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Declínio Social
Xeque Mate La Misión
Entrevista por Pedro Silva
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Xeque Mate la Misión (Xemalami) é um grupo do distrito do Grajaú, zona sul da cidade de São Paulo, que tem como princípios de atuação o Xadrez e a cultura Hip Hop. “Xadrez sem muros” é o principal projeto do grupo, onde são desenvolvidas atividades em várias quebradas, com apresentações de Rap, discotecagem, oficinas, Graffiti, desafios e torneios de Xadrez. A ideia central é ocupar a rua e os espaços públicos, corre que Drezz e Hyt mantêm a quase 20 anos. Trocamos uma ideia com eles para entender melhor essa caminhada e como a América Latina, um tema recorrente nos trabalhos da dupla, fortalece a ideia do projeto.
Hyt Revista Perifa: A partir de que momento o Rap falou mais alto pra vocês? Teve algum fato específico que marcou o início desse interesse?
Hyt: Eu nasci no começo dos anos 90. Quando chegou no comecinho de 2000, por influência de uns primos que moravam no Jardim Primavera, aqui na região do Grajaú, comecei a ouvir aquelas coletâneas Dinamite, que tocou muito naquela época, principalmente a Dinamite 2000. Também ouvia bastante Rap nacional também. Meu irmão tinha uns álbuns dos Racionais e do Mv Bill, que eu escutei bastante, principalmente o Bill. Esse período foi bem importante pra minha formação. Também ouvi muito 50 Cent, que estava no auge nessa época. E de lá pra cá fui conhecendo mais pessoas do meu convívio aqui na quebrada, que foram me apresentando outros grupos, alguns clássicos como o Wu-Tang, o Cypress Hill, o KRS-ONE, que se tornaram grandes referências do Rap norte-americano e latino pra mim. No nacional a minha maior referência são, com certeza, o MV Bill, os Racionais e o RZO. Foram os que marcaram mais esse meu período de inserção no Rap, até o momento em que eu conheci as atividades do Projeto Xadrez Sem Muros, que os caras do Xemalami organizavam aqui no bairro onde moro, o Jardim Reimberg. Em 2008 comecei a participar dessas atividades, mas só dois anos depois eu passei a integrar o grupo. De lá pra cá estou sempre em busca de conhecer mais. O Drezz sempre traz bastante influências do Rap latino e também várias pessoas que somam na nossa caminhada aparecem com novidades. A gente tenta se manter atento a todas novas vertentes e tendências pra agregar no nosso trabalho, mas também mantendo a nossa essência.
Drezz: O Rap começou a impactar a minha vida na década de 1990. Pra falar a verdade, a gente não tinha muita dimensão do que ele era, do significado do nome, que fazia parte de uma cultura específica. Até então, os gêneros musicais com que eu tinha mais contato eram o Brega, a Lambada, entre outras músicas populares e da periferia que a minha família escutava. Tudo mudou quando mudei para a Mina, no Grajaú, na década de 90, que foi bem tensa pra todas as quebradas por conta do aumento da violência, os altos índices de assassinato de jovens, a explosão do crack na periferia… Mas a gente não entendia o por quê dessas coisas. Não tínhamos a noção do por quê morávamos no fundão da cidade e da origem de tanta desigualdade. Então, quando eu ouvi um Rap pela primeira vez, no início dos anos 90, aquilo me impactou de uma forma muito profunda. Foi meu primeiro contato com uma música que falava do meu cotidiano, de coisas que eu nunca tinha parado pra pensar antes, que me fez refletir sobre coisas que não eram discutidas. Tínhamos recém-saído de uma ditadura militar e, apesar da redemocratização e da constituição de 1988, ainda tinha muita repressão, tinha o esquadrão da morte, muitas chacinas. Tinha-se muito medo de falar das coisas, de criticar o governo. Então quando eu escutei Athalyba e a Firma, Região Abissal, Thaíde, aquela primeira coletânea de Hip Hop do Brasil, “Hip Hop Cultura de Rua”, que eu até comprei o disco na época, e depois vieram os Racionais, Os Metralhas, com o Rap da Abolição, aquilo tudo abriu o meu campo de visão. Era uma música que trazia reflexão, a questão racial, fazia você pensar sobre a cidade, sobre o por que de você viver ali e das opressões do sistema. Isso foi um incentivo pra eu estudar, pra tentar entender minha posição, o meu papel no mundo e o que eu poderia fazer, o que estava ao meu alcance. O Rap entrou na minha vida como uma formação mesmo, a partir daí eu fui estudá-lo, e foi aí que eu descobri que ele era um elemento do Hip Hop, uma cultura mais ampla que também contava com o B-Boy, o Graffiti, o Dj e o Conhecimento como outros aspectos fundamentais. Ele ganhou muita importância na minha vida e foi com se tivesse se tornado a minha religião, como se fosse o pai que eu não tive, e até hoje eu carrego isso como se fosse uma bandeira de vida, de luta e de autoidentificação. É um instrumento que me deu voz, ajudou a formar a minha
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personalidade, contribui com a minha formação, desenvolveu a minha autoestima e a partir disso já formei vários grupos. Estive no Testemunhas do Holocausto, no início dos anos 90, depois compus o Pacto Latino, que teve até o Criolo na formação, junto com o DJ Edu Neto e o Celinho, também conhecido como Dj El Pesquisador, que infelizmente faleceu recentemente, vítima do descaso com que nosso povo tem sido tratado em meio a uma pandemia. Então o Hip Hop se tornou meu estilo de vida, a partir da tomada de consciência por meio do Rap.
Revista Perifa: A proposta do Xemalami é bem específica e gira em torno desse encontro do Hip Hop, que já tem esse ímpeto de somar com a comunidade e mobilizar um conjunto de saberes e práticas em torno de seus elementos, com o Xadrez, que por muitas vezes passa batido nas quebradas. De onde veio essa inspiração? Na visão de vocês como o Xadrez complementa o Hip Hop e vice-versa?
Dezz: O xadrez apareceu na nossa vida antes do Hip Hop. Eu estudei no antigo Centro Específico de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério (CEFAM), que formava alfabetizadores para dar aula no Ensino Fundamental e nessa época comecei a ter contato com o jogo junto com alguns amigos. Na real a gente nem tinha muita clareza sobre o que era o xadrez, as regras e tal. Mas ele impactou a gente por conta da alegoria com os significados das peças, da estética e da história, que muitas vezes é mais interessante até que as técnicas do jogo em si. Percebemos que era um esporte que tinha muita relação com a ordem social, que tinha os peões, que são maioria e que sempre ficavam na frente, e outras peças que remetiam muito à questões como a exploração de classe e tudo mais. E isso tudo na década de 90, que é considerada a Era de Ouro do Hip Hop, com o Boom Bap, com o engajamento político que era explícito nas letras, que também eram mais incisivas e contundentes. Era um cenário onde não podíamos falar qualquer bobagem em um Rap, você poderia ser cobrado. O movimento e sua ideologia eram levados muito a sério, tinha a questão racial também, que era muito forte. Daí começamos a relacionar isso com o xadrez, essa coisa de raciocinar, pensar bem no que vai falar, de ter um zelo com as palavras ser mais consequente, tanto nos dizeres, quanto nas ações. Isso na verdade já tinha muito no Rap, essa ideia de ter postura e de manter uma coerência. Então o Xemalami surge em 2002, com esse nome que é o acróstico da expressão “Xeque Mate La Misión”, um resumo do objetivo do xadrez: capturar o rei do oponente e fazer assim o xeque mate, apoiado por todas aquelas forças que você tem no tabuleiro. Ele se torna aqui uma metáfora para a própria cidade e a relação entre centro e periferia: o fundamento do Drezz jogo é a disputa pelo centro. Quem tá mais próximo do centro tem um maior campo de visão, que vai diminuindo a medida que fica distante, uma relação que a gente trouxe como uma lição pra vida. Em 2002 a gente se encontrava no Centro de Valorização e Divulgação da Leitura (CEVALE), no antigo Clube da Comunidade Parque América, também chamado de Gigantinho, onde assumimos uma biblioteca comunitária que estava abandonada. Éramos a minha irmã, Chris, o Digaz, o Gor Flow, o Esze, o Mut e eu, mas também colavam muitos grafiteiros, MCs, gente da cena punk. A gente jogava e ensinava xadrez, ao mesmo tempo em que cuidávamos da biblioteca. Nisso, o Esze levava umas tapes e a gente ouvia muito Rap, o que ajudou a criar essa relação entre a música e o jogo. Isso é até inusitado, porque o xadrez é um jogo que demanda silêncio e reflexão. Mas a nossa vida é uma turbulência a todo momento, principalmente pra gente, que viveu os anos 90, com cobrança e pressão o tempo todo, ao mesmo tempo em que precisa pensar e tomar decisões em meio a tudo isso. Além disso, muitas vezes o silêncio também pode ser um revelador de omissão, ou de aceitação das coisas como elas são. Paralelo a isso, começamos a perceber que outros grupos
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também faziam referência ao xadrez, como os caras do WuTang Clan, que também jogavam e tal. Tem também a Hip Hop Chess Federation, que existe na cidade de São Francisco, na Califórnia, e é uma associação multirracial que possui um espaço dedicado para cada elemento da cultura Hip Hop, além de também dar aulas de xadrez e de artes marciais, voltadas para a não violência. Então, meio que sem querer, a gente viu que tava nesse caminho da relação inusitada entre xadrez e Hip Hop. Uma ligação que envolve um senso de responsabilidade, de compromisso, de ação coletiva e com princípios de convivência. Esse é o contexto do surgimento do Xemalami em 2002, mas que só se tornaria de fato um grupo de Rap três anos mais tarde. Começamos a articular o jogo com os elementos do Hip Hop através de pequenos eventos e de ações coletivas que buscavam alimentar um senso de comunidade e de responsabilidade social. Trabalhamos também com a ideia de que um grupo é mais forte que um indivíduo sozinho, porque a atuação a partir da coletividade ajuda a diluir as fraquezas individuais. Começamos a estudar mais o xadrez, a promover eventos, campeonatos, oficinas abertas pra pessoas não inciadas no jogo, desafios e conseguimos mobilizar um público em torno disso e nos colocar como referência disso. O xadrez e o Rap são nossas principais ferramentas de trabalho. cultura Hip Hop por conta dos ensinamentos que ele traz de paciência, de visão, de estratégia… Que são coisas que a gente precisa desenvolver pra vida. Na caminhada dos Mcs mesmo, precisa ter sempre um planejamento feito com calma, de forma estratégica e tal. Ele poderia, de repente, se tornar até um novo elemento da cultura. Também tem a ideia de respeito ao próximo, porque você está ali no tabuleiro, enfrentando outra pessoa, mas, ao mesmo tempo, tem que existir um respeito pelo adversário. E isso é muito construído a partir de uma análise que você faz da forma como ela joga: se ataca ou defende mais. Isso é outro aspecto que a gente traz pra vida, porque temos que interagir com outras pessoas o tempo todo.
Revista Perifa: Vocês já gravaram uma música com a Abigail, do Santa Mala, e com o Delapaz, que são bolivianos, também lançaram um som chamado “Las Calles Perifericas” e o próprio nome do grupo é em espanhol. Por outro lado, aqui no Brasil temos uma tradição de dar as costas aos países vizinhos e poucas pessoas possuem consciência do passado que partilhamos. Como foi essa aproximação por parte do Xemalami? O Rap teve um papel fundamental nesse processo, ou ele se relaciona com alguma experiência individual ou da dupla?
países foram em 2012, quando gravamos um som chamado Lucha Constante com o KNC, que é da Colômbia. Um ano depois teve um trabalho solo do Drezz, com o KNC e o Phantom, que também é colombiano, chamado Viva Sudamerica. Essa parceria com o KNC rendeu algumas outras produções, como também Vivencias do Gueto, com a participação do Cado também. E em 2016 gravamos Las Calles Perifericas. Os trabalhos do Xemalami sempre tiveram essa mistura do espanhol com o português, principalmente por parte do Drezz. Ano passado gravamos esse som com a Abigail, do Santa Mala, e o Delapaz, chamado Orgulho Latino e que faz parte de um projeto nosso que se chama “São Vários, Vol. 2” e que tem um lyric video no YouTube. Pra esse ano temos uma outra produção em andamento, que é a cypher Puro Hip Hop Latino, que conta com a participação de Mcs do Brasil, Bolívia, Peru e Argentina. Vamos lançá-la agora, entre meados de Março e início de Abril11 .
Dezz: Essa questão da América Latina, e do Brasil dentro desse contexto, já vem desde a essência do Pacto Latino, que até onde eu tenho conhecimento, foi o primeiro grupo aqui do país a tentar romper essas fronteiras. A gente sempre acreditou que o Rap não tinha que ter esses limites, porque é uma grande rede formada pelas periferias e pelos subalternos do mundo inteiro, e que se organizaram a partir da cultura criada pelos negros norte-americanos, mas que no fundo possuem a mesma origem africana daqueles que estão espalhados por outros países. E partir disso, a gente também não pode negar a contribuição e as influências que os latino-americanos deram pro Hip Hop. Toda uma estética que acabou sendo incorporada pelos próprios negros dos Estados Unidos também. Então eu trago essa bagagem do Pacto Latino e no Xemalami a gente sempre teve clareza de que há uma unidade do Hip Hop na América Latina. Mais que isso, o Hip Hop daqui, depois do norteamericano, tem um grande protagonismo como vanguarda cultural a nível mundial. Acho que aqui a gente leva a coisa com aquele espírito guerrilheiro. Apesar de já ter mudado bastante nos últimos anos, onde a gente observa um esvaziamento do discurso crítico do Rap em nome da indústria fonográfica. Acho que perdeu um pouco do potencial.
Revista Perifa: Na opinião de vocês, qual a importância de fazer essa ponte entre as quebradas da América Latina?
Drezz: Dentro dessa proposta do Rap, de denúncia das opressões que o nosso povo vive, a principal característica comum a todos os países latino-americanos é o fato de termos sido colônias de exploração. O que muitas vezes é tratado como uma descoberta, foi na verdade um saque. Fomos vítimas de uma política de rapinagem e nos tornamos países fornecedores de matéria-prima apenas, de produtos primários, para suprir as necessidades alheias. A riqueza da Europa se deu a partir da exploração da América Latina, inclusive do Brasil, que mesmo sendo um país de dimensões continentais dentro desse grupo, não se enxerga como tal, como latino-americano. A gente acabou desenvolvendo aqui um olhar muito mais voltado pra Europa, pros Estados Unidos, e acaba ignorando nossos vizinhos. Teve o Mercosul, que foi criado pra fortalecer uma integração econômica, mais ainda é muito pouco. O brasileiro ainda não se vê como latino-americano.
Revista Perifa: O que vocês escutam/assistem/leem de outros países da América Latina? O que acham fundamental para indicar para o público periférico que busca entender mais a nossa história?
Drezz: Eu gosto muito de escutar Rap underground do mundo inteiro, mas em especial dos países vizinhos: do Chile, da Bolívia, do Peru, da Colômbia, do México… Tem muitos grupos. Por exemplo: tem o La Etnia, o Las 3 Coronas, que são colombianos. O Rap da Colômbia é muito foda. O próprio KNC… No Peru tem o Rapper School e o Homicidio Bando. Tem o Control Machete do México, e que eu indico o álbum Mucho Barato, que é um clássico. Tive até a oportunidade de conhecer um dos caras. Aqui na América do Sul tem o Rap chileno, que é muito forte também. Mas na verdade em todos os países o movimento vem crescendo. Na Venezuela tem o Prieto Mafia, o Canserbero e o Akapellah… Tem o maior festival de Hip Hop do mundo, que tá parado por conta da pandemia, mas que acontece na Colômbia. Se chama Hip Hop Al Parque e a proposta dele é trazer os grandes nomes do gênero, tanto da América Latina, quanto dos Estados Unidos e também da Espanha. E pra conhecer um pouco desse legado da nossa ancestralidade, que foi em parte destruído, eu recomendo o livro do frei Bartolomé de las Casas chamado “O Paraíso Destruído”, onde ele relata um pouco do que foi o extermínio dos povos nativos. Uma outra leitura que eu indico é o “Veias Abertas da América Latina”, do Eduardo Galeano, um escritor uruguaio, e que ajuda a gente a ter uma dimensão do que foi esse saque que sofremos com a colonização. E também recomendo o Pablo Neruda, um poeta chileno, autor que resume bem os impactos da colonização na célebre frase “A espada, a fome e a cruz iam dizimando a família selvagem”. E isso tudo, na verdade, é uma pequena parte do que eu acho importante a gente ter contato. Mas é um bom começo.
Revista Perifa: Quais os próximos planos do Xemalami? Podemos esperar algum outro trabalho nessa linha dos que já abordamos aqui?
Hyt: Acho legal falar um pouco do que fizemos recentemente. No primeiro semestre de 2020 lançamos o projeto “São Vários, Vol. 2”, que é uma reunião de diversas pessoas, entre músicos e produtores que contribuíram com o Xemalami em algum momento da nossa história. É um material bem diverso, tem desde Rock, até Forró. E, inclusive, foi dentro desse trabalho que aconteceu a colaboração da Abigail e do Delapaz em Orgulho Latino. Saiu também um e.p. solo do Drezz, “Marchando pra Vitória”, que pode ser encontrado nas principais plataformas de streaming, e um meu, chamado “Gueto Progresso”. Teve uma parceria do Drezz com o Nilsen Tattoo, que é boliviano, chamada “Hijos del Rap”. Mais pro final do ano o saiu a faixa “Entorpecidamente”, do Drezz com o Kisobras… Esses trabalhos estão todos no canal do Xemalami, no Youtube. E coisa de uma semana atrás eu lancei um single, que chama “Aconteceu Comigo”. Nesse momento estamos finalizando a cypher Puro Hip Hop Latino, idealizada por nós do Xemalami e com as participações que eu citei ali em cima. E temos mais vários eps planejados pra esse ano. Um dos próximos lançamentos já tem até nome: “En Passant”, que é um movimento específico do peão no xadrez, e que vai ser um ep com cinco faixas. Ainda tem um outro, que é uma produção com o nosso parceiro Cado Torre, e tá num processo mais avançado também. E tem um projeto solo do Drezz chamado “Sueños Se Viven”, “Sonhos Se Vivem” em tradução pro português. E é isso, a produção não para! Temos mais coisas planejadas, mas vamos deixar no segredo. Acompanhem nosso trabalho pelas redes sociais, YouTube, Facebook e Instagram, que sempre atualizamos com a caminhada do Xemalami.
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