Arte: Josan Gonzalez
Nota do autor Denominado o pai do cyberpunk, William Gibson transcendeu os limites do SciFi e acabou se tornando um grande visionário. Além de muito influente, seu trabalho percorre não só as dimensões da literatura, mas também se relaciona com elementos da informática, sociologia e filosofia. Infelizmente, devido a esta grande pluralidade e ao pouco conhecimento prévio do autor sobre o tema, esta edição acabou demorando mais tempo para ser feita do que o planejado. Porém, ao concluí-la, vejo que após todo o esforço, foi obtido um resultado satisfatório. Assim, espero que ela sirva como um bom convite para que conheça de forma breve, a história deste grande escritor. por Leonardo Correia
H
igh tech, low life. Esta é a base para entender do que se trata um universo cyberpunk. Gênero que surgiu na década de 80, geralmente é marcado por um futuro pósapocalítico, no qual os personagens são seres marginalizados, com baixa qualidade de vida e recursos tecnológicos avançados. O termo apareceu pela primeira vez na revista Amazing Science Fiction Stories, em 1983, num conto escrito por Bruce Bethke. Porém, quem exerceu grande contribuição para que se popularizasse foi o escritor escolhido como tema desta edição da revista. Seu livro Neuromancer (1985) foi fundamental para a concepção e ambientação deste cenário, assim como o clássico
filme Blade Runner (1982). Hackers, distopias pósindustriais, alta tecnologia e um toque noir. Sobre estas premissas se dá o cyberpunk de Gibson, que é influente até hoje. Uma prova deste legado são as inúmeras obras semelhantes que apareceram em outras vertentes do mundo da arte. No ambiente cinematográfico, a trilogia Matrix, por exemplo, se baseou totalmente no sistema de conexão de Neuromancer, repetindo, inclusive, seu nome. Outro ponto é a grande semelhança entre os protagonistas de cada obra, pois tanto Neo, quanto Case, exercem a função de hacker. No mundo dos mangás também não foi diferente. Podemos ver a mesma influência em Ghost In The Shell, de Masamune Shirow, ou
em Akira, de Katsuhiro Otomo. Toda a ambientação tecnológica e futurista de ambos trabalhos possuem um visual semelhante ao do livro já mencionado. Falando de obras mais recentes, o mesmo acontece em alguns episódios da animação Love, Death + Robots (2019) e no jogo Cyberpunk 2077, que está para sair no ano que vem. Além dos já mencionados, também existem outros mundos que foram influenciados pelo gênero, como o da moda, por exemplo. Nele, o cyberpunk é representado por toda uma estética visual que abusa de roupas escuras, couro e cores florescentes. Porém, como o foco desta edição está na parte editorial e cinematográfica, elas serão deixadas de lado.
cyberpunk
O ciberespaço
de Gibson C
onsiderado um escritor revolucionário e a frente de seu tempo, William Ford Gibson criou termos referentes à tecnologias que ainda nem existiam quando escreveu seu primeiro e maior livro, Neuromancer (1984). O conceito de ciberespaço é o mais popular e surge em seu conto Burning Chrome (1982), publicado na edição de julho da revista Omni. Nele, o autor já previa a construção de um ambiente virtual no qual todos pudessem se conectar sem a necessidade da presença física. Algo muito similar ao conceito de WEB, que temos nos dias de hoje. Outro, bem popular e atual, é o de cibercultura, que caracteriza esta cultura de massa e globalizada, gerada pelos que habitam o ciberespaço. Ela está presente no características comuns entre os YouTubers, nos memes e diversos outros elementos originados da internet. Chega a ser assustador imaginar a previsão de um fenômeno tão recente numa mentalidade de quase quarenta anos atrás. Porém, muito antes de ser considerado ícone, William iniciou sua trajetória nas revistas ficção científica, durante a segunda metade
da década de 70, durante a transição do flower-power para a new wave. Seu primeiro conto Fragments of a Hologram Rose foi publicado na revista UnEarth 3, em 1977. Nesta época, o escritor tinha 29 anos, porém sua ambição pelo gênero já o acompanhava desde os 12. A história traz um personagem que está passando por um término de relacionamento. Vivendo em uma cidade poluída e obscura, ele utiliza de gravações sensoriais artificiais para poder dormir. Assim, vamos mergulhando em pedaços de seu passado e vemos como o transformou no ser humano que encontramos hoje. Apesar deste primeiro trabalho já apresentar um pouco da assinatura que iria inserí-lo em uma carreira promissora, a paternidade fez com que fosse obrigado a dar uma pausa. Retornando só em 81, Gibson lançou trabalhos notáveis como Johnny Mnemonic e New Rose Hotel na, já mencionada, Omni, até o ano de 1983. Com as características que vinham fazendo parte de suas histórias, o escritor originaria o gênero Cyberpunk em seu primeiro livro. Assim, iniciando
a sua mais famosa e icônica trilogia, chamada Sprawl. Composta por Neuromancer (1984), Count Zero (1986) e Monalisa Overdrive (1988), esta trindade distópica traz histórias que se passam numa megacidade futurista e marginalizada, composta por todo território urbano entre Boston e Atlanta. Seu sucesso é inestimável, sendo principalmente o primeiro livro o qual justifica sua posição de "pai do cyberpunk". Ainda no final desta década, já demonstrando um interesse em levar seu trabalho ao cinema, William escreveu o roteiro de Alien 3 (1992). Infelizmente, o documento original teve de passar por diversas modificações e pouco está presente no filme. No ano de 1990, ele lança A Máquina Diferencial, o qual retoma a parceria com Bruce Sterling. Autor da antologia Mirroshades (1986), já havia trabalhado com Gibson em Red Star, Winter Orbit (1983) e ajudaria, neste novo trabalho, a consolidar um outro subgênero, conhecido como Steampunk. Em uma história que se passa em 1855, o livro nos apresenta uma GrãBetanha clássica, porém com recursos tecnológicos bem mais avançados. Contraste esse, entre passado e futuro inserido num mesmo tempo, que se tornou quase que uma norma para qualquer obra do gênero. Um ano após este último lançamento, o autor já inicia a publição de sua segunda trilogia, Bridge. Ela é formada pelos livros Virtual Light (1993), Idoru (1996) e All Tomorrow's Parties (1999), também tendo ligação com o conto Skinner's Room (1991). Aqui, Gibson abre um pouco a mão do estilo cyberpunk que o consagrou e investe nas questões sociais sobre a tecnologia, inseridas em um futuro próximo. A influência dos meios de comunicações de massa e como eles transformam a sociedade em um grande espetáculo são temas presentes na obra. Quase que paralelamente ao primeiro livro desta saga, ele também lança seu primeiro trabalho de não-ficção, intitulado Agrippa (A Book of the Dead). Trata-se de um poema eletrônico armazenado em um disquete de 3,5". Após ser aberto uma única vez, o poema se criptografa e sua releitura torna-se
impossível. Este trabalho foi feito em parceria com o artista Dennis Ashbaugh, o qual também escreveu um livro semi-biográfico, que o acompanhavam e se destruía à exposição da luz. Outro trabalho não-ficcional foi o artigo Disneyland with the Death Penalty (1993). Publicado na revista Wired, ele analisa a arquitetura, fenomenologia e cultura da cidade de Cingapura. Este trabalho foi importantíssimo para que um olhar mais científico e acadêmico caísse sobre o escritor. Seguindo a mesma onda contemporânea de sua trilogia anterior, ele inicia o novo milênio com a trilogia Blue Ant. Os livros Reconhecimento de Padrões (2003), Território Fantasma (2007) e História Zero (2010) trazem um olhar reflexivo sobre as novas formas de trabalho, além de ser muito impactado pela transformação que a sociedade americana sofreu após os atendados do dia 11 de setembro. Os últimos trabalhos do autor foram o livro The Peripheral (2014) e o quadrinho Archangel (2016-2017), em parceria com Michael St. John Smith. Embora ambas obras tenham a viagem no tempo entre os elementos inseridos, não há nenhuma ligação entre si. A sequência do livro, intitulada Agency, está prevista para ser lançada no dia 21 de janeiro do ano que vem. Já os cinco volumes de seu primeiro quadrinho possuem rumores de uma suposta adaptação televisiva, porém ainda não há nenhuma informação sobre sua veiculação e data de estreia. Esta é a história e o legado de William Gibson até então. Mesmo não sendo tão popular em nosso país e menos da metade de seus títulos estejam disponíveis no nosso idioma, este é um artista que vale a pena dar uma conferida em sua bibliografia.
Sprawl
Composta por Neuromancer (1984), Count Zero (1986) e Monalisa Overdrive (1988), a trilogia Sprawl traz três histórias quase que independentes, as quais se desenvolvem em uma mesma megacidade. Ela se passa em um futuro distante e pós-apocalíptico, formado hackers e mercenários.
No primeiro livro, vivemos na pele de Case, um cowboy do ciberespaço e hacker. Após tentar enganar seus patrões, ele recebe uma punição em seu sistema nervoso, o qual acaba sendo contaminado por uma toxina que o impede de se conectar na Matrix, um mundo virtual bastante
semelhante ao do filme que todos conhecem. Assim se inicia uma aventura nos subúrbios de Tóquio, que leva o protagonista a cometer pequenos delitos e iniciar uma jornada que mudará o mundo e a percepção da realidade. Em Count Zero, a trama se inicia sete anos após os acontecimentos
do primeiro livro. Agora, estamos diante de um universo muito mais frenético e superconectado, sob o domínio de duas poderosas corporações multinacionais, a Maas Biolabs e a Hosaka. Diante de uma guerra entre ambas pelo controle de uma nova tecnologia, o biochip, os hackers se fazem importantes, onde atuam nos métodos de espionagem. Em meio a esse caos futurista, Bobby Newmark, um aspirante a cowboy, acaba entrando de gaiato nessa
história. E ele estaria morto, se não fosse a intervenção salvadora de uma misteriosa garota feita de luz. Por causa disso, Bobby, agora, Count Zero, se torna uma pessoa valiosa e assim se inicia a caçada. O último da série, Monalisa Overdrive, interliga alguns dos elementos das histórias anteriores. As Inteligências Artificiais, que no livro anterior eram chamadas de Deuses Vudus, passam a assombrar a Matrix, deixando o ambiente cada vez mais perigoso.
Sob este cenário, se inicia a trama que encerra a trilogia. Além dos livros que compõe Sprawl, também existem três contos que se passam no mesmo universo e se conectam de alguma forma com a história. Estes são, Johnny Mnemonic (1981), New Rose Hotel (1981) e Burning Chrome (1982), tendo dois primeiros recebido adaptações para o cinema, uma em 1995 e a outra no ano de 1999.
A Maquina Diferencial A obra se passa em uma versão alternativa da Inglaterra oitocentista, quando um chamado Partido Radical traz mudanças tecnológicas impressionantes para o país. Conquista essa, que foi alcançada graças ao poder da máquina a vapor. Assim, sob os avanços da tecnologia no auge da Revolução Industrial, a era da informática chega com um século de antecedência. Neste ambiente, se inicia uma história que gira em torno dos personagens Sybil Gerard (ex-amante de um político influente e filha de um insurreto executado), Ada Byron (filha de Lorde Byron, então primeiro-ministro da Inglaterra) e Edward Mallory (um respeitado cientista, descobridor do famoso Leviatã Terrestre). Acidentalmente ou não, uma caixa com cartões perfurados cai nas mãos deles. Este objeto é de enorme cobiça e disputa, pois guarda um segredo estratégico, ligado a interesses nebulosos. A partir daí, a vida deste trio nunca mais será a mesma.
ALien 3 Com o passar dos anos, o roteiro original de Alien 3 (1992) acabou circulando pela internet, onde alcançou uma certa popularidade. Talvez, por isso, a Dark Horse decidiu publicar uma adaptação em quadrinhos. Feita por Johnnie Christmas, ela é composta por cinco volumes, que foram lançados entre os anos de 2018 e 2019. A trama se inicia após os eventos de Aliens: O Resgate (1986), quando a nave espacial Sulaco, onde estão os corpos de Ripley, Hicks, Newt e Bishop, é interceptada pela União dos Povos Progressistas. Não demora muito para que descubram que outro alienígena está presente naquela nave, desencadeando a fúria de dois titãs governamentais que almejam uma arma de destruição em massa durante a Guerra Fria.
DisneyLand With The Death Penalty O artigo é composto por observações de Gibson sobre a arquitetura, fenomenologia e cultura de Cingapura. Seu título é uma metáfora, que compara a cidade a uma "Disneylândia com pena de morte", uma referência ao artifício autoritário percebido pelo autor, durante sua estadia no local. No artigo, ele também fala sobre a falta de qualquer senso de criatividade ou autenticidade, ausente de qualquer indicação de sua história ou cultura underground. Ele define seu governo como difundido, corporativo e tecnocrático, assim como o sistema judicial, sendo rígido e draconiano. Além disso, ele também é composto por reportagens locais de julgamentos criminais, as quais o autor ilustra suas observações.
Johnny Mnemonic Produzido pela Fox em 1994 e lançado no Brasil sob o nome de Johnny Mnemonic: o Cyborg do Futuro, este é um filme baseado no conto já mencionado e possui ligação com o universo de Sprawl. A trama se passa no ano de 2021, período no qual o mundo inteiro já está conectado através de uma gigantesca Internet. Com metade da população afetada pela NAS, uma doença que provoca uma fatal reação alérgica às ondas eletromagnéticas no ser humano, um mensageiro cibernético, interpretado por Keanu Reeves, é contratado para transportar os 320 gigabytes de cura em um chip implantado no seu cérebro. Entretanto, um grupo planeja impedilo de levar esta informação, restando apenas o período de um dia para realizar esta tarefa.
BLue Ant
Reconhecimento de Padrões (2003) é o trabalho que abre a trilogia. Nele, vivenciamos a jornada de Cayce Pollard, uma caçadora de tendências. Ao ir para Londres atrás de uma nova oportunidade de trabalho, ela recebe a proposta de descobrir quem está por trás da criação e disseminação de uma coleção de fragmentos de vídeos, os quais foram postados anonimamente na web e atraíram milhares de seguidores. Esta é a porta de entrada para uma busca frenética que envolve sabotadores industriais, hackers de primeira linha, chefes da máfia russa, fanboys da internet e espiões aposentados. A continuação da saga é Território Fantasma (2007), o livro retoma o universo tecnológico movido pelos interesses das
grandes mídias apresentado no livro anterior. Porém, aqui, Gibson cria uma nova trama envolvendo antigos e novos personagens que se movem no mundo após os atentados do dia 11 de setembro. Este novo mundo é caracterizado pela fugacidade e por novas formas de controle de informação, paranoia e patriotismo. Através dos personagens Tito, Milgrim e Hollis, nos deparamos com temas relacionados ao fluxo de dados e investigação. Sua união se dá quando a jornalista Hollis Henry é contratada por Hubertus Bigend, que lhe dá a missão de encontrar o "solucionador de problemas”, Bobby Chombo. Em História Zero (2010), o autor encerra a trilogia explorando o lado mais sombrio do marketing, acompanhado da crise global de
2008. A nova meta do ambicioso Hubertus Bigend é controlar o fornecimento de uniformes militares nos Estados Unidos e se valer da crescente influência desse estilo no mercado mainstream. Para tanto, ele busca aliciar o criador anônimo de uma obscura e desejada marca de roupas que virou febre entre consumidores do mundo inteiro. Assim, temos o retorno de Hollis Henry, que está praticamente falida e acaba aceitando a nova proposta do bilionário belga. Contatando Milgrim, ela parte em uma busca para rastrear e identificar o misterioso designer. Porém, a ação de ambos chama a atenção de concorrentes indesejados, dando início a uma delirante perseguição que acaba envolvendo um agente do governo norte-americano.