. Resumidamente, ele foi a utili zação por líderes do PT de estipêndios inanceiros para controlar bancadas partidárias, a im de aprovar, na Câmara dos Deputados, projetos de lei encaminhados pelo Poder Executivo. Ap ós a condenação pelo STF, uma corrente petista considera essa decisão como uma farsa e que não foi alicerçada pelas provas contidas nos autos do processo. Entretanto, no Supremo Tribunal Federal icou comprovado que o mensalão ―foi um artifício para violar princípios republicanos que essencialmente regem o Estado de Direito ‖. Segundo o voto proferido pelo ministro Celso de Mello, decano dessa corte, essa atividade ―foi um verdadeiro assalto à administração pública, com graves danos e com sério comprometimento da dignidade da função pública, além da lesão ao sistema inanceiro‖. Por isso, o magistrado declarou que condenava esses políticos por agirem como ―protagonistas de sórdidas práticas criminosas‖, que ultrajaram a República no maior escândalo da história. No entanto, dentro do PT existem pessoas que tentam inocentar condenados, como José Dirceu e Genoíno. Outro fato. Alguns setores do PT estão empenhados em modiicar a legislação constitucional que assegura a liberdade de imprensa. Esse propósito decorre das criticas que jornais e programas de televisão fazem à política governamental e aos planos do PT. Porque, graças à vigilância de jornalistas, diariamente há denúncias de erros praticados por petistas na condução de inúmeros órgãos da administração pública. Seguindo essa opinião, certos dirigentes do PT, inclusive Lula, julgam que a imprensa é um obstáculo a sua política e que, em sendo assim, é indispensável a adoção de leis que estabeleçam a censura dos meios de comunicação. A opinião desses dirigentes para acabar O governo Dilma e a h erança de Lula
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ou restringir a liberdade de expressão no Brasil é principalmente defendida por Rui Falcão (presidente nacional do PT) e por Franklin Martins (antigo encarregado da comunicação petista). Sua ―justiicativa‖ resume-se na seguinte ―tese‖: os órgãos de imprensa são controlados por grupos privados e por isso cabe ao governo realizar esse ―controle‖. Esta tese é a base para a introdução de normas de de viés fascista a im de atribuir poderes absolutos a governantes eventuais. Por ela, então, todas as atividades seriam transferidas e controladas pelos governantes. A tese democrática airma o contrário – não se admite o controle de nenhuma pessoa ou grupo de atividade. Em sendo assim, o fundamental é garantir a liberdade a cada um, a cada grupo, sempre na base de leis elaboradas pela sociedade. De conformidade com o texto da Constituição da República. A propósito, esses petistas apresentam, para reforçar seu plano antidemocrático, o exemplo de uma medida adotada pelo falecido Hugo Chávez, na Venezuela, esmagando quase completamente a oposição em seu país.
Um acerto de contas co m o PT Nos dez anos de governo do PT, é chegado o momento de um balanço de sua política. Vários fatos comprovam que, ao lado de alguns êxitos, sua administração foi e é calamitosa. Amargurados com a difícil situação de nossa economia, porque sabem como repercutirá essa realidade na eleição presidencial, os arautos do governo repetem que a administração petista tem respeitado o chamado tripé que preside nossa economia. Isto é – metas para a inlação, o equilíbrio das contas públicas e o regime do câmbio lutuante, princípios estabelecidos no governo de Fernando Henrique Cardoso que nortearam vitoriosamente sua política econômica. Como esse tripé hoje é seguido? Somente o item relacionado com o câmbio tem sido respeitado. No entanto, esse dado decorre principalmente do tumulto no mercado mundial, em razão da crise que abalou os Estados Unidos. Assim, o governo Dilma abandonou esse famoso tripé e daí os sérios problemas que afetam a economia brasileira. Isto porque ―maiores valores‖ presidem a sua administração. Eles são: 1 – a incapacidade de promover reformas substanciais no Brasil, particularmente na infraestrutura logística; 2 – a liquidação da estabilidade monetária em consequência da inlação; 3 – a resistência em estimular a colaboração da iniciativa privada nacional; 222
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4 – substituir a ampliação dos investimentos por medidas parciais para estimular o consumo; 5 – a majoração das dívidas interna e externa, o que contribui para acelerar o processo inlacionário; 6 – atuação equivocada no comércio externo do país; 7 – distorções na orientação do BNDES ; 8 – desprezo quase absoluto pela defesa do meio ambiente. Estes erros, entre outros, causaram as seguintes questões: 1 – Crescimento quase nulo do Produto Nacional Bruto Pela segunda vez, neste ano, o Fundo Monetário Internacional reduziu a previsão de crescimento do PIB brasileiro e estima que a economia nacional irá aumentar menos da metade que os outros países emergentes. Na avaliação do FMI, a expansão será de 2,5% no ano em curso e no próximo ano. 2 – Semiparalisação ou estagnação total de obras básicas Há muitos anos, a população brasileira ressente-se das falhas do poder público na realização de obras básicas. Nossa gente reclama dos impostos elevados cobrados sem que exista a contrapartida da prestação de serviços satisfatórios (relembre-se o problema dos transportes urbanos). Devido a isso, há vários anos os governantes lançaram o Programa de Acelera ção do Crescimento (PAC). O investimento em infraestrutura nos anos 2000 é baixo e foi inferior ao aplicado na década de 1990, período em que o Brasil conviveu com a hiperinlação, crises externas e a fuga de capitais. Há duas décadas, o Brasil investe cerca de 2% do PIB em infraestrutura, o que é insuiciente para manter as instalações existentes. Um exemplo notório das deiciências do PAC é o projeto de transposição de águas do São Francisco (já foram gastos nele mais de 4 bilhões de reais – quantia maior do que a programada, de 3,8 bilhões – e as obras, há alguns anos paradas, deverão estar concluídas, não se sabe a que custo, no inal de 2015). Em algumas capitais, há projetos que estão sendo executados, mas em geral estão relacionados quase exclusivamente com a Copa do Mundo e eles dão prioridade ao transporte individual, subestimando o transporte coletivo em sete das 12 cidades-sede da competição futebolística. 3 – Insegurança sobre a estabilidade monetária, tendo em vista o retorno do processo inlacionário, que fora debelado quando da adoção do Plano Real.
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A taxa da inlação no ano em curso foi de 5,86 % até setembro, infringindo a meta ixada pelo próprio governo (de 5,5% com a possibilidade de dois pontos para mais ou para menos.) E nada indica o amortecimento da pressão inlacionária. Em consequência das preocupações sobre a estabilidade monetária, ao lado do elevado nível da inlação, existem outros fatores negativos, como a situação deicitária do Brasil no comércio internacional e o crescimento avultado da nossa dívida interna. Outro fator que inluencia negativamente os investidores é o comportamento das autoridades monetárias ao adotar medidas para atender aleatoriamente setores selecionados, sem considerar o quadro geral da economia. 4 – Resistências no PT à colaboração da iniciativa privada. No Brasil, os capitais privados desempenham uma função signiicativa. Sem eles, é muito difícil desenvolver atividades produtivas em razão da deiciência de recursos do Poder Público. Os dirigentes petistas têm grandes diiculdades no acerto com empresas privadas porque, no passado, izeram acerbas críticas à política do PSDB de buscar a participação de capitais nacionais em empreendimentos na economia. 5 – O governo estimula o consumo de determinados produtos, diminuindo a ampliação de investimentos em atividades produtivas. Depois de conceder seguidos benefícios iscais aos compradores de carros promove a venda de alguns artigos selecionados graças à diminuição de impostos, fazendo crescer nossa dívida interna. Vai empurrando a venda de carros, TVs, fogões, panelas etc., porque durante alguns meses tais produtos são vendidos em razão da diminuição temporária de impostos. Este procedimento é incorreto do ponto de vista social, pois beneicia igualmente pobres e ricos e não objetiva melhorar a situação da gente mais pobre. Essa preocupação com o consumo parte do argumento de que essa política contribuiria para evitar crises econômicas. Mas há um limite no incremento do consumo, ou seja, a capacidade aquisitiva da população. De acordo com uma pesquisa do jornal O Estado de S. Paulo (13/10/2013) o ―endividamento das famílias brasileiras superou 45% de sua renda acumulada em um ano, o maior porcentual veriicado pelo Banco Central desde 2005 e cresce constantemente desde então‖. O mais grave, porém, reside no fato de que essa prioridade de fomentar abusivamente o consumo indiretamente afeta a ampliação 224
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de investimentos nos setores básicos da economia. No caso do Brasil, segundo dados de Armando Castelar e Júlia Fontes, da FGV, há duas décadas o país apenas investe cerca de 2% do PIB em infraestrutura, o que é insuiciente para manter as instalações existentes, quando estimativas indicam que só para repô-las seriam necessários aportes de 3% do PIB. 6 – Com razão, o FMI critica à majoração da dívida externa, pois de conformidade com essa política, ela chega a 68% do PIB. O crescimento a médio prazo da economia encolheu principalmente em razão do baixo nível de investimentos. O governo brasileiro julga que o montante dessa dívida seria de apenas 59%, pois não leva em conta créditos do Tesouro em bancos estatais. Este argumento é inconsistente e não convence a ninguém, especialmente os investidores internacionais. 7 – Atuação equivocada no comércio externo do país. O governo estabeleceu como meta ampliar o intercâmbio com os países do Sul, desprezando o relacionamento com as nações com economia mais poderosa. Apenas com a China há um incremento comercial, mas realizado de uma forma que nos prejudica, porque exportamos commodities (de baixo valor agregado) e importamos produtos industrializados (de alto valor agregado). Em consequência, o Brasil está fora das negociações de livre comércio, icando isolado no com ércio internacional. Dever íamos expor tar anualmente produtos em torno de 550 bilhões de dólares. Mas, no ano passado, foram embarcados menos da metade desse volume. Segundo José Serra ―há uma radical ausência de uma política de comércio exterior, essencial para promover nossas exporta ções‖. Lula e Dilma resolveram dar total apoio a Ch ávez, inclusive cria ndo um sério problema no Mercosul com o Paraguai. Decidiram fazer um acordo com o governo de Caracas para participar da construção de uma reinaria da Petrobras. O resultado é zero porque Chávez levou seu país a uma crise generalizada, seguindo a mesma linha populista aqui posta em prática por Lula. 8 – Desde 2009, o governo lulopetista transferiu 300 bilhões de reais para o BNDES, com o objetivo de contrabalançar os efeitos da crise mundial. Contudo, as críticas do mercado externo e do Fundo Monetário Internacional, bem como a ameaça do rebaixamento do Brasil pelas agências de risco, assustaram o governo. Devido a essa pressão, o ministro Guido Mantega anunciou que, no futuro, a meta do governo é zerar os aportes do Tesouro ao BNDES. O governo Dilma e a herança de Lula
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Os especialistas da FGV consideram que a política dos bancos públicos brasileiros é responsável ―por fazer nossa dívida pública ser o dobro da média dos países latinos americanos‖ (ESP 5/11/13). Ademais são generalizadas as críticas ao BNDES em virtude de seus custos e sua insuiciente transparência. Por isso, seu imenso volume de recursos começa a ser reexaminado porque há denúncias de operações não justiicadas, como o inanciamento de algumas empresas (apresentadas como ―futuras multinacionais‖) e os créditos concedidos, por exemplo, ao grupo de Eike Batista, que está dando enormes prejuízos no mercado inanceiro. 9 – O governo Dilma enfraquece a Petrobras recorrendo a seus dividendos, com o objetivo de diminuir os déicits das contas públicas. Simultaneamente, não transfere recursos para as empresas estatais que necessitam enfrentar problemas graves, como a Eletrobras e a Infraero. De conformidade com Ildo Sauer, o leilão realizado de uma área do pré-sal fere o interesse nacional porque seu edital contém ilegalidades. Sauer calcula que o Brasil deixará de ganhar bilhões de reais já que a Petrobras deteve apenas 40% da operação no campo de Libra. (FSP/ 19/10/13). Acrescentou que a ―Petrobras deveria explorar 100% do campo de Libra e assim converter o petróleo em melhores condições de vida para a população: saúde, educação, moradia. Converter esse petróleo em dinheiro agora é correr o risco de ter a redução de preço lá na frente, além do risco de converter o petróleo em moeda estrangeira‖. 10 – Apesar de várias airmações da presidente Dilma, as autoridades federais não têm se empenhado na defesa do meio ambiente no país e no cumprimento dos compromissos internacionais subescritos pelo Brasil. Um exemplo foi o que sucedeu com a aprovação no Congresso Nacional do projeto relacionado com o desmatamento lorestal. Este é o quadro sem retoques do Brasil, panorama que nos fornece os resultados de dez anos da política de Lula e do Partido dos Trabalhadores. Todavia, ao formularmos essas observações apenas alertamos contra teses autoritárias que existem dentro do PT e que não devem predominar. Nele, também existem forças e correntes democráticas que devem ser valorizadas, porque poderão ter um papel indispensável nas transformações progressistas da vida brasileira.
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2015 vai determinar 2014
Armando Castelar o inal das contas, não aconteceu em setembro. Agora pode
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ter icado para o im do ano ou o primeiro semestre de 2014. Não importa, o início do im está à vista. Em algum momento dos próximos trimestres, o FED, o banco central americano, vai começar a gradualmente desmontar o programa de afrouxamento quantitativo – o QE, na sigla em inglês –, por meio do qual o FED ―imprime‖ dinheiro para comprar títulos de renda ixa, injetando liquidez e reduzindo a taxa de juros. Possivelmente ainda, em 2015 vai começar a subir a taxa de juros. Ainda que os mercados temam o im do QE, essa é essencialmente uma boa notícia. O FED já deixou claro que a normaliza ção da política monetária nos EUA está condicionada à recuperação da economia americana, em especial do mercado de trabalho. Com Janet Yellen na Presidência do FED, no lugar de Ben Bernanke, esse compromisso será reforçado. O im do QE signiica, portanto, que a maior economia do mundo estará inalmente saindo da crise em que entrou há cinco anos. A aceleração do crescimento americano, por sua vez, ser á essencial para compensar a perda de dinamismo das economias emergentes da Ásia e ajudar a Europa a superar os próprios problemas. O desaio está na transição de um mundo de dinheiro fácil e juros baixos para outro com níveis mais normais de liquidez. O anúncio de Ben Bernanke, no im de maio, de que o FED considerava iniciar a re dução gradual do QE no último trimestre deste ano, foi suiciente para causar grande estrago nos mercados inanceiros. Os pa íses emergentes foram particularmente afetados, com seus ativos dom ésticos perdendo muito do fascínio que até então exerciam sobre os investidores. Entre as economias emergentes, um grupo de países, apelidado de ―os cinco fr ágeis‖ pelo banco Morgan Stanley, mostrou -se particularmente vulnerável. Essas nações – África do Sul, Brasil, Índia, Indonésia e Turquia – se destacam pelos fundamentos econômicos mais fracos, que aumentam a sua exposição e restringem sua capacidade de reagir à deterioração do ambiente externo que advirá do im do QE. Em particular, eles têm enfrentado uma queda do cresci227
mento do PIB, uma inlação elevada e grandes déicits em conta corrente. Não surpreendentemente, as moedas desses países foram as mais atingidas pela reviravolta que se seguiu às declarações de Bernanke, em maio. O momento e o ritmo em que o FED vai começar a desmontar o QE, assim como a resposta que vamos dar a isso, serão os principais determinantes do que vai acontecer com a economia brasileira nos próximos anos. A tendência é que, mesmo que esse processo comece em 2014, uma reação mais completa de política econômica ique para depois das eleições de outubro. Essa reação, quando vier, não poderá ser leve, até porque deve ser adiada até o último minuto. O im do QE vai acentuar a queda no valor dos ativos brasileiros. O real deve passar por nova desvalorização, o custo de inanciamento vai subir, para o governo e as empresas, e o preço dos imóveis cair, ainda que isso deva demorar um pouco mais. Tudo isso terá impactos negativos não triviais sobre a inlação, o investimento, a situação iscal e a saúde dos bancos, em especial das instituições públicas. Assim como aconteceu entre maio e setembro, o im da festa da alta liquidez mundial vai interagir com as fragilidades da economia brasileira para acentuar os impactos negativos do im do QE. A situação iscal já está deteriorada, tanto em termos de sua institucionalidade como de indicadores como a dívida pública e o superávit primário. A inlação está alta há anos e as expectativas estão desancoradas. O crescimento potencial já caiu e não há sinal de que vá se recuperar tão cedo, na falta de ambiente de negócios que estimule o investimento e a alta da produtividade. Investidores e empresas j á estão trabalhando com esse cenário e se perguntando qual será a resposta da política econômica a partir de 2015. Se acreditarem que estará à altura dos desaios que o país vai ter pela frente, voltar ão os investimentos. Se perceberem que o gover no ainda não entendeu o desaio que tem pela frente, ou não está disposto a implementar as reformas que se fazem necessárias para enfrentá-lo, a economia vai desacelerar ainda mais em 2014, com piora das contas externas e mais pressão inlacionária. Nessa conjuntura, não será fácil o trabalho de quem assumir o governo em 2015.
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Amplia-se o campo da oposição
Sérgio Fausto issidências são um problema para quem est á no poder. Exem-
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plos, disso não faltam. O im do reinado de 70 anos do Partido Revolucionário Institucional (PRI), no M éxico, iniciou-se quando uma dissidência à esquerda lançou candidato próprio nas eleições presidenciais de 1988. Os sucessivos governos da Concertación, no Chile, entre 1990 e 2009, interromperam-se por igual razão. Aqui, no Brasil, o governo de Fernando Henrique Cardoso começou a perder a sucessão quando se rompeu a aliança entre PMDB, PFL e PSDB, em 2001. Ainda é cedo para prever os relexos eleitorais da aliança entre Eduardo Campos e Marina Silva. Mas já é possível dizer que se abriu uma dissidência que ameaça a reeleição de Dilma Rousseff. Não se trata de um evento menor. Campos e Marina são as duas novas lideranças políticas mais expressivas do bloco de forças que se reuniu em torno da candidatura do ex-presidente Lula em 2002 e 2006. Não será simples combinar a ―sustentabilidade‖ de Marina com o ―desenvolvimentismo ‖ de Campos, tampouco o ―utopismo‖ dela com o ―pragmatismo‖ dele. Não estamos diante, porém, de uma dupla de amadores. Quem supunha que Marina se enquadrava nessa categoria mudou de ideia depois da ousadia da aliança com o governador de Pernambuco. Foi um lance de mestre não apenas porque surpreendeu a todos, mas principalmente porque deiniu um claro objetivo estratégico: pôr um ponto inal na já longa permanência do PT no poder. Depois de sentir na carne a mão pesada do governo, pelas diiculdades criadas para o registro de seu partido, ela concluiu, como há muito já o fez a oposição, que a penetração do PT no Estado brasileiro alcançou um estágio perigoso para a vida democrática do país. ―Mais quatro anos, não‖ – essa já era a mensagem implícita da candidatura de Campos. Coube a Marina, entretanto, pronunciá-la em alto e bom som político. A ex-senadora empresta à aliança a legitimidade das ―jornadas de junho‖. Campos oferece a perspectiva de transformar a aliança na 229
base de um governo viável, com apoio e interlocução mais amplos do que Marina poderia obter. Seria relativamente fácil para o governo neutralizar ambos isoladamente. Contra a ex-senadora pesaria o argumento de que o Brasil é um país complexo demais para ser governa do por uma força incipiente, sem base parlamentar e quadros experimentados, à margem das correntes principais da política brasileira. Já a candidatura do governador se encontrava no divã político do ser ou não ser de oposição e ante a diiculdade de converter a alta popularidade em Pernambuco em maior intenção de votos no âmbito nacional. Juntos, Marina e Campos representam um desaio muito mais complicado para o governo. Pela primeira vez desde que o PT ascendeu ao poder existe a possibilidade real de uma frente de oposições capaz de mobilizar as diversas insatisfações contra o governo e organizá-las em tomo do objetivo de encerrar o ciclo político aberto em 2002. Partido mais bem estruturado da oposição, o PSDB vem com candidato novo para as eleições de 2014. O estilo agregador de A écio Neves facilita em muito a formação dessa frente de oposições, seja quem vier a encabeçá-la num provável segundo turno. É sintomática a forma leve e amistosa como o senador reagiu à notícia da surpreendente aliança entre Campos e Marina, mesmo sabendo dos desaios que o fato novo coloca para a sua candidatura. Prova de inteligência política de quem conia em suas boas credenciais como ex-governador de Minas eterno respaldo de seu partido. A possibilidade de derrota do governo alargou-se no horizonte. Dilma tem a maioria dos partidos, o que lhe dará mais tempo na televisão, mas é uma maioria com cara velha. E que envelhece a olhos vistos à medida que se intensiica a disputa por cargos e verbas dentro do condomínio governista. Grande parte da energia do governo é consumida em reuniões políticas para fazer e refazer o quebra-cabeças das alianças eleitorais e do loteamento do Estado. Outra parte é destinada a medidas e anúncios que visam a dividendos eleitorais, atividade que se tomou frenética, com ajuda do twitter presidencial. O que sobra é dedicado à tentativa de reconquistar a coniança perdida com os insucessos do ―novo paradigma de política econômica‖ e do ―novo modelo de desenvolvimento ‖. Como a tentativa é atrapalhada e os ventos externos não a favorecem, o governo terá um balanço modesto a apresentar em 2014. E diiculdade para convencer que, sob a mesma administração, dias melhores virão nos quatro anos seguintes.
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Sérgio Fausto
O eventual encerramento do atual ciclo de poder desobstruirá canais para a renovação da vida democrática brasileira. O PT tornou-se uma força conservadora. A lógica férrea da manutenção do poder freia o debate interno ao partido e limita as possibilidades de consolidação de novas forças no campo da centro-esquerda. A dissidência de Marina e Campos é uma resposta a esse cerceamento ativo. De igual forma, a denegação da gravidade especíica do ―mensalão‖ é sintoma de esclerose dentro do partido, embora a disciplinada ausência de crítica pareça sinal de força. A mesma lógica férrea da manutenção do poder estimula deliberadamente o auxílio à criação e proliferação de legendas de aluguel, a deterioração da política e das instituições do Estado e o amesquinhamento do debate público. O possível retorno do PT à planície reletirá a formação de uma maioria em favor de fronteiras de separação mais nítidas entre Estado e governo, entre governo e partido, entre governo, partido e sociedade civil. No Brasil, consolidamos algumas conquistas: democracia eleitoral, estabilidade, prioridade à inclusão social. Falta-nos uma República em que o Estado esteja a serviço da coisa pública e o fortalecimento da cidadania, deinida como exercício efetivo de direitos e obrigações iguais para todos, seja a razão de ser da vida política. É um longo processo, sem um ponto ixo de chegada. Nesta etapa, avançar nessa construção requer a quebra da hegemonia do PT na pol ítica nacional.
Amplia-se o campo da oposição
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Levar os cidad ãos das ruas às urnas
Arnaldo Jardim ilhões de pessoas foram às ruas reclamar da vida, exigir
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mudanças dos serviços públicos, modiicações das práticas públicas e escancarar a fragilidade das instituições. Fora respostas pontuais pouco se fez. Se ―a poeira baixou‖, as causas permanecem e o anseio persiste.
Amargamos há anos um crescimento medíocre, medidas localizadas demonstravam seus limites, há uma constatação generalizada de que este modelo econômico necessita ajustes. A criminalidade desila impune e cria referências de comportamento à juventude desprovida de condições materiais, de horizontes, de heróis! Há muito não se fazem reformas estruturais, que nem mesmo frequentam as agendas do governo, do Parlamento ou da sociedade! Já estamos em plena campanha para as eleições de 2014. Se ainda não há candidatos sacramentados pelos partidos e coligações, como determina a legislação eleitoral, de fato já se apresentam aos eleitores concorrentes de peso. Infelizmente nenhum dos postulantes destaca, além de seus projetos pessoais de poder ou da voracidade de partidos em ocupar espaços no Estado, um projeto nacional, um projeto para o país! Um fato novo e estimulante, que surpreendeu políticos e analistas é o que emergiu da mistura, que airma oposição, oriunda das forças que engrossaram a candidatura do ex-presidente Lula, em 2002 e 2006, Eduardo Campos e Marina Silva. Não fosse um quê de prestidigitação em seus primeiros discursos políticos para a imprensa, se poderia dizer que os dois convergem para formatar projeto brasileiro original. Mas há dúvidas. Campos avança para dizer que ―fará mais e melhor‖, repete o discurso do empresariado quanto à falta de segurança para os investimentos privados, de clareza sobre marcos regulatórios e ineiciência de gestão, mas necessita irmar opinião sobre eixos dinâmicos e prioritários e assim por diante. Marina faz proissão de crença inabalável no tripé macroeconômico dos tucanos regido por superávit primário, meta de 332
inlação e câmbio lutuante, sob o império da sustentabilidade. Mas se isso é um projeto harmônico para o país só se saberá na carta que Campos e Marina prometem divulgar ao povo brasileiro. Que a presidente está em campanha para a reeleição ninguém pode negar. Intensiicou suas viagens pelos estados para erguer os palanques futuros enquanto seus assessores escolhem a dedo as proclamas que ela faz nas visitas. Nos estados do Sul e Sudeste, por exemplo, anúncios de requentados inanciamentos para metrôs e trens visam contemplar um certo alívio às reivindicações por maior mobilidade urbana e transportes coletivos, recentes perturbadoras da ordem pública. O texto, que combina com o dos reclames oiciais, é o mesmo dos hor ários políticos na TV. A nova reforma ministerial, prevista para dezembro, não será outra faxina nem acumulação de créditos para barganhar a aprovação de projetos de interesse do governo no Congresso. Dilma mudará ministros de forma a aumentar o tempo de propaganda gratuita da sua candidatura na televisão. O governo, há tempo, pouco se interessa pela agenda do Congresso. E esse, desde a ligeireza legislativa, que pretendia responder à voz das ruas com modestos sussurros reformistas, dedica-se a atender reclamos corporativistas, a alardear fortes compromissos com causas fragmentadas da cidadania e fortalecer rapidamente seus perímetros eleitorais para os pleitos de deputados, senadores e governadores que se entrelaçam com o presidencial, no ano que vem. O sucesso em si da Copa do Mundo de 2014 – de resto já previamente encolhido por conta dos exorbitantes valores das obras e da pouca serventia que, parece, trará de imediato para a mobilidade urbana, como se alardeava – e nos últimos tempos a ação onipresente das desordens promovidas pelos black blocks nas manifestações e protestos, são os fatos que mais preocupam o governo. E não há certeza que o PT tenha fôlego agora de propor nem mesmo a reformulação de seu antigo projeto para o país, antes de resolver o esgarçamento partidário oriundo das divergências internas promovidas pela obstinada lógica da manutenção do poder. Quase o mesmo se dá com o PSDB, desgastado pela permanente batalha frontal com o PT, por atritos e desentendimentos internos e explícitos, que ainda mantém em cena Aécio e Serra, e está debilitado para reerguer as antigas bandeiras de social-democracia que inspiraram as primeiras e mais consistentes intervenções de resgate social iniciadas com o Plano Real e postas em marcha no governo de Fernando Henrique Cardoso. Os tucanos se batem por ampla aberLevar os cidadãos das ruas às urnas
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tura comercial, pelo corte das desonerações tributárias especíicas e por uma condução mais liberal da economia. Mas não conseguem ajustar isso em um projeto que conduza o Brasil para enfrentar o futuro globalizado deste s éculo. O que talvez tenhamos herdado desses emblemáticos embates bipartidários pelo poder – e não por um projeto –, enquanto nos preocupávamos em construir pelo menos uma democracia eleitoral, foi uma amálgama de descrença geral nas instituições políticas e da República e uma admiração pela espontaneidade das ações sociais e pelo voluntarismo de um arremedo de democracia direta. É a herança do estímulo ao usufruto das maravilhas do consumo como alternativa à participação política dos herdeiros dos ainda restritos sucessos econômicos. Da maneira como caminhamos o resultado continuará sofrível. O Brasil precisa de um projeto porque as pessoas estão desmotivadas. Em particular os jovens, os que não são reconhecidos como cidadãos e os excluídos de fato do sucesso da modernização do país exaltada diariamente nos discursos oiciais. E esta é uma boa hora para que os candidatos – todos os candidatos – tragam aos palanques os seus projetos para o país. Suas visões de prioridades. Que ajustes propõem na economia? Como conciliar desenvolvimento e conservação? Em que bloco econômico internacional devemos nos ixar? Como redeinir a Federação e como ir além de políticas sociais assistencialistas? Como fazer a ―revolução da educação‖ e assim por diante? Uma oportunidade para incrementar a democracia eleitoral com conteúdo para remobilizar o país, construir consenso e um projeto nacional capaz de levar os brasileiros das ruas às urnas!
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Arnaldo Jardim
Conveniências ociosas
Wilson Figueiredo o meio do mandato da presidente Dilma Rousseff, com todos
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os ss e ff, o destaque já era a dúvida sobre a margem imprevisível, se assim se pode dizer, das candidaturas siameses, dela e do seu patrono Luiz Inácio Lula da Silva, na sucessão presidencial do próximo ano. Não era bom sinal a reserva de mercado para garantir em 2014 o revezamento da dupla por mais um período: reeleição dela ou, inalmente, o terceiro mandato dele. Não estava escrito, nem precisava. Mas já se pressentiam temores de que, se não ocorrer o imprevisto, o previsível se cumprirá por conta própria. Não há precedente histórico de duas candidaturas oiciais ocuparem, por falta de alternativa (ou, melhor, de oposição organizada), todo o espaço político disponível na futura sucessão presidencial. Democracia bloqueada é sintoma, não solução. Lula elegeu a candidata à mão para se reservar, por fora, a manipulação do poder sem os ônus. Não podia ser Lula? Alguém por ele contornaria o obstáculo ao terceiro mandato. No que lhe dissesse respeito, não lhe faltariam recursos cênicos para ganhar tempo e usufruir benefícios políticos à sombra de mandato alheio. Não há registro de antecedente histórico, nem pré-histórico, de candidaturas gêmeas, e muito menos siamesas. Provavelmente nem mesmo no Sião. A oposição ganhou invisibilidade e sua função regeneradora, ao que consta, foi negligenciada por um certo tédio de chover no molhado. A preliminar da sucessão presidencial volta, pelo menos em tese, à questão entre o terceiro mandato de Lula e o segundo de Dilma, dadas as expectativas sombrias que sobrecarregam as incertezas dos pretendentes siameses. A impressão de que essa história se aproxima do desfecho não descarta o im imprevisível. Ele, Luiz Inácio, não dá o primeiro passo enquanto não reunir certezas suicientes num buquê compensatório a ser oferecido a ela (que, por sua vez, não passa recibo e conta com incertezas que seduzem quem está no poder). No caso de Dilma, a identiicação com a classe média, que ela conhece por dentro e por fora, não é garantia suiciente. Falta-lhe, no mínimo, a ortodoxia severa com que é trata335
da essa gente que chega pela esquerda mas é conhecida por outros lados. É a classe média que paga, ou deixa de pagar, a conta interminável. O pequeno burguês contava com o reconhecimento que lhe reservaram as democracias remodeladas pelo século 20, mas não sabia que seriam entregues no futuro indeinível. Ele, Lula, veio a ser o portador de características anacrônicas do peleguismo de salão. É por aí que a questão vai esquentar. Em franca expansão social e política, a classe média teve, em Dilma Rousseff, além das pesquisas de opinião pública, a oportunidade de fazer uma limpeza que só dependia dela. Não durou. A presidente se contentou com o nível onde a roubalheira corria solta, mas os personagens eram socialmente modestos e politicamente órfãos. Ou seja, na faixa em que é referida como ―a presidenta‖. O pequeno burguês (no bom sentido, claro) corteja a presidente e lhe desculpa as concessões feitas, aqui e ali, para esperar algum tempo, mas não todo o tempo. Dilma somou pontos valiosos na escala da coniança preliminar da classe média, mas faltaram-lhe convicção suiciente e disposição para a limpeza. Perdeu a oportunidade de ser mais franca e mais contundente. Já o ex-presidente Lula conia na repetição de truques. A perturbadora ausência de oposição já está pesando nos fatos, desde que a própria presidente se valeu de um io de moralidade pública com que costurou timidamente sua imagem inicial, enquanto ele, Lula, se destacava pelo oposto. Não está nem aí. Moralidade não é com ele. O ex-presidente já não é o mesmo, mas também não é outro. Embatucou: ora não sabe de nada, nem quer saber. Ora entra em cena e sai logo pela tangente, que é a primeira porta à direita. Já não se explica e, se falar claro, não se beneiciará do que é o seu forte: o avesso da verdade. As pesquisas continuam a desempenhar função burocrática. Chovem no molhado, enquanto existirem potencialmente duas candidaturas de procedência oicial, pelo menos até que as consequências se precipitem e o espírito oposicionista histórico, radical e exaltado, se faça presente. A esta altura, não há mais como repetir a farsa que é a existência artiicial de duas candidaturas oiciais, redondinhas, à próxima sucessão presidencial. Era apenas para empacar o processo. Nascidas do mesmo ventre e separadas por uma conveniência ociosa, as candidaturas de Dilma e Lula continuam atadas a compromissos recíprocos. Apenas para passar o tempo. A sucessão tende a se deslocar na direção daquele, dentre os dois siameses, que sobreviver às cir-
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Wilson Figueiredo
cunstâncias. Os vagidos das outras candidaturas ainda não soam claros. Mal são ouvidos. Vive-se momento não deinido, dada a falta de ar renovado, pelo qual as questões relativas à sucessão deveriam já estar postas com clareza. Candidatura, para vencer, tem hora própria. Nada a ver com a legislação eleitoral. A presidente Dilma Rousseff e o ex-presidente Lula são candidaturas potencialmente siamesas desde a eleição passada e, por motivos que não vêm ao caso, dão-se conta de não passarem de iniciativas ociosas e, ainda pior, ligadas pelo umbigo. Uma espécie de pacto de morte. Um dos dois pretendentes terá de ser sacriicado para que o outro sobreviva. Trata-se de caso raro e, politicamente, inédito. A democracia não reserva saída pela tangente e a exclusão de um deles pode ter custo extra sobre o precário equilíbrio do capital político de ambos. Lula e Dilma trataram ambos de ganhar tempo. Ele, à maneira perdulária de nada fazer enquanto pudesse evitar. Ela, com categoria, que também soube usar quando precisou, mas já parece esquecida. E nem se deu conta do prejuízo. A segunda metade do mandato em curso começou com resultados e perspectiva negativa (da retração econômica internacional ao apagão que não ocorreu apenas para infernizar os governos Fernando Henrique), mas nada se resolve com a falta de explicação e apenas a ilusão de que tudo vai melhorar. A hora da verdade faz parte de campanhas presidenciais. E não é por outra razão que governos perdem eleição e oposições costumam se eleger mesmo sem merecimento. No caso, não se trata senão de ajuste doméstico na exótica situação criada pelas duas candidaturas num quadro que não comporta mais de uma, sem consequências previsíveis ou não.
Conveniências ociosas
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Um novo bloco de centro -esquerda
Júlio Martins deslocamento do Partido Socialista Brasileiro do governo
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para a oposição é dos fatos políticos mais importantes de 2013. Esse descolamento do PSB da órbita do PT, co m o ges to simbólico da entrega à presidente Dilma Rousseff do ministério e cargos ocupados pelo partido é o fato novo, com implicações estratégicas que vão para além do pleito presidencial de 2014.
Essa passagem do PSB para a oposição foi reforçada pela iliação de Marina Silva ao partido, depois dos marineiros sofrerem com as manobras que impediram a legalização da Rede a tempo de participar da disputa de 2014. Aumentou assim o contraste entre os interesses da nova agremia ção e aqueles defendidos pela coaliz ão governista. O PSB tamb ém sentiu a mão forte do governismo para in viabilizar a pré-candidatura à Presidência da República do seu presidente, o governador Eduardo Campos, de Pernambuco. As tentativas golpistas contra Marina e a Rede, bem como contra Campos e o PSB, empurraram as duas agremiações para um descolamento cada vez maior do campo governista, com desdobramentos para o pleito de 2014. Qual seja, a possibilidade de que a aliança PSB-Rede e outros partidos se torne um novo polo na política brasileira e, ao chegar ao segundo turno, galvanize a oposição e lidere um novo bloco de centro-esquerda com reais chances de vitória. E no caso desse polo icar de fora do segundo turno, o mais provável é que não se alinhe ao governismo, ou icando neutro ou se aliando ao PSDB. O que poderá resultar igualmente num novo realinhamento de forças no país, pondo im a uma polarização e a um quadro de alianças partidárias que se iniciaram em 1994 e se cristalizaram com as elei ções de 2002. Os atritos entre PSB e PT são anteriores à candidatura de Campos à Presidência, atritos bastante visíveis nas eleições municipais de 2012. Em várias capitais do Brasil, o segundo turno das eleições para prefeito colocou candidatos do PT e do PSB como principais advers ários. Tais atritos resultam do crescimento do PSB e do hegemonismo 338
do PT na sua pretensão de ser o único partido da esquerda brasileira e de sua visão instrumental dos aliados. Lembremo-nos de que, ainda em 20 07, o P SB ar ticulou co m o P DT, P CdoB , PRB , PHS e P MN um bloco parlamentar batizado de Bloco de Esquerda, mais conhecido co mo Bloquinho, objetivando uma atua ção própria e não subordinada à hegemonia do bloco governista no Congresso liderado pela aliança PT-PMDB. O chamado Bloquinho tentou tamb ém atuar de forma con junta nas eleições de 2008 e de 2010, mas, neste último pleito, não lançou candidato próprio à Presidência da República por forte press ão do PT, que desejava ganhar a elei ção já no primeiro turno. Sabemos que tal desejo foi frustrado pela candidatura de Marina Silva pelo pequeno PV, que alcançou surpreendentes 19,6% dos votos e levou a decisão para o segundo turno. Em que pesem uma conjuntura extremamente favorável ao governismo, com o país crescendo a 7,5% do PIB e a popularidade do presidente Lula no auge, a expressiva votação da candidata verde sinalizou um aspecto pouco considerado à época: a insatisfação crescente, em especial das camadas médias, com o sistema político dominante, principalmente com o chamado presidencialismo de coalizão, cujos pilares não estavam assentados numa negociação aberta e democrática em termos programáticos entre partidos ains, mas no velho isiologismo, com o uso dos mais diferentes instrumentos de cooptação do Estado. A aliança do PSB com a Rede pode atrair outros setores de centro-esquerda, sejam eles de oposição ou independentes, como o PPS e o PV, sejam aqueles governistas como o PDT, bem como também outros partidos e personalidades próximas ao governo, erodindo o apoio à candidatura oicial em 2014. Se tal bloco da chamada esquerda democrática se constituir no primeiro turno, poderá se tornar uma forte alternativa à tradicional polarização PSDB X PT, com chances reais de chegada ao segundo turno. Uma vez lá, poderá liderar um novo bloco de centro-esquerda como opção viável e estabelecer um novo pacto político e social para governar o país.
O bloco de centro-esquerda O Brasil viveu duas experiências recentes de centro-esquerda, que deram contribuições positivas ao país e melhoraram a vida dos brasileiros. Uma delas, o bloco progressista de centro-esquerda estabelecido na Constituinte de 1987 sob a liderança de Ulysses Guimarães e que se contrapôs ao ―Centrão‖, o bloco conservador de centro-direita.
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O bloco progressista de centro -esquerda da Constituinte, do qual o antigo PCB, hoje PPS, fez parte ao lado do PSB, do PDT, do PV e dos progressistas do PMDB, muitos dos quais fundaram o PSDB, em 1988, deixou como legado a mais democrática Constituição de nossa história republicana, na qual muitos direitos sociais foram inscritos e importantes instrumentos de democracia participativa foram criados. O bloco progressista da Constituinte foi resultado tanto das grandes mobilizações das Diretas Já como também das manifestações de rua em prol da candidatura a presidente de Tancredo Neves, cuja vitória no Colégio Eleitoral pôs im a 21 anos de ditadura. Outra experiência de centro-esquerda foi a do governo de Itamar Franco, surgido após as grandes manifestações populares que levaram ao impeachment do então presidente Fernando Collor de Melo e que expressaram o desejo da sociedade brasileira de se livrar de um governo autoritário e sem compromisso com a ética e a moralidade administrativa. Itamar Franco foi um governo amplo, com um ministério que expressava uma frente de centro-esquerda, com representantes do PPS, PSB, PV, PDT, PSDB, a ala progressista do PMDB e at é setores conservadores dispostos a colaborar com um novo momento para o país. Ficaram de fora somente aqueles setores mais atrasados, comprometidos com o governo Collor. E tamb ém o PT, que se negou a participar daquela curta, mas inovadora gestão pública e expulsou Luíza Erundina, a respeitável ex-prefeita de São Paulo que havia passado a cheiar o Ministério da Administração, em caráter pessoal. Com responsabilidade iscal e social, o governo Itamar conseguiu combinar as necessárias medidas de ajuste para debelar a hiperinlação, de 2.477,15%, em 1993, para 916,46%, em 1994, com aquelas de estímulo à retomada da economia, obtendo resultados positivos na melhoria de renda dos brasileiros e na taxa de crescimento, de 4,92% do PIB, em 1993, e de 5,85%, em 1994.
A divisão do bloco de centro -esquerda Aquela rica e exemplar experiência de governo buscou a unidade de um grande bloco de centro-esquerda para governar o país, porém a eleição de 1994 ocasionou a divis ão desse bloco. De um lado, o PSDB se compôs com o PFL. De outro, partidos que compunham o governo Itamar, como o PPS, o PSB e o PDT foram atra ídos para a candidatura do PT. Assim, constituiu-se um quadro de alianças, liderado, de um lado, pelo PSDB, e, do outro, pelo PT, com o PMDB oscilando entre 440
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esses dois blocos. Tal polarização favoreceu a ambos os partidos, PSDB e PT, porém mais especialmente a este último, por motivos vários. Entre eles, reforçou a propaganda petista de apontar a divisão da política brasileira em dois campos: um supostamente conservador, de direita, liderado pelo PSDB, e outro, supostamente progressista, de esquerda, liderado pelo PT. Desse modo, jogou o PSDB para o espaço do centro e da direita, favorecendo ao PT que saiu do isolamento da esquerda e passou a ocupar o espaço da centro-esquerda e a atrair setores centristas e de centro-direita para suas alianças. Tal polarização emparedou a centro-esquerda como o PPS, o PSB e o PDT, que, ou icavam subordinados por gravidade ao projeto petista ou ganhariam a pecha de direitista. Com a vitória de 2002, tal projeto ganhou a avassaladora pressão do poder econômico e de cooptação do Estado brasileiro.
Um novo quadro de alianças Ao que tudo indica, o país vive hoje uma conjuntura de realinhamen to de forças, impulsionada pelas gigantescas manifestações de junho, estas resultantes da incapacidade do atual bloco de poder de promover reformas democráticas do sistema político, de tirar o país do baixo crescimento econômico e de melhorar a qualidade dos ser viços públicos. O bloco PSDB-PFL no governo (1995-2002) foi capaz de controlar a inlação, promover um maior grau de estabilidade da moeda e da economia, além de promover políticas sociais compensatórias, como o benefício de prestação continuada previsto na regulamentação da Lei Orgânica da Assist ência Social, bem como os primeiros programas de renda básica, como o bolsa-escola. Mas o bloco PSDB -PFL não conseguiu avançar na democratiza ção e oxigenação do sistema pol ítico. As crises internacionais da segunda metade dos anos 1990 revelaram a fragilidade da nossa economia, em especial o baixo investimento público em infraestrutura decorrente da crise iscal e cujo maior exemplo foi o racionamento de energia elétrica de 2001. A crise econômica e a insatisfação social dela resultante abriram espaço para a vitória da coligação liderada pelo PT, que a partir de 2005 conseguiu a adesão em bloco do maior partido político no Congresso, o PMDB. O bloco PT -PMDB, ajudado por uma conjuntura in ternacional favorável pelo crescimento das economias centrais e em especial da China, manteve em boa medida a estabilidade econômica e conseguiu aumentar a taxa de crescimento do país, com repercus-
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sões positivas no emprego e na renda dos trabalhadores, gerando folga iscal para a ampliação dos programas de transferência de renda. Todavia, igualmente, a coligação de poder liderada pelo PT não promoveu avanços na democratização do sistema político. Antes regrediu, aprofundando as relações isiológicas com o Congresso e os partidos, subordinando-os a um Executivo hipertroiado, com o agravante de atrelar os movimentos sociais e a sociedade civil ao Estado. Com uma base política e social heterogênea, ocupado com a manutenção do poder e embalado pelo relativo sucesso econômico, o governo não promoveu reformas estruturais suicientes e necessárias para preparar o país para um desenvolvimento econômico sustentado. Tal fato icou evidente com a crise econômica internacional de 2008, em que os ventos mundiais sopraram contra e o Brasil precisou contar somente com suas próprias forças. A partir de 2011, experimentamos uma taxa de crescimento do PIB inferior ao dos anos 1990, quando o país vivia uma situação crítica herdada da recessão dos anos 1980, ainda promovia o ajuste iscal, lutava contra a inlação, sofria com a falta de reservas cambiais e concluía a renegociação da dívida externa com os credores internacionais. A atual crise revela, assim, o esgotamento, o conservadorismo e a incapacidade do atual bloco de poder e do velho quadro de alianças de promover as reformas necessárias ao país. É preciso, pois, destravar o atual sistema de alianças estabelecido a partir das eleições de 1994, com a vitória do bloco PSDB-PFL, e que se cristalizou com a substituição no poder por um polo oposto a partir de 2005, a aliança do PT -PMDB e outras forças políticas conservadoras, como o PP, PR, PRB, entre outras. A crise econômica, a obstrução de reformas pelo bloco de poder, as manifestações de junho, bem como o realinhamento de forças promovido pelo PSB-Rede e personalidades dissidentes como o senador Cristovam Buarq ue (PDT -DF), põem em xeq ue nã o só a continuidade do atual governo, como também a capacidade do PT de liderar democraticamente o campo da esquerda e promover reformas democráticas e progressistas para o país.
As chances da esquerda democr ática Quais são as chances de um novo bloco da esquerda democrática se constituir no primeiro turno, chegar ao segundo, agregar as oposições e dissidências e conquistar a coniança dos eleitores no próximo pleito presidencial? Que nomes cumpririam essa tarefa? 442
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Antes mesmo da aliança com a Rede, a pré-candidatura de Eduardo Campos à Presidência da República vinha preocupando os estrategistas do governo, pela possibilidade dela dividir as bases políticas e sociais do governismo. Ela teria potencial de dividir votos no Nordeste, em que Lula e Dilma tiveram fortes votações nas eleições passadas, uma vez que o PSB é bem estruturado na região e Campos é governador bem avaliado em Pernambuco. Além do mais, Campos já vinha dialogando com setores empresariais próximos ao governo Lula, mas descontentes com a política econômica e com a pouca capacidade de negociação da presidente Dilma Rousseff. Com o apoio de Marina, Campos pode crescer nos centros urbanos e nos setores de classe média, local e segmento das manifesta ções de junho. São Paulo e Rio de Janeiro s ão estados onde o PSB é pouco representativo, mas o apoio do PSDB e das defec ções do governismo no Rio tem condições de fortalecer Campos no segu ndo turno. Em São Paulo, o apoio de algumas personalidades, como Luiza Erundina, podem ter grande força simbólica e eleitoral, disputando eleitores à esquerda. No sul do Brasil, há chances de um crescimento de Campos no segundo turno, uma vez que ele é capaz de atrair apoio além do eleitorado oposicionista, também setores que podem se descolar do PT, como parte do PDT do Rio Grande do Sul e de outros lugares do pa ís. A aliança PSB-Rede anula em alguma medida o discurso mistiicador ―direita x esquerda‖ do qual o governismo tem tirado proveito desde 2006 e 2010. Porém, um novo bloco da esquerda democrática precisaria se diferenciar seja do atual bloco de poder e de sua política econômica, como tamb ém de fugir de uma pol ítica econômica liberal, parecida com aquela pela qual o bloco PSDB -PFL icou estigmatizado pelos seus opositores de insensibilidade social.
Hora do programa da esquerda democr ática O discurso de Campos pode ser bastante efetivo. Em artigo publica do na imprensa ao comentar os 25 anos da Carta de 1988, ele valorizou aquilo que considerou a heran ça democrática do governo Sarney, a he rança da estabilidade econômica de FHC e a herança da inclusão social de Lula. Tal discurso traz tanto o apoio do eleitorado da oposi ção como do eleitorado governista, especialmente daqueles que s ão sensíveis ao discurso terrorista de que a vitória da oposição seria uma ameaça às conquistas sociais alcançadas nas últimas décadas. Essa desconiança deve ser vencida com um claro programa democrático e reformista de centro-esquerda, com o que poderia conUm novo bloco de centro -esquerda
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quistar o apoio de todos os setores sociais. Dos assalariados e das classes médias, com um irme compromisso de preservar não só os programas assistenciais como especialmente de incrementar políticas sociais que elevem os ganhos de renda da população e melhorem efetivamente a qualidade dos serviços públicos. Dos setores empresariais, ao se comprometer com uma política de desenvolvimento nacional que combine de forma equilibrada e negociada os setores públicos e privados da economia, ao mesmo tempo de uma garantia de que nenhum setor econômico e social será atropelado, como por exemplo, o ambientalismo ou o agronegócio. A busca de consensos democráticos amplos deve ser uma tônica do seu programa. Aliás, a questão democrática deve estar claramente colocada. Uma postura de diálogo permanente com a sociedade, sem hegemonismo do partido governante, sem instrumentalização das instituições e entidades, sem atrelamento dos movimentos sociais e da sociedade civil. O programa deve ter tais objetivos fundamentais, além de, no processo eleitoral, contribuir para: a) no primeiro turno, airmar a identidade da esquerda democrática, composta por diferentes partidos e personalidades; b) no segundo turno, contribuir na construção de um novo bloco de centro-esquerda para governar o país. Tal programa não deve expressar unicamente as diretrizes de um único partido, mas uma plataforma que expresse o consenso não só dos partidos e personalidades da esquerda democrática, como também aposte num plano de governo capaz de trazer amplo apoio político e social no primeiro turno. Para se constituir em uma alternativa real de po der, deve ser inclusivo, não excluir os setores centristas, mas antes envolvê-los numa ampla e multifacetada articulação. Seu programa, assim, deve expressar a possibilidade de consenso para a construção de um amplo bloco da centro-esquerda, no segundo turno. Também o projeto de desenvolvimento econômico sustentável deve estar claramente vinculado a uma nova economia, que busque de todas as formas conciliar consequentemente a necessidade de crescimento com a de preservação da natureza. A vitória de um novo bloco de centro -esquerda em 2014 é vital para o desenvolvimento econômico, político e social do país, bem como para a sobrevivência e crescimento de p artidos como PSB, Rede, PDT, PPS, PV e PSDB. Pelo que já se viu até aqui de jogo pesado, os dirigentes dessas agremiações não devem ter dúvidas de que, outra vez no comando do país, a atual coligação de poder usará toda a força econômica e inanceira do Estado brasileiro para destruir alternativas de poder, com sérios prejuízos à qualidade da democracia brasileira.
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Black Blocs, já vimos isso antes
Anivaldo Miranda uando um fato político é envolto em certa cortina de misté-
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rio, um dos métodos mais tradicionais para desvendá-lo é sempre perguntar-se a quem ou a qual propósito serve ou não serve, seja consciente ou inconscientemente. Para entender o súbito emergir dos black blocs na cena político-social e na grande mídia, para além dos estragos materiais que causam, utilizar o velho método de investigação é sempre aconselhável, pelo menos para dar celeridade a esse entendimento. Não há qualquer margem de erro se airmamos que, deinitivamente, os black blocs não servem aos propósitos das centenas de milhares de pessoas que foram às ruas, nas jornadas de junho último, para protestar contra a péssima qualidade dos serviços no Brasil e, por tabela, contra as grandes mazelas do país, a começar pela corrupção, passando pela violência e pelos gastos públicos de necessidade discutível, dentre outros. Do ponto de vista prático, é visível a percepção de que o irromper de sua aparição nas manifestações massivas – nas quais o volume impressionante de pessoas indignadas com os governos por si só estava gerando efeitos pol íticos positivos e imediatos – funcionou como uma ducha de água fria e, de fato, serviu apenas para acelerar prematuramente o reluxo do movimento, mesmo considerando todo o seu caráter difuso, heterogêneo e passageiro. Os black blocs, portanto, funcionaram como elementos de neutralização e até de distorção da imagem dos movimentos de junho, fornecendo valioso discurso para muitos setores dos governos, partidos, poderes e instituições que, incomodados com a cobrança das ruas, ansiavam por argumentos que lhes permitissem desqualiicar ou ignorar o conteúdo das bandeiras que reclamavam mudanças mais profundas no cotidiano da atividade política, administrativa e econô mica do pa ís. Não foi, portanto, a polícia, como quiseram apresentar os black blocs e seus teóricos, anônimos ou não, o elemento de que se benei445
ciou o sistema instituído, para esvaziar os movimentos, mas, sim, o efeito desmobilizador e desorientador da viol ência gratuita que explo diu exatamente no momento em que o caráter pacíico e massivo das manifestações atraíam multidões cada vez maiores, numa demonstração de maturidade democrática que colocou o chamado ―establishment‖ totalmente na defensiva. A polícia e as autoridades a que estão submetidas deram, evidentemente, várias demonstrações de despreparo no desempenho de suas funções diante de manifestações públicas onde seu papel é garantir o direito de reunião e, ao mesmo tempo, ordenar o trânsito e prevenir ou coibir, evidentemente, atos de vandalismo. Mas, não foram a inatividade algumas vezes deliberada da força pública ou os excessos oiciais de violência, sempre condenáveis, embora totalmente passíveis de correção, o que prevaleceu como a tônica daqueles eventos. Essa, é óbvio, foi dada pela inconsequência dos black blocs e por todos os pescadores de águas turvas a eles associados direta ou indiretamente ou deles beneiciários. Política e ideologicamente os black blocs são primários e seus ar gumentos toscos, além de se constituírem em mino rias vis íveis. Ocor re, porém, que, devidamente manipulados ou ignorados, podem se constituir, dentre tantas outras minorias de caráter extremista, seja de esquerda, religiosas fundamentalistas ou até fascistas, em fatores negativos para o processo de amadurecimento democrático do Brasil. Por isso suas ações merecem atenção e suas postulações merecem resposta, sobretudo no contexto das redes sociais, onde uma parcela importante da juventude que se inclina à politização pode ser atraída por um discurso anacrônico historicamente, mas passível de se apresentar como algo novo mediante uma ―mãozinha‖ de certos acadêmicos que, nostálgicos, querem repetir caricatamente experiências que o passado das lutas sociais já esgotou. Carentes de legitimidade política, identidade ideológica e referência histórica, grupos do tipo Black Bloc precisam desesperadamente de al gumas conceituações teóricas, mesmo simplórias e no caso supostamente de esquerda, para a composição de um discurso minimamente palatável como justiicativa de suas a ções e de seu proseliti smo. Foram, portanto, buscar no movimento autonomista europeu e nas postulações aventureiras da chamada ―ação direta,‖ a inspiração para replicar no Brasil, 30 anos depois, táticas de ação violenta que agora se destinam atingir os símbolos mais visíveis do capitalismo globalizado como forma de superação dos métodos ditos ineicientes dos movimentos sociais e políticos que se utilizam dos instrumentos 446
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democráticos para fazer avançar na sociedade o processo contínuo de conquistas de direitos e transformação da sociedade. Como se constitui contradição intransponível reclamar-se de esquerda e, ao mesmo tempo, abominar os espaços democráticos que a sociedade e a própria esquerda conquistaram para viabilizar o avanço de suas lutas, os black blocs apresentam-se, para justiicar sua presença nos movimentos, como os ―defensores‖ dos manifestantes contra a truculência da polícia cuja intervenção eles próprios provocam ao transpor as fronteiras daquilo que poderia ser caracterizado como indignação cívica, evoluindo, assim, para a prática de atos de vandalismo totalmente gratuitos. Os melhores defensores das manifestações são a Constituição da República, o caráter massivo dessas manifestações, a justeza de suas bandeiras e, sobretudo, a maturidade política e capacidade de organização dos manifestantes. Numa democracia, nada melhor que o exercício das liberdades públicas e dos direitos constitucionais para dar segurança e fazer avançar as lutas da comunidade. Desconiai, portanto, de quaisquer ―defensores‖ da sociedade que se arvoram como tais sem antes ter o cuidado de perguntar ao povo se por eles deseja ser ―defendido‖. Como as redes sociais no contexto da Internet representam uma evolução da modernidade comunicativa, onde a interatividade do luxo astronômico de mensagens dispensa a ideia de centros de comando, os black blocs e assemelhados, disso procuram se servir para construir, no terreno da ação política, uma falsa similitude com o ambiente libertário, digamos assim, da Internet. Adicionam a isso uma outra similitude, dessa vez histórica, com as raízes do anarquismo, muito embora, em termos conceituais e práticos, estejam anos luz de distância seja das condições histórico-sociais que produziram o anarquismo, seja dos fundamentos de sua teoria político-ideológica. Críticos do capitalismo monopolista globalizado s ão, em verdade, um produto bizarro da própria globalização capitalista que estimula, não raro, a cópia caricatural de fenômenos europeus em contextos brasileiros, sem qualquer adaptação ou tratamento crítico, atendendo a um modismo e a uma espécie de macaquice midiática que relete a própria miséria ideológica da esquerda a que esses black blocs dizem pertencer. Porém, como se constituem em grupos formados majoritariamente por jovens e se utilizam de um discurso apelativo à coragem, Black Blocs, já vimos isso antes
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ao desprendimento, à negação do ―estabelecido‖ e ao imaginário supostamente emancipador, os black blocs atingem ideologicamente um contingente de pessoas que é bem maior do que aquilo que isicamente eles podem mobilizar, ou seja, muitas pessoas não se dispõem a fazer o que eles fazem, mas no fundo por tal coisa sentem simpatia. E isso não é bom para a democracia. Não é bom porque vários grupos, segmentos partidários, movimentos de diversa extração ideológica, seja de esquerda ou direita, partindo de outras premissas ou plataformas reivindicatórias, também demonstram desprezo pelos instrumentos e pela convivência democrática, seja porque consideram-nos ineicientes para o alcance dos seus objetivos, seja porque são intrinsecamente favoráveis a algum tipo de ordenamento autoritário ou ditatorial da sociedade. E essa é a razão pela qual, todos aqueles que, de alguma forma, agem para desestabilizar a democracia merecem ser desmascarados, porque a democracia atual, mesmo com todas as suas imperfeições e lacunas, é a maior conquista que os brasileiros conseguiram em séculos de enormes sacrifícios e lutas por uma sociedade mais livre, mais justa e mais igual. Traçar paralelos entre a ação dos atuais black blocs e a juventude que se enfrentava com a polícia nos tempos da ditadura não tem o menor cabimento. Primeiro porque naquele tempo as balas não eram de borracha. Segundo porque os jovens que se enfrentavam nas ruas lutavam pelo direito de se manifestar paciicamente, tercei ro, seu alvo nunca foi gratuitamente o patrimônio público ou de terceiros e, por último, a polícia daqueles tempos estava a serviço de uma ditadura militar e não de governos eleitos pelo voto e, consequentemente, passíveis de cobrança caso ajam indevidamente no uso da força policial. A Constituição Brasileira e as liberdades públicas consagradas, onde desaguam os direitos e deveres de todos os cidadãos e cidadãs, não podem ser objeto de tergiversação. Defendê-las, estendê-las e fazer avançar a convivência democrática é sempre a tarefa mais revolucionária de todas, porque a democracia, como exercício do contraditório, é a própria e insubstituível condição para que as demandas populares, a luta contra as injustiças e as transformações sociais não somente avancem, como se consolidem. Fora desse entendimento, todo e qualquer comportamento que solapa as bases dessa convivência, não passa de provocação e ato de intolerância. E isso nós já vimos antes.
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II. Nos 25 anos da nova Constituição brasileira
Autores Dim a s Ma ced o Jurista, mestre em Direito, professor titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, e autor de várias obras, entre as quais se destaca Estado de Direito e Constituição – O pensamento político de Paulo Bonavides.
Luiz Werneck Vianna Cientista político, professor-pesquisador da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro, e autor de várias e importantes obras, dentre as quais a mais recente é A modernização sem o moderno – Análises de conjuntura na Era Lula , da série Brasil e Itália, da Fundação Astrojildo Pereira, em parceria com a Contraponto.
Roberto Freire Advogado, deputado federal por S ão Paulo e presidente nacional do PPS. Foi deputado federal constituinte pelo PCB/PE.
Marco da reconquista da democracia 1 Roberto Freire esta última etapa dos trabalhos constituintes, antecedendo
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o ato maior da promulgação da nova Carta, teríamos que obrigatoriamente vir a esta tribuna para explicitar uma alegria que é nossa e de todas as forças democráticas e progressistas deste país: a luta para derrotar a ditadura e conquistar a democracia foi vencida, e aqui tem seu marco. Esta luta da resistência democrática foi vencida com imensos sacrifícios, até mesmo com a vida de vários dos melhores ilhos do nosso povo e a eles o nosso preito de reconhecimento. Porém, a satisfação maior com esta importante conquista talvez seja de quantos fazem a gloriosa legenda do Partido Comunista Brasileiro. Não pelo simples fato de termos sido a principal vítima do regime autoritário, mas, como é de público conhecimento, fomos a primeira organização no país, ainda nos idos de 1967, durante o nosso VI Congresso, realizado na mais rigorosa clandestinidade, a erguer a bandeira da Assembleia Nacional Constituinte, como o estuário natural onde se poria im ao arbítrio e se resgatariam para a sociedade as regras da sadia convivência democrática. Essa tese ganhou consistência na frente democrática de então, o MDB, quando juntamente com iguras de combativos democratas que aqui homenageamos como o prefeito Jarbas Vasconcelos, o deputado Fernando Lyra e o saudoso ex-senador Marcos Freire, lançamos, em 1970, a Carta do Recife, cuja bandeira central era a Constituinte. 1 Discurso proferido na 338a sessão (01/09/1988) da Assembleia Nacional Constituinte.
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É notório também que foi o PCB, ainda em março de 1986, o primeiro Partido a formalizar um conjunto de propostas para a Constituição cujo texto inal estamos hoje aprovando, oferecendo-as à apreciação e ao debate de todas as for ças e movimentos da sociedade brasileira. Ao relembrar esses fatos de domínio público não desejamos demonstrar nenhuma superioridade sobre nenhuma corrente política ou partido existente no país, com assento ou não nesta Casa. Queremos enfatizar pura e simplesmente que tudo isso está integrado à nossa concepção estratégica de centralidade da questão no caminho da revolução brasileira em direção ao socialismo. Temos coniança de que o Brasil, com a nova Constituição, amplia e aprofunda suas possibilidades de tornar-se uma nação democrática e socialmente justa. Não cometeríamos a infantilidade de reivindicar a nova Carta como patrimônio dos comunistas, mas temos a noção histórica exata de que em seus artigos, capítulos e títulos estão parte de nosso ideário no caminho das liberdades democráticas, de uma vida melhor e de uma sociedade mais justa. O Estado de Direito democrático, que substitui o Estado autoritário, centralizador e fechado à participação popular, é um campo privilegiado para que a classe operária e os trabalhadores em geral possam, no seu processo de lutas na defesa de seus interesses e dos do conjunto da sociedade, tornar-se agentes de sua própria história e ir forjando a sua hegemonia. Apoiados em nossa já provada convicção democrática, nossa bancada encaminha voto favorável ao texto que ora se submete à aprovação para posterior assinatura. Trata-se de um texto constitucional democrático, moderno e avançado, que renova o otimismo de quantos, como nós, concebe a revolu ção e o socialismo como um processo de alargamento e ampliação da democracia. Expressando a vontade majoritária da nação, que aspira por maiores liberdades e por reformas econômico-sociais, a nova Carta cria instrumentos para o exercício da soberania e da cidadania, no contexto de um Estado permeável às intervenções das massas e à participação popular. Ressalte-se, neste sentido, a inexistência dos conceitos espúrios da Doutrina de Segurança Nacional, com sua concepção absurda de que todo cidadão que contesta é um virtual inimigo. Mesmo co ntando co m imperfei ções até mesmo conceituais, ambi guidades, excessos corporativistas e regionalistas e certos artigos ainda característicos de uma visão social retrógrada e estagnada no tempo da nossa história, a nova Constituição tem fôlego suiciente 552
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para abrir espaços à participação no jogo político de todas as correntes e segmentos sociais, incluindo os próprios comunistas e o conjunto da classe trabalhadora, sem os quais não conseguiremos construir um país moderno. Não temos, os comunistas, ilusões jurisdicistas; sabemos que não basta um texto constitucional que consagre os direitos e liberdades para que as garantias cívicas se realizem; que ele resgate uma dívida social de dezenas de anos e logo melhorem as condições de vida das massas. Constituição não tem o dom miraculoso de transformar a realidade de uma sociedade e de um Estado em que vigem, há séculos, dispositivos excludentes, ideologias elitistas e práticas antidemocráticas, ao lado de um sistema de exploração selvagem. Mas nós a entendemos como um suporte necessário e indispensável para que as forças e movimentos político-sociais, empenhados na democracia e no progresso social, possam travar o seu combate em condições favoráveis. Sendo uma das expressões da luta de classes, a nova Carta nasceu de um claro pacto entre projetos políticos e sociais diferenciados cujo desdobramento natural é o respeito pelo que for aprovado e o engajamento ativo nas batalhas futuras em torno da elaboração das leis complementares e ordinárias. Impõe-se assim que todos setores organizados redobrem seus esforços para tornar conhecida a Lei Maior nos seus aspectos fundamentais, conscientizar os brasileiros de que ela tem muito a ver com a vida, com a liberdade, com os direitos de cada um de nós, para que as massas possam defender sua aplicação, velar pelo respeito aos postulados e por novas conquistas. Sr. Presidente e Srs. Constituintes, sobre as conquistas obtidas teríamos muito que destacar. Porém, como o tempo é curto, teríamos que registrar as mais relevantes do nosso ponto de vista. Pela primeira vez, na história constitucional brasileira, estabelecem-se princípios de soberania popular, instituem-se mecanismos de democracia direta ou participativa como a iniciativa de leis por parte de cidadãos ou entidades cívicas, ações populares, plebiscitos e referendos. Com um texto avançado nas liberdades públicas, a nova Carta contém dispositivos inéditos nessa área procurando defender os direitos políticos e sociais de cada cidadão e de suas entidades representativas contra o abuso do poder. Trata-se do mandado de injunção, do habeas data e o Mandado de Segurança Coletivo. Inovações a considerar são a proibição de tratamento desumano ou degradan-
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te, da tortura e constituindo-se crimes inaiançáveis e imprescritíveis à sua prática, bem como do racismo. Está deinido o im da censura medieval de natureza política, ideológica e artística no nosso país, sendo livre a expressão da atividade intelectual, artística, cientíica e de comunicação. Ponto de suma importância na existência e consolida ção da democracia encontra -se nos partidos políticos, aos quais são oferecidas todas as facilidades, além de assegurada autonomia para deinir sua estrutura interna, libertan do-os da discriminação ideológica institucionalizada e garantindo-os contra eventuais arbitrariedades. Além da livre organização partidária, dois outros direitos políticos possibilitarão uma maior ampliação da democracia no país: ampla liberdade de manifestação pública e o direito de voto para jovens entre 16 e 18 anos e para os analfabetos. Apesar da derrota do sistema parlamentarista de governo, a nosso ver a grande derrota política desde que com o presidencialismo ganhou o Brasil atrasado, houve signiicativas conquistas na relação entre os poderes, a começar pela recuperação e mesmo ampliação das prerrogativas e direitos do Legislativo, simultaneamente à expressiva redução dos poderes imperiais do Executivo, além de importantes mudanças no Judiciário. Ao examinar os direitos sociais, ressalta -se que no projeto de Constituição que o PCB apresentou à sociedade, fomos tamb ém os primeiros a levantar a questão dos direitos do cidadão trabalhador e a colocação desses direitos como tema constitucional. Isso ocorreu de forma democrática e progressista. Pode-se dizer que o país vai começar uma nova era, com a conquista da liberdade e autonomia sindical, sem que o Estado possa mais intervir nas entidades e cassar mandatos sindi cais. Além do mais, com a unicidade sindical evitou -se o fracionamento orgânico do movimento. Outra conquista decisiva na democratização da vida brasileira está na criação de um representante dos trabalhadores nas empresas de mais de 200 funcionários. Os trabalhadores brasileiros jamais conquistaram tanto em garantias e segurança social, quanto com a nova Carta o que lhes possibilitará uma melhoria de vida. Foi encolhida de 48 para 44 horas semanais a jornada de trabalho, o adicional sobre trabalho extra cresceu 50%, o salário do mês de férias ganhou um reforço de 30%, turnos ininterruptos revezamento foram estabelecidos em apenas 6 horas, a licença gestante foi ampliada de três para quatro meses, o direito amplo de greve, o direito de sindicalização e de greve para os servidores públicos, a igualdade de direitos trabalhistas e previden-
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ciários entre trabalhadores urbanos e rurais, inclusive com claras repercussões na questão agrária. Houve um salto qualitativo na Constituição no que diz respeito ao ordenamento econômico do país, sob vários e essenciais aspectos. Ela busca resguardar nosso potencial e recursos naturais e humanos, ao tempo em que prioriza a capacidade nacional de desenvolvimento, disciplina as inversões de capital estrangeiro, incentiva seus reinvestimentos e regula a remessa de lucros. As jazidas, minas e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica pertencem a União e constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração e aproveitamento. Petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos luidos constituem monopólio estatal. No que se refere à reforma agrária icou evidenciado, mais uma vez, o peso que o latifúndio atrasado e agressivo detém no país, e como esta questão se mantém como um tabu em expressiva faixa da sociedade. Um tratamento democrático para a questão fundiária foi derrotado na Constituinte, sendo postergado para a legislação ordinária. Quer dizer, o encaminhamento da reforma agrária se complicou, sem, no entanto inviabilizá-la, dependendo de como se trate a questão na lei complementar, que poderá deinir adequadamente o que é uma propriedade produtiva, e regulamentar o rito sumário para o processo judicial de desapropriação. Contudo, por ser uma questão política; o decisivo, em última instância, permanece sendo a ação unitária dos trabalhadores na agricultura, apoiando-se em amplos setores sociais, e na articulação política ao nível institucional. Com a nova Constituição foi criado um novo sistema tributário, que abre as possibilidades para se realizar uma ampla reforma tributária, permitindo a desconcentração da competência tributária, hoje hipertroiada na União; descentralização da receita, para que haja melhor distribuição e repartindo-a com estados e municípios; atenuação dos desníveis regionais de renda e maior transparência no procedimento por parte da autoridade iscal. As conquistas constitucionais colocaram a nova Carta entre as mais avançadas nas lutas por um mundo sem guerras, a airmação de princípios basilares como a prevalência dos direitos humanos, a igualdade entre os estados, a solução pacíica dos conlitos e a defesa da paz, propugnando pela cooperação entre os povos para o progresso da humanidade. Os municípios brasileiros voltaram a ser reconhecidos como entidades políticas, ganhando maior poder e se tomando mais fortes. Importantes nesse sentido a exigência de Plano Diretor nos municíMarco da reconquista da democracia
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pios com mais de 20 mil habitantes, a iniciativa de leis pela população e a participação da sociedade organizada na formulação dos planos municipais. Inovadores foram os instrumentos criados para combater a especulação imobiliária e a inviolabilidade dos vereadores no exercício do mandato. A mulher conseguiu muitos avanços com os mesmos direitos que o homem (salário igual para trabalho igual, pátrio poder sobre os ilhos), ao tempo em que conquistou a proteção do seu mercado de trabalho mediante incentivos especíicos, assistência gratuita aos ilhos e dependentes até seis anos, em creches e pré-escolas. Mais que isso: o Estado protege e reconhece agora como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, mesmo sem casamento, e não indeferirá mais no planejamento familiar. A Previdência Social abre um leque de novos benef ícios e melhora a remuneração de outros já existentes. Os aposentados ganharam a reposição das perdas ocorridas no valor dos proventos. nos últimos anos; terão suas pensões equiparadas aos vencimentos do primeiro mês de inatividade e reajuste de acordo com os índices de inlação. Quem se aposentar de agora em diante, o cálculo de seus vencimentos será feito em base na média dos 36 últimos salários de contribuição, corrigidos monetariamente. Benefícios como o auxílio-natalidade e o auxílio-funeral quase sempre motivo de pilhéria entre os trabalhadores, terão agora como piso o salário mínimo. No tocante à saúde, asseguram-se os princípios de gratuidade, universalidade, descentralização e integralidade do cuidado e das ações de saúde, e a implementação do sistema único, o SUDS. Os grupos multinacionais foram excluídos da área de comercialização do setor. Além do mais, está proibido todo tipo de comercialização de sangue. A Constituição garante o princípio da gratuidade do ensino público em todos os níveis, ensino este que deverá se reger por outros três principais que são decisivos para sua efetiva democratização: a igualdade de condições de acesso a escola, a gestão democrática do ensino e a liberdade de aprender a ensinar. As verbas públicas foram substancialmente elevadas – a União vai aplicar no mínimo 18% do seu orçamento em educação, porcentagem que sobe para 25% no caso dos estados e municípios. É muito avançada a nova Constituição em termos de proteção ao meio ambiente. Toda obra ou indústria potencialmente perigosa para o ecossistema só será instalada depois de um estudo sobre o seu impacto ambiental. A cr ia ção do Conselho Nacio nal de Co munica ção 556
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é um fato político novo e está vinculado estreitamente com a necessidade de democratizarmos os meios de comunicação de massa. Sobre os índios, a Constituição, além de eliminar a distinção entre aculturados e não aculturados, deine que as terras tradicionalmente ocupados por eles serão de sua posse permanente, devendo a União demarcá-las o mais rápido possível, podendo os índios agir judicialmente. No importante plano da cultura, assegura-se que o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais, protegendo, sobretudo as das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e preservando e ampliando a função predominantemente cultural dos meios de comunicação social, assim como a democratização do seu uso. Muita coisa mais poderia ser dita, nesse balanço sumário dos trabalhos constituintes. Porém, gostaria de deter-me por alguns instantes sobre a oportunidade que foi a Constituinte para o aprendizado democrático de todos nós, parlamentares e nossos partidos, e para o conjunto da sociedade. Nessa disputa aberta e transparente, no entrecho é que de opiniões e propostas, muitas vezes antagônicas, conquistamos um texto produto natural da luta e da negociação, das mobilizações de massas e de capacidade dos políticos de encontrar soluções negociadas. As tentativas de imposição de confronto, de excludências e preconceitos de marcar posição ou jogar para as galerias, em sua excessiva maioria foram denotadas e desmoralizadas, amadurecendo nossa conduta e de quantos fazem política neste país. As pressões, as intimidações e as ameaças feitas pelo Executivo, pelos grupos monopolistas transnacionais e brasileiros e pelo latifúndio e seus representantes foram fortes e sistemáticas. Porém, apesar de tudo, o povo venceu no essencial. Por isso é que, em nome da Bancada do PCB, composta por mim e pelos incansáveis companheiros Fernando Sant‘Anna e Augusto Carvalho, quero dar o meu testemunho do empenho da maioria desta Casa pela aprovação do texto que nos guiará de agora em diante. Sem dúvida que fatores puramente conjunturais também exerceram inluência nos trabalhos da Constituinte, e muitas das deformações da cultura política oligárquica empanaram, de certas formações, as atividades parlamentares, facilitando o trabalho sistemático dos grandes meios de comunicação de massa em desmoralizar e tentar desestabilizar esta Casa. Defesa de posições e privilégios imediatos, ambições no tocante à sucessão presidencial, pretensões persoMarco da reconquista da democracia
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nalistas, arranjos regionais e particularidades de forças e grupos partidários, não contribuíram para os trabalhos. Da mesma forma, ministros militares e civis, ministros dos tribunais superiores e governadores jogaram o peso de sua autoridade em alguns casos na defesa de causas conservadoras e reacionárias. Apesar de aquém do desejado e necessário, e até com certas deformações corporativas, a participação dos movimentos populares e sindicais talvez tenha sido o elemento mais rico do aprendizado democrático, durante o processo constituinte. Antes de tudo porque, apesar das experiências e conquistas acumuladas no período da resistência democrática, havia em certos setores populares um visível preconceito contra míticos e instituições que, em parte, se foi dissipando. Assim é que, ao lado das conquistas nas leis, houve avanços simultaneamente na consciência e na prática de cidadãos que aprenderam a não mais subestimar a luta política e os instrumentos legais, a se unir e se organizar para inluir no processo de estruturação do poder na sociedade. O PCB tem perfeita compreensão da importância da mobilização popular não só para manter as conquistas da Constituição de 1988, mas também para ampliá-las. E o palco destes embates já está sendo montado: ele passa pela vota ção das leis complementares e especiicas aqui nesta Casa, na elaboração das constituições estaduais e nas leis orgânicas dos municípios; pelas eleições dos vereadores e prefeitos agora em novembro, de deputados e senadores em 1990 e em 1993, quando teremos a oportunidade de fazermos a constitucional revisão. Dentro destas lutas destacamos ainda o plebiscito que no mesmo ano da revisão dará ao povo brasileiro a opção pelo parlamentarismo, um regime hoje assumido pelas correntes progressistas de todo o mundo. O Partido Comunista Brasileiro, com 66 anos de vida orgânica ininterrupta, nunca escondeu da sociedade os seus propósitos políticos e ideológicos. O socialismo, com a abolição da luta de classe, é o sistema político mais viável para superar as graves desigualdades sociais criadas historicamente em nosso país pelo capitalismo; desde a sua fase mercantil. O socialismo também é o sistema político que vê no desmantelamento dos aparatos repressivos e de guerra o caminho mais seguro para garantir o desenvolvimento soberano dos povos e para se conquistar a paz. O socialismo, em síntese, é o sistema que pode, em direção ao comunismo, servir de amálgama, de harmonia para toda a Humanidade.
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Quando o PCB aposta efetivamente na democracia, como necess ária e fundamental para se chegar ao socialismo, é porque acredita na possibilidade de se desenvolver um processo revolucionário privilegiando a via pacíica. Ao mesmo tempo, o PCB aposta em um regime socialista, onde o pluripartidarismo e o primado da liberdade transfor mem-se em institui ções reais e não em um meio jogo de palavras. Neste sentido, o novo texto constitucional está muito aquém da Carta que almejamos para o nosso país. Uma Carta que deina o primado do trabalho sobre o capital, onde os monopólios deixam de ser contemplados e onde o latifúndio transforme-se em apenas uma lembrança triste e equivocada do passado. Porém, para nós, comunistas, o texto a ser hoje aprovado, democrático, moderno e avançado, abre espaços reais para no jogo democrático, sem golpes e sem espertezas, lutarmos por uma sociedade onde a exploração do homem pelo homem desapareça deinitivamente. Viva a nova Constituição! Viva a Democracia! Viva o Socialismo!
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Luiz Werneck Vianna ma característica forte da Constituição de 1988 advém do
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fato de ela ter sua origem no processo de transição do regime militar para o da democracia política, não podendo, portanto, ser compreendida na chave clássica das Constituições que sucedem movimentos revolucionários vitoriosos. Bem conhecido também o fato de que ela, tal como a de 1946, desconheceu um anteprojeto que servisse de ponto de partida para o trabalho dos legisladores constituintes, pois o presidente José Sarney recusou o que foi apresentado pela Comissão Afonso Arinos. Apesar de a Assembleia Nacional Constituinte se ter instalado sob a perspectiva do compromisso com os termos da transição, ela consistiu no resultado de processos de mobilização de massas sem paralelo na história do país, que, iniciados nas greves operárias de ins dos anos 1970, encontraram seu auge nas lutas pelo movimento das ―Diretas Já‖. Não à toa, ao se iniciarem os trabalhos constituintes, essa mobilização ainda ecoou em milhares de iniciativas de leis provindas de organizações da sociedade civil que lhe foram enviadas no propósito de inluir na legislação, nisso já enunciando as expectativas por democracia participativa que seriam consagradas no texto constitucional. As últimas ondas dessa mobilização também se izeram presentes nas eleições congressuais de 1986, quando os partidos políticos que representaram a resistência democrática elegeram expressivas bancadas, boa parte delas comprometidas com uma agenda efetiva de mudança social. Instalada a Constituinte, o cenário da transição se transferiu para o seu interior, sempre sob o registro da negociação, importando limites, como exemplarmente na questão agrária, para 1 Republico, aqui, com ligeiros cortes e alterações, atendendo a pedido expresso da editoria desta revista, por meio do meu bom amigo Francisco Almeida, artigo origi nalmente publicado em A Constituição de 1988 na Vida Brasileira , Rubem George Oliven, Marcelo Ridenti, Gildo Mar çal Brandão (Orgs.), São Paulo: Hucitec/Anpocs, 2008. Em sua versão original, o artigo recebeu o t ítulo de ―O Terceiro Poder na Carta de 1988 e a Tradi ção Republicana: mudan ça e conservação‖.
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inovações de alcance social. Nesse contexto, parece plausível que os constituintes identiicados com as aspirações por mudanças substantivas, ao se defrontarem com a opinião conservadora presente na composição da Assembleia, tenham buscado uma estratégia nova, ancorada com irmeza em uma ampla e compreensiva declaração dos direitos fundamentais (WERNECK VIANNA et al., 1999, p. 40). A descoberta desse caminho, em meio aos trabalhos constituintes, decerto que obra de juristas especializados em Direito Constitucional, alguns deles exercendo papel de assessores de inluentes parlamentares, foi o embrião de uma verdadeira mutação institucional na relação entre os três Poderes e na da sociedade com o Poder Judiciário. A tal caminho não se chegou como um raio em dia de céu azul – a lei que dispôs sobre a ação civil pública, de 1985, na aurora da democratização do país, já descortinara amplas possibilidades para que o Direito, suas instituições e procedimentos viessem a se tornar instrumentos de animação da vida republicana (WATANABE, 2001, p. 14). Edis Milaré, em coletânea já clássica sobre a ação civil pública, pontua com força o seu papel transformador, principalmente por ter alargado ―as fronteiras dos direitos da sociedade civil mediante iniciativas e procedimentos que, mais do que jurídicos e processuais, foram socialmente pedagógicos, porquanto despertaram mais e mais a consciência da cidadania e desencadearam processos participativos orientados à defesa do patrimônio coletivo e da sadia qualidade de vida dos cidad ãos‖ (MILARÉ, 2001, p. 9). É o mesmo autor que, ao se referir ao contexto de nascimento da ação civil pública, anota a emergência de novos papéis a serem desempenhados pelo Direito, seus procedimentos e instituições em uma sociedade ―que não havia ainda se libertado do chamado ‗entulho autoritário‘ [...] em que não apenas os interesses difusos, coletivos ou transindividuais eram desconsiderados ou minimizados, mas, dolorosamente, nem os interesses individuais eram levados na devida conta‖ (Ibidem). Contudo, para além de uma circunstância datada, o novo ordenamento jurídico visava mobilizar a cidadania para a participação em defesa dos seus direitos e implicava uma velada descrença quanto às instituições da democracia representativa no sentido de virem a animar a vida republicana. A chamada revolução processual do Direito, que começa, de fato, no contexto dos movimentos por direitos civis e dos conlitos sociais nos EUA dos anos 1960, institucionalizando as class actions como instrumento de tutela dos direitos coletivos (HENSLER et al., 2000), A Carta de 1988 e a nossa tradição republicana
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sendo recepcionada por um grupo de teóricos italianos, entre os quais Mauro Cappelletti, destinado a se tornar uma grande referência na relexão brasileira. As class actions logo se espraiam pelo Ocidente e se implantam pioneiramente no Brasil, sob a designação de ação civil pública. Esta, na medida em que abre espaço para que direitos coletivos ganhem legitimidade no Judiciário a im de que cidadãos possam se defender de ações do Estado ou de empresas, implica a criação de uma nova arena de participação, cujo território, conquanto seja externo à arena clássica da democracia representativa, nasce com a vocação de intervir em matéria de políticas públicas. Nesse sentido, reclamam, de um lado, a admissão de papéis políticos a serem desempenhados pelo sistema da Justiça, e, de outro, a facilitação do acesso a ele pelos cidadãos que podem reconhecê-lo como novo lugar para a participação na vida pública. Assim, quando se iniciam os trabalhos da Constituinte, esse novo corpo de ideias já parte da experiência vitoriosa da institucionalização da ação civil pública, e do que ela traz consigo de novas concepções a respeito das relações entre a política e o Direito. Dessa forma, Paulo Bonavides avalia que ―a velha democracia representativa já se nos aigura em grande parte como perempta‖, destituída da capacidade de fazer da Constituição o instrumento da vontade nacional e popular (BONAVIDES, 1993 – grifado no original). Nesse sentido, o movimento de ideias que encontrara a sua oportunidade na elaboração da ação civil pública, ampliica, no terreno decisivo da Constituinte, a sua inluência. Animando e ancorando esse movimento, os fatos recentes da democratização da Ibéria europeia, com a promulgação da Constituição portuguesa, em 1976, e da espanhola, em 1978, sobretudo a primeira, que vai encontrar larga audiência nos círculos da intelligentsia especializada na doutrina constitucional. Nascidas de sociedades que retomavam, depois de décadas de regimes autoritários, o caminho democrático, essas duas Constituições conirmam e desenvolvem o constitucionalismo democrático que se airmou nos países europeus após a vitória sobre o nazifascismo, especialmente na Alemanha, França e Itália, sob inluência da Declaração dos Direitos do Homem, de 1948. Nessa construção, limita-se a vontade do poder soberano e das maiorias que os instituem pela vontade geral que se faria expressar nos princípios e direitos fundamentais admitidos pelas Cartas constitucionais. Os atos legislativos do poder político tornam-se, então, passíveis de escrutínio, em nome da defesa dos direitos fundamentais, por uma corte constitucional dotada da capacidade de declará-los, quando provocada por 662
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uma ação de um agente social, como contrários a esses direitos, assim impedindo a sua concretização. Essa mutação no sistema da ordem republicana, ao sujeitar a regra da maioria ao crivo de uma razão de estatuto superior à sua, tem seu trânsito em momento coincidente com a airmação do Estado de Bem-Estar, que se propunha a instituir um capitalismo organizado. Para esse im, sua modelagem implicava, além de atuar sobre o comportamento das variáveis-chaves da economia, regular o social, como nas matérias previdenciárias, de saúde, de assistência familiar, projetos habitacionais etc. Tal regulação signiicou não só a ultrapassagem do Poder Legislativo pelo Executivo, que detinha a perícia e a informação para intervir a tempo em matérias dessa complexidade, como também trouxe o mundo do Direito, suas instituições e procedimentos para o interior da administração pública. As décadas imediatamente subsequentes ao segundo pós-guerra assistem ao fastígio das concepções do constitucionalismo democrático e do Welfare State. De poder isolado em sua autonomia institucional, o Judiciário passa a ser incorporado como novo ator na expressão da vontade soberana. A recepção brasileira da Constituição como obra aberta, tal como sugerido por Paulo Bonavides (1996), não ignora os constrangimentos que lhe são impostos pela natureza da sociedade: ―para a eicaz aplicação [da Constituição aberta], a presença de sólido consenso democrático, base social estável, pressupostos institucionais irmes, cultura política bastante ampliada e desenvolvida, fatores, sem dúvida, difíceis de achar nos sistemas políticos e sociais de nações subdesenvolvidas ou em desenvolvimento ‖. Como escrevi, em outra oportunidade, a recepção da teoria de P. Haberle pelo constitucionalismo brasileiro, supondo uma pr évia democracia de cidadãos, não poderia partir dos valores e princ ípios de organização da sua sociedade, ―historicamente carente de mentalidade c ívica e de cultura política democrática‖ (WERNECK VIANNA et al., 1999, p. 40). Essa falta deveria ser suprida pelos valores e princ ípios da igualdade e da dignidade humanas, 2 que conformariam o patrimônio cultural do Ocidente, a serem positivados no seu Direito Constitucional na declaração dos seus direitos fundamentais. Adota -se a fórmula comunitarista, na designação de Gisele Cittadino, entendendo -se que os direi tos fundamentais, dizendo respeito aos indiv íduos, os transcenderiam,
2 Sobre o constitucionalismo comunit ário, ver o excelente Pluralismo, Direito e Justi ça Substantiva, de Gisele Cittadino, 1999, p. 11 e ss. A Carta de 1988 e a nossa tradição republicana
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traduzindo a vontade geral da sociedade quanto aos ins que deveriam ser buscados e concretizados (ANDRADE, 1983, p. 144). A concretização dos direitos fundamentais – expressão da vontade geral – se apresentaria como obra aberta às futuras gerações. Desconiado, porém, do legislador ordinário e do sistema da representação política, o constituinte terá dotado a sociedade de instrumentos procedimentais que lhe permitissem agir para garantir a eicácia daqueles direitos. Cittadino (1999, p. 9) vai ao ponto: ―é, portanto, pela via da participação político-jurídica [...] que se processa a interligação entre os direitos fundamentais e a democracia participativa‖. Na mesma linha de argumentação, Bonavides (1993, p. 9-10) vai além, ao preconizar a ―politização da juridicidade constitucional dos três Poderes‖, transferindo-se ―ao arbítrio do povo‖ o funcionamento dos mecanismos de governo. Assim, se o legislador está vinculado constitucionalmente aos direitos fundamentais, que são direitos de eicácia imediata, cabe à sociedade, por meio dos mecanismos institucionais estabelecidos, ao lado dos atores da representação política ou sem eles, lutar por sua aplicabilidade. Ao aderir a esse movimento, a Carta de 1988 realizou uma surpreendente conirmação da tradição republicana brasileira, que, ainda nos anos 1930, recobrira duas dimensões cruciais à modernidade – o mercado político e o mercado de trabalho – com o Direito, suas instituições e procedimentos, por meio da criação da Justiça Eleitoral e da Justiça do Trabalho. Decerto que a leitura crítica dessa tradição, situada em um tempo democrático, terá como alvo a erradicação daquela cultura política autoritária, como exemplar na legislação sobre o mundo do trabalho que vinculava os sindicatos ao Estado. Nisso, ela será claramente descontínua à tradição republicana, mas, em suas inovações institucionais, optará por uma inequívoca linha de continuidade com ela. Contínua também em seu diagnóstico cético quanto às possibilidades de as instituições da representação política, em país socialmente desigual, sem história de auto-organização e carente de sedimentação das virtudes cívicas, serem capazes, por si sós, de conduzirem a sociedade em direção aos ideais da justiça social. Notem-se, aqui, as áreas de vizinhança das interpretações do constituinte com as que nos vêm da hora remota de consolidação do nosso Estado-nação, como as de Visconde do Uruguai, que opunha o prima do do público e do Direito Administrativo aos ideais do self government para os ins da formação de uma cultura cívica no Brasil. Em uma sociedade naturalmente desarticulada, o Estado deveria investir-se do papel de agente pedagógico na socialização das virtudes da cida664
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dania, razões a ser reiteradas, na terceira década do século XX, por Oliveira Viana, ao justiicar a legislação sindical e trabalhista que então tomava forma. Em 1988, o constituinte recusa o caminho de uma Carta limitada a instituir procedimentos para a formação da vontade coletiva e as garantias de autonomia aos indivíduos. Ele parte de uma interpretação do Brasil, em função da qual determina um programa substantivo a ser perseguido pela coletividade, tal como nos incisos do art. 3º do título que trata dos princípios fundamentais que devem nortear os objetivos da República: construir uma sociedade justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. A Constituição visa, pois, o futuro e se empenha programaticamente, ao deinir os direitos sociais, no terreno das políticas públicas. A jurisdicização desses direitos vincula o legislador ordin ário aos seus comandos, cabendo à sociedade provocar o Judiciário, mediante novos institutos criados pela Constituição, para garantir sua aplicabilidade. Nesse preciso sentido, a judicialização da política se apresenta, entre nós, como uma deriva ção da vontade do constituinte, ao mobili zar o medium do Direito como recurso da sua engenharia, a im de tornar viável a sua concepção de Constituição como obra aberta. Em tese, o Mandado de Injun ção e a Ação Direta de Inconstitucio nalidade por Omissão consistiram nos instrumentos mais fortes previstos para conferir aplicabilidade à norma constitucional portadora de direitos e liberdades e das prerrogativas inerentes à cidadania, deixados inertes em virtude de ausência de regulamentação. Por meio deles, estaria disponível à sociedade, quer pela iniciativa de qualquer cidadão – no caso do Mandado de Injunção –, quer pela iniciativa da comunidade de intérpretes da Constituição – no caso da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão – o recurso ao Judiciário, a im de encontrar remédio para uma eventual omissão do poder público quanto aos direitos que lhe foram outorgados constitucionalmente. Com essa construção, o constituinte, pela mediação da sociedade, procurava impedir que as normas e garantias dispostas na Carta se revestissem de caráter simbólico, uma vez que as declarara, no parágrafo 1º do art. 5º, no título que trata dos direitos fundamentais, como de aplica ção imediata (SILVA, 1997).
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Promulgada a Constituição, as expectativas contidas nesses dois cruciais artigos esbarraram nos vértices institucionais do Poder Judiciário, cuja manifesta ção foi de molde a desencorajar o caminho aber to por eles, sobretudo por avaliar que n ão lhe cabia exercer pap éis que o aproximariam da igura, que temia, do juiz legislador. 3 Sem a adesão do Judiciário, se frustra uma das principais vias para a concretização da Constituição como obra aberta. Mas outras inovações teriam melhor sorte, especialmente as que redeiniram o papel do Ministério Público na vida republicana e as que se dedicaram à democratização do acesso à Justiça com a criação da Defensoria Pública e dos Juizados de Pequenas Causas, denominados, posteriormente, de Juizados Especiais. Destino imprevisto, explicável talvez pela conjuntura política da época, tiveram as Ações Diretas de Inconstitucionalidade – instrumento de uso corrente, hoje, de partidos políticos e organizações sociais, tanto as de trabalhadores como as empresariais. A nova fórmula constitucional do Ministério Público será, talvez, o caso mais eloquente da operação intelectual do constituinte, que democratiza a sociedade a partir de uma reinterpretação da nossa história republicana, pois a ele – um ente público – conia a representação da ordem jurídica e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, ao convertê-lo em instituição acessível às demandas da sociedade. Com efeito, o papel estratégico reservado ao Ministério Público na ordem democrática signiica uma clara opção pela perspectiva que balizou a intenção do legislador, a de continuar-descontinuando, à medida que, com isso, pretendeu valorizar a representação funcional. Com esse novo Ministério Público, ao qual a Carta ―deferiu uma atenção [...] inédita na história do Brasil e de difícil paralelo no direito comparado‖ (MENDES, COELHO, BRANCO, 2008, p. 992), a socie dade conquista um intérprete privilegiado, com o im de buscar a concretização dos princípios e direitos fundamentais previstos na Constituição, evidente no exerc ício das Ações Civis Públicas. Tal processo não só é revelador das tensões entre as duas formas de representação, a política e a funcional, mas também de uma fecunda coexistência entre elas (CASAGRANDE, 2008). No controle da constitucionalidade das leis, outro momento crucial na tomada de decisão do legislador de 1988, a representação funcional é admitida como parte legítima, elevadas à comunidade de intérpretes, entre outros agentes políticos e sociais, as confederações sindicais. Aos sindicatos atribui-se ainda legitimidade para serem 3 Entre outros estudos da época, ver Vieira, 1994, especialmente o Capítulo 5.
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autores das Ações Civis P úblicas e dos Mandados de Seguran ça Coletivos, a im de interpelarem preceitos constitucionais, ―o que implicou destinar parte da sua atividade institucional ao Poder Judiciário, contrariando a experiência que nos vinha dos anos 30, em que a participação sindical se articulava exclusivamente com o Executivo ou com um ramo daquele Poder especializado na sua jurisdição, o Judiciário Trabalhista‖ (WERNECK VIANNA, BURGOS, 2002, p. 385). De uma perspectiva mais ampla, o continuar-descontinuando da Carta de 1988 se expressa na operação que faz do Direito a sua principal referência ético-pedagógica, e estabelece que a sociedade não está vinculada ao Estado e à sua interpretação dos ideais civilizatórios, mas aos princípios e direitos fundamentais declarados pelo constituinte como a expressão da vontade geral, passíveis de concretização por parte da cidadania, pela via do Direito, suas instituições e procedimentos.4 A representação funcional muda seu centro de gravidade, do Estado para a sociedade, que, pela sua atividade e a partir de suas organizações, passa a ter o poder de mobilizar, para se defender ou adquirir novos direitos, o inventário de valores positivado na Constituição. Sob essa formatação democrática, a representação funcional nela compreendido o Poder Judiciário, problematiza a questão clássica da soberania. Esse tertius, embora limitado a uma função técnica e apesar de não ancorado no voto nem submetido ao controle dos eleitores, é chamado a exercer, pelo sistema da Constituição brasileira, a representação dos princípios e dos direitos fundamentais do corpo pol ítico. Para o constituinte, o Judiciário deveria tornar-se uma arena de fato da democracia participativa, capilarmente aberta à sociedade, garantidora e via de concretiza ção dos amplos direitos nela previstos. A modelagem constitucional como obra aberta, requeria, entre ou tros fatores relevantes, um Poder Judici ário de cultura jur ídica moder na, ágil e preparado para a massiicação da litigação, que ela pressupu nha, ao lado de uma sociedade minimamente estruturada em torno dos seus interesses e consciente dos seus direitos. Os efeitos inesperados da sua ação, que lertavam com formas criativas de democracia direta, tiveram, no entanto, o condão de estimular o processo de judicializa ção da sociedade e da política, hoje, um dos mais evidentes entre as demo cracias ocidentais, não se podendo responsabilizar para a emergência de tal fenômeno um suposto ativismo do Pode r Judiciário. Longe de ter 4 Desenvolvi este tema mais amplamente em "A Revolução Processual do Direito e a Democracia Progressiva". In: WERNECK VIANNA, BURGOS, A Democracia e os Três Poderes no Brasil, UFMG, 2002. A Carta de 1988 e a nossa tradição republicana
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suas raízes na ação do juiz, ele deriva da obra do legislador, primeiro, do constituinte, depois, do legislador ordin ário. Promulgada a Carta, democratizado o país, a representação política defronta-se com uma sociedade, inalmente livre em seus movimentos, que passara pela experiência de duas décadas de intensa modernização econômica e social em situação de imobilidade política e de depauperamento da sua vida associativa. Para tanto, concorreram, signiicativamente, o Minist ério Público, expedito no exercício dos seus novos papéis constitucionais, dando vida às Ações Civis Públicas, e a forte aluência da população aos Juizados Especiais em defesa dos seus interesses contra empresas e o Estado, levando a que se concedesse ao tema do acesso à Justiça um lugar relevante na formulação de políticas públicas (WERNECK VIANNA; BURGOS, 2002, 2005). Sob essas circunstâncias, o sistema da Justiça, seus juízes e demais agentes, entre os quais os defensores públicos, passam a cumprir funções de engenheiro social ou de terapeuta, quando não o de prestadores de serviços de cidadania, como nos casos dos juízes das Varas de Infância e Juventude e das caravanas volantes dos Juizados Especiais no interior do país. Assim, a partir de 1989, criou-se um sem-número de leis (de proteção aos portadores de deiciência física; a tutela jurisdicional os interesses dos investidores do mercado de valores mobiliários; o Código de Defesa do Consumidor; o Estatuto da Criança e do Adolescente; a Lei Orgânica da Saúde; a Lei de Proteção ao Idoso e a Proteção das Minorias Étnicas; a Lei das Águas; a que regulou os Planos Privados de Saúde; o Estatuto da Cidade; o Estatuto do Idoso etc.). A projeção do papel do Judiciário na vida social ainda se torna mais compreensiva com as leis que vão tratar dos temas da improbidade administrativa e da responsabilidade iscal, incorporando o controle da Administração Pública ao sistema de proteção dos interesses difusos e coletivos. Com isso, faculta-se à sociedade o exercício do controle sobre atos da Administração, quer pelas vias da Ação Civil P ública, quer pelas das A ções Populares. Essa poderosa malha que recobre a sociedade quase inteira, estimulando a ampliação dos mecanismos da representação funcional e facilitando à cidadania o acesso a ela – exemplares disso a airmação institucional da Defensoria Pública e a proliferação dos Juizados Especiais –, além de resultar na legitimação da judicialização da política, tem ensejado a aparição de um personagem novo na cena republicana: as associações de magistrados. Essas associações, em particular a Associação dos Magistrados Brasileiros (AME), antes 668
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meras instâncias de demandas corporativas, crescentemente se comportam como mais um ator da esfera política, visando atuar diretamente no debate sobre a formação da opinião pública, no que já rivalizam com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), por décadas o canal mais expressivo da opinião das proissões jurídicas. Essa inédita emergência do Poder Judiciário não se tem feito sem problemas. Em primeiro lugar, na forma do que se tem sustentado, porque essa emergência não resulta da sua obra, mas do legislador. Foi ele quem, ao sentir a erosão do espaço republicano, coniou a defesa dos interesses e direitos aos diretamente envolvidos, pondo-lhes à disposição instrumentos jurídicos, a im de que pudessem exercitá-la. Em segundo lugar, porque foi exposto à pratica do novo texto constitucional em quest ões altamente sensíveis, como as que envolve ram o chamado processo de privatização de empresas estatais. Nem o magistrado, nem a sociedade estavam preparados para mudança de tal envergadura. Contudo, após vinte e cinco anos de experiência, quer com origem no vértice do sistema, quer no magistrado singular, se foram sedimentando decis ões e interpreta ções que vieram a confor mar o Judiciário como um novo ator da pol ítica brasileira. A reação a essa presença do Judiciário, incômoda, sobretudo em matérias econômico-inanceiras, achou seu mote na denúncia de sua pesada e antiquada estrutura burocrática e da inaceitável morosidade do seu processo decisório, agravada pela revelação de casos de corrupção entre magistrados, culminando, após intensa campanha, na aprovação da Emenda Constitucional nº 45, que disciplinou o controle externo da magistratura. Entre os efeitos já conhecidos da nova lei, desde os positivos, como maior racionalização da administração do sistema judiciário, o mais inquietante tem sido o da imposição do primado do seu vértice, em particular o Supremo Tribunal Federal, cujo presidente também preside o Conselho Nacional de Justiça, e o Superior Tribunal de Justiça, sobre a base da magistratura singular, com óbvias repercussões sobre a criatividade interpretativa do sistema como um todo.5 Se uma das expectativas da emenda constitucional era a de que os tribunais superiores manifestassem maior moderação em face do poder político, ao menos até aqui ela se frustrou. O STF chegou a conhecer ações, cujo objeto dizia respeito a questões regimentais do Poder Legislativo, e recentes decisões do Tribunal Superior Eleitoral mal disfarçam a presença de um juiz legislador. Além da sua desen5 As razões da reação da magistratura ao tema do controle externo está discutida no excelente Justiça em Mutação, de Luíz Fernando Carvalho, 2008. A Carta de 1988 e a nossa tradição republicana
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voltura na assunção de papéis políticos, ocupando lugares vazios deixados pelo Legislativo, o STF se tem comportado como uma ag ência de legitimação da judicialização da política, tal como se atesta nos seus julgamentos de Ações Diretas de Inconstitucionalidade.6 A densa presença do Judiciário, entretanto, não tem motivado reações da representação política, boa parte dela, à direita e à esquerda, com tradição de recorrer a ele nas suas controvérsias – as Adins, o caso ilustre –, e mesmo em muitas das suas iniciativas políticas, como frequente no tema ambiental, quando atua em sintonia com o Ministério Público em Ações Civis Públicas. Até aqui não se conhece a denúncia de ―governo de juízes‖, comum em outros contextos nacionais, e a representação política tem dado claros sinais de que, pragmaticamente, admite a emergência da representação funcional. Mas a questão da relação entre essas duas representações é complexa e sensível demais, e, embora as ciências sociais brasileiras já tenham acordado para a necessidade de uma forte relexão sobre ela, estamos ainda muito longe de descortinar um caminho coniável para o seu enfrentamento.
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6 Para um estudo monográico sobre as Adins, ver "Dezessete anos de judicialização da política", de Werneck Vianna, Burgos & Salles, Funda ção Astrojildo Pereira/Cedes, 2007.
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GIDI, Antonio. Rumo a um código de processo civil coletivo. Rio de Janeiro: Forense, 2008. HÃBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. A sociedade dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constitui ção. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997. HENSLER, Deborah R. et al. Class Actors Dilemmas: Pursing Public Goal for Private Gain. Santa Monica, CA: Rand Institute for Civil Justice, 2000. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inoc êncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Cons titucional . 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. MlLARÉ, Edis. Ação civil pública. Revista dos Tribunais, 2001. ROUSSEAU, Dominique. Sur Le Conseil Constitutionel La Doctrine Badinter et la Démocratie. Paris: Descartes, Cie, 1997. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo , 13. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. VIElRA, Oscar Vilhena. Supremo Tribunal Federal – Jurisprudência política. Revista dos Tribunais, 1994. WATANABE, Kazuo. Prefácio. In: MlLARÉ, Edis. Ação Civil Pública. Revista dos Tribunais, 2001.
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O acesso à Justiça Social
Dimas Macedo acesso à Justiça Social, na pós-modernidade, constitui um
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dos fundamentos do Estado democrático de Direito. A sua dimensão substancial tem se imposto qual a exigência das políticas públicas que mais alto se elevam, na seara do planejamento e da democracia participativa. A garantia constitucional do acesso ao Poder Judiciário não expressa, necessariamente, uma igualdade material de condições daqueles que aspiram à proteção do Direito em um mundo povoado de desestruturas e desigualdades. A Constituição de 1988, por apontar para as novas exigências do Direito, mostra-nos o quanto avançamos na criação de um discurso jurídico que aponta para uma pragmática emancipatória, mas também deixa claro que os Direitos Fundamentais não estão no seu texto apenas para serem compulsados. Urge a sua concretização, especialmente enquanto Direitos Humanos que não admitem o seu coninamento, nem a sua postergação, nem a sua violação, sob qualquer pretexto, porque inadiáveis as suas necessidades e a positivação da sua concretude. Muitas são as garantias processuais, institucionais e materiais de Direitos albergadas pela nossa Carta Magna, mas nenhuma delas se equipara em importância ao instituto da Defensoria Pública, a primeira entre todas as garantias, e o único, entre todos os órgãos do Estado, a quem foi coniada a missão de proteger a vida e as necessidades mais elementares do sujeito. Antes de qualquer discussão acerca da Defensoria Pública, importa que possamos dirigir para ela um olhar diferenciado. Não se trata de instituição imparcial, assim como o Poder Judiciário, ou de órgão de defesa da sociedade ou Estado, tais como o Ministério Público ou as Procuradorias dos entes federados. Ela, ao contrário, se expressa qual a reivindicação mais alta da cidadania, e qual a institui ção social de maior alcance, a quem a Cons tituição entregou a missão de lutar pela dignidade dos espoliados pelo capital e pela violência decorrente das artimanhas do poder. 772
Tem, assim, uma missão genuinamente política, e acentuadamente voltada para a sociedade, apesar de ser vista como um órgão do Estado, e para alguns qual um órgão do Executivo, às vezes muito dócil à vontade do governo que está de plantão. Não é raro associar-se a Defensoria Pública com a problemática dos Direitos Humanos, porque se impõe que estes últimos sejam concretizados, e reairmados pelo segmento social mais próximo do atraso e das necessidades de maior relevância. Os pobres, os excluídos da comunhão social, os perseguidos pelo aparelho policial, os desalojados das suas moradias pelo aparato da força e pela insensibilidade do Poder Judiciário constituem o exército do humanismo que clama pelos Defensores Públicos que, às vezes, se organizam sob o comando de juízes ou de servidores judiciais inescrupulosos, e se esquecem de servir à causa da Justiça. A missão da Defensoria Pública é a maior de todas as existentes no universo do Direito, porque é a forma mais abnegada de exercício do Ministério Público, fazendo com que este seja a instituição que mais se distingue no plano social. Seu princípio básico e suas linhas de atuação estão amplamente consagrados no Brasil, quer pela Constituição Federal de 1988, quer pelas leis orgânicas estaduais, quer pelas Constitui ções dos entes federados, não dependendo, portanto, da vontade dos detentores do poder. A sua estrutura orgânica não é ou nunca poderá ser superior à sua missão de servir aos desamparados ou de concretizar o seu desiderato normativo e os seus objetivos sociais. O papel da atuação judicial e extrajudicial da Defensoria Pública, a sua mediação comunitária, a sua legitimação coletiva, como forma de realização do Acesso à Justiça, e a necessidade de humanização da sua prática corporativa são situações que devem ser repensadas pelos operadores do Direito, e especialmente pelas Políticas Públicas em defesa da sua identidade. Não é a aplicação das leis pelo Poder Judiciário aquilo que, na pós-modernidade, melhor aquilata a concretização do Direito. A sua pragmática é, nos dias de hoje, um valor ainda mais alto. E é a partir desta que devemos avaliar o desempenho da Defensoria Pública e a sua correlação com os Direitos Humanos. Vale a pena, pois, apostar nessa correlação, porque os Direitos do Homem e a Democracia já não funcionam como retórica de salão. Pelo contrário, a dignidade e a luta pelo acesso à Justiça assumiram o lugar do desejo e da reparação, na ilosoia e na prática jurídica da modernidade. O acesso à Justiça Social
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III. Observat贸rio
Autores Fabrício Maciel Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora, com estadia de um ano de sanduíche na Pädagogische Hochschule Freiburg, Alemanha. Profess or adjunto do Mestrado Proissional em Planejamento Regional e Gest ão de Cidades da Universidade Cândido Mendes, Unidade Campos dos Goytacazes/RJ.
Ma urício Rud ner H uerta s Jornalista, é fundador do Movimento Vergonha Nunca Mais, Pela Ética na Política.
Tarcísio Holanda Jornalista, comentarista político, entrevistador de programas da TV C âmara, em Brasília, e vice-presidente da Associação Brasileira de Imprensa.
Uma antiga e polêmica proposta
Tarcísio Holanda presidente da Câmara dos Deputados, Henrique Eduardo Al -
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ves (PMDB -RN) declarou, não faz muito: ‗Plebiscito só caminha se houver consenso. Por isso, temos que fazer carta de seguro‖. Esta sua manifestação se deu logo depois de a presidente Dilma Rousseff ter enviado ao Congresso uma mensagem sugerindo a convocação de um plebiscito sobre reforma política.
Trata-se de algo que divide os partidos. Até os integrantes das legendas governistas têm-se mostrado hostis à proposta. A perspectiva de uma grave divisão entre os governistas foi que levou o deputado potiguar a imaginar uma alternativa ou ―carta de seguro‖, como ele mesmo deno mino u. No mesmo dia em que chegou a mensagem da presidente ao Congresso, o parlamentar anunciou a criação de um grupo de trabalho para receber sugestões e elaborar, ―no prazo improrrogável de 90 dias‖ (prazo já estourado), uma proposta de reforma pol ítica, algo bem dife rente do plebiscito sugerido pela Presidência da República. O próprio Henrique deu sua explicação: ―A proposta da presidente Dilma é respeitosa, oferece sugestões ao Parlamento. Mas o plebiscito s ó caminha se houver consenso. Basta que três ou quatro partidos iquem contra, para não andar. E nós não podemos icar de mãos atadas‖. Embora ele preira calar a esse respeito, é notório que praticamente não havia chance de o Congresso aprovar o plebiscito proposto por Dilma. É que não existe unidade no bloco governista. Claro que a queda de popularidade de Dilma, de 57% para 30%, logo após as mobilizações populares de junho, aumentou a inquietação entre 77
os governistas. Al ém da oposição – PSDB, DEM e PPS – existiam sérias divergências no PMDB, PP, PR, PTB, PSC e PSB. Bastavam essas resistências para inviabilizar a obtenção dos 257 votos, que são o quórum de maioria absoluta no plenário da Câmara. Uma parcela dos deputados governistas tinha mais simpatia pelo referendo do que pelo plebiscito. Uma outra parte aceitava o plebiscito, mas se opunha a que novas regras vigorem nas elei ções de 2014, como desejava Dilma. Uma terceira corrente achava que cabe ao Legislativo aprovar ou não a reforma política, sem a necessidade de referendo ou plebiscito. Enquanto isso, novos problemas surgiram, ampliando as diiculdades. A presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministra Carmen Lúcia, promoveu reunião com os presidentes dos Tribunais Regionais Eleitorais, para ouvir sugestões e responder às questões de Dilma – de quanto tempo precisaria a Justiça Eleitoral para realizar o plebiscito e quanto seria o seu custo. O ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello, também membro do TSE, disse, em entrevista à imprensa, que o plebiscito além de ser muito caro era e é também desnecessário, na atual conjuntura brasileira. Como se há de convir, a reforma política é um tema demasiadamente técnico para ser colocado em um plebiscito. O senador Francisco Dornelles (PP-RJ), mesmo sendo da base governista, chegou a ocupar a tribuna da Câmara Alta para se manifestar contra a proposta da presidente da República. Ele, além de classiicar de ―golpe‖ o plebiscito com apenas três ou quatro perguntas, como queria o governo, sustentou que as questões que teriam de constar do plebiscito chegariam a pelo menos 29 perguntas. ―Isso inviabiliza a realização do plebiscito‖, sentenciou o senador. Até no PMDB surgiram resistências à tese. O partido dividiu-se e esses problemas icaram claros na reunião que a Executiva Nacional realizou, antes do recesso parlamentar. Alguns partidos da base governista julgaram conveniente saber o que pensa a população sobre esses temas. E deram exemplos: a reeleição deve ser mantida ou não? E a duração dos mandatos presidenciais deve ser de quatro ou cinco anos? O líder do PMDB na Câmara, deputado Eduardo Cunha (RJ), julga importante indagar sobre a preferência por sistema de governo – presidencialismo ou parlamentarismo. Apesar da obviedade da questão e apesar de todas essas manifestações em sentido contrário, a presidente Dilma decidiu enviar a sua mensagem ao Legislativo.
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Tarcísio Holanda
Dizem que ela foi redigida pelo vice-presidente Michel Temer e o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. O presidente da Câmara, deputado Henrique Eduardo Alves, depois de um encontro privado com Dilma, achou o texto da proposta vi ável, ao mencionar os tr ês itens principais: inanciamento de campanha, sistema de votação e suplente de senador, apesar de que, como é de todos sabido, a proposta divide os aliados do Palácio do Planalto. O deputado Henrique Eduardo Alves tentando equilibrar a situação chegou a declarar: ―Precisamos fazer um mea culpa. Tentei votar a reforma política em abril e não consegui aprovar nenhum item. Não dá para evitar esse debate agora. Nesse tema, nós falamos muito e fazemos pouco. Precisamos reconhecer isso ‖. O senador Aécio Neves, presidente do PSDB e candidato a presidente da República, em 2014, também fez suas críticas a essa proposta, que nasceu como uma forma de dar uma das respostas à rebelião das redes sociais e das ruas, desencadeada em junho último. Recordou que Dilma só falou em reforma política no seu discurso de posse, em janeiro de 2011. ―Nesses dois anos e meio de governo, o país não teve o prazer de saber o que pensa a presidente sobre esse tema‖. Cumpre lembrar que o Congresso Nacional vem tentando votar uma reforma política prá valer desde 1946 até o Golpe de 1964, e de 1989, em diante (quase meio século), e todas as tentativas fracassaram. Lamentavelmente, mesmo sabendo do desgaste à imagem do Legislativo que um arremedo de reforma – como o que deverá ser discutido e aprovado até o inal do ano – poderá provocar na opinião pública, sobretudo nos setores melhor informados, as duas Casas do Congresso continuam insistindo em elaborar o que designam como ―reforma eleitoral‖ e tentarão transformá-la em lei, para dar uma ideia de ―missão cumprida‖.
Uma antiga e polêmica proposta
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O enigma do Porto do A çú
Fabrício Maciel omo braço fundamental do totalitarismo opaco do capital i-
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nanceiro contemporâneo, a mídia vem difundindo e confundindo o público nacional sobre o grande fenômeno vivido na região norte luminense, a construção do complexo logístico e industrial do Porto do Açú. O mega empreendimento, maior na propaganda do que na realidade, ocorre na pequena cidade de São João da Barra, em sua praia do Açú, de onde advém o nome do porto. O grupo empresarial liderado por Eike Batista, cuja marca conhecida é a letra X, bem como seus parceiros internacionais, vêm ganhando visibilidade na mídia nacional por uma série de frustrações de expectativas prometidas ao público. A atual fase do capitalismo globalizado é marcada pelo que vários autores já deiniram como ―dominação do capital inanceiro‖ (BECK, 1997; 2007) e como ―sociedade do conhecimento‖ (GORZ, 2004; 2005). A dominação do capital inanceiro depende de investimentos que procuram seus lucros sempre em regiões que apresentam lorescimento em potencial. As regiões desindustrializadas ou semi-industrializadas, na linguagem dominante sobre o desenvolvimento, são o principal alvo do capital inanceiro internacional e as principais células do desenvolvimento global do capitalismo. Sem o investimento em regiões virgens ou semivirgens, nas quais predominam a economia popular e informal, ou seja, a dimensão comercial do capitalismo, o grande capital inanceiro internacional não pode retroalimentar o desenvolvimento economicamente totalitário. A ideia de ―sociedade do conhecimento‖ constata o fato de que o conhecimento cientíico, especializado e tecnológico se torna a força produtiva dominante nas sociedades contemporâneas (GORZ, 2005). Ele é o mediador da produção, o produtor da produção e do desenvolvimento geral do capitalismo, através do desenvolvimento regional. O conhecimento cient íico, especializado e tecnol ógico é o grande aliado do capital inanceiro internacional no desenvolvimento global contemporâneo. Podemos dizer que esta relação é o novo motor da história do capitalismo. 880
A ideia fundamental de desenvolvimento é uma das mais criticáveis nas ciências sociais contemporâneas, bem como nas ciências sociais aplicadas. Entretanto, não podemos fugir dela quando pensamos na questão regional. Sua relação com a perspectiva do desenvolvimento social e do desenvolvimento sustent ável é o principal avanço acadêmico contemporâneo acerca do tema. Uma perspectiva alternativa de desenvolvimento pode ser pensada nesta direção. A chegada do capital inanceiro internacional (ou seja, a elite global), associada ao conhecimento cient íico, especializado e tecnológico de ponta (ou seja, o estamento cient íico-tecnológico), como é o caso do advento do Porto do Açú, não deve ser encarada com um otimismo acrítico, típico dos defensores ortodoxos do desenvolvimento. Tamb ém não deveria sucumbir à resistência ideológica, típica de um pensamento mais ortodoxo e de pseudoesquerda. Para tanto, uma nova compreensão do desenvolvimento, movida por articula ções de ideias e por pesquisa empírica sistematizada, se faz necessária. Para David Harvey (2005) e Robert Castel (2003), por exemplo, uma nova compreensão do desenvolvimento pode advir da constatação de que formas de produção distintas convivem no capitalismo, articuladas e hierarquizadas. A predominância de cada uma delas pode ser vista nitidamente nas diferenças regionais, no que o Brasil é um exemplo emblemático, onde é facilmente vista a conviv ência e a interseção hierarquizada entre formas de capitalismo comercial, industrial e inanceiro. Diferente da perspectiva evolucionista, que percebe estas formas distintas de economia nas hierarquias entre Sudeste e Nordeste, ou entre Brasil e Europa, por exemplo, a percepção fundamental aqui é que elas convivem articuladas hierarquicamente em todo o espaço social do capitalismo. A alteração na predominância de cada uma delas, nos casos regionais, é um das principais características da mudança social do capitalismo contemporâneo. No caso do Açú, presenciamos neste exato mo mento a chegada da dimensão industrial-tecnológica do capitalismo, guiada por uma força motora derivada da articulação do conhecimento tecnológico, cientíico e especializado com o capital inanceiro internacional. O que chamamos aqui de formas de capitalismo comercial é, em grande parte, se pensarmos em termos empíricos, sinônimo de ―economia informal‖. Com o advento do novo complexo industrial na região, a primeira perspectiva, tanto aos olhos dos pesquisadores quanto aos olhos da população, que já está totalmente mobilizada com o tema, é a de que a economia informal seja paulatinamente O enigma do Porto do Açú
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sucumbida e integrada ao domínio tecnológico-inanceiro, com a geração de vínculos de emprego formais. Esta forma de pensamento ainda faz parte de uma perspectiva clássica sobre a ideia de desenvolvimento. Ela não pode ser descartada, mas pode ser revista e ampliada com investigação teórica e pesquisa empírica. A ideia de desenvolvimento pode ser (re)discutida, sem reduções ideológicas, se pensada em dois níveis. Primeiro, trata-se do nível objetivo, ou seja, o advento paulatino e inevitável de unidades empresariais e tecnológicas, ou seja, as dimensões dominantes da produção, em todas as regiões que apresentem recursos naturais e localizações geográicas favoráveis aos interesses de tais unidades empresariais e tecnológicas. Segundo, trata-se do nível subjetivo, geralmente conhecido como capital humano. Não existe desenvolvimento e estabelecimento de dimens ões objetiva s do desenvolvimento regional sem o suporte humano qualiicado necessário para sua execução, suporte este que se divide entre empresários e trabalhadores portadores de níveis distintos de qualiicação. Neste segundo nível, pode ser produtiva a análise das mudanças nos padrões de trabalho e qualiicação predominantes no capitalismo globalizado contempor âneo. Tais padrões são hoje universais no capi talismo, mas precisam encontrar suportes concretos, ou seja, capital humano, em sua realização regional. Dois princípios se apresentam, praticamente em toda a literatura dominante sobre o trabalho, como fundamentais para o estudo teórico e empírico das mudanças estruturais do trabalho e do fomento de capacidades para o trabalho. São eles os princípios da lexibilidade e da informalidade das relações e dos contratos de trabalho. O primeiro foi analisado, a partir do caso americano, por Richard Sennett (2008). O segundo tem sido tema de interesse de pesquisadores europeus como Claus Offe (1994), André Gorz (2004; 2005) e Ulrich Beck (1997; 2007). O ponto central, que merece discussão teórica e pesquisa emp írica sistemática, é que o pro cesso de lexibilização e terceirização do trabalho é ambíguo. Ele pode ser sinônimo tanto de fomento e capacitação para o trabalho quanto de precarização de condições pessoais para a inserção no mercado. Um planejamento regional que co mpreenda desenvolvimento eco nômico, social e ambiental como um só processo, ainda que analiticamente a ciência possa compartilhar e articular pesquisas nas três dimensões, pode encontrar no tema das mudanças contemporâneas nas relações de trabalho um aspecto fundamental para uma agenda de desenvolvimento. A chegada do complexo industrial no Açú, através da instalação do Porto, pelo grupo empresarial de Eike Batista, 882
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se depara com uma questão fundamental para a realização da ideia: as condições de vida e de qualiicação da população, dimensões estas que geralmente se apresentam, na prática, intimamente articuladas. Um dos principais argumentos para o advento de forças econômicas objetivas externas a uma região é que a qualidade de vida local seja um de seus principais efeitos. Isso nos remete à questão das possibilidades de inclusão e exclusão operadas pelo processo. A análise dos conceitos de lexibilidade e informalidade, bem como das realidades empíricas às quais se remetem, pode ser um elemento fundamental para a construção de um planejamento regional que alcance seus objetivos econômicos, sociais e ambientais. Na realidade, os conceitos apresentam uma lógica universal da mudança na estrutura do trabalho contemporâneo, mas também se apresentam como dois lados possivelmente contraditórios da mudança social pela qual passa o capitalismo global contemporâneo. A realidade analisada por Richard Sennett (2008), nos Estados Unidos, e por Ulrich Beck (1989; 1997) na Alemanha, com o conceito de lexibilidade, se remete à fragmentação das relações do ―trabalho em equipe‖ entre funcionários qualiicados de grandes empresas. Por outro lado, a ideia de informalidade, analisada também por Ulrich Beck e por André Gorz (2004) se remete a dimensões desqualiicadas desta realidade, ou seja, a condição de precariedade de trabalhadores desqualiicados, que podem passar para a condição de ―sobrantes‖ (CASTEL, 2004) e desempregados diante do processo de terceiri zação operado pelas grandes empresas. A informalidade também se remete ao processo de formação de pequenas iniciativas comerciais e de prestação de serviços de baixa qualiicação formal nos entornos econômicos dos grandes complexos tecnológico-industriais, como o que se instala agora com o Porto do Açú. Se a região não possuir proissionais qualiicados para todas as áreas necessárias e em todos os níveis, o que em primeira vista é nossa impressão, ela precisará gerar possibilidades de qualiicação, para não ter que importá-los de outras regiões, o que já está ocorrendo. Apenas este dado já é suiciente para uma alteração signiicativa do metabolismo social da região. A pergunta fundamental nesta direção é se o capital humano local se encontra minimamente preparado para ocupar os postos de emprego ou enfrentar os processos prévios de qualiicação. A resposta provisória é não. Por outro lado, um planejamento regional comprometido socialmente precisa também procurar prever possíveis efeitos negativos do advento do complexo industrial. Se parcelas signiicativas da popuO enigma do Porto do Açú
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lação do norte luminense não apresentarem condições mínimas para se qualiicarem, ou se precisarem modiicar profundamente seu ―habitus local‖ (BOURDIEU, 1979) em nome de uma readaptação, pode ser que o metabolismo social em questão modiique as condições e possibilidades de trabalho de parte da população. Este efeito não é necessariamente ruim. A sociologia do trabalho brasileira apresenta vários exemplos do desenvolvimento de entornos econ ômicos informais diante do advento de complexos industriais. Os trabalhadores de baixa ou nenhuma qualiicação formal que não conseguem se qualiicar e se inserir em postos de trabalho formais e regulares dentro do complexo podem se adaptar em seu entorno e desenvolver uma economia informal interdependente, cujos resultados podem ser uma melhora relativa de vida. Esta é uma hipótese central da pesquisa a ser investigada com o desenrolar do processo de implantação do complexo, já em andamento. Com a implantação paulatina das empresas ―mães‖ (GORZ, 2004), ou seja, o grupo pertencente a Eike Batista, e das prestadoras de serviço, deve ser observada a alteração no quadro de ocupações oferecidas na cidade e na região. Este quadro de necessidades precisa ser confrontado com um banco de dados da qualiicação da região, de modo a se analisar o atendimento direto a necessidade empresarial e a se analisar o que fazer com a possível carência ao preenchimento das vagas. Este tipo de levantamento exige a observação sistemática de demanda e de oferta de qualiica ção na cidade e na regi ão, de modo a oferecer um quadro atual e um confrontamento futuro. Dai é possível levantar expectativas, sonhos quanto o futuro, práticas de consumo e a perspectiva pessoal diante das condições proissionais da região. Este panorama de opinião pode ser valioso para empresas que desejem com o tempo ampliarem seus quadros, para poderes políticos que desejem fomentar o capital humano da região, em vista de seu desenvolvimento pleno, bem como para instituições de ensino tanto privadas quanto públicas que desejem oferecer cursos de qualiicação e capacitação proissional. No geral, a implantação de um empreendimento de tamanha natureza exige um conhecimento ampliado sobre o peril dos trabalhadores que pode ser decisivo na formação de quadros proissionais produtivos e de quadros empresariais integrados. Sem esta visão regional embasada cientiicamente, se torna difícil um desenvolvimento empresarial lucrativo articulado a um desenvolvimento social, econômico e sustentável.
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Todos os autores citados, que se debruçaram sobre o tema da lexibilidade e da informalidade, ou seja, as duas principais marcas da mudança social na lógica do trabalho contemporâneo perceberam um mesmo aspecto fundamental sobre o tema. Sem proissionais qualiicados e satisfeitos com suas perspectivas de futuro, be m como empre sários integrados ao novo processo de expansão, não existe progresso econômico e social no novo capitalismo inanceiro no qual vivemos. Se isso será possível, apenas a pesquisa empírica em médio prazo poderá mostrar, acompanhando em tempo real as mudanças em certa medida imprevisíveis do empreendimento na região. Nesta direção, a pesquisa social e empírica, em parceria com outras áreas do saber cientíico, pode oferecer uma contribuição decisiva, uma vez que conhecer os empresários e os trabalhadores contemporâneos seria o primeiro passo para uma compreensão maior. Esta seria o entendimento cientíico e político acerca da reestruturação tecnológica e do advento da dominação inanceira, materializada na implantação do porto, o que signiica conhecer e antecipar o futuro da região.
Referências BECK, U. Schöne neue Arbeitswelt. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 2007. ______. Was ist Globalisierung? Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1997. BOURDIEU, P. A distinção. Crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2007. ______. O camponês e seu corpo. Revista de Sociologia e Política, n 26, 2006. CASTEL, R. From Manual Workers to Wage Laborers: transformation of the social question . New Brunswick/Ne w Jersey: Transaction Publishers, 2003. GORZ, A. Misérias do presente, riqueza do futuro. São Paulo: Annab lume, 20 04. ______. O imaterial. Conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annab lume, 20 05. HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2005. OFFE, C. Capitalismo desorganizado . São Paulo: Brasiliense, 1994. PIQUET, R. Porto do Açú: vetor de crescimento para o Norte Fluminense? Petróleo, Royalties e Região, Ano XII, n. 26, 2009. SENNETT, R. A corrosão do caráter. Rio de Janeiro: Record, 2008. O enigma do Porto do Açú
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Maurício Rudner Huertas ocumentos divulgados pelo ex -funcionário da inteligência ame-
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ricana Edward Snowden indicam que o governo dos Estados Unidos realizou operações de vigilância em massa no mundo todo – incluindo países aliados e potenciais inimigos, sem exce ção. Da presidente Dilma Roussef à chanceler Angela Merkel, da Petrobras ao Papa Francisco, ninguém escapou dos tentáculos da espionagem deste Big Brother da vida real, com métodos que nivelam Obama a Osama, rebaixando o até então festejado líder global ao patamar do terrorista número 1 do mundo, inimigo da liberdade e da democracia. O Brasil ainda engatinha nesses avanços tecnológicos, que servem tanto para o bem quanto para o mal. A reboque dos acontecimentos, o governo brasileiro inge indignação para implementar o marco regulatório da internet. Pura canastrice. Ainal, está no DNA petista o desejo de regular tudo – Estado, mercado, mídia, sociedade – e submeter-nos todos aos interesses do partido dominante. Como nunca antes na história deste país... Que exista uma lei para regulamentar os princípios, as garantias, os direitos e deveres de quem usa a rede, é justo e necessário. Mas qual o limite do papel do Estado neste marco civil? A simples regulamentação dos serviços prestados ou o controle absoluto (econômico, social, jurídico e político) de temas como a neutralidade da rede, a privacidade, a retenção de dados, a função social da internet e a responsabilidade civil e criminal de usuários e provedores? Quem decide, ainal, o que é certo e o que é errado na internet? Esse Congresso isiológico que vota em função do espaço loteado no governo, que não cassa deputado preso, que tenta calar os partidos de oposição, que desrespeita princípios constitucionais básicos e despreza direitos garantidos, além de parecer autista às principais reivindicações das redes, das ruas e das urnas? O histórico da mão pesada do Estado no controle das liberdades individuais e coletivas, além de representar uma constante ameaça 886
às conquistas democráticas e republicanas no Brasil, traz inúmeros exemplos negativos da sobreposição de interesses particulares aos interesses da maioria. Mas o risco latente é sempre o mesmo: o lobby de setores econômicos e políticos, que também se sobrepõe à vontade da sociedade, e o exagero no rigor do centralismo governamental. E aí proliferam indistintamente esses marcos regulatórios, seja o já citado da internet ou o das comunicações, da energia, da saúde, da educação etc., nem sempre garantindo a melhor qualidade na prestação dos serviços de utilidade pública, mas certamente atendendo aos desejos do partido dominante e à sua base de sustentação. ―É a política, idiota!‖, deveria ser a primeira lição de qualquer cartilha básica de marketing. Tudo gira em torno da conquista ou da manutenção do poder. Aquele objetivo que justiica ―fazer o diabo‖ para ganhar uma eleição, como ensina a presidente Dilma Roussef, para delírio da milícia petista e desgosto de quem se opõe a esses métodos deploráveis da velha pol ítica. Mas, enim, os recentes acontecimentos expõem detalhes inacreditáveis da espionagem patrocinada pelos governos no mundo inteiro: do presidente norte-americano, o democrata Barack Obama, ao prefeito de São Paulo, o poste Fernando Haddad, surgem notícias de grampos, escutas, investigações. Se bem que o nosso exemplo doméstico não tem o requinte tecno lógico nem o charme dos grandes espiões. Aqui no Brasil, os caçadores de corruptos se confundem com a caça desde os tempos de Fernando Collor – e, não por acaso, ele próprio, além de igurinhas emblemáticas como Maluf, Sarney, Renan, Feliciano, Delin, mensaleiros, igrejeiros, ruralistas e uma inindável lista de políticos ―tradicionais‖ (no pior sentido do termo) comp õem a coalizão governista do chamado ―lulopetismo ‖. Vale esta citação para um rápido exercício mental: imagine agora se tivéssemos acesso a uma escuta das conversas entre a presidente Dilma e esses aliados do governo... (pausa)... Não, melhor nem imaginar. Ninguém merece. Faria corar porteiro de casa de tolerância. O último caso de espionagem à brasileira que veio a público e desperta atenção tem como protagonista Fernando Haddad. Se ele não tiver sucesso à frente da Prefeitura de São Paulo, como tudo indica diante da lambança que vem promovendo na cidade, já pode investir no pastelão ou em séries de realismo fantástico. Quem sabe, Terceira gaveta, no canto esquerdo
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até suceder Maxwell Smart, o famoso ―Agente 86‖, ou o impagável Inspetor Clouseau. Porém, antes, Haddad precisa deinir melhor o seu personagem: é o ―xerife‖ no combate pessoal e incansável à corrupção na Prefeitura de São Paulo, colocando até dinheiro do próprio bolso para investigar e caçar os malfeitores, ou é aquele que icou sabendo de tudo ―pelos jornais‖, para não se comprometer? Há, aqui, uma contradição gritante. Aliás, isso já virou rotina para Haddad. Mas, nesse caso da espionagem brancaleone que levou à prisão funcionários de coniança do município, o prefeito exagerou: chegou a acusar que houve ―encenação‖ dos suspeitos nas escutas, para justiicar tudo aquilo que não lhe convém; como, por exemplo, a menção de nomes de operadores políticos do PT e seus auxiliares diretos nas irregularidades. Ato contínuo, a mídia chapa-branca e a milícia virtual nas redes sociais se apressaram em divulgar, naquele tom heroico que só o lulismo é capaz, que Haddad bancou do próprio bolso um QG de investigação (alugando pessoalmente um escritório vizinho ao local onde era repartido o dinheiro público desviado) para promover uma ―escuta ambiental‖ e prender os funcionários corruptos, reforçando o tradicional marketing petista e um aparentemente involuntário realismo fantástico de fazer inveja a Saramandaia [novela do dramaturgo Dias Gomes]. Tudo soa muito estranho, ainda mais quando parte da imprensa se esforça para associar a corrupção apenas ao antecessor de Haddad, o ex-prefeito Gilberto Kassab (PSD), sendo que surgem v ínculos cada vez mais concretos de lideranças do PT com os funcionários de coniança corruPTos, que foram mantidos em seus cargos e até promovidos na atual gestão. Para piorar, segundo o próprio prefeito e a Promotoria, os pol íticos citados devem icar de fora das investigações. Como se fosse possível supor que apenas funcionários do segundo escalão mantivessem um esquema tão complexo de corrupção na Prefeitura, atravessando diversas gestões e desviando pelo menos R$ 500 milh ões dos cofres p úblicos. Aham! Acredite se quiser! Tudo isso posto, eis que surge outra ironia do destino: após 40 anos de vida pública, enquanto este novo esquema de corrupção vem à tona na Prefeitura de São Paulo, Paulo Maluf é enim condenado pela Justiça. Sinal dos tempos?
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No país da piada pronta, o deputado Maluf, presidente do Partido Progressista paulista e aliado do PT nos governos federal e munici pal, vai virar ―icha-suja‖ só agora, mesmo depois de inúmeros escândalos e denúncias: que vão da entrega de Fuscas aos campeões da Copa de 70, passando pelo ―frangogate‖ e pelo propinoduto de obras superfaturadas, entre outras suspeitas que já lhe custaram desde uma estadia nada agradável na prisão a uma página de ―procurado‖ no site da Interpol. Incrível a semelhança entre os postes de Maluf e de Lula: há exatos 15 anos estourava outro escândalo famoso na Prefeitura de São Paulo, a ―Máia dos Fiscais‖, que culminou com o afastamento temporário do então prefeito Celso Pitta (que também seria preso dez anos depois), a cassação e prisão de vereadores da base maluista. Bom, deixa pra lá... Não vamos voltar ao passado, nem entrar nos detalhes desses casos de corrupção na política. Tratemos do assunto da espionagem e das tecnologias que estão acabando com a privacidade de qualquer cidadão no mundo inteiro. A verdade é que todo mundo tem um pouquinho de inveja de Edward Snowden, Glenn Greenwald, Julian Assange & cia. Nós, jornalistas, queríamos ser um deles. E, os políticos, ter um a serviço. Do Deep Throat, do Watergate, aos escândalos tupiniquins (mensalão do Lula, pasta rosa, aloprados, anões do Orçamento, impeachment do Collor, compra de votos para a reeleição de FHC, Rosegate, assassinato dos prefeitos do PT etc.), passando por todas as operações com nomes insólitos da Polícia Federal, CPIs encerradas e enterradas, fraudes em licitações e todo tipo de denúncias e suspeitas, há sempre um grampo ou um dossiê na história. Mal comparando, é quase como a polêmica das biograias não autorizadas. Todo mundo gosta, desde que não fale de si próprio, mas do outro. A Agência Nacional de Segurança (NSA, na sigla em inglês) é o SNI que deu certo. No lugar dos nossos arapongas atrapalhados com bloco de anotações, gravador e máquina Polaroid, um bando de nerds bisbilhota a sua vida e a minha sem sair da frente do tablet. São os biógrafos não autorizados, verdadeiros black blocs da intimidade alheia. ―O que você faz quando ninguém te vê fazendo, ou o que você queria fazer se ninguém pudesse te ver?‖, brinca o rock do Capital Inicial. É o hino do mundo moderno. O GPS do carro ou a antena do celular localizam cada um de nós no mapa mundi a cada segundo. Sem carro ou celular, não use o bilhete único, porque a central de Terceira gaveta, no canto esquerdo
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transporte saberá em que ônibus você está. A empresa do vale refeição tem a sua rotina diária de almoço, café e jantar. O cartão do banco conhece suas preferências, gosto pessoal e extravagâncias. Saia à rua bem alinhado, porque as câmeras de segurança das casas, do comércio e do controle de tráfego vão te lagrar em todos os ângulos. Sorria 24 horas por dia, porque você estará sendo ilmado. E, se cometer alguma ilegalidade, vá em 10 minutos ao Youtube ou no telejornal, em horário nobre, para conferir as imagens. Corta pra 18: você estará lá! Facebook, Google, Microsoft, Yahoo, e -mail, Whatsapp, telefone, Twitter: não há senha, criptograia ou mal de Alzheimer capaz de fazer esquecer algum detalhe da sua rotina. Tudo estará devidamente arquivado na memória coletiva. Na nuvem, a virtual, que aproxima o céu do inferno de maneira impressionante. E me retorna à lembrança, ideia ixa, a presidente Dilma dizendo que ―vale fazer o diabo para ganhar a eleição‖. Só por Deus! Na cartilha do marketing de guerrilha petista, vale tudo: uma li ção virtual recente, daquelas que causam a chamada ―vergonha alheia‖, foi colocar a presidente Dilma Roussef por mais de uma hora interagindo com a sua paródia no twitter, a Dilma Bolada. Tudo devidamente registrado e oicialmente divulgado para marcar o retorno de Dilma – a original – às redes sociais. A receita: pegue uma presidente com fama de gerentona, sem nenhuma pitada de carisma e empatia, em baixa nas pesquisas, misture na panela um simpatizante engraçadinho, Jeferson Monteiro, que imita no twitter e no facebook os trejeitos estereotipados da ―presidenta‖, adicione 1 kg de recursos públicos, mais uma dúzia de milicianos virtuais patrocinados com dinheiro do Estado, coloque em fogo brando e pronto! Sai um factoide prontinho para ser consumido pela imprensa chapa-branca. A conta pessoal de Dilma Roussef no twitter estava inativa desde 2010, com quase 2 milhões de seguidores. ―Eu voltei, voltei para icar. Porque aqui, aqui é meu lugar‖, anunciou a presidente em sua reestreia virtual, em setembro de 2013, citando trecho da música ―O Portão‖, de Roberto Carlos, de quem Dilma se diz fã. Por sorte, os internautas foram poupados do verso ―Meu cachorro me sorriu latindo! ‖. Mas o rebanho de jornalistas domesticados, militantes e seguidores cooPTados estava a postos, destilando o ódio de praxe em 140 toques contra os críticos da ação ostensiva e agressiva do marketing governamental, como o twitter @23pps. 990
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Entre outras amenidades, mimimis e tentativas de fazer graça, Dilma Roussef comentou reportagem da revista The Economist, que atacou a política econômica do governo, retuitou seu alter ego digital, que chamou a publicação britânica de ―The Recalconomist‖, e fez comentários autoelogiosos sobre o Programa Mais M édicos e o episódio de espionagem americana. O tweet inal foi sobre o suposto passeio de moto que Dilma teria feito em Brasília, na mais inverossímil vibe de ―rebelde sem causa‖, que teria ―vazado‖ na imprensa (e tem gente que acredita...). Dilma Roussef respondeu à Dilma Bolada: ―Sim & me diverti p ra valer. Será que vc tem carteira pra dirigir moto? Se tiver, da próxima vez, podemos atuar no 8º Velozes e Furiosas‖. Uau, que presidente mais humana, gente! Outra vontade inconfessável que ―vazou‖ para a imprensa (essa que trata o publicitário João Santana como guru iluminado): Dilma também gostaria de dar umas escapadinhas para namorar... Ahhhh! Cuti-cuti! Que fofa essa Dilminha (só que não)! Mais fake, impossível! Já estou até prevendo que no dia 5 de outubro de 2014, quando eu for procurar o título de eleitor na bagunça do meu quarto, vou receber um torpedo ou uma chamada no Skype da Dilma Bolada, a paródia estatizada, com aqueles trejeitos estereotipados: ―Já olhou na terceira gaveta, no canto esquerdo, meu querido?‖.
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IV. Economia e Desenvolvimento
Autores César Benjamin Cientista político, jornalista e editor.
Paulo Kliass Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
Zander Navarro Sociólogo e professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Contato: z.navarro@uol.com.br.
A economia brasileira hoje 1
César Benjamin
A
decisão mais marcante da trajet ória econômica brasileira no sé-
culo XX foi a de industrializar o país. Ela afrontou a economia política então predominante, de matriz inglesa, que airmava que cada país devia se especializar nos setores em que era mais produtivo. Isso produziria uma otimiza ção do sistema econômico interna cional e um aumento geral na renda de seus integrantes. Na prática, para nós, signiicava perpetuar a condição primário-exportadora.
Houve muitos motivos para rompermos com isso. Destaco apenas um: a percepção de que, na medida em que a renda das sociedades aumenta, parcela crescente dessa renda se dirige a bens com maior conteúdo tecnológico, tipicamente produzidos pela indústria, em detrimento dos produtos primários. Logo, com o tempo, as economias que continuassem centradas nesses últimos disputariam entre si uma parcela decrescente da renda global. Nessa nova leitura, o sis tema internacional não tendia a produzir aumentos gerais de renda, mas a aprofundar as assimetrias entre as nações. Para escapar dessa armadilha era preciso fazer um esforço para alterar a divisão internacional do trabalho, induzindo a industrialização de países periféricos. Tratava-se de produzir uma mutação nas suas estruturas produtivas, mutação que em larga medida seria feita contra os sinais do mercado, pois as indústrias nascentes, por deinição, são menos eicientes que as atividades maduras. Isso exigia 1 Roteiro de palestra proferida numa Conferência Nacional Política, promovida em Brasília, em abril de 2013, pela Fundação Astrojildo Pereira e o Partido Popular Socialista.
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intervenção estatal. A estratégia latino-americana de industrialização, tal como delagrada depois da crise de 1929, foi conduzida pelos Estados e denominada substituição de importações. Desde o início se percebeu que a industrialização retardatária seria um processo diferente e problemático, com duas áreas críticas: seria feita com tensões inlacionárias permanentes e sob pressão cambial, com crises recorrentes no balanço de pagamentos. A elas, somava-se, no Brasil, uma terceira área crítica: a oferta de energia. Como qualquer estratégia de desenvolvimento, a substituição de importações sempre andou na corda bamba de iniciativas virtuosas e iniciativas equivocadas. Os principais equívocos, quando ocorreram, foram uma proteção excessiva, indutora de ineiciência, e/ou uma tolerância exagerada à inlação. Isso frustrou a experiência argentina, por exemplo, mas no Brasil a resultante do processo foi claramente exitosa, garantindo um ciclo longo de crescimento. Chegamos ao im da década de 1970 com uma matriz produtiva bastante diversiicada e complexa, tendo conduzido a substituição de importações até os setores básicos, incluindo o petróleo e a petroquímica, e a indústria de bens de capital, ou seja, as fábricas que fabricam fábricas. Os produtos industriais passaram a predominar na nossa pauta de exportações, deixando para trás a longa herança primário-exportadora. Tivemos também grandes êxitos no tratamento da questão energética. Entre as décadas de 1950 (criação de Furnas), 1960 (criação da Eletrobras), 1970 (criação do sistema interligado) e 1980 (capacidade de transporte de grandes blocos de eletricidade em longas distâncias) criamos um sistema elétrico de âmbito nacional, de base renovável, seguro e barato. O Brasil assumiu a vanguarda mundial não só no ―hardware‖ (engenharia pesada), mas também no ―software‖ (gestão e otimização) do setor. Nos combustíveis líquidos, a Petrobras superou a nossa maldição de terra sem petróleo ao passar do continente ao mar, na década de 1970, descobrindo a bacia de Campos e assumindo a vanguarda mundial na tecnologia de prospecção e exploração em águas profundas. O Pró-Álcool, por sua vez, começou a substituir a gasolina por combustíveis renováveis, num processo que deveria chegar ao diesel, também um projeto pioneiro.
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César Benjamin
Criamos as condições para deixar para trás as crises de energia. No inal dessa longa trajetória havíamos constituído um núcleo endógeno – nacional – indutor de crescimento e gerador de progresso técnico. Ele abrangia mineração, logística, petróleo, eletricidade, bens de capital, insumos básicos, agricultura (incluindo pesquisa agrícola), siderurgia e avia ção. No im da década de 1970 começa a icar claro que, justamente por ter sido levada até o limite, a estratégia de substituir importações tendia a perder fôlego. Começa então o debate sobre a necessidade de se buscar outra estratégia, que garantisse a abertura de um novo ciclo longo de desenvolvimento para o Brasil. Duas áreas apareciam como candidatas naturais à posição de locomotiva: (a) as exportações, pois o Brasil não desenvolvera uma indústria dotada de ―espírito animal‖ para disputar o mercado mundial; (b) o mercado interno, que a má distribuição de renda mantivera atroiado. Esse debate coincidiu com a forma ção do PT, e o atual ministro da Educação, Aloisio Mercadante, defendia a primeira op ção, e eu, a segunda. Não era um antagonismo, pois não são posições excludentes; em larga medida são complementares. Mas havia uma clara diferença de ênfase em nossas posições. Por muitas razões, eu defendia um novo e destacado papel para o mercado interno no desenvolvimento brasileiro. Essa busca de uma nova estratégia econômica foi truncada por dois motivos principais, um virtuoso, outro problemático. O motivo virtuoso foi a preponderância, na década de 1980, do debate político sobre o im do regime militar e a reconstrução de instituições democráticas. O motivo problemático foi a gravíssima crise externa que sobreveio depois de dois choques do petróleo, na década de 1970, e do choque dos juros, no início da década de 1980. Eles abrem uma crise cambial aguda, que logo se transforma em uma crise inlacionária prolongada e grave, com óbvio efeito paralisante sobre a economia. Mesmo assim, olhando para trás, podemos ver nessa época iniciativas que gestaram transformações socioeconômicas importantes. Cito algumas. Na década de 1970, a extensão da legislação trabalhista e do direito de aposentadoria às zonas rurais (a população brasileira era relativamente equilibrada entre campo e cidade). Na década de 1980, a criação de um sistema de seguridade social muito abrangente, com indexação dos benefícios ao salário mínimo; A economia brasileira hoje
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a importância disso não foi logo percebida por causa do baixo valor do salário mínimo de então. Na década de 1990, o início da recuperação do valor do salário mínimo e dos programas de transferência de renda. Esses avanços icaram pendentes até que o controle da inlação, na primeira metade da década de 1990, reabriu o campo de possibilidades da economia brasileira. O governo de Fernando Henrique começou a recompor o valor do salário mínimo, com um aumento real médio, acima da inlação, de 4,1% ao ano, durante oito anos. Iniciou, também, os programas sociais. Mas sua marca não foi essa. Foi a íntima associação com o capital inanceiro internacional, com a apologia da chamada globalização, e o ataque àquele núcleo endógeno (e nacional) que deveria ser o motor do nosso desenvolvimento. São as marcas que o PT tem sabido explorar em cada eleição. Lula assume o governo com a crise inlacionária superada e encontra uma conjuntura internacional excepcionalmente favorável. O Brasil, que havia experimentado choques externos devastadores nas décadas de 1970 e 1980, experimenta agora um choque externo benigno, com o boom das commodities. Depois de um começo hesitante, o novo governo organiza sua estratégia econômica em torno do fortalecimento do mercado interno, por quatro vias principais: (a) mantém e aprofunda a política de aumentos do sal ário mínimo, que cresce em média, em termos reais, 6,2% ao ano, garantindo 16 anos de crescimento real e cumulativo, o que conduz o salário mínimo a um novo patamar; (b) mantém e expande os programas de transferência de renda; (c) induz maior formalização do trabalho e garante um discreto aumento na renda média dos assalariados (cerca de R$ 1.600,00 em 2002, cerca de R$ 1.800,00 em 2010); (d) estimula o crédito. Essa combina ção obtém enorme êxito político. Hoje, o ministro Mercadante rebate todas as diiculdades atuais da economia brasileira, repetindo um mantra: ―Abrimos um ciclo longo de desenvolvimento centrado no mercado de consumo de massas‖. Era exatamente o que eu defendia, debatendo com ele no PT, há cerca de trinta anos.
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A questão, porém, é que não estou seguro de que essa meta tenha sido alcançada ou de que estejamos nesse caminho. Assim como tivemos experiências vitoriosas e experiências frustradas de substituição de importações – que, em tese, era uma estratégia correta –, podemos ter a mesma coisa no caso do consumo de massas. Em vez de estar abrindo um ciclo longo de desenvolvimento, podemos estar construindo um ciclo frustrado. Essa é a questão-chave, a que me referi no início, que devemos tentar responder. Os instrumentos usados pelos governos do PT para expandir o consumo foram positivos, mas são apenas como ―motor de arranque‖ de um novo ciclo. São a parte fácil do projeto. Se outros problemas não forem enfrentados, o ciclo se frustrará. É o que estou vendo: um acúmulo de elementos regressivos. Destacarei quatro deles, que são coerentes entre si, antes de caminhar para a conclusão: (a) Um mercado interno pujante e din âmico não pode se basear em bolsas, aposentadorias e crédito. Ele depende de um mercado de trabalho dinâmico, em quantidade e qualidade, que garanta ganhos sustentados na remuneração do trabalhador, os quais, por sua vez, têm de estar associados à elevação da produtividade. Estamos indo na direção contrária. Os empregos gerados pela economia brasileira contemporânea são de baixa qualiica ção e baixa remunera ção: 85% deles pagam até 1,5 salário mínimo, praticamente 100% pagam até 2 salários mínimos. A criação líquida de empregos acima de 3 sal ários mínimos tem sido negativa há muitos anos. A economia brasileira perdeu a capacidade de incorporar trabalho qualiicado. Temos problemas pelo lado da oferta (crise recorrente do sistema educacional) e da demanda (quem gera emprego é o setor de servi ços não vinculado à produção – balconistas, vigilantes, moto -boys – ou a construção civil). Em pleno século XXI, a população brasileira está se deslocando para seto res de baixa produtividade. (b) O Brasil está se desindustrializando. O PIB brasileiro, mesmo crescendo pouco, tem crescido duas vezes mais que o PIB industrial. A participação da indústria em nossa economia voltou aos n íveis de meados da década de 1940. É uma desindustrialização precoce, desassociada do crescimento da renda per capita. Como o consumo de bens industriais continua a crescer, a brecha é coberta por importações. Voltamos a ter um tremendo déicit comercial na indústria. Estamos abrindo mão da nossa maior conquista econ ômica do século XX. (c) A inserção internacional do Brasil está recuando, com a reprimarização da pauta de exporta ções. Como o ciclo de alta das commodities tende a um im – isso já foi muito estudado na literatura –, as A economia brasileira hoje
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contas externas brasileiras enfrentam diiculdades crescentes: o saldo comercial é fortemente cadente, enquanto o déicit em serviços e rendas está em expansão (este é um dos subprodutos da desnacionalização da economia). Nosso déicit em conta corrente se aproxima de 3,5% do PIB, o que é alarmante, e pode chegar a 4% nos dois pr óximos anos. Pode ser uma posição insustentável. O governo alega que temos reservas de mais de 300 bilhões de dólares, mas essas reservas não foram formadas por saldos em conta corrente, mas sim pela entrada de recursos pela conta de capital. Ou seja, são a contraface de um passivo externo muito grande, que na verdade é um múltiplo das próprias reservas. O espectro de uma crise cambial não pode ser descartado. (d) A infraestrutura brasileira está deixando de ser um problema para tornar-se uma calamidade. Abandonamos as ferrovias e as hidrovias, e a malha rodoviária continua péssima e disfuncional. Estamos experimentando um grande retrocesso na área energética, com perda de coniabilidade do setor elétrico e destruição das empresas públicas geradoras, o que nos deixa cada vez mais dependentes de uma matriz térmica de péssima qualidade. A meu ver, é questão de tempo voltarmos a enfrentar um racionamento. Nos combustíveis líquidos, a Petrobras enfrenta sérios problemas de gestão, e o setor alcooleiro vive grande crise. Esses quatro problemas estruturais reatualizam desaios históricos que o Brasil havia superado, ou estava em condições de fazê-lo, e convergem para deinir uma trajetória de baixo crescimento. A única resposta do governo atual é praticar um keynesianismo vulgar, com ações pontuais de sustentação da demanda. Ações que já se tornaram inócuas, pois o parque industrial brasileiro perdeu a capacidade de capturar essa demanda que cresce. Ela, simplesmente, vaza para o exterior, sob a forma de aumento das importações. É o que explica termos uma economia quase estagnada e uma sensação geral de bem-estar, que nos paralisa. Falar hoje em abertura de um ciclo longo é muito otimismo. Somos uma economia de baixo crescimento, e pelo menos duas áreas podem provocar uma crise aguda nos próximos anos: a oferta de energia e as contas externas. Esses quatro problemas têm muita coisa em comum: são difíceis, exigem planejamento sério e continuidade político-administrativa em prazos longos. Por isso, o Estado e a sociedade brasileiros não estão à altura de enfrentá-los. Hoje, só duas coisas fazem funcionar as instituições do Estado: ações de marketing e corrupção. E o horizon100
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te de expectativas da sociedade está rebaixado: o povo brasileiro quer consumir, não muito mais do que isso. São componentes estruturais do atual arranjo político brasileiro, o chamado lulismo: isiologia no Estado e apatia na sociedade. Abandonamos a ideia de construir uma nação e transformamos a política em caridade. Não somos capazes de conduzir nenhum projeto dotado de alguma complexidade e sustentá-lo no tempo. Isso contamina o próprio debate econômico, que permanece centrado no tripé dos juros, do câmbio e da política iscal. Manejando essas variáveis, podemos buscar combinações mais ou menos virtuosas, mas nenhuma delas resolverá as nossas grandes questões. Lembro o grande economista Ignácio Rangel, citando-o de cabeça: ―O desenvolvimento é mau para quem opta por ele. Só povos que se dispõem a fazer grande esforço e pagar alto preço conquistam o direito ao desenvolvimento ‖. Foi essa capacidade que perdemos. O Brasil se transformou em uma nação de vontade fraca e, assim, perdeu o direito ao desenvolvimento. Parece que continuará assim, até que uma crise desarrume esse arranjo perverso.
A economia brasileira hoje
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Impo stô metro , so neg ô metro e previdência social
Paulo Kliass s pedestres que costumam caminhar pela região central da
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capital paulista já se habituaram à cena. No início do Viaduto do Chá, no Vale do Anhangabaú, foi instalado um grande painel, que pretende exibir a atualização instantânea dos valores relativos ao pagamento de impostos em nosso país. Passou a ser conhecido como o Impostômetro. Foi uma bela jogada de marketing político, na tentativa de se apropriar do conhecido descontentamento da população em pagar tributos, ainda mais tendo em vista a péssima qualidade dos serviços públicos oferecidos como contrapartida pela máquina do Estado. A iniciativa do movimento coube à Associação Comercial de São Paulo, uma entidade representativa dos setores mais conservadores do empresariado paulista. Ali sempre estiveram as origens pol íticas do movimento conhecido como ―maluismo‖, girando em torno da órbita do ex-governador Paulo Salim Maluf. O dirigente pol ítico que terminou icando mais identiicado com a entidade é Guilherme Aif Domingos. Sua carreira teve início como Secretário de Agricultura do Estado de São Paulo, em 1980, ainda quando Maluf ocupava o cargo de governa dor biônico, indicado pelos militares, na época da ditadura. Sua igura começou a crescer de importância no jogo das elites e foi saltitando, de galho em galho, pelas diferentes agremiações partidárias: Arena, PDS, PL, PFL, DEM e, agora mais recentemente, o PSD de Kassab. Nas eleições de 2010, Aif fez parte da coliga ção com o partido dos tucanos, ocupando o cargo de vice-governador de São Paulo, o primeiro na linha de sucessão de Geraldo Alckmin. Em maio último, ao inal, ele foi nomeado ministro da equipe da presidente Dilma Roussef, ocupando a pasta da Secretaria Nacional da Micro e Pequena Empresa. Era o ato deinitivo de celebração do ingresso oicial do partido – recém-criado como um racha do Democratas – na base de sustentação do governo do PT. Uma acomodação política que criou um constrangimento considerável no arranjo da política paulista,
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talvez compar ável ao ―abraço amigo ‖ de Maluf em Haddad, às vésperas das eleições para a prefeitura da capital paulista em 2012. Fiel às suas origens, Aif é líder daqueles que bradam raivosamente contra a presença do Estado na economia, contra o suposto excesso de tributos, contra qualquer medida governamental que vá contra os alicerces de um liberalismo idealizado. Porém, bem de acordo com as tradições do empresariado tupiniquim, eles gritam contra o poder público na hora de pagar tributos, mas adoram mamar nas tetas do Estado quando se trata elevar seus ganhos privados. Benesses públicas são sempre muito bem vindas, desde que a coleta de recursos para o isco seja efetuada em cima de outrem. Este é um pouco o retrato do ambiente em que foi criado o ―impostômetro‖. Gente que se recusa a contribuir com a sua cota para manter a nossa república, em que sejam assegurados direitos básicos à maioria da população, tais como saúde, educação, previdência social e tantos outros. Não! A estratégia é promover um linchamento em praça pública desse ―vilão‖, representado pelo Estado. Somam-se os tributos pagos nas esferas municipal, estadual e federal. Pouco importa se não existe serviço público sem arrecadação de impostos. O essencial é que ―eu não pague‖! Ao invés de promover uma discussão a respeito da qualidade do gasto e das prioridades a serem estabelecidas, a saída demagógica e oportunista ica sendo a denúncia vazia da ―alta carga tributária‖. Os números realmente impactam: o total de impostos recolhidos atingiu a cifra de R$ 1,6 trilhão no ano passado. Ocorre que não há meios para se montar um Estado em condições de prestar bons serviços públicos sem a correspondente arrecadação. Daí para articular pressões que acabem com a CPMF, por exemplo, como izeram em 2007, é apenas um pulo. A saúde perdeu R$ 40 bilhões de uma tacada só! Ora, tal postura relete, na verdade, o efetivo comportamento de parcela signiicativa das elites em um país ainda tão marcado pela desigualdade social e econômica. Trata-se da falta de compromisso e de engajamento em um projeto de nação que seja inclusivo, democrático e sustentável. E isso se combina ao espírito da impunidade e ao traço cultural do nosso conhecido ―jeitinho‖. O resultado é a tendência explícita à prática da ilegalidade no ramo empresarial que graceja por todos os cantos, estratos e setores da sociedade. Isso vai desde a contratação de força de trabalho em condições análogas à escravidão até a sonegação de tributos. Ou seja, é o império do vale-tudo para aumentar a rentabilidade e o lucro.
Impostômetro, sonegômetro e previd ência social
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Com isso, ganham expressão também os movimentos que caminham no sentido oposto. Associações, entidades e proissionais que se preocupam com a questão republicana e com a obrigação que todos os setores e classes sociais têm para contribuir com a manutenção de nossa possibilidade de bem desenvolver políticas públicas para a maioria da população. Em termos bem objetivos, isso implica em aceitar a vigência de um pacto social envolvendo política tributária e capacidade arrecadadora do Estado. Além disso, propõe-se que tal modelo se articule ao tão necessário aperfeiçoamento da gestão pública, ao seu dever de realizar a despesa de forma eiciente e com qualidade. E então nasce um importante contraponto aos liberais de fachada da Associa ção Comercial: o ―sonegômetro‖. A iniciativa foi protagonizada pelo Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional e vem sendo encampada por outros setores da sociedade, que se identiicam com a proposta de denunciar o elevado índice de sonegação iscal em nossas terras. A metodologia adotada foi desenvolvida a partir de estudos e pesquisas envolvendo a questão tributária em nosso país e a experiência comparada no plano internacional. A grande contribuição trazida pelo movimento foi trazer à tona aquilo que todos estamos acostumados a vivenciar em nosso cotidiano de cidadãos brasileiros. As típicas situações como ―com ou sem nota?‖, ―precisa de recibo?‖, ―quanto ica sem declaração?‖, ―só contrato sem carteira assinada!‖, ―será que ele me quebra esse galho?‖, ―você é que é trouxa de pagar imposto!‖, ―fulaninho tem um esquema que é dez!‖, entre tantas outras modalidades da pequena sonegação. Isso para não falar das grandes jogadas das grandes corporações e do inancismo, envolvendo a lavagem de elevadas somas de recursos, as operações enormes de remessa ilegal de recursos para contas nos chamados ―paraísos iscais‖, o contrabando explícito corrente em parte das operações de comércio exterior, a indústria e comércio ilegal das armas e das drogas, entre outros. Além disso, é importante registrar a característica marcante da regressividade de nossa estrutura tributária. Isso signiica que a população dos estratos de renda mais baixa – os que vivem de seu salário ou de aposentadoria – terminam por pagar proporcionalmente mais impostos do que as camadas da parte de cima da pirâmide. Tal fato deriva da maior concentração da tributação sobre o consumo de bens e serviços e não sobre a renda, o patrimônio e o capital. Da carga total arrecadada, 75% do valor dos impostos incidem sobre o ato do consumo ou sofrem desconto na fonte de salários. Dessa forma, as empresas e os mais ricos contam com o importante instrumento para reduzir sua contribuição ao isco. Lançam 104
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mão do chamado ―planejamento tributário‖ – eufemismo para buscar de forma racional e legal mecanismos para pagarem menos impostos. Para tanto ―basta‖ contratar proissionais bem remunerados, que então se incumbem de tarefa tão especializada. O ―sonegômetro‖ aponta para uma sonegação estimada em 24% do total da arrecadação. Isso corresponde a um valor próximo de 10% do PIB. Se utilizarmos as informações relativas a 2012, a soma do valor sonegado alcançaria R$ 415 bilhões. Trata-se de valor que não pode ser desprezado e que relativiza um pouco o susto inicial provocado pela divulgação de nossa carga tributária – 36% do PIB. Um dos pontos a reter, assim, é que o problema não é tanto de suposto excesso de tributos, pois quase 1/4 do que seria devido pelos contribuintes não é pago. A divulgação da carga sonegada coloca em questão a dimensão da carga arrecadada e abre o caminho para discutir o modelo atual de tributação. Por exemplo, ica evidente que o car áter regressivo de nossos impostos acaba provocando uma profunda in justiça social quanto aos setores tributados. Finalmente, esse debate também introduz uma relex ão a respeito da necessidade de se aperfeiçoar a qualidade do gasto e dos servi ços prestados pelo Estado.
Desoneração e previd ência As informações oiciais sobre o Regime Geral de Previdência Social (RGPS) relativas ao período janeiro-julho de 2013 não apresentam grandes mudanças em relação à tendência do modelo no médio e no longo prazos. No entanto, a maneira como o tema sempre foi tratado pelos órgãos da grande imprensa relete uma perspectiva bastante peculiar de análise da questão da seguridade social. As manchetes estampam com grande estardalhaço os números catastróicos do ―déicit fenomenal‖, um ―verdadeiro rombo‖ do modelo da previdência e por aí vai. Assim, por exemplo, o próprio MPS refez suas contas e reavaliou o tamanho do ―suposto buraco‖ para o total do ano atual em um valor próximo a R$ 48 bilhões. O detalhe é que as estatísticas são apresentadas de forma confusa e misturada. O RGPS, na verdade, é composto por dois subsistemas que devem ser compreendidos e analisados de forma diferenciada, principalmente se o interesse for o de veriicar a verdadeira situação do equilíbrio previdenciário. Trata-se de veriicar a dinâmica particular de: i) o conjunto dos trabalhadores urbanos; e ii) o conjunto dos trabalhadores rurais. Essa questão metodológica se justiica pela própria história recente do modelo previdenciário no país. Impostômetro, sonegômetro e previd ência social
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Os agricultores e assalariados do campo não tinham acesso aos benefícios da seguridade social até 1988, quando a Assembleia Nacional Constituinte resolveu corrigir essa enorme e lagrante injustiça social. A partir de então, essa parcela expressiva de nossa população passou a ser incluída ao RGPS. Ocorre que, para promover essa reparação de cidadania tão necessária, teria sido preciso deixar bastante explícita a maneira pela qual o regime previdenciário recuperaria suas contas compensadas. Ainal, tratava-se de uma decisão da sociedade brasileira e não faria sentido promover diiculdades para o modelo de seguridade social por conta dessa novidade. Isso porque haveria, no mínimo, uma geração de cidadãos e cidadãs que passariam a receber os benefícios previdenciários sem que nunca tivessem contribuído para o INSS ao longo de sua vida laboral. E não pelo fato de que não queriam participar: o sistema é que não os aceitava. Assim, não precisa ser especialista em cálculo atuarial para perceber que o RGPS passaria a ser bem mais solicitado pelo lado das despesas, pois deveria começar a honrar o pagamento dessas novas aposentadorias e pensões dos trabalhadores do campo, aumentando o nível geral de gastos do sistema. E tais despesas não teriam sua contrapartida do ponto de vista das receitas. Essa compensação deveria ser efetuada, mês a mês, por meio de ressarcimento da contabilidade do Tesouro Nacional. Ainal, esse ―desequilíbrio‖ nada tem a ver com a estrutura das variáveis que mais inluenciam qualquer modelo previdenciário, tais como tempo de contribuição, idade mínima para requerer benefícios, alíquota de contribuição e variáveis do gênero. Tanto isso é verdade que o outro subsistema – o dos trabalhadores urbanos – sempre esteve como est á hoje em dia: muito bem equilibra do. Se considerarmos apenas os dados disponíveis para os sete primeiros meses do presente ano, o subsistema dos urbanos apresenta uma receita total de R$ 161 bilhões, frente a uma despesa total de R$ 150 bi. Isso signiica um superávit nas contas equivalente a R$ 11 bi. Além disso, se forem computadas as demais renúncias previdenciárias, o super ávit sobe para R$ 25 bi. Longe, portanto, muito longe das previsões alarmistas sobre eventual ―rombo estrutural ‖ no regime. No entanto, o subsistema dos rurais oferece um quadro bem distinto, em razão do já mencionado histórico de não contribuições. A consequência mais imediata é que seu lado de receitas é mais frágil. Para o mesmo período do que foi retratado, o quadro é de uma arrecadação total de apenas R$ 3,5 bi, face a uma despesa de R$ 44 106
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bi. Esse descompasso de quase R$ 41 bi é que se soma ao superávit dos urbanos e resulta no tão alardeado ―rombo previdenciário‖ de R$ 30 bi entre janeiro e julho. Nada mais falso, portanto. A tentativa de responsabilizar essa diferença por conta de um inexistente desequilíbrio previdenciário é de uma irresponsabilidade atroz. Tanto que mais de 99% dos benefícios pagos mensalmente aos aposentados e pensionistas rurais é de valor menor ou igual a um salário mínimo. Não faz sentido que um modelo como esse seja o bode expiatório dos que propõem insistentemente reformas previdenciárias, com o único intuito de promover a privatização desse enorme volume de recursos que representa o RGPS. Ainal, é fácil imaginar a voracidade com que o sistema inanceiro encara um sistema que arrecada e gasta quase R$ 350 bilhões por ano. Uma das metas mais estratégicas para esse mundo do parasitismo inanceiro é arrancar esse regime previdenciário das mãos do Estado e convertê-lo em coisa privada, um negócio para ganhar muito dinheiro. Com isso, passariam a geri-lo como uma mercadoria a mais a ser oferecida na extensa prateleira das agências bancárias, ao lado de apólices de seguros, títulos de capitalização, talões de cheque especial, cartões de crédito y otras cositas más. Como se pode perceber, o nosso modelo previdenciário está em equilíbrio. Na verdade, ele é até superavitário no momento presente. O que falta é a institucionalização desse repasse de recursos por parte do Tesouro Nacional, para que se tenha um quadro mais efetivo do balanço entre receitas e despesas do subsistema dos trabalhadores rurais e não se abra mais brechas para esse tipo de discurso mentiroso do inancismo. Como se não bastasse esse tipo de problema a enfrentar, o governo realizou uma outra aposta equivocada e se aventurou pelas trilhas perigosas da desoneração da contribuição previdenciária sobre a folha de pagamentos. Ao ceder a mais essa antiga reivindicação do capital, a equipe econômica termina por expor de forma irresponsável o conjunto do RGPS ao risco de desequil íbrio no futuro. A alíquota de 20% sobre salários que as empresas devem recolher à Previdência Social foi substituída por uma receita derivada de outra alíquota (entre 1% e 2%, variável de acordo com os setores) incidente sobre o faturamento. Ocorre que o volume de recursos arrecadados por essa nova fórmula de cálculo tributário é mais reduzido que a antiga contribuição sobre a folha. Regulamento posterior prevê que o Tesouro Nacional pro mo va uma co mpensa ção ao RGPS po r conta dessa perda
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de receita. Mas o ajuste é incerto e só se efetua a cada 4 meses. Com isso, a previdência social é claramente prejudicada. De início, as autoridades governamentais haviam anunciado essa novidade como uma experiência piloto, bastante pontual e localizada. A ideia era avaliar o impacto da mudança, seja em termos dos custos das empresas como da arrecadação para os cofres da previdência. No entanto, as pressões se ampliaram e a falta de irmeza do governo permitiu que a mudança fosse rapidamente generalizada por muitos setores da economia. Cada vez mais representantes de empresários de setores não contemplados com a novidade clamam para verem suas atividades também incluídas na lista das benesses. E esse movimento de incorporação crescente de novos ramos à sistemática de tributação sobre o faturamento pode provocar um desajuste no atual equilíbrio do RGPS. Há uma série de estudos demonstrando que as iniciativas adotadas pelo governo de desonerar o capital não tem provocado os efeitos econômicos desejados. Além da desoneração da folha de pagamentos, houve medidas na área de IR, IOF, IPI, PIS/Coins e outros tributos. Os preços dos produtos e dos serviços não foram reduzidos no montante que se esperava e o fenômeno mais relevante foi a elevação da margem de ganho das empresas. Além disso, outro fato a ser sublinhado é que a estrutura tributária em nosso país continua com sua característica acentuadamente regressiva. Isso signiica que as camadas da população que auferem os mais baixos níveis de renda são exatamente aquelas que mais pagam impostos, em termos proporcionais. Como a maior parte dos tributos incide diretamente sobre a compra de bens e serviços, os mais pobres recolhem ao isco o mesmo valor que os ricos quando compram um litro de leite ou um pãozinho na padaria, quando pagam a fatura de eletricidade ou quando utilizam o transporte coletivo. Por outro lado, as alíquotas de imposto de renda beneiciam os que ganham muito acima dos limites e que contam todo tipo de abatimento no momento da declaração anual. Finalmente, a resistência em regulamentar o Imposto sobre Grandes Fortunas soma-se às sucessivas facilidades para renegociar as dívidas das grandes empresas junto ao isco. Em suma, a política generalizada e não planejada de desoneração tributária beneicia muito mais aqueles que dela não precisam. E, no caso da previdência social, corre o sério risco de promover um desequi líbrio em um regime que consegue se manter como pilar importante da redução das desigualdades e da distribuição menos injusta da renda. 108
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Pá de cal na reforma agrária
Zander Navarro sei o mesmo título em artigo publicado em 1986, indignado
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com a afronta do governo Sarney ao nomear um latifundiário para o Incra. Naquela década me envolvera no ativismo a favor da reforma agrária. Não obstante o anúncio pessimista, o esforço do conjunto de militantes contribuiu para animar a única política de redistribuição de terras já feita no Brasil, iniciada em 1996. Desde então, em torno de 1 milhão de famílias recebeu suas parcelas e aproximados 80 milhões de hectares foram arrecadados para constituir os assentamentos rurais – mais de três vezes a área de São Paulo. Mantenho o título acima porque é preciso reconhecer desapaixonadamente o fato, agora deinitivo: morreu a reforma agrária brasileira. Falta apenas alguma autoridade intimorata para presidir a so lenidade de despedida. Atualmente a ação governamental nesse campo é um dispendioso e inacreditável faz de conta, sendo urgente a sua interrupção. Muitos motivos feriram mortalmente a reforma agrária, mas alguns são mais reveladores. O primeiro é de cristalina obviedade, mas muitos ingem ignorá-lo: nenhuma política pública é eterna, pois se conforma às contínuas mutações da sociedade. O tema foi popular nas décadas de 1950 e 1960, e surpreendeu que na virada do século o Brasil patrocinasse uma vigorosa redistribuição de terras, um caso raro no mundo. Mas é particularidade que se esgotou. Seria sensato manter essa política indeinidamente, quando o antigo país agrícola e agrário passou a ser conduzido pela l ógica econômica e cultural das cidades, atraindo os migrantes rurais? A mudan ça espacial de moradia, de trabalho, de formas de vida e tamb ém de mentalidades da vasta maioria da população, no último meio século, liquidou a necessidade de democratizar a distribuição fundiária e sua demanda sumiu da agenda pol ítica, corroída pela acelerada urbaniza ção. Outro fator a ser considerado diz respeito às organizações que demandam reforma agrária, responsáveis pelas pressões que ativa109
ram esta recente ―bolha‖ redistributiva. O MST agoniza simultaneamente ao desaparecimento da reforma agrária, a razão de seu nascimento. Não soube refundar-se nessa nova fase do desenvolvimento agrário e vai se apagando melancolicamente. Seu consolo é que fará boa igura nos livros de História. E a Contag, poderosa em razão de sua capilaridade, insiste na bandeira empurrada somente pela tradi ção. Seus dirigentes sabem ser outro o maior desaio: tentar salvar da desistência os milhares de pequenos produtores ameaçados pelo acirramento concorrencial instalado no campo. Uma outra razão a ser considerada decorre do desempenho da agropecuária no mesmo período, o qual inundou os mercados com volumes crescentes e, graças ao espetacular aumento da produtividade, barateou os alimentos. Tal transformação eliminou o velho argumento econômico da necessidade da reforma agrária e, se a população rural mais pobre migrou para as cidades, igualmente a justiicativa social deixou de existir. Mas há ainda um aspecto decisivo: oferecer uma parcela de terra a famílias rurais não produz mais nenhum efeito prático, apenas garante uma sobrevida temporária. Em nossos dias, chegar à terra própria nada signiica para os mais pobres do campo. Produzirá a chance do autoconsumo ocasional, antes do abandono deinitivo da terra, como evidenciado na maioria dos assentamentos rurais. De fato, trata-se de dura vilania política, pois, enquanto a miséria no campo se esconde atrás das muletas das políticas sociais, o governo federal coleta números destinados meramente ao autoelogio. Por tudo isso, a reforma agrária brasileira concluiu o seu ciclo de vida. Do ponto de vista econ ômico e produtivo, seu f racasso é assombroso, pois a área total dos assentamentos é maior do que a área plantada de todos os cultivos nos demais estabelecimentos rurais. Mas, com surpresa, nada sabemos especiicamente sobre a produção dos assentamentos, enquanto a agricultura brasileira se tornou uma das mais eicientes do mundo. É um confronto estatístico que desmoraliza qualquer defesa de tal política. Persistir em sua continuidade, portanto, beira a completa insanidade. E o Incra e seu gigantesco or çamento, tornado in útil sob tal desenvolvimento? O caminho lógico seria a sua extinção, mas talvez fosse adequado transformá-lo num instituto de terras que realizasse as ―tarefas inais‖, como a deinitiva emancipação dos assentamentos, retirando a tutela do Estado, a regularização fundiária ou a organização das ainda iccionais estatísticas cadastrais que diz compilar.
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Zander Navarro
Já o Ministério do Desenvolvimento Agrário, preso à sua anacrônica hibernação, mantém-se impassível ante a notícia acima e persevera em fantasias para justiicar o clamoroso desperdício de vultosos recursos públicos, na tentativa de realizar o irrealizável. Ainda mais espantoso, tenta ressuscitar o que já morreu. Resta saber se a autoridade maior do país terá a coragem de inalizar este capítulo de nossa História. Distintos são os desaios atuais para criar prosperidade e oportunidades no campo. Requer aceitar que a pobreza rural se resolverá, sobretudo, nas cidades e com outras políticas. E também que não existem soluções exclusivamente agrícolas para parte considerável dos estabelecimentos rurais de menor porte. Portanto, é preciso construir uma estratégia de desenvolvimento rural radicalmente inovadora. Mas para isso é preciso primeiramente abrir as mentes, pois a ortodoxia e a ideologização dominantes nos deixam sem rumo algum. Enquanto isso, airmam-se o esvaziamento do campo e a incontrastável dominação da agricultura de larga escala modernizada e integrada aos mercados mundiais. Eis o nosso futuro rural: uma fabulosa máquina de produção de riqueza, mas fortemente concentrada, pois seria assentada num deserto demográico.
Pá de cal na reforma agrária
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V. Batalha das Ideias
Autores Flávio R. Kothe Professor titular de estética na Universidade de Brasília.
Gian Luca Fruci Pesquisador de História Política da Universidade de Pisa.
Michel Zaidan Filho Professor do Departamento de Hist ória da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), publicou vários livros sobre a história do PCB (um deles, com o pref ácio de Leandro Konder) e organizou coletâneas sobre os fundadores do PCB. É coautor de História do Marxismo no Brasil (Paz Terra, 1991).
Teologia e política: registros rápidos
Flávio R. Kothe I. Da democracia representativa A democracia se funda na suposição da igualdade de todos os seres humanos, embora se perceba, ao se olhar de perto, que sua igualdade é a de todos serem diferentes. Quanto mais de longe se olha, mais iguais se tornam. A igualdade parece resultar de uma falta de acurácia no olhar, enquanto as diferenças parecem resultar da ênfase a dessemelhanças que poderiam, de outra perspectiva, passar desapercebidas. As cláusulas pétreas das Constituições são como traumas neuróticos: pontos problemáticos, nos quais não se quer tocar. As demonstrações de rua recentes no Brasil colocaram em questão a democracia representativa. Com o desenvolvimento da internet, decisões políticas básicas poderiam ser tomadas pela população, cabendo à casta política apenas fazer os detalhamentos, em vez de ser, não importa qual o regime, instrumento da minoria para sugar em proveito próprio o trabalho da maioria. As aristocracias baseavam-se na crença da desigualdade inata dos homens. Entre os gregos, acreditava-se que os aristocratas tinham sangue divino, por serem descendentes de algum deus ou deusa, o que lhes daria atributos superiores e o direito a governar, ter gado, cidades e gente. Esse ―sangue azul‖ derivava de relações sexuais entre seres que se distinguiam por serem mortais os humanos e imortais os deuses. De resto, eles se pareciam muito, no aspecto físico e no modo de ser. O Olimpo era um espaço reservado a deuses belos. Os feios estavam condenados às forjas dos vulcões ou eram expulsos. Nesse paradigma, não haveria espaço para um Cristo cru115
ciicado. Os deuses eram vitoriosos, ainda que alguns pudessem sofrer derrotas ocasionais. O cristianismo se propagou, na Roma antiga, com sua ética antitética à do patriciado, como religião dos escravos, que se sentiram valorizados por crerem ter uma alma imortal, serem criaturas de Deus, irmãos em Cristo, descendentes de Adão e Eva. Ainda que se diga que democracia se baseia na crença nessa igualdade e que o socialismo quis tornar a igualdade um fato social e não apenas um formalismo jurídico, ica difícil explicar como o cristianismo conseguiu conviver durante vinte séculos com a desigualdade social, tendo a Igreja Católica apoiado aristocracias, monarquias, ditaduras e escravismos. Apoiava e era apoiada por.
II. Do igual e do diferente Mãe de cinco ilhos, uma avó me disse mostrando a mão: ―Olha essa mão. Da mesma palma saem cinco dedos, e cada um é diferente dos outros. Assim também é com os ilhos‖. Para quem olhar de perto, os dedos são bem diferentes; quando olhados de longe, os detalhes desaparecem e tudo parece igual. Quando estamos dominados por problemas do cotidiano, é bom olhar a noite estrelada, para ver como eles encolhem enquanto descobrimos nossa pequenez e fragilidade. A matemática, que dá fundamento às ciências exatas, iguala o semelhante e esquece a diferença. Dois ninhos com dois ovos cada não são o mesmo que um ninho com quatro ovos, mas para a matemática 2 + 2 = 4. Ela reduz a realidade ao quantitativo, esquece a qualidade e que nem sempre uma quantidade igual é equivalente. A origem grega do termo ―matemata‖ signiicava aquilo que se pode entender e transmitir. Como o mais fácil de contar é a contagem, ―matemata‖ virou matemática, a lógica formal dos números. Até Deus nos tempos modernos deixou de ser sarça ardente e uma igura antropomórica para se tornar a ininitude, um símbolo matemático. Nietzsche dizia que quando se soma um homem e uma mulher, muitas vezes o resultado pode ser três ou quatro (como poderia ser um, zero ou oito). A lógica formal numérica gera contradições. A diferença entre um e zero parece um, mas, olhando mais de perto, h á uma ininidade de números possíveis entre ambos, de maneira que teríamos que um é igual a ininito. Se ampliarmos o n úmero de lados de um pol ígono, quando se chegasse à ininidade de lados teríamos uma esfera, que já não tem mais lado nenhum, de maneira que se teria ininito igual a 116
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zero. Seria possível supor também que a esfera tem dois lados, o de fora e o de dentro, e zero seria igual a dois e a ininito. Supõe-se que as ciências humanas sejam menos exatas que as exatas. Como estas se fundam na inexatidão matemática, talvez se deva ouvir a convicção de artistas de que, ao comporem uma obra, embora partam de uma multiplicidade de possibilidades, quanto mais avançam o trabalho mais icam convencidos de que só há um modo certo de fazer um traço, colocar uma cor, escrever uma palavra. Há um rigor na arte que é tão exigente quanto um cálculo de estrutura. Quando não é cumprido, a obra sucumbe ao seu projeto. Mesmo no jogo de xadrez, sempre há uma jogada que acaba se mostrando melhor que qualquer outra possível. Alberti dizia que uma arquitetura perfeita é aquela em que não se pode tirar nem acrescentar nem mudar nada sem que o resultado se torne pior do que a obra que aí está. Isso depende, porém, da tecnologia possível. Quando ela muda, novas execuções se tornam possíveis. O que é do gosto de um tempo e lugar se torna absurdo para outro. É preciso haver abertura para diferentes modos de encarar as coisas. Há modos diversos de raciocinar. Por mais que se procure acertar, cometem-se erros. Muitas vezes os piores erros são cometidos quando há um máximo de preocupação em acertar. Não se conhecem nunca todos os fatos presentes nos fatos nem se podem antecipar todas as consequências de decisões. Pode haver até acertos no erro, como há erros em acertos. A democracia se bas eia no princ ípio da igualdade entendido como igualação de todos. Na teoria, hoje não existe mais voto qualiicado pela riqueza; na prática, há eleitores que valem mais. O princípio da igualdade poderia ser entendido, porém, como o reconhecimento da desigualdade do desigual, com o direito da diferen ça ser diferente. Havendo tolerância com a diversidade, o resultado geral é uma riqueza maior do que se uma parte eliminasse as diferen ças do resto. A demo cracia envolve uma nova compreensão do que seja a verdade: não mais a autoridade de um, mas um exercício da liberdade da coisa aparecer como ela é e o sujeito permitir que isso apareça para ele.
III. Morte assistida Não só por ser o Brasil um país de formação católica, mas por ser um tema singularmente difícil e desagradável, não se tem tido um debate público, que é corrente na Europa Ocidental, sobre o direito à morte assistida. Será a vida um direito ou uma obrigação? Sob o Teologia e política: registros rápidos
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pressuposto de que ela seja um direito, acaba-se fazendo dela uma obrigação. O Estado é obrigado a zelar, por exemplo, para que um preso não se suicide na cadeia. Então, a vida é uma obrigação. Se o cidadão tem na vida um direito personal íssimo, como o nome e a identidade, ele deveria ter também o direito de abdicar desse direito, dizendo que não quer mais viver. Na pr ática, é isso o que fazem os suicidas, e ninguém tem nada a dizer ou fazer. A religião católica e a judaica punem esses mortos proibindo que sejam enterrados no cemitério. Para o morto, isso não faz diferença: punem-se os familiares, como se fossem culpados. Eu tenho um tataravô, que se suicidou por não aguentar as lembranças da Guerra do Paraguai, perdido até hoje no meio do mato: faziam uma cova rasa debaixo do galho em que estava a corda e deixavam cair o corpo. Optar por viver ou n ão faz parte da liberdade do cidadão. O Estado não pode decidir por ele, assim como o Estado não pode decidir por sua morte, ao menos não, oicialmente, em países nos quais não há a pena de morte. Geralmente, os suicidas não têm liberdade. Estão eles de tal maneira assolados por um aspecto da vida que confundem essa parcela com a totalidade. Eles são dominados por uma sinédoque, que eles nem sabem qual é. Não têm domínio sobre si, portanto não estão exercendo a liberdade. O impulso para a morte é neles mais forte que o instinto vital. Freud propunha a tensão entre ―Eros‖ e ―Thanatos‖, o impulso de vida e o impulso de morte. Nas batalhas da vida parece prevalecer o primeiro, mas com a vitória inal do segundo. O homem quer que essa derrota seja uma vitória. Prefere ir para o inferno a não ir para lugar nenhum depois de morto. Os que abusam de drogas e bebida a pretexto de aproveitar a vida estão, de fato, se destruindo aos poucos: são suicidas acovardados. Na Antiguidade clássica, um guerreiro que agisse contra a sua coletividade, um general que perdesse uma grande batalha, um governante que visse o seu palácio invadido pelo inimigo, todos se sentiam no dever de se suicidar ou pedirem a um amigo que o liquidasse. Hércules, ao não mais suportar a dor de se ver queimando vivo, pediu ao ilho que o matasse; tendo o ilho se recusado a fazê-lo, o herói deu seu arco e suas lechas infalíveis a quem se prontiicou a auxiliá-lo na eutanásia. O suicídio era visto aí como ato de grandeza, uma prova de virtude. Em geral, os suicidas não são dignos dessa virtude antiga. Em vários países europeus, já existe o direito de o cidadão deixar disposto que, em circunstâncias extremas, sua vida não seja manti118
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da artiicialmente por aparelhos ou que, em caso de doença grave irreversível e dores insuportáveis, ele tenha o direito à morte assistida. Uma junta médica faz a avaliação do paciente, para decidir se ele deve ser aliviado deinitivamente dos sofrimentos. Aqui o médico seria criminalizado. Por menos que se queira fazer uso dessa possibilidade, para muitos é um consolo pensar que, numa situação sem retorno, ele possa deixar disposto contar com esse auxílio. A vida que temos é a única certeza que temos. Certo é também que iremos perdê-la. Vida sem nenhuma qualidade não vale a pena ser vivida. Ela pode se tornar um fardo tão pesado que morrer se torna um alívio para todos. Nem os que acreditam numa vida após a morte costumam ter a coragem de se tornarem mártires para ganhar o céu nem gostariam de usar uma doença grave para, com todos os ritos, se encaminharem para a eternidade. No convento cisterciense de Bad Doberan, na beira do Báltico, os monges medievais viviam apenas 22 anos em média. Faziam grandes jejuns, madrugavam para orar e laborar. Em compensação, bebiam três a quatro litros de cerveja por dia. Tanta cerveja em estômago ralo permite ver aparições celestiais entre os hinos. O céu, nessa concepção, tinha lugar para muitos. O importante não era viver, e sim salvar a alma. Nós procuramos médicos e tratamos de cuidar do corpo, pois sabemos que a mente é atividade cerebrina. Não estamos em geral dispostos a nos embalar na crença de que uma religião nos religa ao céu e nos evita os quintos do inferno. Quer se assuma isso ou não, na prática, na prioridade entre o céu e a terra, entre o ininito e a initude, opta-se pelo segundo termo, esperando que se converta em alguma forma do primeiro. Nessa época de grandes catequeses, quer se queira ou não, está-se vivendo o que a tradição ilosóica de Hegel e Nietzsche tem chamado de ―morte de Deus‖. Hegel queria dizer com isso que, ao olhar ao seu redor, em Berlim, há duzentos anos, percebia que a religião já não desempenhava função básica nas decisões e no modo de existência das pessoas. Nietzsche levou mais long e, falando da revers ão de todos os valores, a partir de uma revisão radical da visão de mundo. Em países como Inglaterra, Holanda e Alemanha, milhares de igrejas estão sendo desmontadas e vendidas simplesmente por falta de ieis. Muitas estão sendo convertidas em restaurantes, ringues de patinação, casas de espetáculos, moradias. Os objetos de culto estão sendo vendidos para países do Leste europeu. Dessa perspectiva, o espetáculo de milhões de ieis na praia querendo sentir-se perto de Teologia e política: registros rápidos
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Deus tende a ser visto como demonstração de atraso coletivo que de progresso da razão crítica. Embora os crentes estejam buscando seu aperfeiçoamento, será que não estão reforçando o dogmatismo?
IV. In God we trust Nos dólares americanos está escrito: ―In God we trust‖ (em Deus coniamos). O que tem Deus a ver com a nota de dinheiro? Será ele quem valida todas as relações entre as pessoas, dá um retorno imediato como uma nota de dinheiro? Soa estranho que os homens esclarecidos que fundaram os Estados Unidos tenham apelado para um Deus que os iluministas e cientistas do século XVIII normalmente dispensavam como hipótese para explicar o universo. No máximo, aceitavam que a religião era um mal necessário porque a maioria da população não saberia se comportar bem sem ter a ameaça de um inferno e uma divindade disposta a punir os pecadores. De que Deus se está aí falando? Ainda que os católicos tenham sido uma minoria entre os americanos, parece que se está falando de um Deus-Pai cristão, que descende de Jeová, mas não é o mesmo, pois este não tinha ilho e era só de um povo. Também não é o Deus de Maomé. Parece não ser o Jesus dos sentimentos fraternos nem o Espírito Santo a iluminar os espíritos e propor uma nova era para a humanidade, a suceder o mundo cristão, o império de Cristo. Se os pais da pátria eram maçons, esse God seria o arquiteto do universo, um deus de novo diverso. Em 1968, numa palestra dada no Centro Acadêmico da Faculdade de Direito da UFRGS, o palestrante, que era de origem judaica, foi violentamente atacado por membros da comunidade judaica de Porto Alegre, porque havia postulado a tese de que Israel era o braço armado dos Estados Unidos na região. Eu não sei se Israel é um protegido dos Estados Unidos ou se estes são dominados por ele: o God das notas seria então antes Jeová do que Deus-Pai. Talvez convenha a confusão. Na fala de Obama na ONU, foi impressionante o seu tom imperial. Ele negocia só se quiser. Os americanos têm procurado se apresentar como campeões da liberdade e da democracia, mas encheram a América Latina de ditaduras que desgraçaram mais de uma geração. Em todos os cantos do planeta, eles se metem na vida de outros países, sem respeitar sua soberania, sua capacidade de decidir internamente qual o governo que lhe serve. Eles constroem porta-aviões e foguetes intercontinentais caríssimos, estão mantendo bases militares há dezenas de anos 120
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no Japão, na Espanha, na Alemanha e assim por diante, como se tivessem sido convidados. É de se icar admirado que eles tenham saído de suas bases no Nordeste brasileiro. O governo americano se dá o direito de intervir em qualquer país cujo governo não lhe agrade, de enviar seus drones fazendo matanças onde quer que suspeitem poder haver um suposto inimigo, de espionar o que qualquer pessoa, em qualquer parte do planeta, escreva ou pesquise em seu computador. Suas embaixadas estão recheadas de agentes de informação disfarçados de diplomatas, a National Agency of Information tem mais de 40 mil funcionários e consegue armazenar e avaliar tudo o que passa pela internet. Estamos protegidos diante disso? Seguramente não. Se um par de adolescentes izer uma brincadeira de mau gosto sobre bombas e atentados, sua segurança estará a perigo, onde quer que estejam. A espionagem na Petrobras mostrou que é apenas uma desculpa esfarrapada dizerem que só buscam informações para evitar atentados. O monopólio de informações é uma garantia de poder para o Estado. Na geração dos jovens americanos que se recusaram a ir como soldados para a guerra do Vietnã, muitos tiveram de emigrar para outros países ou viver como clandestinos para não serem presos. Há alguns anos, consegui uma lista de pessoas com o meu sobrenome e que haviam emigrado da Alemanha para os Estados Unidos. Numa família pequena, havia mais de trinta homens que haviam morrido nas várias guerras dos americanos: Primeira Guerra, Segunda Guerra, Camboja, Vietnã. Hoje a lista seria ainda maior, com as guerras que a indústria armamentista americana ica inventando para ter mais lucros. O or çamento militar americano é maior que os dez maio res seguintes juntos. O povo da Silésia, origem da família, foi extinto com a política de Hitler. O que representa God, para que se possa coniar nele? Ele representa a vontade de saber tudo, de estar em toda parte, de poder tudo. O conceito de onipotência contém uma contradição interna, pois o poder é a capacidade de se sobrepor a resistências. Um ser onipotente, a quem nada nem ninguém há de resistir, não pode ter noção de quanto poder ele próprio tem. O saber é um esforço para vencer a ignorância: quem já sabe tudo, não tem nenhuma ignorância a superar. Ele não pode sequer saber o que sabe, o que o torna autocontraditório. O saber sempre é limitado. Quem está por toda parte tem de ser tudo o que há, não pode icar fora de nada que existe. Se ele é tudo, ele é alguém que não é ninguém: um ser onipresente não consegue sair de si, se torna o seu próprio prisioneiro. Ou ele é o universo inteiro, ou está fora dele. Se estiver fora, não pode ser ininito, Teologia e política: registros rápidos
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pois seria ele, menos o universo; se for o universo, cai-se no panteísmo de que tudo é divino e maravilhoso. Essa discussão já tem mais de duzentos anos na ilosoia. Os americanos declaram coniar em Deus, mas construíram a coniança só em si mesmos: dão-se ao direito de bisbilhotar tudo, serem oniscientes; se meter por toda a parte, serem onipresentes; impor sua vontade onde quiserem, serem onipotentes. Eles querem ser Deus. Tendo alcançado a hegemonia sobre a Terra, o planeta já não lhes basta. Querem o universo inteiro. Só que este é ininito, não uma elipse que dá volta sobre si e que se poderia controlar. Em quem quer ser Deus não se pode coniar.
V. Na Catedral da Sagrada Família Quando cometemos um erro, geralmente não o percebemos como erro. Há quem faça o errado de modo intencional, mas costuma então inventar um jeito de torná-lo um acerto. A vida é má: ela sobrevive da morte da vida alheia. Há muito a ilosoia diz que o homem é mau por natureza; o marxismo achava que ele se torna malvado pela m á sociedade de classes, bastando corrigi-la para que nele aparecesse um anjinho a bater asas. As religiões cristãs acham que o homem nasce mau, com o pecado original, mas que com água miraculosa e algumas palavras mágicas ele vira a promessa de um santo. Todos estão se comovendo com as fotos do herdeiro do trono ingl ês sendo batizado. Que se queira acertar não evita, no entanto, as sequelas do erro que foi feito com as melhores intenções. Por isso se diz que de boas intenções o inferno está cheio. Seria bom se assim fosse: um morto é que teria de pagar a dívida. Elas tornam, porém, um inferno a própria vida do bobo bem intencionado. Quando alguém cobra um pênalti, logo percebe se a cobrança foi mal feita, mas ele não pode mais fazer nada. A bola continua voando para onde não deveria. Resta a esperança de que em outra ocasião o resultado seja melhor. De boas intenções se faz um céu. Quanto maior, mais ele pesa sobre o sujeito, esperando ser alcançado. O herói trágico é um bom sujeito, que quer fazer tudo certo e, quanto mais se esforça, mais cava a própria cova. Nas execuções sumárias em operações bélicas, condenados à morte foram muitas vezes forçados a cavar a própria cova. Se o sujeito vai morrer de qual quer modo, será que ele deve ainda facilitar a vida do carrasco ou o mínimo de dignidade seria se recusar a fazê-lo? Cavar a cova pode retardar a execução, alimentar a ilusão de que uma legião de anjos 122
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ou uma cavalaria venham trazer a salvação. Não adianta dividir cada momento em dois, para provocar a ininitude do tempo: o relógio é inexorável, o carrasco tem mais coisas a fazer. Dito em outros termos: a criança que era forçada a buscar a vara com que seria açoitada pelo pai ou pela mãe, deveria ela recusar-se a fazer isso, e apanhar dobrado? De quem ela poderia esperar socorro? Da avó, do tio, do juiz, da polícia? Ninguém se metia. Havia na minha região natal reproduções baratas da tela A última ceia, de Leonardo da Vinci, atrás da qual icavam as varas de marmelo ou pereira, para dizer que naquela casa família e ordem eram sagradas. Nas colônias alemãs do Sul, já em 1849 a escravidão estava abolida. Como os colonos tinham cavalaria, os ulanos, e infantaria, os escravos das fazendas ao sul do Jacuí fugiram para o meio deles. Como quem não trabalha também não come, os colonos, não tendo escravos, tinham atitudes de quem escravizou os ilhos. Não podiam vendê-los nem matá-los, conforme previa o Direito Romano, mas decidiam até casamentos. Quando criança, eu mesmo vi amiguinhos sendo açoitados por não terem ―feito a obrigação‖. Brincar não era propriamente um direito. Quando em agosto de 2013, visitei a Catedral da Sagrada Família projetada e construída por Gaudí, em Barcelona, estranhei que ninguém estranhasse o sagrado dessa família: o pai não era o pai (daí que José, no México, vira Pepe, de pater praesumptus, PP, o pai pre sumido, como se registrava nos catecismos para não esquecer que Jesus era ilho de Deus), a mãe não havia sido iel ao marido (que não podia ter intimidades com ela, donde que) e, a essa altura do campeonato, o ilho era... Nietzsche disse que como Deus tudo pode, não precisaria cumprir os próprios mandamentos. Faltou anotar que Jeová também já não havia cumprido o primeiro mandamento, aquele que diz que ele icaria muito zangado com quem não respeitasse as crianças e proibia ainda que se izesse escultura ou imagem de qualquer ente que estivesse na água, sobre a terra ou nos ares: ele próprio mandou fazer, poucos depois, a escultura de uma serpente para curar picadas venenosas. Ainal, vacinas nem sempre são eicazes e às vezes, por um bem maior, é preciso rever o que se disse. Na catedral, após pagar vinte euros de entrada para cada um de nós, iquei pensando com meus botões, enquanto junto com um médico socorria uma estudante da UnB que, sob o sol inclemente, havia desmaiado ao meu lado na imensa ila da entrada: como se justiicaria essa construção quando se espera que a arte transmita a verdaTeologia e política: registros rápidos
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de? Qual era sua verdade? Se o modelo de família era esse, nenhum pai poderia querer um ilho do qual fosse genitor nem aceitar companheira que lhe fosse iel. O sagrado é modelar e deve ser seguido. Minhas luzes eram fracas, mas a arquitetura era impressionante. Enquanto eu andava sem luzes em meio às lindas cores advindas dos vitrais, lembrei -me do Evangelho de Maria, considerado ap ócrifo, em que José, ao voltar de uma longa ausência, encontra a esposa grávida e, indignado, dá-lhe uma surra. Logo depois é intimidado por um enviado do Sumo Sacerdote. Ora, Zacarias havia pecado gravemente: supremo encarregado de manter os preceitos, ele se engraçara com essa virgem do templo. Anjo quer dizer enviado. Para acalmar José, que temia os sacerdotes, Zacarias prometeu zelar pelo herdeiro. Depois icou mudo por um ano. Anos mais tarde foi assassinado por um grupo de sacerdotes de outra facção. Acabou sobrando para o ilho, que poderia tentar uniicar o governo sacerdotal com o civil e militar, numa rebelião dos judeus contra o domínio romano. Política, política. Eterno retorno do mesmo. Ah, a jovem se recuperou bem. Há dias passou por mim lépida e fagueira.
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A história (in)inita da democracia direta
Gian Luca Fruci expressão ―democracia direta‖ e o horizonte (imaginário) de
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participação política historicamente vinculado a ela reingressaram fortemente no discurso público italiano graças ao formidável aspirador – e, ao mesmo tempo, anestesiador – de movimentos sociais representado pelo ―Movimento 5 Estrelas‖ (M5S), que canalizou as mais diversas mobilizações da última década numa narrativa consoladora do ―povo virtuoso‖ em luta irredutível contra a ―casta política‖ e o seu principal articulador novecentista – a forma-partido –, respondendo com um discurso abrangente, tradicionalmente nem de direita nem de esquerda, às demandas difusas de transformação social e política. A hibridização entre retórica antipolítica, ou mais precisamente contra a política, e direitismo procedimental é, por sua vez, um desdobramento fundamental da constelação discursiva que contesta, desde as origens, a democracia representativa, contrapondo a esta a simplicidade e a evidência ―objetiva‖ de soluções alternativas baseadas na ausência de delegação e no envolvimento imediato (e contínuo) dos cidadãos na gestão da coisa pública. Na França, logo após a desilusão com a primeira experiência europeia de sufrágio universal direto (masculino) – que levou, em abril de 1848, à escolha de uma Assembleia Constituinte moderada e, em maio de 1849, ao triunfo eleitoral dos conservadores –, o universo republicano derrotado mergulhou, entre a primavera de 1850 e o verão de 1851 (portanto, bem antes do golpe de Estado do príncipe-presidente Luís Napoleão Bonaparte), num amplo debate que identiicou aquilo que, na linguagem da época, se chamava de ―representomania‖ como principal responsável por um resultado considerado não apenas imprevisto, mas também (e sobretudo) inconcebível do exercício eleitoral da soberania popular. Plus d’élections, plus de représentants du peuple intitulava-se signiicativamente um opúsculo, que reapresentava a velha ideia de sorteio dos deputados, enquanto naquele contexto, não à toa, apareceram pela primeira vez expressões como ―governo direto‖, ―legislação direta‖ e ―democracia direta‖, desconhecidas do 125
vocabulário político da Revolução Francesa e da primeira metade do século XIX. 1 Termos sinônimos utilizados para imaginar um novo regime político, baseado fundamentalmente na inversão do pressuposto conceitual (e funcionalista) que sustentara até 1848 a reivindicação do voto universal: o ―povo eleitor‖ reunido em assembleia não é capaz de se autogovernar, mas sabe perfeitamente escolher os melhores e os mais sábios como governantes.2 De fato, a ilosoia de governo direto prevê que o ―povo eleitor‖, considerado propenso a se enganar e a ser enganado quanto às pessoas, seja substituído pelo ―povo legislador‖, que, graças ao seu bom senso, não pode se equivocar quando discute ideias, princípios, interesses, e é levado naturalmente (e facilmente) para a deliberação sobre textos e quadros normativos. A formulação da democracia direta se coloca, portanto, no quadro de uma hipersimpliicação do político, que se recusa a pensar não só a representação, mas também (e sobretudo) o Poder Executivo, denunciado como usurpador da soberania popular, e no âmbito de uma harmonia destituída de conlito, que subentende a unanimidade em nome da obviedade objetiva das decis ões. Na Itália, onde a crítica ao parlamentarismo do período liberal tem como correspondente simétrico a condenação à partidocracia da época republicana, o nexo entre contrapolítica, apelo ao povo (na forma soisticada da ―sociedade civil‖ ou na versão comum das ―pessoas‖) e democracia direta aparece, se possível, ainda mais forte, emergindo recorrentemente em diversos momentos de crise da história pós-unitária.3 Isto é visível precisamente na trajetória editorial do principal texto teórico que, na Península, se encarregou de pleitear a causa do diretismo, a saber, o pequeno livro do intelectual republicano-socialista Giuseppe Rensi, publicado pela primeira vez em 1902, na Suíça, logo em seguida à crise de inal do século, com o título Os antigos regimes e a democracia direta. Reeditada em 1926 com o titulo abreviado A democracia direta, após a tomada deinitiva do po1 Rosanvallon, P., La démocratie inachevée. Histoire de la souveraineté du peuple en France. Paris: Gallimard, 2000, p. 157 -79. 2 FRUCI, G. L., ―La banalità dela democrazia. Manuali, catechismi e instruzioni elettorali per il primo voto a suffragio universale in Italia e in Francia (1848-49)‖, in ROMANELLI, R. (org.), ―A scuola di voto. Catechismi, manuali e istruzioni elettorali fra Otto e Novecento‖, Dimensioni e problemi dela richerca storica , 1/2008, p. 17-46. 3 LUPO, S., ―Il mito dela società civile. Retoriche antipolitiche nella crisi dela democrazia italiana‖, Meridiana. Revista di storia e scienze sociale , 38-39/2000, p. 17-43; idem, Partito e antipartito. Uma storia politica dela prima Republica (1946-1978), Roma: Donzelli, 2004; idem, Antipartiti. Il mito dela nuova politica nella storia dela Republica (prima, seconda, terza), Roma: Donzelli, 2013.
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der pelo fascismo, que o autor havia considerado de maneira favorável por um breve momento, esta obra foi, por im, republicada pela editora Adelphi, sob os cuidados de Nicola Emery, tanto em 1995 quanto em 2010, concomitantemente com duas agudas – e, em muitos aspectos, análogas – conjunturas de contestação do sistema político e, consequentemente, da legitimidade da democracia representativa republicana fundada entre 1946 e 1948. 4 Não se sabe se o ex-cômico Beppe Grillo e o empresário Gianroberto Casaleggio alguma vez leram Rensi, que terminou sua carreira acadêmica como professor de Filosoia Moral na Universidade de Gênova, mas deve-se sublinhar que o discurso antipartido de ambos é perfeitamente simétrico à critica radical dirigida à classe política, que Rensi retomava, com o próprio conceito, de Gaetano Mosca, estudioso conservador e nostálgico da direita histórica e inquiridor polêmico ―de uma política expressiva não mais da sociedade civil, mas de si mesma – ou seja, da classe que vive de política‖.5 Nos seus textos programáticos, os dois colíderes do Movimento 5 Estrelas profetizam o advento iminente da democracia direta, apresentando-o como um produto inevitável da revolução digital em curso, que tornaria possível a realização virtual de um horizonte utópico de expectativas que perpassa toda a história da democracia moderna: a simultânea e imediata participação de todo o corpo político nas deliberações numa unidade de tempo e lugar, segundo o modelo mítico (e mitiicado) da democracia clássica.6 De fato, foi a partir da inviabilidade desta aspiração em espaços estatais de grandes dimensões que surgiu historicamente o discurso minimalista a favor da democracia representativa, apresentada como sucedâneo da desejada, mas irrealizável, democracia absoluta dos antigos. No imaginário ―cinco estrelas‖, a sacralização da ―rede‖ (grafada, com deferência, com ―r‖ maiúsculo) se conigura, assim, como a solução prática de uma aporia constitutiva da tradução procedimental da soberania popular, que parece tão mais eiciente quanto mais olha para o passado
4 RENSI, G., Gli anciens r égimes e la democrazia direta. Saggio storico politico, Bellin zona, Colombi, 1902; idem, La democracia direta, Roma, Libreria politica moderna, 1926. A obra foi também reeditada entre 1943 e 1945, respectivamente em Roma (pela renascida Libreria politica moderna, com o titulo Forme di governo del passato e dell‘avvenire) e Milão (pela Libreria editrice milanese, com o titulo Governi d ‘ieri e di domani). 5 LUPO, S., ―Il mito...‖, cit., p. 21-2 6 CASALEGGIO, G.; GRILLO, B., Siamo in guerra. Per una nuova política, Milão: Chiarelettere, 2011, p. 7 -15, 61-8; FO, D.; CASALEGGIO, G.; GRILLO, B., Il grillo canta sempre al tramonto. Dialogo sull ‘Italia e il Movimento 5 Stelle, Milão: Chiarelettere, 2013, p. 84-96. A história (in)inita da democracia direta
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e se projeta no futuro, deixando indeinida e problemática sua concretização no presente. Isto ocorre em per feita continuidade com a hist ória da democracia direta, que é principalmente uma narrativa (in)inita, reapresentada pelos seus diferentes speakers como sempre igual a si mesma e colo cada constantemente em outro lugar, temporal ou espacial (a Atenas de Péricles, a Comuna de Paris, a Rússia dos Sovietes, os Cantões helvéticos da Landsgemeinde, o Chiapas do subcomandante Marcos, o blog de Grillo). Em suma, o não lugar representado pela rede, com seus potenciais desenvolvimentos tecnológicos, assume hoje, para Grillo e Casaleggio, uma função mitopoética análoga à das Comunas medievais para Jean Charles Léonard Simonde de Sismondi (Histoire des républiques italiennes du Moyen-âge, 1807-1808), ou da ilha de Pasquale Paoli para Jean-Jacques Rousseau (Projet de Constitution pour la Corse, 1765). Hoje como ontem, o discurso da democracia direta se revela, portanto, eminentemente polêmico e antinômico, além de imaginário. Sua força não deriva da credibilidade dos modelos propostos ou mesmo só evocados. Deve seu sucesso quase exclusivamente à realidade que denuncia e proclama querer mudar profundamente, e extrai sua legitimação de uma ideia teleológica do desenvolvimento histórico, baseada, no século XIX, num racionalismo político de derivação revolucionária e, hoje, num superinvestimento nos poderes taumatúrgicos da ―rede‖. Entretanto, resulta paradoxal o fato de que o revival da democracia direta e a proposta de um paradigma de participação absoluta e contínua ressurjam – não apenas na Itália – precisamente quando a ilosoia e a historiograia política contemporânea reletem sobre a originalidade e o peril autônomo (e de modo algum derivado) da democracia representativa, a partir de autores liberais radicais como Condorcet e Thomas Paine, o qual, em 1792, escrevia signiicativamente que, ―se tivesse tido a representação‖, Atenas teria ―superado sua própria democracia ‖. 7 Faz tempo que, no plano te órico e tamb ém no histórico, a dicotomia entre a democracia dos antigos e a dos modernos pode-se dizer, de fato, superada em favor de uma ideia mais articulada da representação, que não se exaure no momento eleitoral, mas se conigura como um processo político complexo, capaz de integrar uma pluralidade de arenas participativas e estabelecer um canal contínuo de comunicação, condicionamento e vigilância entre representados e representantes. 8 Nesse sentido, é necessário traba7 Citado em URBINATI, N., Lo scettro senza il re. Participazione e rappresentanza nelle democrazie moderne, Roma: Donzelli, 2009, p. 11. 8 ROSANVALLON, P., La légitimité démocratique. Imparcialité, rélexivité, proximité, Pa-
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Gian Luca Fruci
lhar e inovar com fantasia criadora no plano institucional, tendo em conta que a democracia, antes de ter uma história, é ela própria uma experiência histórica e, portanto, um laboratório conceitual e prático do nosso presente a que se deve recorrer inventivamente para responder às tensões e às crises (velhas e novas) que apresentam os sistemas democráticos desde as próprias origens.9
Tradução: Alberto Aggio
ris: Seuil, 2008; URBINATI, N., Democrazia rappresentativa. Sovranit à e controlo dei poteri, Roma: Donzelli, 2010. 9 ROSANVALLON, P., ―L‘universalisme d émocratique: histoire et probl èmes‖, Esprit, jan. 2008, p. 104-20. A história (in)inita da democracia direta
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A propósito de uma resenha : um convite ao diálogo fraterno com Leandro Konder, a propósito da origem do marxismo brasileiro
Michel Zaidan Filho o volume nº 25, da revista Politica Democrática, publicação
N
periódica da Fundação Astrojildo Pereira, fui surpreendido com uma resenha, de autoria de Antonio Ianni Segatto, ilho do meu dileto amigo José Segatto, sobre o livro de Leandro Konder, A derrota da Dialética. O que mais chama atenção nessa resenha é o desconhecimento do autor em relação à história do PCB, em relação ao trabalho do Leandro Konder e em relação ao trabalho de seu próprio pai, Breve História do PCB (1980, LECH). Por uma feliz coincidência, tive a oportunidade de ler, na casa de Marco Aurélio Nogueira, nos idos dos anos 80, o manuscrito (ou o ―caroço‖, como dizia o próprio Leandro) daquilo que viria a se tornar depois a Tese de Doutorado do professor carioca. Esse texto era uma espécie de ―salvado‖ das andanças de Konder pela Europa, quando ele se exilou do país, durante o regime militar. Nessa condição, era visivelmente um texto inacabado, produto das vicissitudes típicas do exílio. Um rascunho que deveria ser melhorado, complementado e aprofundado com muitas outras pesquisas, a partir de fontes primárias (na Itália, na Alemanha Oriental e em Moscou) que naturalmente o Leandro Konder não pode ter acesso, antes de voltar ao Brasil. Digamos que ele permaneceu como um ambicioso protocolo de intenções, nunca terminado. Outra questão que o resenhista desconhece é a natureza ambígua do texto: é um ensaio, é uma tese, é trabalho de divulgação sobre a história das ideias socialistas no Brasil, na América Latina? Não se sabe ao certo. O que se sabe é que o trabalho padece de uma deinição de gênero: a tese é em ilosoia ou em história das ideias? Que tipo de história das ideias? Fora do contexto, sem contexto histórico, suspensas no céu da especulação ilosóica? Essas questões não só emperraram a defesa da tese, como determinaram a mudança de orientador na UFRJ. Para que fosse aceita na Filosoia, adotou-se a solução de compromisso de se acrescentar um verbete sobre a dialética, no início da tese, que já tinha sido escrita pelo Leandro, para a coleção ―que é‖... da Editora Brasiliense. Qualquer leitor mais avisado percebe 130
a costura que foi feita. O ―nariz de cera‖ dialético não se relaciona com o texto, de natureza histórica. Por ocasião da minha primeira leitura desse manuscrito, escrevi ao Leandro elogiando a graça e a leveza do estilo literário – característica dele, como excelente divulgador de temas espinhosos. Mas critiquei a pobreza da pesquisa histórica realizada, certamente em condições muito difíceis, pois toda a construção relativa à década de 1920 e ao nascimento do PCB, dependia do acesso a arquivos e documentos que só apareceram depois (documentos que estavam em Milão, em Leipzig e Moscou). Mais grave é a pretensão do autor de julgar quem nos anos vinte era ou não era dialético. Teria Leandro o monopólio da dialética em nossos dias para dizer que Brandão era positivista, Astrojildo era dialético. Caio Prado era dialético, Nelson Werneck Sodré, não. Claro que não. Isso seria uma total ausência de perspectiva histórica, anacronismo e presunção. Aliás, a pergunta que lhe dirigiram na banca examinadora foi se teriam sido melhores políticos os comunistas se tivessem sido – como o Leandro – melhores conhecedores da dialética. É evidente que não. Não obstante, se não fosse a presunção e a má-vontade do autor, poderia ele ter observado a originalidade do pensamento político dos nossos primeiros dirigentes comunistas, no âmbito do pensamento da Terceira Internacional Comunista. Mas o que faltou no trabalho de Leandro foi a generosidade intelectual e histórica para perceber que não se pode analisar a história a partir das obsessões intelectuais de nossa época pós-comunista (ou pós-stalinista). Leandro tinha uma premissa ilosóica, antes de abordar a história do PCB, e tentou prová-la a todo custo, utilizando a primeira década de experiência comunista no Brasil: a tese da subordinação do marxismo brasileiro ao stalinismo. Mas para isso não precisava fazer uma pesquisa sobre a história do PCB. Bastava copiar o texto de Lukacs sobre o stalinismo. Outra coisa muito diferente seria o difícil e paciente garimpo intelectual das intuições desse ―marxismo nacional‖ elaborado pelo primeiro núcleo dirigente do PCB e derrotado em 1929, pelo sexto congresso da Internacional Comunista. Esta parte, o nosso historiador-ilósofo vai icar devendo. E o nosso entusiasmado resenhista pode começar lendo o livro de José Antonio Segatto, seu pai, para começar a conhecer a história do PCB. A propósito, quando a Editora Anita Garibaldi republicou o op úsculo de Otávio Brandão, Agrarismo e Industrialismo, escrevi uma resenha sobre as opiniões do Leandro e uma defesa da originalidade da hermenêutica de Brandão, sobre a situação brasileira, intitulada: ―O Lênin que poderia ter acertado‖. É o que se segue abaixo. A propósito de uma resenha
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O Lênin que poderia ter acertado 1 Acabo de receber a boa notícia de que a Editora Anita Garibaldi, ligada ao Partido Comunista do Brasil, reeditou um dos primeiros clássicos das ciências sociais brasileiras: o opúsculo de Octavio Brandão, Agrarismo versus industrialismo. 2 Só se conhece uma edição precária dessa brochura, feita em 1926, para servir de base para a política de alianças do então Partido Comunista. De lá para cá, o historiador das ideias políticas ou socialistas no Brasil só podia se valer de exemplares fotocopiados guardados a sete chaves nos arquivos do movimento operário brasileiro. Anos atrás, me encontrei com o Valter Pomar no Aeroporto do Recife (PE), que naquela ocasião manifestou o interesse da editora Anita Garibaldi em reeditá-lo. Eu disse que concordava inteiramente com o interesse dele e da editora, porque considero desde muito tempo o livrinho de Octávio Brandão ―um clássico do marxismo brasileiro‖, apesar da discordância de amigos e camaradas, como, por exemplo, Leandro Konder, com quem troquei amistosas cartas em torno do assunto, quando ele estava terminando sua tese de doutorado. De fato, há muitos anos que tive o trabalho de recuperar ou ―garimpar‖, como dizia o Marco Aurélio Garcia, essas ideias seminais sobre a revolução brasileira. E a originalidade do pensamento de nosso líder comunista é incontestável, nos quadros da política revolucionária da Internacional Comunista, sobretudo pela relação com a conjuntura interna no Brasil: as revoltas tenentistas de 1922 e 1924. A adaptação da questão pequeno-burguesa para o movimento tenentista é valiosa (heurística, mesmo), em comparação com a situação do campesinato russo. E a ideia da revolução democrática pequeno-burguesa é um achado da mais alta importância. Nos idos de 1980, Gildo Marçal Brandão – então editor da revista Temas de Ciências Humanas e hoje professor de Ciência Política da USP – teve a gentileza de ler um pequeno ensaio meu sobre as relações entre anarquistas e comunistas no Brasil, durante a década de vinte. A recepção de Gildo foi boa, mas ele recomendou que se reescrevesse o texto para que servisse de introdução a uma coletânea de artigos de Astrojildo Pereira sobre a funda ção do PCB ( Construindo o PCB: 1922-1924). O pequeno ensaio que resultou daí levantava uma tese importante: o Partido Comunista Brasileiro foi, sim, um partido
1 Gramsci/La Insignia. Brasil, agosto de 2006. 2 BRANDÃO, Octavio. Agrarismo versus industrialismo. A guerra de S ão Paulo e a luta de classes no Brasil. São Paulo: Anita Garibaldi, 2006.
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Michel Zaidan Filho
nacional – não nacionalista – e seus erros não estavam ligados a nenhuma determinação estrangeira ou estalinista. Faltava concretizar a tese com estudos e pesquisa empírica sobre a trajetória política do partido. Este trabalho de garimpagem foi feito ao longo de cinco anos, com documentos, panletos, jornais, cartas, entrevistas etc. Dele resultou uma tese de doutorado: O Partido Comunista e a Internacional Comunista. E a base foi exatamente a contribuição teórica e estratégica do camarada Octavio Brandão. O primeiro grande esforço de análise marxista-leninista da conjuntura brasileira nos anos vinte foi este Agrarismo versus industrialismo. Ele serviu com justiicação para política de alianças do PCB com os ―tenentes‖ e a pequena burguesia urbana. A inluência do documento é patente nas teses do II Congresso do PCB (1925), onde a contradição básica é entre nação e imperialismo. Torna-se ainda maior no artigo ―As tarefas do proletariado diante da revolução pequeno-burguesa‖ (1926), publicado no boletim Autocrítica. E é derrotada no VI Congresso da Internacional Comunista (1928), já desaparecendo nas teses do III Congresso do PCB (1929). Em 1930, há uma reunião ampliada, com membros da IC, onde Brandão é obrigado a renegar solenemente a sua criação e aceitar a tese da revolução democrático-burguesa anti-imperialista. De lá para cá, muita água correu debaixo da ponte. E o PCB tornou-se muito mais suscetível às inluências de Moscou e de Prestes. Mas nada disso ofusca ou tira os méritos daquele que poderia ter sido o Lênin brasileiro, depois de ter dado uma excelente contribuição – através de seus escritos – à teoria da revolução brasileira. Está na hora de resgatar a igura – sempre polêmica, mas muito injustiçada – de Octavio Brandão. Por tudo isso, esse trabalho deve ser lido e muito valorizado em qualquer arqueologia do pensamento político socialista brasileiro. É uma pena que o livro tenha sido prejudicado pela personalidade forte e polêmica do autor. Não é a primeira nem a única vez.
A propósito de uma resenha
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VI. Quest천es do Estado e da Cidadania
Autores Comte Bittencourt Educador, deputado estadual (PPS -RJ) e presidente do Diretório Estadual do PPS.
Habib Jorge Fraxe Neto Biólogo, mestre em Biologia pela Universidade de Bras ília e consultor legislativo do Se nado na área de meio ambiente.
Oriana Piske Juíza de Direito do Tribunal de Justi ça do Distrito Federal.
Zulu Ara újo Arquiteto, produtor cultural e ativista do movimen to negro latino-americano. Ex-presidente da Fundação Cultural Palmares e diretor da Casa da Cultura da Am érica Latina/UnB.
A Reforma do Código Florestal
Habib Jorge Fraxe Neto lorestas já ocuparam porção signiicativa do espaço continen-
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tal e insular da Terra, bastando que existissem clima e relevo adequados ao seu crescimento. Com o surgimento das sociedades sedentárias, o homem passou a utilizar regiões antes dominadas por essa vegetação primária com o intuito de cultivar plantas e de criar animais para os mais diversos usos, destacando-se o alimentar. Nas lorestas tropicais, a descoberta do Novo Mundo intensiicou esse processo de ocupação. No Brasil, sua exploração formou a base econômica durante quase cinco séculos. Caio Prado Júnior critica a maneira como se deu essa expansão, com base em práticas rudimentares, associadas à exploração predatória de madeiras e ao uso de queimadas. Em algum momento seria preciso repensar os fundamentos de tais processos, e isso passou a acontecer com maior intensidade a partir da década de 1960. O efeito direto da presença de vegetação nativa sobre o solo – o principal componente da agricultura – é protegê-lo de processos erosivos e melhorar sua estabilidade e estrutura. Em termos da ciclagem de nutrientes e retenção de água, solos protegidos por matas são signiicativamente melhores que solos desnudos, cujos componentes são facilmente carreáveis, perdendo-se nutrientes. Além disso, matas abrigam os componentes da biodiversidade, em especial agentes polinizadores, fundamentais para a produtividade em plantas cultivadas. Ainda, determinam o regime de nascentes e de cursos hídricos, ao permitir a iniltração de águas das chuvas, cujo ciclo 137
também depende da presença da vegetação. Por esses motivos, lorestas no interior de propriedades agrícolas deveriam ser consideradas como ativos estratégicos da unidade de produção agropecuária. Na recente reforma do Código Florestal, a antiga Lei nº 4.771, de 1965, o relator do projeto de lei na Câmara dos Deputados defendeu que interesses externos ao país seriam os responsáveis pela – na sua visão – draconiana legislação lorestal, com o objetivo de minar nosso crescimento como pot ência agrícola mundial. O presente artigo apon ta raízes outras, associadas a decisões internas inluenciadas por iguras de destaque nos rumos do Brasil, como José Bonifácio de Andrada e Silva e Getúlio Vargas. A eles vinculam-se importantes marcos, respectivamente, no desenvolvimento de uma consciência preservacionista e no fortalecimento de uma legislação que garantisse a perpetuidade dos recursos hídricos e lorestais para a nascente indústria de base. Mais recentemente, e aqui explica -se o marco temporal antes cita do – a década de 1960 – a ―culpa‖ pelo fortalecimento de normas res tritivas sobre exploração de lorestas pode ser atribuída à tecnologia espacial. O lançamento do homem à órbita do planeta resultou nas primeiras imagens da Terra vista do espaço, em 1961 – e na espontânea reação de Yuri Gagarin: a Terra é azul! A beleza do planeta visto a partir do espaço, com suas nuvens, mares e lorestas, foi divulgada aos seus habitantes, pela primeira vez, e coincide com uma crescente conscientização sobre os limites de seus recursos naturais. Além disso, o acompanhamento via satélite da perda de áreas nativas lorestadas revelou uma realidade antes pouco perceptível. Os monitoramentos realizados por um centro de excelência brasileiro, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a partir da década de 1980, mostravam o destino de nosso patrimônio natural, contido em lorestas: rumo à atmosfera, em forma de gases e fumaça. O presente artigo busca apontar a importância de conservar nossa lora e de enfrentar as causas do desmatamento, como um tema de interesse do próprio povo brasileiro. Com esse objetivo, analisa o histórico normativo para indicar os fundamentos da legislação protetiva de lorestas. Resume virtudes e críticas à Lei nº 12.651, de 2012, resultado da recente reforma do Código Florestal. E, inalmente, analisa essa reforma no contexto dos problemas do setor agrícola e na ótica de um desenvolvimento que promova a manutenção de lorestas ―em pé‖.
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Habib Jorge Fraxe Neto
Histórico normativo e motivação para conservar lorestas Segundo Pereira apud Antunes (2010), normas regulatórias sobre lorestas datam do século XVII, com o Regimento do Pau-Brasil, que vedava o corte dessa madeira sem expressa autorização da Coroa Portuguesa. Uma Carta Régia de 1797 declarou a propriedade real ―sobre todas as matas e arvoredos à borda da costa, ou de rios que desemboquem imediatamente no mar, e por onde em jangadas se possam conduzir as madeiras cortadas até o mar‖. Em 1799, o primeiro Regimento sobre extração de madeira estabeleceu inclusive o cargo de juiz conservador, competente para autorizar a atividade. Em 1829, o Império proibiu o corte de árvores em terras devolutas, sem a devida licença, que era concedida então pelas Câmaras de Vereadores. Em 1830, o Código Criminal instituiu penas para o corte ilegal de árvores. Essas informações apontam que, muito antes de nascer o movimento mundial pela conscientização ambiental – e a suposta inluência externa em matéria de meio ambiente pátrio – o próprio Poder Público preocupou-se em regular o uso e a exploração de lorestas. Essa tendência ganha força a partir do primeiro Governo Vargas, com a edição do Decreto nº 23.793, de 1934, considerado o primeiro Código Florestal do país. Ao lado do Código de Águas e do Código de Minas, regulou a exploração de matérias-primas essenciais à nascente indústria de base. O Código de 1934 classiicou as lorestas em quatro categorias: lorestas protetoras, lorestas remanescentes, lorestas de rendimento e lorestas modelo. Enquanto as lorestas de rendimento e modelo coniguravam-se, respectivamente, para o fornecimento de lenha à atividade industrial e para plantios artiiciais – a exemplo de relorestamentos – as demais tinham objetivos preservacionistas. Florestas protetoras tinham como inalidade preservar o regime hídrico, impedir a erosão do solo, garantir condições de salubridade pública e conservar sítios de destacada beleza ou abrigos para espécies raras. As lorestas remanescentes integravam áreas que hoje poderiam serdenominadas unidades de conservação, com o objetivo de proteger a fauna e a lora e de promover o gozo público desses espaços. Ambas – lorestas protetoras e remanescentes – foram deinidas pelo Código como ―de conservação perene‖. O conceito de perenidade para determinadas regiões que abrigam formações vegetacionais foi reforçado pela norma que substituiu o Código de 1934. Nesse sentido, a Lei nº 4.771, de 1965, trouxe importantes inovações, destacando-se o instituto da Área de PreservaA Reforma do Código Florestal
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ção Permanente (APP), cujas funções assemelhavam-se às previstas para as lorestas de conservação perene (protetoras e remanescentes) do Código de 1934. A nova lei também proibiu o corte raso (ou seja, cortar na base todas as árvores de uma determinada área) em uma área mínima de 20% da propriedade ―nas regiões Leste Meridional, Sul e Centro-Oeste, esta na parte sul‖: ainda sem este nome, era o conceito de Reserva Legal. A partir da década de 1980, o Código Florestal recebeu signiicativas alterações. As Leis nº 7.511, de 1986, e nº 7.783, de 1989, alargaram as dimensões das áreas de preservação permanente localizadas às margens de cursos d‘água e incorporaram novas tipologias como APP, regiões mais sensíveis do ponto de vista da estabilidade do solo, da manutenção da qualidade dos recursos hídricos e da proteção das espécies animais e vegetais. Conforme já mencionado, o texto original de 1965 já previa uma área de vinte por cento da propriedade onde se devia manter a ―vegetação arbórea‖. A alteração promovida em 1989 denominou essa área como Reserva Legal (RL). Nessa porção, não se permite o corte raso. A alteração também determinou a averbação da Reserva Legal ―à margem da inscrição da matrícula do imóvel no registro de imóveis competente, sendo vedada a alteração de sua destinação, nos casos de transmissão a qualquer título ou de desmembramento da área‖. As alterações promovidas na década de 1980 alteraram signiicativamente as restrições impostas pelo Código, especialmente para os agricultores. A título de exemplo, a largura da APP às margens de rios – porção que basicamente deveria ser mantida intocada – passou de 5 para 30 metros, em cursos d´água que tinham até 10 metros de largura. No caso dos rios cuja largura fosse superior a 200 metros, a largura da APP exigida às suas margens, que era de até 100 metros, passou a ser de até 500 metros. Cabe aqui ressalvar tais observações. O presente artigo considera proprietários e posseiros rurais como parceiros potenciais de políticas protetoras de lorestas e como pessoas de boa-fé que, ao longo das décadas de 1980 e 1990, testemunharam o crescente rigor das limitações impostas sobre o uso de suas terras. Além disso, ressalvamos que políticas públicas direcionadas a desmatadores ilegais e a outros tipos de especuladores (desmatar, em geral, valoriza a terra) não são o objeto precípuo da presente análise, ainda que tais questões sejam abordadas adiante. Feitas as ressalvas, o fato é que as novas previsões do Código, após a reforma que a seguir analisare-
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mos, tiveram como efeito dar a ambos, agricultores e desmatadores, os mesmos benefícios, em alguns casos especíicos. O aumento das restrições à exploração de lorestas nativas ainda ganhou força ao longo da década de 1990. Como já se disse aqui, o monitoramento via satélite das taxas de desmatamento foi um importante fator nesse aspecto. Além disso, a crescente inserção do Brasil no cenário mundial de acordos regulatórios em matéria ambiental, cujo ápice naquela década foi a Conferência Rio-92. O maior rigor na proteção lorestal tinha sobretudo (como ainda tem) amparo na nova Constituição da República, a primeira a tratar especiicamente do tema ambiental, dedicando-lhe o Capítulo VI. Seu art. 225 estabeleceu o meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito intergeracional, impondo ao Poder P úblico a preservação dos ecossistemas e do patrimônio genético, dentre outras determinações, que fundamentavam a proteção legal de matas nativas. Finalmente, em resposta aos índices crescentes de desmatamento então registrados ao longo da década de 1990, editou-se a Medida Provisória (MP) nº 1.511, de 1996, cujas sucessivas reedições resultaram na MP nº 2.166-66, de 2001. Com o novo texto, estabelecem-se conceitos fundamentais para aplicação do Código de 1965, destacando-se a deinição de pequena propriedade ou posse rural para efeitos de lexibilização no cumprimento de exigências de recomposição de APP e RL. E, dentre outras inovações, ampliou-se a área exigida como RL na Amazônia Legal. Para regulamentar a aplicação de infrações e sanções administrativas previstas, dentre outras normas, pela Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605, de 1998), o Executivo federal editou o Decreto n º 6.514, em 22 de julho de 2008. Guardemos essa data, ela é fundamental para entendermos os pontos mais controversos da reforma do Código, a seguir apresentada. No Decreto, havia especialmente dois dispositivos rigorosos – ao menos quanto ao valor das multas, calculadas em até R$ 5.000 por hectare – para quem não recuperasse a vegetação nativa em APP ou RL e não averbasse em cartório sua Reserva Legal, respectivamente arts. 48 e 55. O dispositivo que determinava prazo para averbação foi alterado diversas vezes, sempre no sentido de sua prorrogação, o que provavelmente indicava a impopularidade de tal medida. Na mesma época, um artigo publicado por um pesq uisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) argumentava que, devido às diversas restrições legais em porções do território dedicadas a unidades de conservação (UC), terras indígenas, terrenos quiA Reforma do Código Florestal
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lombolas, APP e RL, ―apenas 7% do bioma Amazônia e 33% do país seriam passíveis de ocupa ção econômica‖ e que ―o alcance da legisla ção ambiental e territorial seria de, pelo menos, 67% do Brasil ‖. Os dados eram, no entendimento deste autor, contestáveis. Por exemplo, a maior parte das unidades de conservação são do tipo uso sustentável, em que se permitem atividades econômicas. Praticamente todo o território do Distrito Federal insere-se em unidades desse tipo, tais como a Área de Proteção Ambiental (APA) do Planalto Central. E, no entanto, há inúmeros centros urbanos, industriais e agrícolas no DF. De fato, em alguns biomas, a exemplo da Mata Atlântica, da Caatinga e dos Pampas, as UC de uso sustentável – como as registradas no DF – respondem por mais da metade da extensão de áreas protegidas. A despeito dos dados question áveis, o artigo sintonizava -se com o entendimento dos grupos de pressão que, desde as alterações promovidas ao longo das décadas de 1980 e 1990, buscavam diminuir o rigor do Código Florestal. Contudo, a edição do Decreto nº 6.514, de 2008, com sanções expressivas para os que não averbassem a RL nem realizassem a recupera ção/recomposição de APP e RL, foi talvez o estopim para que a reforma inalmente avançasse. Os representantes do setor agropecuário mobilizam-se e aprovam na Câmara dos Deputados um projeto de lei que tramitava há 15 anos, com grandes alterações em relação ao Código vigente. Analisado pelo Senado Federal, que realiza signiicativas modiicações, o projeto foi novamente deliberado na Câmara, antes de ir à sanção presidencial, que resultou na Lei nº 12.651, de 25 maio de 2012. Nessa fase, a presidente da República vetou diversos dispositivos e editou medida provisória para preencher lacunas normativas criadas em função dos vetos. A Medida Provisória foi convertida na Lei nº 12.727, de 17 de outubro 2011, trazendo nova coniguração para a Lei nº 12.651, de 2012. Há pontos positivos na reforma, que mere çam ser apontados? Air mar que não, a nosso ver, seria desconsiderar a função constitucional do Congresso Nacional. Talvez a principal virtude da reforma tenha sido aproximar o produtor rural do cumprimento de uma legisla ção possível, ao menos foi esse o argumento apresentado pelos reformistas. Por outro lado, não há como negar que a reforma acarretou perda considerável de matas nativas e de áreas que deveriam, no regime anterior, ser preservadas. Analisaremos a seguir as virtudes e críticas ao novo Código.
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Aspectos positivos e negativos da reforma do Código Florestal Qual a motivação para tal reforma, em especíico quanto à lexibilização das obrigações de manutenção e recuperação de áreas nativas no interior das propriedades e posses rurais? A resposta mais óbvia (e mais simplista) poderia ser uma que foi comumente repercutida pela mídia e por diversos setores do chamado ―ambientalismo‖. A agricultura e a pecuária seriam as responsáveis pela devastação de lorestas, e pretendiam livrar-se de suas responsabilidades, incluindo o pagamento de multas e a recuperação da degradação causada. Contudo, estereótipos pouco contribuem para a análise da questão, que envolve incentivos do próprio Estado e do sistema de inanciamento agrícola, por meio de políticas públicas para a conversão de áreas nativas – posteriormente deinidas, por alterações legislativas, co mo APP ou RL – em campos agropecu ários. Al ém disso, opinamos que se deve distinguir entre o homem que ocupa terras para devastá-las (invadindo, grilando, extraindo ilegalmente sua madeira, para então buscar arrasar a próxima mata virgem) e o homem de boa-fé que depende da sua propriedade ou posse rural como base para seu sustento ou lucro. Uma das virtudes da reforma seria trazer segurança jurídica à atividade agropecuária e proporcionar uma legislação cujo cumprimento fosse possível. Argumentou-se, em favor dos agricultores, que as medidas mais duras do Código de 1965 teriam sido implementadas por meio de medidas provisórias, editadas e reeditadas livremente pelo Executivo, sem a participação do Legislativo. Entendemos, contudo, que o argumento é inconsistente, pois o Congresso Nacional detinha (como ainda detém) a prerrogativa de apreciar tais MPs e de rejeitar dispositivos que desfavorecessem a atividade agrícola. Na ótica da agricultura, o Código de 1965 estaria defasado. Fora editado quando o campo não conseguia suprir nem mesmo o mercado interno, devido à baixa produtividade e à pequena extensão na ocupação das terras. Desde a década de 1970, contudo, a agricultura teria passado por uma enorme dinamização que culmina, hoje, na posição do país como um dos mais importantes atores no mercado global de commodities agrícolas e no avanço da fronteira sobre o Cer rado e a Amazônia. Segundo dados da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), devido ao crescente rigor promovido pelas alte rações ao Código, 90% dos cerca de 5,2 milhões de propriedades rurais contrariavam algum dos dispositivos da Lei nº 4.771, de 1965. Nessa categoria enquadravam-se os cultivos de arroz nas várzeas A Reforma do Código Florestal
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gaúchas, ―responsável por dois terços da produção nacional, algo entre 6 a 7 milhões de toneladas por ano‖. Em situação semelhante estaria o café plantado em terrenos inclinados de Minas Gerais, ―responsáveis por 40% da produção brasileira‖. A CNA aponta ainda uma das principais virtudes da reforma: livrar os produtores rurais das pesadas multas a que estariam sujeitos. Além disso, a reforma aliviaria o pesado custo econômico da recuperação de áreas desmatadas e da imobilização, para a preservação ambiental, de terrenos aptos a cultivos. Sob a ótica do fortalecimento de uma política lorestal protetiva, alguns pontos positivos poderiam ser apontados. Elevaram-se ao nível legal dispositivos antes contidos em normas infralegais, a exemplo da deinição de veredas e de mangues como APP. O novo Código também dedicou capítulos ao controle da origem dos produtos lorestais, à proibição do uso do fogo e do controle de inc êndios, ao progra ma de apoio e incentivo à preservação e recuperação ambiental, ao controle do desmatamento e à agricultura familiar. O Ministério do Meio Ambiente foi um dos mais engajados em incorporar na reforma dispositivos que assegurassem a recuperação de passivos, a exemplo do Cadastro Ambiental Rural e do Programa de Regularização Ambiental (PRA). Segundo o pr óprio MMA, o termo ―anistia‖ não se aplicaria, já que os proprietários isentos de multas aplicadas até 22/8/2008 teriam agora a obrigação de recuperar ou compensar a área degradada por meio do PRA. Ainda que anistiar não seja o termo adequado aos que dispõe a nova lei, não se pode deixar de concluir que extinguiram-se obrigações de recuperar, pelo menos para todas as propriedades liberadas da exigência de RL e para os casos em que houve diminuição da extensão das APP ou a possibilidade de cômputo de APP como parte da RL. São aspectos que introduzem as críticas feitas à reforma do Código Florestal, a seguir apresentadas. Tais críticas podem ser representadas pelo conteúdo das três Ações Diretas de Inconstituc ionalidade (ADI) ajuizadas pelo Procura dor-Geral da República (PGR), que contestam em torno de quarenta dos 84 artigos da nova lei. Nas ações, o PGR requer a declaração de inconstitucionalidade desses dispositivos, destacando-se a seguir os principais pontos questionados: • a deinição de área rural consolidada com base unicamente na data de 22 de julho de 2008, sem que se exija ―qualquer circunstância razoável‖ – além do corte temporal – para a sus144
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pensão de multas e a dispensa de ações de recuperar áreas antes consideradas APP ou RL, em violação à exigência constitucional de que a propriedade atenda sua função social; • a ampliação dos usos agrícolas possíveis em várzeas, de forma geral. Tal possibilidade deveria aplicar-se apenas a casos especíicos; • a deinição inadequada de APP em nascentes e olhos d‘água apenas para as perenes, com a exclusão da proteção vegetal para nascentes e olhos d‘água intermitentes; • a permissão de intervenção em APP para gestão de resíduos (por exemplo, instalação de aterros sanitários) não seria adequada do ponto de vista da manutenção da qualidade hídrica; • a autorização para execução, em manguezais degradados, de obras habitacionais e de urbanização, inseridas em projetos de regularização fundiária de interesse social, em áreas consolidadas ocupadas por população de baixa renda; • a equiparação de tratamento ―dado à agricultura familiar e às pequenas propriedades ou posse rurais familiares àquele dirigido às propriedades com até quatro módulos iscais‖. Nesse ponto, o PGR argumenta que ―propriedades de até quatro módulos iscais podem atingir dimensões de aproximadamente quatrocentos hectares, na Amazônia Legal, e não necessariamente estão dedicadas à agricultura familiar. A equiparação seria, portanto, uma afronta ao princípio da isonomia‖, já que para ambas categorias a nova lei lexibiliza exigências de recuperação de APP e RL; • a admissão do plantio de até 50% de espécies exóticas, como medida de recuperação em APP, descaracteriza suas funções ecológicas; • a desoneração do dever de recuperar RL em propriedades com até quatro módulos iscais, ―premiando injustiicadamente aqueles que realizaram desmatamentos ilegais‖. Com base em estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, quase quatro milhões de hectares deixarão de ser recuperados; • a autorização para cômputo de APP no percentual de RL, para qualquer tamanho de propriedade rural. A argumentação do PGR corrobora dados cientíicos no sentido de que APP e RL desempenham funções ecossistêmicas distintas.
A Reforma do Código Florestal
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Além do Ministério Público, o meio acad êmico indicou – com voz ativa, pelo menos no trâmite da matéria no Senado Federal, em audiências públicas realizadas sobre o tema – seu posicionamento, por meio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e da Academia Brasileira de Ci ências (ABC). Defendeu que o projeto de lei deveria ser discutido com maior profundidade e menos pressa. E contribuiu com diversos documentos técnicos. Destacam-se considerações acerca da inadequação em permitir a compensação da RL em locais distantes da propriedade (inclusive em outro Estado da Federação), ainda que em mesmo bioma, já que a ―maioria das espécies tem distribuição geográica limitada dentro de cada bioma‖, considerando inclusive a ocorrência de endemismos (espécies que só ocorrem em determinado local). Ainda, para os representantes da Ciência, eventuais alterações deveriam basear-se em planejamento e ordenamento territorial, com fundamento na integração entre propriedade rural e adequação ambiental, com base em incentivos – tais como pagamentos por serviços ambientais – e em recursos tecnológicos de imageamento e modelagem computacional de terrenos, ―para a construção de paisagens rurais com sustentabilidade social, ambiental e econ ômica‖. Talvez a maior crítica à reforma seja que, como motivação inicial, havia questões pontuais a serem resolvidas, atividades rurais que precisavam ser regularizadas, a exemplo dos plantios de arroz em várzea e de café em encostas. Contudo, o resultado inal foi muito além disso e estendeu de maneira geral lexibilizações que poderiam ter sido concedidas de forma especíica. Por conta disso, nos termos do conteúdo das ADI, que reverberam a insatisfação de setores mais associados à proteção ambiental, ocorreu uma signiicativa diminuição no regime protetivo de lorestas. No resultado inal, em diversas situações o desmatamento para especulação e venda ilegal de madeira, um dos mais graves problemas observados na Amazônia – onde o preço da terra desmatada tem maior valor de mercado – foi tratado com isonomia em relação à tradicional atividade agrícola. Esse foi um dos efeitos da reforma, devido, entre outros, à lexibilização nas exigências de manutenção e recuperação de APP e RL em propriedades de até quatro módulos iscais – que na Amazônia podem alcançar em torno de 400 hectares. Dada a precária governança fundiária e a imensa diiculdade de iscalização, aumentam as chances de novos desmatamentos na região. Por outro lado, o Código Florestal de 1965 tinha foco prec ípuo em políticas de comando e controle, com dispositivos vinculados a ou146
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tras normas punitivas tais como a Lei de Crimes Ambientais. Entretanto, uma regra básica em economia diz que as pessoas reagem a incentivos, e não só a punições. Contudo, incipientes têm sido os programas de incentivo e de apoio a agricultores no sentido de proteger a biodiversidade contida em matas nativas, o que pode explicar sua baixa adesão às regras da Lei nº 4.771, de 1965. Nesse sentido, o antigo C ódigo já trazia previsões (algumas copia das pela nova lei) cuja efetivação jamais ou raramente se realizou, a exemplo da possibilidade de conversão de excedentes de Reserva Legal em cotas lorestais, títulos que poderiam ser negociados. Outros mecanismos poderiam contribuir com as ações de proteção, a exemplo de incentivos pela prestação de serviços ambientais e de medidas compensatórias por ações que reduzam emissões de gases do efeito estufa, associadas à manutenção de matas, tais como o REDD (redução de emissões por desmatamento e degradação de lorestas). A ausência desses incentivos é, de fato, um dos principais obstáculos à manutenção de matas nativas em propriedades rurais, em especial para pequenos agricultores. A reforma do Código Florestal não necessariamente resolverá esse nem outros problemas críticos enfrentados pelo setor agrícola.
Co nclusões Se a agricultura tinha (como ainda tem) problemas graves que afe tam os produtores rurais, as solu ções poderiam ser buscadas no âmbito de uma política agrícola adequada e n ão necessariamente com foco tão destacado na lexibiliza ção do arcabouço normativo ambiental, que tinha no Código Florestal de 1965 um de seus principais pilares. A raiz dos problemas no campo continua latente, em especial para os pequenos produtores, e a reforma do Código não os resolverá: virtual ausência de assistência técnica com métodos adaptados aos trópicos; pecuária extensiva de baixa produtividade ocupando quase 76% das terras dedicadas à agricultura; extrema vulnerabilidade da agricultura familiar a eventos climáticos, conforme se observará este ano para o Nordeste semi-árido; crescente perda de mão-de-obra que migra para áreas urbanas; precariedade dos serviços públicos e da infraestrutura no Brasil interiorano; e tendência de declínio na renda oriunda da atividade primária, dentre outros. Reforçamos a importância no aumento da eiciência, muito especialmente para os pequenos proprietários e posseiros rurais. A expansão da fronteira agrícola resultou em grandes extensões de proA Reforma do Código Florestal
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priedades dedicadas à pecuária de baixa produtividade. São terras que abrangem 211 milhões de hectares, em torno de 25% do território brasileiro – e de 76% da área agrícola. O aumento da produtividade média na criação animal poderia liberar quase 70 milhões de hectares, que seriam incorporados ao estoque de terras agrícolas, sem a necessidade de novos desmatamentos. Ainda que os pequenos agricultores enfrentem graves problemas para a manutenção de suas atividades, conforme exposto, a força de nossa agricultura é incontestável. Safras e safrinhas recordes, abastecimento do mercado interno com excedentes que permitem a regulação de preços, posição entre os maiores exportadores mundiais de commodities agrícolas, manutenção do equilíbrio da balança comercial e garantia de insumos com preços razoáveis à indústria nacional, são algumas das características pujantes do setor. Dada sua relevância econômica e social, não é difícil entender como, na elaboração da nova lei, o setor agrícola emplacou as principais alterações no sentido da lexibilização da proteção lorestal, com ampla margem de apoio, baseando-se nos resultados das votações na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. A base da política de restauração de APP e RL reside agora nos Programas de Regularização Ambiental. Esses são ainda uma incógnita a ser solucionada no médio e longo prazos, pois dependem da articulação institucional entre os entes federativos, assim como de medidas para incentivar agricultores à recuperação e à preservação das matas que ainda existam em suas terras. E aqui reside outra incógnita: a efetiva adesão de proprietários e posseiros rurais a tais programas e às demais regras do novo Código. Aziz Nacib Ab‘Sáber, em artigo in memoriam publicado pela SBPC11, defendeu que ―por muitas razões, se houvesse um movimento para aprimorar o atual Código Florestal, teria que envolver o sentido mais amplo de um Código de Biodiversidades, levando em conta o complexo mosaico vegetacional de nosso território‖ e que ―a utopia de um desenvolvimento com o máximo possível de lorestas em pé não pode ser eliminada‖. A conservação dessa vegetação, nosso patrimônio nacional, determina a própria sustentabilidade da agropecuária, já que os mananciais de água, a fertilidade e estabilidade do solo e a presença de agentes polinizadores – insumos e serviços fundamentais à atividade agrícola – dependem diretamente da presença de lorestas.
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Municipaliza ção da Educação no Estado do Rio de Janeiro: cumprimento da legislação ou transferência de responsabilidade? Comte Bittencourt mbora a municipalização no Estado do Rio de Janeiro tenha
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tido início, de forma efetiva, em dezembro de 1987, com a Resolução nº 1.411, assinada pelo então Secretário de Estado de Educação, Carlos Alberto Direito (Ministro do STF), que criou o Programa de Municipaliza ção do Estado do Rio de Janeiro (Promurj), quase 26 anos depois, a descontinuidade das políticas educacionais, levadas a cabo pelos sucessivos governos do Estado do Rio de Janeiro, tornou esse processo ainda mais complexo, além de suas próprias implicações decorrentes das diiculdades encontradas para cumprir a legislação sem prejuízo das comunidades escolares. Nesse imbricado contexto de descompasso das políticas educacionais do Estado, conseguimos aprovar a Lei do sistema de ensino do Estado do Rio de Janeiro, Lei nº 4.528 de março de 2005, que procurou dar uma organização sistêmica à rede pública estadual no território luminense, sem perder de vista a necessária consolidação das atribuições dos entes federados – estado e municípios, previstas nas Constituições Federal e Estadual e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n° 9.394/96. Na Lei n° 4.528/2005 o princípio norteador era de que a incumbência dos entes federados fosse cumprida, conforme estabelece a legislação vigente, mas, no que concerne à municipalização, que o Regime de Colaboração fosse observado em todas as etapas do processo, a im de garantir que seriam respeitadas as peculiaridades do município e, particularmente, das comunidades em que as escolas, possíveis de serem municipalizadas, estavam inseridas. Isto porque se tinha a consciência das inúmeras diiculdades que perpassam as instâncias municipais, acrescidas, repentinamente, da necessidade de absorver uma intensa demanda de alunos. Nossa preocupação foi, mais uma vez, reiterada na aprovação do Plano Estadual de Educação do Rio de Janeiro (PEE/RJ), instituído pela Lei nº 5.597/09, no qual as quatro primeiras metas para a Educação Básica apontavam a necessidade de ―assegurar‖ e ―apoiar‖ a expansão da oferta de Educação Infantil nas redes municipais por 149
meio do Regime de Colaboração, bem como o estabelecimento, por parte do Estado, de programas de formação de proissionais de Educação Infantil, no âmbito do ―Programa Escola-Infância‖, nos termos da Lei Estadual nº 5.311/2008, também de nossa autoria. No que se refere ao Ensino Fundamental legislamos pela garantia de acesso e de viabilização ―da permanência do aluno no Ensino Fundamental obrigatório de qualidade, com duração de nove anos, planejando em regime de colaboração com os municípios, no prazo de 10 (dez) anos, a partir da publicação deste Plano, a progressiva transferência das matrículas dos anos iniciais do Ensino Fundamental para a rede municipal, conforme o que estabelece a Lei Estadual nº 4.528/2005 (art. 62)‖. Todavia, embora o PEE/RJ apontasse para a necessidade da municipalização realizada sob determinadas condições, entre as quais se destacava a necessidade do levantamento de diversas variáveis em ambas as redes públicas locais, do Estado e do município, com a inalidade de garantir que esse processo não se caracterizasse por uma simples ―desresponsabilização‖ do Estado para com parte da Educação Básica, não foi isso que se viu, nesse período, na quase totalidade dos processos concluídos e em andamento. Na prática, foram poucos os casos em que o estudo de possibilidades entre os entes federados ocorreu, de fato. Na grande maioria, os critérios utilizados estavam muito mais atrelados a negociações políticas do que a condições técnicas de oferta e demanda. Além disso, ao retomar o processo de municipalização via Promurj, nos dias atuais, a Secretaria de Estado de Educação (Seeduc) ―criou‖ categorias diferenciadas para a municipalização, na qual passou a considerar como ―municipalização de escolas‖, aquela que ocorre envolvendo as instalações físicas e demais recursos materiais ou de pessoal lotado na escola, e ―curiosamente‖ de ―municipaliza ção do ensino‖, aquilo que se refere t ão somente ao fechamento gradativo da oferta dos anos iniciais do ensino fundamental nas escolas da rede estadual e comunicação aos municípios que a partir de então, caberia a esta instância provê-la. Observa-se que a nomenclatura ―municipalização do ensino‖ pode, nesses termos, ser traduzida tão somente por encerramento da oferta nas escolas públicas do Estado com expectativa de que o município a assuma em suas escolas ou naquelas que venha a construir, alugar ou comprar para fazê-lo! A par desse contexto, ao receberem o ofício de comunicação do Estado do interesse de municipalizar escolas ou ―ensino‖ em determinado município, é plausível que os secretários de educação sin150
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tam-se extremamente inseguros em aceitar tal ―Regime de Colaboração‖ que, por vezes, não passa da assinatura de um termo de cessão, ou de assunção da demanda por parte dos municípios. Na perspectiva da legislação, especialmente aquela emanada da Comissão de Educação da Alerj, sinalizamos ao poder executivo, os caminhos possíveis e viáveis, por meio do disposto nas Leis de nossa autoria, entre elas a Lei nº 4.528/05, o PEE/RJ, Lei 5.597/09, e a Lei nº 5.311/2008, para que o processo de municipalização ocorresse de forma responsável e comprometida com a educação luminense. Do mesmo modo, não se pode esquecer que as determinações contidas na Emenda à Constituição Federal n° 59/2009 de ampliação da escolaridade obrigatória no Brasil, exigem que as instâncias federativas dialoguem e pratiquem o Regime de Colabora ção previsto na legislação, a im de universalizar o ensino dos 4 aos 17, até 2016. Por sua vez, os municípios sentem-se incapazes de assumir as lacunas deixadas pelo Estado, além de temer o comprometimento de seu orçamento e planejamento da gestão pública. Somam-se a isso, as muitas diiculdades que os municípios enfrentam e alegam para irmar o Regime de Colaboração com o Estado, especialmente, quando envolve a municipalização dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Neste contexto político, o processo de municipalização continua ocorrendo por meio de ofícios disparados pela Seeduc, que são lidos por secretários municipais de educação e prefeitos surpreendidos e confusos para entender o teor dos documentos, ou para, na prática, transformar as informações contidas no papel em ações a serem realizadas junto a uma comunidade ávida por melhorias e mudanças na educação pública. No que tange às crianças e aos adolescentes, estes não pertencem nem a uma nem a outra instância exclusivamente, mas deveriam ser alvo de políticas educacionais conjuntas que buscassem complementaridade e a superação dos inúmeros desaios que se apresentam às redes públicas municipais e estaduais, para oferecer aos seus alunos condições de igualdade de oportunidades de escolaridade, emprego e ascensão social, especialmente, quando a Emenda à Constituição Federal determina um imenso avanço quanto ao período de permanência obrigatória na escola.
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“Acabou chorare”
Zulu Araújo einitivamente os tempos mudaram. A sociedade brasileira
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avançou, a democracia se consolidou e o movimento negro se faz presente nos quatro cantos do país. Ao que tudo indica, apesar dos percalços, das dores e dos sofrimentos que ainda se fazem presente em nosso cotidiano, o saldo das lutas empreendidas pelo movimento social, pa ís afora, é positivo.
Poderia listar um sem número de conquistas, mas vamos icar só nas emblemáticas: a aprovação, por unanimidade, pelo Supremo Tribunal Federal das cotas raciais nas universidades; a aprovação pelo Congresso Nacional da Lei no 10.639/2004, que instituiu o ensino da História da África e Cultura Afro -Brasileira nas escolas; a edi ção pelo Poder Executivo do Decreto no 4.887/2003, regulamentando a Certiicação e Titulação das Terras Quilombolas e a criação de dezenas de Secretarias e órgãos públicos de Promoção da Igualdade Racial por todo o país. Tudo isto, graças à luta, à persistência e à garra de milhares de militantes e aliados, assim como da sensibilidade e compromisso social dos últimos governos, liderados pelos presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Importante dizer que estes avanços só foram possíveis por estar ancorados na histórica Assembleia Nacional Constituinte, que produziu a tão celebrada Constituição Cidadã, após intensos e acirrados debates. Ou seja, a democracia é e continuará sendo o grande esteio das conquistas sociais em tempos modernos. Sem que tivéssemos esse manto protetor que abrigou o processo democrático vivido até o momento, diicilmente teríamos percorrido com tanta irmeza o caminho atual. Mas, a demanda por justiça social é enorme e a dívida do país para com a comunidade negra é maior ainda e infelizmente a conquista da igualdade racial só é percebida como miragem. E são exatamente estes avanços, ao que tudo indica, que sinalizam para o encerramento de um ciclo, ao celebrarmos mais um 20 de Novembro – Dia Nacional da Consci ência Negra. As manifesta ções de junho, ainda latentes e mal resolvidas, nas quais milhões de pessoas foram às ruas protestar contra a mesmice que se instalou na política 152
nacional, foi apenas um sinal, um alerta. E o movimento negro n ão está imune a estas intempéries. Se é verdade que tivemos avanços e conquistas, também é verdade que os setores conservadores e racistas de nossa sociedade se rearticularam, reorganizaram e encontraram novas formas de assegurar seus privilégios. Ocuparam espaços importantes, tanto no governo quanto na sociedade. Vide a paralisação de toda e qualquer titulação de terras quilombolas, nos últimos três anos, e a conquista da Comissão dos Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, onde instalaram um deputado dos mais retrógrados na sua presidência. Tudo isto sob os auspícios da tão propalada governabilidade. Na sociedade, os dados são alarmantes e trágicos. Segundo o Mapa da Violência 2013, publicado pelo Centro Brasileiro de Estudos Latino -Americanos, houve um decr éscimo da ordem de 26,4% do número de assassinatos de jovens brancos no país, nos últimos dez anos, enquanto na juventude negra o acréscimo foi da ordem 30,4%. Ou seja, foram 35.297 jovens negros assassinados, na maioria dos casos pela polícia ou por grupos de extermínio, que são formados basicamente por policiais. A intolerância religiosa, liderada pelos neopentecostais, amplia-se de forma vertiginosa no país, atingindo de maneira dura as religiões de matrizes africanas e até mesmo a implementação da Lei no 10.639, sem que sejam adotadas quaisquer medidas punitivas, apesar do uso intenso dos meios de comunicação para tal im, meios estes que são concessão pública e estão sob controle do Estado. Não há como esconder, é um preço muito alto para as conquistas que tivemo s. O que vimos na última Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial foi muito mais que um sintoma, foi um aviso. O modelo de discussão restrito e controlado, em que o tempo era o senhor da razão, sem que houvesse uma análise crítica do ocorrido entre uma conferência e outra, também não contribuiu muito para que houvesse uma relexão profunda que identiicasse as razões da nossa atual desmobilização, das diiculdades na relação com o governo e de como enfrentar os novos desaios. Diante de tantas perguntas sem respostas, é que icou a sensação de que encerramos um ciclo. Após tantas conquistas e avanços, o movimento negro não pode se contentar apenas com bolsa família e mais médicos ou com as denúncias e constatações de sempre. Acabou chorare. ―Acabou chorare‖
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Como diria os Titãs, a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão, arte e igualdade. Igualdade traduzida no orçamento público para que possamos implementar as políticas públicas de ações airmativas, igualdade traduzida na legislação que puna efetivamente aqueles que praticam o racismo. Assim como igualdade na ocupação real de espaços de poder. Neste sentido, teremos que inevitavelmente mudar o rumo da prosa. Apontar para o futuro, com a certeza de que o que izemos bem no passado não pode mais ser modelo para o presente. Construir uma nova agenda política, com novos atores, novos métodos e novas propostas é a nossa tarefa maior. Ter coragem para colocá-la em discussão aberta na sociedade é outro imperativo. E dialogar com todas as forças políticas antirracistas, retomando o caráter suprapartidário da nossa luta, deve ser muito mais que uma estratégia, mas uma questão de princípio. Axé! Toca a zabumba que a terra é nossa!
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Fundamentos ilosóicos dos Juizados Especiais
Oriana Piske s Juizados Especiais têm seus fundamentos ilosóicos no va-
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lor Justiça, na prudência e no pragmatismo jurídico. Conhecendo os fundamentos ilosóicos em que estão calcados os Juizados encontraremos suas raízes e suas balizas.
Vale lembrar que a ilosoia é a relexão do espírito sobre seu comportamento valorativo teórico e prático e, igualmente, aspiração a uma inteligência das conexões últimas das coisas, a uma visão racional do mundo. Portanto, a ilosoia ―é a tentativa do espírito humano de atingir uma visão do mundo, mediante a auto-relexão sobre suas funções valorativas teóricas e práticas.‖ A ilosoia passa, atualmente, a assumir um papel extraordinário na História – no dizer de Richard Rorty, ―a grande conversação‖ – portanto, um diálogo crítico, permanente e renovador com as outras áreas do saber humano. Ainal, com o desenvolvimento das ciências sociais, a exemplo da Psicologia, da Antropologia e da própria História, a partir do século XIX, estas levariam ao impasse do esgotamento da tradicional concepção ilosóica. Apresentar as questões contemporâneas da ilosoia como eventos em um certo estágio de uma conversação, demonstra que os seres humanos não perderam o contato com os problemas reais que se deseja resolver. Portanto, trata-se de uma visão ilosóica pragmática que certamente vem contribuindo aos diversos ramos do saber, muito especialmente ao Direito. Consideramos que os Juizados Especiais brasileiros, por terem so frido inluência das Small Claims Courts norte-americanas, trazem no seu substrato o inluxo da ilosoia pragmatista, incorporando um pragmatismo jurídico na maneira de conduzir e de decidir o processo. O termo pragmatismo tem sua origem etimológica do grego prâgma, que signiica ação. Segundo Johannes Hessen, a concepção pragmatista tem no conceito de verdade o mesmo sentido de ―útil, valioso, promotor da vida‖. Acrescenta, que ―o homem é, antes de mais nada, um ser prático, dotado de vontade, ativo...‖. 155
A ilosoia pragmática visa situar o pensamento ilosóico mais próximo dos problemas práticos por considerar que o homem e o mundo constituem uma unidade. A experiência autêntica é a história desta unidade, exclui a possibilidade de o homem, de qualquer modo ou em alguma atividade, quer seja a arte, a ciência ou a ilosoia, poder ser espectador desinteressado do mundo, sem ver-se envolvido nas suas vicissitudes. Não seria diferente com relação ao Direito, encarado como instituição humana, surgido de necessidades humanas, a exigirem sempre uma solução prática para os conlitos. A ilosoia pragmática, ao nosso sentir, desenvolve uma prudência; visto que, ao partir da experiência, busca investigar logicamente respostas capazes de resolver o problema, não como uma verdade absoluta, mas como uma solução para aquele determinado problema, naquele dado momento. A prudência pressupõe um saber prático; não é ciência ou arte, mas, sim, uma virtude acompanhada de razão. É a prudência, antes de tudo, uma raz ão intuitiva, que n ão discerne o exato, por ém o correto. A prudência é o meio de deliberar de forma boa e conveniente. Para tal desiderato, é fundamental observarmos a importância da linguagem, pois ―a consciência humana é o resultado da comunicação e não o contrário. A linguagem é comunicação entre o natural e o cultural, o que dá à inteligência o caráter social do comportamento humano.‖ Veriicamos uma inluência marcante da ilosoia pragmática na linguagem jurídica, mormente diante do seu caráter polissêmico e das diiculdades ao enfrentar a obscuridade, a ambigüidade e a imprecisão semântica da linguagem nos textos legislativos, por vezes deliberada, em face dos difíceis processos de negociação. Em decorrência, o Poder Judiciário enfrenta a articulação de um direito positivo, conjuntural, evasivo, transitório, complexo e contraditório, numa sociedade de conlitos crescentes. A análise pragmática permite articular certas características do funcionamento signiicativo (persuasão, legitimação, antecipação), explicitando em grande parte as funções dos discursos jurídicos. Não há como dispensar o discurso argumentativo/persuasivo, conjugado com a ponderação prática (critério da razoabilidade) visando à compatibilização de valores contraditórios e lutuantes que a realidade em freqüente mudança apresenta. A importância da aplicação do referido critério ao fato concreto para a solução do problema jurídico demonstra a aplicação de um sentido pragmático à linguagem jur ídica
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Oriana Piske
Desta forma, a pragmática, projetada ao Direito, permite compreender que a ideologia é um fator indissociável da estrutura conceitual explicitada nas formas gerais. A análise pragmática é um bom instrumento para a formação de juristas críticos, que não realizem leituras ingênuas e epidérmicas das normas, mas que tentem descobrir as conexões entre as palavras da lei e os fatores políticos e ideológicos que produzem e determinam suas funções na sociedade. Ressalte-se que não se pode fazer ciência social ou jurídica sem sentido histórico, experiencial, sem nenhum compromisso direto com as condições materiais da sociedade e com os processos nos quais os atores sociais estão inseridos. Ao nosso entender, o eixo central do pragmatismo, numa concepção interpretativa do Direito, é no sentido de que as decisões sejam tomadas observando suas conseqüências e efeitos práticos, desenvolvendo uma prudência, visando harmonizar os valores da sociedade. Na obra Topica y Jurisprudencia, a import ância dada por Viehweg ao fato concreto para a solução do problema jurídico e o uso da tópica no discurso persuasivo demonstram a aplicação de um sentido pragmático à linguagem jurídica. Não sendo diferente em face ―del logos de lo razonable‖ de Recaséns Siches, jusilósofo que percebe as insuiciências do modelo lógico-formal para o tratamento das questões jurídicas e prega a importância do problema, do fato social para o Direito, da mesma maneira pragmática de Viehweg. Neste sentido, sustenta Margarida Maria Lacombe Camargo: ―Com a ideia inicial de lógica material, Recaséns Siches se posiciona junto a autores como Viehweg e Perelman, que tratam o direito de forma assistemática. Recaséns Siches não enfrenta propriamente a questão metódica proposta pela tópica aristotélica, resgatada por Viehweg, e nem a retórica, retomada por Perelman, que adotam como base de raciocínio opiniões‖ lugar comum ―. Essas bases de verossimilhança, e não de verdades, levam à formulação de um raciocínio opinativo que guarda força apenas em seus argumentos; ao contrário do raciocínio matemático, que se apoia na certeza das inferências retiradas das premissas e que levam a uma solução correta. Não obstante a possibilidade de se estabelecer um raciocínio não-sistemático, à medida que se privilegia o problema – o fragmento, em lugar do todo -, e tamb ém poder, com o aux ílio da tópica, iluminar o problema sob os seus diversos ângulos, são ambas as possibilidades aproveitadas por Recaséns Siches. Na realidade, seria esta a grande contribuição de Recaséns Siches: buscar, a partir do problema, a axiologia do direito.‖
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Nesse trilhar, observamos que a ilosoia pragmática vem contribuindo fortemente para uma compreensão ativa da prática judicial, desenvolvendo um pragmatismo jurídico. Este é considerado um paradigma do direito contemporâneo ao procurar situar-se diante das mudanças nos hábitos sociais através de decisões que buscam sopesar o momento histórico-social em que são proferidas. O que denominamos hodiernamente de pragmatismo jurídico consiste no renascimento do Realismo Jurídico, movimento preponderante na esfera jurídica norte-americana do início do século XX, também conhecido como Jurisprudência Sociológica. Esta tendência doutrinária teve entre seus principais idealizadores Oliver Wendel Holmes Jr. e Benjamin Cardoso, os dois últimos juízes em atividade naquele período. Introduzindo um conceito de direito puramente instrumental, os realistas foram responsáveis por um período de efervescência na Suprema Corte daquele país, bem como por decisões que entraram para a história de seu ativismo. Os anos de serviço de Holmes no tribunal, bem como a sua produção teórica, marcada pela análise sobre a natureza da lei, mostram a inluência do pragmatismo. A Constituição dos Estados Unidos, defendia ele, ―é um experimento, como toda a vida é um experimento.‖ E essa é a razão por que Holmes estava sempre pronto a contestar como inconstitucionais todas as invasões das liberdades civis básicas, porque sem elas, tanto a experimentação pessoal como a experimentação social tornar-se-iam impossíveis. As premissas desenvolvidas por Holmes no livro The Common Law apresentam-se como um março histórico-intelectual. O Realismo Jurídico, com sua concepção instrumental de Direito, foi retomado na década de oitenta, porém então renomeado de pragmatismo jur ídico. Esclarecido este pequeno março histórico do pragmatismo jurídico, cabe, ainda, explicitar três elementos fundamentais que operam nesta doutrina, quais sejam: contexto, conseqüência e anti-fundacionalismo. A ideia de contexto de que se vale o pragmatismo implica que quaisquer proposições sejam julgadas pela sua conformidade com necessidades humanas e sociais. Estas mesmas proposições devem também ser testadas por suas conseqüências e resultados, conigurando assim o elemento conseqüencialista. E, por im o pragmatismo rompe com qualquer crença em entidades metafísicas. O pragmatismo não é uma teoria do Direito, mas sim uma teoria sobre como usar teoria. Pensar o Direito sob a ótica pragmatista, implica compreendê-lo em termos comportamentais, como a ativida158
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de dos juízes. O juiz pragmatista avaliará comparativamente diversas hipóteses de resolução de um caso concreto tendo em vista as suas conseqüências. De todas as possibilidades de decisão, ele tentará supor conseqüências e, do confronto destas, escolherá a que lhe parecer melhor, aquela que melhor corresponder às necessidades humanas e sociais. Ele não se fecha dentro de seu próprio sistema, ou subsistema jurídico, pois a concepção pragmatista de Direito implica a adoção de recursos não jurídicos em sua aplicação e contribuições de outras disciplinas em sua elaboração. O pragmatismo jurídico é também um modo de desempenhar a própria prática e cabe ressaltar que a hermenêutica adota o papel de motor do processo jurídico: ela é o pressuposto da discussão. Neste sentido, Boaventura de Souza Santos, entende que ―a dimensão hermenêutica visa compreender e desvelar a ininteligibilidade social que rodeia e se interpenetra nas ciências sociais, elas que são, na sociedade contemporânea, instrumentos privilegiados de intelegibilidade sobre o social. A compreensão do real social proporcionada pelas ciências sociais só é possível na medida em que estas se autocompreendem nessa prática e nô-la desenvolvem, duplamente transparente, a nós que somos o princípio e o im de tudo o que se diz sobre o mundo. A relexão hermenêutica permite assim romper o círculo vicioso do objeto-sujeito-objeto, ampliando o campo da compreensão, da comensurabilidade e, portanto, da intersubjetividade, e por essa via vai ganhando para o diálogo eu/nós-tu/vós o que agora não é mais que uma relação mecânica eu/nós-eles/coisas.‖ O direito, em toda a sua complexidade, requer a tarefa do convencimento a respeito de certas situações, o que o torna eminentemente argumentativo e hermenêutico. A retórica exerce papel fundamental enquanto processo argumentativo que, ao articular discursivamente valores, tem por escopo a persuasão dos destinatários da decisão jurídica no que concerne à razoabilidade da interpretação prevalecente. Necessita-se introduzir na análise discursiva, também, uma Semiologia que procure reletir sobre a complexidade sociopolítica dos fenômenos das signiicações jurídicas, ideológicas e ilosóicas. Ainal, o Direito ocorre na sociedade, tanto no estrato do real concreto, na medida em que os indivíduos em comunidade necessitam de regras de convivência, quanto no estrato da representação dessa realidade. Com efeito, é de fundamental importância que a especialização dos juristas seja complementada com novas sínteses que permitam obter as perspectivas necessárias para a concretização do Direito, dentre elas a concepção ilosóico-pragmática.
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Para analisar as bases ilosóicas dos Juizados Especiais é preciso destacar, ainda, quais são os valores e princípios que, acreditamos, dão-lhe o fundamento. A tutela do Direito por parte do Estado exercita-se, primeiramente, por uma forma preventiva, destinada a impedir que haja a violação da norma jurídica, mas, depois, quando a violação foi efetuada, temos a forma de tutela, que se concretiza na administração da Justiça, e que é destinada a constranger a execução da norma, se ainda é possível, ou sofrer as conseqüências da sua violação. Nesse passo, veriica-se que o espírito que sempre orientou o legislador foi o de que a composição das lides se desse da maneira mais célere possível. Isso vem desde o direito romano, como bem leciona Moreira Alves. Entretanto, as varas e os tribunais vão se tornando incapazes de dar vazão ao grande número de processos que diariamente ali entram, muito mais do que aqueles que podem ser solucionados. O acesso à Justiça passa a ser encarado como um calvário a ser percorrido pelo cidadão. Inúmeros são os motivos desse problema, dentre eles a complexidade das normas procedimentais, o valor das despesas processuais, bem como encargos com advogados, apresentam-se como fatores para a grande diiculdade de acesso à Justiça principalmente da população mais pobre. Nesse terreno surgiram os Juizados de Pequenas Causas e, em seguida, os Juizados Especiais Cíveis e Criminais trazendo a simpliicação das normas processuais e acesso a uma Justiça rápida. Os ideais de justiça e de eqüidade encontram-se nos fundamentos ilosóicos dos Juizados Especiais. A justiça, como princípio jurídico, tem a função de harmonizar os interesses em conlito. Com efeito, o sentido primordial dos juizados é distribuir a justiça com eqüidade. Julgar com eqüidade e justiça apresenta-se como o desaio constante dos juízes dos Juizados Especiais, uma vez que, para adoção de tais critérios decisórios, devem valer-se dos demais princípios jurídicos, como o da razoabilidade e da proporcionalidade num balanceamente dos interesses em conlito observando sempre os ins sociais da lei e as exigências do bem comum. Longe dos rituais tradicionais, que há mais de século trazem a Justiça engessada, nos quais predomina uma ideologia mecânica, onde o juiz é um autômato, como concebido por Montesquieu, os Juizados revelam-se um instrumento de resgate da cidadania dos excluídos e da imagem do Poder Judici ário. Co mo bem assevera Luiz Fux ―A tão decantada ‗morosidade da Justiça‘ guardava íntima correlação com o cumprimento das solenidades processuais que imobi160
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lizavam o judiciário a pretexto de garantir o réu contra os arbítrios da magistratura‖. Nesse contexto, surge um novo princípio processual – a efetividade – como resposta judicial tempestiva e adequada, irmando-se, cada vez mais, como um dos axiomas fundamentais dos Juizados Especiais. A efetividade traduz a certeza de quem busca a proteção judicial e não quer apenas que o Judiciário aprecie seu direito, mas que ponha um im naquele conlito. Vale lembrar, que ―O juiz, declarando a vontade da lei, não só vincula as partes àquela decisão, como também garante o seu efetivo cumprimento, através da execução, caso, espontaneamente, o perdedor não se submeta ao julgado. Assim, não se esgota a jurisdição, com a prolação da sentença, pois nesta o juiz cumpre e acaba tão só seu ofício jurisdicional no processo de conhecimento (art. 463, CPC), haja vista icar atrelado a outros procedimentos até a concretização do justo declarado na decisão.‖ Os princípios e critérios que habilitam o juiz a dirigir e decidir o processo nos Juizados Especiais estão explicitados nos artigos 2o, 5o, e 6o, da Lei no 9.099/95: ―Art. 2o. O processo orientar-se-à pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando sempre que possível, a conciliação ou a transação. (...omissis) Art. 5o . O Juiz dirigirá o processo com liberdade para determinar as provas a serem produzidas, para apreciá-las e para dar especial valor às regras de experiência comum ou técnica. Art. 6o. O Juiz adotará em cada caso a decisão que reputar mais justa e eqüânime, atendendo aos ins sociais da lei e às exigências do bem comum.‖
Também é fundamental que o magistrado tenha prudência. Ressalte-se que a interpretação é uma prudência. A interpretação do direito está em concretar a lei em cada caso, em sua aplicação, havendo uma intrínseca co-relação entre estes dois conceitos, visto que a interpretação e a aplicação do direito se complementam. A interpretação e aplicação são dois momentos distintos de uma mesma equação. Ambos tem um conteúdo eminentemente prático da experiência humana. Na solução das contendas, deve-se lidar com os diversos ramos do Direito articuladamente, com especial destaque à Constituição, aos variados dados normativos que são relevantes, aos níveis insFundamentos ilosóicos dos Juizados Especiais
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trumentais (processo), bem como aos critérios de proporcionalidade e razoabilidade. Consideramos, que é, também, de fundamental importância que a especialização dos juristas seja complementada com novas sínteses que permitam uma visão multidisciplinar, a im de se obter as perspectivas necessárias para a concretização do Direito, dentre elas a concepção ilosóico-pragmática. Os fundamentos losóico-pragmáticos dos Juizados Especiais encontram-se nos valores e princípios de justiça, eqüidade, efetividade e na prudência.
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VII. Ensaio
Autor João Cláudio Bonim Estudante da Faculdade de Filosoia da Universidade Federal Fluminense e membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosoia Pol ítica e Educação, coordenado pelo profes sor Giovanni Semeraro.
Gramsci disputado: As interpreta ções do seu pensamento político no Brasil
João Cláudio Bonim 1 Introdução m carta endereçada à cunhada Tatiana Schucht datada de 7 de
E
setembro de 19311, Gramsci airma que em 10 anos de jornalismo (período anterior à prisão) havia escrito ―linhas suicientes para encher quinze ou vinte volumes de quatrocentas páginas‖, entretanto esses textos eram sobre questões do dia a dia, por isso, fadados, segundo o próprio autor ―a morrer no im do dia‖ . De fato, ao chegar à prisão, em novembro de 1926, Gramsci já havia produzido uma enorme quantidade de textos em suas atividades de jornalista, secretário de redação do jornal L`Ordine Nuovo, dirigente do PCI (Partido Comunista da It ália) e da Terceira Internacional (Komintern). Durante esse per íodo de ―juventude‖ começa a desenhar uma original concepção política já presente em artigos memor áveis como ―Socialismo e cultura‖, ―A revolução contra O capital, ―Democracia Operária‖, ―O programa de L`ordine Nuovo‖, ―A questão meridional‖ etc. Entretanto, ao contrário de seus escritos juvenis, Gramsci parece disposto, na prisão , a produzir uma relexão de maior fôlego, como ica explícito na carta de 19 de março de 19274 também endereçada à cunhada. Nesta carta, Gramsci confessa estar atormentado com a ideia de fazer algo desinteressado, de longo fôlego, para sempre. Apesar da precariedade das condi ções carcer árias, Gramsci desen volveria na prisão uma velha vocação intelectual até então ―bloqueada‖ pela imaturidade, prec ária saúde, limitações inanceiras e pela milit ância política. Além disso, a possibilidade de estudar e n ão apenas ―devorar livros‖ certamente o ajudaria a suportar as duras angústias do cár167
cere: ―gostaria de me ocupar intensa e sistematicamente de alguns temas que me absorvessem e centralizassem minha vida interior ‖. As relexões de longo fôlego desenvolvidas no cárcere tornariam Gramsci um clássico do pensamento político, por outro lado, a recepção de sua obra tem sido marcada por uma enorme pluralidade. O presente artigo propõe-se investigar as principais características das diferentes interpretações a respeito do pensamento político de Gramsci no Brasil. Esse pensamento, sobretudo sua teoria política, tem forte inluência no mundo acadêmico, nos movimentos populares, na sociedade civil, partidos políticos e mais recentemente no Estado. Do ponto de vista partid ário, do PSTU ao PPS, passando por todo o PSOL e PT, além de PCdoB, PCB, PSB, todos, mesmo em graus diferenciados, estabelecem algum tipo de interlocução com o pensador político italiano. A mesma abrangência acontece em relação aos movimentos sociais. Sua inluência vai do MST ao chamado Terceiro Setor, passando por inúmeras manifestações da sociedade civil. Mesmo do ponto de vista do Estado não são poucas as políticas públicas formuladas tendo como referência sua obra. Das conferências nacionais de políticas públicas ao orçamento participativo, passando por políticas educacionais, conselhos de saúde e o tema da reforma do Estado. Em relação às áreas do conhecimento, acontece a mesma abrangência. Gramsci tem sido investigado pela Ciência Política, Educação, História, Sociologia, Serviço Social, Filosoia, Relações Internacionais e Letras. Ora visto como comunista revolucionário, seguidor de Lênin, ora como uma alternativa ao marxismo-leninismo, ou teórico da cultura, estrategista da revolução no ―ocidente‖, teórico do Estado ampliado, propositor de um novo reformismo, inspirador dos movimentos popula res na América Latina, Gramsci tem sido mobilizado de diferentes ma neiras e com diferentes objetivos. N ão é por outro motivo que sua obra serve de interlocução de autores como Carlos Nelson Coutinho, Marco Aurélio Nogueira, Álvaro Bianchi, Marcos Del Roio, Evelina Dagnino, Edmundo Fernandes Dias, Giovanni Semeraro, Lui z Werneck Vianna, Oliveiros Ferreira, Juarez Guimar ães, Demerval Savianni etc.
2 As interpretações do pensamento politico de Gramsci no Brasil Chega a impressionar a enorme pluralidade de interpretações sobre o pensamento político desse autor no Brasil. Entre elas, a de Carlos Nelson Coutinho parece ocupar um lugar central. Tal interpreta ção 168
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ganhou tamanha inluência que tem condicionado a maneira como se lê Gramsci, a tal ponto que é difícil estudá-lo fora dos termos apresentados por Coutinho. Sua contribuição, para além de uma dimensão original, será fortemente marcada por duas inluências: a tradição eurocomunista, sobretudo, nas formula ções de Palmiro Togliatti , Pietro Ingrao e Enrico Belinguer; e do marxista húngaro Georg Lukács. Assim, Coutinho lê a democratização como um valor universal, transfor mando a democracia em meio e im, ou seja, como caminho para o socialismo e ao mesmo tempo objetivo da luta socialista. Ou nas pala vras do próprio Coutinho: ―se sem democracia não há socialismo, tampouco há democracia plena e consolidada sem socialismo‖. Outra marca de sua interpretação é o realce no conceito de Estado ampliado e na ideia de socializa ção da política. Além disso, o conceito de guerra de posição é visto como alternativa à guerra de movimento e pode ser traduzido na estrat égia do reformismo revolucion ário. Essa visão dá à noção de revolução em Gramsci um sentido mais processual, sem necessariamente uma ruptura decisiva. Para Coutinho o centro dessa concepção estaria na no ção de ―Ocidente‖, formulada por Gramsci: No Oriente, o Estado era tudo e a sociedade civil era primitiva e gelatinosa; no Ocidente, entre Estado e sociedade civil havia uma relação equilibrada: a um abalo do Estado, imediatamente se percebia uma robusta estrutura da sociedade civil. O Estado era apenas uma trincheira avançada, por trás da qual estava uma robusta cadeia de fortalezas e casamatas. (CC, 3, 262).
Além da interpretação de Coutinho, outra interpretação inluente aqui no Brasil é majoritariamente articulada em torno do conselho editorial da Fundação Astrojildo Pereira e com forte interlocução na Itália com o presidente do Instituto Gramsci, Giuseppe Vacca. Essa interpretação, evidentemente plural, conta com pesquisadores como Luiz Werneck Vianna, Luiz Sergio Henriques, Marco Aur élio Nogueira, Alberto Aggio, Gildo Mar çal Brandão, Marco Mondaini. Duas características serão marcantes nessa interpretação: a leitura de Gramsci como alternativa ao chamado marxismo-leninismo, e a apropriação do conceito de revolução passiva numa chave também positiva. A crítica ao marxismo-leninismo tem relativamente a mesma origem de Coutinho, ou seja, a tradição eurocomunista e sua tentativa de ler Gramsci como um autor que compatibilizou socialismo e democracia. Portanto, a tentativa de elaboração de uma teoria democrática e a crítica ao stalinismo marcará essa interpretação. Quanto à leitura do conceito de revolu ção passiva em chave positiva, Luiz Werneck Vianna será seu principal animador. O autor de
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Caminhos e Descaminhos da Revolu ção Passiva à brasileira constrói uma original interpretação da história política brasileira a partir do conceito de revolução passiva. Curiosamente, ele interpreta esse conceito também numa chave positiva, ou seja, não só como critério de interpretação da história, mas como programa político de transformação molecular. Usei o termo, ―curiosamente‖, pois Gramsci no § 62 do tardio Caderno 15 (1933) explicitamente recusou o uso do conceito de revolução passiva como programa: ―Portanto, não revolução passiva como programa, como foi nos liberais do Risorgimento, mas como cri tério de interpretação‖. Realmente, parte dos conceitos formulados por Gramsci tinha duas dimensões, ou seja, eram, ao mesmo tempo, critérios de interpretação da realidade e projeto político. Esse fato tinha a ver com a mentalidade gramsciana de não separar o conhecer do transformar. Entretanto, foi o próprio pensador italiano quem desautorizou a leitura do conceito de revolução passiva como programa ou em chave positiva. Esse conceito, nele signiicava uma transição à modernidade sem passar por uma revolu ção política do tipo jacobino -radical . Na nota 11 do caderno 15 não icam dúvidas quanto ao caráter negativo (conservar -mudando) desse conceito: Das necessidades da tese se desenvolver integralmente, até o ponto de conseguir incorporar uma parte da própria antítese, para não se deixar ―superar‖, isto é, na oposição dialética somente a tese desenvolve, na realidade, todas as suas possibilidades de luta, até capturar os supostos representantes da antítese: exatamente nisso consiste a revolução passiva ou revolução – restauração.
O problema dessa leitura, em chave positiva, é que ela transforma Gramsci num reformista ainda mais radical (transformação molecular) do que proposto por Coutinho, cuja formulação ainda tem uma mediação com a ideia de reformismo revolucionário. O clássico debate entre Rosa Luxemburgo e Eduard Bernstein de certo modo sempre condicionou a esquerda a pensar a estratégia a partir da dicotomia entre reforma e revolução. O que essa interpretação do conceito de revolução passiva faz é fragilizar, talvez, a grande contribuição de Gramsci à teoria da revolução: superar a dicotomia entre reforma e revolução. Porém, deve-se ressaltar que Werneck teve o mérito de advertir para textos de Gramsci, pouco estudados no Brasil, como notas sobre Americanismo e Fordismo e as sobre o Risorgimento e a História da Itália. Além disso, como já mencionado, outra marca dessa leitura é pensar Gramsci como uma alternativa à tradição bolchevique, incluindo tanto as relexões de Trotski e Stalin, quanto do próprio Lênin. Em relação a este último, o assunto é mais complexo. Gramsci 170
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é, em linhas gerais, em seus cadernos carcerários, muito elogioso a Lênin. Deine-o como o maior teórico da ilosoia da práxis e chega mesmo a atribuir a formulação do conceito de hegemonia ao autor de Que fazer?. Entretanto, de fato, a comparação entre suas obras, sobretudo suas relexões mais ilosóicas, icam evidentes também diferenças. Nesse sentido, tem razão Coutinho quando fala em relação de ruptura e continuidade ao referir-se à relação entre os dois autores. Alberto Aggio e Luiz Sergio Henriques pensam diferentemente. Para eles, Gramsci é uma alternativa ao velho bolchevismo: Não seria exagerado ver neste tipo de cuidado um primeiro sinal de distanciamento entre Gramsci e a ilosoia da história, seu acentuado ―inalismo‖, que assinala a tradição bolchevique. (...) ―O que Gramsci ―nos proíbe‖, por assim dizer, é regredir à cultura política, bem como à práxis do velho bolchevismo, cujos limites insuperáveis ele foi um dos primeiros a ver. (Ibid, pg..6)
Nessa mesma linha ―anti-bolchevique‖, Evelina Dagnino apresen ta uma contribuição adicional e ―traduz‖ para um debate especíico sobre democracia, participação da sociedade civil e políticas públicas às ideias de Gramsci. Para Dagnino, o impacto renovador de Gramsci no âmbito da esquerda refere-se, sobretudo, à sua crítica ao determinismo econômico. A autora sustenta dois desdobramentos importantes dessa ideia: uma imbricação entre cultura, política e economia; e uma equivalência entre forças materiais e elementos culturais dentro de uma visão integrada de sociedade como um todo. Valorizando o aspecto cultural em Gramsci, ela argumenta que tanto a reforma intelectual e moral, quanto a ideia de consentimento ativo mo diicam os parâmetros do pensamento de esquerda, abrindo assim uma alternativa ao marxismo -leninismo. É interessante como Dagnino, a par tir de Gramsci, ou seja, fora do referencial te órico hegemonizado por Habermas e pelas teorias do terceiro setor, consegue contribuir no debate sobre democracia participativa na chave da socialização da política. Marco Aur élio No gueira tamb ém investiga o tema da democracia, das relações Estado – sociedade civil e o conceito de política. Este último é tratado em Em defesa da política, no qual ele sustenta ser a política a possibilidade de uma convivência construtiva entre os cidadãos, por isso, critica seu enfraquecimento e ―despolitização‖. Sustenta que não faz sentido pensar a construção da hegemonia de ―costas‖ para o Estado, para a política e os partidos. Além disso, associa hegemonia aos soisticados mecanismos de mídia, cultura, subjetividade e direção capazes de ―ixar parâmetros de sentido que desloquem valores e movimentem grandes massas de pessoas‖.
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Em Um Estado para sociedade civil sustenta a ideia de um controle da sociedade civil sobre o Estado como mecanismo de democra tização. A partir de um reinado conhecimento da dialética gramsciana, estabelece nexos entre a ilosoia da práxis e o debate acerca das relações Estado-sociedade civil. Assim, foi possível superar construções ancoradas na ideia de que o Estado é o lugar da corrupção e do autoritarismo, enquanto a sociedade civil é virtuosa e democrática. Um contraponto a essas interpretações da obra de Gramsci é construído por autores que procuram valorizá-lo como comunista, revolucionário e continuador da tradição bolchevique. É em torno de autores como Edmundo Fernandes Dias, Marcos Del Roio e Álvaro Bianchi que essa interpretação é articulada. Uma de suas principais características é valorizar os escritos de Gramsci anteriores à prisão e traçar uma linha de continuidade entre esses escritos e os Cadernos do cárcere. Nesse sentido, Os dois primeiros autores produziram interessantes trabalhos sobre o tema. Em O laboratório de Gramsci, Álvaro Bianchi teve o mérito de valorizar as relexões mais ilosóicas de Gramsci, sobretudo sua concepção dialética, assim como constrói uma original interpretação das relações entre Estado/sociedade civil, força/consenso, guerra de posição/guerra de movimento. Ele trava com Coutinho uma interlocução crítica que vai permear todo seu livro. Num desses momentos, ele sustenta que Gramsci articulou guerra de posição e guerra de movimento e, por isso, não poderia ser lido em uma chave reformista, ou seja, a guerra de posição seria um momento de preparação da guerra de movimento, ao contrário do que pensa Carlos Nelson. Bianchi atribui a Coutinho um jogo-de-soma-zero do Estado, em que ―mais sociedade civil igual a menos sociedade política tem como corolário uma concepção algébrica das formas de luta das classes subalternas, na qual mais ―guerra de posição‖ equivale a menos ―guerra de movimento‖. Essa concepção permite a Bianchi relativizar as diferenças entre Gramsci e Trotski: ―não se trata, pois, de estabelecer uma falsa identidade entre esses autores, assim como não há mais sentido em uma inventiva oposição de princípios‖. Bianchi tem apenas parcial razão no encaminhamento da discussão sobre a relação entre guerra de posição/guerra de movimento. Ao considerar que a forma de luta (guerra de posição/guerra de movimento) depende, sobretudo, das relações de força, acaba não conseguindo valorizar algumas especiicidades presentes na concepção de guerra de posição. Além disso, não são poucos os momentos dos Cadernos nos quais Gramsci critica a estratégia do ataque frontal.
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Ele estava convencido do caráter estratégico desse debate e chegou a considerá-lo a questão fundamental da teoria política do pós-guerra. No taxativo § 138 do Caderno 6, o autor italiano sustenta que a estratégia do ataque frontal proposta por Trotski tem sido apenas causa de derrotas: Esta me parece a questão de teoria política mais importante posta pelo período do pós-guerra e a mais difícil de se resolver corretamente. Ela está ligada às questões levantadas por Bronstein, que, de um modo ou de outro, pode ser considerado o te órico político do ataque frontal num período em que este é apenas causa de derrotas. (CC, 3, 255).
Uma interpretação à parte do pensamento político de Gramsci é a formulada por Giovanni Semeraro. Em seu último trabalho ―Hegemonia e Libertação: para realizar a América Latina pelos movimentos populares‖ articula Gramsci, Paulo Freire e Teologia da Libertação para pensar a luta dos movimentos populares no subcontinente. Sua interpretação, ainda que muitas vezes de forma não explícita, procura relativizar o papel dos partidos políticos enquanto instituições que detêm o ―monopólio‖ do momento catártico, além de questionar o eleitoralismo, pragmatismo e ―realismo‖ presentes na esquerda brasileira. Já em ―Gramsci os novos embates da ilosoia da práxis‖ produz uma das mais completas sistematizações dessa concepção no Brasil. Como ponto alto dessa sistematização, ele explica como Gramsci articulou uma visão de totalidade com valorização do particular, numa dialética capaz de identiicar diversidade dentro de uma visão de totalidade: ―Buscar a real identidade na aparente diferenciação e contradição, e descobrir a substancial diversidade por trás da aparente identidade é a mais delicada, incompreendida e, contudo essencial capacidade do crítico das ideias e do historiador do desenvolvimento social‖. Por im, Juarez Guimarães, em Marxismo e Democracia: crítica à razão liberal, dedica o capítulo oito de seu trabalho a uma densa interpretação de Gramsci. Para o professor da UFMG o conceito de hegemonia ―centraliza e solda um campo teórico que permite superar a visão determinista da história‖. Segundo ele, as tensões entre marxismo e democracia estariam relacionadas às tensões deterministas presentes no marxismo. Esse foi o sentido das críticas formuladas por autores como Croce, Weber, Popper e Bobbio cuja raiz, sobretudo na visão de Bobbio, está na crítica à ilosoia da história, determinismo/economicismo e à visão organicista ou anti-individualista. Foi exatamente o marco teórico formulado por Gramsci, segundo Gui-
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marães, que superou deinitivamente as tensões deterministas e os impasses da relação socialismo e democracia. Guimarães salienta, ainda, que mais recentemente ocorre a devida valorização das relexões ilosóicas de Gramsci, em cujo centro está o conceito de práxis, ―isto é, a relação entre vontade humana (superestrutura) e a estrutura econômica‖. Embora essas relexões tenham sido taxadas de idealistas, Guimarães sustenta a tese de que a ilosoia da práxis supera tanto o idealismo quanto o materialismo, ao superar essas duas correntes ilosóicas incorpora seus elementos vitais. Essa superação estaria contida na noção de hegemonia: ―Assim, o conceito de hegemonia carrega dentro de si a superação do dualismo matéria/ideia. Como vontade coletiva objetivada, ele tem o estatuto de uma força material (a base material da hegemonia); como projeção da vontade no grau máximo, ele é subjetividade e cultura. Não é, pois, nem ―estrutura‖ nem ―superestrutura‖, mas a síntese de ambas‖. (Ibid, p. 145).
3 Os limites das interpretações do pensamento político de Gramsci no Brasil Apesar de Gramsci revelar ao longo de seus Cadernos uma peculiar e coerente concepção de mundo, que resultará em uma densa relexão politica, não há como negar o caráter inacabado de sua obra carcerária. De fato, não teve tempo tanto de transformar todos os textos A em textos C, assim como completar a própria tarefa que ele mesmo havia já advertido aos seus prováveis leitores: ―As notas contidas neste caderno, como nos demais, foram escritas ao correr da pena, como rápidos apontamentos para ajudar a memória. Todas devem ser revistas e veriicadas minuciosamente, já que certamente contêm inexatidões, falsas aproximações, anacronismos. Escritas sem ter presentes os livros a que se referem, é possível que, depois da veriicação, tenham de ser radicalmente corrigidas, precisamente porque o contrário do que foi escrito é que é verdadeiro‖. Devido à deterioração de sua precária condição de saúde, já em 1936 Gramsci praticamente não conseguia mais trabalhar (escrever) em seus Cadernos. Esse trabalho que ele não podia mais continuar, no que tange as suas relexões mais ilosóicas, não foi, ainda hoje, devidamente ―valorizado‖ pela sua própria tradição intelectual (marxismo). Elas foram subestimadas, ignoradas ou mesmo consideradas idealistas por alguns dos seus principais intérpretes, por isso, não se formou, ainda, uma cultura de continuidade, aprofundamento, complementação dessas relexões. Uma das razões desse fato tem origem 174
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nas apropriações que o pensamento de Gramsci obteve tanto da tradição eurocomunista, quando do marxismo mais ortodoxo e mesmo daqueles que produziram interpretações heterodoxas. Por isso, Gramsci icou limitado ora a um estrategista da revolução no ―ocidente‖, teórico da cultura, ou mesmo continuador do leninismo, enquanto o Gramsci ilósofo da práxis era pouco ressaltado. Nesse sentido, a tradução e o diálogo entre essas relexões mais ilosóicas e sua teoria política, ou seja, o estabelecimento de nexos entre essas duas dimensões da obra de Gramsci, que no fundo compõe (em conjunto, articuladas) a sua original relexão política, ainda não foi devidamente investigado. Apenas tardiamente autores como Giorgio Baratta, Fabio Frossini, Renato Zangheri, Alberto Caracciolo; no Brasil, o pioneiro trabalho de Michel Debrum, as interessantes pistas de Juarez Guimarães, Rosemary Dore e, sobretudo, o esforço de Giovanni Semeraro começam a apontar os principais eixos de constituição dessa pesquisa. De fato, tal tarefa é trabalho árduo que certamente levará décadas e será levado adiante, como já está sendo, por uma geração de novos pesquisadores (apoiada, evidentemente, pela longa caminhada dos estudos gramscianos). Nesse sentido, o presente artigo, além de localizar parte desse debate, propõe-se a apresentar uma contribuição, ainda que inicial, a esse desaio interpretativo.
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VIII. Homenagem
Autores Arildo Dórea Jornalista, ensaísta, ex-diretor geral da Fundação Astrojildo Pereira.
Ana Luisa Za nib o ni Gom es Jornalista e pesquisadora, diretora da Oboré e curadora do 35º Prêmio Vladimir Herzog.
Ivan Alves Filho Jornalista, historiador, autor de mais de uma dezena de importantes obras, com destaque para Memorial dos Palmares.
Centenário de Giocondo Dias
Ivan Alves Filho
―P
ensar é fácil, agir é difícil; agir de acordo com o pensamen -
to impossível‖ – essa máxima do grande escritor alemão Goethe não se aplica ao grande revolucionário brasileiro Giocondo Dias, cuja trajetória sempre se pautou por uma busca pela total identiicação entre visão de mundo e prática política.
Giocondo Dias faria 100 anos neste mês de novembro de 2013. E acredito que a Fundação Astrojildo Pereira, ao me convidar para uma reedição atualizada da obra, quis marcar com esse gesto sua grande dívida para com o velho revolucion ário comunista. Ainal, Giocondo foi um dos principais representantes daquilo que o pensamento democrático brasileiro teve de melhor, em toda sua história. E um dos artíices mais brilhantes da estratégia vitoriosa de isolamento da ditadura militar, derrotada politicamente pela luta de massas, após 21 anos no poder. Nem é preciso dizer que a FAP resulta de todas essas lutas. Nascido em Salvador, Bahia, em 1913, Giocondo Dias começou a trabalhar com apenas sete anos de idade no caís do porto da cidade, socando pimenta em pilões. Aos 13 anos, já distribuía pelas ruas de sua cidade o jornal do Partido Comunista. Em 1935, ele encabeça o levante aliancista no Rio Grande do Norte, quando os comunistas tomam o poder por três dias. Ferido e preso, sai com a anistia de 1937 e mergulha novamente na clandestinidade, até 1945. Em 1946, é eleito deputado constituinte pelo BCB na Bahia, mas, j á em 1947, retorna à vida clandestina, ocupando-se do aparelho de Luiz Carlos Prestes. Somente voltaria a ver a luz do dia em 1958, quando os principais líderes do PCB esboçam um retorno à vida legal. E este é também o 181
ano da célebre Declaração de Março, que ele apoia de corpo e alma. Ao lançar este documento, os comunistas optavam pela ultrapassagem da ordem capitalista no terreno da democracia. Com o advento do Golpe de 1964, Giocondo enfrenta seu período mais longo de perseguições, do qual só emergiria 15 anos mais tarde. No início dos anos 1980, torna-se o secretário geral da organização, substituindo o legendário Luiz Carlos Prestes. No total, Giocondo passaria 41 anos de sua vida na clandestinidade, na cadeia ou no exílio. E sempre pertenceu a um partido só, o PCB. Sua trajetória serve de lição para muitos políticos e militantes de hoje. teve uma vida de cortar o fôlego. Como se isso não bastasse, Giocondo Dias morreu em 7 de setembro de 1987, no Dia da Pátria. Ao publicar a primeira versão de um dos seus livros biográicos, em 1991, eu me perguntava, ainda impressionado pelo seu despojamento e capacidade de luta, sobre as razões pelas quais um homem se tornava revolucionário. Não há uma resposta única – ou melhor, a resposta só pode resultar de uma combinação de fatores, já que o ser humano é o conjunto das relações sociais de sua época. Nesse sentido, tanto a luta por melhores condições quanto a necessidade que todos temos de inserção em um projeto coletivo ou o desenvolvimento de uma concepção humanista dos fatos da vida como que conluem para a personalidade do lutador social. Se todo indivíduo é, ao mesmo tempo, um ser particular e genérico, é forçoso reconhecer, como o fez certa feita a ilósofa húngara Agnes Heller, que, no tocante ao revolucionário, a ―esfera do genérico‖ é bem mais acentuada. Para a personalidade revolucionária, não há oposição entre o individual e o coletivo, o particular e o genérico, justamente. Para mim, que conheci Giocondo Dias rapidamente em 1971, quando se deslocou até minha casa para uma conversa reservada com meu pai, é motivo de grande orgulho reeditar novamente as suas memórias, acrescidas de alguns novos dados e análises. Cheguei a colaborar diretamente com ele no período da legalidade do PCB, em 1985, conforme digo no livro. Raramente vi uma personalidade tão calma e segura de suas convicções. E, ao mesmo tempo (e talvez até mesmo por isso), extremamente aberta ao diálogo, ao novo. Era um homem tolerante. Foi um dos meus mestres, não só na militância política, como na vida em geral, pois eu nutria por ele uma admiração profunda. Sua experiência contagiava aos mais jovens como eu. 182
Ivan Alves Filho
Não são muitos os partidos políticos no mundo que alinham em seus quadros um homem da sua grandeza, coerência e retidão. Sua grande preocupação? Nunca afastar o Partido das massas populares, daí a importância que dava à luta pela democracia e, com ela, pela própria legalidade do Partido Comunista, o qual viveu mais de dois terços de sua existência atuando sob a vigilância e/ou a repressão dos órgãos policiais e militares. Giocondo Dias deixou imensas saudades.
Centenário de Giocondo Dias
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Rui Facó, um intérprete do Brasil
Arildo Dórea uando Euclides da Cunha se deslocou para a região de Ca-
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nudos, como rep órter do jornal O Estado de São Paulo, já teria ideia formada sobre aqueles revoltosos. Seriam bandidos fanatizados por um louco e pretendiam derrubar a jovem República.
O contato direto, no entanto, com a situação ali encontrada modiicou por inteiro essa pré-conceituação. E Euclides se sentiu levado a escrever obra fundamental à análise da formação histórica e social de nosso país. O cientiicismo reinante à época, para o qual tudo teria de ser examinado segundo a trilogia deinida por Taine: raça, meio e momento, levou-o a um linguajar por vezes gongórico, por isso distanciado do entendimento geral, mas não o impediu de trazer, para nós, até hoje, uma ideia de nação que, até então, sequer se imaginava. Mário de Andrade age no mesmo sentido, ou seja, na procura dessa nação a que chamamos Brasil. Seu Macunaíma, como numa fábula, corre todo o país, levanta aculturamentos, descobre receitas de formação social e percebe que essa nação ainda não tinha caráter, ou seja, ainda não tinha, já ao princípio do século XX, aquelas características fundamentais que delineiam uma cultura especíica. No caso, a Nação Brasileira. Nessa linha de pesquisa, seja nessa necessidade de encontrar o Brasil – no Brasil e para os brasileiros – Rui Facó escreve seu primei ro livro, o Brasil Século XX. Marcou para isso uma data, a década de 30. Entendeu que o movimento rebelde cheiado por Get úlio Vargas trazia em seu bojo a exata deinição de nossa caracterização nacional. É que, a partir dali, o Brasil, com característica de uma nação, teria lançados seus deinitivos alicerces. E sobre eles iríamos começar a construir nosso futuro. De fato, no período, a cultura ganhou as especiicidades nacionais de que nosso povo e nossa terra estavam necessitados. Érico Veríssimo e Dyonélio Machado, no Sul, Dalcídio Jurandir, no Norte, 184
os romances de Marques Rebelo, a obra de Graciliano Ramos, a de Jorge Amado, o romance prolet ário de Alina Paim, todos, por diferen tes caminhos, apontavam uma direção: a deinitiva caracterização de uma cultura nacional. Um destaque está na utilização de todo o instrumental da doutrina marxista de que se valeu Rui Facó para sua aprofundada análise social. E isso quando esses estudos marxistas ainda engatinhavam em nosso país, enfrentando as diiculdades decorrentes de um mundo intelectual para o qual apenas o que era francês ou inglês ou espanhol ou russo seria erudito e válido. Astrojildo Pereira, com sua visão antecipativa desses avanços, já se referia à pobreza franciscana dos estudos brasileiros com o emprego do arsenal composto por Marx. Ele mesmo, aliás, já tentara romper tais e tantas amarras. Enquanto a crítica cabocla gastava tinta e papel para deinir, por exemplo, a obra de Machado de Assis, procurando nela encontrar a inluência de Jonathas Swift, de Charles Dickens ou de Nicolas Gogol, nosso Astrojildo lan çou seu clássico Machado de Assis, um romancista do Segundo Império, ixando, com isso, num contexto nacional, o espaço social em que se desenvolveu a prosa machadiana: no Brasil de Dom Pedro II. Nada mais preciso. Rui Facó não para por aí com seu processo, digamos assim, de desmistiicação. Celebrizou-o, ainda, uma segunda obra – Cangaceiros e Fanáticos. Ali ele já entende desnecessário procurar se deinir como um escritor brasileiro. Valendo-se de sua vivência – um cearense instalado na Bahia de Todos os Santos – busca derrubar os mitos de que os tipos examinados decorriam muito mais de ilusões sociológicas que da realidade mesma que todos enfrentavam. Analisar a igura de Padre Cícero Romão Batista – o grande líder dos fanáticos – como um fenômeno de essência religiosa é desviar a análise de sua destinação especíica: esclarecer a verdade daquela realidade. Seja, valer-se da metodologia marxista, segundo a qual a realidade objetiva teria de ser examinada à base de uma análise também objetiva. Os fanáticos do Padim, como, de resto, aqueles que pululavam por praticamente todo o Nordeste, seguidores de apocalípticos profetas, queriam, essencialmente, libertar-se de condições de vida que chamar de subumanas seria pouco exato. A essa gente se prometiam milagres e outras transcendências artiiciosas. Ora, diante do nada em que viviam, as promessas divinatórias seriam tudo. Rui Facó, um intérprete do Brasil
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Os cangaceiros são bandidos. Mas não nasceram bandidos. Viviam ali onde viviam aquelas multid ões de fanáticos e visionários. Só que tinham outra visão de sua existência, cujos problemas teriam que ser resolvidos por eles mesmos. Sem lei, na marra. Uns e outros eram vítimas de situações diferentes na forma, mas idênticas na origem: a desesperança e a falta de perspectiva. Daí que o milagre ingia curar uma e a violência, a outra. O sertão, aquele de Padre Cícero e Lampião, acabou. Nem que seja quantitativamente. Nossa população rural, hoje, é de cerca de apenas 20% do total. Mas o sertão continua. E continua na periferia dos grandes centros urbanos, ali onde, não por acaso, surgem novos tipos de fanáticos e milagreiros e bandidos. É nesse sentido que atua não o intelectual Rui Facó, mas o militante comunista que entendeu seu país, nossa realidade, e que buscou participar, como sempre o fez, daquilo que entendeu – que entendemos – como solução para essas urgências, essas carências. É o militante comunista que, no velho Partidão, lutou em todas as trincheiras, ali onde se necessitava de orientação consciente, da compreensão dos problemas de nosso país e de nosso povo. Ali onde o futuro não seria uma promessa fugaz para acalmar os desesperançados, os desencantados, mas, sim, uma certeza de um novo futuro ao alcance de nossas mãos. No último dia 4 de outubro, comemoramos o centenário de nascimento de Rui Facó. E nos lembramos de que, há cinquenta anos, nosso querido companheiro morria num desastre aéreo, numa viagem em que seguia a cumprir tarefa partidária: perdeu a vida lutando por um ideal que era o nosso: o futuro socialista, num mundo fraterno e igual coletivo. É o que há de ser feito lutando, seguindo o exemplo de um militante que morreu a meio mesmo dessa luta. Seguia, vale observar, a lição de Joaquim Nabuco: ―Não nos basta acabar com a escravidão; é preciso destruir a obra da escravidão‖.
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Arildo Dórea
Prêmio Vladimir Herzog celebra 35 anos
Ana Luisa Zaniboni Gomes uem esteve no Audit ório Simó n Bolívar do Memorial da Am é-
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rica Latina, em São Paulo, na noite de 22 de outubro, reviveu momentos marcantes da história social e política do Brasil das últimas décadas. A 35ª edição do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos reuniu cerca de 600 convidados – entre jornalistas, estudantes, artistas, juristas, políticos e militantes – para aplaudir o trabalho de jornalistas que, através de suas reportagens, colaboraram na defesa e promoção da Democracia, da Cidadania e dos Direitos Humanos e Sociais. A cerimônia foi conduzida pelos jornalistas Juca Kfouri, colunista da Folha de S. Paulo, CBN e ESPN Brasil, e Mônica Teixeira, da TV Cultura e Univesp TV. Ao todo, foram 18 trabalhos jornalísticos premiados em nove categorias: Artes, Fotograia, Jornal, Revista, Rádio, Internet, Reportagem de TV, Document ário de TV e uma categor ia especial, envolvendo todas as mídias com o tema ―Violências e agressões físicas e morais contra jornalistas e contra o direito à informação‖. Diante de uma plateia acolhedora, o discurso de abertura foi de José Augusto Camargo, presidente do Sindicato dos Jornalistas Proissionais no Estado de São Paulo, representando as onze entidades que integram a Comissão Organizadora do evento: Associação Brasileira de Imprensa/SP; Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo; Centro de Informação das Nações Unidas no Brasil; Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de S ão Paulo; Escola de Comunica ções e Artes da Universidade de São Paulo; Federação Nacional dos Jornalistas; Fórum dos Ex-Presos e Perseguidos Políticos do Estado de São Paulo; Instituto Vladimir Herzog; Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Ouvidoria da Pol ícia do Estado de S ão Paulo e Sindicato dos Jornalistas Proissionais no Estado de São Paulo. Em sua fala, José Augusto Camargo fez um apelo à sociedade e ao governo para que voltem suas atenções ao problema da violência contra os proissionais de imprensa. Segundo ele, o número de agressões e mortes de jornalistas no ano de 2012 colocou o Brasil em uma posição indigna entre as nações democráticas, com o agravante de que, em 2013, ao eclodirem as manifestações de rua em todo o país, ―teve início um onda de violência física contra jornalistas como não 187
se via desde os mais duros anos da ditadura‖. Muitos jornalistas foram agredidos pelas forças policiais mas também por manifestantes, o que caracteriza uma intimidação que impede o livre luxo da informação e põe em risco as instituições democráticas. Prêmio Especial Vladimir Herzog 2013 Além das premia ções por categoria, tamb ém foram ho menageados na cerimônia três grandes nomes da imprensa brasileira pelos relevan tes serviços prestados às causas da Democracia, Paz e Justiça: Perseu Abramo (criador do Prêmio, in memoriam), Marco Antônio Tavares Coelho, editor da revista Política Democrática, e Raimundo Pereira. A iniciativa das instituições promotoras retoma proposta original do Prêmio, que previa tal homenagem a personalidades ou jornalistas que jamais inscreveriam seus trabalhos em qualquer tipo de concurso. Já foram homenageados Lourenço Diaféria (in memoriam), David de Moraes, Audálio Dantas, Elifas Andreato, Alberto Dines e Lúcio Flavio Pinto. Raimundo Pereira recebeu seu troféu das mãos de André Freire, diretor do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, em nome do ministro Aldo Rebelo, do Esporte. Aos 87 anos, Marco Ant ônio Tavares Coelho recebeu o troféu das mãos de seu ilho, Marco Antônio Tavares Coelho Filho, diretor da Empresa Brasil de Comunicação. Zilah Abramo, esposa de Perseu, fez as honras em nome da família e recebeu a homenagem das mãos do jornalista Giancarlo Summa, diretor do Centro de Informação das Nações Unidas no Brasil. Os organizadores do Prêmio Vladimir Herzog também promoveram uma Roda de Conversa com os jornalistas premiados. A troca de experiências entre os participantes se deu na manhã de 22 de outubro, na Sala dos Espelhos, no Memorial da América Latina, e contou com transmissão ao vivo pela TV PUC. Coordenado pelos jornalistas Sergio Gomes, diretor da Obor é, Aldo Quiroga, da PUCSP e TV Cultura, e Angelina Nunes, diretora da Abra ji, o bate-papo reuniu 14 jornalistas em uma verdadeira aula de bom jornalismo. Participaram da Roda: José Raimundo e Caio Cavechini, da TV Globo; Bianca Vasconcellos, Gustavo Minari e parte da equipe de reportagem da TV Brasil; Matheus Leit ão, da Folha de S.Paulo; Ma rilu Cabanãs e Anelize Moreira, repórteres da Rádio Brasil Atual; Allan Costa Pinto, repórter fotográico da Tribuna do Paraná; Kleber Soares, ilustrador no Correio Braziliense; Wagner William, rep órter da revista Brasileiros; Janaína Garcia, do Portal UOL; Ismael Xavier, do Diário do Pará; e Fausto Salvadori Filho, da revista Apartes.
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Ana Luisa Zaniboni Gomes
IX. Resenha
Autores JosĂŠ Antonio Segatto Professor Titular do Departamento de Sociologia da FCL/Unesp/CAr.
Karina Toledo Jornalista, da equipe da Folha de S. Paulo.
Gramsci nos anos de cárcere
José Antonio Segatto obra de Anto nio Gramsci, mais de tr ês quartos de século ap ós
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sua morte, continua a inspirar e exercer inluência em intelectuais e políticos, movimentos e partidos, instituições e organizações dos mais diversos tipos e concepções. Seu legado teórico-político — desde a ―edição temática‖ dos anos cinquenta, organizada por Palmiro Togliatti e Felice Platone, à ―edição crítica‖ dos Cadernos (1975), realizada por Valentino Gerratana — foi e prosseguiu sendo avaliado e recepcionado por vertentes pol ítico-ideológicas as mais va riadas (comunistas, socialistas e até liberais-democratas). Traduzida em muitas línguas e com inúmeras edições, a fortuna crítico-analítica de sua obra é constituída, provavelmente, de alguns milhares de estudos, ensaios, artigos, livros, teses acadêmicas etc., em todo o mundo. É reconhecidamente um dos maiores e mais importantes teóricos da política dos séculos XX e XXI. Pode-se dizer, sem exageros, que Gramsci é, indubitavelmente, um clássico da teoria política. Sua obra excede em muito o momento em que foi produzida e insiste em conservar-se admiravelmente contemporânea — ―é um autor que vive além do próprio tempo e também fala aos pósteros‖ (p. 38). O reconhecimento e a apropriação de seu patrimônio teórico-político por múltiplas correntes e tendências (ou facções delas), cada qual à sua maneira — em alguns casos de forma instrumental ou segundo conveniências momentâneas —, na intervenção política ou nos embates ideológicos não são, porém, um fato sem implicações e consequências. Isso relete-se nas leituras e interpretações que têm sido feitas dos escritos de Gramsci, gerando, inclusive, um embate histórico-teórico em torno de sua herança. E é nesta controvérsia 191
que se inscreve o novo livro de Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci (1926 -1937). Fruto de décadas de investigação, Giuseppe Vacca realiza uma releitura da obra de Antonio Gramsci, especialmente dos Cadernos do cárcere, seguindo a melhor tradição do Partido Comunista Italiano — PCI, expressa em Palmiro Togliatti e Enrico Berlinguer. Faz uma exaustiva análise dos anos em que Gramsci esteve nos cárceres fascistas (1926, p. 37), utilizando-se da correspondência (em parte inédita) que manteve com a mulher (Giulia), a cunhada (Tania Schucht) e Piero Sraffa; efetua um minucioso trabalho de reconstituição histórica, cotejando a correspondência com as notas do cárcere; entende que ―o epistolário é uma chave privilegiada de acesso à leitura dos Cadernos: em alguns casos, sintetiza seu conteúdo, em outros, acompanha sua evolução ou antecipa as linhas de pesquisa‖ (p. 345). Concomitante a isso, vale-se de depoimentos de contemporâneos e documentos da Internacional Comunista — IC, checando as várias fontes com a bibliograia e inserindo-os no complexo período da ―grande guerra civil europeia‖ (1914-1945). Observe-se que Vacca não analisa os escritos de Gramsci anteriores à prisão, com poucas exceções, como é o caso das ―Teses de Lyon‖ e do famoso texto ―Alguns temas da questão meridional‖, ambos de 1926. A biograia reconstruída por Vacca faz convergir os dramas pessoais/íntimos com as relexões políticas; ou melhor, realiza uma releitura dos Cadernos juntamente com ―a reconstrução das vicissitudes políticas e humanas de Gramsci na prisão‖, unindo ―teoria e biograia‖ (p. 29) — é, de fato, uma biogra ia, a um só tempo, intelectual, pol ítica e pessoal. Há, no livro, alguns capítulos exemplares desse recurso totalizante utilizado por Vacca. Sobretudo os cap ítulos X e XI, nos quais analisa as cartas para a mulher sobre a psicanálise e a questão hebraica, envolvendo temas e indaga ções do universo familiar que o an gustiavam. Imbricado com as inquietudes dos problemas familiares (em especial da mulher e dos ilhos), a biograia aborda de maneira sóbria a condição humana do prisioneiro do fascismo, s eus incômodos com a saúde precarizada pela difícil situação das prisões, além de aligido pelas suspeitas em relação ao Partido e sua direção (em especial Togliatti), que desconiava terem prejudicado sua liberta ção. Aliás, sobre isso Vacca faz uma longa e documentada reconstituição das fracassadas tentativas de libertação de Gramsci e conclui: Togliatti não precisava sabotar tentativas de libertação que, na realidade, jamais foram realizadas seriamente pelo único ator que poderia empreendê-las, vale dizer, o governo soviético. Empregando uma linguagem mais ―familiar‖, Mussolini já cuidava de manter
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Gramsci no cárcere, e sua libertação jamais conigurou objeto de interesse estatal soviético (p. 494).
Não obstante todos os infort únios do prisioneiro, Gramsci em mo mento algum deixou de proceder como dirigente político do PCI — por meio de uma linguagem cifrada fazia chegar a Togliatti, por meio de Sraffa, suas avaliações sobre a situação política italiana e internacional e, claro, suas discord âncias com as orienta ções da IC e do PCI. Gramsci se oporia frontalmente à tese da IC do ―social-fascismo‖, segundo a qual a social-democracia era caracterizada como inimiga principal e identiicada com o fascismo. Isso implicava que o PCI deveria abandonar a política de frente única e ―adequar-se a nova estratégia do Komintern, que considerava iminente uma nova onda revolucionária e indicava como objetivo imediato a insurreição‖ (p. 142). É contra essa orientação, da ―tática de classe contra classe‖ e da ―estratégia insurrecional‖ (1929-34) da IC que Gramsci iria se opor e que o levaria a repensar e reelaborar a teoria política do socialismo ou a ―ilosoia da práxis‖. Para Vacca, ―a discordância de Gramsci estava condensada na proposta política de Constituinte ‖ (p. 197). A palavra de ordem Cons tituinte implicava não só o descarte da ―estratégia da revolução proletária‖, mas também ia além da tática da frente única. Ela seria um meio — não um im — para a instauração da democracia; ―é concebida como certidão de nascimento da nação democrática‖ (p. 246). Corresponderia ―ao objetivo de refundar as bases da vida nacional de modo reformista‖ (p. 244). Isso pressupunha superar a noção de revolução permanente — originária do Manifesto do Partido Comunista em 1848 e bem sucedida na Rússia de 1917 — de transformação da revolução democrática em revolução proletária; ou seja, a luta pela democracia não podia ser pensada como uma fase de transição para o socialismo. E vai além ao airmar que a proposta política de Constituinte de Gramsci só pode ser entendida no interior do ―sistema teórico dos Cadernos (p. 207) e que o ponto de partida para sua compreensão é a análise do fascismo. O fascismo, para Gramsci, seria uma modalidade de revolução passiva — e mesmo desdobramento hist órico do Risorgimento — q ue estaria procurando efetuar, dentro das condições do atraso e no contexto da crise, a modernização e/ou americanização da Itália. Para tanto, conferia ao Estado o papel de agente primordial de transformação e conservação concomitantemente, que a classe dominante ou qualquer força política seria incapaz de executar. Ou seja: o fascismo como agente europeu da ―revolução passiva‖ que se segue à derrota da revolução proletária, mas também como variante italiana Gramsci nos anos de cárcere
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daquele processo de adaptação da Europa ao ―americanismo‖, que, em resposta à crise de 1929, parece destinado a impor-se também no velho continente (p. 208). Com esse entendimento, ressalta G. Vacca, da reestruturação do capitalismo a partir dos Estados Unidos e seu potencial de universalização, Gramsci considera ser necessário repensar a ação política e os modos e formas de conceber as transformações sociopolíticas e impulsioná-las. Tornara-se premente a superação dos paradigmas da revolução de Outubro de 1917 — derivados do modelo francês de julho de 1789 —, da revolução como ruptura súbita e convulsiva, como assalto ao poder (Estado) e sua instrumentalização para operar mudanças ―desde cima‖, por meios e modos ditatoriais. Nas novas condições do desenvolvimento do capitalismo e com o ―Estado ampliado ‖, segundo Gramsci, a passagem da guerra de movi mento para a guerra de posição seria a questão fundamental da teoria política do pós-Primeira Guerra Mundial. E ―o objeto da guerra de posição é a obtenção da hegemonia política antes da chegada ao poder; seu teatro é a sociedade civil, e o epicentro, a luta política nacional‖ (p. 213). Vacca nota tamb ém que Gramsci vai superar a no ção de hegemonia do proletariado e elaborar a de hegemonia política e que essa só se constrói na competição permanente pela direção política. Assim, o ―horizonte dos Cadernos não é mais a ‗hegemonia do proleta riado‘, mas a teoria da política como luta pela hegemonia, que pressu põe uma revisão geral do marxismo em termos de ilosoia da práxis‖ (p. 89). Nesse sentido, rev olução passiva, guerra de posi ção, hegemo nia, Estado ampliado não podem ser dissociados — ―o conceito de guerra de posição conjuga-se com o de revolução passiva e, juntos, articulam o dispositivo anal ítico da teoria da hegemonia ‖ (p. 207). Por conseguinte, ainda segundo Vacca, as asserções gramscinianas superariam o velho paradigma da revolução permanente e a fórmula terceiro-internacionalista, e lançariam os fundamentos da política dos comunistas italianos no pós-guerra. Segundo elas, ―a luta política é a luta pela hegemonia‖ e o âmbito ―no qual esta pode se explicitar como luta pela hegemonia é o terreno de um Estado democrático que não antecipa inalisticamente o advento da ‗ditadura do proletariado‘‖ (p. 246). Da leitura que Giuseppe Vacca faz das formulações de Gramsci, é possível sintetizá-las na sentença, segundo a qual seu projeto de hegemonia está expresso em uma política para a democracia na perspectiva do socialismo. Uma política capaz de efetivar transformações que garantam a realização do ser social em condições de 194
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equidade e democracia — ampliação das liberdades, socialização da política, expansão dos direitos de cidadania, publicização do Estado, criação de mecanismos e pressupostos capazes de induzir a superação da clássica contradição entre o caráter social da produção e a apropriação privada do excedente gerado. Não por acaso setores sociais os mais conservadores e empedernidos da(s) classe(s) dominantes — aferrados e habituados, secularmente, ao uso instrumental e patrimonial do poder — temerem tanto o campo democrático como espaço antagônico e de disputa da hegemonia. Exemplar desse pavor foi expresso, recentemente no Brasil, por uma importante representante do tradicionalismo antidemocrático, a presidente da Confederação Nacional da Agricultura, Senadora Kátia Abreu (PMDB-TO) ao airmar que estava em andamento no país uma revolução comunista tendo por base a teoria política de Gramsci. Diz que o dirigente comunista italiano ―ensinava que o teatro de operações da revolução comunista não era o campo de batalha, mas o ambiente cultural‖ e, mais, diz que Gramsci insistia ―que o novo homem, anunciado por Marx, emergiria não do terror revolucionário, mas da transformação das mentes‖ (Folha de S. Paulo, 16/03/2013, p. A3). É óbvio que há uma evidente exorbitância e uma certa dose de rudeza nos enunciados dessa senhora. Também é compreensível esse tipo de postura em se tratando, sobretudo, de uma representante das classes dominantes tradicionais que temem projetos de transformação de natureza democrática que lhes subtraiam poder de mando e que criem possibilidades de redenção sociopolítica dos subalternos. Mas, por outro lado, atesta a extraordinária atualidade do legado teórico-histórico de Antonio Gramsci, agora reposto com mui ta propriedade e fundamento no livro de Giuseppe Vacca.
Sobre a obra: Vida e pensamento de Antonio Gramsci (19261937), de Giuseppe Vacca, 2012, Fundação Astrojildo Pereira e Editora Contraponto, 507 pg.
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Um pioneiro do jornalismo cientíico no Brasil
Karina Toledo m pouco mais de meio século dedicado ao jornalismo cientíi-
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co, Julio Abramczyk noticiou a erradicação da varíola no Brasil, acompanhou a primeira campanha de vacinação contra a poliomielite e narrou a agonia vivenciada pelo presidente Tancredo Neves em seus últimos dias. Escreveu as primeiras matérias no país sobre transplante de c órnea, sobre um ―novo tipo de exame radiol ógico‖ batizado de tomograia e sobre o ―som que não se ouve, mas que faz diagnóstico‖ – o ultrassom. Mas foi ao reportar a realização da primeira cirurgia de ponte de safena para o infarto agudo do miocárdio, em 1970, que Abramczyk ganhou o Prêmio Esso, o principal do jornalismo brasileiro. Essas e outras histórias estão no livro Médico e Repórter. Meio século de jornalismo cientíico A obra traz uma colet ânea de artigos e reportagens publicados por Abramczyk no jornal Folha de S.Paulo, onde ele trabalha desde 1959 e, atualmente, mantém a coluna semanal ―Plantão Médico‖. O material está dividido em cinco cap ítulos temáticos: ―Saúde Pública‖, ―Enfermidades do Coração‖, ―Saúde Pessoal‖, ―Doenças de Personalidades‖ e ―Jornalismo Cientíico‖. A apresentação de cada bloco é feita por nomes de destaque do jornalismo cient íico, como Marcelo Leite, Clau dia Collucci, Almyr Gajardoni, Lins da Silva e C élio da Cunha. Ao contrário do que todo mundo pensa, ele não foi da medicina para o jornalismo, mas do jornalismo para a medicina, e começou a trabalhar no jornal O Tempo, aos 17 anos. Quando ainda era estudante da Escola Paulista de Medicina – hoje pertencente à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) –, foi convidado por seu ex-chefe de reportagem naquele periódico, Hugo Penteado Teixeira, para assumir a vaga de redator na seção ―Biologia e Medicina‖ da então Folha da Manhã, cujo posto estava sem um titular havia seis meses. Após a formatura, Abramczyk continuou conciliando a vida atribulada de repórter de jornal diário com a rotina não menos caótica de médico. Especializou -se em cardiologia e foi, durante muitos anos, 196
um dos diretores do Hospital Santa Catarina. Todos os meses, frequentava pelo menos um congresso das mais diferentes áreas. Semanalmente, visitava os departamentos de Medicina e as bibliotecas das principais universidades paulistas, em busca de pautas. Ao longo de 53 anos, publicou mais de 2,5 mil textos no jornal Folha de S.Paulo. Já nos anos 1970, alertou sobre o problema crescente do alcoolismo, os riscos de substituir refei ções por lanches rápidos e a importância do leite materno para a saúde infantil. Por meio de seus textos, ajudou a difundir o recém-descoberto soro caseiro. É que, anteriormente, a hidratação era feita somente nos hospitais, direto na veia. Havia ilas de mães com crianças desidratadas no colo e a mortalidade infantil por desidratação era uma calamidade. Em outubro de 1970, publicou um texto em que relatava a descoberta, por especialista em saúde pública, das causas desse mal: ausência de saneamento básico e água tratada. O assunto havia sido destaque no 18º Congresso Brasileiro de Higiene. Antes, em 1961, publicou uma reportagem sobre um novo método para caçar vírus na Amazônia: iscas humanas. Os mosquitos eram apanhados por uma pessoa que, de braços e pernas descobertas, icava à espera de que os insetos viessem picá-la. Antes mesmo de atingir o corpo da isca humana, os mosquitos eram apanhados em redomas individuais, segundo narrou Abramczyk no jornal. O método de captura permitiu aos pesquisadores isolar 1,5 mil vírus, 22 deles completamente desconhecidos pela ciência. A reportagem rendeu ao médico e repórter o Prêmio Governador do Estado de São Paulo daquele ano. Ao longo da carreira, também foi agraciado com o Prêmio José Reis de Divulgação Cientíica, concedido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientíico e Tecnológico (CNPq), e com o Prêmio Abradic de Divulgação Cientíica, oferecido pela Associação Brasileira de Divulgação Cientíica. Presidiu a Associação Ibero-americana de Jornalismo Cientíico e a Associação Brasileira de Jornalismo Cientíico, entidade que ajudou a fundar. Em diversos congressos, seminários e livros, ―Abramczyk apresentou sua contribuição, fundamental, para construir um referencial teórico para o jornalismo cientíico nas Américas e na Península Ibérica‖, destacou Lins da Silva na apresentação do livro. Segundo seu organizador, a obra é de potencial interesse para todos os que fazem ou que leem jornalismo cientíico, além das pessoas que se interessam por temas de medicina e de ciência em geral. Um pioneiro do jornalismo cient íico no Brasil
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Ao comparar o jornalismo cientíico feito nas últimas décadas do século 20 com o de hoje, Lins da Silva airmou que o nível médio dos repórteres da área melhorou em função do maior acesso à informação. Mas piorou em relação ao espaço e ao destaque na cobertura jornalística, hoje muito menor. Paradoxalmente, a ciência torna-se cada vez mais importante para o desenvolvimento do país. Júlio Abramczyk também reclama da falta de valorização do jornalista especializado em ciência pelos gestores da informação e dá a receita para ser um bom repórter da área: ―O jornalista não deve apenas divulgar o que fazem os pesquisadores. Deve ter uma visão crítica da importância da ciência para o país e deve ajudar a sensibilizar as autoridades. Ficar do lado de quem luta por mais verbas para a pesquisa‖, concluiu.
Sobre a obra: Médico e Repórter. Meio século de jornalismo cientíico, de Julio Abramczyk, 2013, Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp), p. 288
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Karina Toledo
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