DA UTOPIA ÀS PERSPECTIVAS, A INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA A neurociência e o desvendar do cérebro Ciência, tecnologia e humanização da sociedade Universidade, um espaço de complexidades A ciência e os queijos ENTREVISTAS: Silviano Santiago, romancista mineiro, e Antonio Carlos Sartini, diretor do Museu da Língua Portuguesa. semfronteiras |
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CARTA AO LEITOR
N
esta edição, em comemoração ao bicentenário
da independência da América Espanhola, o historiador paranaense Luiz Geraldo Silva explora as origens do processo de integração da América Latina, enquanto o romancista mineiro Silviano Santiago aprofunda as diferenças e as convergências dos povos desse continente, detendo-se em temas polêmicos como a criação artística e as implicações de ordem política e social. Complementando a matéria de capa de Sem Fronteiras, outro historiador, o chileno Miguel Rojas Mix, retoma o pensamento de Francisco Bilbao e as cientistas venezuelanas Carmem Guadilla e Hebe Vessuri apontam avanços e obstáculos da educação superior e da ciência e tecnologia na América Latina. Resultados de pesquisas científicas em várias outras áreas do conhecimento também estão presentes nesta edição, na forma de artigos assinados por cientistas renomados e de reportagens elaboradas por jornalistas especializados. São conteúdos que instigam e nos ajudam a entender onde a CT&I se cruzam com nossas vidas. Boa leitura.
Multiplicar energias
Como secretário de Estado e como professor universitário, gostaria de deixar registradas nesta edição da revista Sem Fronteiras algumas palavras. Em contato com professores e estudantes das nossas instituições de ensino superior tenho tido a oportunidade de me referir ao fluxo de saberes que ali existem, desde o momento da sua criação – e desde a sua compreensão dos saberes do passado. Constato, a cada dia, a imensa contribuição que essas instituições têm dado ao desenvolvimento do Estado e à construção do conhecimento. São mais de noventa mil estudantes, oito mil e quinhentos agentes universitários e sete mil professores universitários envolvidos em 262 cursos de graduação, 334 de especialização, 104 de mestrado e 31 de doutorado, ofertados em todas as regiões do Estado por universidades e faculdades estaduais públicas. Destaco o aprender a conhecer, a raciocinar, a refletir, a pensar como a primeira das funções da educação. Nada mais augusto para o ser humano, e para sua representação, que somos nós, do que o pensamento. Quanto mais elevado for esse pensamento, maior será a nossa capacidade de reflexão. E quanto maior for nossa capacidade de reflexão, mais humanos e mais civilizados nos tornaremos. Mas não basta apenas pensar, é necessário que aprendamos a fazer; ter um aprendizado, alguma coisa, e, por meio dela e pelo esforço individual, possamos prover nossas casas e nossos filhos com aquilo que é básico – o pão, a casa, a roupa. Está lá, nos textos mais antigos, que nós podemos encontrar na filosofia, nas religiões ou na teologia, que a pessoa deve trabalhar, mas deve aprender para trabalhar, e isso ela aprende na universidade, na escola. Ajudar a refletir, a fazer, mas também aprender a conviver e a respeitar e compreender o outro. Significa dizer que nem sempre somos tão iguais, que existem assimetrias imensas, que, no passado, chamávamos simplesmente de compreensão das classes sociais. Que há os injustiçados, os doentes, que há o martirium moral que cada um carrega em sua carne e em sua própria vida. É fundamental, como assinala a comissão internacional sobre educação para o século XXI em seu relatório para a Unesco, publicado no Brasil sob o título “Educação – um tesouro a descobrir”, que o aprender a conhecer; a fazer; a viver juntos; e a ser tenham igual atenção
por parte do ensino estruturado para que ela se torne então uma experiência plena, uma realização pessoal e de vida em sociedade que se leva para sempre. Significa, igualmente, estar vinculado a um projeto comum e motivador, capaz de dar lugar à cooperação e à amizade, bem como a um processo existencial em que possamos tirar as caricaturas da nossa existência e nos colocar novamente no altar sagrado da dignidade de homens e de mulheres. Nildo José Lübke
Secretário Nildo José Lübke: “À educação cabe transmitir saberes e saber fazer adaptados à civilização cognitiva, bases das competências do futuro. Mas não basta apenas acumular conhecimentos. É necessário que nos adaptemos às mudanças em curso – entre as quais o desafio de se construir uma sociedade mais humana, em contraponto às ambições grandiloquentes do século XX e de sua modernidade”.
Levy Ferreira AENotícias
Secretário de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior
1 6
Carta ao leitor Entrevista ANTONIO CARLOS SARTINI — A luz que faltava à língua CIÊNCIA
10
MARA LÚCIA CORDEIRO E ANTONIO CARLOS DE FARIAS — Desafios e
perspectivas da neurociência
14
Pesquisa de futuro
17
Para esquecer, para lembrar
22
Tristeza ou depressão?
24
OSVALDO DELLA GIUSTINA — Ciência, Tecnologia e Humanização da Sociedade
30
MIGUEL SANCHES NETO — Espaço de Complexidades
MEIO AMBIENTE
36
Recuos, avanços, controvérsias...
42
Floresta com código de barras?
47
Ignacy Sachs e a biocivilização
50
Corredores de biodiversidade no Paraná
educação CIeNtífica
55
Em nome da educação
CAPA
58
Da utopia às perspectivas, a integração latino-americana
60
LUIZ GERALDO SILVA — Rei deposto e rei exilado
66
Das desconfianças à percepção de unidade
68
(Des)caminhos culturais
76
Integração ainda que tardia
78
Educação superior e o status de bem público
81
CT&I + inclusão social
86
Nelson Papavero — A Arca de Noé e o problema da fauna sul-americana HUMANIDADES
90
EDILENE COFFACI DE LIMA — Direitos intelectuais indígenas
94
Dores de crescimento TECNOLOGIA E INOVAÇÃO
98
Uma ponte entre a academia e a empresa
101
Ajuda montanha acima
104
Um saboroso caminho civilizatório
112
Perfil Alessandro Nogueira – Cientista de queijos e vinhos
114
Notícias de C&T Memória
128
Brincadeiras de infância
132
CRISToVAO TEZZA e Da arte de jogar pião
133
RESENHA PAULO FRANCHETTI e a Página órfã de RÉGIS BONVICINO
ENTREVISTA
Antonio Carlos Sartini
A luz que faltava à língua Claudia Izique Fotos: Felipe Abreu
A Estação da Luz, no bairro da Luz, no Centro de
projeto de R$ 37 milhões
São Paulo, foi construída no final do século XIX para abrigar
bancado pelo governo do
a Companhia São Paulo Railway. Hoje, é uma das mais
Estado de São Paulo com
importantes interseções da rede paulistana de transpor-
apoio de um pool de patro-
tes sobre trilhos, ponto de embarque e desembarque
cinadores de peso como
diário de mais de 100 mil pessoas. Desde 2006, também
Petrobras, Votorantim e Re-
“O Museu da Língua Portuguesa é, na verdade, um museu da cultura, já que a língua é o principal elemento de ligação, de conexão de um povo.”
abriga o Museu da Língua Portuguesa, um importante
de Globo. Desde as primeiras exposições, o encantamento
centro de valorização e difusão de um elemento central
perceptível nas pessoas mostra que o investimento valeu a
de nossa cultura. Distribuído em três andares e com área
pena. A seguir, você confere uma entrevista com o diretor-
correspondente a 4,3 mil metros quadrados, o Museu é um
executivo do Museu, Antonio Carlos Sartini.
6 | semfronteiras
SF Por que um museu da língua portuguesa? AntonioSartini O Museu da Língua Portuguesa é, na verdade, um museu da cultura, já que a língua é o principal elemento de ligação, de conexão de um povo. No Brasil, até 1750, 82% da população não usavam o português. Prevaleciam as línguas nativas — até hoje temos 200 idiomas vivos — e os dialetos africanos. Em 1750, o Marquês de Pombal percebeu que a integridade da colônia estava em risco e, naquele ano, tornou o ensino da língua portuguesa obrigatório. Hoje, apesar das diferenças culturais, o que nos une é a língua.
SF
Como surgiu a ideia de criar o Museu da Língua
Brasileira?
AntonioSartini
Em 2001, a Companhia Paulista de
Transportes Metropolitanos (CPTM) informou ao governo do Estado que iria deixar os 1º e 2º andares da Estação da Luz, onde funcionavam seus escritórios. O governo, que
Antonio Carlos Sartini, diretor-executivo do Museu.
estava empenhado em recuperar a região central da cidade e já tinha investido na reforma da Estação Júlio Prestes, onde foi construída a Sala São Paulo, e na requalificação da Pinacoteca, instalada em área vizinha, decidiu destinar aquele espaço da Estação da Luz a uma nova instalação
da
Cultura.
Futuramente,
poderemos criar programas
cultural, mais precisamente um equipamento voltado para
junto com a Fundação de
a língua portuguesa. Foi então constituído um grupo de
Amparo à Pesquisa do Es-
trabalho com representantes das secretarias de Cultura
tado de São Paulo (Fapesp).
e Educação e, em 2002, foi firmado um convênio com a
Como as três faces de um
Fundação Roberto Marinho para o restauro do prédio e
museu estavam presentes,
implantação do equipamento cultural que levaria o nome
o equipamento virou um
de Estação da Luz da Nossa Língua.
museu com um patrimônio
“No museu, ainda que altamente tecnológico, a materialização do patrimônio imaterial pode acontecer de várias formas, até a artesanal.”
mais imaterial de todos: a
SF
Por que a ideia de criar um equipamento cultural
língua portuguesa.
evoluiu para a criação de um museu? equipe se deu conta de que aquilo era, na verdade, um
SF Quem financia o museu? AntonioSartini Os recursos são da Secretaria da
museu. Os museus têm funções muito específicas — de
Cultura do Estado de São Paulo. A bilheteria cobre 14%
preservação, de difusão e de pesquisa — a partir de um
dos custos do Museu. Outra parcela, entre 5% e 6%,
acervo. E aquele equipamento cultural tinha a função
vem de recursos com a locação do espaço. Em 2010,
de preservação de um patrimônio imaterial — a língua
vamos contar também com uma loja e um café.
AntonioSartini
Seis meses antes da inauguração, a
portuguesa — com um sentido de difusão. Isso está claro nas nossas mostras de longa duração e temporárias,
SF
além de saraus e leituras dramáticas. A função de pes-
imaterial exige o uso intensivo de tecnologia?
quisa está em fase de implantação. Contamos com 21
AntonioSartini
pessoas responsáveis por pesquisas relacionadas às
tecnológico, a materialização do patrimônio imaterial
nossas mostras e, em 2010, vamos lançar um programa de
pode acontecer de várias formas, até a artesanal. O
apoio logístico e financeiro à pesquisa na área de língua
patrimônio imaterial abre enormes possibilidades de
portuguesa em universidades com recursos da Secretaria
expressão, mesclando escritas diferentes em suas
O fato de o museu contar com um patrimônio No museu, ainda que altamente
semfronteiras |
7
“Esse é o único museu de língua portuguesa. Há um projeto sendo desenvolvido em Portugal. Existem outros projetos em Siena, na Itália, em Winchester, na Inglaterra, e na Coreia do Sul. Todos eles nos procuraram.”
SF Existem outros museus semelhantes no mundo? AntonioSartini Esse é o único museu de língua portuguesa. Há um projeto sendo desenvolvido em Portugal. Existem outros projetos em Siena, na Itália, em Winchester, na Inglaterra, e na Coreia do Sul. Todos eles nos procuraram. Em breve, vamos receber também a visita de um representante da Universidade de Jerusalém, que pretende criar um museu da lín-
várias áreas. As exposições de longa duração utilizam
gua e da cultura. Em Joanesburgo, na África do Sul, há
recursos tecnológicos desenvolvidos para o museu. Outras
um museu da língua africâner [resultado da interação
mostras são mais tradicionais, e isso é fascinante.
entre os colonos calvinistas europeus provenientes dos Países Baixos, chamados de africânderes; tra-
SF Qual a média de visitantes do museu? AntonioSartini O museu está aberto de terça a domingo
balhadores malaios, indonésios, malgaxes; e dos
e tem uma média diária de 1.600 visitantes. No sábado, esse
Esperança, na África do Sul – nota do editor]. Este
número chega a três mil. Metade é de visitas espontâneas e a
museu, criado em 1975, tem características diferen-
outra metade é de grupos de estudantes e de terceira idade. A
tes, já que seu objetivo básico é o de reforçar a cultura
proporção é equilibrada.
sul-africana.
Um dos principais aspectos do Museu é a interatividade.
8 | semfronteiras
povos nativos khoi e san, da região do Cabo da Boa
Museu vivo para uma língua viva O Museu da Língua Portuguesa nasceu com uma missão: mostrar o quanto a “Última Flor do Lácio” é bela — e que, de inculta, não tem nada
Visitação – O roteiro de visitação inclui
uma
passagem
pela
Grande
Galeria, onde, em uma tela de 106 metros de
extensão,
são
exibidas
projeções
simultâneas de filmes que mostram a língua portuguesa no cotidiano e na história de seus usuários. Inclui, também, uma incursão pelo Beco das Palavras, sala Estação da Luz, em São Paulo.
que abriga jogo etimológico interativo, pelo Mapa dos Falares, onde podem ver e ouvir brasileiros de todas as partes do País, e
O Museu da Língua Portuguesa nasceu com uma missão:
pela Praça da Língua, onde som e imagem
mostrar para brasileiros e visitantes de outros países o quanto a
oferecem uma espécie de antologia da
“Última Flor do Lácio” é bela — e que, de inculta, não tem nada. Para
literatura em língua portuguesa.
isso, faz uso de um arsenal museológico que reúne criatividade,
Dos elevadores de acesso, os visi-
interação, ludicidade e sofisticação, enterrando definitivamente o
tantes avistam a escultura “Árvore de
vetusto modelo de museu como lugar onde a história é cristalizada
Palavras”, de 16 metros de altura, criada
em uma experiência soporífera e desinteressante.
por Rafic Farah, enquanto ouvem uma
Segundo informações publicadas no site do Museu (www.
espécie de mantra composto por Arnaldo
poiesis.org.br/mlp), que também traz uma série de informações
Antunes, que repete as palavras “língua” e
que reforçam o papel educativo da instituição), seus principais
“palavra” em vários idiomas.
objetivos são:
O Museu também abriga exposi-
√ Mostrar a língua como elemento fundamental e fundador da
ções temporárias. Entre 29 de setembro
nossa cultura.
de 2009 e 7 de fevereiro de 2010, por
√ Celebrar e valorizar a língua portuguesa, apresentando suas ori-
exemplo, comemorou os 120 anos de nas-
gens, história e influências sofridas.
cimento da poeta goiana Cora Coralina com
√ Aproximar o cidadão usuário de seu idioma, mostrando que
a exposição “Cora Coralina: coração do
ele é o verdadeiro “proprietário” e agente modificador da língua
Brasil”, com curadoria de Júlia Peregrino
portuguesa.
e cenografia de Daniela Thomas e Felipe
√ Valorizar a diversidade da cultura brasileira.
Tassara. A exposição mesclou imagens do
√ Favorecer o intercâmbio entre os diversos países de língua
universo pessoal de Cora – a mítica Casa
portuguesa.
da Ponte da cidade de Goiás e os doces
√ Promover cursos, palestras e seminários sobre a língua por-
que ela preparava – com trechos de suas
tuguesa e temas pertinentes.
poesias, documentos, diários e originais
√ Realizar exposições temporárias sobre temas relacionados à
de seus livros, além de um vídeo com
língua portuguesa e suas diversas áreas de influência.
declarações da poetisa. (CI)
semfronteiras semfronteiras | 9
C i ê ncia
Estudo da Fisiologia do Cérebro, Leonardo da Vinci (1508). Entre as inúmeras atividades de Leonardo, estavam os estudos sobre as estruturas e funções do cérebro. Ele procurou saber como são interpretados os estímulos sensoriais e desenvolveu uma teoria coerente de como operam os sentidos.
Desafios e perspectivas da neurociência Mara L. Cordeiro e Antonio Carlos de Farias
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A essência de quem somos está nas 100 trilhões de fendas sinápticas que permitem a comunicação entre os neurônios O que é a neurociência? Em que ela
modulam funções tão importantes para a
difere das outras áreas das ciências e da
nossa percepção e interação com o mundo?
medicina? Por que tem sido tão comentada
Como
neurônios estimado
funcionando
sau-
na mídia? O que a faz tão especial? Quais
davelmente e nos possibilitam a capacidade
são seus avanços mais recentes e quais suas
contínua de aprender até nas fases mais
perspectivas?
avançadas da vida?
Neurociência é uma área que estuda
Pesquisas sobre o funcionamento do
todos os aspectos relacionados ao sistema
cérebro, uma das áreas mais excitantes
nervoso, particularmente o cérebro, tanto
da
na condição saudável como na condição
imensamente
patológica, e envolve desde estudos básicos
crescimento se move pelo desejo de
moleculares a estudos clínicos.
encontrarmos respostas sobre os proces-
biologia
moderna, nos
têm
últimos
crescido
anos.
Esse
intrinsecamente
sos biológicos da memória, cognição e
interdisciplinar. Na tentativa de encontrar
emoção, e de dar esperanças para aqueles
respostas sobre os mecanismos e a dinâmica
que sofrem de doenças neurodegenera-
pela qual o nosso cérebro funciona, os neu-
tivas
rocientistas usam conhecimentos e metodo-
quais, até o presente momento, não foi
logias derivados de diversas áreas: anato-
encontrada a cura. Exemplos disso são o
mia, fisiologia, embriologia, endocrinologia,
mal de Alzheimer e a esquizofrenia.
A
O número de
permanecem
neurociência
é
e/ou
neuropsiquiátricas
para
as
genética, biologia celular e molecular, quí-
Estudos em neurociência são interes-
mica, ciência neurocomportamental e até
santes e especiais porque, na realidade,
da física quântica, passando por estudos de
o que nos diferencia das outras espécies
imagem por ressonância magnética.
e nos faz seres únicos são exatamente
Para se tornar um neurocientista, é
as características de nosso cérebro. A
imperativo que se dedique vários anos de
proclamação de René Descartes “Eu penso,
estudos sobre os princípios das disciplinas
portanto, eu existo” leva a uma pergunta
cem bilhões. No início
citadas acima, e que se tenha capacidade
inevitável: “O que nos faz ser quem somos?”
de 2009, um grupo
intelectual de desenvolver pesquisas utili-
para o cérebro humano nos livros de neurociência é de
de neurocientistas da UFRJ e da USP (que
A essência de quem somos, como indivíduos, está nas 100 trilhões de fendas
zando esses conhecimentos. desafios
sinápticas — espaços intercelulares de apro-
de decifrar os mistérios da máquina mais
ximadamente 20 a 40 nanômetros — que
complexa do mundo para buscar respostas
permitem a comunicação entre as células
elaborou um método
para questões cruciais à compreensão do
nervosas, os neurônios. O cérebro tem bi-
diferente de contagem
cérebro humano: como são produzidos os
lhões de neurônios organizados em rede
das células nervosas
bilhões de neurônios que constituem o tecido
que recebem, conduzem e transmitem as
e chegou a um novo
cerebral? Como eles crescem e se organizam
informações em forma de sinais elétricos e
número: 86 bilhões —
para funcionar efetivamente em sistemas que
químicos.
inclui os pesquisadores Roberto Lent e Suzana Herculano-Houzel)
(nota do editor)
Neurocientistas
enfrentam
semfronteiras |
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Dr. John Mazziotta, Dr. Michael Phelps – UCLA School of Medicine
Atualmente, a maioria dos estudos em neurociência é focalizada nos processos neurobiológicos do desenvolvimento, da percepção, da aprendizagem, da memória e da emoção. Entre os avanços tecnológicos que mais colaboraram para essas pesquisas estão os estudos de imagem, os neurofisiológicos, a genética, a psicofarmacologia, a farmacogenética e os implantes protéticos.
“As inovações biotecnológicas são extremamente importantes, mas definem e pedem atenção a uma série de aspectos neuroéticos.”
Estudos de imagem Avanços tecnológicos e o desenvolvimento de aparelhos como os de tomografia por emissão de pósitrons (PET) e ressonância magnética funcional
Tomografia de emissão de pósitrons (PET) de uma paciente com transtorno bipolar do humor, em quadro de ciclagem rápida entre depressão e euforia. As áreas em vermelho indicam alta atividade metabólica no cérebro.
(fMRI) permitiram maior sensibilidade nos processos diagnósticos. Por meio desses exames, é possível detec-
podem utilizar essa ferramenta para estudar quais áreas
tar de forma precoce e não invasiva o local preciso das
específicas do cérebro são ativadas quando precisamos
lesões do sistema nervoso, assim como os processos
usar habilidades como memória, razão, emoção e atenção.
funcionais do cérebro. Isso porque eles possibilitam visualizar o que ocorre no cérebro no exato momento
Genética
em que o indivíduo executa uma atividade cognitiva ou
A conclusão do projeto Genoma Humano tem
comportamental (como quando resolve um problema de
permitido aos neurocientistas concentrarem seus estudos
matemática) ou, ainda, identificar reações desencadea-
nas características genéticas fenotípicas e moleculares
das em determinados estados emocionais (quando é
associadas a várias doenças neurológicas e psiquiátri-
confrontado com uma situação emocional ou com dilemas
cas. Um número relativamente pequeno dessas doenças
morais). No futuro, o fMRI poderá ser utilizado também
é causado por defeito em um único gene. Na maioria das
para diferenciar a atividade cerebral de criminosos da de
vezes, elas decorrem da interação entre vários genes
pessoas que não tenham cometido crime: alguns estudos
e fatores ambientais. Diversos neurocientistas têm in-
mostram que a tecnologia pode ser útil na identificação
vestigado o impacto dos fatores de risco ambientais —
de sinais cerebrais ativados quando a pessoa está falando
como tabagismo na gestação, por exemplo — sobre os
a verdade ou mentindo deliberadamente.
genes e constatado que esses fatores podem levar ao desenvolvimento de psicopatologias como depressão e
Estudos neurofisiológicos
ansiedade.
O desenvolvimento da tecnologia de magneto-
Outros conhecimentos foram gerados com o avanço
eletroncefalografia (MEG) possibilitou uma melhor com-
da genética molecular. Os genes podem ser modificados
preensão sobre a atividade neuronial. Por terem atividade
ou “subtraídos” (Knock-out) de animais em laboratório,
elétrica, as redes neuroniais geram campos magnéticos
possibilitando a construção de hipóteses sobre as suas
que podem ser medidos com o MEG. Os neurocientistas
funções nas doenças do cérebro.
12 | semfronteiras
Psicofarmacologia e Farmacogenética
Implantes protéticos
A esquizofrenia afeta 1% das pessoas em todo o
Outro avanço importante será o uso de
mundo e aproximadamente 20% da população sofrem
ferramentas de imagem no desenvolvimento de im-
de depressão. Novos tratamentos psicofarmacológicos
plantes protéticos para compensar perdas senso-
proporcionaram esperança de uma qualidade de vida
riais e motoras. Recentemente, foi desenvolvida a
melhor para os que sofrem desses transtornos mentais.
tecnologia de implante coclear para tratar alguns
Exemplo disso é o medicamento Prozac, que aumenta a
tipos de surdez e de uma estimulação craniana
transmissão serotonérgica.
profunda com implante de eletrodos que ajuda a ali-
Avanços nessas áreas também são derivados da
viar os sintomas do mal de Parkinson. Certamente,
realização do projeto Genoma. Uma das ferramentas que
essa área é muito promissora e pode revelar possibili-
contribuíram imensamente para o avanço da neurociência
dades para outras perdas sensoriais e motoras, como
é a que chamamos de microarranjos. Com essa técnica, é
a perda visual e traumas da coluna espinal.
possível analisar a expressão dos 25 mil genes em um único experimento, assim como as respostas a vários tratamen-
Futuro
tos, medicamentosos ou não. Dessa forma, é possível uti-
Estudos da neurociência têm contribuído para
lizar uma “farmacoterapia direcionada”, em que a aplicação
várias inovações na medicina clínica com implicações
respeita as características individuais (e não genéricas), pois
terapêuticas e não terapêuticas que vão muito além
já sabemos que um mesmo medicamento pode produzir
do que era esperado. Para onde iremos agora? Uma
diferentes reações em diferentes pessoas.
das consequências das inovações, obviamente, nos confronta com aspectos éticos. Quando começa a
Mara Lucia Cordeiro
“vida” cerebral? Como é definida a morte cerebral? Devemos utilizar tecidos fetais para o tratamento de doenças neurológicas progressivas? Estes são alguns exemplos de questões que temos que abordar. O futuro da neurociência é muito promissor e excitante. Com as inovações biotecnológicas, seremos beneficiados pelos avanços e teremos que estar atentos e preparados para lidar com os aspectos neuroéticos.
Mara Lucia Cordeiro é neurocientista com pós-doutorado em Medicina Molecular e Farmacologia (UCLA Brain Research Institute) e pesquisadora do Instituto Pelé Pequeno Príncipe, de Curitiba, entre várias outras Quando tratadas com um fator de crescimento neuronal, células derivadas de um tumor da medula suprarrenal de rato se diferenciam em neurônios (imagens à esquerda). Em seu doutorado na Universidade da Califórnia, Estados Unidos, a neurocientista Mara L. Cordeiro tratou essas células com lítio, que é uma medicação usada no tratamento de transtorno bipolar, e notou um aumento na expressão de uma proteína importante para neurotransmissão, chamada CSP (imagens à direita).
atividades. Antonio Carlos de Farias é neuropediatra graduado pela Universidade Autônoma de Madri e responsável pelo Ambulatório de Distúrbios do Desenvolvimento do Hospital Pequeno Príncipe, de Curitiba.
semfronteiras |
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CIÊNCIA
Pesquisa de futuro Cristóbal Corral Vega
Claudia Izique
Institutos de investigação em neurociência formam nova geração de cientistas
Os neurocientistas Miguel Nicolelis e Sidarta Ribeiro, que conceberam o Instituto Internacional de Neurociência de Natal, com o objetivo de usar a ciência como agente de transformação social e econômica.
A pesquisa brasileira em neurociência, desenvolvida
serão levados para o laboratório para serem investigados”,
ao longo de mais de meio século, começa a se consolidar
explica o neurologista Jaderson da Costa, coordenador
com a criação de novos institutos e redes de investigação
do projeto.
que estreitam as relações entre grupos de pesquisas e
A ideia de se construir o Inscer foi gestada no
contribuem para a formação de uma nova geração de
Instituto de Pesquisa Biomédica (IPB), da PUC-RS, do qual
cientistas.
Costa é diretor, e que abriga laboratórios de pesquisas
Em 2010, estará concluída a primeira etapa das
como o de Neurociências e o Centro de Memória, criado
obras do Instituto do Cérebro do Estado do Rio Grande
há quatro anos pelo neurocientista Iván Izquierdo.
do Sul (Inscer). Vinculado à Pontifícia Universidade
“O laboratório e o Centro de Memória contribuíram
Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), será um insti-
para a criação de massa crítica e para o spin off do
tuto de assistência a pacientes portadores de doenças
Inscer”, diz Costa. O Instituto, ele sublinha, terá caráter
degenerativas e de pesquisa translacional, isto é, as-
interdisciplinar e envolverá também as áreas de Física,
sociada à prática clínica. “Os problemas identificados
de Farmácia e de Química da universidade.
14 | semfronteiras
Estrutura
Foco As investigações terão foco em doenças como
O CInAPCe está estruturado em torno de seis
Alzheimer, Parkinson e esclerose lateral amiotró-
centros de pesquisa principais (MRC, da sigla em
fica, que possuem incidência cada vez maior no
inglês de Main Research Center), instalados nos
país em função do envelhecimento da população.
campi da Universidade de São Paulo (USP) em São
Também serão realizadas pesquisas sobre sono
Paulo, Ribeirão Preto e São Carlos; na Universida-
e epilepsia e desenvolvidos estudos sobre o
de Estadual de Campinas (Unicamp); Universidade
comportamento neurológico de bebês prematuros
Federal de São Paulo (Unifesp); no Instituto Israe-
de forma a prevenir lesões, ele exemplifica.
lita de Ensino e Pesquisa, vinculado ao Hospital
O Inscer será instalado em dois prédios
Albert Einstein; e em laboratórios associados.
construídos numa área de seis mil metros
Além de pesquisas, os MRCs devem desen-
quadrados. “Já estamos na fase de aprovação de
volver novos métodos para processar e analisar
licenças e de compra de equipamento”, conta o
imagens de ressonância magnética, promover
coordenador do projeto. De acordo com Costa, o
programas para o treinamento de estudantes
modelo do Inscer se assemelha ao do programa
e pesquisadores, além de atender também às
Cooperação Interinstitucional de Apoio à Pesquisa
necessidades de desenvolvimento de novas téc-
sobre o Cérebro (CInAPCe), criado pela Fundação
nicas de abordagem terapêutica e de apoio aos
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
pacientes.
(Fapesp), já que conjuga a pesquisa ao tratamento
O Instituto do Cérebro do Hospital Albert
de pacientes. A diferença é que o Inscer terá uma
Einstein, por exemplo, tem foco em neurologia clí-
“estrutura unificada”, como ele diz, e o CInAPCe
nica e experimental, neuroimagem, neurofisiologia,
é um instituto virtual que envolve em rede várias
neuro-oncologia e doenças vasculares. Na área de
instituições.
neuroimagem por ressonância nuclear magnética
O programa da Fapesp foi lançado, por meio
funcional, os pesquisadores do Ins-
de edital, em 2004, com o objetivo de promover
tituto do Cérebro foram pioneiros
o desenvolvimento de pesquisas em neurociência
no estabelecimento de uma base
e formar uma rede de cooperação que articulasse
normativa de função cerebral para
diversos grupos de pesquisa do Estado. A primeira
a população brasileira. Essa base,
fase do programa tem foco nas pesquisas sobre
obtida por meio de estudos com
os mecanismos básicos que levam à epilepsia
voluntários saudáveis, permite iden-
e às desordens a ela associadas e o objetivo é
tificar e localizar áreas cerebrais
desenvolver métodos e técnicas que permitam
relacionadas às funções motoras, sensitivas, de
melhorar o diagnóstico, realizar programas de
linguagem e visão, e contribuem para pesquisas
prevenção e tornar mais efetivo o tratamento. A
sobre o funcionamento cerebral em diferentes
escolha da epilepsia se justifica pelo fato de que,
doenças. Outro estudo inovador emprega tec-
além de ser uma doença relevante do ponto de vis-
nologia de imagem nuclear no estudo da densidade
ta médico, já existem no país, notadamente em São
do transportador de dopamina em pacientes
Paulo, importantes grupos de pesquisa sobre o tema
acometidos pelo mal de Parkinson. A pesquisa,
e massa crítica para a articulação de um centro
realizada em colaboração com a Unifesp, foi a
virtual. Para dar coesão às pesquisas, o programa
primeira com marcação de neurotransmissores in
desenvolve investigações utilizando, principalmente,
vivo no país e pode ajudar no diagnóstico precoce
técnica de ressonância de alto campo.
da doença.
O trabalho realizado a partir de redes de instituições e pesquisadores fortalece a massa crítica.
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Natal
comandos entendidos por computadores. Nos
Outro centro de investigação de ponta é o
próximos anos, planeja criar, em cooperação com
Instituto Internacional de Neurociências de Natal
vários laboratórios do mundo, uma veste robótica
Edmond e Lily Safra (IINN-ELS), inaugurado em
para pessoas que perderam o movimento por
2007. Seus objetivos são realizar pesquisas,
conta de lesões na medula espinhal, de forma
promover a educação científica junto aos jo-
a permitir que estímulos motores cerebrais do
vens e atender a população carente de Natal e
paciente controlem uma prótese mecânica, res-
Macaíba, cidade de 62 mil habitantes situada a
taurando-lhes a mobilidade.
25 km da capital do Rio Grande do Norte. Em
As investigações não param por aí. “Nosso
apenas dois anos, as perspectivas abertas pe-
laboratório investiga os mecanismos molecula-
las pesquisas sobre o mal de Parkinson e sobre
res, celulares e psicológicos responsáveis pelo
a interface cérebro-máquina, realizadas pela
papel cognitivo do sono. Memórias explícitas
equipe do neurocientista Miguel Nicolelis — do
como, por exemplo, memórias de lugares, coi-
Departamento de Neurobiologia, codiretor do
sas e eventos, envolvem duas
Centro de Neuroengenharia da Duke University,
diferentes porções cerebrais:
nos Estados Unidos, professor do Instituto
enquanto o hipocampo age
Cérebro e Mente da Escola Poli-
como um armazenador de
técnica
Institutos de pesquisa estão colocando o Brasil em um patamar diferenciado no campo da neurociência.
Lausanne
curto prazo, as memórias,
(Suíça) e diretor científico do
Federal
de
com o tempo, migram com-
IINN-ELS — já eram apontadas
pletamente
para
como algumas das 25 invenções
cerebral”,
explica
que poderão mudar o mundo. Os
Ribeiro, chefe de Laboratório
pesquisadores conseguiram, por
de Pesquisa Científica do IINN.
o
córtex Sidarta
Doenças crônicodegenerativas como o mal de Parkinson são objeto de interesse dos neurocientistas brasileiros.
exemplo, eliminar os sintomas do
Investigando ratos através de registros
Parkinson em roedores. O estudo
neuroniais de multieletrodos e hibridização in situ
foi capa da revista Science, na edição nº 322,
para genes imediatos relacionados à plasticidade,
de 20 de março de 2009. “A ideia dessa cirurgia
os pesquisadores descobriram que memórias de
surgiu por acaso”, revelou Nicolelis na época. Ele
objetos novos no hipocampo desaparecem em
conversava com alunos sobre os sinais cerebrais
questão de minutos, mas persistem reverberan-
dos ratos com Parkinson, quando percebeu que
do no córtex durante o sono por várias horas
aquele padrão era muito semelhante ao que já
após o fim da exploração do objeto.
tinha visto em pacientes com epilepsia. “Será
Uma segunda linha de pesquisa, ele
que o mal de Parkinson é uma forma especial
acrescenta, diz respeito à comunicação vocal
de epilepsia?”, indagou-se. O teste foi feito
e competência simbólica em animais não
com camundongos saudáveis que receberam
humanos. “Nosso foco é o sagui (Callithrix
uma prótese na medula espinhal que disparava
jacchus), uma espécie bastante vocal de macaco
estímulos elétricos e causava um descontrole
do Novo Mundo. Atualmente, dedicamo-nos ao
motor. Constataram que, cerca de três segundos
estudo etológico do repertório vocal do sagui e
após cada disparo, os sintomas do mal de
também ao mapeamento, por meio da expres-
Parkinson desapareciam.
são de genes imediatos dependentes de cálcio,
A equipe chefiada por Nicolelis também conseguiu transformar impulsos elétricos em
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das áreas e vias cerebrais relacionadas à audição e produção das vocalizações.”
CIÊNCIA
Para esquecer, para lembrar Ana Luzia Palka
Pesquisadores paranaenses investigam drogas contra o estresse pós-traumático e Mal de Parkinson, entre outras doenças
Os estudos no campo da neurociência avançam no Paraná. Pesquisadores de diversos
maníacos e o transtorno de estresse póstraumático, foco atual de suas pesquisas.
núcleos acadêmicos e unidades hospitalares investigam novos tratamentos, diferentes abor-
Estresse
dagens terapêuticas e fármacos mais eficientes,
No estresse pós-traumático (TEPT), ele
procurando desvendar essa estrutura misteriosa
explica, a pessoa passa por um trauma emocional
que é o cérebro humano. A produção paranaense
intenso, muitas vezes envolvendo risco para a
já começa a despontar no cenário científico Joka Madruga
nacional e internacional. Roberto Andreatini, do Setor de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR), busca desenvolver medicamentos para os transtornos de ansiedade e humor. Depois de atuar por 18 anos em clínica, Andreatini resolveu conhecer melhor o mecanismo de ação de drogas e passou a dedicar-se à pesquisa préclínica, com uso de modelos animais. Ele investiga as condições patológicas de humor e ansiedade, como o transtorno do pânico, o transtorno de ansiedade generalizada, os quadros depressivos maiores, os episódios
Roberto Andreatini (UFPR) pesquisa medicamentos que podem ajudar pacientes com estresse póstraumático a esquecerem um trauma.
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17
Joka Madruga
vida, e começa a desenvolver sintomas de revivência daquele episódio e a fazer um distanciamento afetivo das pessoas. “Estamos tentando trabalhar com um hormônio liberado durante uma situação de estresse — o cortisol — que atua em várias proteínas receptoras. Ao testar drogas que agem nesses receptores, uma das substâncias que atuam nos mineralocorticoides acabou mostrando que facilita o esquecimento, pelo menos nos modelos animais. Com o seu uso, o animal esquece mais facilmente o evento estressante”, explica Andreatini. Segundo o pesquisador, essa pode ser uma nova abordagem para o tratamento de pacientes com esse tipo de transtorno, embora a sua aplicação em humanos ainda dependa de uma série de etapas.
Anete Curte Ferraz (UFPR) e sua equipe constataram o efeito antidepressivo de ácidos graxos da família ômega-3, em forma de cápsulas de óleo de peixe, em pacientes com mal de Parkinson.
“Essa substância facilitaria o esquecimento não da memória em si, mas apenas do trauma e de todas as suas consequências, fazendo com que aquele evento
Anete Curte Ferraz, professora do Departamento
se tornasse uma lembrança normal, sem associação
de Fisiologia da UFPR, comprovou junto a um grupo
com a série de alterações de comportamento que
de pacientes parkinsonianos que os ácidos graxos
pacientes com TEPT apresentam”, diz.
poli-insaturados da família ômega-3 apresentam
De acordo com Andreatini, atualmente alguns
efeito antidepressivo. O resultado alcançou grande
antidepressivos são utilizados nessa situação, mas
repercussão no meio acadêmico internacional ao ser
com resultados parciais. “Nem todos os pacientes
publicado, no ano passado, no Journal of Affective
respondem ao medicamento. Para uma parcela,
Disorders.
eles não produzem efeito. Às vezes, combatem
Depois de avaliar o efeito do ômega-3 em ratos,
um sintoma e não outro. Daí a nossa tentativa de
verificando por meio de testes comportamentais o
desenvolver novas medicações, para atender essas
benefício provocado pela substância, Anete Ferraz
pessoas.” Inicialmente identificado como “doença
partiu para o estudo clínico. Com apoio de uma equipe
típica dos soldados” — o termo arcaico “shell shock”
interdisciplinar, envolvendo psicólogos, neurologistas
foi usado pela primeira vez durante a Primeira Guer-
e nutricionistas, a fisiologista aplicou a pesquisa num
ra Mundial para identificar traumas emocionais se-
grupo da Associação Paranaense dos Portadores de
veros adquiridos por combatentes nas trincheiras —,
Parkinsonismo. Depois de três meses de suplemen-
o transtorno de estresse pós-traumático desperta o
tação alimentar com cápsulas de óleo de peixe —
interesse da ciência, atualmente, também por sua
que contém ácidos graxos da família ômega-3 —, foi
relação com situações de violência urbana.
constatada nesses pacientes uma diminuição dos sintomas de depressão.
Cápsulas de óleo de peixe
“Esse foi um dos trabalhos mais importantes do
O mal de Parkinson é alvo de grande parte
nosso laboratório, principalmente porque o consumo
das pesquisas ligadas ao sistema nervoso. No
das cápsulas de óleo de peixe não traz nenhum
Paraná, a doença também é foco de atenção dos
efeito colateral. Minimamente, você estará apenas
neurocientistas. Há dois anos, a pesquisadora
melhorando a qualidade alimentar do paciente”, afirma.
18 | semfronteiras
Segundo a pesquisadora, é possível que o efeito
axônios, ou o que acontece quando há uma lesão desses
positivo da substância seja verificado em qualquer
axônios no sistema nervoso”, explica. Os príons, um tipo
situação de depressão, entretanto ela enfatiza que
de proteína encontrada no gado, podem provocar várias
os pacientes que deixaram de consumir as cápsulas
doenças transmitidas ao homem por meio do consumo de
voltaram a apresentar os sintomas. Atualmente, Anete
carne bovina. Os príons são responsáveis, por exemplo, pelo
Ferraz está estudando o mecanismo de ação do efeito
desenvolvimento da doença de Creutzfeldt-Jakob, mais
antidepressivo dos ácidos graxos ômega-3 sobre as
conhecida como doença da vaca louca. A contaminação
células nervosas.
entre seres humanos também é possível e ocorre por meio
Joka Madruga
de transplante de órgãos ou transfusão de sangue. Já se sabe que as doenças priônicas e outros processos neurodegenerativos provocados pelos príons têm sintomas semelhantes aos do mal de Alzheimer, como perda de memória e rigidez dos membros. Com o desenvolvimento de doenças priônicas, o cérebro de uma pessoa afetada também começa a apresentar cavidades. Guaraná antipânico As pesquisas em neurociência no Paraná não se restringem aos núcleos da capital. As Universidades Estaduais de Londrina e Maringá são outro polo de produção científica voltada à melhor compreensão das Silvio Zanata (UFPR) estuda os príons, um tipo de proteína malestruturada que é uma das causas de processos degenerativos do cérebro.
funções neurológicas. Nessas universidades se instalaram grupos de pesquisadores que desenvolvem essencialmente pesquisas nas áreas de neurofarmacologia, fisiologia da atividade mental e comportamentos defensivos.
Doenças degenerativas Doenças que resultam da degeneração de células
É o caso da professora Elisabeth Audi, da Universidade Estadual de Maringá, que estuda o mecanismo de ação Assessoria de Comunicação Social/ UEM
cerebrais também são temas de pesquisas. É o caso do estudo que vem sendo desenvolvido pelo professor Silvio Zanata, do Departamento de Patologia Básica da UFPR, em torno dos príons — um tipo de proteína malestruturada, difícil de ser destruída, que transforma proteínas normais em anormais, sendo uma das causas de processos degenerativos do cérebro. Suas pesquisas partem do conhecimento sobre os mecanismos de formação dos axônios, que dentro do sistema nervoso são os responsáveis pelos impulsos elétricos a outras partes do corpo, como, por exemplo, os músculos. “Não estudamos os príons infecciosos, e sim a função fisiológica normal da proteína ‘sadia’, o príon celular. O que se quer saber é qual o papel da proteína príon celular no desenvolvimento dos
Elisabeth Audi (UEM) e equipe observaram atividade antidepressiva e antipânico com o uso de extrato de sementes de guaraná e suas frações.
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19
de drogas antidepressivas e ansiolíticas a partir de extratos vegetais. A pesquisadora tem estudado o extrato de sementes de guaraná e suas frações, obtendo resultados interessantes dessas substâncias como psicotrópicos. “Observamos atividade antidepressiva e antipânico para uma de suas frações”, conta. Outra planta brasileira que faz parte dos seus estudos é a Kielmeyera coriacea,
Centro de Reabilitação utiliza tecnologia de ponta Ana Luiza PalKa Fotos: Bruno Stock
geralmente encontrada no Cerrado e vulgarmente conhecida como pau-santo. É da mesma família da Hypericum perfuratum, que já é comercializada como
antidepressivo.
“Estamos
estudando
substâncias purificadas obtidas da Kielmeyera que mostram a mesma atividade e podem se
A violência urbana colaborou para o aumento do interesse dos cientistas pelo estresse póstraumático.
tornar, no futuro, um antidepressivo totalmente brasileiro”, diz. Com uma produção numerosa no campo da neurociência, os pesquisadores só se ressentem da falta de mais recursos. Para a professora Elisabeth Audi, no Brasil o campo vem crescendo de forma exponencial, mas os investimentos dos órgãos de fomento federais têm sido direcionados mais para os Estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Segundo o professor Roberto Andreatini, o que se cobra também é maior participação dos laboratórios privados no financiamento dessas pesquisas, ainda que seja um investimento de risco. Há estimativas de que, a cada oito mil ou dez mil substâncias pesquisadas, apenas uma chegue a um produto final.
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Especializado no tratamento de doenças relacionadas ao aparelho locomotor, resultantes ou não de problemas neurológicos, o Centro Hospitalar de Reabilitação Ana Carolina Moura Xavier, em Curitiba, é a principal referência na reabilitação de deficientes físicos no Paraná.
o o a
Centros como o Hospital Ana Carolina servirão como ponte entre pesquisa e atendimento em saúde
O Centro dispõe de um Laboratório de Marcha, que possui um sistema de análise precisa dos movimentos do paciente.
Os resultados obtidos pelos núcleos de pesquisas em
que possibilita a coleta de dados e a análise precisa dos
neurociência vão encontrar aplicação prática em centros
movimentos. O hospital também é um dos primeiros a
especializados no tratamento de doenças que envolvem
utilizarem um aparelho denominado Biofeed, desenvolvido
o sistema nervoso. O Paraná ganhou recentemente uma
pelo Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar) e próprio para
unidade de referência em reabilitação de pacientes aco-
que médicos e fisioterapeutas possam medir exatamente o
metidos por essas doenças. O Centro Hospitalar de Rea-
grau de articulação dos membros e com isso avaliar avanços
bilitação Ana Carolina Moura Xavier, localizado no bairro
ou retrocessos em determinados tratamentos. A parceria
Cabral, em Curitiba, é especializado no tratamento de doen-
com a Associação Paranaense de Reabilitação garante a
ças relacionadas ao aparelho locomotor, resultantes ou não
manutenção de uma oficina de próteses e órteses, onde são
de problemas neurológicos – sequelas de derrames cerebrais,
utilizadas tecnologias de última geração.
lesões da coluna, doenças que ocorrem no nascimento (co-
Todo o atendimento no Centro Hospitalar é gratuito.
mo as paralisias cerebrais), doenças congênitas complexas,
O hospital é mantido pela Secretaria de Estado da Saúde,
miopatias, doenças mielomeningocélicas e amputados.
que investiu aproximadamente R$ 35 milhões na sua implan-
De acordo com o médico ortopedista Cadri Massuda,
tação. São 60 leitos em enfermaria, 12 em unidade de terapia
diretor do Hospital Ana Carolina, esses tratamentos cor-
intensiva, e uma expectativa de atendimento de 400 a 500
respondem a uma primeira etapa do atendimento, que, mais
pacientes/dia quando estiver em pleno funcionamento. O
tarde, deve se estender a outros procedimentos, relacionados
hospital ainda não iniciou os serviços de internamento, o que
a artroses, lesões esportivas e sequelas de traumas. Tam-
também deverá ocorrer em breve, segundo Cadri Massuda.
bém numa próxima fase, será colocado em ação o convênio
Com a estimativa de que 2% da população sofrem de
com a UFPR para utilização do centro como campo de ensino
alguma doença do aparelho locomotor – o que, no Paraná,
e pesquisa. “A Universidade é um dos nossos parceiros e
representaria aproximadamente 200 mil pessoas –, o médico
entra no empreendimento com o conhecimento científico”,
Cadri Massuda considera que a construção do Hospital
diz o diretor.
Ana Carolina foi um dos investimentos mais importantes
Em termos de tecnologia, o Centro de Reabilitação
e necessários na área da saúde. Em pouco tempo, ele se
Ana Carolina está bem equipado. Dispõe de equipamentos
transformará numa referência nacional. “Teremos um
modernos, como o Laboratório de Marcha, um dos pou-
dos melhores centros do país, ao lado da Associação de
cos existentes no Brasil. O laboratório reúne um sistema
Assistência à Criança Deficiente (AACD), em São Paulo, e do
computadorizado de plataforma e câmaras especiais
hospital Sara Kubitschek, em Brasília”, garante.
semfronteiras | 21 semfronteiras
CIÊNCIA
Tristeza ou depressão? Instituto Pelé Pequeno Príncipe avalia transtornos comportamentais em crianças
Cerca de 20% das crianças e adolescentes
do
planeta
sofrem
grupos de pediatras, são escassas e ainda
de
não existem testes de laboratório para
transtornos comportamentais e de humor,
complementar o diagnóstico clínico dos
de acordo com a Organização Mundial da
transtornos comportamentais e de humor.
Saúde (OMS). Transportando esse índice
Daí a dificuldade, muitas vezes, em se
para a realidade nacional, e tendo como
diferenciar um estado de depressão de um
parâmetro o censo de 2000 do Instituto
estado de tristeza.
Brasileiro de Geografia e Estatística
De
acordo
com
os
critérios
(IBGE), estima-se que aproximadamente
estabelecidos pela Associação Americana
11 milhões de crianças e adolescentes
de Psiquiatria, os sintomas do transtorno
brasileiros sofram desses problemas.
de depressão caracterizam-se por um
Os
transtornos
comportamentais
ou mais episódios depressivos; por pelo
e de humor decorrem do mau funcio-
menos duas semanas de humor deprimido
namento de estruturas cerebrais que
ou perda de interesse, acompanhados
modulam funções como atenção, lingua-
por sintomas adicionais como insônia ou
gem, memória e emoção. Crianças e ado-
hipersonia quase todos os dias; fadiga; e
lescentes com esse quadro apresentam
pensamentos de morte recorrentes.
dificuldade em aprender e em desenvolver um bom relacionamento com a família e
Crianças e adultos
a comunidade. Esses comportamentos
“Durante muito tempo, acreditou-
continuam na vida adulta, tornando-se
se que crianças e adolescentes não
fatores de risco para o desemprego, uso de
eram afetados pela depressão”, afirma o
drogas, criminalidade e comportamentos
neuropediatra Antonio Carlos de Farias.
antissociais.
Pesquisas epidemiológicas mostram, no
No Brasil, pesquisas nessa área
entanto, que cerca de 1% das crianças
do conhecimento, particularmente com
pré-escolares sofre de depressão infantil,
22 | semfronteiras
Instituto Pelé Pequeno Príncipe
número que aumenta para até 4% e 8% em crianças em idade escolar e em
adolescentes,
respectivamente,
sublinha o médico. “As crianças são tão suscetíveis quanto os adultos. Enquanto estes apresentam humor deprimido, nelas este sintoma pode aparecer como um humor irritável e um comportamento hiperativo. Por isto, um diagnóstico criterioso é essencial”, registra. Preocupada com essa situação, a Associação Hospitalar de Proteção à Infância Dr. Raul Carneiro, de Curitiba, por meio da sua instituição de pesquisa científica Instituto de Pesquisa Pelé Pequeno Príncipe, submeteu projeto à Secretaria de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, em 2007, com o objetivo de avaliar, gratuitamente, 600 crianças e adolescentes de escolas municipais de Curitiba, utilizando um protocolo da Universidade da Califórnia, Los Angeles (UCLA). Idealizado e coordenado pela neurocientista Mara
Desenho feito por uma criança diagnosticada com depressão, no qual ela se autorretrata triste e referindo-se a si mesma como “ridícula”.
Lucia Cordeiro, com participação do neuropediatra Antonio Carlos de Farias,
As avaliações sanguíneas incluem exames dos hormônios
esse projeto conta com recursos da
da tireoide, hemograma e análise de cálcio, ferro, magnésio,
ordem de R$ 250 mil do Fundo Paraná.
manganês, mercúrio urinário, chumbo e zinco, bem como análises
Entre as principais recomenda-
do eixo hipotalâmico-hipofisário-adrenal. “Fatores de risco como o
ções do protocolo estão avaliações
fumo durante a gestação, a inter-relação com fatores ambientais,
neurológicas, oftalmológicas, de au-
micronutricionais,
dição e aplicação de testes de inteli-
e a interação medicamentosa também fazem parte da pesquisa”,
gência, como o WISC-III. Também
informa a coordenadora científica do projeto. Até novembro de 2009,
está prevista a realização de testes
375 alunos da rede municipal haviam passado por essas avaliações.
psicopedagógicos visando proporcionar
Os dados preliminares da pesquisa foram publicados no início do
às crianças e adolescentes uma melhor
ano no Journal of Child and Adolescent Psychopharmacology e no
qualidade de vida.
Journal of Attention Disorders. (RR)
neuroquímicos,
neuroendócrinos,
genéticos
semfronteiras |
23
Ciência, tecnologia e humanização da sociedade Osvaldo Della Giustina
O processo civilizatório
em torno do capital, consequência, entre outros fatores,
Neste início de século, ou de milênio, a humanidade,
da descoberta da máquina a vapor, independentemente
nós, estamos chegando a uma nova era, ou modo de ser
de ser o capital possuído por pessoas, grupos, sistemas
da civilização. Ao afirmar isso não estou me referindo,
e organizações, ou pelo Estado. Essa alternativa deter-
propriamente, às profecias ou às aspirações dos místi-
minou o surgimento do socialismo e do capitalismo,
cos, aquarianos ou não. Refiro-me a um imperativo
ambos fundamentados no capital, não nas pessoas, ou
histórico, determinado pelas transformações do modo
na sociedade e seus componentes.
de ser e agir da sociedade, condicionado agora pelos avanços da Ciência e da Tecnologia.
É importante identificar algumas características desse processo.
Se considerarmos que a transição de uma era
A primeira delas refere-se à aceleração das trans-
para outra, ou seja, para um novo estágio civilizatório,
formações que caracterizam essas mudanças. Enquanto
é inerente ao processo histórico, podemos concluir
no primeiro estágio a transformação se fez em milhares
com segurança que estamos vivendo um desses mo-
ou milhões de anos, no segundo estágio, aconteceu em
mentos. Abro um parêntese para definir que entendo
alguns séculos e do mundo feudal para a organização
por mudança civilizatória a chegada ou a construção
industrial em pouco mais de um século.
de uma profunda transformação da estrutura, dos procedimentos, do conhecimento, dos valores, enfim, de todos os componentes de uma sociedade. Há um certo consenso entre antropólogos e historiadores em geral que pode ser considerada como uma primeira transição civilizatória: a transformação do homem tribal, ou nômade, para o homem urbano, da organização de cidades e impérios; em seguida, deste estágio para uma organização mais descentralizada e distribuída – a denominada era feudal; enfim, do estágio feudal para uma sociedade organizada e funcionando
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“É pertinente a afirmação de que uma nova era, a era póscivilização industrial, se aproxima velozmente. Este é um imperativo histórico, não só pelo esgotamento do sistema do capital, ainda vigente, mas especialmente pelo surgimento de novos fatores de mudança produzidos pelos avanços da Ciência e da Tecnologia.”
Nesta evidência histórica da aceleração
avanços da ciência e das artes renascentistas,
das mudanças é pertinente a afirmação de que
que propiciaram a descoberta da máquina a vapor,
uma nova era, a era pós-civilização industrial
e de uma nova cultura, além das novas teorias
se aproxima muito velozmente. Este é um im-
sociais decorrentes.
perativo histórico, não só pelo esgotamento
Considerado esse ângulo, pode-se afirmar
do sistema do capital, ainda vigente, mas espe-
que nenhum dos fatores passados tenha tido,
cialmente pelo surgimento de novos fatores de
em tão pouco tempo, a dimensão dos fatores
mudança, produzidos pelos avanços da Ciência
científico-tecnológicos e de outras
e da Tecnologia.
ordens que estão impulsionando as ao
transformações do atual processo
fato de que as mudanças civilizatórias, no pas-
civilizatório. Isso nos permite con-
sado, não têm ocorrido simultaneamente nas
cluir da inevitabilidade que esta-
diversas partes do mundo. É consequência desta
mos, efetivamente, vivendo uma
característica que, mesmo neste início de mi-
transformação civilizatória, da era
lênio, podem ser encontrados, povos, ou regiões
industrial para uma nova era.
A
segunda
característica
refere-se
que mal estão saindo da era das cavernas ou das civilizações tribais, em contraste com povos, ou regiões, que vivem na era industrial, ou já a tenham ultrapassado.
O momento de transição A questão é para onde esses
“Este processo em transição teima em manter a organização e o funcionamento da sociedade com base nos fundamentos da era industrial, identificados no século XIX.”
fatores estão impulsionando a ci-
As mudanças ocorridas na história do
vilização. Exemplificando a dimensão desses
passado portanto nem foram globais, nem foram
fatores, podem ser citados como surgidos no
simultâneas. De outra parte a transição que es-
curto espaço do ultimo século, o rádio, o telefone
tamos vivendo poderá acontecer instantaneamente
sem fio, o celular, o automóvel, o avião, o jato, o
ou quase. Assim já o demonstram, na prática,
foguete espacial, a energia nuclear, o satélite, a
alguns fatos que presenciamos, como, por
nave espacial, a química fina, a nova engenharia,
exemplo, a crise financeira, da qual as economias
a engenharia genética, a eletrônica, a televisão, o
tentam sair, e que rápida, quase instantaneamente
computador, a internet e os serviços em rede, os
adquiriu proporções globais.
shopping centers, as megalópoles e o esvaziamento
Uma terceira característica deve ser atri-
dos campos. Ainda, a explosão demográfica, os
buída, enfim, ao surgimento de fatores específicos
sistemas globalizados, a interdependência glo-
que preparam, precipitam, a mudança civilizatória.
bal, a economia concentrada. Dessa forma, a
Assim, retornando à análise, dos diversos
dimensão da Ciência e da Tecnologia, globalizando
estágios. No primeiro estágio, os fatores deter-
todas as coisas, somada à rapidez das mudanças,
minantes teriam sido o domínio do fogo e a
rompendo todas as fronteiras e, ainda, a ve-
descoberta do uso dos metais; a mudança da era
locidade da inovação transformada em processo
dos grandes impérios para a organização feudal
contínuo nos permitem dizer que a interpretação
teria sido a difusão de novas teorias clássicas de
estática do mundo proposta por Parmênides está
organização social e, especialmente no ocidente
sendo substituída pela visão dinâmica ou mutante
a difusão do cristianismo e seus valores, mais do
proposta por Heráclito. Nos permite até especular
que propriamente invasões dos povos periféricos;
se não estamos nos aproximando da superação
a transição da era feudal para a civilização
das formas fundamentais do tempo e do espaço,
do capital, enfim, teria sido consequência dos
propostas por Kant.
semfronteiras |
25
Wikipedia
Escola de Atenas, afresco para o Vaticano. Rafael (1506 –1510).
Wikipedia
Wikipedia
Parmênides de Eleia (Cerca de 530 a.C. – 460 a.C.): Toda mutação é ilusória.
Heráclito de Éfeso (Cerca de 540 a.C – 470 a.C.): Tudo está em perpétua mutação.
26 | semfronteiras
Este é o mundo atual, momento de transição,
da Ciência e da Tecnologia poderiam ser fatores
que vai nos levar à civilização da nova era, ou da pós-
essenciais no processo de evolução da espécie
tecnologia.
humana, de quem são criaturas.
A questão é que esse processo em transição
No rumo em que estamos indo,
teima em manter a organização e o funcionamento
estamos ameaçados de reviver a
da sociedade, baseados nos fundamentos da era
fábula do aprendiz de feiticeiro.
industrial, ou seja, identificados ou propostos no século XIX, no tempo das tecnologias do trem de
As perspectivas da Ciência e da
ferro, da máquina a vapor e de outros conhecimentos
Tecnologia
“No rumo em que estamos indo, estamos ameaçados de reviver a fábula do aprendiz de feiticeiro.”
e tecnologias da época. Afinal, O Capital, de Marx,
Nessa percepção, a Ciência
ou a Riqueza das Nações, de Adam Smith, foram
e a Tecnologia utilizadas em
escritos em meados daquele século. Os neo que se
favor da espécie humana produziriam a era pós-
acrescentaram, tanto à visão socialista como à visão
tecnológica efetivamente humanizada, isto é, or-
capitalista, não alcançaram trazer o processo à era
ganizada e funcionando em níveis harmônicos com
das transformações trazidas pelo avanço Ciência e
o processo civilizatório e a evolução do homem, ou
da Tecnologia.
seja, caminhando do ponto Alfa, primitivo, ao ponto
Tal dissintonia tem produzido as crises que ameaçam esta fase de transição, crises que não se
Ômega, pleno, na interpretação antropológica de Teilhard de Chardin.
esgotam nos setores econômicos, ou financeiros.
A viabilidade desse novo processo, no entanto,
Elas abrangem a política, e ética individual e social,
tem como pressuposto a superação de fundamentos,
a estrutura da sociedade, aumentando a miséria,
valores, estruturas e procedimentos que caracterizam
de um lado, e a concentração da riqueza, do outro,
a sociedade atual, como se disse.
fazendo com que bilhões de pessoas e dezenas
Poderão essas teorias, do século XIX, ainda
de países vivam abaixo do nível de sobrevivência,
que remendadas, continuar a ordenar o processo de
enquanto a riqueza e o conhecimento se concentram
transição, ou a civilização pós-tecnológica?
cada vez mais nos sistemas que fogem cada vez mais às dimensões humanas. Esse desequilíbrio constitui a ameaça deste mo-
Mesmo que não possam, para que esse ordenamento seja possível não basta ultrapassá-las. É necessária a definição de novos instrumentos e
mento de transição, ameaça que está aprofundando
teorias de organização social que
a desumanização do processo civilizatório, e sua
a organizem e a fundamentem
transferência para o estágio civilizatório da era
com base em novos valores.
pós-tecnológica. Isso ocorrendo, as pessoas estarão
Ora esses valores, embora
submetidas a uma nova forma de totalitarismo, pior
difusos e desordenados, aí estão
do que os que conhecemos no passado, ou ainda no
compartilhados globalmente por
presente, porque sem face, detentor de um poder
pessoas e instituições, indepen-
incalculável, capaz de amortecer consciências,
dentemente de raças, crenças,
globalizar-se e massificar, ou robotizar o homem.
países, religiões, ideologias, ou
“É preciso que se voltem a desenvolver a Ciência e a Tecnologia do homem e da sociedade, para que não se desumanize o processo civilizatório.”
Esse processo de desumanização, porém,
outros componentes da realida-
não pode ser atribuído aos avanços da Ciência e
de global. É o conjunto desses
da Tecnologia em si. Ao contrário. Sob qualquer
valores que, em meu livro Partici-
aspecto que se considere, seja o antropológico, o
pação e Solidariedade, defino como massa de
social, o pessoal, o ético ou espiritual, os avanços
consciência. Esta massa de consciência, embora
semfronteiras |
27
Wikipedia
Immanuel Kant (Königsberg – 17421804): “Age de maneira tal que a máxima de tua ação sempre possa valer como princípio de uma lei universal.”
28 | semfronteiras
Wikipedia
“Kant e seus amigos à mesa”, pintura de Emil Doerstling (cerca de 1900).
difusa e desordenada, está a clamar pela consciência e
Entre outros valores, compõem a massa de
competência das pessoas, e instituições que assumam
consciência, a título de exemplo, a aspiração ou a
o esforço de transformá-la em prática. É preciso que
exigência em favor dos direitos humanos – da vida,
se entenda isso, para que esse momento de transição
da liberdade, da participação e da solidariedade entre
e para que a nova sociedade, que está por vir, não
pessoas, culturas, povos e nações; ainda, a justiça, a paz,
aconteçam ao acaso, de forma desordenada e caótica,
a preservação da natureza, e de melhores condições
ou simplesmente pela ruptura, de forma violenta,
ou qualidade de vida; o acesso universal aos direitos
desumanizando o processo civilizatório.
básicos, como a educação, a saúde, o lazer, o respeito à
Na resposta a este clamor está o desafio,
dignidade de cada um e a igualdade entre todos,
especialmente das universidades e de seus intelectuais,
A adoção desses valores como fundamentos
e não só dos políticos e empresários, ou de outras
da sociedade pós-tecnológica humanizada implica a
categorias, pois as universidades e os intelectuais
superação de valores que fundamentam a sociedade
que as constituem são por definição produtores do
atual – seus instrumentos e resultados: a concentração
conhecimento, da ciência e da tecnologia inovadores.
e a competição sem limites; a eliminação de tecnologias
Deve-se, ainda, acrescentar que, neste processo de
ou outros fatores agressivos à natureza, ainda
transição, as universidades e seus cientistas não podem
que aparentemente em prejuízo da produtividade,
se dedicar, apenas ou prioritariamente, à investigação
também o controle dos sistemas globais e a supera-
ou ao desenvolvimento da Ciência e da Tecnologia das
ção de modelos econômico financeiros baseados
coisas. É preciso que se voltem a desenvolver a Ciência
na especulação e em outros procedimentos que
e a Tecnologia do homem e da sociedade, para que não
resultam na marginalização das parcelas mais fracas
se desumanize o processo civilizatório.
da população, pessoas, países e instituições. Implica,
Nesse esforço sua responsabilidade abrange a
enfim, a diminuição também do poder do Estado, dos
investigação e o desenvolvimento de novos modelos de
sistemas e dos grupos dominantes e, sobretudo, a
organização e funcionamento da sociedade, coerentes
prática de uma nova ética, além da ética individual.
com os avanços da Ciência e da Tecnologia e coerentes
Sei que não é projeto fácil ultrapassar esses
com a dimensão dos valores da massa de consciência.
fundamentos e seus instrumentos, e viabilizar os
Este é, seguramente, o caminho de sobrevivência da
novos valores. Mas esta é a condição de sobrevi-
sociedade humanizada, ou da sociedade, simplesmente.
vência da sociedade humanizada e, como se disse, possivelmente a sobrevivência da própria sociedade,
Os valores da sociedade humanizada Esses valores é que farão a humanização da
sintonizada com os avanços da Ciência e da Tecnologia, a serviço do homem.
sociedade pós-tecnológica, pondo a ciência e a tecnologia a serviço do homem. Eles existem e crescem em toda parte, proclamados pelos meios de comunicação, pelas lideranças políticas e religiosas; também por grupos empresariais e de outras categorias da sociedade; enfim por um número crescente de pessoas
Osvaldo Della Giustina é educador, filósofo e escritor.
e instituições em todo o mundo. O que falta é organizar
Patrono
a sociedade em sintonia com eles.
(Universidade do Sul de Santa Catarina – Unisul).
da
Cátedra
Participação
e
Solidariedade
semfronteiras |
29
30 | semfronteiras
Espaço de complexidades MIGUEL SANCHES NETO Ilustração: Simon Ducroquet
semfronteiras |
31
Eu me valho aqui das distinções apresentadas pela professora
Território de embates políticos cada vez
instáveis. Em ambos os casos, exigem-se
mais polarizados, a Universidade traz uma
da Universidade respostas diretas, novas
tendência a se organizar de forma binária.
organizações
Embora se fale tanto da indissociabilidade
específicas. Há, enfim, uma pressão pela
entre ensino, pesquisa e extensão, a ponto
customização de conteúdos. Um caso ilustra-
de esvaziamento total do sentido desta
tivo desta demanda sob medida, própria do
expressão, há muita resistência em pensar
meio empresarial, é a onda dos cursos in
o ensino superior fora de dualidades redu-
company, voltados para formar funcionários
toras. Assim, de um modo geral, o que
para o domínio de conteúdos aplicados.
de
saberes,
metodologias
entendemos como Universidade nasce, na
É indiscutível que essa experiência
melhor das hipóteses, da junção de duas
em situações concretas pode levar a uma
destas três áreas.
formação cidadã ou a uma melhoria da
O grau de complexidade seria então
capacidade produtiva de empresas, mas há
binário: ensino/extensão, ensino/pesquisa e
o grande risco de a Universidade ver a sua
pesquisa/extensão, cada um deles apontando
função primeira, a de ampliação cultural para
para finalidades muito específicas.
uma formação plena, ser atropelada pelas
Sonia Regina
No primeiro conjunto, entende-se que
urgências do momento, por conta de uma
Mendes dos
a extensão, nas relações de aproximação
solicitação contínua de projetos orientados
Santos (UERJ)
com a comunidade, leva o ensino a manter
para o desenvolvimento socioeconômico nas
no XXV Encontro
uma sintonia fina com o tempo presente,
mais diversas frentes.
Nacional de
com as questões do contexto. A intervenção
A Universidade não é uma empresa
se faz mais horizontal, rendendo-se às
de consultoria, disponível para resolver
Universidades
demandas, que criam agendas de projeto.
problemas, embora ela não possa se
Pró-Reitores de Extensão das Públicas
Problemas sociais agravados por um proces-
desvincular das tensões de seu tempo.
Brasileiras (João
so de globalização colocam um número
Sua intervenção deve ter caráter político-
Pessoa, 17 a 19 de
cada vez maior de pessoas à margem da
pedagógico,
cidadania, gerando uma pressão crescente
objetivo de promover o desenvolvimento
da comunidade sobre o ensino superior.
cultural e científico numa perspectiva de
De outro lado, novas lógicas de mercado
solidariedade social, justiça, ética e demo-
também investem sobre a universidade
cracia. Gerando assim conhecimentos capa-
por conta de um novo perfil profissional
zes tanto de sustentar a crítica aos modelos
necessário no contexto da reformulação
social e político vigentes quanto de propor
produtiva, um perfil que se funda no domínio
projetos e alternativas possíveis de serem
de conhecimentos e na capacidade de
replicados na própria comunidade e nas
resolver problemas e de atuar em cenários
políticas públicas.
junho de 2009).
32 | semfronteiras
formando
sempre
com
o
Não cabe à Universidade uma ação
inovações do que propriamente inovadores,
em grande escala. Todo projeto envolvendo
uma vez que este papel é destinado a poucos,
extensão e ensino tem que ser entendido,
em uma visão totalmente hierarquizada,
antes de tudo, como um espaço-escola,
própria da sociedade da especialização.
voltado para a formação do aluno e da
Nessa perspectiva, a formação cria quadros
comunidade numa perspectiva crítica e
para o mercado, onde os profissionais vão
autonomizante.
antes operar os saberes técnicos. Quando
Nesse conjunto, a falta da pesquisa
isso ocorre é a pesquisa que determina os
pode levar a uma valorização da ação,
objetivos do ensino, numa desconexão com a
dando ao binômio ensino-extensão um ca-
comunidade, que entra apenas como público,
ráter pragmatista. É justamente pela pes-
sem interferir minimamente na formação,
quisa que se incorporam os saberes da
que perde o seu caráter cidadão.
comunidade, desenvolvem-se metodologias
Por fim, o último conjunto, pesquisa/
universalizadoras e se cria um espírito de
extensão, desvirtua totalmente a razão
investigação sem o qual não há autonomia
de ser da Universidade, que deixa de ser
do indivíduo ou crítica da realidade. Sem
formadora para se propor como agência
a pesquisa, corre-se o risco de ensino/
de pesquisa, com o poder de potenciali-
extensão virar um campo de adestramento
zar os saberes (universitários e populares),
de habilidades técnicas, de transferência de
apropriando-se de tradições, expandindo
tecnologias, de submissão ingênua à lógica
inovações. É um espaço mais próximo do
do mercado ou de simples militância política.
laboratório do que da Universidade, em que
Pertencendo mais a uma visão de
a própria sociedade serve para estes fins
futuro e de verticalização profissional, o
experimentais, tanto no desenvolvimento
conjunto ensino/pesquisa estimula o pro-
quanto na aplicação. O interesse está no
cesso de aprendizagem pela inovação. O
saber em si e não na formação acadêmica
conhecimento que se persegue modifica
(ou acadêmico-profissional), uma vez que se
a compreensão sobre o e do mundo, busca
elimina a preocupação com o ensino.
desenvolver novas tecnologias, numa visão
Embora
esses
conjuntos
desempe-
de progresso científico, de valorização do
nhem funções próprias da Universidade,
novo e de transformação.
eles promovem visões compartimentadas,
Porém,
assim
como
no
binômio
intensificando a especialização, e conse-
ensino/extensão há o risco da prática pela
quentemente alienando os indivíduos, que
prática, neste pode-se incorrer no perigo
dominam alguns conhecimentos sem saber
de que os esforços acabem criando antes
de que forma eles estão articulados entre si
um profissional apto a dialogar com as
e com a realidade.
semfronteiras |
33
Seja de natureza operatória, militante ou inovadora, a Universidade brasileira renuncia a uma comunicação interna maior quando perde o seu principal vínculo, uma cultura geral que crie uma base de reconhecimento mútuo. São frágeis ou inexistentes os pontos de contato entre as áreas, pois há uma energia centrífuga, que afasta os conteúdos de um centro. Este centro é o domínio de uma cultura geral como identidade humana. Em Universidade e Educação Geral: para além da especialização (Campinas: Alínea Editora, 2007), volume organizado por Elisabete Monteiro de Aguiar Pereira, esta diz: A Educação Geral visa formar o cidadão da democracia moderna com conhecimentos que lhe permitam arbitrar o conhecimento especializado e usar as habilidades profissionais tendo como parâmetro os valores morais, cívicos e humanos e não o interesse do mercado, do corporativismo ou das vantagens pessoais (p.10).
Essa base comum, banida dos currículos por uma visão laboratorialista (que isola as partes para dissecá-las), cria barreiras cada vez mais espessas entre os cursos de graduação e mesmo entre as disciplinas de cada curso. O ensino universitário se transforma assim num conjunto de partes que não têm mais o todo como horizonte. O separatismo da especialização desempenha ainda um efeito político muito nocivo, reforçando as disputas internas na medida em que cada uma das áreas se vê como a mais importante, o que leva a um inchaço dos cursos de graduação, com as disciplinas técnicas reivindicando mais e mais espaço. Essa concepção cientificista do ensino tem sido combatida pelo sociólogo Edgar Morin a partir da ideia de identidade englobante, que vai, em círculos concêntricos, do eu para o nós e do nós
34 | semfronteiras
para a espécie – um conhecimento pessoal, social
todo e o todo às partes ele chama de “pensamento
e planetário. Ele se opõe a uma preponderância
complexo”, que não seria algo destinado apenas a
da lógica isolacionista da Universidade, buscando
filósofos e cientistas:
devolver-lhe a feição humanizadora ao localizar no
Ele diz respeito a cada pessoa, cada cidadão
indivíduo o centro do processo de aprendizagem.
submetido ao risco do erro e da ilusão, incapaz de
Fazer deste um sujeito interrogante é a missão
religar os conhecimentos separados, impotente diante
do ensino.
dos problemas fundamentais e globais. Diz respeito
Em um livro que apresenta um panorama de seu pensamento e de sua vida, Meu caminho (Rio de Janeiro: Bertrand, 2010), o sociólogo critica esta ótica fragmentadora da ciência:
à nossa vida cotidiana e [às] nossas relações com o outro. (p.246).
Dentro
da
estrutura
da
Universidade
brasileira, o grande espaço de conjugação dos
Sob o efeito da acumulação dos saberes, a ciência
saberes, de ultrapassagem das especialidades e
setorizou-se e seus grandes campos de conhecimento
de uma visão que interligue o indivíduo, o contexto
– a física, a biologia e as ciências do homem – isolaram-
e o planeta é a extensão. Mais do que a face
se uns dos outros. Cada um desses campos, por sua vez, setorizou-se e, em todos os domínios, técnicos e especializados, desenvolveram-se conhecimentos compartimentados. Com isso a cultura científica converteu-se em uma cultura da especialização, na qual
solidária da Universidade, a extensão assume hoje uma centralidade no pensamento universitário. No espaço-escola em que ela se faz, devem se religar cada vez mais Universidade e sociedade,
cada disciplina tende a se fechar e a se tornar esotérica,
e também as várias áreas, os múltiplos saberes,
não apenas para o cidadão comum, mas também para
as artes e as ciências. A extensão passa a se
os especialistas das outras disciplinas (p.209).
configurar, então, como o âmbito acadêmico com
O grande desafio seria retomar a perspectiva do todo, mesmo sabendo que ele hoje é inalcançável, dada a explosão das especialidades, que não podem mais ser conjugadas em uma única pessoa. Este projeto de formação expansiva – contra a lógica particularizante da ciência – é proposto por Morin segundo dois conceitos complementares: a religação dos saberes e o pensamento complexo. Sem recusar o conhecimento especializado, ele propõe uma pedagogia marcada pelo princípio dialógico, multifocal, com uma base cultural
maior capacidade de superar a polarização dos binômios e conferir ao trabalho universitário a coerência e a unidade que somente o desgastado mas ainda imprescindível tripé (ensino, pesquisa e extensão) pode concretizar. Para que esse processo se acelere são fundamentais as políticas de financiamento daquelas ações universitárias que priorizem os projetos polidisciplinares de ensino e pesquisa no ambiente da extensão. Esta trindade, posta neste rumo, representa uma abertura para complexidades crescentes.
voltada para a soma – acrescentar ao invés de eliminar. Ou seja, uma construção agregativa do conhecimento, tendo como norte a formação de um sujeito em confronto com o grupo e com a
Miguel Sanches Neto é escritor e professor-associado
espécie. A este movimento de religar as partes ao
da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).
semfronteiras |
35
36 36 || semfronteiras semfronteiras
Visible Earth/Nasa
meio ambiente
Recuos, avanços, controvérsias... Claudia Izique
Coordenador do estudo “Economia das Mudanças Climáticas no Brasil”, Jacques Marcovitch faz balanço da COP 15
Apesar do clima de frustração, a Conferência do
de grandes países da União Europeia como Alemanha,
Clima de Copenhague (COP 15) resultou em avanços
França e Reino Unido, concordaram que uma econo-
importantes: viabilizou a criação de um fundo para
mia de baixa emissão de carbono é indispensável para
acelerar o desenvolvimento e a transferência de tec-
o desenvolvimento econômico. E que o Protocolo de
nologias limpas e reconheceu as iniciativas de redução
Kyoto reforça a redução de emissões”, avalia Jacques
de emissões por desmatamento e degradação da
Marcovitch, professor da Faculdade de Economia,
floresta como cruciais para a segurança climática.
Administração e Contabilidade da Universidade de
“Entendo que foram realizados alguns avanços que me-
São Paulo (FEA/USP) que, desde 2002, pesquisa as
recem ser valorizados. Estados Unidos e China, com a
políticas de implantação da Convenção do Clima e do
participação do Brasil, Índia e África do Sul e o endosso
Protocolo de Kyoto.
Imagem de satélite mostra desmatamento no Estado do Mato Grosso.
semfronteiras semfronteiras || 37 37
Autor de diversas publicações, entre elas o livro
No caso do Brasil, essa posição de destaque é
Projetando o futuro — mudanças climáticas, políticas
reforçada pelo esforço para reduzir o desmatamento,
e estratégias empresariais, Marcovitch menciona o
um dos fatores diretamente relacionados ao aque-
acordo firmado em Copenhague que viabilizou um fundo
cimento global, pelos investimentos em pesquisas
de US$ 30 bilhões de apoio aos países pobres, para o
relacionadas à redução de emissão, energia limpa
período de 2010 a 2012, bem como o compromisso de
e biocombustíveis – a meta é reduzir em 80% o
constituir um outro fundo, de US$ 100 bilhões, até 2020,
desmatamento da Amazônia até 2020 e evitar a
para acelerar o desenvolvimento e a transferência de
emissão de 4,8 bilhões de toneladas de CO2. Um
tecnologias limpas. “Também foi acordado que os
exemplo de estudo na área é “Economia das Mudanças
resultados das ações de mitigação que dependam de
Climáticas no Brasil” (EMCB), que ficou conhecida
recursos externos serão monitorados e verificados
como o “Relatório Stern brasileiro” – referência ao
unicamente no âmbito de cada país”, acrescenta. Outro
estudo produzido em 2006 pelo economista Nicholas
avanço importante, ele diz, foi o reconhecimento das
Stern para o governo britânico, sobre o impacto
florestas tropicais para a segurança climática. “As
das mudanças climáticas na economia mundial nos
iniciativas de redução de emissões por desmatamento
próximos 50 anos, cujos resultados foram divulgados
e degradação florestal foram amplamente reconhecidas
em novembro de 2009. Coordenado por Marcovitch,
e mencionadas em três dos 12 parágrafos do Acordo de
o EMCB, resultado de um consórcio formado pelas
Copenhague.”
universidades de São Paulo (USP) e de Campinas
As dificuldades para se chegar a um entendimento
(Unicamp) e vários institutos importantes de pesquisas,
eram previstas. “Com 190 países enfrentando realidades
reuniu os maiores especialistas brasileiros na análise
econômicas, sociais e ambientais distintas, era de se
e quantificação do impacto da mudança do clima na
esperar problemas”, ele afirma. No encontro, o Secretário
agenda de desenvolvimento no país.
Geral da Convenção, Yvo de Boer, colocou em debate
O estudo constatou que o Brasil corre o risco de
quatro itens: metas de redução
ter perdas econômicas entre R$ 719 bilhões e R$ 3,6
de emissões; recursos financeiros
trilhões (o equivalente ao PIB de um ano inteiro) em
para
Uma economia de
adaptação;
2050 caso nada seja feito para reverter os impactos
apoio para o desenvolvimento e
das mudanças climáticas. As regiões mais vulneráveis
a transferência de tecnologias; e
à mudança do clima seriam a Amazônia e o Nordeste,
estrutura de governança para a
com perdas expressivas para a agricultura em quase
alocação dos fundos mobilizados.
todos os Estados. Além disso, a previsão é de uma
“Os
nestes
menor confiabilidade no sistema de geração de
itens propiciaram negociações de
energia hidrelétrica, com redução de 29,3% a 31,5%
perfil ‘ganha-perde’, que levaram a
da chamada energia firme (isto, é, a passível de
impasses.” Recorreu-se então à mediação de um grupo
produção pela planta hidrelétrica nos períodos mais
de 28 países, incluindo os mais vulneráveis às mudanças
críticos de estiagem).
baixa emissão de carbono é indispensável para o desenvolvimento econômico.
mitigação
holofotes
e
focados
climáticas, mas o acordo final somente foi viabilizado com a intervenção das economias emergentes. “Após
Compromisso
a crise financeira de 2008, as economias emergentes,
Não foi por menos que o Brasil deixou claro, em
entre elas China, Índia e Brasil, passaram a ocupar um
Copenhague, a sua disposição em reduzir as emissões
novo espaço nas negociações internacionais”, lembra
de gases de efeito estufa até 2020, na comparação
Jacques Marcovitch.
com 2005. “Diferente do que acontece em países
38 | semfronteiras
Ricardo Stuckert/PR
desenvolvidos como a Noruega, o corte de emissões em países emergentes como Brasil e China está vinculado ao percentual de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB)”, afirma Marcovitch. Em outras palavras: para cada percentual de crescimento do PIB, o Brasil se compromete, até 2020, a emitir de 36% a 39% a menos de gases. “Isto é factível, desde que haja um amplo programa para a efetiva redução do desmatamento e expressivos avanços no desenvolvimento de tecnologias limpas e na adoção de energias renováveis.” É certo que as emissões decorrentes de desmatamento representam 57,5% das emissões totais do país e aumentaram 70% entre 1990 e 2005. Mas, num país com perspectiva de crescimento de 5% a 6% ao ano, há que se levar em conta, também, a demanda por energias. “O crescimento sustentável do
Presidentes Lula e Obama participam da COP 15, em Copenhague, Dinamarca.
país dependerá da compreensão do desafio climático como parte da sua agenda de desenvolvimento. A economia brasileira pode crescer e preservar sua matriz limpa”, afirma ainda Marcovitch.
Quem corre mais risco
Citando dados preliminares do Ministério da Ciên-
O estudo coordenado por Marcovitch indicou,
cia e Tecnologia, ele observa que o setor energético
ainda, as regiões mais vulneráveis às mudanças de
aumentou suas emissões em 68% e sua participação
clima, como a Amazônia e o Nordeste, deixando clara
de 15,8% para 16,4% do total nacional, percentuais
a necessidade de ação de mitigação. “Com relação às
que revelam uma matriz energética relativamente
medidas para as regiões mais sensíveis às mudanças
limpa, em comparação com a de outros países. “Com
do clima, propomos: induzir a adaptação regional de
base no EMCB, podemos afirmar que, para conciliar
cultivares mais tolerantes à seca e ao calor; induzir
crescimento econômico e matriz limpa, seria preciso
programas de governo que tendam a estabelecer
instalar uma capacidade extra de geração entre 153
uma rentabilidade adequada para a agricultura fa-
TWh e 162 TWh por ano até 2035. Essa capacidade
miliar; fortalecer os processos de extensão rural para
adicional seria composta principalmente por gás
transferência de tecnologia relacionada à gestão da
natural, tecnologias avançadas de queima de bagaço
seca e do calor através da informação e de treinamento
de cana e energia eólica. Agregadas, estas opções implicariam custos de capital da ordem de US$ 48 bilhões a US$ 51 bilhões. Além da eficiência energé-
“Para conciliar crescimento
tica, a substituição de combustíveis fósseis poderia
econômico e matriz limpa, seria
evitar emissões domésticas de 92 milhões a 203
preciso instalar uma capacidade
milhões de toneladas de CO2 equivalente em 2035. As
extra de geração, composta
exportações de etanol acrescentariam de 187 milhões
principalmente por gás natural,
a 362 milhões de toneladas às emissões evitadas em
tecnologias avançadas de queima de
escala global.”
bagaço de cana e energia eólica.”
semfronteiras |
39
Silvane Trevisan Tonetti / Tecpar
Formas renováveis de geração de energia:
Unica
Biocombustíveis. Na foto, a Usina de Biodiesel instalada no Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar).
Miguel Saavedra / SXC
Bagaço de cana como combustível em usinas bioelétricas.
Energia eólica.
40 | semfronteiras
“O crescimento sustentável
Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) para
do País dependerá da
Mudanças Climáticas, as quais incorporam a maioria
compreensão do desafio
dos grupos de pesquisa do EMCB.
climático como parte da sua
“Para enfrentar estes problemas, além das com-
agenda de desenvolvimento.
petências já consolidadas no Brasil, é preciso aumentar
A economia brasileira pode
o grau de conhecimento científico sobre as mudanças
crescer e preservar sua
do clima e seus impactos, criando novas ferramen-
matriz limpa.”
tas que permitam avaliar mais detalhadamente e com maior grau de precisão estes impactos; investir na elaboração de modelos climáticos mais
aos agricultores familiares; enfocar as medidas de
complexos e refinados e buscar a
adaptação que atenuem as desigualdades regionais;
compatibilidade na tendência entre
e delinear ações planejadas para os contingentes
os
populacionais mais vulneráveis, especialmente no
detalhadamente as áreas favoráveis
semiárido nordestino e na Amazônia.”
à irrigação e cruzar dados dessas
Nas análises setoriais realizadas no âmbito
diferentes
áreas
com
modelos;
mapear
disponibilidade
de
“A tendência do setor de energia mundial é ampliar as fontes
do EMCB, por exemplo, ficou clara a necessidade de
água presente e futura; realizar
investimentos em pesquisa agrícola de ponta, com
mapeamento altimétrico detalhado
atenção particular ao melhoramento genético de
das zonas costeiras; desenvolver
cultivares e engenharia genética de segunda geração.
novas
“Isso é fundamental em um país onde o setor agrícola
agrícola e industrial, integrando a
tem peso estratégico e um histórico de pesquisa
comunicação com centros de pes-
avançada”, diz. Um bom exemplo está na produção de
quisas ou de divulgação técnica;
etanol, campo em que o Brasil é líder nas tecnologias de
capacitar a mão de obra local
todo o processo de produção — industrial e agrícola — e
às novas demandas de um setor
apresenta potencial para se manter como líder mundial.
especializado
“A tendência do setor de energia mundial é ampliar as
grande previsão de mudança na
fontes renováveis e de baixo teor de carbono. O Brasil
estrutura de emprego (mecanização
deve manter e aperfeiçoar as políticas que o levaram à
ou chegada da cana-de-açúcar); elaborar diretrizes e
liderança no setor.”
normas técnicas para obras costeiras e marítimas que
tecnologias
nas
nos
campos
regiões
com
renováveis e de baixo teor de carbono. O Brasil deve manter e aperfeiçoar as políticas que o levaram à liderança no setor.”
O referencial de modelagem desenvolvido no
incorporem os possíveis impactos de mudança global
EMCB está sendo utilizado na elaboração de uma série
do clima; e formar recursos humanos especializados
de diferentes cenários econômicos, sociais e climático-
em todas as áreas”, ele sugere.
ambientais, que incorporem medidas de mitigação que se queira testar. Os desdobramentos para o futuro imediato incluem redes de pesquisa recém-criadas —
Saiba mais: Economia das Mudanças Climáticas no
como a Rede CLIMA, o Programa Fapesp Clima e o
Brasil (www.economiadoclima.org.br).
semfronteiras |
41
MEIO AMBIENTE
Floresta com código de barras? Murilo Alves Pereira
Discussões da COP 15 mostraram que para reduzir as emissões de gases do efeito estufa será preciso mensurar o valor econômico da natureza
42 | semfronteiras
Composição: Bruno Stock. Foto: SXC semfronteiras semfronteiras || 43 43
No caixa do supermercado, o feixe vermelho
Um estudo de brasileiros e norte-americanos,
do leitor a laser busca o código de barras e anuncia:
publicado em dezembro passado na revista Science,
R$ 3,6 trilhões! Este é o valor que o Brasil pode ter
defende que a redução do desmatamento da floresta
que pagar, até 2050, para compensar os efeitos do
amazônica tem custo relativamente baixo. Para
aquecimento global em seu território (ver “Recuos,
atingir desmatamento zero em 2020, seria preciso
avanços, controvérsias”, na página 22). Na esteira, o
desembolsar de US$ 6,5 bilhões a US$ 18 bilhões. O
tronco de uma árvore da Amazônia marcado com o
montante seria investido em três setores — povos da
código de barras é o produto simbólico que nos mostra
floresta, controle e regulamentação da agropecuária
de onde vem o problema.
e fiscalização das áreas protegidas — e ajudaria a
“Esse valor se refere, principalmente, à perda
desestimular o desmatamento.
de produtividade agrícola e à restrição da oferta de
Para o pesquisador do Instituto Nacional de
energia causadas por variações climáticas”, explica o
Pesquisas da Amazônia (INPA), Philip Fearnside, esses
economista Ronaldo Seroa da Motta, do Instituto de
recursos deveriam ser pagos pelos países ricos. Há
Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea). A boa notícia,
décadas ele sugere o uso dos serviços ambientais das
segundo ele, é que pela primeira vez o país mensurou
florestas como base da economia. Quanto vale, por
os custos relacionados ao aquecimento, em particular
exemplo, a ciclagem da água ou a absorção dos gases
na agricultura, hidroeletricidade e em regiões costeiras.
estufa? O mercado de carbono pode dar esses valores,
Fato é que as informações hoje disponíveis podem
acredita. O país se desenvolveria e produziria riqueza,
orientar os investimentos nas obras de infraestrutura
mantendo a floresta em pé. Para Philip, a conservação
e atividades agrícolas. De que adianta, por exemplo,
também é uma forma de gerar renda, mas é preciso
bilhões investidos em usinas hidrelétricas se um
calcular o valor real do carbono. “Estão vendendo
cataclismo climático pode alterar o volume de chuvas
carbono pelo custo da oportunidade, isto é, pelo uso
e comprometer os reservatórios dessas usinas?
que o produtor faria daquela área, mas o valor é muito maior”, critica. “Nos países desenvolvidos custa muito mais impedir a emissão de uma tonelada de gás
Philip Fearnside, do INPA, há décadas sugere o uso dos serviços ambientais das florestas como base da economia. “O país se desenvolveria e produziria riqueza, mantendo a floresta em pé.”
carbônico.” Remunerar para não destruir Para o diretor do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), Adalberto Veríssimo, chegar em 2020 com redução em 80% do desmatamento da Amazônia — compromisso assumido pelo Brasil na COP-15 — não é trabalho difícil. “O
Pagando o preço
desafio seria zerar até 2014, como o Imazon defende.”
A analogia com troncos de árvore passando pela
Adalberto concorda com Philip sobre a necessidade de
esteira do caixa do supermercado pode ser útil para
pagar pelos serviços ambientais. E esse pagamento
entender o que está em jogo nas discussões sobre
pode ser feito por instituições internacionais ou
clima – o aspecto econômico. Se mitigar os efeitos das
empresas, como metas obrigatórias ou de forma
mudanças climáticas no Brasil tem um preço, impedir
voluntária, a título de marketing verde.
que o aquecimento chegue a níveis devastadores também tem. Mas muito menor.
44 | semfronteiras
O mercado de créditos de carbono deve ser a saída para custear a manutenção da floresta em pé.
“É um mercado como qualquer outro”, diz o jornalista
“O Brasil ocupa uma posição muito
Roberto Smeraldi, diretor da Oscip Amigos da Terra.
particular no mundo hoje, já que 90%
Em curto e médio prazos, diz, esse tipo de mercado
de toda a energia elétrica consumida
será não só viável, como inevitável. “O Brasil tem
no país têm origem em usinas
um potencial expressivo, pois somos um dos maiores
hidrelétricas, de emissão nula.”
emissores do mundo”, informa Smeraldi. “Temos perspectivas de desenvolvimento que nos permitem mudar o modelo antes de chegar a um estágio maduro.”
por três quartos das emissões locais. Pagaríamos pelos serviços ambientais da floresta em vez de passá-la pelo caixa do supermercado. Mas países desenvolvidos,
duas condições: garantir um teto das emissões dos
além de China e Índia, têm como grandes vilões os
gases em todo o mundo e criar uma taxação ao carbono,
recursos energéticos. São chaminés de termoelétricas
como é feito com o petróleo ou outros produtos. “Com
e escapamentos de veículos queimando mais carbono
essas duas medidas, o mercado de carbono tenderia a
do que florestas em chamas. Segundo o professor
ajudar bastante”, conclui. No Brasil, esse mercado teria
do Programa de Planejamento Energético da UFRJ,
como alvo a redução do desmatamento, responsável
Roberto Schaeffer, os países precisam investir no uso
Imazon
Conforme Smeraldi, para o mercado de carbono ser eficaz na redução das emissões, é preciso seguir
Mapa do desmatamento detectado na região da Amazônia apenas no mês de novembro de 2009.
semfronteiras |
45
eficiente de energia e começar a substituir as fontes
ajudariam a mitigar o aquecimento até nos libertarmos
fósseis por não fósseis.
dos combustíveis fósseis.”
“O Brasil ocupa uma posição muito particular no mundo hoje, já que 90% de toda a energia elétrica
Economia e ecologia
consumida no país têm ori-
Quantificar a natureza em valores monetários
gem em usinas hidrelétricas,
e códigos de barras pode soar duro uma vez que a
de emissão nula”, afirma. Outra
economia ecológica prega o oposto disso. De acordo
vantagem brasileira é o uso
com o economista e pesquisador da Fundação Joaquim
crescente de energias baseadas
Nabuco, Clóvis Cavalcanti, a atividade econômica deve
em fontes mais limpas, como
se submeter à perspectiva da natureza, não o contrário.
o carvão vegetal e a biomassa
A economia deve respeitar os limites impostos pelo
e, no setor dos transportes, o
meio ambiente, como o nível de emissão dos gases
etanol e o biodiesel. “Quanto
estufa. “Desenvolver significa melhorar a vida das
às fontes não fósseis”, continua, “a energia eólica
pessoas; o crescimento que leva a isso é desejável,
e a solar se destacam”. Com novas tecnologias, os
mas mesmo ele tem que respeitar limites”, diz. Para
biocombustíveis de segunda geração e a energia dos
o economista, crescimento ao custo da destruição da
oceanos seriam viáveis. Nesta transição, fontes limpas
Amazônia é sem sentido e insustentável. “E, como
e sujas conviveriam por um tempo. “Estas medidas
tudo que é insustentável, acaba.”
“A atividade econômica deve se submeter à perspectiva da natureza, não
Wilson Dias/Abr
o contrário.”
Madeira apreendida em operação da Polícia Federal em Tailândia, Pará.
46 | semfronteiras
MEIO AMBIENTE
Ignacy Sachs e a biocivilização Romeu de Bruns
Aqueles que tiverem a oportunidade de assistir a uma conferência desse senhor de 82 anos que não se enganem com sua aparência tranquila, voz calma e pausada. Quando advoga suas ideias, Ignacy Sachs
Caio Coronel/ITAIPU
Economista defende modelo civilizatório calcado no trinômio biomassa, biodiversidade e biotecnologia
se mostra um enérgico defensor de um novo modelo de civilização, a que chama de “biocivilização” ou “civilização da biomassa”. Defende também uma reformulação das relações internacionais, em especial a Organização das Nações Unidas (ONU) e seus organismos correlatos, em que se dê mais voz aos países em desenvolvimento, pois estes, com suas características tropicais, surgem como prováveis potências no novo estágio civilizatório. Economista polonês naturalizado francês, com diversas obras publicadas sobre Economia, Ecologia e áreas afins, Sachs é um autor influente no meio acadêmico brasileiro, particularmente em cursos de especialização e pós-graduação que abordam o desenvolvimento econômico. Em novembro, Sachs
Economista Ignacy Sachs.
veio ao Brasil para ministrar um seminário de três dias, como fundador da Cátedra Josué de Castro de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente, da Universidade Federal da Integração Latino-americana
semfronteiras |
47
Niels Andreas / Unica
Bioplástico-PHB feito a partir de cana-de-açúcar.
(Unila), no Parque Tecnológico Itaipu, em Foz do Iguaçu.
Trinômio “Bio”
Com autoridade de quem estudou a fundo as
A única saída viável para as múltiplas crises
transformações e impactos socioeconômicos da globa-
por que passa o mundo hoje é, segundo ele, um novo
lização desde a Segunda Guerra Mundial — em especial
modelo civilizatório, calcado no trinômio biomassa /
sobre os países até recentemente classificados como
biodiversidade / biotecnologia. A biomassa tem múl-
de “Terceiro Mundo” (herança da teoria dos “Três
tiplos aproveitamentos, um leque de produtos cada vez
Mundos”, de Alfred Sauvy) —, Sachs fez um retrospecto
mais variado: alimentos, ração animal, adubo verde,
da questão ambiental desde os anos 1960. Ele também
material de construção, energia, plásticos e fibras, cos-
abordou temas como o fim da era do petróleo e as
méticos e fármacos. “A visão industrial do futuro é uma
fontes renováveis de energia, pobreza e distribuição de
biorrefinaria, em analogia com uma refinaria de pe-
renda e a crise financeira internacional.
tróleo. É um mundo a ser explorado”, sentencia Sachs. A transição para esse novo modelo — continua o economista — significa reverter um conceito que dominou por muito tempo, o de que as regiões
“Com mais insolação e
tropicais têm a tendência de serem subdesenvolvidas
biodiversidade, os países tropicais
por natureza. Agora, o trópico deixa de ser um
partem nessa caminhada com
obstáculo e passa a ser uma vantagem natural. “Com
vantagens comparativas naturais,
mais insolação e biodiversidade, os países tropicais
que devem ser potencializadas.”
partem nessa caminhada com vantagens comparativas
48 | semfronteiras
naturais, que devem ser potencializadas pela pesquisa
“O sistema internacional
e pela organização social apropriada do processo
precisa ser repensado
produtivo. Esse último ponto é essencial, porque nós
com urgência. Agora, esse
podemos imaginar a produção de enormes quantidades
repensar não pode vir do
de biocombustíveis — por exemplo, a partir de uma
centro. Tem que vir dos
agricultura supermecanizada, sem homens. Isso não
países emergentes.”
interessa. Temos que, ao mesmo tempo, assegurar uma vida digna aos nove bilhões de seres humanos que Internacional do Trabalho (OIT). “As soluções para o
seremos em meados deste século”, considera. Um dos grandes potenciais a serem explorados pela
futuro devem ser respostas simultâneas para o duplo
biocivilização reside na produção de biocombustíveis a
desafio: das mudanças climáticas e das desigualdades
partir de algas, assunto que vem sendo pesquisado em
sociais. É a partir dessa dupla visão que surgem as
diversos países. Apesar de ainda não haver consenso
propostas de pesquisa de um aproveitamento mais
sobre quais as melhores variedades a serem utilizadas
imaginativo dos recursos renováveis.”
(são muitas as espécies, de microalgas a sargaços
Para Sachs, a crise financeira internacional tem
com dezenas de metros de extensão), sabe-se que as
levado, ao menos em parte, a refletir sobre um novo
algas têm uma enorme capacidade de reprodução. Há
modelo de desenvolvimento, apesar de essa não ser
variedades que dobram de peso duas vezes ao dia e,
uma posição dominante. Pela cobertura dos diários
com isso, há enorme produção de biomassa. Também
econômicos do Brasil e do exterior, aponta, a tendência
têm um alto teor de lipídios e, por isso, se prestam como
é utilizar o dinheiro público para tapar os buracos
matéria-prima para a extração de óleo. “Agora, quais
das grandes empresas e bancos, socializar as perdas
as algas, que lugar, como extrair etc., isso está ainda
e, uma vez essa operação feita, retomar as práticas
tudo por fazer. O Brasil tem tudo para assumir uma
anteriores. “Esse debate está diante de nós, mas só
posição de liderança nesse campo porque tem espaços
daqui a alguns anos vamos poder ver claramente qual
aquáticos imensos, desde o litoral aos reservatórios
a vertente que predominou”, lamenta.
de hidrelétricas, e uma pesquisa biológica de classe internacional. Ou seja, tem a faca e o queijo na mão”,
Uma nova ONU? Para uma solução mais eficaz das múltiplas
garante Sachs.
crises por que passa a humanidade e atingir o tão falado desenvolvimento sustentável, Sachs defende
Duplo desafio Essa
biocivilização,
que
se
utilizará
mais
uma
reformulação
das
relações
internacionais,
inteligentemente dos recursos naturais e, em especial,
particularmente no que diz respeito ao papel da
do ciclo do carbono, reduzindo as emissões de po-
ONU. “Falou-se durante um tempo do G7, que depois
luentes na atmosfera, está intimamente ligada a um
virou G8. Agora tem o G20. Falam até em G2 (China
duplo desafio, na visão de Sachs. Por um lado, tem-se
e Estados Unidos). Por que é G20 e não G22 ou
que enfrentar a ameaça das mudanças climáticas, em
G28? E o G190, que é mais ou menos o número de
parte reversíveis e que, por sinal, vão recair com mais
integrantes da ONU? Esse sim precisa ser revitalizado
força sobre aqueles que têm menos condições — vão,
e posto em prática. O sistema internacional precisa
portanto, exacerbar a pobreza. Mas, simultaneamente,
ser repensado, com urgência. Agora, esse repensar
também é preciso resolver os problemas sociais,
não pode vir do centro. Tem que vir dos países
com a geração de oportunidades de trabalho dentro
emergentes. Porque o interesse do centro é continuar
do conceito de trabalho decente da Organização
sem essa reforma”, conclui.
semfronteiras |
49
meio ambiente
Corredores de biodiversidade no Paraná Maria Celeste Corrêa Fotos: Zig Koch
Um desses CORREDORES é formado, em parte, pela faixa de proteção de 1.400 km2 do reservatório da Usina de Itaipu
Parque Nacional do Iguaçu, Paraná.
50 50 || semfronteiras semfronteiras
semfronteiras semfronteiras|| 51 51
Em termos de biodiversidade, o Paraná já foi um
Para Efraim Rodrigues, o
retrato do paraíso na Terra. A maior parte do território era
desenvolvimento de sistemas
coberta por florestas colossais. No oeste, sudoeste e norte
agroflorestais é uma das
do Estado, imperava a floresta estacional semidecidual. Do
saídas para salvar nossos
centro ao sul, e avançando a leste, ficava a floresta ombrófila
remanescentes florestais.
mista, mais conhecida como floresta com araucária. E, da Serra do Mar até o litoral, predominava a floresta ombrófila
Biologia da Conservação, mostra que as bordas das áreas
densa, chamada de floresta atlântica. As outras áreas eram
fragmentadas sofrem com o excesso de sol, alterações do
formadas por campos naturais ou por manchas de cerrado.
microclima e alteração da umidade, entre outros fatores.
Como a ocupação das terras paranaenses foi tardia, se
A degradação do habitat se dá a partir da borda em
comparada a outros estados brasileiros, a maior parte da
direção ao centro, por até centenas de metros, levando ao
paisagem permaneceu intocada até meados do século XIX.
desaparecimento de muitas espécies da flora e da fauna.
Na atualidade, o que resta dos ecossistemas paranaenses é apenas uma pálida lembrança.
Chance para a conservação
A ocupação plena do território e a forte característica
Diante de um quadro tão sombrio, pesquisadores,
agrícola e industrial do Estado transformaram a paisagem
ambientalistas e representantes de entidades governa-
natural numa extensa colcha de retalhos. Fragmentos
mentais e não governamentais buscam maneiras de
florestais isolados enfraquecem aos poucos. “Nesses
reduzir os efeitos da catástrofe. Até o início dos anos
locais, é forte a tendência à homozigose entre os animais,
1990, a alternativa buscada com mais frequência era a
que é cruzamento entre parentes. Isso produz o declínio
criação de áreas protegidas, tais como parques nacionais
genético. Na flora, há reações diferentes: algumas
e estaduais e Reservas Particulares do Patrimônio Natural
espécies, mais exigentes, não toleram o isolamento e
(RPPNs). Porém, o avanço do conhecimento a respeito da
acabam sendo substituídas por outras mais resistentes. O
conservação ambiental mostrou que isso não é suficiente.
empobrecimento biológico é evidente”, analisa Maurício
Para tentar romper o isolamento das áreas protegidas,
Savi, doutorando em Conservação da Natureza pela UFPR
começaram a ser criados os corredores ecológicos, ou
e professor de Ecologia e Conservação da PUC-PR.
corredores de biodiversidade, grandes faixas verdes que
Catástrofes naturais — como incêndios ou venda-
fazem a conexão entre áreas protegidas. Na região de Foz
vais — podem provocar um grande desequilíbrio em áreas
do Iguaçu, uma parceria entre a Itaipu Binacional, o Instituto
isoladas que, dependendo do tamanho, podem entrar em
Brasileiro de Meio Ambiente (IBAMA), o Instituto Ambien-
declínio rapidamente. Em relação aos animais, o isolamento
tal do Paraná (IAP), organizações não governamentais e
faz com que muitas populações tenham o ciclo reprodutivo
institutos de pesquisa trabalha para a consolidação de um
alterado ou passem a competir entre si. Segundo o
corredor de biodiversidade que ligará o Parque Nacional
professor Efraim Rodrigues, da Universidade Estadual
do Iguaçu ao Parque Nacional de Ilha Grande e ao Pantanal
de Londrina, coautor do livro Biologia da Conservação,
do Mato Grosso do Sul. O “caminho” usado para interligar
a competição entre aves por domínio de território, por
essas unidades de conservação é formado, em parte, pela
exemplo, pode levar muitas delas à morte.
faixa de proteção de 1.400 km2 do reservatório da Usina
O desaparecimento ou a diminuição de populações
de Itaipu, onde há áreas reflorestadas. Já são mais de
de aves, morcegos e alguns mamíferos leva à diminuição
20 milhões de mudas de árvores nativas plantadas, que
da dispersão das sementes. Sem a ajuda dos animais,
somam 108.866 hectares.
essas espécies de plantas deixam de se reproduzir. Outro
Um acordo entre a Itaipu Binacional e as prefeituras
fator que afeta a estabilidade dos remanescentes naturais
de São Miguel do Iguaçu e de Santa Terezinha de Itaipu
é o chamado efeito de borda. O processo, descrito no livro
prevê a realização das obras do Corredor de Biodiversidade
52 | semfronteiras
Santa Maria, que deverá passar sob a ponte da BR-277, permitindo a conexão de todas as áreas. “Naquele local, o maior problema é exatamente a área debaixo da ponte, pois não se tem nenhuma segurança de que isso funcionará de fato, já que os animais teriam de cruzar uma faixa muito estreita para fazer a conexão”, afirma Maurício Savi.
Em virtude de seu desenvolvimento tardio, o Paraná conheceu uma extensa cobertura vegetal. E também a destruição rápida da maior parte dela.
Já na região da Serra do Mar, no Paraná, há mais de uma dúzia de unidades de conservação de proteção integral, além das RPPNs. É uma extensa área de floresta que permanece contínua em função das restrições legais de uso e também pela dificuldade de acesso – já que essas reservas não são adjacentes. Somada à região sul de São Paulo, essa grande área constitui a mais bem-conservada porção de floresta
A imbuia (Ocotea porosa), espécie ameaçada de extinção, é encontrada na floresta com araucária.
atlântica do Brasil. A ameaça à integridade do ecossistema, aqui, vem de projetos como
Proteção Permanente que englobam a mata ciliar (nas margens dos
aquele que prevê a construção de um trecho
rios) e a vegetação nos topos de morros e nas áreas com inclinação igual
da BR-101 na região da Serra do Mar. “Se a
ou superior a 45 graus. “Nosso trabalho é fiscalizar o cumprimento do
rodovia for construída, o impacto sobre a
Código Florestal. Quem está fora dos padrões legais deve reflorestar as
Serra do Mar será fatal para a biodiversidade”,
propriedades com mudas de espécies nativas produzidas e fornecidas
alerta Maurício Savi.
pelo IAP”, explica João Batista Campos, coordenador estadual de
Para os remanescentes da floresta
Biodiversidade e Floresta da Secretaria Estadual do Meio Ambiente
com araucária e da floresta estacional semi-
(SEMA). “Para que a ação seja efetiva, é preciso fazer estudo de solo
decidual, o governo estadual acena com
e produzir as mudas de forma que não ocorra o empobrecimento
o Projeto Paraná Biodiversidade. A ideia é
genético”, alerta Maurício Savi.
tentar formar corredores de biodiversidade entre as unidades de conservação utilizando
Contaminação por transgênicos
as áreas que os proprietários rurais são
Os pesquisadores também alertam para que os corredores
obrigados, por lei, a conservar: os 20% de
não facilitem o transporte de problemas de uma área para outra. “É
Reserva Legal da propriedade e as Áreas de
preciso cuidado na instalação dos corredores, especialmente onde
semfronteiras |
53
O macuco (Tinamus solitarius) é encontrado em vários ecossistemas do Paraná.
A Ariranha (Pteronura brasiliensis) habita as florestas semidecidual, com araucárias e atlântica.
há produção agrícola, para evitar a contaminação por
Os corredores da biodiversidade
transgênicos”, avisa Maurício Savi. Com base na mesma
podem “costurar” e dar uma chance de
linha de raciocínio, o professor Efraim Rodrigues diz que
sobrevivência aos retalhos florestais
“corredores são geralmente estreitos e, por isso, muitas
remanescentes no Paraná.
espécies podem não percebê-los como um habitat. Então, eles não cumprirão sua função. Este ambiente também
melhor conservação da natureza que aqueles locais onde
pode servir como habitat para espécies exóticas que
existem extensas plantações de grãos ou pastos. Portanto,
competem com a vegetação nativa”, completa.
a saída também passa pelas demais secretarias de
Outra saída apontada por Efraim Rodrigues para salvar os remanescentes naturais é o incentivo ao
governo, não apenas pelo Meio Ambiente”, aponta Efraim Rodrigues.
desenvolvimento de sistemas agroflorestais, como os que
Na opinião do professor Maurício Savi, a melhor saída
já existem na região centro-sul do Paraná, os chamados
para a conservação ambiental ainda é a proteção integral
faxinais. Neste modelo, as áreas de floresta são protegidas
dos remanescentes. “Até hoje, a ciência não apresentou
e os proprietários vivem do gado leiteiro, do plantio de
melhor forma de salvaguardar a natureza do que as áreas
ervas medicinais e da coleta de pinhões e de folhas de
protegidas. E, se ainda houver tempo para aprendermos
pitangueira. “A diversidade de usos do solo em paisagens
como conectá-las entre si, talvez tenhamos uma chance”,
com pequenas propriedades geralmente condiciona uma
conclui Savi.
54 | semfronteiras
Educação científica
Em nome da educação Célio Yano Fotos: nelson cerqueira
Pesquisadores de Campo Mourão percorrem 40 mil quilômetros para montagem de kits didáticos
Um pequeno grupo de pessoas em uma caminhonete adentra a mais distante das matas e percorre rios e lagos, enfiando o pé na lama e revirando pedras de todos os tamanhos. Pode não parecer à primeira vista, mas são cientistas, que se aventuram em nome da ciência e da educação. A jornada foi realizada entre 2008 e 2009, com o objetivo de coletar e catalogar espécies de esponjas de água doce e diatomáceas presentes na bacia hidrográfica paranaense. A partir daí, a equipe da Faculdade Estadual de Ciências e Letras de Campo Mourão (Fecilcam), coordenada pelo doutor em Ciências Ambientais Mauro Parolin, passou a desenvolver kits didáticos, compostos por livro e lâminas de microscopia, para serem distribuídos a escolas públicas do Paraná. Pesquisador coleta amostras de poríferos no rio Formoso.
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55
A partir de 2010, o projeto deve auxiliar escolas de
Kits vão ajudar as escolas
ensino médio e fundamental da rede pública estadual
a fazer de laboratórios
no ensino de Ciências e disciplinas associadas ao
e microscópios peças
meio ambiente. Ainda que grande parte das escolas já
importantes no processo de
disponha de laboratórios e microscópios, muitas vezes
ensino-aprendizagem.
essa estrutura acaba ociosa por falta de material de estudo. Ao todo, foram produzidos 500 conjuntos de
Desde que o projeto teve início, em junho de 2008,
25 lâminas de microscopia, que contêm esqueletos de
os pesquisadores envolvidos simplesmente não tiveram
esponjas e de diatomáceas. “Ambos são bioindicadores
descanso — afinal, foi preciso fornecer elementos para a
da qualidade das águas”, explica Parolin, justificando a
produção de todos os kits.
escolha do material. “De acordo com a ocorrência ou
Ao todo, 14 pessoas participaram das diversas
não das esponjas, por exemplo, é possível dizer se houve
etapas do trabalho, mais de 40 mil quilômetros de
alterações ambientais significativas em determinados
rodovias foram percorridos, cerca de 50 toneladas de
rios”, completa.
rochas reviradas e aproximadamente 20 mil lâminas de
A ideia inicial é distribuir os kits gratuitamente para
microscopia foram produzidas — boa parte descartada
as escolas dos Núcleos Regionais de Educação de Campo
por não passar nos critérios de qualidade para os
Mourão e de Maringá, que englobam, respectivamente,
fins didáticos. O levantamento também resultou na
64 e 97 instituições. O que sobrar será encaminhado para
descoberta de uma espécie de esponja até então não
outras regiões. Antes de entregar o material, ressalta o
catalogada, a Potamophlois guairensis, cujo nome é uma
coordenador do projeto, os professores passarão por um
homenagem ao antigo Salto Guairá, que desapareceu
minicurso para entender como as lâminas podem ser
com a construção da Usina de Itaipu. “Este gênero tinha
utilizadas no trabalho de ensino com os alunos. Segundo
ocorrência restrita à região da Etiópia”, explica Parolin.
Parolin, além dos colégios estaduais, estuda-se incluir
A descoberta foi publicada no periódico internacional
escolas municipais e universidades na distribuição do
Interciencia (www.interciencia.org). “O projeto dos kits
material.
didáticos foi apenas o pano de fundo para uma grande investigação”, afirma o professor.
As espécies e os kits Esponja é o nome mais conhecido dos animais do
Livro para professores
filo Porifera que ocorrem em água doce ou salgada e se
Para realizar o trabalho, a Fecilcam recebeu um
alimentam por meio de filtração. “São semelhantes a
total de R$ 256,9 mil do Fundo Paraná, por meio da
corais, mas têm esqueleto de sílica”, explica Parolin. Já as
SETI. O resultado será avaliado por alunos e professores.
diatomáceas são protozoários unicelulares que, em rios,
Além dos kits didáticos, a expedição também renderá
mares e até no solo, podem formar
um livro produzido para os professores da rede estadual.
Jornada pelas
cadeias ou colônias simples. Para a
A obra “Geologia, rios, esponjas e diatomáceas: uma
matas e rios
produção dos kits didáticos, foram
visão multidisciplinar do ambiente no Paraná”, que está
paranaenses
coletadas cinco espécies de poríferos,
em fase de pós-produção, terá quatro capítulos que
vai fornecer
todas em território paranaense. “No
abordarão novas descrições da formação geológica e
subsídios para
caso das diatomáceas, por serem
hidrográfica do território paranaense, além da relação
uma série de
microscópicas e de ocorrência maior,
das esponjas e das diatomáceas com a geologia e a
atividades
não temos como dividir por espécie.
hidrografia do Estado. O material ainda trará dicas de
educativas e
Cada lâmina pode ter 50 táxons
trabalhos que professores podem desenvolver com
diferentes.”
alunos no âmbito do tema.
científicas.
56 | semfronteiras
O livro deve trazer as descobertas e cada episódio
Do rio dos Patos, na região dos Campos Gerais,
vivido pelos pesquisadores em nome da educação científica,
por outro lado, a equipe percorreu cerca de quatro
como a descida pelo rio Nhundiaquara (Morretes) em boias
quilômetros, mas foi encontrada
de câmera de pneu (o chamado boia-cross). Para a coleta de
uma única espécie de esponja,
diatomáceas, os pesquisadores se concentraram na região
em pouco mais de dez metros
do rio Ivaí, no noroeste do Paraná. No caso dos poríferos, o
quadrados de toda a extensão do
trabalho abrangeu praticamente todo o Estado.
córrego. Lá, a surpresa para os
Espécies coletadas funcionam como indicadores
Como mostraram as pesquisas, o rio Piquiri, que nasce
cientistas ficou no fato de o porí-
na região centro-sul paranaense e deságua no rio Paraná,
fero descoberto ser a Oncosclera
no oeste, é um dos que registram maior biodiversidade
jewelli, espécie de ocorrência extre-
de esponjas na região Sul do Brasil. “Encontramos cinco
mamente restrita, relatada até
espécies nas nascentes do rio, o que indica que, neste
então apenas no Rio Grande do Sul.
momento, as águas são de ótima qualidade”, explica o
Segundo Parolin, a existência de
pesquisador. Entre as espécies observadas, o professor
um único tipo de esponja não indica necessariamente a
destaca a Sterrastrolepis brasiliensis, que, ameaçada de
deterioração do rio. “O fato de aquela espécie persistir
extinção, tem na bacia do rio Piquiri sua única área de
significa que a água ainda tem qualidade suficiente para
ocorrência em todo o Brasil.
a manutenção específica dessa biodiversidade”, diz.
da qualidade da água das bacias hidrográficas pesquisadas.
Espécie Oncosclera navicella, encontrada no rio Formoso.
Espécie Trochospongilla repens encontrada no rio Piquiri.
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CAPA
58 | semfronteiras
Da utopia às perspectivas, a integração latino-americana Independências Integração Cultura Ciência e Tecnologia Ensino Superior Ilustração: Simon Ducroquet
NO ANO DO BICENTENÁRIO DA INDEPENDÊNCIA DA AMÉRICA ESPANHOLA, LUIZ GERALDO SILVA ANALISA AS TENSÕES DESENCADEADAS PELAS REVOLUÇÕES ATLÂNTICAS EM REI DEPOSTO E REI EXILADO. NUMA CONFERÊNCIA NA UNIVERSIDADE FEDERAL DA INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA (UNILA), OUTRO HISTORIADOR, MIGUEL ROJAS MIX, PRESTA HOMENAGEM A FRANCISCO BILBAO. EM ENTREVISTA, SILVIANO SANTIAGO FALA SOBRE OS (DES)CAMINHOS DA CULTURA. NA DECLARAÇÃO DE BUENOS AIRES, CIENTISTAS PEDEM MAIS INCLUSÃO SOCIAL NAS ATIVIDADES DE CT&I.
semfronteiras |
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AMÉRICA espanhola
Rei deposto e rei exilado LUIZ GERALDO SILVA
AS INDEPENDÊNCIAS DO BRASIL E DA AMÉRICA ESPANHOLA SÃO VISTAS COMO PROCESSOS DIFERENCIADOS, E ATÉ OPOSTOS, QUANDO DEVERIAM SER MIRADAS COMO RESULTADO DA MESMA CONJUNTURA ATLÂNTICA
O motivo que fez Dom João VI vir para o Brasil
Domingos, onde tentavam restabelecer a escravidão
em fins de 1807 era precisamente o mesmo que fez
no país que, em 1804, tornou-se o Haiti — a segunda
Fernando VII, rei de Espanha, abdicar de sua coroa em
República independente do Novo Mundo, depois dos
maio de 1808. Em 1799, quando Napoleão Bonaparte
Estados Unidos da América.
conquistou o poder na França destroçada pelo furor
Não havia inimigo mais temível que Napoleão
revolucionário posterior a 1789, iniciou longa guerra
naquele momento, e os exércitos ingleses cons-
contra o Antigo Regime em frentes simultâneas. Sua
tituíam as únicas forças militares capazes de
intenção era destronar reis e dar ensejo a dinastias
derrotá-lo. Assim, em todos os países europeus que
de soldados-cidadãos. Suas batalhas eram travadas
dependiam da proteção estrangeira, havia partidos
em lugares remotos ao Sul, como Espanha, Portugal
anglófilos, ou defensores dos ingleses, e partidos
e nos pequenos reinos italianos, e no Leste, fosse
afrancesados, devotos de Bonaparte. Portugal e Es-
na Rússia ou na Prússia. Ao mesmo tempo, seu
panha disputavam o amparo de ambos. Na nação
numeroso exército, que não apenas contava com
lusa, entretanto, o partido francês foi derrotado em
franceses, mas também com turcos e alemães, entre
1807, levando à execução do plano tramado entre
outras nacionalidades, abria frentes ocidentais con-
as diplomacias portuguesa e britânica. O plano, tan-
tra os ingleses, seus principais inimigos, a partir do
tas vezes aventado desde o século XVI, era o de
Canal da Mancha. Finalmente, a partir de 1802, parte
transplantar a corte para o Brasil, antes que Napoleão
considerável dos soldados de Napoleão ainda lutava
a destituísse do poder ou a eliminasse fisicamente. Na
no Caribe contra os pardos livres e escravos de São
Espanha, contudo, venceu o partido francófilo. Dois
60 | semfronteiras
Embarque de Dom João VI para o Brasil em 27 de novembro de 1807, por Nicolas Louis Albert Delerive (1755-1818). Temendo ser eliminado pelos franceses, que já haviam atravessado a Espanha e marchavam em direção a Lisboa, Dom João VI parte para o Brasil sob auxílio militar britânico.
tratados, o de Badajoz (1801) e de Fontainebleau
dependentes de Castela. A mais antiga delas foi a
(1807), selaram a aliança entre os dois países.
de Sevilha, de setembro de 1808, que se arrogou
Contudo, em maio de 1808, Fernando VII foi con-
a constituir-se como Junta Suprema Central
vidado à fronteira pelos franceses para reiterar
y Gubernativa del Reino. Depois, formaram-
tratados entre suas nações. Acabou encarcerado
se Juntas em todo o território do que hoje é a
no palácio de Bayona, onde permaneceria junto
Espanha moderna. Na América, as primeiras Jun-
com a família real até 1814. Napoleão nomeia seu
tas formaram-se no Alto Peru e em Quito, em
irmão, Joseph, rei de Espanha, e decreta, a partir
1809. Mas foi em 1810 que a febre de formação de
de então, a longa agonia de uma nação e a ruína
governos autônomos chegou ao auge. Caracas,
do vasto império colonial que esta conquistara nos
em abril, Cartagena de Índias e Buenos Aires, em
séculos precedentes.
maio, e Cali e Santa Fé de Bogotá, em julho, criaram seus próprios governos autônomos, prática que
As Juntas Governativas e a constituinte de Cádiz As independências americanas são alguns
foi ampliada pelos anos subsequentes nas demais ciudades hispano-americanas.
dos resultados desse quadro mais vasto. No
Tanto na Europa como na América, em um
império espanhol, a prisão de Fernando VII, el
primeiro momento, as juntas de governo juraram
Deseado, representou um vazio de poder sem
fidelidade ao rei deposto, mas negaram-se a
precedentes. Uma vez que não havia mais monarca,
obedecer a seus ministros e funcionários. Depois,
Juntas de Governo formaram-se nos vários reinos
diante da consumação da abdicação real, elas
semfronteiras |
61
Cartão-postal do Ayuntamiento de San Fernando, Espanha, reproduzindo quadro de José Casado del Alisal (1832-1886), intitulado Juramento de los diputados, 24 de septiembre de 1810. A corte constituinte espanhola, mais tarde trasladada a Cádiz, iniciava, então, seus trabalhos.
caminharam para uma perigosa autonomia. Na
e serem votadas. Não eram cidadãos. Em Cádiz,
América, em particular, na fase conhecida como
onde as cortes se reuniram para resistir à invasão
“pátria boba”, os cabildos das ciudades passaram,
napoleônica e para atualizar o reino em termos da
então, a lutar entre si, e não contra a metrópole.
política liberal e constitucional, a América perde a
Uma tentativa de unir los pueblos huérfanos
condição de conquista para se tornar colônia.
del rey pela via liberal surgiu no mesmo ano de
Sem centro de poder definido, os vice-
1810. Pela primeira vez no mundo ibérico, cortes
reinos, audiências e capitanias gerais da América
liberais, de caráter constitucional, formaram-
espanhola eram assediados por diversos agentes
se com o objetivo de redigir uma carta magna
políticos e seus projetos mirabolantes. Napoleão
para a “nação espanhola”. Espanhóis de ambos
insistia em mandar seus prepostos para convencer
os hemisférios foram chamados a cooperar, isto é,
os americanos que deveriam prestar sua lealdade
tanto peninsulares, como criollos, ou nascidos na
a Joseph I, por ele nomeado rei de Espanha. Os
América, poderiam ser eleitos deputados e tomar
aliados de Fernando VII tramavam para que criollos
assento na assembleia constituinte. Até índios tive-
e peninsulares que viviam na América continuas-
ram direito de representação, mas as “castas” —
sem desejando o retorno do rei, e lutassem contra
formadas por descendentes de africanos com
Napoleão. E Carlota Joaquina, esposa de Dom
índios ou europeus — foram impedidas de votar
João e irmã do rei deposto, revelava pretensão ao
62 | semfronteiras
Imagem satírica de 1807 representando Napoleão e seus irmãos, Joseph, Rei de Nápoles e, depois, de Espanha; Luís, monarca de Holanda; e Jerônimo, Rei da Vestfália. A quinta figura seria ou Luciano Bonaparte, cujas relações com Napoleão definhavam, ou seu cunhado, Joaquim Murat.
imaginário trono das Américas, que ela reclamava
havia monarquistas por toda a parte. Não por acaso,
seu por direito. Para tanto, remetia áulicos para
a América precisou de “libertadores”, como Bolívar
aliciar seus súditos hispano-americanos. Diante de
ou San Martín, porque de Lima a Caracas, por
tantas possibilidades, os rumos das futuras nações
exemplo, era forte a resistência à independência.
e Estados americanos eram incertos.
Como também ocorreria nas províncias da América portuguesa, a luta armada nos vice-reinos e
O retorno do rei Um
declarado
capitanias gerais da América espanhola antepunha antiespanhol
forças monarquistas e absolutistas às liberais e
nasceu na América apenas depois de 1815,
sentimento
monárquicas e estas às liberais e republicanas.
quando Fernando VII voltou ao poder. Este rasga
Paulatinamente, a vitória das últimas constituiu
a constituição escrita em Cádiz em 1812 e passa a
tendência dominante, ao passo que no Brasil a
governar sob uma perspectiva absolutista. Entre
monarquia constitucional tendeu a prevalecer no
1816 e 1820, envia expedição de 20 mil soldados
horizonte político.
à chamada Terra Firme — que se estendia desde o Chile até o México — sob o propósito de reconquistar
1810
a América. Contra ele, caudilhos lutavam pela
A rigor, a cronologia das independências
independência e pelo republicanismo, mas também
latino-americanas coincide com a do Brasil.
semfronteiras |
63
A INDEPENDÊNCIA LATINO-AMERICANA É RESULTADO DA CHAMADA ERA DAS REVOLUÇÕES.
Comemora-se o bicentenário das independências latino-americanas em 2010, como se todas as “nações” do continente tivessem nascido exatamente há duzentos anos. Mas o que se comemora em alusão ao ano de 1810 são rupturas com uma Espanha governada ora por um imperador francês, ora por uma Junta de Governo Central, ou a criação de Juntas locais de governo que lutavam umas contra as outras, e não contra a “Espanha”. No máximo, como também ocorre no Brasil, proferiu-se “gritos da independência” em
Simón Bolívar. Personagem central nos processos de independência do Peru e da Grã-Colômbia, é representado em quadro a óleo de Roulin, a partir de miniatura de marfim de 1828.
1810 — expressão recorrente desde o México até o Chile — que, em geral, são construções a posteriori das historiografias nacionais. A ruptura se inicia, na verdade, após 1815, com a queda de Napoleão
independência efetiva dá-se somente em 1821,
e o retorno de Fernando VII. A partir de então, a
quando os últimos focos monarquistas foram
guerra se torna generalizada e anticolonial, e até
vencidos. Mas até 1830, quando Bolívar veio
antieuropeia. É só a partir daí que se pode falar de
a falecer, Venezuela (1829) e Equador (1830)
guerras de independência na América hispânica.
tornaram-se países independentes, e o sonho da Grã-Colômbia se desfez. O Panamá só logrou
Independências tardias
constituir-se país independente em 1903. O Peru
As independências latino-americanas foram
também foi “libertado”, primeiro por San Martín,
tão tardias como a do Brasil. O México apenas se
vindo do Chile, e depois por Bolívar, vindo da
torna independente em 1821, mas ainda patinava
Venezuela, quando foram vencidos os últimos
entre a criação de uma república federativa, co-
focos da guerra realista em 1824.
mo a dos Estados Unidos, ou uma monarquia,
O território do Rio da Prata, que compreen-
como prevaleceu no Brasil. Na América do Sul,
dia os atuais países da Bolívia, Argentina,
a situação é semelhante. O antigo vice-reinado
Uruguai e Paraguai, foi o primeiro vice-reinado
de Nova Granada, graças à campanha militar de
a tornar-se independente. Desde que iniciou sua
Bolívar, torna-se um vasto país chamado de Grã-
autonomia política, em 1810, caminhou em direção
Colômbia, o qual compreendia os atuais países
à independência formal, obtida, antes de todos,
da Colômbia, Equador, Venezuela e Panamá. Sua
em 1816. Mas o que havia por volta de 1825 ali
64 | semfronteiras
“A conformação do Brasil imperial e escravista e das repúblicas hispanoamericanas é resultado dessas opções anteriores, das opções das novas elites e dos quadros sociais e econômicos antes prevalecentes.”
não eram Bolívia, Argentina, Uruguai e Paraguai,
é resultado dessas opções anteriores, das op-
e sim cerca de 20 pequenos Estados reunidos
ções das novas elites e dos quadros sociais e
numa confederação chamada Províncias Unidas
econômicos antes prevalecentes. Estes, marcados
do Rio da Prata, cujo epicentro era, sem dúvida,
pelos vínculos com a produção de mercadorias
Buenos Aires. O Uruguai constituiu-se república
para o mercado atlântico e pela configuração
independente em 1828, quando a guerra entre o
de sua mão de obra — com mais presença de
Brasil e as Províncias Unidas pelo seu controle
indígenas ou africanos e com mais ou menos
acabou sob a intermediação francesa e inglesa.
dependência da escravidão negra — ensejaram
O Paraguai, por seu turno, apenas se torna país
a moldura dentro da qual tais opções políticas
independente das Províncias Unidas em 1840.
foram tornadas possíveis.
Para tanto, foi decisivo o apoio do império do Brasil. E, finalmente, a Argentina apenas supera a fase das pequenas repúblicas autônomas, que lhe
Luiz Geraldo Santos da Silva é professor do
caracterizava na década de 1860, quando passa a
Departamento de História da UFPR e professor
se constituir como país unificado.
visitante das Universidades de Murcia e Pablo de
Assim,
a
distância
que
separa
nossa
Olavide (Espanha).
independência daquelas que se processam nos demais países latino-americanos é puramente aparente. Elas são frutos das mesmas tensões,
Saiba mais:
do mesmo quadro atlântico mais vasto, e corres-
ESDAILE, Charles. Las guerras de Napoleón.
pondem a um mesmo movimento de crise do
Una historia internacional, 1803-1815. Barcelona:
Antigo Regime desencadeada pelas revoluções
Critica, 2009.
atlânticas — a americana, a francesa e a de São
GUERRA,
Domingos — as quais engendram o liberalismo,
independencias. Ensayos sobre las revoluciones
o constitucionalismo e a cidadania moderna.
hispánicas. Madrid: Editorial Mapfre, 1992.
Elas decorrem também da expansão militar
LYNCH, John. Las revoluciones hispanoamericanas
napoleônica, bem como das opções e estratégias
(1808-1826). 11ª ed. Barcelona: Ariel, 2008.
dos governantes — o exílio de Dom João no
RODRÍGUEZ O., Jaime E. El nacimiento de
Brasil promovido pelos britânicos ou a aliança
Hispanoamérica.
de Fernando VII com os franceses da qual resulta
hispanoamericanismo,
sua abdicação. A conformação do Brasil imperial
Corporación Editora Nacional/Universidad Andina
e escravista e das repúblicas hispano-americanas
Simón Bolívar, 2007.
François-Xavier.
Vicente
Modernidad
Rocafuerte 1808-1832.
y
e
el
Quito:
semfronteiras |
65
AMÉRICA latina
Das desconfianças à percepção de unidade A INTEGRAÇÃO DA AMÉRICA LATINA É UM PROCESSO INICIADO EM FINS DA ERA COLONIAL E APROFUNDADO AO TEMPO DE FORMAÇÃO DE SEUS ESTADOS E NAÇÕES
66 | semfronteiras
lado, trabalho livre e escravidão. Por sua vez, os temores do império do Brasil em relação à formação de um Estado Américas
mesopotâmico na região do Rio da Prata levaram-no a
portuguesa e espanhola são muito antigas, bem como
intervir várias vezes no Uruguai (1811, 1825-1828 e 1864), a
tentativas de integração. Quem integrou a América
apoiar a independência do Paraguai em 1840, e derrubar
Latina pela primeira vez foram os Habsburgos espanhóis,
caudilhos, a exemplo de Rosas, que governou Buenos Aires
que em 1580 tomaram o trono português em razão de
de 1835 a 1852. A mais grave animosidade ocorrida neste
crise sucessória. Madrid governou a Península Ibérica
território foi, sem dúvida, a guerra do Paraguai (1864-
e as Américas espanhola e portuguesa até 1640, ano
1870), fruto tanto do intervencionismo brasileiro como
em que a dinastia de Bragança restaurou a monarquia
das pretensões e da modernidade do numeroso exército
lusa. Na era das independências, surgiram projetos
paraguaio. Embora tenham sido convocadas algumas
pan-americanistas, mas eles eram frutos de pretensões
conferências diplomáticas pelos países latino-americanos
de reis, como Carlota Joaquina, ou de caudilhos, como
no século XIX (Panamá, 1826, e Lima, 1847-1848 e 1864-
Bolívar, que aspiravam deter vastos territórios sob seu
1865), apenas no século XX a América Latina acordou
governo. Depois da formação dos Estados republicanos
para uma necessidade efetiva de integração. No entanto,
no que outrora fora a América espanhola, e da formação
o primeiro passo foi dado com a Conferência Internacional
do império do Brasil, as tentativas de integração cede-
Americana, realizada em Washington em 1889-1890,
ram lugar à formação de nacionalidades que se viam
sob liderança dos EUA. Foi aí, pela primeira vez, que os
sob suspeitas. Os políticos do império temiam o que eles
Estados Unidos propuseram a criação de um mercado
chamavam de “caudilhismo” e “anarquia” da América
comum americano, algo que lembra as atuais propostas
espanhola, aspectos decorrentes, segundo eles, do
da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA).
Desconfianças
recíprocas
entre
as
republicanismo e do militarismo ali vigentes.
Contudo,
as
diferenças
entre
Norte
e
Sul
Os hispano-americanos, por sua vez, acusavam
aprofundaram-se no século XX. Depois da Segunda
o império brasileiro de intervencionista, e de defensor
Guerra Mundial, quando surgem noções como as de
de instituições moribundas, como a escravidão e a
desenvolvimento e subdesenvolvimento, Primeiro, Se-
monarquia. Com efeito, o limite da integração latino-
gundo e Terceiro Mundo, as nações latino-americanas
americana no século XIX eram as oposições entre, por
reconhecem, finalmente, legados e destinos comuns.
um lado, republicanismo e monarquismo e, por outro
Elas são, no limite, terceiro-mundistas, subdesenvolvidas, dependentes e produtoras de gêneros tropicais. As tarefas de superar a dependência e o subdesenvolvimento
“Depois da Segunda Guerra Mundial,
e de rumar à industrialização requeriam identificação
quando surgem noções como as de
de problemas e a criação de esforços comuns. Novos
desenvolvimento e subdesenvolvimento,
patamares de negociações são alcançados em decor-
Primeiro, Segundo e Terceiro Mundo, as
rência da percepção de que a superação da pobreza e da
nações latino-americanas reconhecem,
desigualdade social poderia ser enfrentada em bloco, a
finalmente, legados e destinos comuns.”
partir de políticas de escopo continental. (LGS)
semfronteiras |
67
AMÉRICA latina
(Des)caminhos culturais Célia Musilli Fotos: Ângelo Antônio Duarte
EM ENTREVISTA À SEM FRONTEIRAS, O ENSAÍSTA, POETA, CONTISTA, ROMANCISTA E TRADUTOR MINEIRO SILVIANO SANTIAGO, 73, UMA DAS VOZES MAIS RESPEITADAS NO BRASIL E NO EXTERIOR, FALA SOBRE AS DIFERENÇAS E CONVERGÊNCIAS DOS POVOS DO CONTINENTE, APROFUNDANDO CONCEITOS E JOGANDO LUZ SOBRE TEMAS POLÊMICOS COMO OS PROCESSOS DE COLONIZAÇÃO E INDEPENDÊNCIA QUE CARREGAM PARA DENTRO DA CULTURA E DA CRIAÇÃO ARTÍSTICA QUESTÕES de ordem política e social
Autor de vários livros, premiado com três Jabutis
gestões culturais, cutuca as feridas dos processos que
nas categorias conto e romance, Silviano Santiago mos-
reduzem a arte a um proveito educacional e defende o
tra sua verve analítica especialmente nas obras Uma
experimentalismo como caminho enriquecedor na busca
literatura nos trópicos (1978) — que reúne ensaios que
de conceitos autênticos e novas linguagens.
decifram o mosaico da arte brasileira contemporânea —
Pensador inquieto, Santiago não se furta a tecer
e As raízes e o labirinto da América Latina, obra multi-
críticas ao que considera equivocado e traça um amplo
disciplinar em que contrasta o pensamento de Sérgio
panorama da cultura brasileira e latino-americana na
Buarque de Holanda, autor de Raízes do Brasil (1936),
contemporaneidade, sempre ancorado no conhecimen-
e o do mexicano Octavio Paz, autor de O labirinto da
to de várias vertentes do pensamento e voltado à
solidão (1950).
compreensão da arte a partir de um enfoque universal e
Dono de um pensamento provocativo e profundo,
humanista que extrapola fronteiras ou sistemas políticos.
nesta entrevista ele fala sobre as relações da cultura
Para ele, “a afirmação de uma cultura nacional interessa
com o capital, do que considera erros e acertos nas
a todos, menos aos verdadeiros artistas”.
68 | semfronteiras
“A afirmação duma cultura nacional interessa a todos, menos aos verdadeiros artistas. Mas estes, coitados! São, por definição, póstumos. Só são recuperados pelo Estado nos centenários de nascimento ou de morte.”
Hoje, os processos culturais na América Latina se organizam em torno duma sutil e precária combinação do social com a salvação de todos pelo consumo, de que a bolsa-família seria o exemplo mais claro e dramático e o antropólogo argentino Nestor García Canclini, o profeta. Acredita-se mesmo que em 2016 não haverá cidadão miserável no Brasil. A bolsa-família não é apenas exemplo, é também indiciador duma mistura extraordinária da inquietação cultural com o Capital, mistura até então desconhecida na América Latina, onde o mecenato norte-americano dos Rockfeller nunca tinha vingado, e vinga agora sob o controle dos Estados nacionais (no Brasil, o papel da Lei Rouanet). A unanimidade em torno da preocupação social em cultura é em nada por nada revolucionária, deixemos claro. Ela transpõe e ultrapassa as barreiras definidas pelas diferenças de classe, de re-
SF No momento, como o senhor avalia o desenvolvimento
gião e de cor de pele e pelas diferenças de formação
dos processos culturais no Brasil e na América Latina?
intelectual, para se respaldar num sentido pervagante de
SilvianoSantiago
democracia e na autoridade das pesquisas de opinião.
Ao final do século XX, acreditava-
se que a cultura na América Latina tinha encontrado seu então às várias formas de ensinamento conhecidas como
SF A cultura e a educação se juntam neste processo? SilvianoSantiago Em busca de uma solução demo-
autoajuda. O sucesso internacional do nosso Paulo Coelho,
crática e amigável para o bem-estar de todos os cidadãos,
bem acolhido em Davos, na Suíça, atestava a favor de
a cultura se traveste com a roupagem de “educação para
profecia que lembra o Marx de “a religião é o ópio do povo”.
todos”, ou com a fantasia de que “a educação é o remédio
O novo século traz outro retorno, o do social à cultura e à
para todos os males”, até os do estômago. A cultura (ou
arte, destruído no passado recente pela militarização dos
a educação, agora valores indissociáveis) toma conta
governos nacionais e pela ascensão ao poder de governos
da preocupação maior do governo federal, tornando-se
neoliberais, devidamente eleitos pelos cidadãos.
difícil distinguir o que é aparelho de Estado (no sentido
futuro no retorno da população ao misticismo, acoplado
semfronteiras |
69
de Louis Althusser) — o MEC, o MinC, ou a Receita Federal
propunham, então, uma “comunidade imaginada” nos
(vide a questão da Lei Rouanet). Na maratona cultural
trópicos, para usar a expressão de Benedict Anderson.
redentora, aos governos nacionais da região se associam
Não foi outra a tarefa dos romances de José de Alencar.
as multinacionais, em particular as das telecomunicações,
Vejamos outro grupo de adjetivos. Literatura bar-
as grandes empresas nacionais (se é que ainda existem),
roca, simbolista ou modernista — trata-se de evidente
os bancos (qual é o banco que não tem hoje o seu instituto
cacoete universitário. Condiciona o estudo e o ensino
cultural?) e assim por diante, até chegar às várias
das letras a uma configuração dada pelas sucessivas
organizações não governamentais.
fases da história literária, tendo como dominante o
O bom-mocismo — de que é exemplo maior o recente
estilo literário nessa ou naquela época. Acredita-se que
anúncio da Coca-Cola sobre o Haiti — é o presente e o
estejam sendo ultrapassadas as fronteiras emprestadas
futuro da cultura na América Latina. Por bom-mocismo
à literatura pela adjetivação nacionalista. Em evidente
deve-se entender não só uma flexão acentuada do capital
e discutível europeocentrismo, enxerga-se o conjunto
em direção aos bons sentimentos (cristãos ou outros)
da produção literária de um Estado-nação (periférico,
como também, entre os artistas, uma preocupação por
ou não) como parte de um estilo dito “universal”. Por
tornar toda obra de arte paradidática, para não dizer
exemplo: a literatura modernista brasileira tem algo a
simplesmente didática. A cultura busca a utilidade que
ver com a tradição ocidental centrada na Europa. Cada
a torna muleta da nossa educação, deficitária desde
época se manifesta, portanto, por estilo próprio, atual e
os movimentos nacionais de independência. No caldo
intransferível, sob pena de passadismo. Leia-se “Mestres
cultural que hoje domina a América Latina percebe-se que
do passado”, de Mário de Andrade.
o modelo ditado pelo fenômeno Paulo Coelho foi jogado para escanteio, a fim de que se torne valor dominante
SF
uma espécie de compreensão e visão infantojuvenil do
literatura “sem fronteiras”?
que seja arte.
SilvianoSantiago
Desprezando a adjetivação teríamos então uma Desde meados do século XIX,
com a intenção de azucrinar a cabeça dos historiadores
SF
Sob a forte influência da cultura de massa e
e críticos da literatura que se compraziam em qualificá-
globalizante, como se processa hoje a afirmação de
la pela adjetivação nacionalista ou pela adjetivação
uma “cultura nacional”?
estilística, poetas geniais têm apresentado configurações
SilvianoSantiago Na modernidade ocidental, quando
da obra literária em que todo e qualquer adjetivo aposto
se fala de cultura (de arte ou de literatura), nada tem sido menos rigoroso, nada tem sido mais oportunista e, ao mesmo tempo, mais indispensável, do que toda e
“Hoje, os processos culturais
qualquer adjetivação do substantivo.
na América Latina se organizam
Fiquemos com o exemplo da literatura. Literatura
em torno duma sutil e precária
francesa, brasileira ou angolana — trata-se de evidente
combinação do social com a
cacoete nacionalista. Pelo uso do adjetivo, julga-se que a
salvação de todos pelo consumo,
produção literária tem sido fundamento da nacionalidade
de que a bolsa-família seria o
em vias de institucionalização ou já institucionalizada.
exemplo mais claro e dramático e
A literatura é um para-raios retórico e eficiente. Há 180
o antropólogo argentino Nestor
anos, época em que o francês Ferdinand Denis traçava
García Canclini, o profeta.”
a história da literatura brasileira, o adjetivo nacionalista tinha um ranço iluminista. Nossos melhores escritores
70 | semfronteiras
ser nacional. Deixa de ser nacional para ser universal. O conceito de América Latina foi imposto a nós à época de
“Até no prejuízo uma intervenção
Napoleão III, para justificar incursões europeias na região
governamental pode trazer
ao sul dos Estados Unidos. O conceito é, pois, importado
ganhos para uma cultura nacional.
pelos nacionalistas do século XIX, em busca duma cons-
Às vezes, o ganho é pela negativa.
ciência subcontinental. Ao final do século XIX, quer ser
Trata-se do que aconteceu no
exportado pelo poeta Sousândrade (O guesa errante) e
Brasil a partir de 1964.”
pelo ensaísta Manuel de Bonfim (A América Latina). É, finalmente, exportado nos manifestos vanguardistas de Oswald de Andrade, ou na pintura de Tarsila. O círculo
ao substantivo é afastado e negado para que se reluza
se fechou com a música de Darius Milhaud, Le boeuf sur
o que é Arte apenas Arte. A finalidade é, por um lado,
le toit. Graças à composição musical de Zé Boiadêro, o
a de singularizar e enobrecer o instrumento de trabalho
compositor francês importava o conceito exportado por
do escritor-artista: a linguagem. Por outro lado, é a
Napoleão III. Fazemos uma arte de exportação, como
de desacreditar as definições de literatura de cará-
dizia Oswald.
ter geográfico, histórico ou social. Citemos Stéphane Mallarmé, o poeta dos poetas. No soneto “Le tombeau
SF
Neste processo, quais os pontos de convergência
d’Egard Poe”, escreve que cabe ao poeta “Donner un
ou de separação da cultura latino-americana?
sens plus pur aux mots de la tribu” (“Dar um sentido
SilvianoSantiago
mais puro às palavras da tribo”). A busca de uma pureza
nuanças determinadas pelos diferentes Estados-nações
redentora da palavra, transformada em sucedâneo laico
são responsáveis pelo fortalecimento do conceito de
do Santo Graal, é o modo como o artista justifica a própria
América Latina. México dá a mão ao Peru, à Argentina
vida e sua obra. Outra frase de Mallarmé: “Le monde est
e ao Brasil. Por comodidade, tomemos o caso brasileiro
fait pour aboutir à un beau livre” (“O mundo é feito para
como emblemático.
terminar num belo livro”).
A partir do Romantismo, as
No ensaio O Brasil não é longe daqui (1990), Flora
É claro que a última visão de literatura, a dos gênios,
Sussekind estudou a passagem da prosa dos viajantes
é perfeitamente dispensável, enquanto as anteriores
estrangeiros à prosa dos nossos primeiros romancistas.
têm sua utilidade atestada, seja pela história, a política,
Trata-se dum primeiro momento de construção histórica
a escola ou as histórias da literatura. Ou seja: a afirma-
do conceito de América Latina, que traz em si semelhança
ção duma cultura nacional interessa a todos, menos
e diferença. Não conheço estudo que dê conta do
aos verdadeiros artistas. Mas estes, coitados! São, por
momento seguinte. A transição da escrita romanesca que
definição, póstumos. Só são recuperados pelo Estado nos
descreve o Brasil para a ensaística que interpreta o Brasil.
centenários de nascimento ou de morte.
O Abolicionismo (1883), de Joaquim Nabuco, pode servir de modelo para o segundo momento. Pesquisado
SF Como a América Latina pode fortalecer sua própria
por um brasileiro na biblioteca do Museu Britânico, a
cultura?
mesma onde Karl Marx escreveu sua obra-prima, o ensaio
SilvianoSantiago
Criado
pelos
colonizadores
expõe de dentro do Brasil para dentro e para fora do
europeus, ou seja, de fora para dentro, o conceito de
Brasil os podres da colonização europeia nos trópicos,
América Latina foi pouco a pouco se fortalecendo com
já que se trata de libelo contra o escravismo colonial.
o movimento de dentro para fora, motivo principal de
A tarefa de Nabuco é a de “tornar a escravidão odiosa
sua constante valorização. Deixa de ser colonial para
perante os próprios senhores”, tópico que os românticos
semfronteiras |
71
nacionalistas relutavam em trabalhar. Tinham erigido o índio como símbolo nacional. Optavam, portanto, pela segurança das águas então mansas do indianismo. Na configuração de fora para dentro da literatura que descreve o Brasil para a configuração de dentro para fora da ensaística que interpreta o Brasil, há uma passagem da reificação do nacionalismo (José de Alencar, por exemplo) à reificação do cosmopolitismo (Nabuco, por exemplo). A atitude cosmopolita é defendida pela elite letrada brasileira em face das ideias conservadoras, injustas e retrógradas da elite nacionalista latifundiária. Machado de Assis é o melhor exemplo em literatura. O cosmopolitismo da elite letrada quer retirar o Brasil do atraso civilizacional para nele implantar a “revolução burguesa”, segundo a análise de Florestan Fernandes. Sem abandonar os compatriotas, a nação brasileira pode deixar de ser mero exemplo emblemático da América Latina.
“Tal como se encontra, a política
SF
Como a cultura brasileira se rela-
dita popular do
ciona com as culturas de outros países
MinC insiste no
da América Latina? O Brasil pode ser
agravamento do
considerado uma “ilha cultural”, sem
mais grave de todos os problemas em
muita ligação com o continente?
SilvianoSantiago
É tópico que tem
país de maioria
sido do meu interesse. Permita-me a
analfabeta: esquece
primeira pessoa. Desde Uma literatura
o aprimoramento
nos trópicos (1978) o meu propósito tem
da sensibilidade
sido o de compreender o estatuto do
artística do jovem
discurso latino-americano na contem-
interiorano.”
poraneidade. Para dar um passo adiante na minha proposta inicial, escrevi recentemente As raízes e o labirinto da América Latina (2005).
72 | semfronteiras
Para apresentar uma visão ampla da questão, em
SF
O latino-americanismo ainda faz sentido em
lugar de me debruçar só sobre As raízes do Brasil (1936),
tempos globais?
de Sérgio Buarque de Holanda, pensei em contrastá-
SilvianoSantiago
lo com O labirinto da solidão (1950), do mexicano
americanismo não chega a ser um conceito. É um
Octavio Paz. A leitura paralela e simultânea teve como
instrumento que em mãos do analista ou do polí-
estratégia a busca de diferenças entre o Brasil e o
tico serve para englobar determinada região do
México, da diferença dentro da América Latina.
Novo Mundo, cuja singularidade se define pela sua
Teoricamente,
o
latino-
Enumero alguns poucos exemplos para, sem
colonização pelos países da Península Ibérica. Analítico
falsa modéstia, recomendar ao interessado a leitura
e político, o instrumento se reforça por componentes
do meu livro.
histórico-sociais, econômicos e culturais e serve para
O livro de Sérgio é anterior à Segunda Guerra e o
contrastar a região com outra do mesmo continente,
de Paz é posterior. Entre os dois, há a descentragem das
colonizada pelos anglo-saxões, os Estados Unidos da
economias-mundo, para retomar a análise de Fernand
América. Embora tenha as raízes no período colonial,
Braudel em A dinâmica do capitalismo. Os Estados
sua força se acentua no período pós-colonial, como já
Unidos estabelecem “novas zonas concêntricas” de
adiantamos, e ganha sentido preciso no momento em
atuação no mundo e na América Latina. O intérprete
que o país do norte ganha espaço e passa a liderar a
brasileiro está no distante Cone Sul e é um apaixonado
economia mundial. Houve tentativas sucessivas de
da velha Europa (as raízes coloniais). O mexicano
torpedear o instrumento analítico por parte da políti-
está ao lado do gigante do norte e fez os estudos na
ca externa norte-americana, mais e mais hegemônica.
Universidade de Berkeley, na Califórnia (o labirinto
A primeira em data foi a chamada Doutrina Monroe
pós-colonial). O primeiro se interessa pelo destino do
(1823), reafirmada em 1904 pelo presidente Theodore
“barão” português aclimatado aos trópicos. O segundo,
D. Roosevelt. Mais recentes torpedeamentos foram a
bem impiedoso com a própria Nação, dá o tom para que
Política da Boa Vizinhança de outro Roosevelt, Franklin
se compreenda através do pachuco (o bracero mexi-
Delano, e o novo e atual formato da Organização dos
cano na Califórnia) a futura diáspora latino-americana,
Estados Americanos (OEA).
de que será exemplo recente e trágico o destino do nosso Jean-Charles no metrô de Londres.
O latino-americanismo vai encontrar seu avesso durante a Segunda Grande Guerra e vai atingir espaço
Outro exemplo. Um começa como crítico literário
planetário próprio durante a Guerra Fria. Servirá ele de
na revista Estética (1924) e se torna historiador. O
massa de manobra para os dois países hegemônicos.
outro é poeta e se torna um homem de ideias, futuro
Define-se, então, como representante do Terceiro Mun-
Nobel. Portanto, antes de os dois serem exemplo de
do e chega a ser seu porta-voz, como quis o comandante
intelectuais que buscam uma explicação simples e
Che Guevara. Oscilava entre a aliança aos Estados
demagógica para as respectivas identidades nacionais,
Unidos da América ou à União Soviética. A recente
são pensadores imersos no caldo de cultura que a
história da militarização das nações latino-americanas
civilização ocidental representa para o homem le-
e da consequente repressão é bom exemplo do peso e
trado latino-americano. Por isso, Sérgio se apoia no
valor do instrumento analítico e político.
passado literário lusitano para municiar a crítica ao
Do ponto de vista estritamente cultural, esse mo-
nacionalismo pragmático dos anos 1920 (Mário e
mento notável é marcado pela criação da Casa de las
Oswald). Paz indaga sobre o que se esconde por trás
Américas, em Cuba. A referida instituição se tornou,
da máscara e da encenação governamental e canônica
por assim dizer, o Ministério das Relações Exteriores
da identidade mexicana.
da América Latina revolucionária. É matéria pouco
semfronteiras |
73
conhecida no Brasil, já que da Casa, em virtude da
não enxergamos, além dos estereótipos?
língua portuguesa que falamos, os brasileiros só
SilvianoSantiago Em termos planetários, é maior
vieram a participar nos anos finais da Guerra Fria.
o sucesso do latino-americanismo econômico, mais
No entanto, para o mundo hispânico a Casa — com
desastroso tem sido o latino-americanismo cultural ou
seus prêmios e a famosa revista — tem importância
artístico, em particular na sua faceta brasileira. Não me
capital na divulgação da arte latino-americana (mais
lembro de momento em que a cultura/arte brasileira
bem hispano-americana, corrija-se) mundo afora.
esteve tão negligenciada nos chamados países do
Em literatura, certos matizes políticos da oposição
Primeiro Mundo. Nem mais temos um novo Jorge
entre Mario Vargas Llosa e Gabriel García Marquez
Amado, um audacioso Glauber Rocha, outro Portinari
só podem ser mais bem compreendidos através de
ou um descendente de Niemeyer para colocar na
certos valores “estéticos”, defendidos por Haydée
vitrina. Em troca, ali temos expostos — na condição de
Santamaría, fundadora da Casa em 1959.
celebridades — muitos jogadores de futebol e alguns poucos cantores pop. Somos imbatíveis. “Alguma coi-
SF
Neste sentido, existiria ainda uma “cultura
latino-americana revolucionária”?
SilvianoSantiago
sa está fora/está fora da nova ordem mundial”, como anunciou Caetano Veloso.
O final da Guerra Fria foi cruel
Confesso que esse descaso pela cultura/
com o latino-americanismo. Ele ressuscita no novo
arte no Brasil vem, por um lado, do papel cada vez
milênio, reincorporando a maioria das vestimentas de
menos significativo da língua portuguesa no cenário
que se valeu durante o seu período áureo. É normal,
mundial e, por outro lado, de uma política externa,
já que a atual classe política latino-americana foi
cultural e artística desastrada. A maioria dos nossos
formada nos anos de chumbo, do presidente Lula
adidos culturais ainda não passou no vestibular do
ao chanceler Celso Amorim. A diferença entre uma
Modernismo. Vivem como se na Belle Époque. Estão
América Latina conservadora e outra revolucionária
no estrangeiro para pôr a azeitona na empadinha do
tem sido, pois, acentuada pelo boom econômico da
país em que representam o Brasil. E não vice-versa.
região em tempos globalizados. Graças ao petróleo,
O New York Times, em artigo intitulado “Foreign
a Venezuela substitui de certa forma a antiga Cuba,
Languages fade in class — except Chinese” (20/1/2010),
enquanto os Estados Unidos não negam palavras
informa que o governo chinês está enviando, sob sua
simpáticas ao Brasil — Obama chama a Lula de
responsabilidade financeira, professores de língua
“dude”, palavra que jamais empregaria em conversa
chinesa para todo o mundo, inclusive para as escolas
com o primeiro-ministro britânico —, ainda que este
públicas dos Estados Unidos da América. Por onde
país queira comprar seus aviões de caça na França.
anda o B do BRIC?
A radicalidade do latino-americanismo econômico
Com vistas ao futuro, um projeto cultural e
se encontra, por um lado, no petróleo (o já existente
artístico latino-americano, comparável ao sucesso
venezuelano e o a existir brasileiro) e na entrada do
econômico do Brasil, seria o da criação em nossas ter-
Brasil, graças principalmente ao agrobusiness, para o
ras duma Casa das Américas/Casa de las Américas,
seleto grupo dos países do BRIC (Brasil, Rússia, Índia
obviamente antenada com as questões do novo
e China).
milênio e não mais presa ou vítima dos percalços da Guerra Fria. O Memorial da América Latina, financiado
SF
Sob o ponto de vista cultural, o Brasil aparece
pelo governo do Estado de São Paulo, se não me
no mapa a partir da visão reduzida de “país do
engano, é apenas um arremedo da Casa cubana, mas
samba e do futebol”. O que nós somos e que ainda
não deixa de ser um bom começo.
74 | semfronteiras
“Não é que a cultura dita
SF
popular tenha de ser
cultura popular é um desvio de rota feito pelo Estado?
relegada ao segundo plano
SilvianoSantiago Não é que a cultura dita popular
pelo Estado. O problema é que,
tenha de ser relegada ao segundo plano pelo Estado.
num país de alfabetizados,
O problema é que, num país de alfabetizados, toda
toda forma de cultura é
forma de cultura é legitimamente popular. E se a meta
legitimamente popular.”
maior é a educação da massa, que se enfrente o touro
Então, o senhor considera que a ênfase dada à
à unha. Será que a “falta” justifica o ganho indevido? Não é que a repetição em massa dum modelo (veja o
SF
O senhor acha que na gestão do governo Lula,
caso, por exemplo, da produção em pedra-sabão ou
com a ênfase do MinC na cultura popular e nos
argila), tenha de ser relegada ao segundo plano pelo
processos de inclusão social também através da
Estado. O problema é que, num país de alfabetizados
arte, houve um ganho para o País? Por quê?
ou que se alfabetiza, todo cidadão inclinado às artes —
SilvianoSantiago Até no prejuízo uma intervenção
em particular o que ainda tem a própria vida pela fren-
governamental pode trazer ganhos para uma cultura
te — deveria estar experimentando seu próprio potencial
nacional. Às vezes, o ganho é pela negativa. Trata-
em convívio com artistas renomados e deveria estar
se do que aconteceu no Brasil a partir de 1964. A
testando o potencial do material com que trabalha,
cultura e a arte se associam aos partidos políticos
seja ele o que for, nobre ou plebeu. Será que a “falta”
revolucionários para desmontar um Estado julgado
justifica o intervencionismo equivocado?
autoritário e violento e, por isso, merecedor das pedras
Tal como se encontra, a política dita popular do
e dos ovos podres dos produtores artísticos. Às vezes,
MinC insiste no agravamento do mais grave de todos
o ganho é pela afirmação. Lembrem-se dos tempos
os problemas em país de maioria analfabeta: esquece
gloriosos do governo JK, quando o experimentalismo
o aprimoramento da sensibilidade artística do jovem
poético, o cinema e a música popular davam as mãos
interiorano. Relega-o à condição de peão em mãos do
a Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Niemeyer, Volpi e
capataz interiorano, muitas vezes chamado de prefeito.
tantos outros. Às vezes, o ganho é pela falta total de
Parece coisa do antigo Partido Comunista, que proibia
alicerce. Vive-se ao deus-dará. É o caso colocado em
aos seus jovens partidários o estudo universitário
pauta pela pergunta.
porque temia que se distanciassem do povo.
Os tempos são, portanto, outros no novo milênio.
Tal como se encontra, a política dita popular do
Numa situação ideal, onde o Ministério da Educação
MinC acaba por delegar ao Capital — através de mil
já teria cumprido o seu papel desde o final do século
e um institutos de cultura empresariais — a função
XIX, não competiria ao MinC incrementar uma política
de organizar e direcionar os artistas brasileiros que
artística que desviasse os olhos da produção letrada
já se consolidaram, bem ou mal, ou se consolidam
em favor da cultura dita popular. Numa situação
no mercado nacional e internacional. Isso é gra-
ideal, repito, não competiria ao MinC incrementar
ve, muito grave. A liberdade de expressão artística
uma política artística que desviasse os olhos da
e as incógnitas da experimentação artística são
experimentação, que significou desde sempre a
contratorpedeadas por princípios retrógrados e mo-
ousadia do artista em toda e qualquer sociedade, em
ralizantes, que buscam exibir à população os bons
favor do governo indiscriminado das manifestações
propósitos da generosidade empresarial. A esmola,
culturais que se afirmam pela repetição em massa
se muita, passa a ser ditatorial. Mais ditatorial que
dum modelo.
qualquer governo nacional autoritário.
semfronteiras |
75
AMÉRICA latina
Integração ainda que tardia Romeu de Bruns
INAUGURAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL LATINO-AMERICANA (UNILA) CONCRETIZA SONHO DE FRANCISCO BILBAO Mais de 150 anos depois de os termos “América
Rojas Mix, recebiam maior atenção. A partir dessa década,
Latina” e “latino-americano” terem sido cunhados, a
porém, surgiram movimentos culturais com forte con-
integração do Brasil com seus vizinhos continentais ganhou
teúdo integrador da América Latina, pois reconheciam os
uma importante aliada com a aprovação, em dezembro,
pontos comuns entre as realidades dos países da região,
no Senado brasileiro, da criação da Universidade Federal
como a Teologia da Libertação e o Cinema Novo. “Além
da Integração Latino-americana (Unila), com sede em Foz
disso, houve um fator cultural integrador durante os anos
do Iguaçu, junto à usina binacional de Itaipu – empresa
60, que foi o boom da literatura latino-americana, com
que, por sinal, desempenhou papel decisivo nesse projeto.
igual destaque para escritores peruanos, argentinos,
Na prática, a Unila já havia iniciado suas atividades
chilenos, uruguaios e brasileiros. Eles são criadores de
em agosto de 2009, promovendo uma série de dez
uma forte identidade comum”, defendeu o chileno.
cátedras ao longo do segundo semestre, cada uma de-
Uma das principais razões para o afastamento
dicada exclusivamente a um dos temas que interessam
brasileiro do contexto latino-americano, prosseguiu o
à integração latino-americana, como desenvolvimento,
historiador, foi o processo de independência do Brasil, que
educação, saúde pública e literatura, entre outros. Foram
se manteve uma monarquia mesmo após a emancipação
diversas as participações ilustres, mas o tema central,
política de Portugal. Outra razão é que, no projeto colonial
o da integração e da identidade latino-americanas propriamente ditas, coube ao historiador chileno Miguel Rojas Mix. A cátedra leva o nome de Francisco Bilbao, justamente o escritor e político chileno que, no século XIX, criou a expressão “América Latina”. Mas, mais do que isso, Bilbao foi um visionário que sonhou com a união desses países e defendeu a criação de uma universidade para promover essa integração. “Cento e cinquenta anos depois, a Unila veio para cumprir essa tarefa”, afirmou Rojas Mix, para quem o fato de a instituição estar sediada no Brasil é uma vantagem, pois, a seu ver, o país tem a missão de liderar a região. Entretanto, até os anos 1960, o país praticamente não olhava para a América Hispânica. África e Ásia, segundo
76 | semfronteiras
Francisco Bilbao, escritor e político chileno que criou a expressão “América Latina”.
Câmara dos Deputados
Cena do filme Terra em transe, de Glauber Rocha, um dos principais ícones do Cinema Novo.
Capa da revista Klaxon, veículo de divulgação do movimento modernista brasileiro.
Construção de Brasília.
português, predominou a exploração do litoral, enquanto
clara. Porém, é seguro afirmar que
“O Brasil tem
os espanhóis interiorizaram sua presença no território. “A
o Brasil começa a ser árbitro de
de assumir a
colonização espanhola avançou para o interior, fundando
muitas questões internacionais e,
hegemonia no
cidades e, com isso, havia uma grande preocupação em
nesse sentido, está numa espécie
continente por seu
integrar culturalmente a população. As políticas educativas
de encontro sociopolítico com os
potencial, algo
vieram muito mais cedo. Tanto que a primeira universi-
Estados Unidos.”
que a política do
dade foi fundada no século XVI, enquanto no Brasil isso só
Além
da
importância
para
presidente Luiz
o país e para a integração latino-
Inácio Lula da Silva
Outro fator que pesou para essa dicotomia foi que,
americana, Miguel Rojas Mix des-
deixa muito clara.
na América Hispânica, a consciência de independência
tacou a relevância que a Unila
Essa hegemonia
e de modernidade é anterior ao Brasil. “Para mim, um
terá para Foz do Iguaçu. Em sua
coincide com o
observador externo, a consciência de modernidade do
análise, ele lembra ser necessário
crescimento de
Brasil nasce com a Semana de Arte Moderna (1922). E
ter consciência de que a criação da
outras potências
essa consciência se expressa de maneira muito forte na
universidade fará com que a cidade
regionais, como
criação de Brasília, uma cidade não só para o Brasil, mas
se converta em uma referência não
Rússia, Índia e
para ser o centro de um processo integrador de toda a
só pelas Cataratas, ou pela Itaipu
China.”
América Latina.”
Binacional, mas sim pela cultura e
viria a acontecer no século XX”, comparou.
Catedrático da Universidad de Chile, onde é diretor do
pela produção científica. “Ao fundar esta Cátedra, vejo que
Instituto de Arte Latinoamericano, Rojas Mix considera que
há um senso comum de pensar a América Latina e fico
o Brasil vem conseguindo se estabelecer como líder regional,
muito feliz, pois sempre busquei a integração”, comentou
posição que “todos os latino-americanos reconhecem”. “O
Rojas Mix ao encerrar seu seminário.
Brasil tem de assumir a hegemonia no continente por seu potencial, algo que a política do presidente Luiz Inácio Lula da Silva deixa muito clara. Essa hegemonia coincide com o crescimento de outras potências regionais, como Rússia, Índia e China, que, cada vez mais, têm peso importante na política e na economia internacionais”, explicou. “Nesse caso, o Brasil vai representar pelo menos a América do Sul, pois a situação em relação ao México ainda não está
Logomarca do Centro Extremeño de Estudios y Cooperación con Iberoamérica (Cexeci), fundado por Miguel Rojas Mix.
semfronteiras |
77
AMÉRICA latina
Educação superior e o status de bem público Murilo Alves Pereira
Uma das maiores autoridades mundiais em educação superior, a psicóloga venezuelana CARMEN GARCÍA GUADILLA fala, na entrevista a seguir, sobre o projeto “Pensamento universitário latinoamericano” e também sobre os desafios para a área. Entre várias atividades, é professora titular e representante do Instituto Internacional da Unesco para a Educação Superior.
SF
Por favor, fale sobre o projeto “Pensamento
Universitário Latinoamericano”. Quais são os focos do estudo?
CarmenGuadilla O projeto “Pensamento Universitário Latinoamericano”, como produto da Cátedra da Unila [Universidade Federal da Integração Latinoamericana], responde à necessidade de aprofundar o conhecimento sobre ideias, modelos e atores que foram relevantes para formar a universidade latinoamericana. Todo o projeto nos permite interpretar melhor o presente e os desafios do futuro. Também nos dá a oportunidade de apreciar como os conCarmen Guadilla, psicóloga e educadora.
semfronteiras 78 || semfronteiras 78
ceitos do passado ainda são fundamentais para
“A América Latina tem que aumentar sua
os sistemas de outras regiões do mundo. Um dos vazios
taxa de cobertura em ensino superior.
lamentáveis que existem em muitos países da Amé-
Mas deve fazer isso com qualidade,
rica Latina é a precária institucionalização da educação
respondendo às necessidades dos países
superior como campo de estudo. Não existem informações
da região, para o que as políticas de
confiáveis e, tampouco, produção de conhecimento que
integração e internacionalização
permita avançar na compreensão do presente e, menos
solidária são fundamentais.”
ainda, temos elementos sólidos para preparar o futuro. Por isso, é crucial que essa cátedra se vincule a investigadores de todos os países da região, para que existam estudos
entender os processos atuais. Por exemplo, a importância
comparados com informações confiáveis que possam ser
da universidade para o desenvolvimento das sociedades, a
utilizados por governos, instituições de educação superior
responsabilidade social que a universidade deve ter para
e organismos internacionais. Não existe futuro próprio se
responder a todos os setores da sociedade, seu papel
não há conhecimentos próprios.
no desenvolvimento dos aspectos éticos, da inovação e desenvolvimento de estratégias para afrontar o futuro, e
SF Quais são os principais desafios do ensino superior
muitos outros aspectos que estão presentes desde o início
na América Latina?
da história das universidades.
CarmenGuadilla São vários. Eu listaria os seguintes: a educação superior deve defender seu status de bem público
SF Qual o estado atual do projeto? CarmenGuadilla Até agora, o projeto tem se orientado
social, para estar a serviço do desenvolvimento humano e
a revisar a história dos pensadores e formadores de
Regional da Educação Superior da Unesco, em 2008, em
maneira geral. O resultado desta primeira etapa foi
Cartagena, Colômbia. Deve ser inovadora nos processos de
o livro “Pensadores e Formadores da Universidade
aprendizagem, considerando que dentro de pouco mais de
Latinoamericana”, editado por Unesco/Iesalc y Cendes,
cinco anos teremos na universidade a geração de jovens que
em que participaram autores dos 20 países da América La-
nasceram na era digital. Deve abrir espaços à geração de
tina, e a partir do qual se projetou a temática e se criou um
relevo nas universidades, tratando de absorver os melhores
espaço de intercâmbio sobre o pensamento universitário
talentos. Deve criar espaços regionais de investigações
latino-americano. Agora vem uma segunda fase, orien-
de alto nível, para responder mais adequadamente às
tada para aprofundar as distintas etapas da história de
necessidades de maior desenvolvimento dos países e, ao
maneira contextualizada. O objetivo é entender quais
mesmo tempo, fazer frente à fuga de talentos que ocorre
foram as influências de cada uma delas no pensamento e
em muitos países latino-americanos, buscando melhores
nas propostas dos pensadores e formadores que mais se
oportunidades profissionais. Maior inclusão, com qualidade
sustentável dos países, como foi enfatizado na Conferência
destacaram no desenvolvimento da universidade.
SF E sobre a cátedra da Unila, qual é o seu objetivo? CarmenGuadilla A Cátedra Andrés Bello em Educação
“Temos uma taxa de cobertura da educação superior muito abaixo da dos países desenvolvidos. A taxa
Superior Comparada da Unila deveria se converter em
de cobertura regional (América
uma plataforma para acolher estudiosos da educação
Latina e Caribe), de acordo com a
superior, promover suas investigações, além de contribuir
Unesco, é de 37%, mas eu diria que
com informações confiáveis para estudar e comparar os
ela é um pouco menor. A média dos
sistemas de educação superior da região, e estes com
países desenvolvidos é de 70%.”
semfronteiras | 79 semfronteiras
e pertinência — este é outro dos desafios que a Unesco
“Um dos vazios lamentáveis que
reitera permanentemente.
existem na América Latina é a precária institucionalização da
SF
A senhora citou a inclusão no ensino superior.
educação superior como campo de
Como estão os números da inclusão nos países da
estudo. Não existem informações
América Latina?
confiáveis e, tampouco, produção de
CarmenGuadilla
Temos uma taxa de cobertura da
educação superior muito abaixo da dos países desen-
conhecimento que permita avançar na compreensão do presente.”
volvidos. A taxa de cobertura regional (América Latina e Caribe), de acordo com o último informe mundial da Unesco, é de 37%, mas eu diria um pouco menos, pois
tendo menores taxas de alunos formados, ou seja, o
existem alguns países que aparecem com taxas um
estudante chega ao ensino superior, mas não o conclui. Em
pouco altas em relação aos dados que mantemos com
relação à pós-graduação e à pesquisa, o Brasil é o país que
os investigadores da região. Neste sentido, a taxa de
se sobressai, junto com o México. E, no doutorado, o Brasil
cobertura da educação superior da região é maior que a
alcança 50% dos estudantes da região. Isso se reflete
média mundial, que é de 26%, mas muito mais baixa que
nos rankings internacionais de pesquisas, em que o Brasil
a média dos países desenvolvidos (América do Norte e
tem mais de 50% das publicações da região, seguido por
Europa Ocidental), de 70%.
México, com 17%, e Argentina, com 14%.
SF Se a média regional é melhor que a média mundial,
SF Como está a situação do ensino superior no resto
isso é uma boa notícia...
do mundo?
CarmenGuadilla
CarmenGuadilla
Nem tanto, porque a média regional
Na última década, houve uma
de 37% cobre grandes diferenças na região. Os países
expansão da educação superior muito grande em nível
com as taxas mais elevadas são Cuba, Argentina, Chile,
mundial. De 82 milhões de estudantes, em 1995, passou
Venezuela e Panamá, e os países com menores taxas são
para 150 milhões, em 2008. A região do mundo que mais
Guatemala, Honduras e Nicarágua. O Brasil tem aumen-
tem aumentado o número de estudantes é a Ásia. Atual-
tado bastante a taxa de cobertura. Há uma década, o país
mente, dos 150 milhões de estudantes em todo o mundo,
tinha uma taxa de 20,4%, menor que a média regional, e
44% são da Ásia, 37% da América do Norte e Europa, 12%
atualmente tem uma taxa de 26%, segundo números de
da América Latina e Caribe, 5% dos Estados Árabes e 3%
PNAD-IBGE. Entretanto, é preciso deixar claro que, no
dos países da África Subsaariana.
informe da Unesco de 2009, a cifra que aparece do Brasil é muito maior, de 30%, mas eu confio mais nos números sugeridos pelos investigadores do Brasil.
SF Para atingir os padrões dos países desenvolvidos, o que precisa ser feito?
CarmenGuadilla
A América Latina, como região,
SF O que explica esta maior taxa de inclusão em países
tem que aumentar sua taxa de cobertura. Mas deve fazer
como Cuba?
isso com qualidade, respondendo às necessidades dos
CarmenGuadilla Em Cuba, por exemplo, a entrada dos
países da região, para o que as políticas de integração e
estudantes no ensino superior é irrestrita, ou seja, não há
internacionalização solidária são fundamentais. É preciso
processo seletivo. Mas quantidade de alunos não implica
levar em conta as enormes assimetrias entre os países e
em qualidade. Esses países que têm ingresso irrestrito e
otimizar a complementaridade entre eles, para responder
conseguem atingir elevadas taxas de ingresso acabam
aos desafios da globalização do conhecimento.
80 | semfronteiras semfronteiras
AMÉRICA latina
CT&I + inclusão social Regina Rocha e Sonia Montaño
HEBE VESSURI: “A CIÊNCIA DESCOLADA DA REALIDADE NÃO SE SUSTENTA”.
Um contrato social para a ciência, tecnologia e
ainda estão longe de ser alcançadas pelos países
inovação (CT&I) na América Latina e Caribe (ALC), que
da ALC. No geral, há escassez de recursos humanos
atenda as necessidades da população em aspectos
qualificados e “uma inquietante debilidade das capa-
como os da saúde, educação, habitação e segu-
cidades locais para resolver as necessidades da
rança, e em harmonia com o meio ambiente, deverá
região”, disseram os cientistas, que, entre inúmeras
transcender os governos e as conjunturas político-
recomendações, pediram atenção para os desastres
econômicas e exigir cooperação em todas as áreas
climáticos. Eles também fizeram referência às cinco
do conhecimento. Em resumo, esse é o principal
décadas de contínua drenagem de talentos da ALC
recado de uma declaração emitida no final do ano
para os países mais desenvolvidos e insistiram na
passado em Buenos Aires por cientistas da ALC que
necessidade de a ciência, a tecnologia e a inovação
participaram de uma oficina da ONU, preparatória
trabalharem sob a ótica da inclusão social.
da conferência mundial de Budapeste. Para isso, um programa estratégico e um Centro Regional de
Ciência e soberania
Cooperação Científica e Tecnológica deverão ser
Em entrevista à revista Sem Fronteiras, a an-
construídos junto à Unesco e em parceria com insti-
tropóloga Hebe Vessuri, do Instituto Venezuelano de
tuições internacionais como BID, OEA e OEI e não
Investigações Científicas (IVIC), opinou que o apoio
governamentais como IANAS (InterAmerican Network
à ciência na ALC deveria ser encarado como uma
of Academies of Sciences) e ICSU (Regional Office for
questão de soberania. Sobre inclusão social, falou:
Latin America and the Caribbean).
“A ciência pela ciência, descolada da realidade social,
Em Buenos Aires, os participantes reconheceram
não se sustenta”. Segundo a antropóloga, doutora
que muitas das metas previstas há mais de dez anos
pela Universidade de Oxford, a conformação histórica
pela Conferência Mundial sobre Ciência, como pensar
das nações latino-americanas “resultou num sub-
o ensino de ciências a partir do cotidiano das pessoas,
continente dividido e com pouca percepção acerca das
semfronteiras |
81
“Ciência, tecnologia e inovação
muitas áreas. O Brasil certamente se distingue, formando hoje 10
e educação e cultura juntas
mil doutores e 30 mil mestres por ano, mas Argentina, Chile, México
é que resultam num progresso
e Colômbia mostram avanços importantes em vários setores. Em
abrangente e harmonioso”,
todos os países da ALC encontra-se uma ciência de boa qualidade,
afirma o cientista paranaense
ainda que em alguns casos fosse importante aumentar o número
Waldemiro Gremski.
de cientistas ativos”, afirma Alice Abreu, diretora do ICSU. “As universidades são de boa qualidade e existem conselhos nacionais de ciência e tecnologia, do tipo do CNPq, criados em sua maioria na
suas potencialidades”. Contudo, diz ela, “essas
década de 50 ou 60, que apoiam a pesquisa científica. Em muitos
nações têm hoje uma vontade de integração
casos, no entanto, essa pesquisa é feita em colaboração com o
muito mais intensa do que em outros períodos
Norte, especialmente com os Estados Unidos e a Europa.”
da sua história”. Ela aponta, entre vários outros entraves ao desenvolvimento científico e tec-
Investimentos
nológico da região, a formação fragmentada
Apesar dos vários compromissos de aumento de recursos
dos futuros cientistas do século XXI. “Há uma
para a C&T, assumidos nas reuniões multilaterais, os países latino-
tendência na formação desses jovens que pode
americanos e caribenhos continuam investindo pouco em C&T — a
ser comparada a um telescópio invertido, isto é,
média é de 0,62% do PIB —, contra os 2% ou 3% aplicados pelos
percebe-se a própria realidade como menor e
países de alta renda. O Brasil é o único país que, de acordo com
mais distante.”
o relatório da Rede de Indicadores de Ciência e Tecnologia Iberoamericana e Interamericana (Ricyt), superou a barreira de 1% do
Questão de Estado
PIB em C&T. Os avanços registrados nos últimos anos em alguns
Em alguns países, o desenvolvimento da
países da região tanto em relação ao (modesto) aporte de recursos
CT&I na ALC ainda depende de múltiplos fatores,
financeiros quanto à qualificação profissional, não são suficientes,
como a regulamentação de marcos legislativos, isto
é,
de
garantias
constitucionais
que
assegurem a destinação de recursos próprios para o setor. No Brasil, por exemplo, a C&T só passou a ser tratada como questão de Estado depois que a Constituição de 1988 lhe dedicou um capítulo à parte. O destino e a continuidade dos recursos para áreas estratégicas, bem como o desequilíbrio entre a produção científica e o uso criativo desta produção, são outros fatores preocupantes. “Ciência, tecnologia e inovação e educação e cultura juntas é que resultam num progresso abrangente e harmonioso”, defende o cientista paranaense Waldemiro Gremski. “A América Latina e Caribe, ao contrário da África, por exemplo, vêm investindo em formação de recursos humanos há mais de meio século, e têm hoje uma comunidade científica importante e de qualidade internacional em
82 | semfronteiras
O Brasil é responsável por metade da produção científica latino-
Produção científica Do ponto de vista da produção científica, e de acordo
americana e por 2,12% do total de
com as últimas estatísticas da Ricyt, Brasil, México, Ar-
publicações globais, de acordo com a
gentina e Chile são os países que ostentam os melhores
avaliação anual do National Science
indicadores de desenvolvimento científico da América
Indicators (NSI).
Latina. O Brasil tem posição de destaque: é responsável por metade da produção científica latino-americana
segundo a Ricyt. Como a maior parte desses recursos
e por 2,12% do total de publicações globais, de acordo
provém do setor público, em vias de reduzir seus
com a avaliação anual do National Science Indicators
orçamentos por causa da crise econômica de 2008,
(NSI). A última avaliação mostra que o Brasil subiu no
será preciso aguardar um bom tempo para que esse
ranking da produção científica, atingindo a 13ª posição
fenômeno se consolide, enfatiza o relatório. Para isso,
em 2008. Ocorre que a maior parte desse conhecimento
políticas macroeconômicas eficientes deverão ser
é produzida nas universidades, públicas principalmente,
complementadas com políticas de fomento e difu-
e em boa parte em ciência básica, fundamental para
são tecnológica e de estímulo à inovação e formação
o desenvolvimento de recursos humanos, mas que,
de recursos humanos em setores estratégicos, entre
isoladamente, não assegura o desenvolvimento pleno de
outras medidas.
nenhum país.
semfronteiras |
83
Em relação ao desempenho da educação
Engenharia e Tecnologia, Ciências Exatas e Naturais e
superior na ALC, a Ricyt informa que o número de
Agrícolas. Também aumentou o número de doutores, de
graduados duplicou no período 1998-2007 — de 800
pouco mais de cinco mil em 1998 para 14 mil em 2007. Por
mil para 1,6 milhão —, com maior destaque para a
fim, o número de patentes passou de 50 mil para 63 mil no
área das Ciências Sociais e menor para as áreas de
mesmo período.
84 | semfronteiras
semfronteiras |
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ENSAIO
A Arca de Noé e o problema da fauna sul-americana Nelson Papavero ilustração: Renata Cunha
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A mais antiga teoria biogeográfica, que
para essas ilhas. Mas ainda restava outro
perdurou pelo menos até o século XVIII,
problema. Santo Agostinho era um dos pou-
surgiu no livro do Gênesis, na Bíblia. Uma vez
cos em sua época que acreditavam ser a
encalhada a arca no cume do Monte Ararat, os
Terra redonda e que, provavelmente, deveria
animais teriam aportado e, com o tempo, foram
existir um continente no hemisfério oposto.
se reproduzindo, aumentando suas populações,
Desde a Antiguidade grega, vários autores
se distanciando desse “centro de dispersão” e
(incluindo
reocupando toda a Terra. Deduziu-se a partir
ser o nosso planeta uma esfera e que — por
dessa teoria que as espécies (imutáveis, por
razões meramente estéticas, para manter
serem obras divinas) seriam as mesmas em
uma simetria — existia um continente no outro
qualquer parte do mundo. Lembremo-nos de
hemisfério. Sabiam, ademais, que a Terra era
que, nesse tempo, acreditava-se que só existia
zonada climaticamente — duas zonas frígidas,
o que hoje chamamos de Hemisfério Norte,
perto dos polos, duas zonas temperadas e uma
como mostrado, por exemplo, no mapa de
zona central, a Zona Tórrida, situada ao longo
Ptolomeu (90-168 d.C.).
do equador. Essa Zona Tórrida era tão quente
Aristóteles)
haviam
postulado
Santo Agostinho (354-430 d.C.), em
que literalmente incinerava qualquer objeto
seu livro A Cidade de Deus, preocupou-se
material. As duas zonas temperadas estavam,
com um grave problema — como os animais
portanto, inexoravelmente separadas por es-
que não sabem nadar nem voar, nem têm
sa abrasante região.
préstimo algum para os homens, puderam
Supondo-se existir um continente “an-
chegar às ilhas do “Mar Oceano” (o Oceano
típoda”, seria ele habitado por homens e
Atlântico)? Só viu uma explicação: por especial
animais? Santo Agostinho, por razões físicas e
permissão divina, os anjos os transportaram
teológicas, decidiu que não. Nem homens, nem
Representação do animal mítico grifo, baseada na águia-real (Aquila chrysaetos) e no leão-africano (Panthera leo).
semfronteiras |
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animais, poderiam passar pela Zona Tórrida sem serem carbonizados. Tampouco os anjos poderiam tê-los transportado através da linha do Equador, pela mesma razão. Uma segunda criação divina nos antípodas estava fora de cogitação — Deus só criara o homem e os animais uma única vez, e só restaram no mundo, depois do Dilúvio Universal,
A constatação de uma rica fauna na África e no Novo Mundo minou as antigas teorias construídas a partir do Livro do Gênesis.
os descendentes da família de Noé e dos animais por eles salvos na arca... Mas após o descobrimento da América e
de ilhas (picos das altas montanhas da Atlântida,
do Brasil, os iberos constataram não só que ali
então submersas). Propôs que os animais e ho-
existiam homens, mas animais muito diferentes
mens descendentes dos que foram salvos por
dos do Velho Mundo, ou mesmo sem nenhuma
Noé chegaram à América pelo Estreito de Anian
relação com aqueles, como os marsupiais, os tatus,
(citado por Marco Polo; o atual Estreito de Bering),
tamanduás, preguiças, a anta, e assim por diante.
explicação que foi aceita por muitos outros auto-
Como teriam passado homens e animais ao
res durante muito tempo.
Novo Mundo? Para imaginarmos o problema, ima-
A ideia agradou a muitos, pois sustentava a
ginemos que se descubra em outro planeta, no
verdade literal do livro do Gênesis. Mas, como
futuro, uma fauna parcial ou totalmente diferente
sempre, surgiu ainda outro problema — o número
da do nosso planeta. Como teriam chegado lá?
de espécies animais era enorme, como ficou
Gerolamo Fracastoro (1483-1553), em seu
patente ao se conhecer a fauna americana; nunca
poema Syphilidis seu de morbo gallico [no qual,
teriam cabido na arca de Noé. Relatos de viajantes,
diga-se de passagem, inventou o nome “sífilis”]
cronistas e missionários traziam ao conhecimento
(Florença, 1530), Francisco López de Gómara,
dos europeus, cada vez mais, novos tipos de
em sua Historia general de las Indias (ca. 1553),
animais.
e especialmente Agustín de Zárate, num prefácio
Uma solução foi proposta por Sir Walter
a sua Historia del descubrimiento y conquista del
Raleigh (1614), em um livro sobre a história do
Perú (1555), baseados em Platão, admitiram que
mundo. Noé levara, sim, em sua arca, todos os
entre a Europa e a América do Sul havia existido
animais que Deus criara originalmente no Jardim
outro continente — a Atlântida — tão grande que
do Éden. Mas estas “espécies primigênias” eram
estabelecia uma ponte entre os dois continentes,
poucas, e couberam folgadamente na arca. Depois
através da qual passaram, a pé enxuto, homens e
de ter ela encalhado no Ararat, os animais, ao se
animais. Depois disso, esse continente afundou no
dispersarem, foram “degenerando” por ação do
Mar Oceano, razão pela qual é até hoje chamado
clima, hibridando, e assim dando origem a novas
de “Atlântico”.
formas. Quanto mais distantes do “centro de
O jesuíta Joseph d’Acosta, em seu livro
dispersão” do Ararat, mais diferentes seriam –
Historia natural y moral de las Indias (1590),
prova que, na longínqua América do Sul (ou na
derrubou essa teoria, mostrando ser o Atlântico
África, por outro lado), existiam formas totalmente
muito fundo, praticamente sem ilhas — se um
distintas das do Velho Mundo.
continente tão grande como a Atlântida tivesse
Em 1675, o jesuíta Athanasius Kircher, numa
afundado, o oceano seria muito raso e semeado
obra intitulada Arca Noë in tres libros digesta,
88 | semfronteiras
belissimamente ilustrada, completou a ideia
o tatu (chamado “armodillus” por Kircher) era
de Raleigh. Fez um levantamento, a partir das
o híbrido da tartaruga com o porco-espinho, e
grandes obras de autores renascentistas, das
assim por diante. Existiram inclusive, segundo o
várias espécies de vertebrados existentes no
jesuíta alemão, cruzamentos entre mamíferos e
mundo, conhecidos até seu tempo. Segundo ele,
aves. Do struthio (pardal) com o camelo surgiu o
Noé levou em sua arca apenas os mamíferos e
struthiocamelus (o avestruz). Do cruzamento da
aves criados originalmente por Deus, poucas
águia com o leão surgiu o espetacular “grifo”, com
espécies. Todos os outros animais não pre-
tórax, abdômen, cauda e pernas posteriores do
cisaram ser salvos, pois, como se acreditava,
leão e cabeça, pernas anteriores e asas da águia.
nasciam por geração espontânea, a partir da
Esta última espécie está hoje infelizmente extinta,
matéria putrefata. Examinando os mamíferos
como se extinguiram todas as magníficas teorias
e aves recentes, viu que, ao comparar suas
desses autores dos séculos XVI e XVII, dois séculos
formas, alguns deles possuíam características
depois, com o advento da Teoria da Evolução e das
comuns. Essas características deviam provir
modernas teorias da Biogeografia.
das “espécies primigênias” do Jardim do Éden.
Os grandes avanços da Biologia, desde o
Eram estas últimas tão poucas que puderam ser
século XVIII, fizeram com que essa poética teoria
alojadas no andar inferior da arca (mamíferos) e
de origem bíblica se deparasse com graves
no andar superior (aves), ficando o intermediário
obstáculos epistemológicos. A teoria da geração
para alojar Noé e sua família e de depósito para
espontânea caiu quase que inteiramente por
alimentos, ferramentas etc. Num estreito porão
terra (excetuada a parte relativa à origem do
foram postas certas espécies de cobras, que
primeiro ser vivo...). O vertiginoso aumento do
Noé preservou “para fins medicinais”, segundo
número das espécies conhecidas tornou a arca de
Kircher.
Noé totalmente imprópria para abrigá-las, mesmo
À medida que se dispersavam até os confins da
que se admita que só mamíferos e aves foram
África e da América do Sul (neste caso, pelo Estreito
ali preservados. Noé levou todas as espécies
de Bering), essas poucas espécies, além de se
(as estimativas mais moderadas garantem que,
perpetuarem sem mudar, foram produzindo novas
hoje, conhecemos 1,5 milhão de espécies!) ou só
formas através de hibridação, que posteriormen-
mamíferos e aves? Com o advento da teoria da
te sofreram degeneração por influência do meio;
Evolução, outras explicações surgiram e, mo-
quanto mais distantes do “centro de dispersão”,
dernamente, a Biogeografia por Vicariância é o
mais diferentes e degeneradas seriam essas
paradigma vigente para explicar a distribuição
formas híbridas. Os nomes através dos quais os
geográfica das espécies no espaço e no tempo.
homens as conheciam (em latim) mostravam de
É inegável, porém, que a teoria exposta no livro
que espécies parentais haviam resultado. Assim,
do Gênesis (e todos os obstáculos epistemológicos
do cruzamento do leão com o pardo (o “pardo”,
que encontrou) foi importante, por suscitar novas
felino citado por Kircher, talvez seja o guepardo
reflexões dos naturalistas sobre o assunto.
[Acinonyx jubatus, Schreber, 1775] ou o serval [Leptailurus serval, Schreber, 1776], utilizados desde a Antiguidade na caça de gazelas ou aves), surgiu o “leopardo”; o pardo também cruzou com
Nelson Papavero é doutor em Ciências pela UFRJ e
o camelo, originando o “camelopardo” (a girafa);
pesquisador aposentado do Museu de Zoologia da USP.
semfronteiras |
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h u m ani d a d es
Direitos intelectuais indígenas Edilene Coffaci de Lima
Saber tradicional não é saber sem dono
Nos últimos anos, tem ganhado cada vez mais
nos termos em que estamos habituados a pensar e
espaço a valorização de objetos materiais e imateriais
proceder. A ideia do “coletivismo primitivo”, que povoa
de grupos indígenas. Suas produções — músicas, livros,
a imaginação ocidental, está longe, também, de ser
grafismos e artesanato, entre outras — alcançam agora
adequada. Em resumo: a inventividade e a propriedade
nichos de mercado (o mercado “verde” é apenas um
(nem privada, nem coletiva) não se configuram como
deles) e desenham, ainda que timidamente, novas
atributos consensuais quando se definem direitos
oportunidades para a sustentabilidade das populações
intelectuais indígenas.
que aqui estão desde antes da chegada dos europeus. Se essa é uma boa-nova, é preciso destacar que
Conhecimentos e biodiversidade
a novidade faz surgir, ao mesmo tempo, questões a
Por essas e outras, os direitos intelectuais indígenas
serem solucionadas. Uma delas, volumosa, diz respeito
tornam-se melindrosos quando se alcança a discussão
aos mecanismos de proteção dos direitos intelectuais
sobre os conhecimentos tradicionais associados à
indígenas. E tal questão se apresenta como um desafio
biodiversidade. Tanto mais porque os dados disponíveis
em virtude dos descompassos entre as concepções de
indicam que a cobertura florestal e a diversidade bio-
propriedade intelectual vigentes no Ocidente, que são
lógica em territórios indígenas são mais elevadas do
individualizadas e pretendem premiar a criatividade, e
que fora deles. Segundo o etnobotânico William Balée,
as concepções indígenas, nas quais vigoram critérios
professor da Universidade de Tulane (Estados Unidos)
diversos do que se entende por apropriação e criação.
que realizou pesquisas entre vários grupos indígenas
Entre grupos indígenas, a capacidade de replicação
no Brasil, seriam os índios não apenas mantenedores da
(que não se confunde como a mera repetição) de
floresta, mas também produtores de sua biodiversidade,
saberes ancestrais tende a ser mais valorizada do que
em virtude das formas de manejo que praticam.
a capacidade de criação em si mesma, a originalidade.
Até antes de 1992, os recursos genéticos oriundos
Além disso, a apropriação privada, embora não seja
da biodiversidade eram considerados como patrimônio
inexistente entre eles, não se define facilmente
da humanidade. Em qualquer lugar onde estivessem —
90 | semfronteiras
Renato Soares / Imagens do Brasil
Indígena da tribo Krahô. Um projeto de pesquisa sobre a fitofarmacopeia Krahô, da Universidade Federal de São Paulo, terminou em disputa sobre a participação dos índios na distribuição de royalties decorrentes de um eventual depósito de patente.
semfronteiras semfronteiras||91 91
Não se devem subestimar as contribuições que os conhecimentos produzidos pelas populações indígenas podem trazer às pesquisas científicas. Estudos indicam que o acesso aos conhecimentos indígenas incrementa o sucesso das pesquisas farmacêuticas em até 400%.
beneficiasse dela chegou a termo com sucesso no Brasil. Ao contrário, sabemos que os índios Krahô, localizados no Tocantins, recentemente se desentenderam com cientistas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Igualmente, foi frustrada a iniciativa dos índios Katukina, localizados no Acre, de solicitar ao Ministério do Meio Ambiente a realização de estudos sobre a secreção do anfíbio que chamam de kampô ou kambô (Phyllomedusa bicolor), uma substância que
em florestas brasileiras, africanas ou asiáticas —,
conhecem e da qual se servem há muito tempo e
não se reconheciam quaisquer benefícios à nação
que tem algumas patentes registradas ao redor do
que os tivesse preservado. De modo que um país
mundo. A iniciativa não pôde ir adiante justamente
megadiverso como o nosso tinha os recursos
por falta de acordo, em virtude de, nas palavras
genéticos, e os conhecimentos tradicionais, que
da antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, “co-
lhe são associados, apropriados por empresas e
lonialismo científico interno”. Infelizmente, são
cientistas do mundo todo, como um patrimônio
dois exemplos negativos — e esse número poderia
comum, sem o estabelecimento de qualquer
aumentar.
compensação. Somente por ocasião da realização
Não há dúvidas quanto aos avanços —
da Conferência das Nações Unidas para o Meio
sobretudo no plano político — que a CDB promoveu.
Ambiente e Desenvolvimento, a RIO-92, com o ad-
De qualquer maneira, são lentos os passos que
vento da Convenção sobre a Diversidade Biológica
levam à sua efetivação. As dificuldades existem e
(CDB), é que foi possível desfazer esse estado de
não se encerram, entretanto, no campo jurídico.
coisas. A CDB instaurou uma nova relação entre
Essas existem, e, como dito antes, são salientes as
os países detentores de tecnologia e os países
dificuldades para conciliar as concepções de direi-
com altas taxas de bio e sociodiversidade — res-
to de propriedade intelectual (reconhecidamente
pectivamente localizados nos hemisférios Norte e
privado e individualizado) e os conhecimentos
Sul do globo terrestre.
tradicionais (vulgarmente tidos como públicos e
Além da ambição de desfazer a assimetria
coletivos). De qualquer maneira, mais complexa
geopolítica, esperava-se com a CDB unir as duas
é a possibilidade de se intercomunicarem duas
pontas, tecnologia e biodiversidade, reconhecendo
ciências diversas que se constroem a partir de
a soberania dos países megadiversos. Especial-
níveis estratégicos distintos — como escreveu Lévi-
mente no Artigo 8j, a efetivação desse propósito
Strauss há quase 50 anos.
permitiria aos povos tradicionais, de acordo com um conjunto de dispositivos legais, disponibilizarem
Desfazer mal-entendidos?
seus conhecimentos associados à biodiversidade às
Não se devem subestimar os conhecimentos
instituições científicas, às empresas e aos cientis-
produzidos pelas populações indígenas e as
tas, viabilizando as pesquisas e proporcionando
contribuições que podem trazer às pesquisas cien-
benefícios a todos os envolvidos.
tíficas. Há estudos que indicam que o acesso aos
De 1992 até o momento, as discussões ficaram
conhecimentos indígenas incrementa o sucesso
mais complexas. É forçoso reconhecer que, desde
das pesquisas farmacêuticas em até 400%.
a ratificação da CDB, nenhuma iniciativa que se
São igualmente impressionantes os números
92 | semfronteiras
oferecidos pela pesquisa realizada por Ten Kate & Laird, segundo a qual mais da metade das indústrias entrevistadas admitiu acessar conhecimento tradicional no desenvolvimento de
Entre grupos indígenas, a
suas pesquisas. E, mais do que isso, relatou que
capacidade de replicação —
o fez principalmente de modo indireto: 80% a
que não se confunde como a
partir de consultas a fontes secundárias (teses,
mera repetição — de saberes
livros, artigos). Esse é um ponto importante e,
ancestrais tende a ser
de alguma maneira, surpreendente, pois a fi-
mais valorizada do que a
gura do temível biopirata — deslocando-se pela
capacidade de criação em si
floresta e ludibriando os moradores locais à
mesma, a originalidade.
procura de novas descobertas —, embora possa que se passa, pois não seria preciso muito mais do que o acesso a boas bibliotecas. Esses números parecem não justificar a interrupção do diálogo entre índios e cientistas — compreendendo ambos, certamente,
Edilene Coffaci de Lima
ocasionalmente materializar-se, não dá conta do
como parceiros em acordo. Menos ainda a interrupção do diálogo entre os próprios grupos indígenas. Se predominar o clima de suspeição e se forem interrompidos os canais pelos quais os conhecimentos sempre trafegaram, como poderão ter continuidade os processos de produção, atualização e transmissão de conhecimentos? Afinal, a tradicionalidade não diz respeito unicamente aos conhecimentos (como se esses pudessem ser encerrados em si mesmos), mas, fundamentalmente, aos processos que garantem que possam ser produzidos. Ironicamente, inventividade e originalidade são agora os termos exigidos para que se possam plenamente reconhecer e implementar os direitos intelectuais indígenas. O desafio é desfazer os mal-entendidos, um eufemismo para as concepções divergentes sobre o que significa conhecer, criar e possuir. Índio Katukina extraindo secreção do anfíbio que eles chamam de kampô.
Edilene Coffaci de Lima é professora do Departamento de Antropologia da UFPR.
semfronteiras | 93
h u m ani d a d es
No dia 21 de dezembro de 2009, a Lei Rouanet
ministro da Cultura, não apenas idealizou e deu
completou 18 anos. Em vigor desde o apagar das
vida ao empreendimento, como também realizou
luzes de 1991, seu nome tornou-se popular e citado
inúmeras palestras na época sobre o tema. Quase
familiarmente por todos aqueles que direta ou in-
duas décadas após — e depois de várias alterações —,
diretamente mantêm contato com a área cultural.
o Ministério da Cultura (MinC) propõe mudanças
Transformou-se até mesmo em nome próprio,
na lei, que passa a se chamar Programa de Fo-
especialmente para aqueles que não imaginam que
mento e Incentivo à Cultura (Profic). Mexeu-se num
Rouanet é o sobrenome do criador da lei de incentivo.
vespeiro: apareceram os que são a favor e os que
Sérgio Paulo Rouanet, diplomata, acadêmico, ex-
são contra, decretando polêmica na temporada.
94 | semfronteiras
Dores de crescimento Zeca Corrêa Leite Ilustração: simon ducroquet
Lei de incentivo à cultura completa 18 anos em meio a polêmica sobre mudanças
As alterações são necessárias, argumentam
sive para além do eixo Rio-São Paulo. Para isso
aqueles que apoiam as medidas adotadas pelo
é preciso rever a lei no todo, adequando-a aos
MinC. Citam como exemplo a incômoda realidade
novos tempos.
de que somente uma minoria consegue beneficiar-
Seu papel atual é o de captar e canalizar
se com a lei, geralmente aqueles que se valem
recursos para o setor cultural; a partir de agora,
do nome e da fama. Artistas menos conhecidos
propõe-se a mobilização e aplicação dos recursos
continuam a viver o drama financeiro com ou sem
em incentivos a projetos culturais, com visível
a Rouanet. É preciso, portanto, criar mecanismos
predominância do MinC na definição dos projetos
que possibilitem a disseminação cultural, inclu-
nos quais o dinheiro será empregado.
semfronteiras |
95
O “Estado da Arte” Os
críticos
apresente”, critica Priscila Santos. Quanto aos apontam
uma
perigosa
conselhos paritários, também há ressalvas:
ingerência do Estado sobre o poder privado e a
“Temos muitos conselhos paritários e sabemos
liberdade artística. Pela criação de alguns itens
que não funcionam. Além disso, a sociedade
e pela supressão de outros que vigoraram em
nunca está bem representada”.
todos estes anos é que se azeitam as garras da
ponto
discutível
refere-se
aos
censura e o tolhimento de expressão, reclamam
direitos autorais. Vigora até o momento a
os adversários. Um dos pontos nevrálgicos que
reserva dos direitos a seus autores, mas,
estão dando o que falar trata da exclusão do
segundo as alterações propostas, o governo vai
artigo 22, que determina: “Os projetos enqua-
ter um prazo de 18 meses a três anos para dispor
drados nos objetivos desta lei não poderão ser
dos bens e serviços que foram beneficiados
objeto de apreciação subjetiva quanto ao seu
pela lei, fazendo uso gratuitamente. “Isso é um
valor artístico ou cultural”.
desrespeito, algo com que eu simplesmente não
Ao suprimir esse artigo, o MinC abre
96 || semfronteiras semfronteiras 96
Outro
posso ser conivente”, insurge-se a advogada.
espaço para que os méritos artísticos dos pro-
Destacam-se ainda na nova Lei Rouanet as
jetos sejam julgados através de um “sistema de
alterações ao Fundo Nacional de Apoio à Cultura
pontuação”, cujos critérios serão anunciados
(FNC), que terá como receitas, entre outras,
periodicamente. “Se você for selecionar projetos
recursos vindos da arrecadação da Loteria
com critérios mais específicos, simplesmente
Federal da Cultura, a ser criada por lei específica,
estará colocando censura sobre eles”, diz a
e de dotações consignadas na lei orçamentária
advogada Priscila Santos, membro da Comissão
anual. Será da competência do FNC fazer
de Assuntos Culturais da OAB/PR e responsável
empréstimos e repasses a fundos municipais e
pelo blog Cultura Legal (www.culturalegal.com).
estaduais, e associar-se a projetos culturais. Isso
A avaliação dos projetos, a cargo da
permitirá que o Fundo se torne mais atrativo
Comissão Nacional de Incentivo à Cultura
para produtores culturais e se transforme em
(Cnic), também sofrerá modificações. Dela
alternativa para aqueles que não conseguem
participam representantes do governo, empre-
captar financiamento via renúncia fiscal.
sariado, associações de setores artísticos e
São novidades que não constam da lei em
culturais. Pela nova lei, haverá comitês para
vigor. Também são previstas divisões do FNC
áreas específicas, de caráter paritário entre
em fundos setoriais voltados às artes (teatro,
governo e sociedade, para uma avaliação mais
circo, dança, artes visuais, música); cidadania,
profunda dos diversos setores. “Avaliar com
identidade e diversidade cultural; memória e
profundidade a arte? O povo é que deve avaliar,
patrimônio cultural brasileiro; livro e leitura.
se ele gosta ou não. A arte sempre tem que
É grande a expectativa pela criação do vale-
ser contemplada, indiferente de como ela se
cultura, que nasce sob os mesmos moldes do
vale-refeição e vale-transporte, possibilitando
maior a participação da iniciativa privada neste
ao seu portador maior acesso a cinema, teatro,
processo.
shows, museus, aquisição de livros, CDs e DVDs. O procedimento é o mesmo dos demais vales,
Alguns números reveladores
sendo parte do valor paga pela empresa, parte
Os que aplaudem as mudanças reforçam
pelo empregado e o restante subsidiado pelo
o discurso dando conta de que, em 18 anos
governo federal. Segundo o governo, serão in-
de funcionamento, a lei de renúncia fiscal
jetados R$ 7 bilhões no setor.
transformou-se, na prática, em um esquema no qual de um lado do balcão estão os captadores
Novas faixas de renúncia
com seus projetos artísticos e, do outro, o
No que diz respeito à renúncia fiscal,
pessoal de marketing das grandes empresas
a principal alteração refere-se à criação de
que liberavam as verbas. O objetivo sempre foi
faixas de dedução do imposto de renda, que
um só: expor a logomarca da empresa. Rio de
seriam aplicadas conforme a pontuação dada
Janeiro e São Paulo consumiram, em média,
pelo MinC aos projetos submetidos à análise.
80% dos recursos disponíveis.
O copatrocinador passará a ter mobilidade na
Dados do MinC revelam que, de cada R$ 10,00
dedução do IR dos valores despendidos, com
investidos na Lei Rouanet, apenas R$ 1,00 vinha
faixas que variam de 30%, 60%, 70%, 80%,
da iniciativa privada. O restante era dinheiro
90% e 100%. No momento, o empresariado
público. E mais: metade do valor captado pela lei
trabalha com apenas duas faixas: a de 30%
ficava nas mãos de 3% dos captadores.
(artigo 26 da Lei Rouanet) e de 100% (artigo 18).
A proposta atual é ampliar o atendimento,
“É óbvio, numa economia de mercado
fazendo os benefícios chegarem ao maior nú-
em que vivemos, em que somos bitolados em
mero de clientes, abrindo o leque nacionalmente
relação aos valores perenes, que somente vamos
e incluindo desde grupos populares a povos
participar do artigo 18”, comenta o produtor
indígenas. Voltando à Comissão Nacional de In-
cultural Jul Leardini. Dessa forma, algumas
centivo à Cultura, caberá a ela vencer o desafio
áreas da cultura que se situem fora dessa
de definir critérios que realmente beneficiem a
cobertura forçosamente sofrerão um processo
população, ainda desassistida no que diz respeito
de “desdemocratização”, avalia. Leardini apon-
ao acesso à cultura, e agregar regiões onde as
ta como sendo um dos nós a atravancarem
manifestações culturais são raras, sem perder
o processo de captação a obrigatoriedade
de vista as regiões mais ricas e desenvolvidas.
de as empresas apresentarem o Imposto de Renda com base no lucro real, em vez do lucro presumido. Se assim fosse, acredita, seria
Zeca Corrêa Leite é poeta e jornalista cultural.
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t e c n o l o g i a e INO V A Ç Ã O
Uma ponte entre a academia e a empresa Heros Mussi Schwinden Fotos: Diego Singh e Bruno Stock
Na condição de profissionais recém-formados, Agentes Locais de Inovação levam soluções
Diego Singh
inovadoras para a micro e a pequena empresa
Fábrica de botas em Curitiba, apoiada pelo programa Agentes Locais de Inovação.
98 | semfronteiras
Em 2008, o Serviço de Apoio às Micro e Pequenas
clientes e outras funções. Nosso
Empresas (Sebrae) e a agência indiana National Small
empresário é um herói que, mesmo
Industries Corporation (NSIC) trouxeram para o Brasil
com uma estrutura enxuta, precisa
o programa Agentes Locais de Inovação (ALI). Hoje,
inovar para não morrer.”
o programa está presente no Paraná, Distrito Federal
Segundo ele, muitos destes
e mais nove Estados, onde empreendedores estão
empresários são resistentes a novos
conseguindo implantar inovações muitas vezes vitais
procedimentos e imaginam que, pa-
para a sobrevivência de suas empresas. O trabalho é
ra colocar em prática a inovação, é
feito por profissionais recém-formados — os agentes
necessário ter gastos que muitas
locais de inovação — que contam com o apoio estratégico
vezes vão além do orçamento. E é
de técnicos experientes, os chamados gestores.
justamente nesse ponto que entram
Baseado no Manual de Oslo — documento de 1990
em ação os agentes locais. Deno-
da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
minados ALIs, esses profissionais
Econômico (OCDE) que orienta e padroniza conceitos,
funcionam como um elo entre
metodologias e construção de estatísticas e indicadores
os provedores de soluções e a
de P&D —, o programa difunde a crença de que inovação
pequena empresa.
não está atrelada apenas à compra de máquinas ou
Os
agentes
acompanham
Desde 2008, os agentes atenderam mais de 1.300 empresas no Paraná. O objetivo é atender 1.500 empreendimentos nos segmentos que detêm o maior número de empresas — construção civil, vestuário e agronegócio — até junho.
a
implementação
a “saltos tecnológicos” dados muitas vezes à força.
dessas soluções de acordo com as necessidades e
Ela, de fato, pode estar nas mãos e nos cérebros dos
características de cada negócio. Do início do programa
agentes locais de inovação, capazes de, com auxílio
até o segundo semestre de 2009, mais de 270 agentes
de profissionais mais experientes, introduzir nos
foram capacitados para atuar nos Estados que recebem
negócios inovações de produto, processos, marketing e
o programa, para atender quase seis mil empresas.
organização e estrutura.
Líder na capacitação de ALIs e no atendimento de empresas, o Paraná, junto com o Distrito Federal,
Questão de hábito
Espírito Santo e Rio Grande do Norte, foi um dos Estados
Para Olávio Schoenau, diretor responsável pela
que receberam a primeira edição do programa. Para
unidade de Desenvolvimento de Soluções Inovação
viabilizar a contratação de 30 agentes, o Sebrae Paraná
e Tecnologia do Sebrae Paraná, as grandes e médias
estabeleceu uma parceria com a Secretaria de Estado
empresas estão habituadas a inovar e têm consciência
da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior do Paraná
de que, se não o fizerem, tendem a perder espaço para
(SETI) por meio da Fundação Araucária, que financia as
a concorrência. “Nas micro e pequenas empresas, o
bolsas mensais de R$ 2 mil dos agentes. Desde 2008,
empresário é a empresa. Ou seja, tudo está nas costas
os ALIs já atenderam mais de 1.300 empresas em todo
dele — compras, vendas, cobrança, prospecção de
o Estado. O objetivo é chegar a 1.500 empreendimentos
semfronteiras |
99
Bruno Stock
Agentes Locais de Inovação participam de capacitação periodicamente.
nos segmentos que detêm o maior número de empresas
eles tiveram acesso ao conhecimento de disciplinas
— construção civil, vestuário e agronegócio — até o
empresariais como Competências Relacionais, Estrutura
encerramento do primeiro semestre de 2010, quando
Organizacional, Técnicas de Negociação e Situação
termina a primeira edição do programa.
das Micro e Pequenas Empresas no Brasil. Após esta introdução ao mundo do empreendedorismo, os agen-
Entrando em campo Todos os agentes locais de inovação selecionados pelo Sebrae têm curso superior nas áreas ligadas aos setores econômicos de sua atuação e estão formados há no máximo três anos (independente da idade). Outro fator indispensável para o ALI é que ele more na região onde as empresas assistidas estejam localizadas. A familiaridade com os hábitos e costumes locais facilita a relação entre agentes e empresários. No Paraná, por exemplo, o Sebrae dividiu o Estado em 17 territórios. Semelhantes em termos sociais e econômicos, esses territórios abrangem mais de 50 municípios. Dentre
tes cumprem cinco etapas junto ao empresariado: sensibilização, adesão, diagnóstico, plano de trabalho e grau de mensuração. Inicialmente, o empresário é convidado para workshops e palestras sobre inovação. Após a sensibilização, as empresas que desejarem fazer parte do programa recebem a visita do ALI, que prepara um diagnóstico de inovação e sugere o que pode ser melhorado em seu negócio. Durante os dois anos, os ALIs também atuam como articuladores junto a instituições e empresas que podem suprir demandas do negócio.
eles estão Curitiba e sua região metropolitana e
Entre 2010 e 2012, o Sebrae pretende investir mais de R$
também os localizados nas regiões Norte, Noroeste e
24 milhões para capacitar mais 330 agentes e atender
Sudoeste do Estado.
mais 16,5 mil empresas em todo o país. No Paraná, o
Antes de irem a campo, todos os agentes passaram por uma capacitação inicial de 198 horas. No aprendizado,
100 | semfronteiras
programa continua e deve prosseguir com a inclusão dos segmentos de metalurgia e turismo.
Ajuda montanha acima microempresários contam como transformaram uma paixão em um negócio lucrativo Amante do montanhismo, o empre-
cinco anos, ele decidiu investir em um
sário curitibano Fábio Monroe diz nunca
negócio que tivesse relação com a sua
ter conquistado uma grande montanha,
paixão e criou em Curi-
dessas que vez por outra aparecem
tiba uma pequena fábrica
em programas como os da National
de botas para a prática
Geographic. Mesmo assim, já se aventurou
do esporte. Hoje, além
por montanhas locais — há alguns meses,
de atender montanhistas
venceu os 1.877 metros do Pico Paraná,
amadores e profissionais,
ponto extremo do relevo paranaense
a Botas Nômade possui
localizado na Serra do Mar — e diariamente
revendas em 11 Estados
vence um desafio que demanda igual
e fornece calçados para
coragem: o de empreender. Há mais de
grupos policiais de elite
Diego Singh
Incorporação de uma agente local de inovação trouxe melhorias à linha de produção da Botas Nômade, que incorporou um software 3D no setor de produção de moldes.
Fábio Monroe criou uma fábrica de botas para montanhismo que hoje tem revenda em 11 Estados.
semfronteiras |
101
Diego Diego Singh Singh
no Paraná e São Paulo, que, aliás, já representam 70% do seu faturamento. O sucesso da empresa, que conta com 22 funcionários, também passa pela atuação da Agente Local de Inovação Thatyana Kishida. Formada em Desenho Industrial pela Pontifícia Universidade
Católica
do
Paraná,
Thatyana
atende 50 empresas — em sua maioria, pequenas confecções de uniformes escolares, lingerie e moda praia. Segundo ela, a grande maioria das empresas não tem cultura de empreendedorismo. “Muitas das confecções que atendo usam a mesma mesa para cortar os tecidos e para servir o jantar dos proprietários”, conta. “Para a maioria falta controle financeiro, controle de estoque, marketing e todas as ferramentas que uma empresa precisa para crescer.” Diante dessa
102 | semfronteiras
Após a ajuda do programa, a estilista Karla Pereira viu o faturamento da sua loja dobrar.
realidade, Thatyana procurou sugerir a aplicação de
abrir uma loja para revender peças de sua própria marca.
medidas simples como, por exemplo, o controle de gastos
Nos primeiros nove meses, a empresária de primeira
e aplicação de uma planilha financeira.
viagem teve dificuldades e quase viu seu sonho acabar.
Em empresas mais estruturadas, caso da Botas
As coisas começaram a mudar a partir da atuação de
Nômade, Thatyana está conseguindo implantar soluções
outra estilista — uma agente local de inovação. Formada
mais avançadas como uso de softwares e a retirada de
em Estilismo de Moda e Confecção Industrial, Michelle
certificados que permitam à empresa conquistar novos
Gazabin Servian começou a atender a Hype Bazar há
mercados. A designer atende a fábrica há pouco mais
oito meses e, de início, detectou uma série de pequenos
de oito meses e já se orgulha dos resultados. “Quando
problemas no estabelecimento.
cheguei, todos os moldes eram recortados à mão, e os
Segundo seu diagnóstico, um dos motivos de a
defeitos apareciam só depois de o produto estar pronto.
loja ter faturamento baixo era a localização, em um
Com a implantação de um software 3D, conseguimos
ponto com pouco fluxo de pedestres. Para piorar, a
antecipar os problemas no computador.”
entrada física ficava escondida. Já estabelecida em novo
Além da satisfação de contribuir para o crescimento de microempresas, Thatyana se diz satisfeita de fazer
endereço, Karla atendeu outra sugestão de Michelle e, agora, revende peças de outras marcas.
parte do ALI. “Hoje, eu tenho uma visão geral do que é
De acordo com Karla, além de implementar o
ser um empreendedor. A quantidade de conhecimentos
planejamento e os controles de caixa e estoque com a
que absorvi no programa vai me permitir, um dia, ter o
ajuda da agente local de inovação, ela também acabou
meu próprio negócio”, planeja.
conhecendo fornecedores e materiais. “O programa trouxe profissionalismo para o meu negócio”, sintetiza.
Profissionalismo Outro case é o da loja Hype Bazar, de Curitiba. Há pouco mais de um ano, a estilista Karla Pereira decidiu
O resultado é que, nos últimos três meses, a loja dobrou o faturamento, e já se prepara para ampliar a produção em 2010.
Alguns números do Programa Agentes Locais de Inovação √ 5,8 mil empresas atendidas no Brasil, das quais 1,3 mil no Paraná. (*) √ 270 agentes capacitados, dos quais 30 no Paraná. √ 100 gestores técnicos capacitados em todo o país. √ Idade média dos agentes de inovação: entre 23 e 25 anos. √ De cada 10 agentes, sete são mulheres. √ No Paraná, já foram realizados 560 diagnósticos em empresas. (*) O Brasil possui 4,6 milhões de empresas, das quais 98% são de micro ou pequeno porte. Fonte: Sebrae, 2009
Saiba mais: National Small Industries Corporation (em inglês) www.nsic.co.in
Manual de Oslo (versões em português e inglês) www.mct.gov.br/index.php/content/view/4639.html
semfronteiras| |103 103 semfronteiras
Um saboroso caminho civilizatório Rodrigo Wolff Apolloni
Paraná investe em tecnologia e na democratização do conhecimento para se colocar na vanguarda da produção de leite e queijos
104 | semfronteiras semfronteiras
Divulgação Laticínio Anila
t e c n o l o g i a e INO V A Ç Ã O
Certos produtos, em especial os alimentares, podem
taria de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior
funcionar como índices civilizatórios, na razão em que sua
(SETI) e a província de Rhône-Alpes (Ródano-Alpes), do
produção espelha a evolução de uma comunidade. O queijo
Sudoeste da França. A região, explica o coordenador da
é um deles. Sua confecção, afinal, demanda o domínio da
Escola Tecnológica de Leite e Queijos dos Campos Gerais,
pecuária e o desenvolvimento de processos de cultivo
Alessandro Nogueira (perfil nas páginas 98 e 99), mos-
e armazenamento. Demanda, enfim, uma percepção
trou interesse em transferir conhecimentos aos produtores
diferente da natureza e a internalização de saberes que
paranaenses, que podem se tornar parceiros na produção
se convertem em técnica e ciência. Ao longo dos séculos,
industrial.
aliás, a relação entre queijo e civilização aprofundou-se –
Segundo ele, esse interesse se justifica pelo fato de
temos dezenas de tipos de queijos e muitas são as formas
o mercado europeu de queijos finos estar estagnado, e
e as ocasiões em que eles são consumidos.
pela percepção de que o Paraná – em especial, em regiões
A França é um caso ilustrativo do que acabamos de
leiteiras como as de Castro, Carambeí, Palmeira, Arapoti e
afirmar: nos últimos vinte séculos, dos gauleses aos nossos
Ponta Grossa – possui padrões de produção semelhantes
dias, essa civilização cultivou queijos como nenhuma
aos franceses. “Essa transferência
outra. E desenvolveu tradições e uma enorme quantidade
de conhecimentos representa um
de conhecimentos científicos relacionados ao tema.
ganho
fantástico.
Os
franceses
O ‘novo consumidor’, crítico e de melhor poder aquisitivo, é uma das apostas da Escola de Queijos.
A jovem civilização paranaense também “se iniciou”
fizeram a passagem de um esquema
no ciclo do leite, e em grande estilo: segundo dados
tradicional de produção para um
do IBGE (2007), o Estado é o terceiro maior produtor
novo patamar há cerca de vinte anos
nacional, atrás de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul,
e sabem perfeitamente o que funciona”, avalia Nogueira.
em um país que já é o quinto maior produtor mundial. O
Há, também, a percepção de que a sociedade
rebanho leiteiro paranaense é de 2,8 milhões de cabeças,
brasileira está amadurecendo para o consumo: o poder
distribuídas entre 114,5 mil produtores. A produção média
aquisitivo vem aumentando e, com isso, surge o desejo
no Estado é de 10,9 litros por animal/dia, o dobro da média
de consumir mais e melhor. E a parceria com os franceses
nacional. E mais da metade dessa produção (55,3%) é
ainda fortalece os pequenos e médios produtores. Quando
sustentada por pequenos produtores, com produção de
essas pessoas se especializam, ganham em termos
até 50 litros/dia.
econômicos e institucionais, já que são estimuladas a
O setor, porém, enfrenta desafios, como a discrepância
trabalhar para oferecer produtos atraentes ao consumidor.
de produtividade entre produtores e a desigualdade
O coordenador da Escola Tecnológica de Leite e
de desenvolvimento entre as dez regiões leiteiras.
Queijos dos Campos Gerais explica que a parceria com os
Questões que podem ter uma resposta na produção de
franceses funciona a partir da troca de conhecimentos
queijos – processo que alia técnica, melhoramento dos
técnicos, idas e vindas de professores e estágios na França.
padrões de qualidade do próprio leite, fortalecimento da
As passagens e as bolsas são pagas pelos governos dos
pequena agroindústria e a receptividade de um mercado
dois países. Em novembro do ano passado, aliás, um
consumidor cada vez mais interessado em produtos
importante pesquisador francês – David Jouve, diretor
sofisticados. É exatamente aí que entram os franceses – e a
adjunto da Escola Nacional das Indústrias do Leite e
Escola Tecnológica de Leite e Queijos dos Campos Gerais.
Carnes (ENILV) – participou do I Workshop Internacional Sobre Leite e Queijos, promovido dentro do primeiro curso
Muito além do queijo prato
promovido pela Escola. “Já os investimentos materiais,
A possibilidade de criação de um centro para o
na miniusina e laboratórios da Escola, foram feitos pelo
fomento de técnicas no segmento de laticínios surgiu em
Governo do Estado. O projeto, aliás, tem forte apoio do
2007, com a assinatura de um convênio entre a Secre-
governador”, observa Alessandro Nogueira.
semfronteiras |
105
Marílson de Paula
Alunos aprendem as técnicas de fabricação de queijos finos.
de leite de vaca por dia, vendidos para grandes indústrias.
Primeiros passos Em 2009, a Escola promoveu sua primeira atividade,
“No futuro, será possível processar essa produção nos
o Curso de Extensão em Fabricação de Queijos, que reuniu
assentamentos. Isso graças, em grande parte, a essa apro-
uma turma de vinte alunos – produtores, representantes
ximação com a universidade”, afirma. “Hoje, milhões de
da indústria, pesquisadores e fiscais sanitários. Com oito
brasileiros ganharam condições de consumir. Esse é o
módulos e 112 horas-aula, abrangeu temas como “Bioquímica
nosso público”, diz Célio Rodrigues.
do Leite e análises físico-químicas. Boas práticas de fabricação.
Análises
microbiológicas;
Sanitização
A tecnóloga em alimentos Mariângela Gach é
da
responsável pelo controle de qualidade da Anila, empresa
Indústria de Laticínios”, “Queijos azuis (Tipo Roquefort e
de porte médio (18 funcionários e processamento de sete
Tipo Gorgonzola)”, “Análise Sensorial de Queijos. Defeitos
mil litros de leite/dia) situada em Fernandes Pinheiro.
em queijos” e “Instalação de queijaria; Legislação.
Segundo ela, o curso fornece respostas a questões
Tratamento e valorização de resíduos da indústria queijeira.
estratégicas, como a relativa ao aspecto sensorial dos
Embalagens”. As aulas foram ministradas por professores
queijos. “É essencial que os queijos mantenham o padrão
da própria UEPG e também da Universidade Federal
em termos de cor, sabor e textura. Isso só é possível quando
Tecnológica do Paraná (UTFPR).
a empresa trabalha com um padrão de qualidade.” Em um
Célio Leandro Rodrigues, coordenador do MST nos
primeiro momento, os conhecimentos permitirão reforçar
Campos Gerais que trabalha com agroindustrialização,
a qualidade dos queijos prato, mozzarella e dos frescais
foi um dos participantes. Segundo ele, uma das metas do
produzidos pela Anila.
movimento é levar a agroindústria aos assentamentos, dar melhores condições de vida aos agricultores e facilitar
Vanguarda
a inserção dos mais jovens na cadeia produtiva. “O curso
Em 2010, a perspectiva da Escola é se consolidar e
é excelente. Nós percebemos um engajamento, por parte
colocar o Paraná na vanguarda do setor de leite e queijos.
dos professores, em relação aos pequenos produtores.
“Queremos transformar os Campos Gerais em polo nacional
Eles sabem o valor do trabalho que estão realizando para
de conhecimento, produção e qualidade”, diz Alessandro
melhorar a vida dessas pessoas”, pondera.
Nogueira. Ele lembra que as primeiras ações da Escola
Atualmente, os assentamentos rurais de Castro, Ponta
despertaram o interesse de técnicos e empresas de todo o
Grossa, Teixeira Soares e Palmeira produzem vinte mil litros
país. Várias empresas — fornecedoras de micro-organismos
106 | semfronteiras
e aditivos –, inclusive, se tornaram parceiras do projeto. “Elas perceberam a seriedade e as perspectivas do trabalho.” Segundo Alessandro, a Escola pretende seguir um
Elevação do queijo à condição de “produto titular” representa mudança de paradigma no setor leiteiro.
modelo adotado com sucesso pelos franceses na ENILV, que capacita pessoas e atende as indústrias. “Teremos condições
queijos é associada aos excedentes de produção. Com
de receber as demandas e oferecer cursos especiais para
a elevação do queijo a um novo patamar de interesse,
as próprias empresas”, explica. Outra perspectiva é a de
o leite será destinado diretamente à produção.” Essa
criação de um curso de especialização voltado à produção
conversão de “produto reserva” para “produto titular”,
de leite e queijos. Ele deverá ter início tão logo o espaço
por si só, tende a sofisticar o olhar dos produtores.
físico da Escola – uma área de quinhentos metros quadrados
Isso porque a produção de queijos de boa qualidade –
dentro do Campus Uvaranas da UEPG – esteja disponível.
mesmo dos mais comuns – pede leite de qualidade
Em médio prazo, a perspectiva da universidade é oferecer
superior. “Quando falamos em leite de qualidade,
um doutorado em Ciência e Tecnologia dos Alimentos.
estamos observando coisas como sanidade animal, alimentação do gado, higiene na captação, conservação e transporte, teor de gordura adequado e controle de
Queijo: de “reserva” a “titular” Na razão em que a produção de queijos de boa
células somáticas“, explica Mezzadri. Em síntese: em um
qualidade pede leite de boa qualidade – cada quilo de quei-
cenário que exige maior controle, o leite e todos os seus
jo demanda, em média, entre oito e dez litros de leite –,
derivados acabarão beneficiados.
o avanço do setor queijeiro no Paraná deverá contribuir
Fábio Mezzadri também vê com bons olhos o
para a melhora da cadeia produtiva. Essa é a avaliação
interesse dos pequenos produtores pela Escola de Leite
do médico veterinário Fábio Mezzadri, da Secretaria de
e Queijos dos Campos Gerais. “A agregação de valor
Estado da Agricultura e Abastecimento (SEAB), autor do
à produção pode, de fato, levá-los a um novo patamar
documento “Análise da Conjuntura Agropecuária – Safra
de produtividade, qualidade e ganhos de mercado”,
2009/2010 – Leite”, publicado em outubro de 2009.
avalia. Pode, também, reduzir o peso do leite em pó na conta dos produtores e reduzir os riscos associados à
de produto de interesse estratégico poderá determinar
superoferta do produto, que deprime os ganhos e pode,
uma mudança de paradigma no setor. “Hoje, a produção de
mesmo, fazer com que a produção se inviabilize.
Bruno Stock
Segundo Mezzadri, a elevação do queijo à condição
Formatura da primeira turma da Escola Tecnológia de Leite e Queijos dos Campos Gerais.
semfronteiras |
107
108 108 || semfronteiras semfronteiras
semfronteiras semfronteiras|| 109 109
110 | semfronteiras
semfronteiras |
111
perfil
Cientista de queijos e vinhos Rodrigo Wolff Apolloni Foto: Bruno Stock
Alessandro Nogueira, engenheiro agrônomo e coordenador da Escola de Leite e Queijos dos Campos Gerais.
112 | semfronteiras
Um aspecto significativo para o universo
dose extra de afeto por parte do pesquisador. O
científico, tanto nas ciências humanas quanto
que dizer, por exemplo, de quem pesquisa queijos
nas ciências “duras”, diz respeito à proximidade
ou a produção de vinhos? Não seria esta quadra
entre o pesquisador e o seu objeto de estudo.
da ciência, enfim, a mais carregada de aromas,
Em princípio, afirmam filósofos da ciência,
sabores e de uma proximidade com veneráveis
os estudos tendem a ser menos traumáticos
costumes e formas de sociabilidade?
quando o cientista mantém uma relação de
Pois em sua carreira acadêmica, o coor-
proximidade crítica em face do objeto, sem amá-
denador da Escola de Leite e Queijos dos Campos
lo excessivamente ou, pelo contrário, odiá-lo.
Gerais, Alessandro Nogueira, se aproximou tanto
Algumas áreas, porém, parecem carregar uma
dos queijos quanto dos vinhos. Engenheiro
agrônomo formado pela Universidade Estadual
R$ 200 mil para o início das atividades. Em maio do
de Ponta Grossa (UEPG) em 1998, ainda em 1996
ano seguinte, com os equipamentos comprados, a
ele iniciou um estágio de iniciação científica na
Escola começou a funcionar.
área de Ciência e Tecnologia dos Alimentos. Dois anos depois, na conclusão da graduação, estagiou
À Table
durante três meses no Institut National de la
Para Alessandro, por-
Recherche Agronomique (INRA), na França, e, em
tanto, os queijos acabaram
1999, foi aprovado diretamente para o Programa
confirmando o status de
de Doutorado em Bioprocessos Agroindustriais da
acompanhamento
Universidade Federal do Paraná (UFPR).
para os vinhos, tanto à
perfeito
Parceiros ideais na gastronomia, queijos e vinhos também funcionam harmoniosamente no campo de Ciência e Tecnologia dos Alimentos. A experiência de Alessandro Nogueira é a melhor prova disso.
Em 2001, obteve uma bolsa de doutorado
mesa quanto na bancada
sanduíche de doze meses para a França e retornou
do laboratório. “Os dois
ao INRA. Em sua tese, obtida em 2003, estudou
produtos realmente andam
a tecnologia de processamento da sidra, bebida
juntos”, sorri. “Ministro aulas no mestrado desde
alcoólica preparada a partir do sumo fermentado
2005 na disciplina de Bioprocessos e Alimentos
da maçã e muito popular em regiões como a
Fermentados. Pelo menos oito horas-aula são
Normandia. No mesmo ano, obteve uma bolsa de
destinadas ao processamento de queijos e uma
recém-doutor do CNPq (atual pós-doutor júnior)
carga horária semelhante é dedicada aos vinhos.”
na área de Ciência e
Além disso, confessa, os dois anos passados na
Coordenador da
Tecnologia de Alimentos a
França fizeram dele um grande apreciador dos dois
Escola de Leite
ser desenvolvida na UEPG
produtos. “Essa aproximação facilita muito na ho-
e Queijos dos
e, em 2005, uma bolsa
ra de falar sobre os temas, que, aliás, naturalmente
Campos Gerais
do programa PRODOC da
despertam muito interesse dos alunos.”
também é expert
Capes para pesquisa na
Autor de 40 artigos publicados em veículos
em vinhos.
mesma linha de trabalho
científicos brasileiros e internacionais e de dois
na mesma universidade.
capítulos de livros (outros dois capítulos devem
Foi quando recebeu um convite para participar do
ser publicados em breve), ele se diz muito animado
corpo de professores do mestrado em Ciência e
com uma experiência adquirida recentemente,
Tecnologia de Alimentos da própria UEPG. Em 2007,
graças ao trabalho com a Escola de Leite e
ingressou no corpo docente do Departamento de
Queijos dos Campos Gerais. “Sempre gostei de ser
Engenharia de Alimentos da instituição através de
pesquisador, mas confesso que não tinha muito
concurso público e dois meses depois foi convidado
contato com o setor industrial ou com extensão.
a elaborar o projeto da Escola Tecnológica de Leite
Com o projeto e implantação da Escola, mesmo
e Queijos dos Campos Gerais.
com todo o trabalho, estou me sentindo feliz
O desenvolvimento do projeto demandou
e realizado profissionalmente”, afirma. “Como
uma nova estada na França (outubro de 2007),
o curso de fabricação de queijos foi de longa
onde conheceu as tecnologias de processamento
duração, tivemos a possibilidade de conhecer as
de diferentes tipos de queijo — como reblochon,
necessidades dos produtores e aprendemos muito
abundance, raclette e tomme de savoie — e as
com eles, pois eles têm conhecimentos práticos
formas de aproximação feitas entre as instituições
que nós, como professores e ainda do primeiro
de ensino, os produtores e as indústrias. O projeto
curso, não tínhamos. Em nosso primeiro curso,
foi entregue em fevereiro de 2008 e recebeu da
acredito que foi uma troca mútua, passamos
Secretaria de Estado da Ciência, Tecnologia e
conhecimento teórico e recebemos conhecimen-
Ensino Superior do Paraná (SETI) um aporte de
to prático.”
semfronteiras semfronteiras|| 113 113
N O T í c i a S d e C&t •
mundo
Blogueiros de ciência Célio Yano Ilustração: Simon Ducroquet
Muitos pesquisadores já recorrem a blogs para antecipar resultados de estudos A
divulgação
científica,
atividade
que
busca
popularizar o conhecimento acadêmico entre o público
trabalho de seu grupo de pesquisa que fez uma contagem inédita do número de neurônios do cérebro humano.
leigo, não é mais a mesma. Basta fazer uma pesquisa na internet para perceber como nos últimos anos os temas
Science Blogs
“científicos” têm entrado cada vez mais em pauta nas
Entre nós, 30 blogs de ciência se reúnem na rede
discussões. Nem é mais tão raro ouvirmos nossas crianças
ScienceBlogs, iniciativa internacional nascida em 2008 no
debatendo assuntos como aquecimento global ou ar-
Brasil. A partir do momento em que o diário virtual de um
queologia à mesa do jantar. Não foram, porém, apenas
pesquisador se destaca na internet, e desde que atenda
as novas tecnologias as responsáveis por esse interesse,
aos critérios de qualidade, é convidado a fazer parte do
tampouco a imprensa, mas os próprios pesquisadores,
condomínio. Uma forma de ajudar o autor a divulgar seu
que “deixaram o casulo” para interagir com as demais
trabalho e de ampliar para os leitores o leque de páginas
pessoas por meio de blogs, sites e redes sociais.
recomendáveis.
Especialmente nos Estados Unidos, o crescimento
O biólogo Carlos Hotta, um dos coordenadores do
no número de blogs desenvolvidos por cientistas ocorre
ScienceBlogs, aponta duas conclusões importantes a que
paralelamente a uma crise no jornalismo científico,
chegou ao longo dos dois anos e meio em que posta em
segundo reportagem da revista Nature de março de
sua página pessoal. A primeira é de que os cientistas que
2009. Conforme a publicação, por conta da redução no
lançam mão das novas ferramentas digitais não estão
número de jornalistas, os cadernos de ciência têm per-
“falando com as paredes”. Do outro lado, há pesquisa-
dido espaço na imprensa. A consequência é que o menor
dores que utilizam esses meios para se manter informados
número de profissionais de mídia acaba tornando-se cada
a respeito de suas áreas de conhecimento. “Pelo blog,
vez mais dependente das informações divulgadas pelos
recebo contatos de vários cientistas interessados em
próprios pesquisadores. Desse processo é que resultaria a
fazer colaborações. Eles acham o blog, têm uma ideia
proliferação dos cientistas blogueiros.
de como é minha personalidade, meu perfil, e se sentem
No Brasil não há um estudo que indique uma redu-
confiantes em se comunicar comigo”, explica.
ção de quadros ou do espaço reservado ao jornalismo
Por outro lado, o público leitor não é formado apenas
científico. Mesmo assim, é notável o número cada vez
por “pares”, como se diz na linguagem acadêmica, embora
maior de pesquisadores que recorre a blogs, inclusive
haja uma notável segmentação. “Há uma porcentagem
para antecipar resultados de estudos. Um exemplo é a
muito alta de graduandos e estudantes de pós-graduação,
neurocientista Suzana Herculano-Houzel, da Universidade
e uma visitação muito significativa de pessoas com mais
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que, no ano passado,
de 30 anos”, diz Hotta sobre seu blog. “Difere bastante do
anunciou em seu blog, em primeira mão, a publicação do
público da internet como um todo.”
114 114 || semfronteiras semfronteiras
qual até mesmo a reprodução de todo o conteúdo é gratuita, com a condição de que o autor seja citado. Publicações historicamente consolidadas como a Nature ou a Science cobram algumas centenas de dólares por uma assinatura anual. No caso da PLoS, o financiamento vem do autor dos trabalhos científicos, e a gratuidade do acesso acaba levando a um público muito maior de leitores. Mas talvez a maior mudança na difusão científica atual em relação ao que se via há menos de uma década seja o espaço para comentários que publicações digitais como as da PLoS ou a British Medical Journal disponibilizam — uma forma de avaliação do trabalho, além da revisão prévia por pares. A interatividade é o núcleo do desenvolvimento da ferramenta Reflect, da Cell Press. Ainda em fase beta (experimental), os artigos publicados no sistema oferecem links para cada uma das referências, palavras-chave destacadas, um menu de índice que permite a navegação Para o blogueiro, a audiência crescente do ScienceBlogs — hoje, a média é de 250 mil pageviews
rápida para cada trecho do trabalho, além de imagens em alta resolução, comentários e artigos sobre temas relacionados.
(visualizações) mensais — é um sinal claro de que
Se a descrição pareceu próxima à de um conteúdo
mudanças estão ocorrendo. Aí sim entra uma parte
jornalístico publicado na internet, não foi por acaso: a mu-
importante dos blogs, que traz uma história mais
dança de publicações científicas para plataformas multimídia
especializada. “Mas não é que os blogs estejam
dominadas até recentemente pela imprensa parece ser uma
acabando com o jornalismo de ciência”, avalia. “A
tendência. Em artigo publicado na Nature, o repórter Geoff
ideia do blog é trazer um conteúdo mais aprofun-
Brumfiel relata um episódio protagonizado pelo pesquisa-
dado do que o daqueles jornalistas que apenas
dor em Bioinformática Lars Jensen, da Universidade de
replicam press releases, por exemplo, e que têm se
Copenhague, que prova isso. Com uma câmera digital, um
tornado cada vez mais comuns nas redações. Apenas
laptop e um palmtop, Jensen relatou ter capturado ima-
ocupamos um espaço que está sendo aberto.”
gens de uma apresentação realizada em um encontro de pesquisadores da área e, em tempo real, ter publicado o
Entre pares
material na internet.
Paralelamente às mudanças que ocorrem na
A “cobertura” do evento não havia sido planejada, mas
divulgação científica, a comunicação em ciência
acabou gerando enorme repercussão na rede, principalmen-
entre os próprios pesquisadores — a chamada
te entre pesquisadores da área. “Para tecnófilos e adeptos
difusão científica — também passa por uma es-
da abertura científica, esta é a tendência do futuro”, afirmou
pécie de evolução diante do advento de novas
Brumfiel.
tecnologias. Além dos periódicos tradicionais, hoje os pesquisadores podem disseminar de forma mais eficiente os resultados de suas pesquisas, por meio de organizações como a Public Library of Science
Saiba mais: ScienceBlogs (Brasil) — scienceblogs.com.br ScienceBlogs (internacional) — scienceblogs.com Public Library of Science (PLoS) — www.plos.org
(PLoS), que mantém a publicação de sete journals,
Nature (site da revista) — www.nature.com
revisados por pares mas que têm acesso livre aos
Science (site da revista) — www.sciencemag.org
conteúdos pela internet. A filosofia seguida é a
British Medical Journal — www.bmj.com
Creative Commons Attribution License, segundo a
Reflect (Cell Press) — beta.cell.com/index.php/2009/11/reflect/
semfronteiras |
115
N O T í c i a S d e C&t •
mundo
Biblioteca Digital Mundial Unesco e parceiros realizam aspiração universal de biblioteca da humanidade
Está disponível na internet
trabalhos de cientistas árabes desvelando o mistério da álgebra; ossos utilizados
desde abril de 2009 a Biblioteca
como oráculos na China; a Bíblia de Gutenberg; antigas fotos latino-americanas
Digital Mundial (BDM), que reú-
da Biblioteca Nacional do Brasil; e a célebre “Bíblia do Diabo”, do século XIII, da
ne mapas, textos, fotos, grava-
Biblioteca Nacional da Suécia. (RR)
ções e filmes e explica, em sete idiomas — entre os quais
Saiba mais: www.wdl.org
o português —, as relíquias culturais de todas as biblioteDiego Gutiérrez / Biblioteca Mundial
cas do planeta. O projeto é da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) e de outras 32 instituições. O acervo inicial da BDM é de 1.200 documentos, mas, como é característico das boas bibliotecas, não há limite para a recepção de obras. Entre os exemplares mais antigos estão códices pré-colombianos e os primeiros mapas da América, desenhados por Diego Gutiérrez para o rei de Espanha em 1562; o “Hyakumanto darani” (“Um Milhão de Pagodes e Crentes Darani”), documento japonês de 764 que é considerado a mais antiga peça impressa (com matrizes produzidas em blocos de madeira); um relato asteca que traz a primeira menção feita ao Menino Jesus no Novo Mundo;
Um dos primeiros mapas da América (1562), então chamada de “a quarta parte do mundo”.
116 | semfronteiras
Foram identificadas duas molémalária que podem permitir uma vacina contra a doença, que mata
Sopa subatômica de 4 trilhões de graus Celsius
mais de um milhão de pessoas por ano no mundo.
Uma temperatura de 4 trilhões de graus Celsius foi atin-
A descoberta foi feita por
gida no colisor de partículas RHIC (Relativistic Heavy Ion
pesquisadores do Instituto Walter e
Collider), do Laboratório Nacional de Brookhaven, em Upton,
Eliza Hall de Pesquisas Médicas, de
Estados Unidos, quebrando o recorde de temperatura em um
Melbourne (Austrália), e publicada
experimento.
no periódico “PLoS Medicine”, em janeiro deste ano.
A equipe usou o acelerador de 3,86 km para colidir íons de ouro a uma velocidade próxima à da luz, criando um “plasma
Após analisar 33 casos de pes-
de quarks e glúons”, estado da matéria, também apelidado de
soas que ficaram imunes à malária
“sopa de quarks”. Este estado é formado quando a temperatura
depois de sofrer a doença, a equipe
extremamente alta é suficiente para “derreter” os prótons e
descobriu que dois antígenos —
nêutrons que formam o núcleo atômico, permitindo que quarks
MSP-3 e MSP-119 — provocavam anti-
e glúons, subpartículas nucleares, vaguem livres. Acredita-se
corpos particularmente poderosos
que esse era o estado da matéria que constituía o universo no
nos pacientes, os protegendo em
primeiro milionésimo de segundo após o Big Bang, antes mes-
54% e 18% de novos episódios da
mo do surgimento de prótons e nêutrons no cosmo.
doença, respectivamente.
A temperatura atingida foi mais alta do que qualquer uma
A dificuldade de se produzir
conhecida no universo, mais alta mesmo que a de uma explosão
uma vacina contra a malária é que
de supernova. Como comparação, a temperatura atingida é 250
o parasita é muito diverso, e tem
mil vezes mais quente que o núcleo do Sol, que chega a 15,7
muitos antígenos em sua superfície.
milhões de graus Celsius.
Diferente de sarampo, que com uma
Com o estudo da sopa de partículas subatômicas criadas
infecção a pessoa está imune para
pelo RHIC, os pesquisadores esperam compreender melhor o que
sempre, com a malária, são neces-
ocorreu nos primeiros instantes após o Big Bang, há 13,7 bilhões
sárias várias infecções para a pessoa
de anos. (HM)
desenvolver uma imunidade de longo prazo, suficiente para todos os
Divulgação / Brookhaven National Laboratory
Elementos-chave para uma vacina contra a malária
culas superficiais do parasita da
antígenos do Plasmodium, parasita que causa a doença. (HM)
Ute Frevert / Wikimedia Commons
Fêmea de Anopheles albimanus, um dos transmissores da malária.
Simulação da colisão de dois íons de ouro.
semfronteiras | 117 semfronteiras | 117
N O T í c i a S d e C&t •
brasil
Superpredador gaúcho Fóssil de carnívoro que viveu há 225 milhões de anos é encontrado no Rio Grande do Sul Adolfo Bittencourt / Instituto de Artes da UFRGS
Um predador pré-histórico que habitava o Brasil foi recentemente apresentado ao mundo: O Trucidocynodon riograndensis — cinodonte do Rio Grande do Sul que trucidava — era um carnívoro que viveu no período chamado Triássico Superior, há cerca de 225 milhões de anos, quando os dinossauros ainda começavam sua história na Terra. Os fósseis foram encontrados nas rochas da formação Santa Maria, no município de Agudo, a 200 km de Porto Alegre. A espécie foi descrita a partir de um esqueleto quase completo e de outros quatro exemplares incompletos, muito bem preservados. O estudo foi publicado, em fevereiro, no periódico internacional de
O Trucidocynodon riograndensis se assemelhava a um lobo. Todos os cinodontes do período Triássico Superior encontrados até então eram de pequeno porte.
taxonomia animal Zootaxa. Esse foi o primeiro cinodonte carnívoro de grande porte do Triássico Superior encontrado na região, de acordo com o paleontólogo Téo Veiga de Oliveira, que fez a descoberta dos fósseis juntamente com Marina Soares,
e não está ligado diretamente à origem dos mamíferos”, ressalta. A fera, que tinha mais de um metro de comprimento e pesava entre 15 e 20 kg, se assemelhava a um lobo.
Cesar Schultz e outros da equipe do Departamento de
Algumas características da dentição do Trucidocynodon
Paleontologia e Estratigrafia da Universidade Federal do
permitiram que os pesquisadores determinassem que ele
Rio Grande do Sul (UFRGS).
era um carnívoro: Todos os dentes tinham serrilhas e eram
Os cinodontes são um grande grupo de animais que
levemente curvados para trás. Os caninos eram muito
incluía herbívoros, carnívoros e insetívoros, surgidos cerca
grandes e não cabiam na boca quando ela estava fechada,
de 260 a 250 milhões de anos atrás. No Triássico Superior,
ficando expostos. Por fim, os dentes que ficavam atrás dos
eles eram um dos principais grupos de vertebrados. Foi
caninos se alinhavam como uma lâmina de tesoura.
um grupo de cinodontes de pequeno porte (do tamanho
Sua postura geral é a de um mamífero caçador.
de ratos) e insetívoros que deu origem aos mamíferos.
Diferente de lagartos, que se locomovem com o corpo
A diversidade dos cinodontes foi diminuindo durante
próximo ao chão, o carnívoro gaúcho tinha patas em
o Jurássico e o Cretáceo (períodos que sucederam o
posição ereta. O Trucidocynodon pode ter se alimentado
Triássico), com várias linhagens sendo extintas, exceto
de outros cinodontes, de pequenos dinossauros e muito
a dos mamíferos, explica Oliveira. “Por isso, é correto
provavelmente de filhotes de rincossauros (répteis de
dizer que os mamíferos são os únicos cinodontes vivos.
grande porte que eram o animal mais abundante do Triás-
Entretanto, o Trucidocynodon foi extinto ainda no Triássico
sico Superior). (HM)
118 | semfronteiras
Trem virtual Programa usa imagens de satélite para simular ferrovias Um sistema de realidade virtual para simulação
vagões, a geometria da via férrea e até a visualização
de trens está sendo desenvolvido para o treinamento
do ambiente com variações do dia e do clima. É possível
de maquinistas. O protótipo do sistema foi criado pelo
inserir à simulação eventos como chuva, fogo na cabine
Departamento de Engenharia Mecânica da Escola Po-
de comando, travessia de carro na linha e outras situações
litécnica (Poli) da Universidade de São Paulo (USP),
hipotéticas.
para a empresa mineradora Vale, que opera 9.863 km
Até hoje, os softwares usados com essa finalidade
de estradas de ferro. O projeto tem o objetivo de criar
eram importados, e não incorporavam tantas funcionalida-
uma tecnologia totalmente nacional de capacitação de
des. O simulador usa equipamentos comuns, normalmente
maquinistas, e deve ser concluído em 2010.
encontrados no mercado, como computadores com sistema
Além de ter menos custos por ser nacional, o sis-
operacional Windows ou Linux e conexões em rede. Essa
tema tem uma vantagem em relação aos importados: a
solução pode ser útil para outros sistemas de transporte,
simulação usa o georreferenciamento, ou seja, imagens
como as redes de metrô e de trens de passageiros, de acordo
de satélite que capturam a topografia real do terreno.
com o engenheiro mecânico Roberto Spinola Barbosa,
Dessa forma, é possível simular trajetos existentes e
coordenador do projeto na USP. “Esse conhecimento pode
ferrovias que ainda não foram construídas.
ser aplicado em outros sistemas que utilizem a realidade
A ferramenta reproduzirá o comportamento do trem por todo o trajeto da ferrovia. Durante a simulação,
virtual em imersão total para simulação de equipamentos em movimento dinâmico”, diz. Atualmente, o protótipo conta com 24 cabines de si-
próxima da realidade e vai experimentar situações com
mulação e oito cabines de supervisão. Está em andamento
as quais poderá se deparar na sua função. Todos os
o desenvolvimento de uma ferramenta multiplayer para o
sistemas que formam o trem serão simulados, como a
sistema, ou seja, durante a simulação, o maquinista poderá
tração e o freio dinâmico da locomotiva, a dinâmica de
ver outros trens que estejam no mesmo trecho. (HM)
Escola Politécnica USP
o profissional em treinamento terá uma imagem muito
Sistema usará imagens de satélites para criar uma simulação realista das estradas de ferro.
semfronteiras |
119
N O T í c i a S d e C&t + Paraná
Novos genes de uma doença antiga Jaqueline Bartzen
Pesquisadores identificam dois genes que podem estar ligados à manifestação da hanseníase Um estudo conduzido por pesquisadores da
genéticos, que explicam quase 100% da manifestação da
Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-
doença. Para se ter uma ideia, um habitante da localidade
PR) em plena floresta amazônica traz revelações
do sexo masculino, com 30 anos ou mais, que apresente a
significativas a respeito dos fatores genéticos que levam
variação genética de predisposição à doença, tem 80% de
à manifestação da hanseníase. A incidência da doença
possibilidade de ter hanseníase”, explica Mira. Segundo o
tem sido investigada em uma população de cerca de
bioquímico, a vila, localizada a cerca de 110 km da capital,
duas mil pessoas, isolada na vila Santo Antônio do
Belém, foi criada pelo governo para abrigar portadores de
Prata, em Igarapé-Açu, no Pará, e os resultados sugerem
hanseníase, cujo isolamento era obrigatório até a década
a existência de pelo menos dois novos genes ligados ao
de 60 do século passado. Muitos dos moradores do local
desenvolvimento da enfermidade.
manifestam ou já manifestaram a doença.
De acordo com o bioquímico Marcelo Távora Mira,
A hanseníase é uma doença que ataca o sistema
especialista em mapeamento genético de doenças com-
nervoso periférico. Os sintomas são: manchas na pe-
plexas e coordenador da pesquisa por meio do Programa
le — mais claras, avermelhadas ou pequenas bolhas —,
de Pós-Graduação em Ciências da Saúde da PUC-
áreas nas quais o indivíduo perde a sensibilidade à dor.
PR, há indícios de que variações de dois novos genes
Caso não seja precocemente diagnosticada e tratada,
podem predispor o portador a manifestar a doença.
leva à destruição de nervos, chegando à atrofia das
Curiosamente, esses genes localizam-se no braço longo
mãos e à perda de membros como dedos e orelhas. Os
do cromossomo seis, próximos ao Park2 (ou Parquina),
danos neurológicos são irreversíveis. O tratamento
gene já conhecido por sua ligação com a hanseníase. A
atualmente conhecido é baseado na combinação de três
previsão é de que os estudos sejam publicados no início
medicamentos que atuam na eliminação da bactéria
deste ano.
responsável pela doença.
O pesquisador explica que a hanseníase é uma
Em busca de uma cura por meio da genética,
doença complexa e, portanto, manifesta-se quando há
os pesquisadores da PUC-PR, além de procurar iden-
a combinação de determinadas variações de genes com
tificar outros genes associados à doença, investigam
fatores externos, como o meio ambiente, patógenos
de que forma ocorre a atuação dos fatores genéticos.
ou hábitos de alimentação, entre outros. A bactéria
“É impossível simplesmente eliminar o gene que
Mycobacterium leprae é o fator externo determinante.
causa a doença. É preciso entender seu mecanis-
No entanto, outra revelação da pesquisa é que, entre os
mo de funcionamento para que possamos verificar
indivíduos pesquisados, a presença da bactéria associada
a possibilidade de inibir sua manifestação”, relata o
ao efeito genético explica totalmente a doença, sem
pesquisador.
depender de fatores ambientais ou não genéticos. “O que torna essa comunidade amazônica única no planeta é a força do controle exercido pelos fatores
120 | semfronteiras
Embora o grupo concentre-se nas pesquisas relacionadas à hanseníase, os mesmos princípios podem ser aplicados a outras doenças, como o vitiligo, por exemplo.
Sistema Geomedicina Bonald C. Figueiredo e Humberto C. Ibañez
Instituto Pelé Pequeno Príncipe
Saúde ambiental em mapas interativos na Internet
Mapa produzido pelo sistema mostra mortalidade por câncer de cólon, reto e ânus entre 1998 e 2005.
A cada dia, mais usuários acessam mapas interati-
geográficas com aplicações futuras na epidemiologia.
vos na internet antes de irem a lugares desconhecidos.
A pesquisa sobre o TCA levou à descoberta de que o
Aplicados à Medicina, recursos como estes permitem
tumor está associado à mutação R337H no gene TP53. O
descobrir, por exemplo, a influência de fatores ambientais
objetivo inicial do projeto GeoMedicina não era descobrir a
sobre doenças que afetam habitantes de uma determina-
origem da mutação, mas como o meio ambiente participa-
da região. É o que vem sendo realizado no Instituto de
ria no surgimento do mesmo em pessoas com esta mutação.
Pesquisa Pelé Pequeno Príncipe (IPPPP), de Curitiba, com
Para tanto, foi realizada uma campanha inédita no país,
o Sistema GeoMedicina, desenvolvido em parceria com a
por meio da qual foram colhidas gotinhas de sangue de
Minerais do Paraná (Mineropar) e Fundo Paraná/Secretaria
recém-nascidos nas maternidades do Paraná, bem como
de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (SETI).
realizados testes de DNA nos participantes voluntários
O projeto GeoMedicina surgiu em 2006 a partir de
dessa campanha. Os valores referentes a estes testes foram
uma necessidade na pesquisa sobre a incidência do tumor
inseridos no Sistema GeoMedicina a fim de se visualizar e
do córtex adrenal (TCA), que no Paraná e Estados vizinhos
estudar a influência dos fatores ambientais associados à
é 12 vezes maior que a verificada em outros Estados
mutação e ao aparecimento do TCA e de outros tumores.
brasileiros e mesmo em países europeus, Estados Unidos
A Mineropar, sob a coordenação de Otavio Augusto
e Japão. A busca de uma razão para essa discrepância,
Boni Licht, contribui com o levantamento geoquímico por
somada à preocupação com uma doença grave, deter-
meio da coleta de amostras de água e sedimentos de fundo
minou o desenvolvimento de um sistema de informações
em pontos que representam 697 microbacias da hidrografia
semfronteiras |
121
N O T í c i a S d e C&t + Paraná do Paraná. Nesse caso, o sistema GeoMedicina é empre-
componente integrador das interfaces de entrada e saída
gado para a visualização de mapas de teores de elementos
do sistema. Esta integração é implementada por uma
químicos presentes em águas não tratadas como chumbo,
codificação do Mapfile, onde são especificadas as bases
mercúrio, bário, alumínio, flúor, sódio e íons nitrato, fosfato
de dados espaciais e os formatos dos mapas produzidos
e sulfato. A Mineropar fornece estes valores interpolados
on line. A interação usuário x sistema é realizada por
em uma malha regular, a Global Geochemical Reference
meio da aplicação Ka-map, que é carregada no cliente, um
Network, os quais são integrados às áreas dos municípios,
navegador de internet que se conecta a um servidor onde
para que estes dados, estando na mesma granularidade,
estão em funcionamento os componentes descritos acima.
sejam objeto dos métodos estatísticos incorporados no sistema. Há um grande número de doenças associadas
Dados visíveis
à deficiência ou teores elevados destes elementos, daí o
No Sistema GeoMedicina, a concentração de ele-
interesse em explorar a relação entre elementos químicos
mentos químicos, a proporção de doenças, a prevalência
e as doenças.
de mutações, a proporção do emprego de agrotóxicos e os indicadores sociais são representados em classes
Arquitetura do sistema
distinguidas por tons de cores ou pela variação da
O Sistema GeoMedicina consiste em uma ferramenta
luminosidade de um tom de cor. As cores mais claras ou
de web mapping, acessada por meio de um simples
frias indicam as menores proporções ou concentração
navegador de internet, sendo necessários apenas um com-
ou os melhores indicadores sociais, enquanto as cores
putador e uma conexão com a rede para interagir com o
mais escuras ou quentes indicam as maiores proporções,
sistema. Apesar de o acesso ser facilitado e de não ser
concentração ou os piores indicadores sociais. A visua-
necessário instalar qualquer software no computador do
lização de duas camadas é obtida quando se sobrepõe um
profissional, somente usuários cadastrados e autorizados
mapa ao outro e se ajusta a transparência do que está em
pelo coordenador da pesquisa, Bonald C. Figueiredo, têm
cima. Também é possível deslocar o mapa para todos os
acesso a dados que envolvam a comunicação de risco. Este
lados da tela e aumentar e diminuir seu tamanho.
controle é necessário para que as ações planejadas para
Atualmente, o Sistema GeoMedicina provê a aplica-
mitigar o risco possam ser executadas sem vazamentos
ção de métodos estatísticos sobre valores que envolvam a
de informações que, historicamente, já causaram pre-
concentração de substâncias encontradas nos municípios
juízo à economia dos municípios afetados, pois a reação
do Paraná e a saúde dos seus habitantes. Os métodos
da
estereótipos
estatísticos, implementados com a colaboração do La-
que causaram a depreciação de terras e produtos dos
boratório de Estatística e Geoinformação da UFPR,
municípios relacionados.
permitem identificar associações importantes entre os
sociedade
foi
negativa,
criando-se
O sistema de web mapping implantado por Ibañez é
fatores ambientais e as doenças. Uma vez estabelecidas
constituído por uma arquitetura em camadas conhecida
essas relações, é possível demarcar regiões onde é
como Free Open Source Software for Geospatial (FOSS4G).
necessário um maior cuidado com a saúde da população.
No sistema atual, os componentes principais desta arquitetura são o MapServer 3, o PostgreSQL 4, o PostGIS
Cruzamento de dados
5, o R, o Apache 7 e o Ka-map 8. Os dados dos fatores
A estatística espacial, aplicada aos dados do am-biente
ambientais e de doenças armazenados em base de dados
e de saúde, mostra possíveis relações entre variáveis, por
PostgreSQL/PostGIS
tratamento
meio de recursos que vão desde uma análise descritiva,
estatístico no ambiente R. As imagens digitais e elementos
usando medidas de correlação e resumos de dados, até uma
cartográficos são produzidos pelo MapServer, que é o
análise inferencial com os modelos aditivos generalizados,
122 | semfronteiras
são
submetidos
ao
como o cálculo de correlação linear de Pearson e por postos
programa estratégico do governo estadual, no qual os
(correlação de Kendall Tau e de Spearman), em que se buscam
temas indiquem grupos de informações e de variáveis que
relações entre variáveis. O risco relativo nos municípios é
motivem diferentes estudos. Pretende-se também incluir
calculado por meio de uma análise univariada entre cada
na base de dados do sistema agentes microbiológicos,
doença e cada fator ambiental escolhido pelo usuário. Apesar
como vírus aparentes nos indicadores de morbidade (e.g.,
de auxiliarem na pesquisa, estes resultados estatísticos não
hepatites crônicas), bactérias, fungos e protozoários.
são considerados para fins de causa e consequência sem a confirmação por meio de estudos de coorte, de caso-controle e de nível laboratorial. O projeto GeoMedicina passou a ser uma linha de
Bonald Cavalcante de Figueiredo é médico e diretor científico do Instituto de Pesquisa Pelé Pequeno Príncipe e do Centro de Genética Molecular e Pesquisa do Câncer em Crianças.
pesquisa que agrega vários projetos e pretende-se que
Humberto C. Ibañez é cientista da Computação e pesquisador
seja algo mais amplo e de caráter permanente, como um
do Instituto de Pesquisa Pelé Pequeno Príncipe.
R$ 125,5 milhões em 2010 Recursos do Fundo Paraná são usados em projetos estratégicos, em projetos da Fundação Araucária e do Instituto de Tecnologia do Paraná
Em 2010, os recursos do Fundo Paraná – que destina 2% da arrecadação tributária estadual ao apoio e ao
Agricultura Familiar; e Programa de Ciência e Tecnologia em Saúde.
desenvolvimento científico e tecnológico, e é gerencia-
À Fundação Araucária foram destinados R$ 28,0
do pela Secretaria de Estado da Ciência, Tecnologia e
milhões, para execução dos seguintes programas: Fomento à
Ensino Superior (SETI) – somam R$ 125,5 milhões. Esses
Produção Científica e Tecnológica; Verticalização do Ensino
recursos estão sendo aplicados em projetos estratégicos
Superior e Formação de Pesquisadores; e Disseminação da
e de interesse da sociedade, em programas de apoio ao
Ciência e Tecnologia.
desenvolvimento científico da Fundação Araucária e do Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar).
Entre as várias atividades do Instituto de Tecnologia do Paraná que receberão recursos do Fundo Paraná –
São seis os programas estratégicos de governo em
total de 18,6 milhões – estão o Centro de Referência
2010 na área de C&T: Programa de Desenvolvimento do
em Desenvolvimento e Produção de Imunobiológicos e
Ensino Superior do Paraná; Programa de Populariza-
Medicamentos com base em Biotecnologia Avançada e o
ção da Ciência, Tecnologia e Inovação; Programa
Programa de Ciência, Tecnologia e Inovação em Projetos
Universidade Sem Fronteiras; Programa de Aquicultu-
de Desenvolvimento Tecnológico da Economia e Sociedade
ra e Pesca; Programa Estadual de Pecuária Leiteira e
Paranaense (Bioenergia e Biofábrica).
semfronteiras|| 123 123 semfronteiras
N O T í c i a S d e C&t + Paraná
Universidade Sem Fronteiras: saber e dedicação Joka Madruga
Carolina Wadi
Há quatro anos a Secretaria da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior do Paraná (SETI) promove importante mudança no modo de realizar a extensão universitária. Trata-se do programa Universidade Sem Fronteiras (USF), que reafirma o compromisso social e o papel humanista da universidade. “É gratificante testemunhar o entusiasmo das pessoas envolvidas – comunidade, coordenadores e bolsistas. Elas dão vida aos projetos e objetivos desse programa”, enfatiza o professor Antônio João Manfio, coordenador do USF. “Uma bolsista que caminha setenta quilômetros da universidade onde trabalha, com seu neném no colo, Apoio às Licenciaturas
para chegar ao local de atendimento do USF, dá bem a dimensão da articulação entre inteligência e dedicação.
Joka Madruga
Ou a opção de outro bolsista que decidiu morar no local onde o projeto é executado para dedicar-se integralmente
Celso Pacheco
ao seu êxito”, exemplifica.
Produção agroecológica
124 | semfronteiras
Agricultura Familiar
Celso Pacheco
Encontros de Avaliação Segundo o coordenador, passados quatros anos da nova prática extensionista, que chegou a 280 municípios do Paraná, agora é hora de fazer um balanço das ações desenvolvidas. “É provável que o programa transcenda as idealizações originais. Neste momento, faz-se necessária uma reflexão sobre os resultados alcançados”, afirma. Para isso, serão realizados, na segunda quinzena de novembro deste ano, vários “Encontros de Avaliação”, que conduzirão os participantes a um patamar superior ao
Diálogos culturais
do simples relato de experiências, mas sem minimizar a importância da subjetividade e das vivências dos protagonistas que fazem da sua inserção nos projetos momentos de entrega a uma causa.
Número de projetos por subprogramas 44
Apoio à Agricultura Familiar
trução conjunta de uma base teórica que
48
Apoio à Produção Agroecológica Familiar
possa orientar a prática extensionista. “É
110
Apoio à Licenciaturas
hora de pensarmos a prática, voltada para
28
Ações de Apoio à Saúde
uma avaliação qualitativa das ações, para que
40
Diálogos Culturais
o Paraná continue sendo um exemplo a ser
107
Extensão Tecnológica Empresarial
seguido nessa área”.
50
Incubadora de Direitos Sociais
427
Total
Para Manfio, é necessária agora a cons-
Os
Encontros
de
Avaliação
terão
duração de um dia e serão realizados nas seis universidades estaduais. As Pró-Reitorias de Extensão estão construindo os referen-
Número de bolsistas
ciais teóricos de orientação das avaliações:
876
Recém-formados
“Novo paradigma de Extensão: Universidade
1.690
Graduandos
Sem Fronteiras”; “A universidade reinventa-
960
Orientadores
se”; “Ciência e saber popular: nova síntese”;
96
Ensino médio
“A extensão como estratégia de desenvol-
3.624
Total
ciplinaridade”; “Universidade Sem Fronteiras:
280
Municípios atendidos
balanço e perspectivas”.
92
Instituições parceiras
vimento local”; “Diálogo, parceria e interdis-
A coordenação do programa construiu também o Sistema de Administração de Projetos (SAPUSF), importante ferramenta de acompanhamento do desenvolvimento dos projetos. O sistema foi implantado em agosto
Total de investimentos em 2010
R$ 14.213.645,00
de 2010.
semfronteiras |
125
N O T í c i a S d e C&t + Paraná
Paraná interioriza transplantes de medula óssea Com tecnologia do Hospital de Clínicas da
Estatísticas
Universidade Federal do Paraná, o Hospital Univer-
No Brasil, enquanto o número de transplantes
sitário da Universidade Estadual de Londrina
de todos os órgãos crescia cerca de 10% em 2008, o
prepara-se para realizar, a partir deste ano, os pri-
de transplantes de medula óssea chegava a apenas
meiros transplantes de medula óssea no interior do
um por cento. De acordo com o Ministério da Saúde,
Estado. Com recursos da ordem de R$ 4,5 milhões
isso se deve, em parte, ao número reduzido de
(Fundo Paraná/Secretaria de Ciência, Tecnologia
leitos exclusivos para esse fim. Atualmente são 52
e Ensino Superior), o projeto Terapia Celular exigiu
os centros de transplante de medula óssea no país,
o cumprimento de várias etapas, entre as quais
contra apenas três na década de 80. Conforme ainda
o aumento do número de doadores voluntários e
o ministério, a demanda por transplantes é de sete
a melhoria da infraestrutura hospitalar de duas
a oito mil/ano, mas apenas cerca de 1.500 chegam a
universidades estaduais — UEL e UEM.
ser realizados.
No hospital da Universidade Estadual de
Em contrapartida, o Brasil possui, atualmente, o
Londrina, informa a médica Letícia Navarro Gordan
terceiro maior banco de doadores de medula óssea do
Martins, serão realizados inicialmente os transplan-
mundo — as pessoas cadastradas somam 1,3 milhão —,
tes autólogos, ou seja, de células do próprio paciente.
atrás dos Estados Unidos e da Alemanha e à frente
Já os transplantes singênicos, entre gêmeos idênti-
da Inglaterra, o quarto colocado no ranking, de acor-
cos, e alogênicos, de um doador para o paciente,
do com dados do Registro Brasileiro de Doadores
serão feitos em etapas seguintes, dependendo dos
Voluntários de Medula — Redome, instalado no Ins-
resultados obtidos, observa. O HU da UEL já conta
tituto Nacional do Câncer/Inca.
com infraestrutura própria: ambulatório, laboratório
Do total de doadores brasileiros de medula
de criopreservação de células-tronco e hospital-dia
óssea, pouco mais de 26 mil são de Maringá, con-
24 horas.
forme a coordenadora do projeto na UEM, médica
No hospital da Universidade Estadual de
Sílvia Maria Tintori. “Esse número cresceu bastan-
Maringá, a construção da Unidade de Transplante de
te a partir de 2004”, relata Sílvia. “Esse trabalho
Medula Óssea está prevista para os próximos anos.
proporcionou material para uma pesquisa que foi
No Laboratório de Imunogenética da instituição já
premiada no XII Congresso da Sociedade Brasileira
vêm sendo desenvolvidas atividades de pesquisa
de Transplante de Medula Óssea como o melhor tra-
nas áreas da graduação, pós-graduação e extensão
balho científico da área multidisciplinar”, ressalta,
universitária relacionadas à tipificação de doadores
creditando os méritos também ao Hemocentro
e conscientização da sociedade quanto à doação de
Regional de Maringá. (RR)
medula óssea. O Hemocentro Regional de Maringá também recebeu melhorias.
126 | semfronteiras
Saiba mais: www.inca.gov.br
Azulejos à prova de bactérias
Divulgação
Revestimentos ganham proteção bactericida de filmes finos produzidos por meio da nanotecnologia
Da esquerda para a direita, a evolução da formação do filme na superfície do azulejo. No setor à direita da imagem, o filme está homogeneamente aderido à superfície.
Um método para fabricar azulejos à prova de bactérias,
filme-superfície. “Isso faz com que o nosso filme não se
desenvolvido por químicos brasileiros, pode diminuir o risco
desprenda da superfície de forma alguma. Assim, o filme
de infecção em locais como hospitais, centros de saúde e
tem a mesma durabilidade da peça onde foi aplicado”, diz
cozinhas industriais.
Sequinel. Essa maior interação com a superfície, aliada à
A técnica usa a nanotecnologia para a produção de filmes finos com propriedades bactericidas, que podem ser
estabilidade dos óxidos inorgânicos, confere a proteção bactericida ilimitada, de acordo com o químico.
usados em cerâmicas de revestimento (pisos e azulejos).
A pesquisa teve início em 2004, quando Thiago
Após testes, notou-se que a proteção bactericida conferida
Sequinel, hoje na Unesp, participava de um projeto de
pelo filme funciona durante toda a vida útil do material.
iniciação científica coordenado pelo professor do Depar-
Essa proteção vem de dois óxidos inorgânicos, de
tamento de Química e do Mestrado em Engenharia e Ciência
titânio e de prata. “A ação bactericida vem de uma tro-
de Materiais da UEPG, Sergio Mazurek Tebcherani. A equipe
ca de cargas do óxido para a bactéria, que causam o
estudava um método de obtenção de nanopartículas de
rompimento da membrana da bactéria. Assim, qualquer
óxidos em escala industrial — que podem formar produtos
bactéria que entre em contato com o filme fino é morta
como pigmentos e revestimentos.
instantaneamente”, diz o químico Thiago Sequinel, que faz parte da equipe responsável pela técnica.
Com o avanço da pesquisa, o foco mudou para a ação bactericida das nanopartículas, o que resultou no
A equipe, composta por membros da Universidade
azulejo à prova de bactérias. A inovação do projeto rendeu
Estadual de Ponta Grossa (UEPG), Fundação Getúlio Vargas
um prêmio internacional à equipe, que levou o primeiro
(FGV) e Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
lugar na sétima edição da feira Idea to Product — Global
Filho” (Unesp), desenvolveu uma nova metodologia para
Competition, que aconteceu em outubro de 2009, em
formação de filmes finos que resulta em maior interação
Austin, Texas, nos Estados Unidos. (HM)
semfronteiras || 127 127 semfronteiras
João Urban
MEMÓRIA
Jogo de bafo em Curitiba, 1977.
Brincadeiras de infância Zeca Corrêa Leite Fotos: Daniel Caron e João Urban
Ao longo de uma existência, por mais que se
professora Verônica Müller, coordenadora do Programa
guardem fatos e cenas do passado, ainda assim o
Multidisciplinar de Estudos, Pesquisa e Defesa da
saldo final transforma-se em resíduos dos milhares de
Criança e do Adolescente, cuja experiência está ligada
dias e acontecimentos vividos com maior ou menor
à Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Estadual
intensidade. No compartimento das lembranças mais
de Maringá (UEM). “A brincadeira é a expressão
aprazíveis é natural que as brincadeiras da infância
principal da cultura infantil e deve ser preservada e
estejam presentes, muitas vezes imperando soberanas
potencializada”, enfatiza. E acrescenta: “As brincadeiras
em relação às demais. Os primeiros anos de vida, com
são inegavelmente culturais”. Enquanto num país como
suas fantasias alicerçando a dinâmica do viver, tornam-
a Espanha uma menina quer ser rainha ou princesa, no
se indeléveis e associados aos folguedos.
Brasil a aspiração é ser modelo, ou, no caso dos me-
Brincar faz parte da natureza humana, afirma a
128 | semfronteiras
ninos, jogador de futebol.
Daniel Caron Daniel Caron
A cultura de cada região, portanto, reflete-se no mundo de faz de conta. Os folguedos moldam-se de acordo com a realidade local. A partir dos elementos que as rodeiam, as crianças constroem seu território imaginário, copiando as experiências vividas pelos adultos. Esse jogo do lúdico com a realidade é um processo natural de preparação para a complexidade do que virá mais tarde. “Isso fará delas pessoas mais bem-aparelhadas para resolver seus problemas”, diz Verônica Müller. “Na brincadeira, ela treina a vida adulta”, define a psicóloga e terapeuta cognitiva Rosangela Lupatini Abou Fares, de Curitiba, evidenciando a importância do ato de brincar. “Sem isso, há um despreparo para a vida adulta.” É nessa fase que se aprende a respeitar as regras, a resolver os conflitos de frustração, irritação, a fortalecer a autoestima, a trabalhar com questões como dar, receber, dividir. A internalização desses conceitos começa por aí, nos jogos aparentemente divertidos e inocentes. Pais modernos e preocupados com os filhos muitas vezes buscam nos brinquedos sofisticados (e caros) um aliado para a educação, mas quanto mais tecnológico e bem-aparelhado, menos
semfronteiras |
129
espaço ele propicia à fantasia infantil. Uma boneca que se
atrativo, os quintais estão se tornando raros. Brinquedos
expressa dizendo que está com fome ou quer dormir (entre
simples de lata, madeira, com recheio de algodão deram
uma dezena de gravações) é um exemplo de como as
vez a produtos sofisticados e, para quem não tem
geringonças ocupam um espaço que antes era destinado
acesso a eles, restam as armas de plástico vendidas nos
ao imaginário. Para a psicóloga Rosangela, “é bonito uma
comércios populares. Em vez dos divertimentos como
menina ter uma boneca dessas, mas é bom intercalar com
esconde-esconde, passa-anel e empinar pipas, tem-
algo mais simples”.
se filmes na televisão. Àqueles que podem, incluem-se
Lata velha, pote de iogurte, travesseiro, massinha,
os jogos eletrônicos com uma variedade de ações que
carrinho — o mais básico possível —, qualquer objeto
reúnem dezenas de títulos, desde aventuras intergaláticas
transforma-se em brinquedo nas mãos da criança, porque
a tramas envolvendo terroristas, assaltantes e outras
a tendência dela é buscar e criar algo novo. Ela precisa
querelas sociais.
colocar em prática a fantasia. Também é imprescindível a
Ainda assim, persiste nos bairros e em cidades
companhia de adultos, para que juntos possam interagir.
menores a diversão em soltar papagaio, rodar pião,
“O vínculo com o adulto é muito importante; um colo, um
brincar de roda, de casinha, transformar em boneca um
carinho, a troca que se dá brincando é essencial”, frisa
pano qualquer. Até mesmo escolas particulares, mais
Rosangela. Esses cuidados, infelizmente, estão sendo
preocupadas com o conceito da educação e do elemento
negligenciados pela tela da televisão ou do computador.
lúdico, buscam um caminho alternativo para trazer às
As chamadas “babás eletrônicas” poderão gerar no futuro
crianças a simplicidade de jogos e brinquedos que, aos
pessoas arredias, tímidas, solitárias.
poucos, caem em desuso. Para as gerações que tiveram suas vidas marcadas
Era uma vez as brincadeiras
com “pula-muro”, “as cinco marias”, “mané-gostoso”, brincadeiras de roda, atropelos para achar o melhor
encontrar espaço para brincar. As ruas perderam seu
esconderijo (“dá um tapa na bunda e vá se esconder”),
Daniel Caron
Nas grandes cidades, está cada vez mais difícil
130 | semfronteiras
balões que vagavam pelo céu nas tardes e noites
berlinda (espécie de jogo de adivinhação). Com as meninas
juninas, figurinhas disputadas no jogo de bafo, restam
brincava de casinha, e dos presentes que ganhou ficou no
lembranças idílicas de um tempo que jamais se repetirá.
encantamento um bebê de porcelana e corpo de tecido. Até
Puxando pelo fio da memória, o casal Marisa
caleidoscópios a garotada montava. A pausa vinha com a
Rielli e Julio Manso, embora jovem, alguns anos atrás
leitura. Todos liam.
levou para comercializar na feira de arte do Largo da Ordem, em Curitiba, alguns desses brinquedos
Uma herança de luz
antigos. “Começamos com o mané-gostoso, com a
Morador no Instituto Modelo de Menores, em São
proposta de aumentarmos nossa renda doméstica”,
Paulo, quando pequeno, José Pereira da Silva, que
conta Marisa. Para quem não sabe, mané-gostoso é o
completou 80 anos em outubro, faz um relato iluminado do
popular equilibrista, em outros lugares. O sucesso foi
tempo em que viveu na instituição. Poderia ser o contrário,
instantâneo e, como o público pedia outros brinquedos
mas as diversões que envolveram esses anos de infância
de infância, o casal encomendou a um marceneiro,
deixaram uma herança de luz. Estudava no período da
Adalberto, que produzisse bilboquê e pião. A lista
manhã — eram quatro horas na escola primária. Saía dali
aumentou com a confecção de “as cinco marias”.
e tinha a tarde toda livre. “A gente brincava demais: tinha
“Quem primeiro chegava à barraca eram os adultos;
amarelinha, pega-pega, bolinha de gude, pião, esconde-
eles chamavam os netos e ensinavam como brincar”,
esconde, plantar bananeira. A criançada soltava balão,
lembra Marisa. “O brinquedo tem esse lado importante
empinava papagaio; nos jogos de futebol de botões havia
da oralidade. Conversando é que se aprende a brincar”,
divisas militares, iam do soldado raso até chegar a general.
conclui o artista plástico Julio Manso.
As divisas eram feitas com cartolina. Com cartolina fazíamos cartas para jogar mico, gato-preto. Pode-se dizer
Brincadeiras lapeanas
que tinha 365 jogos diferentes.”
Maria Thereza Brito de Lacerda, 82 anos, escritora,
A vida ali dentro não era das mais fáceis, pois “lá a
memorialista, professora de francês e bibliotecária,
gente apanhava demais”, segundo José, mas os garotos
lembra com detalhes dos seus tempos de menina
compensavam brincando no imenso pátio do instituto. “Tenho
na Lapa, onde nasceu e cresceu no casarão que hoje
muita saudade”, confessa. “A gente jogava pião roda, que era
abriga um dos museus da cidade. “A gente brincava
uma roda que se riscava no chão e ali casavam quatro, cinco
muito em grupo”, diz. Dulce, sobrinha seis meses mais
piões. Aí quem participava da brincadeira tinha que tirar
nova, era sua amiguinha inseparável. As duas gostavam
piões do círculo. O que saía da roda ficava para aquele que
das alturas: subir em árvores era com elas e se chovia
tirou. Cheguei a ter mais de dez, eu era bom nisso.”
ficavam em cima do guarda-roupa. Magrinhas, se enfiavam pelas frestas e exploravam o porão da casa.
Os brinquedos eram feitos pelos garotos que iam remexer no lixão em busca de material. Botões eram
Tudo era motivo de diversão, mesmo porque não
valiosos, daí que as camisas que eles usavam estavam
havia proibições dos pais. Maria Thereza fazia bolotas
sempre abertas. “A gente arrancava os botões.” Se des-
de barro para atirar com estilingue, com os irmãos e
sem sorte, achavam-nos em retalhos de roupas nos lixos.
outras crianças da rua brincava de esconde-esconde,
Carretéis de madeira vinham dessas incursões — e se
pega-pega, peteca, bolinhas de gude (“era coisa para
transformavam em carrinho. Nas partidas de futebol
os meninos, mas eu participava disso porque era
disputavam a bola de meia, que outro tipo de bola não
metida a besta, fui muito moleca”), telefone sem fio.
existia para eles. Nos dias frios de junho e julho, o céu ficava
Tinha ainda bambolê — composto de duas varetas e
pontilhado de balões. “Acho que chegavam a uns 100, era
um fio que servia para aparar um cone —, roda (“bom-
muito bonito. A criançada se divertia mesmo, era bem mais
dia, minha senhorita” fazia parte do rol das cantigas),
interessante que agora”, conclui.
semfronteiras |
131
MEMÓRIA
Da arte de jogar pião Cristovão Tezza Ilustração: Bruno Stock
Segura-se o pião com a mão esquerda, enquanto a direita enlaça-lhe o pescoço, sem dar nó, puxando a fieira verticalmente até a base da ponta de ferro, de onde voltará a subir em anéis apertados e unidos, feitos com carinho e atenção — da qualidade desta amarração dependerá o destino do lance, a sua parte técnica. É importante que o pião seja velho e o verniz esteja gasto pelo uso — na pele brilhante a fieira escorrega e o resultado é o desastre. Chegando a fieira ao trecho bojudo, em torno da maior circunferência prende-se o último anel com o polegar enquanto a mão direita prepara o golpe, dando voltas na outra ponta como quem firma na palma um chicote improvisado, até que
direita (para compensar a puxada do chicote quando a peça cair
os dedos, livres mas tensos, segurem o pião, que
no mundo), e erguer o braço lento e suave até a altura da orelha,
é indócil, com delicadeza — o indicador na cabeça,
não mais, que é exagero, nem menos, que é fraqueza. Fixa-se
o polegar na base. Concentrando-se, deve-se
um ponto no chão e lança-se o pião um palmo além dele, como
sustentar o pião com uma breve inclinação à
quem arremessa uma pedra para saltitar na água. (Se o jogador for canhoto, faça-se tudo ao espelho, que será o mesmo.) O pião desenrola-se furioso no ar, mas isso não se verá; a puxada da fieira, percebe-se no tato, deve acontecer só no último segundo, quando quase desnecessária. Livre enfim, o pião procurará em desespero o seu ponto de equilíbrio, contra todas as provas da lógica, sob o olho de um furacão mesquinho que o quer ver no chão, mas ele não cai, absurdo. Se o chão for liso, como deve ser, o pião, apenas respirando, dormirá, absolutamente imóvel sobre a terra, um espetáculo de silêncio e uma aula impossível de geometria. Podemos sentir, sob o eixo estático, como a agulha de um aparelho metafísico, o tremor sutil da rotação do mundo. Texto publicado originalmente no Caderno Mais!, do Jornal Folha de S. Paulo, em 2004.
132 | semfronteiras
re s e n h a
Página órfã Paulo Franchetti
Régis Bonvicino. Página órfã (2004-2006). São Paulo: Martins, 2007. ISBN: 9788599102589
Página órfã, décimo volume de poesia de Régis Bonvicino, é um dos melhores livros do gênero que li nos últimos anos. Para quem não conhece a obra pregressa, esse trabalho é uma boa introdução, pois representa o desenvolvimento consequente de um trajeto pessoal, que se construiu em combate ou aliança com as principais forças da poesia brasileira dos últimos 30 anos. Lendo Página órfã, o leitor talvez seja levado a sentir que a contemporaneidade numa grande cidade, onde pulsa o coração do tempo, tem a forma de um vazio obscuro que cobre o mundo e que rebaixa tudo, inclusive o poeta. Mas aí reside a qualidade dessa poesia: não há cedência em falar do fácil, nem recusa em falar do difícil. Os poemas presentificam o horror, não o descrevem, nem o explicam. E o fazem também por meio de um sistemático confronto entre o que é e o que foi ou poderia ter sido. A natureza – as flores cultivadas, os animais maltratados pela expansão da cidade – e a civilização regem um vocabulário e uma sintaxe tensos, nos quais nem mesmo a nostalgia e a ternura deixam de ter lugar, junto com o pasmo, o nojo e a recusa. O procedimento que mais chama a atenção ao longo do livro é a montagem crua e violenta. Há algo de ready made de jornais
semfronteiras |
133
e notícias de TV e a justaposição de frases brutais e incisivas não deixa espaço para a ironia. Tampouco a justaposição do novo, do gasto e do arcaico busca a pacificação ou a alegoria tropicalista – apenas produz
“Lendo Página órfã, o leitor talvez seja levado a sentir que a contemporaneidade numa
a imagem do desajuste da sensibilidade, que reage
grande cidade, onde pulsa o
contra o caos.
coração do tempo, tem a forma
Sem vocação proselitista, essa poesia não visa
de um vazio obscuro que cobre
promover a solidariedade, nem aceita o rebaixamento
o mundo e que rebaixa tudo,
de reduzir-se a pregação política. Não corteja os donos
inclusive o poeta.”
da esquerda, nem se voluntaria para catequizar ou seduzir a massa. Nem cede ao apelo pop, recusando, até onde lhe parece possível, a forma de mercadoria.
O mais interessante nessa poesia (como na poe-
Essa poesia não procura tampouco ficar do lado de
sia em geral) não é a sua capacidade de formular
fora, não é nefelibata. Pelo contrário, situa-se decidida
conceitos, nem de dar explicação do mundo; muito
no coração do presente, cuja forma é uma figura de
menos de incitar à revolução ou propor formas de
muitas faces: a moda e a barbárie, o comércio e a guerra,
solidariedade entre as classes. A poesia, na nossa
a devastação e a sobrevida possível, o individualismo
tradição, é justamente aquele tipo de discurso que
extremado e a eliminação da individualidade. Torna
resiste mais radicalmente a ser reduzido a uma
presente a indignação e a impotência, mas não desiste
paráfrase, a um conteúdo que depois seja con-
da poesia. Ela é, na verdade, a única janela para fora de
traposto ou comparado ou identificado a outros
um mundo de horror.
conteúdos. Embora a poesia possa também reduzir-se
Por estar sujeita às tensões do presente, alguma
a uma variante da propaganda, um rebaixamento da
crítica julgou que o essencial em Página órfã é a
filosofia ou uma ilustração de teses sociológicas, sua
“poesia política” – dando, nessa expressão, muito mais
importância – aquilo que a justifica como um discurso
peso ao segundo do que ao primeiro termo. Deliberado
específico – provém do seu poder de presença. O seu
ou não, é um erro. Identificar ao longo de Página órfã
sentido não se separa da forma específica de cada
uma série de fragmentos que tratam da violência, da
verso, da natureza e combinação das imagens, da
guerra e do extermínio para depois interpelar o livro
sucessão e modulação dos tons e das várias atitudes
como se ele fosse um artigo de fundo de jornal é a
líricas que se contrapõem ao longo de um único poema
forma mais eficaz da não leitura, da redução do novo
ou de um volume inteiro. O poeta sabe disso. Num
ao velho e do imprevisto ao já conhecido. O que o livro
texto de Página órfã, intitulado “Prosa”, lemos: “Um
traz de interessante não é nenhuma tese – e nem há
poema não vive além de suas palavras”. Era preciso
qualquer tese nele. É o registro do choque do que
registrar essa lapalissada? Aparentemente não, pois
chamamos “realidade” sobre uma sensibilidade alerta;
para quem sabe ela é desnecessária e para quem não
e a capacidade de, a partir desse choque, produzir
sabe é um lembrete inútil, já que a crítica de primeira
com palavras um objeto denso, rico de imagens,
hora recebeu o livro pedindo mais: que o poema não
combinações sonoras – um objeto que dialoga ten-
só vivesse, mas se explicasse além das suas palavras.
samente com a tradição e dela se alimenta, ainda
Foi uma demanda rala para um livro tão denso. Ela
quando a agrida ou denegue.
esgotou-se, porém. Ele perdura.
Paulo Franchetti é professor titular do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
134 | semfronteiras
LIVROS Maria Helena de Moura Arias
Formas Rochosas do Parque Estadual de Vila Velha
Visconde de Guarapuava – personagem na história do
Mário Sergio de Melo Editora UEPG — editora@uepg.br 154 páginas | ISBN 85-86941-50-6 | Preço: 45,00
Paraná (trajetória de um homem do século XIX)
Formas
Zeloi Aparecida Martins dos Santos Editora UNICENTRO — editora@unicentro.br 227 páginas | ISBN 978-85-89346-53-5 | Preço: não indicado
do
A história de Antônio de Sá
Parque Estadual de Vila
Rochosas
Camargo (Visconde de Guara-
Velha trata dos arenitos
puava), seus feitos, sua im-
e das formas erosivas do
portância para a comunidade
parque, assim como das
local junto à qual atuou, para
furnas e da Lagoa Doura-
a Comarca e depois para a
da (formações geológicas
Província do Paraná — da qual
bastante conhecidas da
chegou a ser seu vice-presi-
região paranaense dos Campos Gerais). Fartamente ilustra-
dente —, evidenciam um processo
do com fotos de laboratório, mapas e gráficos, o livro se
histórico extremamente rico de
destina não somente a especialistas das Geociências, mas
interação indivíduo x História.
também ao público leigo, visitantes do Parque, estudan-
Tais predicados levaram os historiadores a apontarem suas
tes e professores. O resultado da pesquisa desconstrói
pesquisas em direção à vida desse importante personagem
alguns equívocos consagrados, tais como a atribuição das
paranaense, transformando-o em tema de livro.
formas erosivas de Vila Velha à ação do vento e a origem da denominação Lagoa Dourada à presença, no fundo das águas, de cristais brilhantes.
Elementos de Sociologia Geral: Marx, Durkheim,
Sobre a Direita – estudos sobre o fascismo, o
Weber, Bourdieu
nazismo e o integralismo
José Octacílio da Silva EDUNIOESTE — editora@unioeste.br 300 páginas | ISBN 85-7644-038-5 | Preço: não indicado
João Fábio Bertonha EDUEM — eduem@uem.br 436 páginas | ISBN 978-85-7628-015-6 | Preço: não indicado
A obra visa oferecer aos lei-
O livro compreende artigos
tores
teórico-
e outros textos a respeito da
metodológicos utilizados pela
problemática dos fascismos, es-
Sociologia ao longo de sua tra-
pecialmente sobre o fascismo
jetória de estudos. As discussões
italiano, o nazismo alemão e o
desenvolvidas
ser
integralismo brasileiro, mas com
acessíveis a todos aqueles que
pontes também para o fascismo
se interessam pela compreensão
dos países anglo-saxônicos e do
dos problemas sociais que afe-
Cone Sul. A obra é um tratado
tam a vida em sociedade.
geral sobre o tema, baseada em
os
recursos
pretendem
pesquisas primárias e ampla bibliografia brasileira e internacional.
semfronteiras |
135
Esporte, reabilitação e Educação Física inclusiva
História do cinema japonês
na qualidade de vida de pessoas com deficiência
Maria Roberta Novielli — tradução Lavínia Porciúcula Editora UnB — www.editora.unb.br 406 páginas | ISBN 9788523009656 | Preço: 60,00
Dirce Shizuko Fujisawa; Eduardo José Manzini; Eliza Oshiro Tanaka; Maria Cristina Marquezine; Rosangela Marques Busto (organizadores). EdUEL — eduel@uel.br 200 páginas | ISBN 978-85-7216-529-7 | Preço: não indicado
Nesta obra são percorridos mais de cem anos do cinema japonês,
A
publicação
apresenta
estu-
dos criteriosos a respeito da importância
dos
esportes
no
processo de atendimento e inclusão de crianças e jovens com deficiência. De acordo com os organizadores, os trabalhos apresentados “refletem a realidade das carências, as omissões tanto da
trazendo ao leitor o desvendar das épocas, a seleção das melhores produções e as grandes obras
de
ousados
pioneiros.
São enfocados, além de nomes famosos no Ocidente, os registros menos conhecidos, com a proposta de desvelar uma das mais complexas e importantes filmografias do mundo.
atividade esportiva praticada por deficientes, como o cenário da inclusão e exclusão escolar em algumas cidades e regiões do Brasil”.
A falácia genética - a ideologia do DNA na imprensa
Música e Política: a Nona de Beethoven
Cláudio Tognolli Editora Escrituras — www.escrituras.com.br 333 páginas | ISBN 9788575311097 | Preço: 20,00
Esteban Buch — tradução Maria Elena Ortiz Assumpção EDUSC — vendasedusc@edusc.com.br 396 páginas | ISBN 85-7460-099-7 | Preço: 57,80
Este trabalho pioneiro é fun-
Este estudo é desenvolvido em
damental
desmistificar
três tópicos: a música em seu
as falácias, tanto as científicas
para
contexto político, a música de
quanto as jornalísticas, relativas
Estado (os hinos nacionais) e a
à Genética. O autor trabalha com
posição da Nona no contexto
a cobertura jornalística ligada
político, relacionando várias mú-
ao tema e faz a desconstrução
sicas e músicos com seus res-
daquilo a que o público é ve-
pectivos momentos históricos,
ladamente submetido.
sobretudo a última sinfonia de Beethoven.
136 | semfronteiras
JULIO COVELLO – Sloane Ave – Londres 1994
semfronteiras |
137
REVISTA DE CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO SEM FRONTEIRAS Segundo semestre de 2010
ISSN 1984-7831
CONSELHO EDITORIAL
Antônio Alpendre, Jairo Pacheco, José Eduardo Gonçalves, José Tarcísio Pires Trindade, Patrícia de Castro Santos, Regina Célia Rocha
EDITORA CHEFE
Regina Célia Rocha
EDITORAS ASSISTENTES
Carolina Wadi e Helen Mendes
EDITOR DE IMAGEM
Bruno Stock
DIRETORA TÉCNICA
Patrícia de Castro Santos
REPORTAGEM
Ana Luzia Palka, Célia Musilli, Célio Yano, Claudia Izique, Heros Mussi Schwinden, Jaqueline Bartzen, Maria Celeste Corrêa, Murilo Alves Pereira, Rodrigo Wolff Apolloni, Romeu de Bruns, Sonia Montaño, Zeca Corrêa Leite
FOTOGRAFIA
Ângelo Antônio Duarte, Bruno Stock, Daniel Caron, Diego Singh, Felipe Abreu, Julio Covello, João Urban, Joka Madruga, Nelson Cerqueira, Zig Koch
ILUSTRAÇÕES
Bruno Stock, Renata Cunha, Simon Ducroquet
CAPA
Simon Ducroquet
COLABORADORES
Antonio Carlos de Farias, Bonald Figueiredo, Cristovão Tezza, Edilene Coffaci de Lima, Humberto Cereser Ibañez, Luiz Geraldo Silva, Mara Lucia Cordeiro, Maria Helena de Moura Arias, Miguel Sanchez Neto, Nelson Papavero, Osvaldo Della Giustina, Paulo Franchetti
COORDENAÇÃO
Susana Branco
REVISÃO
Antônia Schwinden e Jackson Liasch
secretaria
Anne Lore Röhsig, Marina Phonlor Lemos, João Manoel Martins
APOIO
Alexandre Conter, Euzilene A. Silva, Iussara Any da Silva Luz, Juliane Brusque, Jussara Voss, Marcelo Barão
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SETI – Avenida Prefeito Lothário Meissner, 350 – Jardim Botânico CEP 80210-170 – Curitiba – PR – Telefone (41) 3281-7300 – Fax (41) 3281-7334 www.seti.pr.gov.br
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