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O Parc National Historique (PNH-CSSR) no Haiti: o símbolo de liberdade desconhecido

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Declínio Social

Declínio Social

Texto e imagens por Loudmia Amicia Pierre-Louis

Na pequena cidade de Milot, no departamento do Norte, no interior do Haiti está edificado o complexo monumental do Palácio Sans-Souci e suas dependências, a Cidadela Henry e o Site des Ramiers que fazem parte do Parc National Historique (PNH-CSSR). Essas obras foram tombadas como patrimônio internacional pela UNESCO em 1982, e nacional em 1995. Vamos apresentar um pouco do contexto no qual esses monumentos foram erguidos, os quais materializam a história da resistência negra e antiescravista da Nossa América. Mas antes de tudo é preciso situar o Haiti geográfica, social e histórico-culturalmente, visto o desconhecimento que se tem no Brasil dessa ilha. Apesar do grande fluxo imigratório de haitianos que se dá desde 2010, ainda é frequente sermos identificados como originários de algum país africano. Pois bem, o Haiti é uma das grandes ilhas do Caribe junto com a República Dominicana com a qual divide a ilha Quisqueya1 , Cuba, Jamaica e Porto Rico. Dependendo da época e do autor consultados, a definição

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1 Preferimos o nome de Quisqueya atribuído à ilha pelos indígenas, hoje dividida entre a Rep. do Haiti e a Rep. Dominicana. A historiadora Odette Roy Fombrun defende seu uso, em vez de Hispaniola como Colombo a denominou. Segundo ela, Quisqueya evoca a cultura taína, enquanto, Hispaniola evoca o genocídio dos indígenas. Cf ROY FOMBRUN, Odette. Renommons l’île: Quisqueya, non pas Hispaniola. Revue d’Histoire et de Géographie, n. 206 . 2001. p. 52, 53.

de “Caribe” pode incluir somente as ilhas do arquipélago Americano, ou além delas, alguns territórios do continente. Falam entanto, do Caribe extenso composto do Caribe insular (as grandes e pequenas ilhas) e o Caribe continental (as costas dos países da América Central, as costas dos países do norte da América do Sul, as penínsulas de Yucatan do México e da Flórida)2. São territórios geograficamente banhados pelo Mar

2 ELÍAS CARO, Jorge E.; VALLEJO S., Fabio. (Ed.). Los mil y un Caribe…16 textos para su (des) entendimiento. Colombia: Universidad del Magdalena, 2009. p. 380.; MUÑOZ, Laura. El Caribe en los mapas de la revista National Geographic. Revista Brasileira do Caribe, São Luis-MA, Vol. XIV, nº28, p. 271290, Jan-Jun 2014. Disponível em:<http://www.periodicoseletronicos. ufma.br/index.php/rbrascaribe/article/view/2899/pdf>. Acesso em 10/01/2021.; SAN MIGUEL, Pedro L. Consideraciones intempestivas sobre los estudios caribeños. In: MUÑOZ, Laura. (Ed.). Narrar el Caribe: Visiones históricas de la región. México: Instituto Mora, 2019. Disponível em:<https://books.google.com.br/books?id=AQrPDwAAQBAJ&pg=PT5 45&lpg=PT545&dq=Odette+Roy+Fombrun+quisqueya+ou+hispaniol do Caribe e que historicamente sofrem da mesma ventura - exceto nesse caso da península da Flórida pertencente aos Estados Unidos. O Haiti é então um país do Caribe insular, região que se definiu como estratégico por sua relevância geopolítica desde o século XV com a chegada do colonialismo com Cristóvão Colombo, e as políticas intervencionistas e militares dos Estados Unidos desde o final do século XIX. O Caribe, em geral, é fortemente estereotipado e exotizado. É o lugar das praias paradisíacas, do negro e mestiço sensual, do indígena aniquilado, dos tesouros escondidos e dos piratas, mas também da pobreza. O Haiti em particular carrega esse último aspecto, e também incorpora os estereótipos da barbárie e da feitiçaria os quais são amplamente adaptados pelas produções cinematográficas hollywoodianas3. Esse Haiti, outrora, chamado de “Pérola das Antilhas” tanto pela beleza das suas cidades e a riqueza que os escravizados

a&source=bl&ots=SrHljY55uL&sig=ACfU3U2TqKFCs9JDuZ49xCvwPTBzXO YtIQ&hl=pt-BR&sa=X&ved=2ahUKEwiP5Pv325TuAhVUELkGHZjCCA8Q6AEwC HoECAYQAg#v=onepage&q=exotis&f=false>. Acesso em 15/01/2021. 3 Entre 1915 e 1934, durante a ocupação militar estadunidense, o vodu, religião de matriz africana foi objeto estereótipos, difundidos nos Estados Unidos e na Europa pela imprensa e, sobretudo, no cinema, como um culto de canibais em que imperam sacrifícios e bruxaria. O filme White Zombie de Victor Halperin, por exemplo, lançado em 1932, primeira produção de terror dos EUA baseado na “superstição” negra, do vodu, deu espaço para outras produções que atraíram cada vez mais público, como Ouanga (1936) de George Terwilliger; I walked with a zombie (1943) de Jacques Tourneur; Voodooman (1944) de William Beaudine, entre outros. Cf: PEPIN, Amélie. Du mythe à la subversion: trois manifestations de la figure du zombie filmique. Mémoire - Faculté des lettres et sciences humaines, Université de Sherbrooke. Sherbrooke, 119. 2011

proporcionaram à metrópole francesa4, hoje é considerado como o país mais pobre do hemisfério ocidental. As informações acima são bem breves, foram encurtadas devido ao espaço reservado a essas linhas que precisamos respeitar, mas podem orientar um pouco o leitor que se depara pela primeira vez com o assunto. Então agora falemos um pouco dos nossos monumentos. A Citadelle Laferrière, o Palais Sans-Souci e o complexo de Ramiers foram erguidos na cidadezinha de Milot, no norte do país5 no contexto da pós Revolução de 1791. Esta Revolução, uma das menos prestigiadas das revoluções da modernidade, se caracteriza

4 A colônia francesa de Saint-Domingue era a mais lucrativa, mas também a mais rica de toda a América no final do século XVIII. É importante frisar que a riqueza produzida em Saint-Domingue se valia do sistema de plantation e pelo fato desta colônia ter sido a mais populosa de escravizados do Caribe, a região “acolheu” mais escravizados que o próprio Brasil, por exemplo - colônia que por si só importou quatro milhões de africanos. Cf TROUILLOT, M.-R. Silenciando o Passado: Poder e a Produção da História. Curitiba: Huya, 2016, 263p.; GOMEZ, E. Alejandro. Le Syndrome de Saint-Domingue: perceptions et représentations de la révolution haïtienne dans le monde atlantique, 1790-1886. Thèse de doctorat en Histoire - ÉCOLE DES HAUTES ÉTUDES EN SCIENCES SOCIALES, Paris, 2010. 5 ELIE, Daniel; CHÂTELAIN, Philippe. La Citadelle Henry: Un monument qui le mît debout. Bulletin de L'ISPAN, Haïti, n° 28, p. 20, 1er Septembre 2011. por seu caráter antiescravagista, antirracista e anticolonial. E, estas características são justamente as que dão origem ao silenciamento sobre a importância da dita revolução, uma vez que questiona e vai em contra dos próprios fundamentos da Modernidade. Ressaltemos aqui que a Revolução de 1791 que deu lugar à independência haitiana, não passou despercebida pelos escravizados das outras colônias, que a evocavam em diversos momentos. Tampouco foi ignorada pelas elites coloniais, para as quais o Haiti não era apenas um exemplo histórico diferente, mas sim um “exemplo perigoso”6 . Pois bem, o Estado haitiano, cujo marco fundador se

6 GOMEZ, E. Alejandro. Le Syndrome de Saint-Domingue: perceptions et représentations de la révolution haïtienne dans le monde atlantique, 1790-1886. Thèse de doctorat en Histoire - ÉCOLE DES HAUTES ÉTUDES EN SCIENCES SOCIALES, Paris, 2010; HERNÁNDEZ, Juan Antonio. Hacia una história de lo imposibles: La revolución Haitiana y el “Libro de pinturas” de José Antonio Aponte. 2005. 285 f. Tese (Doutorado) - Curso de Philosophy, Arts and Sciences, University of Pittsburgh, Pittsburgh, 2005; NASCIMENTO, Washington Santos. “São Domingos, o grande São Domingos”: repercussões e representações da Revolução Haitiana no Brasil escravista (1791 – 1840). Dimensões: Revista do Programa de pósgraduação em História da UFES, Vitória, n.21, 2008. Especial América Latina | 53

dá em primeiro de janeiro de 1804 com a proclamação da sua independência e abolição da escravidão, decreta três meses depois, mediante o imperador Jean-Jacques Dessalines, a construção de fortalezas em lugares estratégicos do país. Para defender a liberdade e a independência conquistadas após longos séculos de resistência, contra uma provável volta do colonizador7, no alto das montanhas foram então elevadas fortificações que permitissem uma vista panorâmica do território, e portanto, uma excelente vigilância do mesmo. Esses três monumentos do PNH-CSSR fizeram parte, primeiramente, da Cidade Real de Sans-Souci arquitetado por Henry Barré como capital política, militar e administrativa do reino de Henry Christophe, que se autoproclamou Rei Henri I em 1811 da parte norte do país, dividido então entre uma República no Sul e um Reino no Norte8 . Ao retomar a etimologia latina “monere”, isto é,

7 A preocupação em defender a nação contra uma volta dos franceses não era infundada, tendo em conta que a França realizou várias tentativas para restabelecer o sistema colonial no Haiti. Cf RENÉ, 2019, p. 215. 8 PÉRARD, Jean-Herold. Henry Christophe: un grand méconnu. Canada: Protech LP, 2018. advertir, lembrar, da noção de monumento9, as construções do PNH-CSSR podem ser classificadas como tal. Pois, a edificação das obras foi pensada a priori, intencionalmente, como elementos para rememorar e defender a vitória da revolução e o saber-fazer dos negros ex-escravizados de Saint-Domingue. A Citadelle Laferrière - maior das fortalezas do Haiti, inclusive do Caribe, construção inacabada, localiza-se a 970 metros de altitude acima do nível do mar - como o resto da Cidade Real serviria para fazer lembrar para sempre, que a revolução teve lugar e que a nação dirigida por negros estava de pé e não pretendia cair. Os monumentos do parque passaram a ser objeto de interesse do poder público nas décadas de 1920 quando o Estado começa a promulgar leis e decretos para administrar os bens culturais da nação. Mas, foi em 1940 e 1941 que teve especificamente uma lei e um decreto-lei voltados à preservação dos sítios e monumentos históricos. Contudo, foi no final da década de 1950 que se observa uma real atenção do Estado haitiano para com a cultura e os bens culturais10. Antes

9 CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. Tradução de Luciano Vieira Machado. São Paulo: Estação Liberdade/Ed.UNESP, 2001. 10 PIERRE-LOUIS, Loudmia A. Haiti entre a nação e o patrimônio: 1940-

disso, observava-se apenas algumas medidas ocasionais, limitadas. É importante aproveitar o espaço aqui cedido para apontar que a década de 1950 corresponde ao período da ditadura militar dos Duvalier (1957-1986) no país. E, vale pensar nos males do período ditatorial como não totalmente superados. Nos dias atuais, o período da ditadura não é estudado na escola e, quando tratado, é de forma bastante superficial11. Foi nesse período de violência arbitrária contra a população local, que o PNH-CSSR foi reconhecido como patrimônio da humanidade (UNESCO, 1982) por carregar o simbolismo de liberdade contra a opressão colonial escravista, enquanto, a nação era brutalmente oprimida. Apesar das várias críticas que podem ser feitas ao Estado haitiano que logo após a sua independência vem aplicando formas coloniais na sua administração12, o Haiti, sua revolução e os monumentos do PNH-CSSR junto com outras fortalezas construídas para defender os valores desta resolução, constituem-se em símbolos importantes da

1990. Trabalho de conclusão de curso (Graduação em História AméricaLatina) - INSTITUTO LATINO-AMERICANO DE ARTE, CULTURA E HISTÓRIA (ILAACH), Universidade Federal da Integração Latino Americano, Foz do Iguaçu, p. 76, 2019. Disponível em: <https://dspace.unila.edu.br/ handle/123456789/5500>. Acesso em: 30/01/2021. 11 Não conseguimos ainda acessar nenhum trabalho que trate desse assunto, mas por enquanto esta afirmativa parte da nossa experiência na escola no Haiti e nas conversas recentes com alunos(as) do ensino fundamental e médio. 12 No período pós-independência, várias violências da época colonial foram mantidas. Por exemplo, os campesinos praticavam trabalhos forçados nos latifúndios da elite e eram submetidos a penosos castigos corporais, Suas práticas culturais como a língua kreyòl e a religião vodu também eram perseguidas. Cf CASIMIR, Jean. Une lecture décoloniale de l’histoire des Haïtiens: Du traité de Ryswick à l’occupation américaine 1697-1915. Port-au-Prince: L’imprimeur, 2018; RENÉ, Jn. Alix. Haïti après l’esclavage. Formation de l’État et culture politique populaire 1804-1846. Port-au-Prince: Le natal S.A, 2019. resistência contra as violências da modernidade. Pois, pela primeira vez, temas como raça, colonialismo e escravidão eram questionadas e postas em xeque. É preciso falar sobre o Haiti e sua revolução de forma desmistificada para superar os silenciamentos acerca da Revolução de 1791 e os estereótipos e exotismos sobre o país que a academia e as grandes mídias13 vêm impondo. Faz-se necessário resgatar as referências negras de resistência para articular nossas lutas presentes, porque o nosso presente requer liberdade. Portanto, acreditamos ser de suma importância, sempre que possível, lembrar desta revolução e tentar trazer seus valores para nosso mundo presente. Estudar o Haiti e seu simbolismo no Brasil, por exemplo, país com a segunda maior população negra do mundo, é também estudar além da história do colonialismo, seus efeitos nas antigas colônias e as resistências dos marginalizados. É sobretudo, entender esse pequeno país caribenho a partir das similitudes históricas que essas duas nações, e outras da região, têm em comum. É se abrir também para conhecer melhor os imigrantes haitianos presentes no território brasileiro.

13 Quando o Haiti aparece nas mídias brasileiras é sempre para falar da miséria desse país caribenho, sem no entanto, mencionar as colonialidades que estão por trás e para propagar uma série de estereótipos e exotismo acerca do país.

Loudmia Amicia Pierre-Louis é haitiana, graduada em História e reside no Brasil há 10 anos.

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