Nota do editor Nesta edição, trago a Belair como tema. Esta produtora cinematográfica exerceu uma certa importância para o Cinema Marginal, justamente por ter unido três de seus maiores nomes: Rogério Sganzerla, Júlio Bressane e Helena Ignez. Ao contrário do Cinema Novo de Glauber e companhia, os filmes desses diretores eram bem mais agressivos e tinham um olhar apocalíptico em relação ao futuro. Preferiam abrir mão do tom pedagógico e cultural para investir num humor negro e sarcástico. Apesar da sua duração curta, a baixa circulação de seus filmes e a falta de linearidade nas tramas (deixando algumas um pouco difíceis de assistir) acho um fato muito curioso, até pela própria existência em si. Por este motivo e por não ser um assunto amplamente falado, achei que seria uma boa ideia trazê-lo como tema da revista. por Leonardo Correia
O CINEMA MARGINAL NOS ANOS DE CHUMBO
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a caminhada para uma ditadura cada vez mais severa, a arte serviu como principal forma de propagação de ideias e oposição ao regime estabelecido desde 1964. Através de grandes nomes no teatro, música e cinema, movimentos como a Tropicália e o Cinema Novo marcam este período. Eram tempos de riqueza criativa e audácia para desafiar os padrões impostos pela sociedade.
No ano de 1968, as coisas já pareciam totalmente fora do controle. Com um sistema falho que tentava oprimir a população, foi decretado, no dia 13 de dezembro, o AI-5. Entre diversas outras consequências, o mais duro de todos os Artigos Constitucionais autorizava a censura e repressão perante à justificativas vagas e bastante questionáveis, como subversão moral e dos bons costumes, por exemplo.
Foto: Evandro Teixeira/JB
E
m meio ao caos, produções mais precárias e com um linguajar muito mais violento que o do Cinema Novo começavam a surgir. Assumindo um olhar distópico em relação ao que o país enfrentava, filmes como O Bandido da Luz Vermelha (1968) e Matou a Família e Foi ao Cinema (1969) abriram esta nova safra. Seus respectivos cieneastas ficariam conhecidos como dois dos maiores nomes
deste movimento, o catarinense Rogério Sganzerla e o carioca Júlio Bressane. Este era o Cinema Marginal começando a surgir. Para se ter um panorama deste período, 15 dias após o Artigo entrar em vigor, Caetano e Gil já estavam presos e dois meses depois, exilados, assim como Chico. Este foi só o começo da fuga de diversos artistas que acreditavam que poderiam transformar o país através da sua criação.
UMA MULHER FATAL
E DOIS CINEASTAS
Rogério Sganzerla Inicia sua carreira cinematográfica como crítico no Suplemento Literário do jornal O Estado de S.Paulo. Em 67, lança seu primeiro curta, chamado Documentário. Repleto de influências da Nouvelle Vague francesa e do Neorealismo italiano (as mesmas do Cinema Novo), ele recebe o prêmio JB Mesbla de melhor curta e vai para Cannes. Na volta ao Brasil, adapta suas ideias em torno do acontecimento de João Acácio Pereira da Costa, usando elementos do assassino no longa O Bandido da Luz Vermelha (1968). Este é o seu trabalho de maior destaque até hoje, além de ser o primeiro com Helena Ignez, a qual inicia um relacionamento. Em 69, lança seu segundo longa, intitulado A Mulher de Todos, trazendo Helena no papel principal. Ainda no mesmo ano, ele lança os curtas HQ e Quadrinhos no Brasil, em codireção com Álvaro de Moya.
Helena Ignez Sua trajetória se iniciou ao conhecer Glauber Rocha na UFBA, participando do seu primeiro curta, O Pátio (1959). Ambos se casaram e tiveram uma filha, porém se separaram pouco tempo depois. Apesar disso, Helena continuou sua carreira de atriz, atuando em filmes de diversos outros cineastas, se destacando pela sua interpretação de "mulher fatal" na linha dos filmes Noir. Vale citar sua participação no importante Assalto ao Trem Pagador (1962) e seu primeiro contato com Bressane em Cara a Cara (1967). Por fim, ao fazer O Bandido da Luz Vermelha, a atriz inicia seu relacionamento com Rogério, participando de vários filmes do cineasta e se tornando a musa do cinema marginal.
Júlio Bressane Começou em 1965, como assistente de direção de Walter Lima Jr., no filme Menino de Engenho. Nos anos seguinte, dirigiu o documentário Bethânia Bem de Perto - A Propósito de um Show (1966) e Cara a Cara (1967), o qual já foi falado. Em 1969, o cineasta lança duas de suas maiores obras, Matou a Família e Foi ao Cinema e O Anjo Nasceu. Este segundo, que ocasionaria o encontro com Rogério, resultando na criação da Belair.
A clandestinidade da
BELAIR E
m 1969, foi realizada a 5° edição do Festival de Brasília. Este, que foi fundamental para o encontro de dois grandes cineastas do Cinema Marginal. A essa altura, Rogério Sganzerla já havia sido o vencedor do ano anterior por O Bandido da Luz Vermelha (1968) e concorria novamente com A Mulher de Todos. Este, que disputava contra O Anjo Nasceu (Júlio Brassane), o qual tinha grande admiração. Apesar da derrota de ambos por Memórias de Helena (David
Neves), os cineastas mantiveram o respeito mútuo pela obra de um pelo outro e assim surgiu a ideia de montarem uma produtora juntos. A terceira peça fundamental para o surgimento da mesma foi Helena Ignez, que já havia atuado nos dois filmes de Sganzerla e em Cara a Cara (1967) de Júlio. Futuramente, ela também atuaria em todos os filmes da produtora. Na tentativa de fugir do controle que seria exercido sobre suas obras pela censura dos militares, os três criam clandestinamente
a Belair. Sem nenhum tipo de registro documental que a comprovasse como empresa, ela era quase que imaginária. Sua maior preocupação era com a produção e criação dos filmes, ignorando completamente o lado mercadológico. Assim, num período entre fevereiro e maio de 1970, foram feitos 6 longas de baixo orçamento. Adotando uma estética antiarte, seus filmes iam contra o aspecto industrial e espetacular estabelecido no cinema da época.
A Familia do Barulho – Júlio Bressane O filme de estreia da produtora é uma chanchada não-linear. A história é sobre uma família formada por uma prostituta que sustenta dois malandros. Após ela ameaçar parar de fazer isso, os dois se vêem na necessidade de ir atrás de outra pessoa para manter sua vida fácil. Além da própria Helena, seu elenco também conta com o humorista Grande Otelo e Maria Gladys, figura bem frequente nos filmes de Bressane.
Cuidado Madame – Júlio Bressane Neste filme, Júlio retoma o sentimento de Matou a Família e Foi ao Cinema. Aqui temos a história de três empregadas que se revoltam contra a opressão da sociedade. Assim, elas decidem que a solução para o fim dos seus problemas é o assassinato de suas patroas.
Cartaz Indisponível
Carnaval na Lama(ou Betty Bomba, a exibicionista) – Rogério Sganzerla O primeiro filme de Saganzerla pela produtora foi filmado em Nova York e pouco se sabe sobre seu enredo. Segundo a sinopse oficial, "(...) trata-se de uma reclusão neurótica diante do totalitarismo." Infelizmente, esta obra se perdeu com o tempo. Sabe-se que existe uma cópia na Cinemateca, a qual se encontra em péssimo estado. O músico Jorge Mautner, que participou do filme, postou um trecho em seu canal do YouTube, porém ele está sem a faixa de áudio.
Barão Olavo, O Horrível – Júlio Bressane Mergulhando no gênero do Terror, a história envolve um barão louco por cadáveres, assassinatos e violência sexual. O fluxo é ainda mais não-linear do que os outros dois anteriores, contendo som e imagem fragmentados ao longo de toda obra. Vale destacar a presença de Guará Rodrigues no elenco.
Copacabana Mon Amour – Rogério Sganzerla Sonia Silk é uma jovem que circula pelo bairro de Copacabana e tem o sonho de ser cantora da Radio Nacional. Ao começar a ver espíritos incorporados em seres e objetos, ela decide procurar o pai-de-santo Joãozinho da Goméia para solucionar o problema. Com muita gritaria, miséria e macumba, o filme se tornou um dos maiores sucessos da produora. Nele também temos o retorno de Paulo Villaça (principal do Bandido da Luz Vermelha) interpretando o personagem Dr. Grilo, além da trilha sonora composta por Gilberto Gil.
Sem essa, Aranha – Rogério Sganzerla Com um forte elenco composto por figuras como Jorge Loredo (conhecido pela interpretação do personagem Zé Bonitinho), Luiz Gonzaga e Moreira da Silva, o filme se tornou outro clássico da produtora. A trama gira em torno do principal Aranha, um personagem cômico que é usado para uma representação crítica da burguesia.
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ão demorou muito para que os militares fossem atrás da produtora. Após a interdição de Matou a Família e Foi ao Cinema e A Família do Barulho, Bressane se viu diante de um cenário político que era impossível dar continuidade ao seu trabalho. A alegação foi o mesmo argumento já falado: a subversão, além de ter sido acusado de uma suposta ligação com terrorismo. Assim, foi decidido o fim da Belair e o exilamento de seus membros. Apesar da duração curta, a produtora foi capaz de deixar seu legado, tendo os cineastas paulistanos da Boca do Lixo como seus os que manteriam esta propósta por mais alguns anos. Porém, devido à mesma inviabilidade por conta da censura, o local acabou sendo dominado pelas Pornochanchadas
e a produção dos filmes marginais foi extinta do país. O maior reconhecimento só veio anos após o fim da ditadura, com alguns filmes de Sganzerla e Bressane sendo restaurados e (re) lançados para o grande público. Em 2005, estrou o filme A Miss e o Dinossauro, onde foram reunidas cenas dos bastidores da produtora. Este registro engloba gravações dos filmes Copacabana Mon Amour, Sem essa, Aranha, Família do Barulho e Cuidado Madame. Também foi feito um documentário contando a história da produtora, lançado em 2009 e recebendo seu próprio nome, Belair. Ele contou com Buno Safadi e Noa Bressane na direção e traz registros dos próprios cineastas falando sobre o conceito da produtora. Apesar do grande valor documental, a crítica não
deu muitos elogios, talvez pelo seu valor informativo ser um tanto raso. Apesar dos registros citados e do legado deixado, a Belair ainda é pouco conhecida. Se por um lado, o ótimo trabalho de seus membros fez com que ela passasse no teste do tempo, por outro, vivemos em um país com uma imensa dificuldade em valorizar sua própria cultura. Quem sabe um dia, todos poderão olhar para acontecimentos como este e usá-los como exemplo, para que os erros do passado não sejam repetidos no futuro. Afinal, diante de acontecimentos que estão nos fazendo caminhar para o mesmo mundo de quase 50 anos atrás, as críticas e personagens destes filmes se monstram cada vez mais verossímeis.