Revista Sem Fronteiras #3

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DA UTOPIA ÀS PERSPECTIVAS, A INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA A neurociência e o desvendar do cérebro Ciência, tecnologia e humanização da sociedade Universidade, um espaço de complexidades A ciência e os queijos ENTREVISTAS: Silviano Santiago, romancista mineiro, e Antonio Carlos Sartini, diretor do Museu da Língua Portuguesa. semfronteiras |

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CARTA AO LEITOR

N

esta edição, em comemoração ao bicentenário

da independência da América Espanhola, o historiador paranaense Luiz Geraldo Silva explora as origens do processo de integração da América Latina, enquanto o romancista mineiro Silviano Santiago aprofunda as diferenças e as convergências dos povos desse continente, detendo-se em temas polêmicos como a criação artística e as implicações de ordem política e social. Complementando a matéria de capa de Sem Fronteiras, outro historiador, o chileno Miguel Rojas Mix, retoma o pensamento de Francisco Bilbao e as cientistas venezuelanas Carmem Guadilla e Hebe Vessuri apontam avanços e obstáculos da educação superior e da ciência e tecnologia na América Latina. Resultados de pesquisas científicas em várias outras áreas do conhecimento também estão presentes nesta edição, na forma de artigos assinados por cientistas renomados e de reportagens elaboradas por jornalistas especializados. São conteúdos que instigam e nos ajudam a entender onde a CT&I se cruzam com nossas vidas. Boa leitura.


Multiplicar energias

Como secretário de Estado e como professor universitário, gostaria de deixar registradas nesta edição da revista Sem Fronteiras algumas palavras. Em contato com professores e estudantes das nossas instituições de ensino superior tenho tido a oportunidade de me referir ao fluxo de saberes que ali existem, desde o momento da sua criação – e desde a sua compreensão dos saberes do passado. Constato, a cada dia, a imensa contribuição que essas instituições têm dado ao desenvolvimento do Estado e à construção do conhecimento. São mais de noventa mil estudantes, oito mil e quinhentos agentes universitários e sete mil professores universitários envolvidos em 262 cursos de graduação, 334 de especialização, 104 de mestrado e 31 de doutorado, ofertados em todas as regiões do Estado por universidades e faculdades estaduais públicas. Destaco o aprender a conhecer, a raciocinar, a refletir, a pensar como a primeira das funções da educação. Nada mais augusto para o ser humano, e para sua representação, que somos nós, do que o pensamento. Quanto mais elevado for esse pensamento, maior será a nossa capacidade de reflexão. E quanto maior for nossa capacidade de reflexão, mais humanos e mais civilizados nos tornaremos. Mas não basta apenas pensar, é necessário que aprendamos a fazer; ter um aprendizado, alguma coisa, e, por meio dela e pelo esforço individual, possamos prover nossas casas e nossos filhos com aquilo que é básico – o pão, a casa, a roupa. Está lá, nos textos mais antigos, que nós podemos encontrar na filosofia, nas religiões ou na teologia, que a pessoa deve trabalhar, mas deve aprender para trabalhar, e isso ela aprende na universidade, na escola. Ajudar a refletir, a fazer, mas também aprender a conviver e a respeitar e compreender o outro. Significa dizer que nem sempre somos tão iguais, que existem assimetrias imensas, que, no passado, chamávamos simplesmente de compreensão das classes sociais. Que há os injustiçados, os doentes, que há o martirium moral que cada um carrega em sua carne e em sua própria vida. É fundamental, como assinala a comissão internacional sobre educação para o século XXI em seu relatório para a Unesco, publicado no Brasil sob o título “Educação – um tesouro a descobrir”, que o aprender a conhecer; a fazer; a viver juntos; e a ser tenham igual atenção


por parte do ensino estruturado para que ela se torne então uma experiência plena, uma realização pessoal e de vida em sociedade que se leva para sempre. Significa, igualmente, estar vinculado a um projeto comum e motivador, capaz de dar lugar à cooperação e à amizade, bem como a um processo existencial em que possamos tirar as caricaturas da nossa existência e nos colocar novamente no altar sagrado da dignidade de homens e de mulheres. Nildo José Lübke

Secretário Nildo José Lübke: “À educação cabe transmitir saberes e saber fazer adaptados à civilização cognitiva, bases das competências do futuro. Mas não basta apenas acumular conhecimentos. É necessário que nos adaptemos às mudanças em curso – entre as quais o desafio de se construir uma sociedade mais humana, em contraponto às ambições grandiloquentes do século XX e de sua modernidade”.

Levy Ferreira AENotícias

Secretário de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior


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Carta ao leitor Entrevista ANTONIO CARLOS SARTINI — A luz que faltava à língua CIÊNCIA

10

MARA LÚCIA CORDEIRO E ANTONIO CARLOS DE FARIAS — Desafios e

perspectivas da neurociência

14

Pesquisa de futuro

17

Para esquecer, para lembrar

22

Tristeza ou depressão?

24

OSVALDO DELLA GIUSTINA — Ciência, Tecnologia e Humanização da Sociedade

30

MIGUEL SANCHES NETO — Espaço de Complexidades

MEIO AMBIENTE

36

Recuos, avanços, controvérsias...

42

Floresta com código de barras?

47

Ignacy Sachs e a biocivilização

50

Corredores de biodiversidade no Paraná

educação CIeNtífica

55

Em nome da educação

CAPA

58

Da utopia às perspectivas, a integração latino-americana

60

LUIZ GERALDO SILVA — Rei deposto e rei exilado


66

Das desconfianças à percepção de unidade

68

(Des)caminhos culturais

76

Integração ainda que tardia

78

Educação superior e o status de bem público

81

CT&I + inclusão social

86

Nelson Papavero — A Arca de Noé e o problema da fauna sul-americana HUMANIDADES

90

EDILENE COFFACI DE LIMA — Direitos intelectuais indígenas

94

Dores de crescimento TECNOLOGIA E INOVAÇÃO

98

Uma ponte entre a academia e a empresa

101

Ajuda montanha acima

104

Um saboroso caminho civilizatório

112

Perfil Alessandro Nogueira – Cientista de queijos e vinhos

114

Notícias de C&T Memória

128

Brincadeiras de infância

132

CRISToVAO TEZZA e Da arte de jogar pião

133

RESENHA PAULO FRANCHETTI e a Página órfã de RÉGIS BONVICINO


ENTREVISTA

Antonio Carlos Sartini

A luz que faltava à língua Claudia Izique Fotos: Felipe Abreu

A Estação da Luz, no bairro da Luz, no Centro de

projeto de R$ 37 milhões

São Paulo, foi construída no final do século XIX para abrigar

bancado pelo governo do

a Companhia São Paulo Railway. Hoje, é uma das mais

Estado de São Paulo com

importantes interseções da rede paulistana de transpor-

apoio de um pool de patro-

tes sobre trilhos, ponto de embarque e desembarque

cinadores de peso como

diário de mais de 100 mil pessoas. Desde 2006, também

Petrobras, Votorantim e Re-

“O Museu da Língua Portuguesa é, na verdade, um museu da cultura, já que a língua é o principal elemento de ligação, de conexão de um povo.”

abriga o Museu da Língua Portuguesa, um importante

de Globo. Desde as primeiras exposições, o encantamento

centro de valorização e difusão de um elemento central

perceptível nas pessoas mostra que o investimento valeu a

de nossa cultura. Distribuído em três andares e com área

pena. A seguir, você confere uma entrevista com o diretor-

correspondente a 4,3 mil metros quadrados, o Museu é um

executivo do Museu, Antonio Carlos Sartini.

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SF Por que um museu da língua portuguesa? AntonioSartini O Museu da Língua Portuguesa é, na verdade, um museu da cultura, já que a língua é o principal elemento de ligação, de conexão de um povo. No Brasil, até 1750, 82% da população não usavam o português. Prevaleciam as línguas nativas — até hoje temos 200 idiomas vivos — e os dialetos africanos. Em 1750, o Marquês de Pombal percebeu que a integridade da colônia estava em risco e, naquele ano, tornou o ensino da língua portuguesa obrigatório. Hoje, apesar das diferenças culturais, o que nos une é a língua.

SF

Como surgiu a ideia de criar o Museu da Língua

Brasileira?

AntonioSartini

Em 2001, a Companhia Paulista de

Transportes Metropolitanos (CPTM) informou ao governo do Estado que iria deixar os 1º e 2º andares da Estação da Luz, onde funcionavam seus escritórios. O governo, que

Antonio Carlos Sartini, diretor-executivo do Museu.

estava empenhado em recuperar a região central da cidade e já tinha investido na reforma da Estação Júlio Prestes, onde foi construída a Sala São Paulo, e na requalificação da Pinacoteca, instalada em área vizinha, decidiu destinar aquele espaço da Estação da Luz a uma nova instalação

da

Cultura.

Futuramente,

poderemos criar programas

cultural, mais precisamente um equipamento voltado para

junto com a Fundação de

a língua portuguesa. Foi então constituído um grupo de

Amparo à Pesquisa do Es-

trabalho com representantes das secretarias de Cultura

tado de São Paulo (Fapesp).

e Educação e, em 2002, foi firmado um convênio com a

Como as três faces de um

Fundação Roberto Marinho para o restauro do prédio e

museu estavam presentes,

implantação do equipamento cultural que levaria o nome

o equipamento virou um

de Estação da Luz da Nossa Língua.

museu com um patrimônio

“No museu, ainda que altamente tecnológico, a materialização do patrimônio imaterial pode acontecer de várias formas, até a artesanal.”

mais imaterial de todos: a

SF

Por que a ideia de criar um equipamento cultural

língua portuguesa.

evoluiu para a criação de um museu? equipe se deu conta de que aquilo era, na verdade, um

SF Quem financia o museu? AntonioSartini Os recursos são da Secretaria da

museu. Os museus têm funções muito específicas — de

Cultura do Estado de São Paulo. A bilheteria cobre 14%

preservação, de difusão e de pesquisa — a partir de um

dos custos do Museu. Outra parcela, entre 5% e 6%,

acervo. E aquele equipamento cultural tinha a função

vem de recursos com a locação do espaço. Em 2010,

de preservação de um patrimônio imaterial — a língua

vamos contar também com uma loja e um café.

AntonioSartini

Seis meses antes da inauguração, a

portuguesa — com um sentido de difusão. Isso está claro nas nossas mostras de longa duração e temporárias,

SF

além de saraus e leituras dramáticas. A função de pes-

imaterial exige o uso intensivo de tecnologia?

quisa está em fase de implantação. Contamos com 21

AntonioSartini

pessoas responsáveis por pesquisas relacionadas às

tecnológico, a materialização do patrimônio imaterial

nossas mostras e, em 2010, vamos lançar um programa de

pode acontecer de várias formas, até a artesanal. O

apoio logístico e financeiro à pesquisa na área de língua

patrimônio imaterial abre enormes possibilidades de

portuguesa em universidades com recursos da Secretaria

expressão, mesclando escritas diferentes em suas

O fato de o museu contar com um patrimônio No museu, ainda que altamente

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“Esse é o único museu de língua portuguesa. Há um projeto sendo desenvolvido em Portugal. Existem outros projetos em Siena, na Itália, em Winchester, na Inglaterra, e na Coreia do Sul. Todos eles nos procuraram.”

SF Existem outros museus semelhantes no mundo? AntonioSartini Esse é o único museu de língua portuguesa. Há um projeto sendo desenvolvido em Portugal. Existem outros projetos em Siena, na Itália, em Winchester, na Inglaterra, e na Coreia do Sul. Todos eles nos procuraram. Em breve, vamos receber também a visita de um representante da Universidade de Jerusalém, que pretende criar um museu da lín-

várias áreas. As exposições de longa duração utilizam

gua e da cultura. Em Joanesburgo, na África do Sul, há

recursos tecnológicos desenvolvidos para o museu. Outras

um museu da língua africâner [resultado da interação

mostras são mais tradicionais, e isso é fascinante.

entre os colonos calvinistas europeus provenientes dos Países Baixos, chamados de africânderes; tra-

SF Qual a média de visitantes do museu? AntonioSartini O museu está aberto de terça a domingo

balhadores malaios, indonésios, malgaxes; e dos

e tem uma média diária de 1.600 visitantes. No sábado, esse

Esperança, na África do Sul – nota do editor]. Este

número chega a três mil. Metade é de visitas espontâneas e a

museu, criado em 1975, tem características diferen-

outra metade é de grupos de estudantes e de terceira idade. A

tes, já que seu objetivo básico é o de reforçar a cultura

proporção é equilibrada.

sul-africana.

Um dos principais aspectos do Museu é a interatividade.

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povos nativos khoi e san, da região do Cabo da Boa


Museu vivo para uma língua viva O Museu da Língua Portuguesa nasceu com uma missão: mostrar o quanto a “Última Flor do Lácio” é bela — e que, de inculta, não tem nada

Visitação – O roteiro de visitação inclui

uma

passagem

pela

Grande

Galeria, onde, em uma tela de 106 metros de

extensão,

são

exibidas

projeções

simultâneas de filmes que mostram a língua portuguesa no cotidiano e na história de seus usuários. Inclui, também, uma incursão pelo Beco das Palavras, sala Estação da Luz, em São Paulo.

que abriga jogo etimológico interativo, pelo Mapa dos Falares, onde podem ver e ouvir brasileiros de todas as partes do País, e

O Museu da Língua Portuguesa nasceu com uma missão:

pela Praça da Língua, onde som e imagem

mostrar para brasileiros e visitantes de outros países o quanto a

oferecem uma espécie de antologia da

“Última Flor do Lácio” é bela — e que, de inculta, não tem nada. Para

literatura em língua portuguesa.

isso, faz uso de um arsenal museológico que reúne criatividade,

Dos elevadores de acesso, os visi-

interação, ludicidade e sofisticação, enterrando definitivamente o

tantes avistam a escultura “Árvore de

vetusto modelo de museu como lugar onde a história é cristalizada

Palavras”, de 16 metros de altura, criada

em uma experiência soporífera e desinteressante.

por Rafic Farah, enquanto ouvem uma

Segundo informações publicadas no site do Museu (www.

espécie de mantra composto por Arnaldo

poiesis.org.br/mlp), que também traz uma série de informações

Antunes, que repete as palavras “língua” e

que reforçam o papel educativo da instituição), seus principais

“palavra” em vários idiomas.

objetivos são:

O Museu também abriga exposi-

√ Mostrar a língua como elemento fundamental e fundador da

ções temporárias. Entre 29 de setembro

nossa cultura.

de 2009 e 7 de fevereiro de 2010, por

√ Celebrar e valorizar a língua portuguesa, apresentando suas ori-

exemplo, comemorou os 120 anos de nas-

gens, história e influências sofridas.

cimento da poeta goiana Cora Coralina com

√ Aproximar o cidadão usuário de seu idioma, mostrando que

a exposição “Cora Coralina: coração do

ele é o verdadeiro “proprietário” e agente modificador da língua

Brasil”, com curadoria de Júlia Peregrino

portuguesa.

e cenografia de Daniela Thomas e Felipe

√ Valorizar a diversidade da cultura brasileira.

Tassara. A exposição mesclou imagens do

√ Favorecer o intercâmbio entre os diversos países de língua

universo pessoal de Cora – a mítica Casa

portuguesa.

da Ponte da cidade de Goiás e os doces

√ Promover cursos, palestras e seminários sobre a língua por-

que ela preparava – com trechos de suas

tuguesa e temas pertinentes.

poesias, documentos, diários e originais

√ Realizar exposições temporárias sobre temas relacionados à

de seus livros, além de um vídeo com

língua portuguesa e suas diversas áreas de influência.

declarações da poetisa. (CI)

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C i ê ncia

Estudo da Fisiologia do Cérebro, Leonardo da Vinci (1508). Entre as inúmeras atividades de Leonardo, estavam os estudos sobre as estruturas e funções do cérebro. Ele procurou saber como são interpretados os estímulos sensoriais e desenvolveu uma teoria coerente de como operam os sentidos.

Desafios e perspectivas da neurociência Mara L. Cordeiro e Antonio Carlos de Farias

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A essência de quem somos está nas 100 trilhões de fendas sinápticas que permitem a comunicação entre os neurônios O que é a neurociência? Em que ela

modulam funções tão importantes para a

difere das outras áreas das ciências e da

nossa percepção e interação com o mundo?

medicina? Por que tem sido tão comentada

Como

neurônios estimado

funcionando

sau-

na mídia? O que a faz tão especial? Quais

davelmente e nos possibilitam a capacidade

são seus avanços mais recentes e quais suas

contínua de aprender até nas fases mais

perspectivas?

avançadas da vida?

Neurociência é uma área que estuda

Pesquisas sobre o funcionamento do

todos os aspectos relacionados ao sistema

cérebro, uma das áreas mais excitantes

nervoso, particularmente o cérebro, tanto

da

na condição saudável como na condição

imensamente

patológica, e envolve desde estudos básicos

crescimento se move pelo desejo de

moleculares a estudos clínicos.

encontrarmos respostas sobre os proces-

biologia

moderna, nos

têm

últimos

crescido

anos.

Esse

intrinsecamente

sos biológicos da memória, cognição e

interdisciplinar. Na tentativa de encontrar

emoção, e de dar esperanças para aqueles

respostas sobre os mecanismos e a dinâmica

que sofrem de doenças neurodegenera-

pela qual o nosso cérebro funciona, os neu-

tivas

rocientistas usam conhecimentos e metodo-

quais, até o presente momento, não foi

logias derivados de diversas áreas: anato-

encontrada a cura. Exemplos disso são o

mia, fisiologia, embriologia, endocrinologia,

mal de Alzheimer e a esquizofrenia.

A

O número de

permanecem

neurociência

é

e/ou

neuropsiquiátricas

para

as

genética, biologia celular e molecular, quí-

Estudos em neurociência são interes-

mica, ciência neurocomportamental e até

santes e especiais porque, na realidade,

da física quântica, passando por estudos de

o que nos diferencia das outras espécies

imagem por ressonância magnética.

e nos faz seres únicos são exatamente

Para se tornar um neurocientista, é

as características de nosso cérebro. A

imperativo que se dedique vários anos de

proclamação de René Descartes “Eu penso,

estudos sobre os princípios das disciplinas

portanto, eu existo” leva a uma pergunta

cem bilhões. No início

citadas acima, e que se tenha capacidade

inevitável: “O que nos faz ser quem somos?”

de 2009, um grupo

intelectual de desenvolver pesquisas utili-

para o cérebro humano nos livros de neurociência é de

de neurocientistas da UFRJ e da USP (que

A essência de quem somos, como indivíduos, está nas 100 trilhões de fendas

zando esses conhecimentos. desafios

sinápticas — espaços intercelulares de apro-

de decifrar os mistérios da máquina mais

ximadamente 20 a 40 nanômetros — que

complexa do mundo para buscar respostas

permitem a comunicação entre as células

elaborou um método

para questões cruciais à compreensão do

nervosas, os neurônios. O cérebro tem bi-

diferente de contagem

cérebro humano: como são produzidos os

lhões de neurônios organizados em rede

das células nervosas

bilhões de neurônios que constituem o tecido

que recebem, conduzem e transmitem as

e chegou a um novo

cerebral? Como eles crescem e se organizam

informações em forma de sinais elétricos e

número: 86 bilhões —

para funcionar efetivamente em sistemas que

químicos.

inclui os pesquisadores Roberto Lent e Suzana Herculano-Houzel)

(nota do editor)

Neurocientistas

enfrentam

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Dr. John Mazziotta, Dr. Michael Phelps – UCLA School of Medicine

Atualmente, a maioria dos estudos em neurociência é focalizada nos processos neurobiológicos do desenvolvimento, da percepção, da aprendizagem, da memória e da emoção. Entre os avanços tecnológicos que mais colaboraram para essas pesquisas estão os estudos de imagem, os neurofisiológicos, a genética, a psicofarmacologia, a farmacogenética e os implantes protéticos.

“As inovações biotecnológicas são extremamente importantes, mas definem e pedem atenção a uma série de aspectos neuroéticos.”

Estudos de imagem Avanços tecnológicos e o desenvolvimento de aparelhos como os de tomografia por emissão de pósitrons (PET) e ressonância magnética funcional

Tomografia de emissão de pósitrons (PET) de uma paciente com transtorno bipolar do humor, em quadro de ciclagem rápida entre depressão e euforia. As áreas em vermelho indicam alta atividade metabólica no cérebro.

(fMRI) permitiram maior sensibilidade nos processos diagnósticos. Por meio desses exames, é possível detec-

podem utilizar essa ferramenta para estudar quais áreas

tar de forma precoce e não invasiva o local preciso das

específicas do cérebro são ativadas quando precisamos

lesões do sistema nervoso, assim como os processos

usar habilidades como memória, razão, emoção e atenção.

funcionais do cérebro. Isso porque eles possibilitam visualizar o que ocorre no cérebro no exato momento

Genética

em que o indivíduo executa uma atividade cognitiva ou

A conclusão do projeto Genoma Humano tem

comportamental (como quando resolve um problema de

permitido aos neurocientistas concentrarem seus estudos

matemática) ou, ainda, identificar reações desencadea-

nas características genéticas fenotípicas e moleculares

das em determinados estados emocionais (quando é

associadas a várias doenças neurológicas e psiquiátri-

confrontado com uma situação emocional ou com dilemas

cas. Um número relativamente pequeno dessas doenças

morais). No futuro, o fMRI poderá ser utilizado também

é causado por defeito em um único gene. Na maioria das

para diferenciar a atividade cerebral de criminosos da de

vezes, elas decorrem da interação entre vários genes

pessoas que não tenham cometido crime: alguns estudos

e fatores ambientais. Diversos neurocientistas têm in-

mostram que a tecnologia pode ser útil na identificação

vestigado o impacto dos fatores de risco ambientais —

de sinais cerebrais ativados quando a pessoa está falando

como tabagismo na gestação, por exemplo — sobre os

a verdade ou mentindo deliberadamente.

genes e constatado que esses fatores podem levar ao desenvolvimento de psicopatologias como depressão e

Estudos neurofisiológicos

ansiedade.

O desenvolvimento da tecnologia de magneto-

Outros conhecimentos foram gerados com o avanço

eletroncefalografia (MEG) possibilitou uma melhor com-

da genética molecular. Os genes podem ser modificados

preensão sobre a atividade neuronial. Por terem atividade

ou “subtraídos” (Knock-out) de animais em laboratório,

elétrica, as redes neuroniais geram campos magnéticos

possibilitando a construção de hipóteses sobre as suas

que podem ser medidos com o MEG. Os neurocientistas

funções nas doenças do cérebro.

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Psicofarmacologia e Farmacogenética

Implantes protéticos

A esquizofrenia afeta 1% das pessoas em todo o

Outro avanço importante será o uso de

mundo e aproximadamente 20% da população sofrem

ferramentas de imagem no desenvolvimento de im-

de depressão. Novos tratamentos psicofarmacológicos

plantes protéticos para compensar perdas senso-

proporcionaram esperança de uma qualidade de vida

riais e motoras. Recentemente, foi desenvolvida a

melhor para os que sofrem desses transtornos mentais.

tecnologia de implante coclear para tratar alguns

Exemplo disso é o medicamento Prozac, que aumenta a

tipos de surdez e de uma estimulação craniana

transmissão serotonérgica.

profunda com implante de eletrodos que ajuda a ali-

Avanços nessas áreas também são derivados da

viar os sintomas do mal de Parkinson. Certamente,

realização do projeto Genoma. Uma das ferramentas que

essa área é muito promissora e pode revelar possibili-

contribuíram imensamente para o avanço da neurociência

dades para outras perdas sensoriais e motoras, como

é a que chamamos de microarranjos. Com essa técnica, é

a perda visual e traumas da coluna espinal.

possível analisar a expressão dos 25 mil genes em um único experimento, assim como as respostas a vários tratamen-

Futuro

tos, medicamentosos ou não. Dessa forma, é possível uti-

Estudos da neurociência têm contribuído para

lizar uma “farmacoterapia direcionada”, em que a aplicação

várias inovações na medicina clínica com implicações

respeita as características individuais (e não genéricas), pois

terapêuticas e não terapêuticas que vão muito além

já sabemos que um mesmo medicamento pode produzir

do que era esperado. Para onde iremos agora? Uma

diferentes reações em diferentes pessoas.

das consequências das inovações, obviamente, nos confronta com aspectos éticos. Quando começa a

Mara Lucia Cordeiro

“vida” cerebral? Como é definida a morte cerebral? Devemos utilizar tecidos fetais para o tratamento de doenças neurológicas progressivas? Estes são alguns exemplos de questões que temos que abordar. O futuro da neurociência é muito promissor e excitante. Com as inovações biotecnológicas, seremos beneficiados pelos avanços e teremos que estar atentos e preparados para lidar com os aspectos neuroéticos.

Mara Lucia Cordeiro é neurocientista com pós-doutorado em Medicina Molecular e Farmacologia (UCLA Brain Research Institute) e pesquisadora do Instituto Pelé Pequeno Príncipe, de Curitiba, entre várias outras Quando tratadas com um fator de crescimento neuronal, células derivadas de um tumor da medula suprarrenal de rato se diferenciam em neurônios (imagens à esquerda). Em seu doutorado na Universidade da Califórnia, Estados Unidos, a neurocientista Mara L. Cordeiro tratou essas células com lítio, que é uma medicação usada no tratamento de transtorno bipolar, e notou um aumento na expressão de uma proteína importante para neurotransmissão, chamada CSP (imagens à direita).

atividades. Antonio Carlos de Farias é neuropediatra graduado pela Universidade Autônoma de Madri e responsável pelo Ambulatório de Distúrbios do Desenvolvimento do Hospital Pequeno Príncipe, de Curitiba.

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CIÊNCIA

Pesquisa de futuro Cristóbal Corral Vega

Claudia Izique

Institutos de investigação em neurociência formam nova geração de cientistas

Os neurocientistas Miguel Nicolelis e Sidarta Ribeiro, que conceberam o Instituto Internacional de Neurociência de Natal, com o objetivo de usar a ciência como agente de transformação social e econômica.

A pesquisa brasileira em neurociência, desenvolvida

serão levados para o laboratório para serem investigados”,

ao longo de mais de meio século, começa a se consolidar

explica o neurologista Jaderson da Costa, coordenador

com a criação de novos institutos e redes de investigação

do projeto.

que estreitam as relações entre grupos de pesquisas e

A ideia de se construir o Inscer foi gestada no

contribuem para a formação de uma nova geração de

Instituto de Pesquisa Biomédica (IPB), da PUC-RS, do qual

cientistas.

Costa é diretor, e que abriga laboratórios de pesquisas

Em 2010, estará concluída a primeira etapa das

como o de Neurociências e o Centro de Memória, criado

obras do Instituto do Cérebro do Estado do Rio Grande

há quatro anos pelo neurocientista Iván Izquierdo.

do Sul (Inscer). Vinculado à Pontifícia Universidade

“O laboratório e o Centro de Memória contribuíram

Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), será um insti-

para a criação de massa crítica e para o spin off do

tuto de assistência a pacientes portadores de doenças

Inscer”, diz Costa. O Instituto, ele sublinha, terá caráter

degenerativas e de pesquisa translacional, isto é, as-

interdisciplinar e envolverá também as áreas de Física,

sociada à prática clínica. “Os problemas identificados

de Farmácia e de Química da universidade.

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Estrutura

Foco As investigações terão foco em doenças como

O CInAPCe está estruturado em torno de seis

Alzheimer, Parkinson e esclerose lateral amiotró-

centros de pesquisa principais (MRC, da sigla em

fica, que possuem incidência cada vez maior no

inglês de Main Research Center), instalados nos

país em função do envelhecimento da população.

campi da Universidade de São Paulo (USP) em São

Também serão realizadas pesquisas sobre sono

Paulo, Ribeirão Preto e São Carlos; na Universida-

e epilepsia e desenvolvidos estudos sobre o

de Estadual de Campinas (Unicamp); Universidade

comportamento neurológico de bebês prematuros

Federal de São Paulo (Unifesp); no Instituto Israe-

de forma a prevenir lesões, ele exemplifica.

lita de Ensino e Pesquisa, vinculado ao Hospital

O Inscer será instalado em dois prédios

Albert Einstein; e em laboratórios associados.

construídos numa área de seis mil metros

Além de pesquisas, os MRCs devem desen-

quadrados. “Já estamos na fase de aprovação de

volver novos métodos para processar e analisar

licenças e de compra de equipamento”, conta o

imagens de ressonância magnética, promover

coordenador do projeto. De acordo com Costa, o

programas para o treinamento de estudantes

modelo do Inscer se assemelha ao do programa

e pesquisadores, além de atender também às

Cooperação Interinstitucional de Apoio à Pesquisa

necessidades de desenvolvimento de novas téc-

sobre o Cérebro (CInAPCe), criado pela Fundação

nicas de abordagem terapêutica e de apoio aos

de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo

pacientes.

(Fapesp), já que conjuga a pesquisa ao tratamento

O Instituto do Cérebro do Hospital Albert

de pacientes. A diferença é que o Inscer terá uma

Einstein, por exemplo, tem foco em neurologia clí-

“estrutura unificada”, como ele diz, e o CInAPCe

nica e experimental, neuroimagem, neurofisiologia,

é um instituto virtual que envolve em rede várias

neuro-oncologia e doenças vasculares. Na área de

instituições.

neuroimagem por ressonância nuclear magnética

O programa da Fapesp foi lançado, por meio

funcional, os pesquisadores do Ins-

de edital, em 2004, com o objetivo de promover

tituto do Cérebro foram pioneiros

o desenvolvimento de pesquisas em neurociência

no estabelecimento de uma base

e formar uma rede de cooperação que articulasse

normativa de função cerebral para

diversos grupos de pesquisa do Estado. A primeira

a população brasileira. Essa base,

fase do programa tem foco nas pesquisas sobre

obtida por meio de estudos com

os mecanismos básicos que levam à epilepsia

voluntários saudáveis, permite iden-

e às desordens a ela associadas e o objetivo é

tificar e localizar áreas cerebrais

desenvolver métodos e técnicas que permitam

relacionadas às funções motoras, sensitivas, de

melhorar o diagnóstico, realizar programas de

linguagem e visão, e contribuem para pesquisas

prevenção e tornar mais efetivo o tratamento. A

sobre o funcionamento cerebral em diferentes

escolha da epilepsia se justifica pelo fato de que,

doenças. Outro estudo inovador emprega tec-

além de ser uma doença relevante do ponto de vis-

nologia de imagem nuclear no estudo da densidade

ta médico, já existem no país, notadamente em São

do transportador de dopamina em pacientes

Paulo, importantes grupos de pesquisa sobre o tema

acometidos pelo mal de Parkinson. A pesquisa,

e massa crítica para a articulação de um centro

realizada em colaboração com a Unifesp, foi a

virtual. Para dar coesão às pesquisas, o programa

primeira com marcação de neurotransmissores in

desenvolve investigações utilizando, principalmente,

vivo no país e pode ajudar no diagnóstico precoce

técnica de ressonância de alto campo.

da doença.

O trabalho realizado a partir de redes de instituições e pesquisadores fortalece a massa crítica.

semfronteiras |

15


Natal

comandos entendidos por computadores. Nos

Outro centro de investigação de ponta é o

próximos anos, planeja criar, em cooperação com

Instituto Internacional de Neurociências de Natal

vários laboratórios do mundo, uma veste robótica

Edmond e Lily Safra (IINN-ELS), inaugurado em

para pessoas que perderam o movimento por

2007. Seus objetivos são realizar pesquisas,

conta de lesões na medula espinhal, de forma

promover a educação científica junto aos jo-

a permitir que estímulos motores cerebrais do

vens e atender a população carente de Natal e

paciente controlem uma prótese mecânica, res-

Macaíba, cidade de 62 mil habitantes situada a

taurando-lhes a mobilidade.

25 km da capital do Rio Grande do Norte. Em

As investigações não param por aí. “Nosso

apenas dois anos, as perspectivas abertas pe-

laboratório investiga os mecanismos molecula-

las pesquisas sobre o mal de Parkinson e sobre

res, celulares e psicológicos responsáveis pelo

a interface cérebro-máquina, realizadas pela

papel cognitivo do sono. Memórias explícitas

equipe do neurocientista Miguel Nicolelis — do

como, por exemplo, memórias de lugares, coi-

Departamento de Neurobiologia, codiretor do

sas e eventos, envolvem duas

Centro de Neuroengenharia da Duke University,

diferentes porções cerebrais:

nos Estados Unidos, professor do Instituto

enquanto o hipocampo age

Cérebro e Mente da Escola Poli-

como um armazenador de

técnica

Institutos de pesquisa estão colocando o Brasil em um patamar diferenciado no campo da neurociência.

Lausanne

curto prazo, as memórias,

(Suíça) e diretor científico do

Federal

de

com o tempo, migram com-

IINN-ELS — já eram apontadas

pletamente

para

como algumas das 25 invenções

cerebral”,

explica

que poderão mudar o mundo. Os

Ribeiro, chefe de Laboratório

pesquisadores conseguiram, por

de Pesquisa Científica do IINN.

o

córtex Sidarta

Doenças crônicodegenerativas como o mal de Parkinson são objeto de interesse dos neurocientistas brasileiros.

exemplo, eliminar os sintomas do

Investigando ratos através de registros

Parkinson em roedores. O estudo

neuroniais de multieletrodos e hibridização in situ

foi capa da revista Science, na edição nº 322,

para genes imediatos relacionados à plasticidade,

de 20 de março de 2009. “A ideia dessa cirurgia

os pesquisadores descobriram que memórias de

surgiu por acaso”, revelou Nicolelis na época. Ele

objetos novos no hipocampo desaparecem em

conversava com alunos sobre os sinais cerebrais

questão de minutos, mas persistem reverberan-

dos ratos com Parkinson, quando percebeu que

do no córtex durante o sono por várias horas

aquele padrão era muito semelhante ao que já

após o fim da exploração do objeto.

tinha visto em pacientes com epilepsia. “Será

Uma segunda linha de pesquisa, ele

que o mal de Parkinson é uma forma especial

acrescenta, diz respeito à comunicação vocal

de epilepsia?”, indagou-se. O teste foi feito

e competência simbólica em animais não

com camundongos saudáveis que receberam

humanos. “Nosso foco é o sagui (Callithrix

uma prótese na medula espinhal que disparava

jacchus), uma espécie bastante vocal de macaco

estímulos elétricos e causava um descontrole

do Novo Mundo. Atualmente, dedicamo-nos ao

motor. Constataram que, cerca de três segundos

estudo etológico do repertório vocal do sagui e

após cada disparo, os sintomas do mal de

também ao mapeamento, por meio da expres-

Parkinson desapareciam.

são de genes imediatos dependentes de cálcio,

A equipe chefiada por Nicolelis também conseguiu transformar impulsos elétricos em

16 | semfronteiras

das áreas e vias cerebrais relacionadas à audição e produção das vocalizações.”


CIÊNCIA

Para esquecer, para lembrar Ana Luzia Palka

Pesquisadores paranaenses investigam drogas contra o estresse pós-traumático e Mal de Parkinson, entre outras doenças

Os estudos no campo da neurociência avançam no Paraná. Pesquisadores de diversos

maníacos e o transtorno de estresse póstraumático, foco atual de suas pesquisas.

núcleos acadêmicos e unidades hospitalares investigam novos tratamentos, diferentes abor-

Estresse

dagens terapêuticas e fármacos mais eficientes,

No estresse pós-traumático (TEPT), ele

procurando desvendar essa estrutura misteriosa

explica, a pessoa passa por um trauma emocional

que é o cérebro humano. A produção paranaense

intenso, muitas vezes envolvendo risco para a

já começa a despontar no cenário científico Joka Madruga

nacional e internacional. Roberto Andreatini, do Setor de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR), busca desenvolver medicamentos para os transtornos de ansiedade e humor. Depois de atuar por 18 anos em clínica, Andreatini resolveu conhecer melhor o mecanismo de ação de drogas e passou a dedicar-se à pesquisa préclínica, com uso de modelos animais. Ele investiga as condições patológicas de humor e ansiedade, como o transtorno do pânico, o transtorno de ansiedade generalizada, os quadros depressivos maiores, os episódios

Roberto Andreatini (UFPR) pesquisa medicamentos que podem ajudar pacientes com estresse póstraumático a esquecerem um trauma.

semfronteiras |

17


Joka Madruga

vida, e começa a desenvolver sintomas de revivência daquele episódio e a fazer um distanciamento afetivo das pessoas. “Estamos tentando trabalhar com um hormônio liberado durante uma situação de estresse — o cortisol — que atua em várias proteínas receptoras. Ao testar drogas que agem nesses receptores, uma das substâncias que atuam nos mineralocorticoides acabou mostrando que facilita o esquecimento, pelo menos nos modelos animais. Com o seu uso, o animal esquece mais facilmente o evento estressante”, explica Andreatini. Segundo o pesquisador, essa pode ser uma nova abordagem para o tratamento de pacientes com esse tipo de transtorno, embora a sua aplicação em humanos ainda dependa de uma série de etapas.

Anete Curte Ferraz (UFPR) e sua equipe constataram o efeito antidepressivo de ácidos graxos da família ômega-3, em forma de cápsulas de óleo de peixe, em pacientes com mal de Parkinson.

“Essa substância facilitaria o esquecimento não da memória em si, mas apenas do trauma e de todas as suas consequências, fazendo com que aquele evento

Anete Curte Ferraz, professora do Departamento

se tornasse uma lembrança normal, sem associação

de Fisiologia da UFPR, comprovou junto a um grupo

com a série de alterações de comportamento que

de pacientes parkinsonianos que os ácidos graxos

pacientes com TEPT apresentam”, diz.

poli-insaturados da família ômega-3 apresentam

De acordo com Andreatini, atualmente alguns

efeito antidepressivo. O resultado alcançou grande

antidepressivos são utilizados nessa situação, mas

repercussão no meio acadêmico internacional ao ser

com resultados parciais. “Nem todos os pacientes

publicado, no ano passado, no Journal of Affective

respondem ao medicamento. Para uma parcela,

Disorders.

eles não produzem efeito. Às vezes, combatem

Depois de avaliar o efeito do ômega-3 em ratos,

um sintoma e não outro. Daí a nossa tentativa de

verificando por meio de testes comportamentais o

desenvolver novas medicações, para atender essas

benefício provocado pela substância, Anete Ferraz

pessoas.” Inicialmente identificado como “doença

partiu para o estudo clínico. Com apoio de uma equipe

típica dos soldados” — o termo arcaico “shell shock”

interdisciplinar, envolvendo psicólogos, neurologistas

foi usado pela primeira vez durante a Primeira Guer-

e nutricionistas, a fisiologista aplicou a pesquisa num

ra Mundial para identificar traumas emocionais se-

grupo da Associação Paranaense dos Portadores de

veros adquiridos por combatentes nas trincheiras —,

Parkinsonismo. Depois de três meses de suplemen-

o transtorno de estresse pós-traumático desperta o

tação alimentar com cápsulas de óleo de peixe —

interesse da ciência, atualmente, também por sua

que contém ácidos graxos da família ômega-3 —, foi

relação com situações de violência urbana.

constatada nesses pacientes uma diminuição dos sintomas de depressão.

Cápsulas de óleo de peixe

“Esse foi um dos trabalhos mais importantes do

O mal de Parkinson é alvo de grande parte

nosso laboratório, principalmente porque o consumo

das pesquisas ligadas ao sistema nervoso. No

das cápsulas de óleo de peixe não traz nenhum

Paraná, a doença também é foco de atenção dos

efeito colateral. Minimamente, você estará apenas

neurocientistas. Há dois anos, a pesquisadora

melhorando a qualidade alimentar do paciente”, afirma.

18 | semfronteiras


Segundo a pesquisadora, é possível que o efeito

axônios, ou o que acontece quando há uma lesão desses

positivo da substância seja verificado em qualquer

axônios no sistema nervoso”, explica. Os príons, um tipo

situação de depressão, entretanto ela enfatiza que

de proteína encontrada no gado, podem provocar várias

os pacientes que deixaram de consumir as cápsulas

doenças transmitidas ao homem por meio do consumo de

voltaram a apresentar os sintomas. Atualmente, Anete

carne bovina. Os príons são responsáveis, por exemplo, pelo

Ferraz está estudando o mecanismo de ação do efeito

desenvolvimento da doença de Creutzfeldt-Jakob, mais

antidepressivo dos ácidos graxos ômega-3 sobre as

conhecida como doença da vaca louca. A contaminação

células nervosas.

entre seres humanos também é possível e ocorre por meio

Joka Madruga

de transplante de órgãos ou transfusão de sangue. Já se sabe que as doenças priônicas e outros processos neurodegenerativos provocados pelos príons têm sintomas semelhantes aos do mal de Alzheimer, como perda de memória e rigidez dos membros. Com o desenvolvimento de doenças priônicas, o cérebro de uma pessoa afetada também começa a apresentar cavidades. Guaraná antipânico As pesquisas em neurociência no Paraná não se restringem aos núcleos da capital. As Universidades Estaduais de Londrina e Maringá são outro polo de produção científica voltada à melhor compreensão das Silvio Zanata (UFPR) estuda os príons, um tipo de proteína malestruturada que é uma das causas de processos degenerativos do cérebro.

funções neurológicas. Nessas universidades se instalaram grupos de pesquisadores que desenvolvem essencialmente pesquisas nas áreas de neurofarmacologia, fisiologia da atividade mental e comportamentos defensivos.

Doenças degenerativas Doenças que resultam da degeneração de células

É o caso da professora Elisabeth Audi, da Universidade Estadual de Maringá, que estuda o mecanismo de ação Assessoria de Comunicação Social/ UEM

cerebrais também são temas de pesquisas. É o caso do estudo que vem sendo desenvolvido pelo professor Silvio Zanata, do Departamento de Patologia Básica da UFPR, em torno dos príons — um tipo de proteína malestruturada, difícil de ser destruída, que transforma proteínas normais em anormais, sendo uma das causas de processos degenerativos do cérebro. Suas pesquisas partem do conhecimento sobre os mecanismos de formação dos axônios, que dentro do sistema nervoso são os responsáveis pelos impulsos elétricos a outras partes do corpo, como, por exemplo, os músculos. “Não estudamos os príons infecciosos, e sim a função fisiológica normal da proteína ‘sadia’, o príon celular. O que se quer saber é qual o papel da proteína príon celular no desenvolvimento dos

Elisabeth Audi (UEM) e equipe observaram atividade antidepressiva e antipânico com o uso de extrato de sementes de guaraná e suas frações.

semfronteiras |

19


de drogas antidepressivas e ansiolíticas a partir de extratos vegetais. A pesquisadora tem estudado o extrato de sementes de guaraná e suas frações, obtendo resultados interessantes dessas substâncias como psicotrópicos. “Observamos atividade antidepressiva e antipânico para uma de suas frações”, conta. Outra planta brasileira que faz parte dos seus estudos é a Kielmeyera coriacea,

Centro de Reabilitação utiliza tecnologia de ponta Ana Luiza PalKa Fotos: Bruno Stock

geralmente encontrada no Cerrado e vulgarmente conhecida como pau-santo. É da mesma família da Hypericum perfuratum, que já é comercializada como

antidepressivo.

“Estamos

estudando

substâncias purificadas obtidas da Kielmeyera que mostram a mesma atividade e podem se

A violência urbana colaborou para o aumento do interesse dos cientistas pelo estresse póstraumático.

tornar, no futuro, um antidepressivo totalmente brasileiro”, diz. Com uma produção numerosa no campo da neurociência, os pesquisadores só se ressentem da falta de mais recursos. Para a professora Elisabeth Audi, no Brasil o campo vem crescendo de forma exponencial, mas os investimentos dos órgãos de fomento federais têm sido direcionados mais para os Estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Segundo o professor Roberto Andreatini, o que se cobra também é maior participação dos laboratórios privados no financiamento dessas pesquisas, ainda que seja um investimento de risco. Há estimativas de que, a cada oito mil ou dez mil substâncias pesquisadas, apenas uma chegue a um produto final.

20 | semfronteiras

Especializado no tratamento de doenças relacionadas ao aparelho locomotor, resultantes ou não de problemas neurológicos, o Centro Hospitalar de Reabilitação Ana Carolina Moura Xavier, em Curitiba, é a principal referência na reabilitação de deficientes físicos no Paraná.


o o a

Centros como o Hospital Ana Carolina servirão como ponte entre pesquisa e atendimento em saúde

O Centro dispõe de um Laboratório de Marcha, que possui um sistema de análise precisa dos movimentos do paciente.

Os resultados obtidos pelos núcleos de pesquisas em

que possibilita a coleta de dados e a análise precisa dos

neurociência vão encontrar aplicação prática em centros

movimentos. O hospital também é um dos primeiros a

especializados no tratamento de doenças que envolvem

utilizarem um aparelho denominado Biofeed, desenvolvido

o sistema nervoso. O Paraná ganhou recentemente uma

pelo Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar) e próprio para

unidade de referência em reabilitação de pacientes aco-

que médicos e fisioterapeutas possam medir exatamente o

metidos por essas doenças. O Centro Hospitalar de Rea-

grau de articulação dos membros e com isso avaliar avanços

bilitação Ana Carolina Moura Xavier, localizado no bairro

ou retrocessos em determinados tratamentos. A parceria

Cabral, em Curitiba, é especializado no tratamento de doen-

com a Associação Paranaense de Reabilitação garante a

ças relacionadas ao aparelho locomotor, resultantes ou não

manutenção de uma oficina de próteses e órteses, onde são

de problemas neurológicos – sequelas de derrames cerebrais,

utilizadas tecnologias de última geração.

lesões da coluna, doenças que ocorrem no nascimento (co-

Todo o atendimento no Centro Hospitalar é gratuito.

mo as paralisias cerebrais), doenças congênitas complexas,

O hospital é mantido pela Secretaria de Estado da Saúde,

miopatias, doenças mielomeningocélicas e amputados.

que investiu aproximadamente R$ 35 milhões na sua implan-

De acordo com o médico ortopedista Cadri Massuda,

tação. São 60 leitos em enfermaria, 12 em unidade de terapia

diretor do Hospital Ana Carolina, esses tratamentos cor-

intensiva, e uma expectativa de atendimento de 400 a 500

respondem a uma primeira etapa do atendimento, que, mais

pacientes/dia quando estiver em pleno funcionamento. O

tarde, deve se estender a outros procedimentos, relacionados

hospital ainda não iniciou os serviços de internamento, o que

a artroses, lesões esportivas e sequelas de traumas. Tam-

também deverá ocorrer em breve, segundo Cadri Massuda.

bém numa próxima fase, será colocado em ação o convênio

Com a estimativa de que 2% da população sofrem de

com a UFPR para utilização do centro como campo de ensino

alguma doença do aparelho locomotor – o que, no Paraná,

e pesquisa. “A Universidade é um dos nossos parceiros e

representaria aproximadamente 200 mil pessoas –, o médico

entra no empreendimento com o conhecimento científico”,

Cadri Massuda considera que a construção do Hospital

diz o diretor.

Ana Carolina foi um dos investimentos mais importantes

Em termos de tecnologia, o Centro de Reabilitação

e necessários na área da saúde. Em pouco tempo, ele se

Ana Carolina está bem equipado. Dispõe de equipamentos

transformará numa referência nacional. “Teremos um

modernos, como o Laboratório de Marcha, um dos pou-

dos melhores centros do país, ao lado da Associação de

cos existentes no Brasil. O laboratório reúne um sistema

Assistência à Criança Deficiente (AACD), em São Paulo, e do

computadorizado de plataforma e câmaras especiais

hospital Sara Kubitschek, em Brasília”, garante.

semfronteiras | 21 semfronteiras


CIÊNCIA

Tristeza ou depressão? Instituto Pelé Pequeno Príncipe avalia transtornos comportamentais em crianças

Cerca de 20% das crianças e adolescentes

do

planeta

sofrem

grupos de pediatras, são escassas e ainda

de

não existem testes de laboratório para

transtornos comportamentais e de humor,

complementar o diagnóstico clínico dos

de acordo com a Organização Mundial da

transtornos comportamentais e de humor.

Saúde (OMS). Transportando esse índice

Daí a dificuldade, muitas vezes, em se

para a realidade nacional, e tendo como

diferenciar um estado de depressão de um

parâmetro o censo de 2000 do Instituto

estado de tristeza.

Brasileiro de Geografia e Estatística

De

acordo

com

os

critérios

(IBGE), estima-se que aproximadamente

estabelecidos pela Associação Americana

11 milhões de crianças e adolescentes

de Psiquiatria, os sintomas do transtorno

brasileiros sofram desses problemas.

de depressão caracterizam-se por um

Os

transtornos

comportamentais

ou mais episódios depressivos; por pelo

e de humor decorrem do mau funcio-

menos duas semanas de humor deprimido

namento de estruturas cerebrais que

ou perda de interesse, acompanhados

modulam funções como atenção, lingua-

por sintomas adicionais como insônia ou

gem, memória e emoção. Crianças e ado-

hipersonia quase todos os dias; fadiga; e

lescentes com esse quadro apresentam

pensamentos de morte recorrentes.

dificuldade em aprender e em desenvolver um bom relacionamento com a família e

Crianças e adultos

a comunidade. Esses comportamentos

“Durante muito tempo, acreditou-

continuam na vida adulta, tornando-se

se que crianças e adolescentes não

fatores de risco para o desemprego, uso de

eram afetados pela depressão”, afirma o

drogas, criminalidade e comportamentos

neuropediatra Antonio Carlos de Farias.

antissociais.

Pesquisas epidemiológicas mostram, no

No Brasil, pesquisas nessa área

entanto, que cerca de 1% das crianças

do conhecimento, particularmente com

pré-escolares sofre de depressão infantil,

22 | semfronteiras


Instituto Pelé Pequeno Príncipe

número que aumenta para até 4% e 8% em crianças em idade escolar e em

adolescentes,

respectivamente,

sublinha o médico. “As crianças são tão suscetíveis quanto os adultos. Enquanto estes apresentam humor deprimido, nelas este sintoma pode aparecer como um humor irritável e um comportamento hiperativo. Por isto, um diagnóstico criterioso é essencial”, registra. Preocupada com essa situação, a Associação Hospitalar de Proteção à Infância Dr. Raul Carneiro, de Curitiba, por meio da sua instituição de pesquisa científica Instituto de Pesquisa Pelé Pequeno Príncipe, submeteu projeto à Secretaria de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, em 2007, com o objetivo de avaliar, gratuitamente, 600 crianças e adolescentes de escolas municipais de Curitiba, utilizando um protocolo da Universidade da Califórnia, Los Angeles (UCLA). Idealizado e coordenado pela neurocientista Mara

Desenho feito por uma criança diagnosticada com depressão, no qual ela se autorretrata triste e referindo-se a si mesma como “ridícula”.

Lucia Cordeiro, com participação do neuropediatra Antonio Carlos de Farias,

As avaliações sanguíneas incluem exames dos hormônios

esse projeto conta com recursos da

da tireoide, hemograma e análise de cálcio, ferro, magnésio,

ordem de R$ 250 mil do Fundo Paraná.

manganês, mercúrio urinário, chumbo e zinco, bem como análises

Entre as principais recomenda-

do eixo hipotalâmico-hipofisário-adrenal. “Fatores de risco como o

ções do protocolo estão avaliações

fumo durante a gestação, a inter-relação com fatores ambientais,

neurológicas, oftalmológicas, de au-

micronutricionais,

dição e aplicação de testes de inteli-

e a interação medicamentosa também fazem parte da pesquisa”,

gência, como o WISC-III. Também

informa a coordenadora científica do projeto. Até novembro de 2009,

está prevista a realização de testes

375 alunos da rede municipal haviam passado por essas avaliações.

psicopedagógicos visando proporcionar

Os dados preliminares da pesquisa foram publicados no início do

às crianças e adolescentes uma melhor

ano no Journal of Child and Adolescent Psychopharmacology e no

qualidade de vida.

Journal of Attention Disorders. (RR)

neuroquímicos,

neuroendócrinos,

genéticos

semfronteiras |

23


Ciência, tecnologia e humanização da sociedade Osvaldo Della Giustina

O processo civilizatório

em torno do capital, consequência, entre outros fatores,

Neste início de século, ou de milênio, a humanidade,

da descoberta da máquina a vapor, independentemente

nós, estamos chegando a uma nova era, ou modo de ser

de ser o capital possuído por pessoas, grupos, sistemas

da civilização. Ao afirmar isso não estou me referindo,

e organizações, ou pelo Estado. Essa alternativa deter-

propriamente, às profecias ou às aspirações dos místi-

minou o surgimento do socialismo e do capitalismo,

cos, aquarianos ou não. Refiro-me a um imperativo

ambos fundamentados no capital, não nas pessoas, ou

histórico, determinado pelas transformações do modo

na sociedade e seus componentes.

de ser e agir da sociedade, condicionado agora pelos avanços da Ciência e da Tecnologia.

É importante identificar algumas características desse processo.

Se considerarmos que a transição de uma era

A primeira delas refere-se à aceleração das trans-

para outra, ou seja, para um novo estágio civilizatório,

formações que caracterizam essas mudanças. Enquanto

é inerente ao processo histórico, podemos concluir

no primeiro estágio a transformação se fez em milhares

com segurança que estamos vivendo um desses mo-

ou milhões de anos, no segundo estágio, aconteceu em

mentos. Abro um parêntese para definir que entendo

alguns séculos e do mundo feudal para a organização

por mudança civilizatória a chegada ou a construção

industrial em pouco mais de um século.

de uma profunda transformação da estrutura, dos procedimentos, do conhecimento, dos valores, enfim, de todos os componentes de uma sociedade. Há um certo consenso entre antropólogos e historiadores em geral que pode ser considerada como uma primeira transição civilizatória: a transformação do homem tribal, ou nômade, para o homem urbano, da organização de cidades e impérios; em seguida, deste estágio para uma organização mais descentralizada e distribuída – a denominada era feudal; enfim, do estágio feudal para uma sociedade organizada e funcionando

24 | semfronteiras

“É pertinente a afirmação de que uma nova era, a era póscivilização industrial, se aproxima velozmente. Este é um imperativo histórico, não só pelo esgotamento do sistema do capital, ainda vigente, mas especialmente pelo surgimento de novos fatores de mudança produzidos pelos avanços da Ciência e da Tecnologia.”


Nesta evidência histórica da aceleração

avanços da ciência e das artes renascentistas,

das mudanças é pertinente a afirmação de que

que propiciaram a descoberta da máquina a vapor,

uma nova era, a era pós-civilização industrial

e de uma nova cultura, além das novas teorias

se aproxima muito velozmente. Este é um im-

sociais decorrentes.

perativo histórico, não só pelo esgotamento

Considerado esse ângulo, pode-se afirmar

do sistema do capital, ainda vigente, mas espe-

que nenhum dos fatores passados tenha tido,

cialmente pelo surgimento de novos fatores de

em tão pouco tempo, a dimensão dos fatores

mudança, produzidos pelos avanços da Ciência

científico-tecnológicos e de outras

e da Tecnologia.

ordens que estão impulsionando as ao

transformações do atual processo

fato de que as mudanças civilizatórias, no pas-

civilizatório. Isso nos permite con-

sado, não têm ocorrido simultaneamente nas

cluir da inevitabilidade que esta-

diversas partes do mundo. É consequência desta

mos, efetivamente, vivendo uma

característica que, mesmo neste início de mi-

transformação civilizatória, da era

lênio, podem ser encontrados, povos, ou regiões

industrial para uma nova era.

A

segunda

característica

refere-se

que mal estão saindo da era das cavernas ou das civilizações tribais, em contraste com povos, ou regiões, que vivem na era industrial, ou já a tenham ultrapassado.

O momento de transição A questão é para onde esses

“Este processo em transição teima em manter a organização e o funcionamento da sociedade com base nos fundamentos da era industrial, identificados no século XIX.”

fatores estão impulsionando a ci-

As mudanças ocorridas na história do

vilização. Exemplificando a dimensão desses

passado portanto nem foram globais, nem foram

fatores, podem ser citados como surgidos no

simultâneas. De outra parte a transição que es-

curto espaço do ultimo século, o rádio, o telefone

tamos vivendo poderá acontecer instantaneamente

sem fio, o celular, o automóvel, o avião, o jato, o

ou quase. Assim já o demonstram, na prática,

foguete espacial, a energia nuclear, o satélite, a

alguns fatos que presenciamos, como, por

nave espacial, a química fina, a nova engenharia,

exemplo, a crise financeira, da qual as economias

a engenharia genética, a eletrônica, a televisão, o

tentam sair, e que rápida, quase instantaneamente

computador, a internet e os serviços em rede, os

adquiriu proporções globais.

shopping centers, as megalópoles e o esvaziamento

Uma terceira característica deve ser atri-

dos campos. Ainda, a explosão demográfica, os

buída, enfim, ao surgimento de fatores específicos

sistemas globalizados, a interdependência glo-

que preparam, precipitam, a mudança civilizatória.

bal, a economia concentrada. Dessa forma, a

Assim, retornando à análise, dos diversos

dimensão da Ciência e da Tecnologia, globalizando

estágios. No primeiro estágio, os fatores deter-

todas as coisas, somada à rapidez das mudanças,

minantes teriam sido o domínio do fogo e a

rompendo todas as fronteiras e, ainda, a ve-

descoberta do uso dos metais; a mudança da era

locidade da inovação transformada em processo

dos grandes impérios para a organização feudal

contínuo nos permitem dizer que a interpretação

teria sido a difusão de novas teorias clássicas de

estática do mundo proposta por Parmênides está

organização social e, especialmente no ocidente

sendo substituída pela visão dinâmica ou mutante

a difusão do cristianismo e seus valores, mais do

proposta por Heráclito. Nos permite até especular

que propriamente invasões dos povos periféricos;

se não estamos nos aproximando da superação

a transição da era feudal para a civilização

das formas fundamentais do tempo e do espaço,

do capital, enfim, teria sido consequência dos

propostas por Kant.

semfronteiras |

25


Wikipedia

Escola de Atenas, afresco para o Vaticano. Rafael (1506 –1510).

Wikipedia

Wikipedia

Parmênides de Eleia (Cerca de 530 a.C. – 460 a.C.): Toda mutação é ilusória.

Heráclito de Éfeso (Cerca de 540 a.C – 470 a.C.): Tudo está em perpétua mutação.

26 | semfronteiras


Este é o mundo atual, momento de transição,

da Ciência e da Tecnologia poderiam ser fatores

que vai nos levar à civilização da nova era, ou da pós-

essenciais no processo de evolução da espécie

tecnologia.

humana, de quem são criaturas.

A questão é que esse processo em transição

No rumo em que estamos indo,

teima em manter a organização e o funcionamento

estamos ameaçados de reviver a

da sociedade, baseados nos fundamentos da era

fábula do aprendiz de feiticeiro.

industrial, ou seja, identificados ou propostos no século XIX, no tempo das tecnologias do trem de

As perspectivas da Ciência e da

ferro, da máquina a vapor e de outros conhecimentos

Tecnologia

“No rumo em que estamos indo, estamos ameaçados de reviver a fábula do aprendiz de feiticeiro.”

e tecnologias da época. Afinal, O Capital, de Marx,

Nessa percepção, a Ciência

ou a Riqueza das Nações, de Adam Smith, foram

e a Tecnologia utilizadas em

escritos em meados daquele século. Os neo que se

favor da espécie humana produziriam a era pós-

acrescentaram, tanto à visão socialista como à visão

tecnológica efetivamente humanizada, isto é, or-

capitalista, não alcançaram trazer o processo à era

ganizada e funcionando em níveis harmônicos com

das transformações trazidas pelo avanço Ciência e

o processo civilizatório e a evolução do homem, ou

da Tecnologia.

seja, caminhando do ponto Alfa, primitivo, ao ponto

Tal dissintonia tem produzido as crises que ameaçam esta fase de transição, crises que não se

Ômega, pleno, na interpretação antropológica de Teilhard de Chardin.

esgotam nos setores econômicos, ou financeiros.

A viabilidade desse novo processo, no entanto,

Elas abrangem a política, e ética individual e social,

tem como pressuposto a superação de fundamentos,

a estrutura da sociedade, aumentando a miséria,

valores, estruturas e procedimentos que caracterizam

de um lado, e a concentração da riqueza, do outro,

a sociedade atual, como se disse.

fazendo com que bilhões de pessoas e dezenas

Poderão essas teorias, do século XIX, ainda

de países vivam abaixo do nível de sobrevivência,

que remendadas, continuar a ordenar o processo de

enquanto a riqueza e o conhecimento se concentram

transição, ou a civilização pós-tecnológica?

cada vez mais nos sistemas que fogem cada vez mais às dimensões humanas. Esse desequilíbrio constitui a ameaça deste mo-

Mesmo que não possam, para que esse ordenamento seja possível não basta ultrapassá-las. É necessária a definição de novos instrumentos e

mento de transição, ameaça que está aprofundando

teorias de organização social que

a desumanização do processo civilizatório, e sua

a organizem e a fundamentem

transferência para o estágio civilizatório da era

com base em novos valores.

pós-tecnológica. Isso ocorrendo, as pessoas estarão

Ora esses valores, embora

submetidas a uma nova forma de totalitarismo, pior

difusos e desordenados, aí estão

do que os que conhecemos no passado, ou ainda no

compartilhados globalmente por

presente, porque sem face, detentor de um poder

pessoas e instituições, indepen-

incalculável, capaz de amortecer consciências,

dentemente de raças, crenças,

globalizar-se e massificar, ou robotizar o homem.

países, religiões, ideologias, ou

“É preciso que se voltem a desenvolver a Ciência e a Tecnologia do homem e da sociedade, para que não se desumanize o processo civilizatório.”

Esse processo de desumanização, porém,

outros componentes da realida-

não pode ser atribuído aos avanços da Ciência e

de global. É o conjunto desses

da Tecnologia em si. Ao contrário. Sob qualquer

valores que, em meu livro Partici-

aspecto que se considere, seja o antropológico, o

pação e Solidariedade, defino como massa de

social, o pessoal, o ético ou espiritual, os avanços

consciência. Esta massa de consciência, embora

semfronteiras |

27


Wikipedia

Immanuel Kant (Königsberg – 17421804): “Age de maneira tal que a máxima de tua ação sempre possa valer como princípio de uma lei universal.”

28 | semfronteiras

Wikipedia

“Kant e seus amigos à mesa”, pintura de Emil Doerstling (cerca de 1900).


difusa e desordenada, está a clamar pela consciência e

Entre outros valores, compõem a massa de

competência das pessoas, e instituições que assumam

consciência, a título de exemplo, a aspiração ou a

o esforço de transformá-la em prática. É preciso que

exigência em favor dos direitos humanos – da vida,

se entenda isso, para que esse momento de transição

da liberdade, da participação e da solidariedade entre

e para que a nova sociedade, que está por vir, não

pessoas, culturas, povos e nações; ainda, a justiça, a paz,

aconteçam ao acaso, de forma desordenada e caótica,

a preservação da natureza, e de melhores condições

ou simplesmente pela ruptura, de forma violenta,

ou qualidade de vida; o acesso universal aos direitos

desumanizando o processo civilizatório.

básicos, como a educação, a saúde, o lazer, o respeito à

Na resposta a este clamor está o desafio,

dignidade de cada um e a igualdade entre todos,

especialmente das universidades e de seus intelectuais,

A adoção desses valores como fundamentos

e não só dos políticos e empresários, ou de outras

da sociedade pós-tecnológica humanizada implica a

categorias, pois as universidades e os intelectuais

superação de valores que fundamentam a sociedade

que as constituem são por definição produtores do

atual – seus instrumentos e resultados: a concentração

conhecimento, da ciência e da tecnologia inovadores.

e a competição sem limites; a eliminação de tecnologias

Deve-se, ainda, acrescentar que, neste processo de

ou outros fatores agressivos à natureza, ainda

transição, as universidades e seus cientistas não podem

que aparentemente em prejuízo da produtividade,

se dedicar, apenas ou prioritariamente, à investigação

também o controle dos sistemas globais e a supera-

ou ao desenvolvimento da Ciência e da Tecnologia das

ção de modelos econômico financeiros baseados

coisas. É preciso que se voltem a desenvolver a Ciência

na especulação e em outros procedimentos que

e a Tecnologia do homem e da sociedade, para que não

resultam na marginalização das parcelas mais fracas

se desumanize o processo civilizatório.

da população, pessoas, países e instituições. Implica,

Nesse esforço sua responsabilidade abrange a

enfim, a diminuição também do poder do Estado, dos

investigação e o desenvolvimento de novos modelos de

sistemas e dos grupos dominantes e, sobretudo, a

organização e funcionamento da sociedade, coerentes

prática de uma nova ética, além da ética individual.

com os avanços da Ciência e da Tecnologia e coerentes

Sei que não é projeto fácil ultrapassar esses

com a dimensão dos valores da massa de consciência.

fundamentos e seus instrumentos, e viabilizar os

Este é, seguramente, o caminho de sobrevivência da

novos valores. Mas esta é a condição de sobrevi-

sociedade humanizada, ou da sociedade, simplesmente.

vência da sociedade humanizada e, como se disse, possivelmente a sobrevivência da própria sociedade,

Os valores da sociedade humanizada Esses valores é que farão a humanização da

sintonizada com os avanços da Ciência e da Tecnologia, a serviço do homem.

sociedade pós-tecnológica, pondo a ciência e a tecnologia a serviço do homem. Eles existem e crescem em toda parte, proclamados pelos meios de comunicação, pelas lideranças políticas e religiosas; também por grupos empresariais e de outras categorias da sociedade; enfim por um número crescente de pessoas

Osvaldo Della Giustina é educador, filósofo e escritor.

e instituições em todo o mundo. O que falta é organizar

Patrono

a sociedade em sintonia com eles.

(Universidade do Sul de Santa Catarina – Unisul).

da

Cátedra

Participação

e

Solidariedade

semfronteiras |

29


30 | semfronteiras


Espaço de complexidades MIGUEL SANCHES NETO Ilustração: Simon Ducroquet

semfronteiras |

31


Eu me valho aqui das distinções apresentadas pela professora

Território de embates políticos cada vez

instáveis. Em ambos os casos, exigem-se

mais polarizados, a Universidade traz uma

da Universidade respostas diretas, novas

tendência a se organizar de forma binária.

organizações

Embora se fale tanto da indissociabilidade

específicas. Há, enfim, uma pressão pela

entre ensino, pesquisa e extensão, a ponto

customização de conteúdos. Um caso ilustra-

de esvaziamento total do sentido desta

tivo desta demanda sob medida, própria do

expressão, há muita resistência em pensar

meio empresarial, é a onda dos cursos in

o ensino superior fora de dualidades redu-

company, voltados para formar funcionários

toras. Assim, de um modo geral, o que

para o domínio de conteúdos aplicados.

de

saberes,

metodologias

entendemos como Universidade nasce, na

É indiscutível que essa experiência

melhor das hipóteses, da junção de duas

em situações concretas pode levar a uma

destas três áreas.

formação cidadã ou a uma melhoria da

O grau de complexidade seria então

capacidade produtiva de empresas, mas há

binário: ensino/extensão, ensino/pesquisa e

o grande risco de a Universidade ver a sua

pesquisa/extensão, cada um deles apontando

função primeira, a de ampliação cultural para

para finalidades muito específicas.

uma formação plena, ser atropelada pelas

Sonia Regina

No primeiro conjunto, entende-se que

urgências do momento, por conta de uma

Mendes dos

a extensão, nas relações de aproximação

solicitação contínua de projetos orientados

Santos (UERJ)

com a comunidade, leva o ensino a manter

para o desenvolvimento socioeconômico nas

no XXV Encontro

uma sintonia fina com o tempo presente,

mais diversas frentes.

Nacional de

com as questões do contexto. A intervenção

A Universidade não é uma empresa

se faz mais horizontal, rendendo-se às

de consultoria, disponível para resolver

Universidades

demandas, que criam agendas de projeto.

problemas, embora ela não possa se

Pró-Reitores de Extensão das Públicas

Problemas sociais agravados por um proces-

desvincular das tensões de seu tempo.

Brasileiras (João

so de globalização colocam um número

Sua intervenção deve ter caráter político-

Pessoa, 17 a 19 de

cada vez maior de pessoas à margem da

pedagógico,

cidadania, gerando uma pressão crescente

objetivo de promover o desenvolvimento

da comunidade sobre o ensino superior.

cultural e científico numa perspectiva de

De outro lado, novas lógicas de mercado

solidariedade social, justiça, ética e demo-

também investem sobre a universidade

cracia. Gerando assim conhecimentos capa-

por conta de um novo perfil profissional

zes tanto de sustentar a crítica aos modelos

necessário no contexto da reformulação

social e político vigentes quanto de propor

produtiva, um perfil que se funda no domínio

projetos e alternativas possíveis de serem

de conhecimentos e na capacidade de

replicados na própria comunidade e nas

resolver problemas e de atuar em cenários

políticas públicas.

junho de 2009).

32 | semfronteiras

formando

sempre

com

o


Não cabe à Universidade uma ação

inovações do que propriamente inovadores,

em grande escala. Todo projeto envolvendo

uma vez que este papel é destinado a poucos,

extensão e ensino tem que ser entendido,

em uma visão totalmente hierarquizada,

antes de tudo, como um espaço-escola,

própria da sociedade da especialização.

voltado para a formação do aluno e da

Nessa perspectiva, a formação cria quadros

comunidade numa perspectiva crítica e

para o mercado, onde os profissionais vão

autonomizante.

antes operar os saberes técnicos. Quando

Nesse conjunto, a falta da pesquisa

isso ocorre é a pesquisa que determina os

pode levar a uma valorização da ação,

objetivos do ensino, numa desconexão com a

dando ao binômio ensino-extensão um ca-

comunidade, que entra apenas como público,

ráter pragmatista. É justamente pela pes-

sem interferir minimamente na formação,

quisa que se incorporam os saberes da

que perde o seu caráter cidadão.

comunidade, desenvolvem-se metodologias

Por fim, o último conjunto, pesquisa/

universalizadoras e se cria um espírito de

extensão, desvirtua totalmente a razão

investigação sem o qual não há autonomia

de ser da Universidade, que deixa de ser

do indivíduo ou crítica da realidade. Sem

formadora para se propor como agência

a pesquisa, corre-se o risco de ensino/

de pesquisa, com o poder de potenciali-

extensão virar um campo de adestramento

zar os saberes (universitários e populares),

de habilidades técnicas, de transferência de

apropriando-se de tradições, expandindo

tecnologias, de submissão ingênua à lógica

inovações. É um espaço mais próximo do

do mercado ou de simples militância política.

laboratório do que da Universidade, em que

Pertencendo mais a uma visão de

a própria sociedade serve para estes fins

futuro e de verticalização profissional, o

experimentais, tanto no desenvolvimento

conjunto ensino/pesquisa estimula o pro-

quanto na aplicação. O interesse está no

cesso de aprendizagem pela inovação. O

saber em si e não na formação acadêmica

conhecimento que se persegue modifica

(ou acadêmico-profissional), uma vez que se

a compreensão sobre o e do mundo, busca

elimina a preocupação com o ensino.

desenvolver novas tecnologias, numa visão

Embora

esses

conjuntos

desempe-

de progresso científico, de valorização do

nhem funções próprias da Universidade,

novo e de transformação.

eles promovem visões compartimentadas,

Porém,

assim

como

no

binômio

intensificando a especialização, e conse-

ensino/extensão há o risco da prática pela

quentemente alienando os indivíduos, que

prática, neste pode-se incorrer no perigo

dominam alguns conhecimentos sem saber

de que os esforços acabem criando antes

de que forma eles estão articulados entre si

um profissional apto a dialogar com as

e com a realidade.

semfronteiras |

33


Seja de natureza operatória, militante ou inovadora, a Universidade brasileira renuncia a uma comunicação interna maior quando perde o seu principal vínculo, uma cultura geral que crie uma base de reconhecimento mútuo. São frágeis ou inexistentes os pontos de contato entre as áreas, pois há uma energia centrífuga, que afasta os conteúdos de um centro. Este centro é o domínio de uma cultura geral como identidade humana. Em Universidade e Educação Geral: para além da especialização (Campinas: Alínea Editora, 2007), volume organizado por Elisabete Monteiro de Aguiar Pereira, esta diz: A Educação Geral visa formar o cidadão da democracia moderna com conhecimentos que lhe permitam arbitrar o conhecimento especializado e usar as habilidades profissionais tendo como parâmetro os valores morais, cívicos e humanos e não o interesse do mercado, do corporativismo ou das vantagens pessoais (p.10).

Essa base comum, banida dos currículos por uma visão laboratorialista (que isola as partes para dissecá-las), cria barreiras cada vez mais espessas entre os cursos de graduação e mesmo entre as disciplinas de cada curso. O ensino universitário se transforma assim num conjunto de partes que não têm mais o todo como horizonte. O separatismo da especialização desempenha ainda um efeito político muito nocivo, reforçando as disputas internas na medida em que cada uma das áreas se vê como a mais importante, o que leva a um inchaço dos cursos de graduação, com as disciplinas técnicas reivindicando mais e mais espaço. Essa concepção cientificista do ensino tem sido combatida pelo sociólogo Edgar Morin a partir da ideia de identidade englobante, que vai, em círculos concêntricos, do eu para o nós e do nós

34 | semfronteiras


para a espécie – um conhecimento pessoal, social

todo e o todo às partes ele chama de “pensamento

e planetário. Ele se opõe a uma preponderância

complexo”, que não seria algo destinado apenas a

da lógica isolacionista da Universidade, buscando

filósofos e cientistas:

devolver-lhe a feição humanizadora ao localizar no

Ele diz respeito a cada pessoa, cada cidadão

indivíduo o centro do processo de aprendizagem.

submetido ao risco do erro e da ilusão, incapaz de

Fazer deste um sujeito interrogante é a missão

religar os conhecimentos separados, impotente diante

do ensino.

dos problemas fundamentais e globais. Diz respeito

Em um livro que apresenta um panorama de seu pensamento e de sua vida, Meu caminho (Rio de Janeiro: Bertrand, 2010), o sociólogo critica esta ótica fragmentadora da ciência:

à nossa vida cotidiana e [às] nossas relações com o outro. (p.246).

Dentro

da

estrutura

da

Universidade

brasileira, o grande espaço de conjugação dos

Sob o efeito da acumulação dos saberes, a ciência

saberes, de ultrapassagem das especialidades e

setorizou-se e seus grandes campos de conhecimento

de uma visão que interligue o indivíduo, o contexto

– a física, a biologia e as ciências do homem – isolaram-

e o planeta é a extensão. Mais do que a face

se uns dos outros. Cada um desses campos, por sua vez, setorizou-se e, em todos os domínios, técnicos e especializados, desenvolveram-se conhecimentos compartimentados. Com isso a cultura científica converteu-se em uma cultura da especialização, na qual

solidária da Universidade, a extensão assume hoje uma centralidade no pensamento universitário. No espaço-escola em que ela se faz, devem se religar cada vez mais Universidade e sociedade,

cada disciplina tende a se fechar e a se tornar esotérica,

e também as várias áreas, os múltiplos saberes,

não apenas para o cidadão comum, mas também para

as artes e as ciências. A extensão passa a se

os especialistas das outras disciplinas (p.209).

configurar, então, como o âmbito acadêmico com

O grande desafio seria retomar a perspectiva do todo, mesmo sabendo que ele hoje é inalcançável, dada a explosão das especialidades, que não podem mais ser conjugadas em uma única pessoa. Este projeto de formação expansiva – contra a lógica particularizante da ciência – é proposto por Morin segundo dois conceitos complementares: a religação dos saberes e o pensamento complexo. Sem recusar o conhecimento especializado, ele propõe uma pedagogia marcada pelo princípio dialógico, multifocal, com uma base cultural

maior capacidade de superar a polarização dos binômios e conferir ao trabalho universitário a coerência e a unidade que somente o desgastado mas ainda imprescindível tripé (ensino, pesquisa e extensão) pode concretizar. Para que esse processo se acelere são fundamentais as políticas de financiamento daquelas ações universitárias que priorizem os projetos polidisciplinares de ensino e pesquisa no ambiente da extensão. Esta trindade, posta neste rumo, representa uma abertura para complexidades crescentes.

voltada para a soma – acrescentar ao invés de eliminar. Ou seja, uma construção agregativa do conhecimento, tendo como norte a formação de um sujeito em confronto com o grupo e com a

Miguel Sanches Neto é escritor e professor-associado

espécie. A este movimento de religar as partes ao

da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).

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36 36 || semfronteiras semfronteiras


Visible Earth/Nasa

meio ambiente

Recuos, avanços, controvérsias... Claudia Izique

Coordenador do estudo “Economia das Mudanças Climáticas no Brasil”, Jacques Marcovitch faz balanço da COP 15

Apesar do clima de frustração, a Conferência do

de grandes países da União Europeia como Alemanha,

Clima de Copenhague (COP 15) resultou em avanços

França e Reino Unido, concordaram que uma econo-

importantes: viabilizou a criação de um fundo para

mia de baixa emissão de carbono é indispensável para

acelerar o desenvolvimento e a transferência de tec-

o desenvolvimento econômico. E que o Protocolo de

nologias limpas e reconheceu as iniciativas de redução

Kyoto reforça a redução de emissões”, avalia Jacques

de emissões por desmatamento e degradação da

Marcovitch, professor da Faculdade de Economia,

floresta como cruciais para a segurança climática.

Administração e Contabilidade da Universidade de

“Entendo que foram realizados alguns avanços que me-

São Paulo (FEA/USP) que, desde 2002, pesquisa as

recem ser valorizados. Estados Unidos e China, com a

políticas de implantação da Convenção do Clima e do

participação do Brasil, Índia e África do Sul e o endosso

Protocolo de Kyoto.

Imagem de satélite mostra desmatamento no Estado do Mato Grosso.

semfronteiras semfronteiras || 37 37


Autor de diversas publicações, entre elas o livro

No caso do Brasil, essa posição de destaque é

Projetando o futuro — mudanças climáticas, políticas

reforçada pelo esforço para reduzir o desmatamento,

e estratégias empresariais, Marcovitch menciona o

um dos fatores diretamente relacionados ao aque-

acordo firmado em Copenhague que viabilizou um fundo

cimento global, pelos investimentos em pesquisas

de US$ 30 bilhões de apoio aos países pobres, para o

relacionadas à redução de emissão, energia limpa

período de 2010 a 2012, bem como o compromisso de

e biocombustíveis – a meta é reduzir em 80% o

constituir um outro fundo, de US$ 100 bilhões, até 2020,

desmatamento da Amazônia até 2020 e evitar a

para acelerar o desenvolvimento e a transferência de

emissão de 4,8 bilhões de toneladas de CO2. Um

tecnologias limpas. “Também foi acordado que os

exemplo de estudo na área é “Economia das Mudanças

resultados das ações de mitigação que dependam de

Climáticas no Brasil” (EMCB), que ficou conhecida

recursos externos serão monitorados e verificados

como o “Relatório Stern brasileiro” – referência ao

unicamente no âmbito de cada país”, acrescenta. Outro

estudo produzido em 2006 pelo economista Nicholas

avanço importante, ele diz, foi o reconhecimento das

Stern para o governo britânico, sobre o impacto

florestas tropicais para a segurança climática. “As

das mudanças climáticas na economia mundial nos

iniciativas de redução de emissões por desmatamento

próximos 50 anos, cujos resultados foram divulgados

e degradação florestal foram amplamente reconhecidas

em novembro de 2009. Coordenado por Marcovitch,

e mencionadas em três dos 12 parágrafos do Acordo de

o EMCB, resultado de um consórcio formado pelas

Copenhague.”

universidades de São Paulo (USP) e de Campinas

As dificuldades para se chegar a um entendimento

(Unicamp) e vários institutos importantes de pesquisas,

eram previstas. “Com 190 países enfrentando realidades

reuniu os maiores especialistas brasileiros na análise

econômicas, sociais e ambientais distintas, era de se

e quantificação do impacto da mudança do clima na

esperar problemas”, ele afirma. No encontro, o Secretário

agenda de desenvolvimento no país.

Geral da Convenção, Yvo de Boer, colocou em debate

O estudo constatou que o Brasil corre o risco de

quatro itens: metas de redução

ter perdas econômicas entre R$ 719 bilhões e R$ 3,6

de emissões; recursos financeiros

trilhões (o equivalente ao PIB de um ano inteiro) em

para

Uma economia de

adaptação;

2050 caso nada seja feito para reverter os impactos

apoio para o desenvolvimento e

das mudanças climáticas. As regiões mais vulneráveis

a transferência de tecnologias; e

à mudança do clima seriam a Amazônia e o Nordeste,

estrutura de governança para a

com perdas expressivas para a agricultura em quase

alocação dos fundos mobilizados.

todos os Estados. Além disso, a previsão é de uma

“Os

nestes

menor confiabilidade no sistema de geração de

itens propiciaram negociações de

energia hidrelétrica, com redução de 29,3% a 31,5%

perfil ‘ganha-perde’, que levaram a

da chamada energia firme (isto, é, a passível de

impasses.” Recorreu-se então à mediação de um grupo

produção pela planta hidrelétrica nos períodos mais

de 28 países, incluindo os mais vulneráveis às mudanças

críticos de estiagem).

baixa emissão de carbono é indispensável para o desenvolvimento econômico.

mitigação

holofotes

e

focados

climáticas, mas o acordo final somente foi viabilizado com a intervenção das economias emergentes. “Após

Compromisso

a crise financeira de 2008, as economias emergentes,

Não foi por menos que o Brasil deixou claro, em

entre elas China, Índia e Brasil, passaram a ocupar um

Copenhague, a sua disposição em reduzir as emissões

novo espaço nas negociações internacionais”, lembra

de gases de efeito estufa até 2020, na comparação

Jacques Marcovitch.

com 2005. “Diferente do que acontece em países

38 | semfronteiras


Ricardo Stuckert/PR

desenvolvidos como a Noruega, o corte de emissões em países emergentes como Brasil e China está vinculado ao percentual de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB)”, afirma Marcovitch. Em outras palavras: para cada percentual de crescimento do PIB, o Brasil se compromete, até 2020, a emitir de 36% a 39% a menos de gases. “Isto é factível, desde que haja um amplo programa para a efetiva redução do desmatamento e expressivos avanços no desenvolvimento de tecnologias limpas e na adoção de energias renováveis.” É certo que as emissões decorrentes de desmatamento representam 57,5% das emissões totais do país e aumentaram 70% entre 1990 e 2005. Mas, num país com perspectiva de crescimento de 5% a 6% ao ano, há que se levar em conta, também, a demanda por energias. “O crescimento sustentável do

Presidentes Lula e Obama participam da COP 15, em Copenhague, Dinamarca.

país dependerá da compreensão do desafio climático como parte da sua agenda de desenvolvimento. A economia brasileira pode crescer e preservar sua matriz limpa”, afirma ainda Marcovitch.

Quem corre mais risco

Citando dados preliminares do Ministério da Ciên-

O estudo coordenado por Marcovitch indicou,

cia e Tecnologia, ele observa que o setor energético

ainda, as regiões mais vulneráveis às mudanças de

aumentou suas emissões em 68% e sua participação

clima, como a Amazônia e o Nordeste, deixando clara

de 15,8% para 16,4% do total nacional, percentuais

a necessidade de ação de mitigação. “Com relação às

que revelam uma matriz energética relativamente

medidas para as regiões mais sensíveis às mudanças

limpa, em comparação com a de outros países. “Com

do clima, propomos: induzir a adaptação regional de

base no EMCB, podemos afirmar que, para conciliar

cultivares mais tolerantes à seca e ao calor; induzir

crescimento econômico e matriz limpa, seria preciso

programas de governo que tendam a estabelecer

instalar uma capacidade extra de geração entre 153

uma rentabilidade adequada para a agricultura fa-

TWh e 162 TWh por ano até 2035. Essa capacidade

miliar; fortalecer os processos de extensão rural para

adicional seria composta principalmente por gás

transferência de tecnologia relacionada à gestão da

natural, tecnologias avançadas de queima de bagaço

seca e do calor através da informação e de treinamento

de cana e energia eólica. Agregadas, estas opções implicariam custos de capital da ordem de US$ 48 bilhões a US$ 51 bilhões. Além da eficiência energé-

“Para conciliar crescimento

tica, a substituição de combustíveis fósseis poderia

econômico e matriz limpa, seria

evitar emissões domésticas de 92 milhões a 203

preciso instalar uma capacidade

milhões de toneladas de CO2 equivalente em 2035. As

extra de geração, composta

exportações de etanol acrescentariam de 187 milhões

principalmente por gás natural,

a 362 milhões de toneladas às emissões evitadas em

tecnologias avançadas de queima de

escala global.”

bagaço de cana e energia eólica.”

semfronteiras |

39


Silvane Trevisan Tonetti / Tecpar

Formas renováveis de geração de energia:

Unica

Biocombustíveis. Na foto, a Usina de Biodiesel instalada no Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar).

Miguel Saavedra / SXC

Bagaço de cana como combustível em usinas bioelétricas.

Energia eólica.

40 | semfronteiras


“O crescimento sustentável

Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) para

do País dependerá da

Mudanças Climáticas, as quais incorporam a maioria

compreensão do desafio

dos grupos de pesquisa do EMCB.

climático como parte da sua

“Para enfrentar estes problemas, além das com-

agenda de desenvolvimento.

petências já consolidadas no Brasil, é preciso aumentar

A economia brasileira pode

o grau de conhecimento científico sobre as mudanças

crescer e preservar sua

do clima e seus impactos, criando novas ferramen-

matriz limpa.”

tas que permitam avaliar mais detalhadamente e com maior grau de precisão estes impactos; investir na elaboração de modelos climáticos mais

aos agricultores familiares; enfocar as medidas de

complexos e refinados e buscar a

adaptação que atenuem as desigualdades regionais;

compatibilidade na tendência entre

e delinear ações planejadas para os contingentes

os

populacionais mais vulneráveis, especialmente no

detalhadamente as áreas favoráveis

semiárido nordestino e na Amazônia.”

à irrigação e cruzar dados dessas

Nas análises setoriais realizadas no âmbito

diferentes

áreas

com

modelos;

mapear

disponibilidade

de

“A tendência do setor de energia mundial é ampliar as fontes

do EMCB, por exemplo, ficou clara a necessidade de

água presente e futura; realizar

investimentos em pesquisa agrícola de ponta, com

mapeamento altimétrico detalhado

atenção particular ao melhoramento genético de

das zonas costeiras; desenvolver

cultivares e engenharia genética de segunda geração.

novas

“Isso é fundamental em um país onde o setor agrícola

agrícola e industrial, integrando a

tem peso estratégico e um histórico de pesquisa

comunicação com centros de pes-

avançada”, diz. Um bom exemplo está na produção de

quisas ou de divulgação técnica;

etanol, campo em que o Brasil é líder nas tecnologias de

capacitar a mão de obra local

todo o processo de produção — industrial e agrícola — e

às novas demandas de um setor

apresenta potencial para se manter como líder mundial.

especializado

“A tendência do setor de energia mundial é ampliar as

grande previsão de mudança na

fontes renováveis e de baixo teor de carbono. O Brasil

estrutura de emprego (mecanização

deve manter e aperfeiçoar as políticas que o levaram à

ou chegada da cana-de-açúcar); elaborar diretrizes e

liderança no setor.”

normas técnicas para obras costeiras e marítimas que

tecnologias

nas

nos

campos

regiões

com

renováveis e de baixo teor de carbono. O Brasil deve manter e aperfeiçoar as políticas que o levaram à liderança no setor.”

O referencial de modelagem desenvolvido no

incorporem os possíveis impactos de mudança global

EMCB está sendo utilizado na elaboração de uma série

do clima; e formar recursos humanos especializados

de diferentes cenários econômicos, sociais e climático-

em todas as áreas”, ele sugere.

ambientais, que incorporem medidas de mitigação que se queira testar. Os desdobramentos para o futuro imediato incluem redes de pesquisa recém-criadas —

Saiba mais: Economia das Mudanças Climáticas no

como a Rede CLIMA, o Programa Fapesp Clima e o

Brasil (www.economiadoclima.org.br).

semfronteiras |

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MEIO AMBIENTE

Floresta com código de barras? Murilo Alves Pereira

Discussões da COP 15 mostraram que para reduzir as emissões de gases do efeito estufa será preciso mensurar o valor econômico da natureza

42 | semfronteiras


Composição: Bruno Stock. Foto: SXC semfronteiras semfronteiras || 43 43


No caixa do supermercado, o feixe vermelho

Um estudo de brasileiros e norte-americanos,

do leitor a laser busca o código de barras e anuncia:

publicado em dezembro passado na revista Science,

R$ 3,6 trilhões! Este é o valor que o Brasil pode ter

defende que a redução do desmatamento da floresta

que pagar, até 2050, para compensar os efeitos do

amazônica tem custo relativamente baixo. Para

aquecimento global em seu território (ver “Recuos,

atingir desmatamento zero em 2020, seria preciso

avanços, controvérsias”, na página 22). Na esteira, o

desembolsar de US$ 6,5 bilhões a US$ 18 bilhões. O

tronco de uma árvore da Amazônia marcado com o

montante seria investido em três setores — povos da

código de barras é o produto simbólico que nos mostra

floresta, controle e regulamentação da agropecuária

de onde vem o problema.

e fiscalização das áreas protegidas — e ajudaria a

“Esse valor se refere, principalmente, à perda

desestimular o desmatamento.

de produtividade agrícola e à restrição da oferta de

Para o pesquisador do Instituto Nacional de

energia causadas por variações climáticas”, explica o

Pesquisas da Amazônia (INPA), Philip Fearnside, esses

economista Ronaldo Seroa da Motta, do Instituto de

recursos deveriam ser pagos pelos países ricos. Há

Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea). A boa notícia,

décadas ele sugere o uso dos serviços ambientais das

segundo ele, é que pela primeira vez o país mensurou

florestas como base da economia. Quanto vale, por

os custos relacionados ao aquecimento, em particular

exemplo, a ciclagem da água ou a absorção dos gases

na agricultura, hidroeletricidade e em regiões costeiras.

estufa? O mercado de carbono pode dar esses valores,

Fato é que as informações hoje disponíveis podem

acredita. O país se desenvolveria e produziria riqueza,

orientar os investimentos nas obras de infraestrutura

mantendo a floresta em pé. Para Philip, a conservação

e atividades agrícolas. De que adianta, por exemplo,

também é uma forma de gerar renda, mas é preciso

bilhões investidos em usinas hidrelétricas se um

calcular o valor real do carbono. “Estão vendendo

cataclismo climático pode alterar o volume de chuvas

carbono pelo custo da oportunidade, isto é, pelo uso

e comprometer os reservatórios dessas usinas?

que o produtor faria daquela área, mas o valor é muito maior”, critica. “Nos países desenvolvidos custa muito mais impedir a emissão de uma tonelada de gás

Philip Fearnside, do INPA, há décadas sugere o uso dos serviços ambientais das florestas como base da economia. “O país se desenvolveria e produziria riqueza, mantendo a floresta em pé.”

carbônico.” Remunerar para não destruir Para o diretor do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), Adalberto Veríssimo, chegar em 2020 com redução em 80% do desmatamento da Amazônia — compromisso assumido pelo Brasil na COP-15 — não é trabalho difícil. “O

Pagando o preço

desafio seria zerar até 2014, como o Imazon defende.”

A analogia com troncos de árvore passando pela

Adalberto concorda com Philip sobre a necessidade de

esteira do caixa do supermercado pode ser útil para

pagar pelos serviços ambientais. E esse pagamento

entender o que está em jogo nas discussões sobre

pode ser feito por instituições internacionais ou

clima – o aspecto econômico. Se mitigar os efeitos das

empresas, como metas obrigatórias ou de forma

mudanças climáticas no Brasil tem um preço, impedir

voluntária, a título de marketing verde.

que o aquecimento chegue a níveis devastadores também tem. Mas muito menor.

44 | semfronteiras

O mercado de créditos de carbono deve ser a saída para custear a manutenção da floresta em pé.


“É um mercado como qualquer outro”, diz o jornalista

“O Brasil ocupa uma posição muito

Roberto Smeraldi, diretor da Oscip Amigos da Terra.

particular no mundo hoje, já que 90%

Em curto e médio prazos, diz, esse tipo de mercado

de toda a energia elétrica consumida

será não só viável, como inevitável. “O Brasil tem

no país têm origem em usinas

um potencial expressivo, pois somos um dos maiores

hidrelétricas, de emissão nula.”

emissores do mundo”, informa Smeraldi. “Temos perspectivas de desenvolvimento que nos permitem mudar o modelo antes de chegar a um estágio maduro.”

por três quartos das emissões locais. Pagaríamos pelos serviços ambientais da floresta em vez de passá-la pelo caixa do supermercado. Mas países desenvolvidos,

duas condições: garantir um teto das emissões dos

além de China e Índia, têm como grandes vilões os

gases em todo o mundo e criar uma taxação ao carbono,

recursos energéticos. São chaminés de termoelétricas

como é feito com o petróleo ou outros produtos. “Com

e escapamentos de veículos queimando mais carbono

essas duas medidas, o mercado de carbono tenderia a

do que florestas em chamas. Segundo o professor

ajudar bastante”, conclui. No Brasil, esse mercado teria

do Programa de Planejamento Energético da UFRJ,

como alvo a redução do desmatamento, responsável

Roberto Schaeffer, os países precisam investir no uso

Imazon

Conforme Smeraldi, para o mercado de carbono ser eficaz na redução das emissões, é preciso seguir

Mapa do desmatamento detectado na região da Amazônia apenas no mês de novembro de 2009.

semfronteiras |

45


eficiente de energia e começar a substituir as fontes

ajudariam a mitigar o aquecimento até nos libertarmos

fósseis por não fósseis.

dos combustíveis fósseis.”

“O Brasil ocupa uma posição muito particular no mundo hoje, já que 90% de toda a energia elétrica

Economia e ecologia

consumida no país têm ori-

Quantificar a natureza em valores monetários

gem em usinas hidrelétricas,

e códigos de barras pode soar duro uma vez que a

de emissão nula”, afirma. Outra

economia ecológica prega o oposto disso. De acordo

vantagem brasileira é o uso

com o economista e pesquisador da Fundação Joaquim

crescente de energias baseadas

Nabuco, Clóvis Cavalcanti, a atividade econômica deve

em fontes mais limpas, como

se submeter à perspectiva da natureza, não o contrário.

o carvão vegetal e a biomassa

A economia deve respeitar os limites impostos pelo

e, no setor dos transportes, o

meio ambiente, como o nível de emissão dos gases

etanol e o biodiesel. “Quanto

estufa. “Desenvolver significa melhorar a vida das

às fontes não fósseis”, continua, “a energia eólica

pessoas; o crescimento que leva a isso é desejável,

e a solar se destacam”. Com novas tecnologias, os

mas mesmo ele tem que respeitar limites”, diz. Para

biocombustíveis de segunda geração e a energia dos

o economista, crescimento ao custo da destruição da

oceanos seriam viáveis. Nesta transição, fontes limpas

Amazônia é sem sentido e insustentável. “E, como

e sujas conviveriam por um tempo. “Estas medidas

tudo que é insustentável, acaba.”

“A atividade econômica deve se submeter à perspectiva da natureza, não

Wilson Dias/Abr

o contrário.”

Madeira apreendida em operação da Polícia Federal em Tailândia, Pará.

46 | semfronteiras


MEIO AMBIENTE

Ignacy Sachs e a biocivilização Romeu de Bruns

Aqueles que tiverem a oportunidade de assistir a uma conferência desse senhor de 82 anos que não se enganem com sua aparência tranquila, voz calma e pausada. Quando advoga suas ideias, Ignacy Sachs

Caio Coronel/ITAIPU

Economista defende modelo civilizatório calcado no trinômio biomassa, biodiversidade e biotecnologia

se mostra um enérgico defensor de um novo modelo de civilização, a que chama de “biocivilização” ou “civilização da biomassa”. Defende também uma reformulação das relações internacionais, em especial a Organização das Nações Unidas (ONU) e seus organismos correlatos, em que se dê mais voz aos países em desenvolvimento, pois estes, com suas características tropicais, surgem como prováveis potências no novo estágio civilizatório. Economista polonês naturalizado francês, com diversas obras publicadas sobre Economia, Ecologia e áreas afins, Sachs é um autor influente no meio acadêmico brasileiro, particularmente em cursos de especialização e pós-graduação que abordam o desenvolvimento econômico. Em novembro, Sachs

Economista Ignacy Sachs.

veio ao Brasil para ministrar um seminário de três dias, como fundador da Cátedra Josué de Castro de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente, da Universidade Federal da Integração Latino-americana

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47


Niels Andreas / Unica

Bioplástico-PHB feito a partir de cana-de-açúcar.

(Unila), no Parque Tecnológico Itaipu, em Foz do Iguaçu.

Trinômio “Bio”

Com autoridade de quem estudou a fundo as

A única saída viável para as múltiplas crises

transformações e impactos socioeconômicos da globa-

por que passa o mundo hoje é, segundo ele, um novo

lização desde a Segunda Guerra Mundial — em especial

modelo civilizatório, calcado no trinômio biomassa /

sobre os países até recentemente classificados como

biodiversidade / biotecnologia. A biomassa tem múl-

de “Terceiro Mundo” (herança da teoria dos “Três

tiplos aproveitamentos, um leque de produtos cada vez

Mundos”, de Alfred Sauvy) —, Sachs fez um retrospecto

mais variado: alimentos, ração animal, adubo verde,

da questão ambiental desde os anos 1960. Ele também

material de construção, energia, plásticos e fibras, cos-

abordou temas como o fim da era do petróleo e as

méticos e fármacos. “A visão industrial do futuro é uma

fontes renováveis de energia, pobreza e distribuição de

biorrefinaria, em analogia com uma refinaria de pe-

renda e a crise financeira internacional.

tróleo. É um mundo a ser explorado”, sentencia Sachs. A transição para esse novo modelo — continua o economista — significa reverter um conceito que dominou por muito tempo, o de que as regiões

“Com mais insolação e

tropicais têm a tendência de serem subdesenvolvidas

biodiversidade, os países tropicais

por natureza. Agora, o trópico deixa de ser um

partem nessa caminhada com

obstáculo e passa a ser uma vantagem natural. “Com

vantagens comparativas naturais,

mais insolação e biodiversidade, os países tropicais

que devem ser potencializadas.”

partem nessa caminhada com vantagens comparativas

48 | semfronteiras


naturais, que devem ser potencializadas pela pesquisa

“O sistema internacional

e pela organização social apropriada do processo

precisa ser repensado

produtivo. Esse último ponto é essencial, porque nós

com urgência. Agora, esse

podemos imaginar a produção de enormes quantidades

repensar não pode vir do

de biocombustíveis — por exemplo, a partir de uma

centro. Tem que vir dos

agricultura supermecanizada, sem homens. Isso não

países emergentes.”

interessa. Temos que, ao mesmo tempo, assegurar uma vida digna aos nove bilhões de seres humanos que Internacional do Trabalho (OIT). “As soluções para o

seremos em meados deste século”, considera. Um dos grandes potenciais a serem explorados pela

futuro devem ser respostas simultâneas para o duplo

biocivilização reside na produção de biocombustíveis a

desafio: das mudanças climáticas e das desigualdades

partir de algas, assunto que vem sendo pesquisado em

sociais. É a partir dessa dupla visão que surgem as

diversos países. Apesar de ainda não haver consenso

propostas de pesquisa de um aproveitamento mais

sobre quais as melhores variedades a serem utilizadas

imaginativo dos recursos renováveis.”

(são muitas as espécies, de microalgas a sargaços

Para Sachs, a crise financeira internacional tem

com dezenas de metros de extensão), sabe-se que as

levado, ao menos em parte, a refletir sobre um novo

algas têm uma enorme capacidade de reprodução. Há

modelo de desenvolvimento, apesar de essa não ser

variedades que dobram de peso duas vezes ao dia e,

uma posição dominante. Pela cobertura dos diários

com isso, há enorme produção de biomassa. Também

econômicos do Brasil e do exterior, aponta, a tendência

têm um alto teor de lipídios e, por isso, se prestam como

é utilizar o dinheiro público para tapar os buracos

matéria-prima para a extração de óleo. “Agora, quais

das grandes empresas e bancos, socializar as perdas

as algas, que lugar, como extrair etc., isso está ainda

e, uma vez essa operação feita, retomar as práticas

tudo por fazer. O Brasil tem tudo para assumir uma

anteriores. “Esse debate está diante de nós, mas só

posição de liderança nesse campo porque tem espaços

daqui a alguns anos vamos poder ver claramente qual

aquáticos imensos, desde o litoral aos reservatórios

a vertente que predominou”, lamenta.

de hidrelétricas, e uma pesquisa biológica de classe internacional. Ou seja, tem a faca e o queijo na mão”,

Uma nova ONU? Para uma solução mais eficaz das múltiplas

garante Sachs.

crises por que passa a humanidade e atingir o tão falado desenvolvimento sustentável, Sachs defende

Duplo desafio Essa

biocivilização,

que

se

utilizará

mais

uma

reformulação

das

relações

internacionais,

inteligentemente dos recursos naturais e, em especial,

particularmente no que diz respeito ao papel da

do ciclo do carbono, reduzindo as emissões de po-

ONU. “Falou-se durante um tempo do G7, que depois

luentes na atmosfera, está intimamente ligada a um

virou G8. Agora tem o G20. Falam até em G2 (China

duplo desafio, na visão de Sachs. Por um lado, tem-se

e Estados Unidos). Por que é G20 e não G22 ou

que enfrentar a ameaça das mudanças climáticas, em

G28? E o G190, que é mais ou menos o número de

parte reversíveis e que, por sinal, vão recair com mais

integrantes da ONU? Esse sim precisa ser revitalizado

força sobre aqueles que têm menos condições — vão,

e posto em prática. O sistema internacional precisa

portanto, exacerbar a pobreza. Mas, simultaneamente,

ser repensado, com urgência. Agora, esse repensar

também é preciso resolver os problemas sociais,

não pode vir do centro. Tem que vir dos países

com a geração de oportunidades de trabalho dentro

emergentes. Porque o interesse do centro é continuar

do conceito de trabalho decente da Organização

sem essa reforma”, conclui.

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meio ambiente

Corredores de biodiversidade no Paraná Maria Celeste Corrêa Fotos: Zig Koch

Um desses CORREDORES é formado, em parte, pela faixa de proteção de 1.400 km2 do reservatório da Usina de Itaipu

Parque Nacional do Iguaçu, Paraná.

50 50 || semfronteiras semfronteiras


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Em termos de biodiversidade, o Paraná já foi um

Para Efraim Rodrigues, o

retrato do paraíso na Terra. A maior parte do território era

desenvolvimento de sistemas

coberta por florestas colossais. No oeste, sudoeste e norte

agroflorestais é uma das

do Estado, imperava a floresta estacional semidecidual. Do

saídas para salvar nossos

centro ao sul, e avançando a leste, ficava a floresta ombrófila

remanescentes florestais.

mista, mais conhecida como floresta com araucária. E, da Serra do Mar até o litoral, predominava a floresta ombrófila

Biologia da Conservação, mostra que as bordas das áreas

densa, chamada de floresta atlântica. As outras áreas eram

fragmentadas sofrem com o excesso de sol, alterações do

formadas por campos naturais ou por manchas de cerrado.

microclima e alteração da umidade, entre outros fatores.

Como a ocupação das terras paranaenses foi tardia, se

A degradação do habitat se dá a partir da borda em

comparada a outros estados brasileiros, a maior parte da

direção ao centro, por até centenas de metros, levando ao

paisagem permaneceu intocada até meados do século XIX.

desaparecimento de muitas espécies da flora e da fauna.

Na atualidade, o que resta dos ecossistemas paranaenses é apenas uma pálida lembrança.

Chance para a conservação

A ocupação plena do território e a forte característica

Diante de um quadro tão sombrio, pesquisadores,

agrícola e industrial do Estado transformaram a paisagem

ambientalistas e representantes de entidades governa-

natural numa extensa colcha de retalhos. Fragmentos

mentais e não governamentais buscam maneiras de

florestais isolados enfraquecem aos poucos. “Nesses

reduzir os efeitos da catástrofe. Até o início dos anos

locais, é forte a tendência à homozigose entre os animais,

1990, a alternativa buscada com mais frequência era a

que é cruzamento entre parentes. Isso produz o declínio

criação de áreas protegidas, tais como parques nacionais

genético. Na flora, há reações diferentes: algumas

e estaduais e Reservas Particulares do Patrimônio Natural

espécies, mais exigentes, não toleram o isolamento e

(RPPNs). Porém, o avanço do conhecimento a respeito da

acabam sendo substituídas por outras mais resistentes. O

conservação ambiental mostrou que isso não é suficiente.

empobrecimento biológico é evidente”, analisa Maurício

Para tentar romper o isolamento das áreas protegidas,

Savi, doutorando em Conservação da Natureza pela UFPR

começaram a ser criados os corredores ecológicos, ou

e professor de Ecologia e Conservação da PUC-PR.

corredores de biodiversidade, grandes faixas verdes que

Catástrofes naturais — como incêndios ou venda-

fazem a conexão entre áreas protegidas. Na região de Foz

vais — podem provocar um grande desequilíbrio em áreas

do Iguaçu, uma parceria entre a Itaipu Binacional, o Instituto

isoladas que, dependendo do tamanho, podem entrar em

Brasileiro de Meio Ambiente (IBAMA), o Instituto Ambien-

declínio rapidamente. Em relação aos animais, o isolamento

tal do Paraná (IAP), organizações não governamentais e

faz com que muitas populações tenham o ciclo reprodutivo

institutos de pesquisa trabalha para a consolidação de um

alterado ou passem a competir entre si. Segundo o

corredor de biodiversidade que ligará o Parque Nacional

professor Efraim Rodrigues, da Universidade Estadual

do Iguaçu ao Parque Nacional de Ilha Grande e ao Pantanal

de Londrina, coautor do livro Biologia da Conservação,

do Mato Grosso do Sul. O “caminho” usado para interligar

a competição entre aves por domínio de território, por

essas unidades de conservação é formado, em parte, pela

exemplo, pode levar muitas delas à morte.

faixa de proteção de 1.400 km2 do reservatório da Usina

O desaparecimento ou a diminuição de populações

de Itaipu, onde há áreas reflorestadas. Já são mais de

de aves, morcegos e alguns mamíferos leva à diminuição

20 milhões de mudas de árvores nativas plantadas, que

da dispersão das sementes. Sem a ajuda dos animais,

somam 108.866 hectares.

essas espécies de plantas deixam de se reproduzir. Outro

Um acordo entre a Itaipu Binacional e as prefeituras

fator que afeta a estabilidade dos remanescentes naturais

de São Miguel do Iguaçu e de Santa Terezinha de Itaipu

é o chamado efeito de borda. O processo, descrito no livro

prevê a realização das obras do Corredor de Biodiversidade

52 | semfronteiras


Santa Maria, que deverá passar sob a ponte da BR-277, permitindo a conexão de todas as áreas. “Naquele local, o maior problema é exatamente a área debaixo da ponte, pois não se tem nenhuma segurança de que isso funcionará de fato, já que os animais teriam de cruzar uma faixa muito estreita para fazer a conexão”, afirma Maurício Savi.

Em virtude de seu desenvolvimento tardio, o Paraná conheceu uma extensa cobertura vegetal. E também a destruição rápida da maior parte dela.

Já na região da Serra do Mar, no Paraná, há mais de uma dúzia de unidades de conservação de proteção integral, além das RPPNs. É uma extensa área de floresta que permanece contínua em função das restrições legais de uso e também pela dificuldade de acesso – já que essas reservas não são adjacentes. Somada à região sul de São Paulo, essa grande área constitui a mais bem-conservada porção de floresta

A imbuia (Ocotea porosa), espécie ameaçada de extinção, é encontrada na floresta com araucária.

atlântica do Brasil. A ameaça à integridade do ecossistema, aqui, vem de projetos como

Proteção Permanente que englobam a mata ciliar (nas margens dos

aquele que prevê a construção de um trecho

rios) e a vegetação nos topos de morros e nas áreas com inclinação igual

da BR-101 na região da Serra do Mar. “Se a

ou superior a 45 graus. “Nosso trabalho é fiscalizar o cumprimento do

rodovia for construída, o impacto sobre a

Código Florestal. Quem está fora dos padrões legais deve reflorestar as

Serra do Mar será fatal para a biodiversidade”,

propriedades com mudas de espécies nativas produzidas e fornecidas

alerta Maurício Savi.

pelo IAP”, explica João Batista Campos, coordenador estadual de

Para os remanescentes da floresta

Biodiversidade e Floresta da Secretaria Estadual do Meio Ambiente

com araucária e da floresta estacional semi-

(SEMA). “Para que a ação seja efetiva, é preciso fazer estudo de solo

decidual, o governo estadual acena com

e produzir as mudas de forma que não ocorra o empobrecimento

o Projeto Paraná Biodiversidade. A ideia é

genético”, alerta Maurício Savi.

tentar formar corredores de biodiversidade entre as unidades de conservação utilizando

Contaminação por transgênicos

as áreas que os proprietários rurais são

Os pesquisadores também alertam para que os corredores

obrigados, por lei, a conservar: os 20% de

não facilitem o transporte de problemas de uma área para outra. “É

Reserva Legal da propriedade e as Áreas de

preciso cuidado na instalação dos corredores, especialmente onde

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O macuco (Tinamus solitarius) é encontrado em vários ecossistemas do Paraná.

A Ariranha (Pteronura brasiliensis) habita as florestas semidecidual, com araucárias e atlântica.

há produção agrícola, para evitar a contaminação por

Os corredores da biodiversidade

transgênicos”, avisa Maurício Savi. Com base na mesma

podem “costurar” e dar uma chance de

linha de raciocínio, o professor Efraim Rodrigues diz que

sobrevivência aos retalhos florestais

“corredores são geralmente estreitos e, por isso, muitas

remanescentes no Paraná.

espécies podem não percebê-los como um habitat. Então, eles não cumprirão sua função. Este ambiente também

melhor conservação da natureza que aqueles locais onde

pode servir como habitat para espécies exóticas que

existem extensas plantações de grãos ou pastos. Portanto,

competem com a vegetação nativa”, completa.

a saída também passa pelas demais secretarias de

Outra saída apontada por Efraim Rodrigues para salvar os remanescentes naturais é o incentivo ao

governo, não apenas pelo Meio Ambiente”, aponta Efraim Rodrigues.

desenvolvimento de sistemas agroflorestais, como os que

Na opinião do professor Maurício Savi, a melhor saída

já existem na região centro-sul do Paraná, os chamados

para a conservação ambiental ainda é a proteção integral

faxinais. Neste modelo, as áreas de floresta são protegidas

dos remanescentes. “Até hoje, a ciência não apresentou

e os proprietários vivem do gado leiteiro, do plantio de

melhor forma de salvaguardar a natureza do que as áreas

ervas medicinais e da coleta de pinhões e de folhas de

protegidas. E, se ainda houver tempo para aprendermos

pitangueira. “A diversidade de usos do solo em paisagens

como conectá-las entre si, talvez tenhamos uma chance”,

com pequenas propriedades geralmente condiciona uma

conclui Savi.

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Educação científica

Em nome da educação Célio Yano Fotos: nelson cerqueira

Pesquisadores de Campo Mourão percorrem 40 mil quilômetros para montagem de kits didáticos

Um pequeno grupo de pessoas em uma caminhonete adentra a mais distante das matas e percorre rios e lagos, enfiando o pé na lama e revirando pedras de todos os tamanhos. Pode não parecer à primeira vista, mas são cientistas, que se aventuram em nome da ciência e da educação. A jornada foi realizada entre 2008 e 2009, com o objetivo de coletar e catalogar espécies de esponjas de água doce e diatomáceas presentes na bacia hidrográfica paranaense. A partir daí, a equipe da Faculdade Estadual de Ciências e Letras de Campo Mourão (Fecilcam), coordenada pelo doutor em Ciências Ambientais Mauro Parolin, passou a desenvolver kits didáticos, compostos por livro e lâminas de microscopia, para serem distribuídos a escolas públicas do Paraná. Pesquisador coleta amostras de poríferos no rio Formoso.

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A partir de 2010, o projeto deve auxiliar escolas de

Kits vão ajudar as escolas

ensino médio e fundamental da rede pública estadual

a fazer de laboratórios

no ensino de Ciências e disciplinas associadas ao

e microscópios peças

meio ambiente. Ainda que grande parte das escolas já

importantes no processo de

disponha de laboratórios e microscópios, muitas vezes

ensino-aprendizagem.

essa estrutura acaba ociosa por falta de material de estudo. Ao todo, foram produzidos 500 conjuntos de

Desde que o projeto teve início, em junho de 2008,

25 lâminas de microscopia, que contêm esqueletos de

os pesquisadores envolvidos simplesmente não tiveram

esponjas e de diatomáceas. “Ambos são bioindicadores

descanso — afinal, foi preciso fornecer elementos para a

da qualidade das águas”, explica Parolin, justificando a

produção de todos os kits.

escolha do material. “De acordo com a ocorrência ou

Ao todo, 14 pessoas participaram das diversas

não das esponjas, por exemplo, é possível dizer se houve

etapas do trabalho, mais de 40 mil quilômetros de

alterações ambientais significativas em determinados

rodovias foram percorridos, cerca de 50 toneladas de

rios”, completa.

rochas reviradas e aproximadamente 20 mil lâminas de

A ideia inicial é distribuir os kits gratuitamente para

microscopia foram produzidas — boa parte descartada

as escolas dos Núcleos Regionais de Educação de Campo

por não passar nos critérios de qualidade para os

Mourão e de Maringá, que englobam, respectivamente,

fins didáticos. O levantamento também resultou na

64 e 97 instituições. O que sobrar será encaminhado para

descoberta de uma espécie de esponja até então não

outras regiões. Antes de entregar o material, ressalta o

catalogada, a Potamophlois guairensis, cujo nome é uma

coordenador do projeto, os professores passarão por um

homenagem ao antigo Salto Guairá, que desapareceu

minicurso para entender como as lâminas podem ser

com a construção da Usina de Itaipu. “Este gênero tinha

utilizadas no trabalho de ensino com os alunos. Segundo

ocorrência restrita à região da Etiópia”, explica Parolin.

Parolin, além dos colégios estaduais, estuda-se incluir

A descoberta foi publicada no periódico internacional

escolas municipais e universidades na distribuição do

Interciencia (www.interciencia.org). “O projeto dos kits

material.

didáticos foi apenas o pano de fundo para uma grande investigação”, afirma o professor.

As espécies e os kits Esponja é o nome mais conhecido dos animais do

Livro para professores

filo Porifera que ocorrem em água doce ou salgada e se

Para realizar o trabalho, a Fecilcam recebeu um

alimentam por meio de filtração. “São semelhantes a

total de R$ 256,9 mil do Fundo Paraná, por meio da

corais, mas têm esqueleto de sílica”, explica Parolin. Já as

SETI. O resultado será avaliado por alunos e professores.

diatomáceas são protozoários unicelulares que, em rios,

Além dos kits didáticos, a expedição também renderá

mares e até no solo, podem formar

um livro produzido para os professores da rede estadual.

Jornada pelas

cadeias ou colônias simples. Para a

A obra “Geologia, rios, esponjas e diatomáceas: uma

matas e rios

produção dos kits didáticos, foram

visão multidisciplinar do ambiente no Paraná”, que está

paranaenses

coletadas cinco espécies de poríferos,

em fase de pós-produção, terá quatro capítulos que

vai fornecer

todas em território paranaense. “No

abordarão novas descrições da formação geológica e

subsídios para

caso das diatomáceas, por serem

hidrográfica do território paranaense, além da relação

uma série de

microscópicas e de ocorrência maior,

das esponjas e das diatomáceas com a geologia e a

atividades

não temos como dividir por espécie.

hidrografia do Estado. O material ainda trará dicas de

educativas e

Cada lâmina pode ter 50 táxons

trabalhos que professores podem desenvolver com

diferentes.”

alunos no âmbito do tema.

científicas.

56 | semfronteiras


O livro deve trazer as descobertas e cada episódio

Do rio dos Patos, na região dos Campos Gerais,

vivido pelos pesquisadores em nome da educação científica,

por outro lado, a equipe percorreu cerca de quatro

como a descida pelo rio Nhundiaquara (Morretes) em boias

quilômetros, mas foi encontrada

de câmera de pneu (o chamado boia-cross). Para a coleta de

uma única espécie de esponja,

diatomáceas, os pesquisadores se concentraram na região

em pouco mais de dez metros

do rio Ivaí, no noroeste do Paraná. No caso dos poríferos, o

quadrados de toda a extensão do

trabalho abrangeu praticamente todo o Estado.

córrego. Lá, a surpresa para os

Espécies coletadas funcionam como indicadores

Como mostraram as pesquisas, o rio Piquiri, que nasce

cientistas ficou no fato de o porí-

na região centro-sul paranaense e deságua no rio Paraná,

fero descoberto ser a Oncosclera

no oeste, é um dos que registram maior biodiversidade

jewelli, espécie de ocorrência extre-

de esponjas na região Sul do Brasil. “Encontramos cinco

mamente restrita, relatada até

espécies nas nascentes do rio, o que indica que, neste

então apenas no Rio Grande do Sul.

momento, as águas são de ótima qualidade”, explica o

Segundo Parolin, a existência de

pesquisador. Entre as espécies observadas, o professor

um único tipo de esponja não indica necessariamente a

destaca a Sterrastrolepis brasiliensis, que, ameaçada de

deterioração do rio. “O fato de aquela espécie persistir

extinção, tem na bacia do rio Piquiri sua única área de

significa que a água ainda tem qualidade suficiente para

ocorrência em todo o Brasil.

a manutenção específica dessa biodiversidade”, diz.

da qualidade da água das bacias hidrográficas pesquisadas.

Espécie Oncosclera navicella, encontrada no rio Formoso.

Espécie Trochospongilla repens encontrada no rio Piquiri.

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CAPA

58 | semfronteiras


Da utopia às perspectivas, a integração latino-americana Independências Integração Cultura Ciência e Tecnologia Ensino Superior Ilustração: Simon Ducroquet

NO ANO DO BICENTENÁRIO DA INDEPENDÊNCIA DA AMÉRICA ESPANHOLA, LUIZ GERALDO SILVA ANALISA AS TENSÕES DESENCADEADAS PELAS REVOLUÇÕES ATLÂNTICAS EM REI DEPOSTO E REI EXILADO. NUMA CONFERÊNCIA NA UNIVERSIDADE FEDERAL DA INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA (UNILA), OUTRO HISTORIADOR, MIGUEL ROJAS MIX, PRESTA HOMENAGEM A FRANCISCO BILBAO. EM ENTREVISTA, SILVIANO SANTIAGO FALA SOBRE OS (DES)CAMINHOS DA CULTURA. NA DECLARAÇÃO DE BUENOS AIRES, CIENTISTAS PEDEM MAIS INCLUSÃO SOCIAL NAS ATIVIDADES DE CT&I.

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AMÉRICA espanhola

Rei deposto e rei exilado LUIZ GERALDO SILVA

AS INDEPENDÊNCIAS DO BRASIL E DA AMÉRICA ESPANHOLA SÃO VISTAS COMO PROCESSOS DIFERENCIADOS, E ATÉ OPOSTOS, QUANDO DEVERIAM SER MIRADAS COMO RESULTADO DA MESMA CONJUNTURA ATLÂNTICA

O motivo que fez Dom João VI vir para o Brasil

Domingos, onde tentavam restabelecer a escravidão

em fins de 1807 era precisamente o mesmo que fez

no país que, em 1804, tornou-se o Haiti — a segunda

Fernando VII, rei de Espanha, abdicar de sua coroa em

República independente do Novo Mundo, depois dos

maio de 1808. Em 1799, quando Napoleão Bonaparte

Estados Unidos da América.

conquistou o poder na França destroçada pelo furor

Não havia inimigo mais temível que Napoleão

revolucionário posterior a 1789, iniciou longa guerra

naquele momento, e os exércitos ingleses cons-

contra o Antigo Regime em frentes simultâneas. Sua

tituíam as únicas forças militares capazes de

intenção era destronar reis e dar ensejo a dinastias

derrotá-lo. Assim, em todos os países europeus que

de soldados-cidadãos. Suas batalhas eram travadas

dependiam da proteção estrangeira, havia partidos

em lugares remotos ao Sul, como Espanha, Portugal

anglófilos, ou defensores dos ingleses, e partidos

e nos pequenos reinos italianos, e no Leste, fosse

afrancesados, devotos de Bonaparte. Portugal e Es-

na Rússia ou na Prússia. Ao mesmo tempo, seu

panha disputavam o amparo de ambos. Na nação

numeroso exército, que não apenas contava com

lusa, entretanto, o partido francês foi derrotado em

franceses, mas também com turcos e alemães, entre

1807, levando à execução do plano tramado entre

outras nacionalidades, abria frentes ocidentais con-

as diplomacias portuguesa e britânica. O plano, tan-

tra os ingleses, seus principais inimigos, a partir do

tas vezes aventado desde o século XVI, era o de

Canal da Mancha. Finalmente, a partir de 1802, parte

transplantar a corte para o Brasil, antes que Napoleão

considerável dos soldados de Napoleão ainda lutava

a destituísse do poder ou a eliminasse fisicamente. Na

no Caribe contra os pardos livres e escravos de São

Espanha, contudo, venceu o partido francófilo. Dois

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Embarque de Dom João VI para o Brasil em 27 de novembro de 1807, por Nicolas Louis Albert Delerive (1755-1818). Temendo ser eliminado pelos franceses, que já haviam atravessado a Espanha e marchavam em direção a Lisboa, Dom João VI parte para o Brasil sob auxílio militar britânico.

tratados, o de Badajoz (1801) e de Fontainebleau

dependentes de Castela. A mais antiga delas foi a

(1807), selaram a aliança entre os dois países.

de Sevilha, de setembro de 1808, que se arrogou

Contudo, em maio de 1808, Fernando VII foi con-

a constituir-se como Junta Suprema Central

vidado à fronteira pelos franceses para reiterar

y Gubernativa del Reino. Depois, formaram-

tratados entre suas nações. Acabou encarcerado

se Juntas em todo o território do que hoje é a

no palácio de Bayona, onde permaneceria junto

Espanha moderna. Na América, as primeiras Jun-

com a família real até 1814. Napoleão nomeia seu

tas formaram-se no Alto Peru e em Quito, em

irmão, Joseph, rei de Espanha, e decreta, a partir

1809. Mas foi em 1810 que a febre de formação de

de então, a longa agonia de uma nação e a ruína

governos autônomos chegou ao auge. Caracas,

do vasto império colonial que esta conquistara nos

em abril, Cartagena de Índias e Buenos Aires, em

séculos precedentes.

maio, e Cali e Santa Fé de Bogotá, em julho, criaram seus próprios governos autônomos, prática que

As Juntas Governativas e a constituinte de Cádiz As independências americanas são alguns

foi ampliada pelos anos subsequentes nas demais ciudades hispano-americanas.

dos resultados desse quadro mais vasto. No

Tanto na Europa como na América, em um

império espanhol, a prisão de Fernando VII, el

primeiro momento, as juntas de governo juraram

Deseado, representou um vazio de poder sem

fidelidade ao rei deposto, mas negaram-se a

precedentes. Uma vez que não havia mais monarca,

obedecer a seus ministros e funcionários. Depois,

Juntas de Governo formaram-se nos vários reinos

diante da consumação da abdicação real, elas

semfronteiras |

61


Cartão-postal do Ayuntamiento de San Fernando, Espanha, reproduzindo quadro de José Casado del Alisal (1832-1886), intitulado Juramento de los diputados, 24 de septiembre de 1810. A corte constituinte espanhola, mais tarde trasladada a Cádiz, iniciava, então, seus trabalhos.

caminharam para uma perigosa autonomia. Na

e serem votadas. Não eram cidadãos. Em Cádiz,

América, em particular, na fase conhecida como

onde as cortes se reuniram para resistir à invasão

“pátria boba”, os cabildos das ciudades passaram,

napoleônica e para atualizar o reino em termos da

então, a lutar entre si, e não contra a metrópole.

política liberal e constitucional, a América perde a

Uma tentativa de unir los pueblos huérfanos

condição de conquista para se tornar colônia.

del rey pela via liberal surgiu no mesmo ano de

Sem centro de poder definido, os vice-

1810. Pela primeira vez no mundo ibérico, cortes

reinos, audiências e capitanias gerais da América

liberais, de caráter constitucional, formaram-

espanhola eram assediados por diversos agentes

se com o objetivo de redigir uma carta magna

políticos e seus projetos mirabolantes. Napoleão

para a “nação espanhola”. Espanhóis de ambos

insistia em mandar seus prepostos para convencer

os hemisférios foram chamados a cooperar, isto é,

os americanos que deveriam prestar sua lealdade

tanto peninsulares, como criollos, ou nascidos na

a Joseph I, por ele nomeado rei de Espanha. Os

América, poderiam ser eleitos deputados e tomar

aliados de Fernando VII tramavam para que criollos

assento na assembleia constituinte. Até índios tive-

e peninsulares que viviam na América continuas-

ram direito de representação, mas as “castas” —

sem desejando o retorno do rei, e lutassem contra

formadas por descendentes de africanos com

Napoleão. E Carlota Joaquina, esposa de Dom

índios ou europeus — foram impedidas de votar

João e irmã do rei deposto, revelava pretensão ao

62 | semfronteiras


Imagem satírica de 1807 representando Napoleão e seus irmãos, Joseph, Rei de Nápoles e, depois, de Espanha; Luís, monarca de Holanda; e Jerônimo, Rei da Vestfália. A quinta figura seria ou Luciano Bonaparte, cujas relações com Napoleão definhavam, ou seu cunhado, Joaquim Murat.

imaginário trono das Américas, que ela reclamava

havia monarquistas por toda a parte. Não por acaso,

seu por direito. Para tanto, remetia áulicos para

a América precisou de “libertadores”, como Bolívar

aliciar seus súditos hispano-americanos. Diante de

ou San Martín, porque de Lima a Caracas, por

tantas possibilidades, os rumos das futuras nações

exemplo, era forte a resistência à independência.

e Estados americanos eram incertos.

Como também ocorreria nas províncias da América portuguesa, a luta armada nos vice-reinos e

O retorno do rei Um

declarado

capitanias gerais da América espanhola antepunha antiespanhol

forças monarquistas e absolutistas às liberais e

nasceu na América apenas depois de 1815,

sentimento

monárquicas e estas às liberais e republicanas.

quando Fernando VII voltou ao poder. Este rasga

Paulatinamente, a vitória das últimas constituiu

a constituição escrita em Cádiz em 1812 e passa a

tendência dominante, ao passo que no Brasil a

governar sob uma perspectiva absolutista. Entre

monarquia constitucional tendeu a prevalecer no

1816 e 1820, envia expedição de 20 mil soldados

horizonte político.

à chamada Terra Firme ­— que se estendia desde o Chile até o México — sob o propósito de reconquistar

1810

a América. Contra ele, caudilhos lutavam pela

A rigor, a cronologia das independências

independência e pelo republicanismo, mas também

latino-americanas coincide com a do Brasil.

semfronteiras |

63


A INDEPENDÊNCIA LATINO-AMERICANA É RESULTADO DA CHAMADA ERA DAS REVOLUÇÕES.

Comemora-se o bicentenário das independências latino-americanas em 2010, como se todas as “nações” do continente tivessem nascido exatamente há duzentos anos. Mas o que se comemora em alusão ao ano de 1810 são rupturas com uma Espanha governada ora por um imperador francês, ora por uma Junta de Governo Central, ou a criação de Juntas locais de governo que lutavam umas contra as outras, e não contra a “Espanha”. No máximo, como também ocorre no Brasil, proferiu-se “gritos da independência” em

Simón Bolívar. Personagem central nos processos de independência do Peru e da Grã-Colômbia, é representado em quadro a óleo de Roulin, a partir de miniatura de marfim de 1828.

1810 — expressão recorrente desde o México até o Chile — que, em geral, são construções a posteriori das historiografias nacionais. A ruptura se inicia, na verdade, após 1815, com a queda de Napoleão

independência efetiva dá-se somente em 1821,

e o retorno de Fernando VII. A partir de então, a

quando os últimos focos monarquistas foram

guerra se torna generalizada e anticolonial, e até

vencidos. Mas até 1830, quando Bolívar veio

antieuropeia. É só a partir daí que se pode falar de

a falecer, Venezuela (1829) e Equador (1830)

guerras de independência na América hispânica.

tornaram-se países independentes, e o sonho da Grã-Colômbia se desfez. O Panamá só logrou

Independências tardias

constituir-se país independente em 1903. O Peru

As independências latino-americanas foram

também foi “libertado”, primeiro por San Martín,

tão tardias como a do Brasil. O México apenas se

vindo do Chile, e depois por Bolívar, vindo da

torna independente em 1821, mas ainda patinava

Venezuela, quando foram vencidos os últimos

entre a criação de uma república federativa, co-

focos da guerra realista em 1824.

mo a dos Estados Unidos, ou uma monarquia,

O território do Rio da Prata, que compreen-

como prevaleceu no Brasil. Na América do Sul,

dia os atuais países da Bolívia, Argentina,

a situação é semelhante. O antigo vice-reinado

Uruguai e Paraguai, foi o primeiro vice-reinado

de Nova Granada, graças à campanha militar de

a tornar-se independente. Desde que iniciou sua

Bolívar, torna-se um vasto país chamado de Grã-

autonomia política, em 1810, caminhou em direção

Colômbia, o qual compreendia os atuais países

à independência formal, obtida, antes de todos,

da Colômbia, Equador, Venezuela e Panamá. Sua

em 1816. Mas o que havia por volta de 1825 ali

64 | semfronteiras


“A conformação do Brasil imperial e escravista e das repúblicas hispanoamericanas é resultado dessas opções anteriores, das opções das novas elites e dos quadros sociais e econômicos antes prevalecentes.”

não eram Bolívia, Argentina, Uruguai e Paraguai,

é resultado dessas opções anteriores, das op-

e sim cerca de 20 pequenos Estados reunidos

ções das novas elites e dos quadros sociais e

numa confederação chamada Províncias Unidas

econômicos antes prevalecentes. Estes, marcados

do Rio da Prata, cujo epicentro era, sem dúvida,

pelos vínculos com a produção de mercadorias

Buenos Aires. O Uruguai constituiu-se república

para o mercado atlântico e pela configuração

independente em 1828, quando a guerra entre o

de sua mão de obra — com mais presença de

Brasil e as Províncias Unidas pelo seu controle

indígenas ou africanos e com mais ou menos

acabou sob a intermediação francesa e inglesa.

dependência da escravidão negra — ensejaram

O Paraguai, por seu turno, apenas se torna país

a moldura dentro da qual tais opções políticas

independente das Províncias Unidas em 1840.

foram tornadas possíveis.

Para tanto, foi decisivo o apoio do império do Brasil. E, finalmente, a Argentina apenas supera a fase das pequenas repúblicas autônomas, que lhe

Luiz Geraldo Santos da Silva é professor do

caracterizava na década de 1860, quando passa a

Departamento de História da UFPR e professor

se constituir como país unificado.

visitante das Universidades de Murcia e Pablo de

Assim,

a

distância

que

separa

nossa

Olavide (Espanha).

independência daquelas que se processam nos demais países latino-americanos é puramente aparente. Elas são frutos das mesmas tensões,

Saiba mais:

do mesmo quadro atlântico mais vasto, e corres-

ESDAILE, Charles. Las guerras de Napoleón.

pondem a um mesmo movimento de crise do

Una historia internacional, 1803-1815. Barcelona:

Antigo Regime desencadeada pelas revoluções

Critica, 2009.

atlânticas — a americana, a francesa e a de São

GUERRA,

Domingos — as quais engendram o liberalismo,

independencias. Ensayos sobre las revoluciones

o constitucionalismo e a cidadania moderna.

hispánicas. Madrid: Editorial Mapfre, 1992.

Elas decorrem também da expansão militar

LYNCH, John. Las revoluciones hispanoamericanas

napoleônica, bem como das opções e estratégias

(1808-1826). 11ª ed. Barcelona: Ariel, 2008.

dos governantes — o exílio de Dom João no

RODRÍGUEZ O., Jaime E. El nacimiento de

Brasil promovido pelos britânicos ou a aliança

Hispanoamérica.

de Fernando VII com os franceses da qual resulta

hispanoamericanismo,

sua abdicação. A conformação do Brasil imperial

Corporación Editora Nacional/Universidad Andina

e escravista e das repúblicas hispano-americanas

Simón Bolívar, 2007.

François-Xavier.

Vicente

Modernidad

Rocafuerte 1808-1832.

y

e

el

Quito:

semfronteiras |

65


AMÉRICA latina

Das desconfianças à percepção de unidade A INTEGRAÇÃO DA AMÉRICA LATINA É UM PROCESSO INICIADO EM FINS DA ERA COLONIAL E APROFUNDADO AO TEMPO DE FORMAÇÃO DE SEUS ESTADOS E NAÇÕES

66 | semfronteiras


lado, trabalho livre e escravidão. Por sua vez, os temores do império do Brasil em relação à formação de um Estado Américas

mesopotâmico na região do Rio da Prata levaram-no a

portuguesa e espanhola são muito antigas, bem como

intervir várias vezes no Uruguai (1811, 1825-1828 e 1864), a

tentativas de integração. Quem integrou a América

apoiar a independência do Paraguai em 1840, e derrubar

Latina pela primeira vez foram os Habsburgos espanhóis,

caudilhos, a exemplo de Rosas, que governou Buenos Aires

que em 1580 tomaram o trono português em razão de

de 1835 a 1852. A mais grave animosidade ocorrida neste

crise sucessória. Madrid governou a Península Ibérica

território foi, sem dúvida, a guerra do Paraguai (1864-

e as Américas espanhola e portuguesa até 1640, ano

1870), fruto tanto do intervencionismo brasileiro como

em que a dinastia de Bragança restaurou a monarquia

das pretensões e da modernidade do numeroso exército

lusa. Na era das independências, surgiram projetos

paraguaio. Embora tenham sido convocadas algumas

pan-americanistas, mas eles eram frutos de pretensões

conferências diplomáticas pelos países latino-americanos

de reis, como Carlota Joaquina, ou de caudilhos, como

no século XIX (Panamá, 1826, e Lima, 1847-1848 e 1864-

Bolívar, que aspiravam deter vastos territórios sob seu

1865), apenas no século XX a América Latina acordou

governo. Depois da formação dos Estados republicanos

para uma necessidade efetiva de integração. No entanto,

no que outrora fora a América espanhola, e da formação

o primeiro passo foi dado com a Conferência Internacional

do império do Brasil, as tentativas de integração cede-

Americana, realizada em Washington em 1889-1890,

ram lugar à formação de nacionalidades que se viam

sob liderança dos EUA. Foi aí, pela primeira vez, que os

sob suspeitas. Os políticos do império temiam o que eles

Estados Unidos propuseram a criação de um mercado

chamavam de “caudilhismo” e “anarquia” da América

comum americano, algo que lembra as atuais propostas

espanhola, aspectos decorrentes, segundo eles, do

da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA).

Desconfianças

recíprocas

entre

as

republicanismo e do militarismo ali vigentes.

Contudo,

as

diferenças

entre

Norte

e

Sul

Os hispano-americanos, por sua vez, acusavam

aprofundaram-se no século XX. Depois da Segunda

o império brasileiro de intervencionista, e de defensor

Guerra Mundial, quando surgem noções como as de

de instituições moribundas, como a escravidão e a

desenvolvimento e subdesenvolvimento, Primeiro, Se-

monarquia. Com efeito, o limite da integração latino-

gundo e Terceiro Mundo, as nações latino-americanas

americana no século XIX eram as oposições entre, por

reconhecem, finalmente, legados e destinos comuns.

um lado, republicanismo e monarquismo e, por outro

Elas são, no limite, terceiro-mundistas, subdesenvolvidas, dependentes e produtoras de gêneros tropicais. As tarefas de superar a dependência e o subdesenvolvimento

“Depois da Segunda Guerra Mundial,

e de rumar à industrialização requeriam identificação

quando surgem noções como as de

de problemas e a criação de esforços comuns. Novos

desenvolvimento e subdesenvolvimento,

patamares de negociações são alcançados em decor-

Primeiro, Segundo e Terceiro Mundo, as

rência da percepção de que a superação da pobreza e da

nações latino-americanas reconhecem,

desigualdade social poderia ser enfrentada em bloco, a

finalmente, legados e destinos comuns.”

partir de políticas de escopo continental. (LGS)

semfronteiras |

67


AMÉRICA latina

(Des)caminhos culturais Célia Musilli Fotos: Ângelo Antônio Duarte

EM ENTREVISTA À SEM FRONTEIRAS, O ENSAÍSTA, POETA, CONTISTA, ROMANCISTA E TRADUTOR MINEIRO SILVIANO SANTIAGO, 73, UMA DAS VOZES MAIS RESPEITADAS NO BRASIL E NO EXTERIOR, FALA SOBRE AS DIFERENÇAS E CONVERGÊNCIAS DOS POVOS DO CONTINENTE, APROFUNDANDO CONCEITOS E JOGANDO LUZ SOBRE TEMAS POLÊMICOS COMO OS PROCESSOS DE COLONIZAÇÃO E INDEPENDÊNCIA QUE CARREGAM PARA DENTRO DA CULTURA E DA CRIAÇÃO ARTÍSTICA QUESTÕES de ordem política e social

Autor de vários livros, premiado com três Jabutis

gestões culturais, cutuca as feridas dos processos que

nas categorias conto e romance, Silviano Santiago mos-

reduzem a arte a um proveito educacional e defende o

tra sua verve analítica especialmente nas obras Uma

experimentalismo como caminho enriquecedor na busca

literatura nos trópicos (1978) — que reúne ensaios que

de conceitos autênticos e novas linguagens.

decifram o mosaico da arte brasileira contemporânea —

Pensador inquieto, Santiago não se furta a tecer

e As raízes e o labirinto da América Latina, obra multi-

críticas ao que considera equivocado e traça um amplo

disciplinar em que contrasta o pensamento de Sérgio

panorama da cultura brasileira e latino-americana na

Buarque de Holanda, autor de Raízes do Brasil (1936),

contemporaneidade, sempre ancorado no conhecimen-

e o do mexicano Octavio Paz, autor de O labirinto da

to de várias vertentes do pensamento e voltado à

solidão (1950).

compreensão da arte a partir de um enfoque universal e

Dono de um pensamento provocativo e profundo,

humanista que extrapola fronteiras ou sistemas políticos.

nesta entrevista ele fala sobre as relações da cultura

Para ele, “a afirmação de uma cultura nacional interessa

com o capital, do que considera erros e acertos nas

a todos, menos aos verdadeiros artistas”.

68 | semfronteiras


“A afirmação duma cultura nacional interessa a todos, menos aos verdadeiros artistas. Mas estes, coitados! São, por definição, póstumos. Só são recuperados pelo Estado nos centenários de nascimento ou de morte.”

Hoje, os processos culturais na América Latina se organizam em torno duma sutil e precária combinação do social com a salvação de todos pelo consumo, de que a bolsa-família seria o exemplo mais claro e dramático e o antropólogo argentino Nestor García Canclini, o profeta. Acredita-se mesmo que em 2016 não haverá cidadão miserável no Brasil. A bolsa-família não é apenas exemplo, é também indiciador duma mistura extraordinária da inquietação cultural com o Capital, mistura até então desconhecida na América Latina, onde o mecenato norte-americano dos Rockfeller nunca tinha vingado, e vinga agora sob o controle dos Estados nacionais (no Brasil, o papel da Lei Rouanet). A unanimidade em torno da preocupação social em cultura é em nada por nada revolucionária, deixemos claro. Ela transpõe e ultrapassa as barreiras definidas pelas diferenças de classe, de re-

SF No momento, como o senhor avalia o desenvolvimento

gião e de cor de pele e pelas diferenças de formação

dos processos culturais no Brasil e na América Latina?

intelectual, para se respaldar num sentido pervagante de

SilvianoSantiago

democracia e na autoridade das pesquisas de opinião.

Ao final do século XX, acreditava-

se que a cultura na América Latina tinha encontrado seu então às várias formas de ensinamento conhecidas como

SF A cultura e a educação se juntam neste processo? SilvianoSantiago Em busca de uma solução demo-

autoajuda. O sucesso internacional do nosso Paulo Coelho,

crática e amigável para o bem-estar de todos os cidadãos,

bem acolhido em Davos, na Suíça, atestava a favor de

a cultura se traveste com a roupagem de “educação para

profecia que lembra o Marx de “a religião é o ópio do povo”.

todos”, ou com a fantasia de que “a educação é o remédio

O novo século traz outro retorno, o do social à cultura e à

para todos os males”, até os do estômago. A cultura (ou

arte, destruído no passado recente pela militarização dos

a educação, agora valores indissociáveis) toma conta

governos nacionais e pela ascensão ao poder de governos

da preocupação maior do governo federal, tornando-se

neoliberais, devidamente eleitos pelos cidadãos.

difícil distinguir o que é aparelho de Estado (no sentido

futuro no retorno da população ao misticismo, acoplado

semfronteiras |

69


de Louis Althusser) — o MEC, o MinC, ou a Receita Federal

propunham, então, uma “comunidade imaginada” nos

(vide a questão da Lei Rouanet). Na maratona cultural

trópicos, para usar a expressão de Benedict Anderson.

redentora, aos governos nacionais da região se associam

Não foi outra a tarefa dos romances de José de Alencar.

as multinacionais, em particular as das telecomunicações,

Vejamos outro grupo de adjetivos. Literatura bar-

as grandes empresas nacionais (se é que ainda existem),

roca, simbolista ou modernista — trata-se de evidente

os bancos (qual é o banco que não tem hoje o seu instituto

cacoete universitário. Condiciona o estudo e o ensino

cultural?) e assim por diante, até chegar às várias

das letras a uma configuração dada pelas sucessivas

organizações não governamentais.

fases da história literária, tendo como dominante o

O bom-mocismo — de que é exemplo maior o recente

estilo literário nessa ou naquela época. Acredita-se que

anúncio da Coca-Cola sobre o Haiti — é o presente e o

estejam sendo ultrapassadas as fronteiras emprestadas

futuro da cultura na América Latina. Por bom-mocismo

à literatura pela adjetivação nacionalista. Em evidente

deve-se entender não só uma flexão acentuada do capital

e discutível europeocentrismo, enxerga-se o conjunto

em direção aos bons sentimentos (cristãos ou outros)

da produção literária de um Estado-nação (periférico,

como também, entre os artistas, uma preocupação por

ou não) como parte de um estilo dito “universal”. Por

tornar toda obra de arte paradidática, para não dizer

exemplo: a literatura modernista brasileira tem algo a

simplesmente didática. A cultura busca a utilidade que

ver com a tradição ocidental centrada na Europa. Cada

a torna muleta da nossa educação, deficitária desde

época se manifesta, portanto, por estilo próprio, atual e

os movimentos nacionais de independência. No caldo

intransferível, sob pena de passadismo. Leia-se “Mestres

cultural que hoje domina a América Latina percebe-se que

do passado”, de Mário de Andrade.

o modelo ditado pelo fenômeno Paulo Coelho foi jogado para escanteio, a fim de que se torne valor dominante

SF

uma espécie de compreensão e visão infantojuvenil do

literatura “sem fronteiras”?

que seja arte.

SilvianoSantiago

Desprezando a adjetivação teríamos então uma Desde meados do século XIX,

com a intenção de azucrinar a cabeça dos historiadores

SF

Sob a forte influência da cultura de massa e

e críticos da literatura que se compraziam em qualificá-

globalizante, como se processa hoje a afirmação de

la pela adjetivação nacionalista ou pela adjetivação

uma “cultura nacional”?

estilística, poetas geniais têm apresentado configurações

SilvianoSantiago Na modernidade ocidental, quando

da obra literária em que todo e qualquer adjetivo aposto

se fala de cultura (de arte ou de literatura), nada tem sido menos rigoroso, nada tem sido mais oportunista e, ao mesmo tempo, mais indispensável, do que toda e

“Hoje, os processos culturais

qualquer adjetivação do substantivo.

na América Latina se organizam

Fiquemos com o exemplo da literatura. Literatura

em torno duma sutil e precária

francesa, brasileira ou angolana — trata-se de evidente

combinação do social com a

cacoete nacionalista. Pelo uso do adjetivo, julga-se que a

salvação de todos pelo consumo,

produção literária tem sido fundamento da nacionalidade

de que a bolsa-família seria o

em vias de institucionalização ou já institucionalizada.

exemplo mais claro e dramático e

A literatura é um para-raios retórico e eficiente. Há 180

o antropólogo argentino Nestor

anos, época em que o francês Ferdinand Denis traçava

García Canclini, o profeta.”

a história da literatura brasileira, o adjetivo nacionalista tinha um ranço iluminista. Nossos melhores escritores

70 | semfronteiras


ser nacional. Deixa de ser nacional para ser universal. O conceito de América Latina foi imposto a nós à época de

“Até no prejuízo uma intervenção

Napoleão III, para justificar incursões europeias na região

governamental pode trazer

ao sul dos Estados Unidos. O conceito é, pois, importado

ganhos para uma cultura nacional.

pelos nacionalistas do século XIX, em busca duma cons-

Às vezes, o ganho é pela negativa.

ciência subcontinental. Ao final do século XIX, quer ser

Trata-se do que aconteceu no

exportado pelo poeta Sousândrade (O guesa errante) e

Brasil a partir de 1964.”

pelo ensaísta Manuel de Bonfim (A América Latina). É, finalmente, exportado nos manifestos vanguardistas de Oswald de Andrade, ou na pintura de Tarsila. O círculo

ao substantivo é afastado e negado para que se reluza

se fechou com a música de Darius Milhaud, Le boeuf sur

o que é Arte apenas Arte. A finalidade é, por um lado,

le toit. Graças à composição musical de Zé Boiadêro, o

a de singularizar e enobrecer o instrumento de trabalho

compositor francês importava o conceito exportado por

do escritor-artista: a linguagem. Por outro lado, é a

Napoleão III. Fazemos uma arte de exportação, como

de desacreditar as definições de literatura de cará-

dizia Oswald.

ter geográfico, histórico ou social. Citemos Stéphane Mallarmé, o poeta dos poetas. No soneto “Le tombeau

SF

Neste processo, quais os pontos de convergência

d’Egard Poe”, escreve que cabe ao poeta “Donner un

ou de separação da cultura latino-americana?

sens plus pur aux mots de la tribu” (“Dar um sentido

SilvianoSantiago

mais puro às palavras da tribo”). A busca de uma pureza

nuanças determinadas pelos diferentes Estados-nações

redentora da palavra, transformada em sucedâneo laico

são responsáveis pelo fortalecimento do conceito de

do Santo Graal, é o modo como o artista justifica a própria

América Latina. México dá a mão ao Peru, à Argentina

vida e sua obra. Outra frase de Mallarmé: “Le monde est

e ao Brasil. Por comodidade, tomemos o caso brasileiro

fait pour aboutir à un beau livre” (“O mundo é feito para

como emblemático.

terminar num belo livro”).

A partir do Romantismo, as

No ensaio O Brasil não é longe daqui (1990), Flora

É claro que a última visão de literatura, a dos gênios,

Sussekind estudou a passagem da prosa dos viajantes

é perfeitamente dispensável, enquanto as anteriores

estrangeiros à prosa dos nossos primeiros romancistas.

têm sua utilidade atestada, seja pela história, a política,

Trata-se dum primeiro momento de construção histórica

a escola ou as histórias da literatura. Ou seja: a afirma-

do conceito de América Latina, que traz em si semelhança

ção duma cultura nacional interessa a todos, menos

e diferença. Não conheço estudo que dê conta do

aos verdadeiros artistas. Mas estes, coitados! São, por

momento seguinte. A transição da escrita romanesca que

definição, póstumos. Só são recuperados pelo Estado nos

descreve o Brasil para a ensaística que interpreta o Brasil.

centenários de nascimento ou de morte.

O Abolicionismo (1883), de Joaquim Nabuco, pode servir de modelo para o segundo momento. Pesquisado

SF Como a América Latina pode fortalecer sua própria

por um brasileiro na biblioteca do Museu Britânico, a

cultura?

mesma onde Karl Marx escreveu sua obra-prima, o ensaio

SilvianoSantiago

Criado

pelos

colonizadores

expõe de dentro do Brasil para dentro e para fora do

europeus, ou seja, de fora para dentro, o conceito de

Brasil os podres da colonização europeia nos trópicos,

América Latina foi pouco a pouco se fortalecendo com

já que se trata de libelo contra o escravismo colonial.

o movimento de dentro para fora, motivo principal de

A tarefa de Nabuco é a de “tornar a escravidão odiosa

sua constante valorização. Deixa de ser colonial para

perante os próprios senhores”, tópico que os românticos

semfronteiras |

71


nacionalistas relutavam em trabalhar. Tinham erigido o índio como símbolo nacional. Optavam, portanto, pela segurança das águas então mansas do indianismo. Na configuração de fora para dentro da literatura que descreve o Brasil para a configuração de dentro para fora da ensaística que interpreta o Brasil, há uma passagem da reificação do nacionalismo (José de Alencar, por exemplo) à reificação do cosmopolitismo (Nabuco, por exemplo). A atitude cosmopolita é defendida pela elite letrada brasileira em face das ideias conservadoras, injustas e retrógradas da elite nacionalista latifundiária. Machado de Assis é o melhor exemplo em literatura. O cosmopolitismo da elite letrada quer retirar o Brasil do atraso civilizacional para nele implantar a “revolução burguesa”, segundo a análise de Florestan Fernandes. Sem abandonar os compatriotas, a nação brasileira pode deixar de ser mero exemplo emblemático da América Latina.

“Tal como se encontra, a política

SF

Como a cultura brasileira se rela-

dita popular do

ciona com as culturas de outros países

MinC insiste no

da América Latina? O Brasil pode ser

agravamento do

considerado uma “ilha cultural”, sem

mais grave de todos os problemas em

muita ligação com o continente?

SilvianoSantiago

É tópico que tem

país de maioria

sido do meu interesse. Permita-me a

analfabeta: esquece

primeira pessoa. Desde Uma literatura

o aprimoramento

nos trópicos (1978) o meu propósito tem

da sensibilidade

sido o de compreender o estatuto do

artística do jovem

discurso latino-americano na contem-

interiorano.”

poraneidade. Para dar um passo adiante na minha proposta inicial, escrevi recentemente As raízes e o labirinto da América Latina (2005).

72 | semfronteiras


Para apresentar uma visão ampla da questão, em

SF

O latino-americanismo ainda faz sentido em

lugar de me debruçar só sobre As raízes do Brasil (1936),

tempos globais?

de Sérgio Buarque de Holanda, pensei em contrastá-

SilvianoSantiago

lo com O labirinto da solidão (1950), do mexicano

americanismo não chega a ser um conceito. É um

Octavio Paz. A leitura paralela e simultânea teve como

instrumento que em mãos do analista ou do polí-

estratégia a busca de diferenças entre o Brasil e o

tico serve para englobar determinada região do

México, da diferença dentro da América Latina.

Novo Mundo, cuja singularidade se define pela sua

Teoricamente,

o

latino-

Enumero alguns poucos exemplos para, sem

colonização pelos países da Península Ibérica. Analítico

falsa modéstia, recomendar ao interessado a leitura

e político, o instrumento se reforça por componentes

do meu livro.

histórico-sociais, econômicos e culturais e serve para

O livro de Sérgio é anterior à Segunda Guerra e o

contrastar a região com outra do mesmo continente,

de Paz é posterior. Entre os dois, há a descentragem das

colonizada pelos anglo-saxões, os Estados Unidos da

economias-mundo, para retomar a análise de Fernand

América. Embora tenha as raízes no período colonial,

Braudel em A dinâmica do capitalismo. Os Estados

sua força se acentua no período pós-colonial, como já

Unidos estabelecem “novas zonas concêntricas” de

adiantamos, e ganha sentido preciso no momento em

atuação no mundo e na América Latina. O intérprete

que o país do norte ganha espaço e passa a liderar a

brasileiro está no distante Cone Sul e é um apaixonado

economia mundial. Houve tentativas sucessivas de

da velha Europa (as raízes coloniais). O mexicano

torpedear o instrumento analítico por parte da políti-

está ao lado do gigante do norte e fez os estudos na

ca externa norte-americana, mais e mais hegemônica.

Universidade de Berkeley, na Califórnia (o labirinto

A primeira em data foi a chamada Doutrina Monroe

pós-colonial). O primeiro se interessa pelo destino do

(1823), reafirmada em 1904 pelo presidente Theodore

“barão” português aclimatado aos trópicos. O segundo,

D. Roosevelt. Mais recentes torpedeamentos foram a

bem impiedoso com a própria Nação, dá o tom para que

Política da Boa Vizinhança de outro Roosevelt, Franklin

se compreenda através do pachuco (o bracero mexi-

Delano, e o novo e atual formato da Organização dos

cano na Califórnia) a futura diáspora latino-americana,

Estados Americanos (OEA).

de que será exemplo recente e trágico o destino do nosso Jean-Charles no metrô de Londres.

O latino-americanismo vai encontrar seu avesso durante a Segunda Grande Guerra e vai atingir espaço

Outro exemplo. Um começa como crítico literário

planetário próprio durante a Guerra Fria. Servirá ele de

na revista Estética (1924) e se torna historiador. O

massa de manobra para os dois países hegemônicos.

outro é poeta e se torna um homem de ideias, futuro

Define-se, então, como representante do Terceiro Mun-

Nobel. Portanto, antes de os dois serem exemplo de

do e chega a ser seu porta-voz, como quis o comandante

intelectuais que buscam uma explicação simples e

Che Guevara. Oscilava entre a aliança aos Estados

demagógica para as respectivas identidades nacionais,

Unidos da América ou à União Soviética. A recente

são pensadores imersos no caldo de cultura que a

história da militarização das nações latino-americanas

civilização ocidental representa para o homem le-

e da consequente repressão é bom exemplo do peso e

trado latino-americano. Por isso, Sérgio se apoia no

valor do instrumento analítico e político.

passado literário lusitano para municiar a crítica ao

Do ponto de vista estritamente cultural, esse mo-

nacionalismo pragmático dos anos 1920 (Mário e

mento notável é marcado pela criação da Casa de las

Oswald). Paz indaga sobre o que se esconde por trás

Américas, em Cuba. A referida instituição se tornou,

da máscara e da encenação governamental e canônica

por assim dizer, o Ministério das Relações Exteriores

da identidade mexicana.

da América Latina revolucionária. É matéria pouco

semfronteiras |

73


conhecida no Brasil, já que da Casa, em virtude da

não enxergamos, além dos estereótipos?

língua portuguesa que falamos, os brasileiros só

SilvianoSantiago Em termos planetários, é maior

vieram a participar nos anos finais da Guerra Fria.

o sucesso do latino-americanismo econômico, mais

No entanto, para o mundo hispânico a Casa — com

desastroso tem sido o latino-americanismo cultural ou

seus prêmios e a famosa revista — tem importância

artístico, em particular na sua faceta brasileira. Não me

capital na divulgação da arte latino-americana (mais

lembro de momento em que a cultura/arte brasileira

bem hispano-americana, corrija-se) mundo afora.

esteve tão negligenciada nos chamados países do

Em literatura, certos matizes políticos da oposição

Primeiro Mundo. Nem mais temos um novo Jorge

entre Mario Vargas Llosa e Gabriel García Marquez

Amado, um audacioso Glauber Rocha, outro Portinari

só podem ser mais bem compreendidos através de

ou um descendente de Niemeyer para colocar na

certos valores “estéticos”, defendidos por Haydée

vitrina. Em troca, ali temos expostos — na condição de

Santamaría, fundadora da Casa em 1959.

celebridades — muitos jogadores de futebol e alguns poucos cantores pop. Somos imbatíveis. “Alguma coi-

SF

Neste sentido, existiria ainda uma “cultura

latino-americana revolucionária”?

SilvianoSantiago

sa está fora/está fora da nova ordem mundial”, como anunciou Caetano Veloso.

O final da Guerra Fria foi cruel

Confesso que esse descaso pela cultura/

com o latino-americanismo. Ele ressuscita no novo

arte no Brasil vem, por um lado, do papel cada vez

milênio, reincorporando a maioria das vestimentas de

menos significativo da língua portuguesa no cenário

que se valeu durante o seu período áureo. É normal,

mundial e, por outro lado, de uma política externa,

já que a atual classe política latino-americana foi

cultural e artística desastrada. A maioria dos nossos

formada nos anos de chumbo, do presidente Lula

adidos culturais ainda não passou no vestibular do

ao chanceler Celso Amorim. A diferença entre uma

Modernismo. Vivem como se na Belle Époque. Estão

América Latina conservadora e outra revolucionária

no estrangeiro para pôr a azeitona na empadinha do

tem sido, pois, acentuada pelo boom econômico da

país em que representam o Brasil. E não vice-versa.

região em tempos globalizados. Graças ao petróleo,

O New York Times, em artigo intitulado “Foreign

a Venezuela substitui de certa forma a antiga Cuba,

Languages fade in class — except Chinese” (20/1/2010),

enquanto os Estados Unidos não negam palavras

informa que o governo chinês está enviando, sob sua

simpáticas ao Brasil — Obama chama a Lula de

responsabilidade financeira, professores de língua

“dude”, palavra que jamais empregaria em conversa

chinesa para todo o mundo, inclusive para as escolas

com o primeiro-ministro britânico —, ainda que este

públicas dos Estados Unidos da América. Por onde

país queira comprar seus aviões de caça na França.

anda o B do BRIC?

A radicalidade do latino-americanismo econômico

Com vistas ao futuro, um projeto cultural e

se encontra, por um lado, no petróleo (o já existente

artístico latino-americano, comparável ao sucesso

venezuelano e o a existir brasileiro) e na entrada do

econômico do Brasil, seria o da criação em nossas ter-

Brasil, graças principalmente ao agrobusiness, para o

ras duma Casa das Américas/Casa de las Américas,

seleto grupo dos países do BRIC (Brasil, Rússia, Índia

obviamente antenada com as questões do novo

e China).

milênio e não mais presa ou vítima dos percalços da Guerra Fria. O Memorial da América Latina, financiado

SF

Sob o ponto de vista cultural, o Brasil aparece

pelo governo do Estado de São Paulo, se não me

no mapa a partir da visão reduzida de “país do

engano, é apenas um arremedo da Casa cubana, mas

samba e do futebol”. O que nós somos e que ainda

não deixa de ser um bom começo.

74 | semfronteiras


“Não é que a cultura dita

SF

popular tenha de ser

cultura popular é um desvio de rota feito pelo Estado?

relegada ao segundo plano

SilvianoSantiago Não é que a cultura dita popular

pelo Estado. O problema é que,

tenha de ser relegada ao segundo plano pelo Estado.

num país de alfabetizados,

O problema é que, num país de alfabetizados, toda

toda forma de cultura é

forma de cultura é legitimamente popular. E se a meta

legitimamente popular.”

maior é a educação da massa, que se enfrente o touro

Então, o senhor considera que a ênfase dada à

à unha. Será que a “falta” justifica o ganho indevido? Não é que a repetição em massa dum modelo (veja o

SF

O senhor acha que na gestão do governo Lula,

caso, por exemplo, da produção em pedra-sabão ou

com a ênfase do MinC na cultura popular e nos

argila), tenha de ser relegada ao segundo plano pelo

processos de inclusão social também através da

Estado. O problema é que, num país de alfabetizados

arte, houve um ganho para o País? Por quê?

ou que se alfabetiza, todo cidadão inclinado às artes —

SilvianoSantiago Até no prejuízo uma intervenção

em particular o que ainda tem a própria vida pela fren-

governamental pode trazer ganhos para uma cultura

te — deveria estar experimentando seu próprio potencial

nacional. Às vezes, o ganho é pela negativa. Trata-

em convívio com artistas renomados e deveria estar

se do que aconteceu no Brasil a partir de 1964. A

testando o potencial do material com que trabalha,

cultura e a arte se associam aos partidos políticos

seja ele o que for, nobre ou plebeu. Será que a “falta”

revolucionários para desmontar um Estado julgado

justifica o intervencionismo equivocado?

autoritário e violento e, por isso, merecedor das pedras

Tal como se encontra, a política dita popular do

e dos ovos podres dos produtores artísticos. Às vezes,

MinC insiste no agravamento do mais grave de todos

o ganho é pela afirmação. Lembrem-se dos tempos

os problemas em país de maioria analfabeta: esquece

gloriosos do governo JK, quando o experimentalismo

o aprimoramento da sensibilidade artística do jovem

poético, o cinema e a música popular davam as mãos

interiorano. Relega-o à condição de peão em mãos do

a Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Niemeyer, Volpi e

capataz interiorano, muitas vezes chamado de prefeito.

tantos outros. Às vezes, o ganho é pela falta total de

Parece coisa do antigo Partido Comunista, que proibia

alicerce. Vive-se ao deus-dará. É o caso colocado em

aos seus jovens partidários o estudo universitário

pauta pela pergunta.

porque temia que se distanciassem do povo.

Os tempos são, portanto, outros no novo milênio.

Tal como se encontra, a política dita popular do

Numa situação ideal, onde o Ministério da Educação

MinC acaba por delegar ao Capital — através de mil

já teria cumprido o seu papel desde o final do século

e um institutos de cultura empresariais — a função

XIX, não competiria ao MinC incrementar uma política

de organizar e direcionar os artistas brasileiros que

artística que desviasse os olhos da produção letrada

já se consolidaram, bem ou mal, ou se consolidam

em favor da cultura dita popular. Numa situação

no mercado nacional e internacional. Isso é gra-

ideal, repito, não competiria ao MinC incrementar

ve, muito grave. A liberdade de expressão artística

uma política artística que desviasse os olhos da

e as incógnitas da experimentação artística são

experimentação, que significou desde sempre a

contratorpedeadas por princípios retrógrados e mo-

ousadia do artista em toda e qualquer sociedade, em

ralizantes, que buscam exibir à população os bons

favor do governo indiscriminado das manifestações

propósitos da generosidade empresarial. A esmola,

culturais que se afirmam pela repetição em massa

se muita, passa a ser ditatorial. Mais ditatorial que

dum modelo.

qualquer governo nacional autoritário.

semfronteiras |

75


AMÉRICA latina

Integração ainda que tardia Romeu de Bruns

INAUGURAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL LATINO-AMERICANA (UNILA) CONCRETIZA SONHO DE FRANCISCO BILBAO Mais de 150 anos depois de os termos “América

Rojas Mix, recebiam maior atenção. A partir dessa década,

Latina” e “latino-americano” terem sido cunhados, a

porém, surgiram movimentos culturais com forte con-

integração do Brasil com seus vizinhos continentais ganhou

teúdo integrador da América Latina, pois reconheciam os

uma importante aliada com a aprovação, em dezembro,

pontos comuns entre as realidades dos países da região,

no Senado brasileiro, da criação da Universidade Federal

como a Teologia da Libertação e o Cinema Novo. “Além

da Integração Latino-americana (Unila), com sede em Foz

disso, houve um fator cultural integrador durante os anos

do Iguaçu, junto à usina binacional de Itaipu – empresa

60, que foi o boom da literatura latino-americana, com

que, por sinal, desempenhou papel decisivo nesse projeto.

igual destaque para escritores peruanos, argentinos,

Na prática, a Unila já havia iniciado suas atividades

chilenos, uruguaios e brasileiros. Eles são criadores de

em agosto de 2009, promovendo uma série de dez

uma forte identidade comum”, defendeu o chileno.

cátedras ao longo do segundo semestre, cada uma de-

Uma das principais razões para o afastamento

dicada exclusivamente a um dos temas que interessam

brasileiro do contexto latino-americano, prosseguiu o

à integração latino-americana, como desenvolvimento,

historiador, foi o processo de independência do Brasil, que

educação, saúde pública e literatura, entre outros. Foram

se manteve uma monarquia mesmo após a emancipação

diversas as participações ilustres, mas o tema central,

política de Portugal. Outra razão é que, no projeto colonial

o da integração e da identidade latino-americanas propriamente ditas, coube ao historiador chileno Miguel Rojas Mix. A cátedra leva o nome de Francisco Bilbao, justamente o escritor e político chileno que, no século XIX, criou a expressão “América Latina”. Mas, mais do que isso, Bilbao foi um visionário que sonhou com a união desses países e defendeu a criação de uma universidade para promover essa integração. “Cento e cinquenta anos depois, a Unila veio para cumprir essa tarefa”, afirmou Rojas Mix, para quem o fato de a instituição estar sediada no Brasil é uma vantagem, pois, a seu ver, o país tem a missão de liderar a região. Entretanto, até os anos 1960, o país praticamente não olhava para a América Hispânica. África e Ásia, segundo

76 | semfronteiras

Francisco Bilbao, escritor e político chileno que criou a expressão “América Latina”.


Câmara dos Deputados

Cena do filme Terra em transe, de Glauber Rocha, um dos principais ícones do Cinema Novo.

Capa da revista Klaxon, veículo de divulgação do movimento modernista brasileiro.

Construção de Brasília.

português, predominou a exploração do litoral, enquanto

clara. Porém, é seguro afirmar que

“O Brasil tem

os espanhóis interiorizaram sua presença no território. “A

o Brasil começa a ser árbitro de

de assumir a

colonização espanhola avançou para o interior, fundando

muitas questões internacionais e,

hegemonia no

cidades e, com isso, havia uma grande preocupação em

nesse sentido, está numa espécie

continente por seu

integrar culturalmente a população. As políticas educativas

de encontro sociopolítico com os

potencial, algo

vieram muito mais cedo. Tanto que a primeira universi-

Estados Unidos.”

que a política do

dade foi fundada no século XVI, enquanto no Brasil isso só

Além

da

importância

para

presidente Luiz

o país e para a integração latino-

Inácio Lula da Silva

Outro fator que pesou para essa dicotomia foi que,

americana, Miguel Rojas Mix des-

deixa muito clara.

na América Hispânica, a consciência de independência

tacou a relevância que a Unila

Essa hegemonia

e de modernidade é anterior ao Brasil. “Para mim, um

terá para Foz do Iguaçu. Em sua

coincide com o

observador externo, a consciência de modernidade do

análise, ele lembra ser necessário

crescimento de

Brasil nasce com a Semana de Arte Moderna (1922). E

ter consciência de que a criação da

outras potências

essa consciência se expressa de maneira muito forte na

universidade fará com que a cidade

regionais, como

criação de Brasília, uma cidade não só para o Brasil, mas

se converta em uma referência não

Rússia, Índia e

para ser o centro de um processo integrador de toda a

só pelas Cataratas, ou pela Itaipu

China.”

América Latina.”

Binacional, mas sim pela cultura e

viria a acontecer no século XX”, comparou.

Catedrático da Universidad de Chile, onde é diretor do

pela produção científica. “Ao fundar esta Cátedra, vejo que

Instituto de Arte Latinoamericano, Rojas Mix considera que

há um senso comum de pensar a América Latina e fico

o Brasil vem conseguindo se estabelecer como líder regional,

muito feliz, pois sempre busquei a integração”, comentou

posição que “todos os latino-americanos reconhecem”. “O

Rojas Mix ao encerrar seu seminário.

Brasil tem de assumir a hegemonia no continente por seu potencial, algo que a política do presidente Luiz Inácio Lula da Silva deixa muito clara. Essa hegemonia coincide com o crescimento de outras potências regionais, como Rússia, Índia e China, que, cada vez mais, têm peso importante na política e na economia internacionais”, explicou. “Nesse caso, o Brasil vai representar pelo menos a América do Sul, pois a situação em relação ao México ainda não está

Logomarca do Centro Extremeño de Estudios y Cooperación con Iberoamérica (Cexeci), fundado por Miguel Rojas Mix.

semfronteiras |

77


AMÉRICA latina

Educação superior e o status de bem público Murilo Alves Pereira

Uma das maiores autoridades mundiais em educação superior, a psicóloga venezuelana CARMEN GARCÍA GUADILLA fala, na entrevista a seguir, sobre o projeto “Pensamento universitário latinoamericano” e também sobre os desafios para a área. Entre várias atividades, é professora titular e representante do Instituto Internacional da Unesco para a Educação Superior.

SF

Por favor, fale sobre o projeto “Pensamento

Universitário Latinoamericano”. Quais são os focos do estudo?

CarmenGuadilla O projeto “Pensamento Universitário Latinoamericano”, como produto da Cátedra da Unila [Universidade Federal da Integração Latinoamericana], responde à necessidade de aprofundar o conhecimento sobre ideias, modelos e atores que foram relevantes para formar a universidade latinoamericana. Todo o projeto nos permite interpretar melhor o presente e os desafios do futuro. Também nos dá a oportunidade de apreciar como os conCarmen Guadilla, psicóloga e educadora.

semfronteiras 78 || semfronteiras 78

ceitos do passado ainda são fundamentais para


“A América Latina tem que aumentar sua

os sistemas de outras regiões do mundo. Um dos vazios

taxa de cobertura em ensino superior.

lamentáveis que existem em muitos países da Amé-

Mas deve fazer isso com qualidade,

rica Latina é a precária institucionalização da educação

respondendo às necessidades dos países

superior como campo de estudo. Não existem informações

da região, para o que as políticas de

confiáveis e, tampouco, produção de conhecimento que

integração e internacionalização

permita avançar na compreensão do presente e, menos

solidária são fundamentais.”

ainda, temos elementos sólidos para preparar o futuro. Por isso, é crucial que essa cátedra se vincule a investigadores de todos os países da região, para que existam estudos

entender os processos atuais. Por exemplo, a importância

comparados com informações confiáveis que possam ser

da universidade para o desenvolvimento das sociedades, a

utilizados por governos, instituições de educação superior

responsabilidade social que a universidade deve ter para

e organismos internacionais. Não existe futuro próprio se

responder a todos os setores da sociedade, seu papel

não há conhecimentos próprios.

no desenvolvimento dos aspectos éticos, da inovação e desenvolvimento de estratégias para afrontar o futuro, e

SF Quais são os principais desafios do ensino superior

muitos outros aspectos que estão presentes desde o início

na América Latina?

da história das universidades.

CarmenGuadilla São vários. Eu listaria os seguintes: a educação superior deve defender seu status de bem público

SF Qual o estado atual do projeto? CarmenGuadilla Até agora, o projeto tem se orientado

social, para estar a serviço do desenvolvimento humano e

a revisar a história dos pensadores e formadores de

Regional da Educação Superior da Unesco, em 2008, em

maneira geral. O resultado desta primeira etapa foi

Cartagena, Colômbia. Deve ser inovadora nos processos de

o livro “Pensadores e Formadores da Universidade

aprendizagem, considerando que dentro de pouco mais de

Latinoamericana”, editado por Unesco/Iesalc y Cendes,

cinco anos teremos na universidade a geração de jovens que

em que participaram autores dos 20 países da América La-

nasceram na era digital. Deve abrir espaços à geração de

tina, e a partir do qual se projetou a temática e se criou um

relevo nas universidades, tratando de absorver os melhores

espaço de intercâmbio sobre o pensamento universitário

talentos. Deve criar espaços regionais de investigações

latino-americano. Agora vem uma segunda fase, orien-

de alto nível, para responder mais adequadamente às

tada para aprofundar as distintas etapas da história de

necessidades de maior desenvolvimento dos países e, ao

maneira contextualizada. O objetivo é entender quais

mesmo tempo, fazer frente à fuga de talentos que ocorre

foram as influências de cada uma delas no pensamento e

em muitos países latino-americanos, buscando melhores

nas propostas dos pensadores e formadores que mais se

oportunidades profissionais. Maior inclusão, com qualidade

sustentável dos países, como foi enfatizado na Conferência

destacaram no desenvolvimento da universidade.

SF E sobre a cátedra da Unila, qual é o seu objetivo? CarmenGuadilla A Cátedra Andrés Bello em Educação

“Temos uma taxa de cobertura da educação superior muito abaixo da dos países desenvolvidos. A taxa

Superior Comparada da Unila deveria se converter em

de cobertura regional (América

uma plataforma para acolher estudiosos da educação

Latina e Caribe), de acordo com a

superior, promover suas investigações, além de contribuir

Unesco, é de 37%, mas eu diria que

com informações confiáveis para estudar e comparar os

ela é um pouco menor. A média dos

sistemas de educação superior da região, e estes com

países desenvolvidos é de 70%.”

semfronteiras | 79 semfronteiras


e pertinência — este é outro dos desafios que a Unesco

“Um dos vazios lamentáveis que

reitera permanentemente.

existem na América Latina é a precária institucionalização da

SF

A senhora citou a inclusão no ensino superior.

educação superior como campo de

Como estão os números da inclusão nos países da

estudo. Não existem informações

América Latina?

confiáveis e, tampouco, produção de

CarmenGuadilla

Temos uma taxa de cobertura da

educação superior muito abaixo da dos países desen-

conhecimento que permita avançar na compreensão do presente.”

volvidos. A taxa de cobertura regional (América Latina e Caribe), de acordo com o último informe mundial da Unesco, é de 37%, mas eu diria um pouco menos, pois

tendo menores taxas de alunos formados, ou seja, o

existem alguns países que aparecem com taxas um

estudante chega ao ensino superior, mas não o conclui. Em

pouco altas em relação aos dados que mantemos com

relação à pós-graduação e à pesquisa, o Brasil é o país que

os investigadores da região. Neste sentido, a taxa de

se sobressai, junto com o México. E, no doutorado, o Brasil

cobertura da educação superior da região é maior que a

alcança 50% dos estudantes da região. Isso se reflete

média mundial, que é de 26%, mas muito mais baixa que

nos rankings internacionais de pesquisas, em que o Brasil

a média dos países desenvolvidos (América do Norte e

tem mais de 50% das publicações da região, seguido por

Europa Ocidental), de 70%.

México, com 17%, e Argentina, com 14%.

SF Se a média regional é melhor que a média mundial,

SF Como está a situação do ensino superior no resto

isso é uma boa notícia...

do mundo?

CarmenGuadilla

CarmenGuadilla

Nem tanto, porque a média regional

Na última década, houve uma

de 37% cobre grandes diferenças na região. Os países

expansão da educação superior muito grande em nível

com as taxas mais elevadas são Cuba, Argentina, Chile,

mundial. De 82 milhões de estudantes, em 1995, passou

Venezuela e Panamá, e os países com menores taxas são

para 150 milhões, em 2008. A região do mundo que mais

Guatemala, Honduras e Nicarágua. O Brasil tem aumen-

tem aumentado o número de estudantes é a Ásia. Atual-

tado bastante a taxa de cobertura. Há uma década, o país

mente, dos 150 milhões de estudantes em todo o mundo,

tinha uma taxa de 20,4%, menor que a média regional, e

44% são da Ásia, 37% da América do Norte e Europa, 12%

atualmente tem uma taxa de 26%, segundo números de

da América Latina e Caribe, 5% dos Estados Árabes e 3%

PNAD-IBGE. Entretanto, é preciso deixar claro que, no

dos países da África Subsaariana.

informe da Unesco de 2009, a cifra que aparece do Brasil é muito maior, de 30%, mas eu confio mais nos números sugeridos pelos investigadores do Brasil.

SF Para atingir os padrões dos países desenvolvidos, o que precisa ser feito?

CarmenGuadilla

A América Latina, como região,

SF O que explica esta maior taxa de inclusão em países

tem que aumentar sua taxa de cobertura. Mas deve fazer

como Cuba?

isso com qualidade, respondendo às necessidades dos

CarmenGuadilla Em Cuba, por exemplo, a entrada dos

países da região, para o que as políticas de integração e

estudantes no ensino superior é irrestrita, ou seja, não há

internacionalização solidária são fundamentais. É preciso

processo seletivo. Mas quantidade de alunos não implica

levar em conta as enormes assimetrias entre os países e

em qualidade. Esses países que têm ingresso irrestrito e

otimizar a complementaridade entre eles, para responder

conseguem atingir elevadas taxas de ingresso acabam

aos desafios da globalização do conhecimento.

80 | semfronteiras semfronteiras


AMÉRICA latina

CT&I + inclusão social Regina Rocha e Sonia Montaño

HEBE VESSURI: “A CIÊNCIA DESCOLADA DA REALIDADE NÃO SE SUSTENTA”.

Um contrato social para a ciência, tecnologia e

ainda estão longe de ser alcançadas pelos países

inovação (CT&I) na América Latina e Caribe (ALC), que

da ALC. No geral, há escassez de recursos humanos

atenda as necessidades da população em aspectos

qualificados e “uma inquietante debilidade das capa-

como os da saúde, educação, habitação e segu-

cidades locais para resolver as necessidades da

rança, e em harmonia com o meio ambiente, deverá

região”, disseram os cientistas, que, entre inúmeras

transcender os governos e as conjunturas político-

recomendações, pediram atenção para os desastres

econômicas e exigir cooperação em todas as áreas

climáticos. Eles também fizeram referência às cinco

do conhecimento. Em resumo, esse é o principal

décadas de contínua drenagem de talentos da ALC

recado de uma declaração emitida no final do ano

para os países mais desenvolvidos e insistiram na

passado em Buenos Aires por cientistas da ALC que

necessidade de a ciência, a tecnologia e a inovação

participaram de uma oficina da ONU, preparatória

trabalharem sob a ótica da inclusão social.

da conferência mundial de Budapeste. Para isso, um programa estratégico e um Centro Regional de

Ciência e soberania

Cooperação Científica e Tecnológica deverão ser

Em entrevista à revista Sem Fronteiras, a an-

construídos junto à Unesco e em parceria com insti-

tropóloga Hebe Vessuri, do Instituto Venezuelano de

tuições internacionais como BID, OEA e OEI e não

Investigações Científicas (IVIC), opinou que o apoio

governamentais como IANAS (InterAmerican Network

à ciência na ALC deveria ser encarado como uma

of Academies of Sciences) e ICSU (Regional Office for

questão de soberania. Sobre inclusão social, falou:

Latin America and the Caribbean).

“A ciência pela ciência, descolada da realidade social,

Em Buenos Aires, os participantes reconheceram

não se sustenta”. Segundo a antropóloga, doutora

que muitas das metas previstas há mais de dez anos

pela Universidade de Oxford, a conformação histórica

pela Conferência Mundial sobre Ciência, como pensar

das nações latino-americanas “resultou num sub-

o ensino de ciências a partir do cotidiano das pessoas,

continente dividido e com pouca percepção acerca das

semfronteiras |

81


“Ciência, tecnologia e inovação

muitas áreas. O Brasil certamente se distingue, formando hoje 10

e educação e cultura juntas

mil doutores e 30 mil mestres por ano, mas Argentina, Chile, México

é que resultam num progresso

e Colômbia mostram avanços importantes em vários setores. Em

abrangente e harmonioso”,

todos os países da ALC encontra-se uma ciência de boa qualidade,

afirma o cientista paranaense

ainda que em alguns casos fosse importante aumentar o número

Waldemiro Gremski.

de cientistas ativos”, afirma Alice Abreu, diretora do ICSU. “As universidades são de boa qualidade e existem conselhos nacionais de ciência e tecnologia, do tipo do CNPq, criados em sua maioria na

suas potencialidades”. Contudo, diz ela, “essas

década de 50 ou 60, que apoiam a pesquisa científica. Em muitos

nações têm hoje uma vontade de integração

casos, no entanto, essa pesquisa é feita em colaboração com o

muito mais intensa do que em outros períodos

Norte, especialmente com os Estados Unidos e a Europa.”

da sua história”. Ela aponta, entre vários outros entraves ao desenvolvimento científico e tec-

Investimentos

nológico da região, a formação fragmentada

Apesar dos vários compromissos de aumento de recursos

dos futuros cientistas do século XXI. “Há uma

para a C&T, assumidos nas reuniões multilaterais, os países latino-

tendência na formação desses jovens que pode

americanos e caribenhos continuam investindo pouco em C&T — a

ser comparada a um telescópio invertido, isto é,

média é de 0,62% do PIB —, contra os 2% ou 3% aplicados pelos

percebe-se a própria realidade como menor e

países de alta renda. O Brasil é o único país que, de acordo com

mais distante.”

o relatório da Rede de Indicadores de Ciência e Tecnologia Iberoamericana e Interamericana (Ricyt), superou a barreira de 1% do

Questão de Estado

PIB em C&T. Os avanços registrados nos últimos anos em alguns

Em alguns países, o desenvolvimento da

países da região tanto em relação ao (modesto) aporte de recursos

CT&I na ALC ainda depende de múltiplos fatores,

financeiros quanto à qualificação profissional, não são suficientes,

como a regulamentação de marcos legislativos, isto

é,

de

garantias

constitucionais

que

assegurem a destinação de recursos próprios para o setor. No Brasil, por exemplo, a C&T só passou a ser tratada como questão de Estado depois que a Constituição de 1988 lhe dedicou um capítulo à parte. O destino e a continuidade dos recursos para áreas estratégicas, bem como o desequilíbrio entre a produção científica e o uso criativo desta produção, são outros fatores preocupantes. “Ciência, tecnologia e inovação e educação e cultura juntas é que resultam num progresso abrangente e harmonioso”, defende o cientista paranaense Waldemiro Gremski. “A América Latina e Caribe, ao contrário da África, por exemplo, vêm investindo em formação de recursos humanos há mais de meio século, e têm hoje uma comunidade científica importante e de qualidade internacional em

82 | semfronteiras


O Brasil é responsável por metade da produção científica latino-

Produção científica Do ponto de vista da produção científica, e de acordo

americana e por 2,12% do total de

com as últimas estatísticas da Ricyt, Brasil, México, Ar-

publicações globais, de acordo com a

gentina e Chile são os países que ostentam os melhores

avaliação anual do National Science

indicadores de desenvolvimento científico da América

Indicators (NSI).

Latina. O Brasil tem posição de destaque: é responsável por metade da produção científica latino-americana

segundo a Ricyt. Como a maior parte desses recursos

e por 2,12% do total de publicações globais, de acordo

provém do setor público, em vias de reduzir seus

com a avaliação anual do National Science Indicators

orçamentos por causa da crise econômica de 2008,

(NSI). A última avaliação mostra que o Brasil subiu no

será preciso aguardar um bom tempo para que esse

ranking da produção científica, atingindo a 13ª posição

fenômeno se consolide, enfatiza o relatório. Para isso,

em 2008. Ocorre que a maior parte desse conhecimento

políticas macroeconômicas eficientes deverão ser

é produzida nas universidades, públicas principalmente,

complementadas com políticas de fomento e difu-

e em boa parte em ciência básica, fundamental para

são tecnológica e de estímulo à inovação e formação

o desenvolvimento de recursos humanos, mas que,

de recursos humanos em setores estratégicos, entre

isoladamente, não assegura o desenvolvimento pleno de

outras medidas.

nenhum país.

semfronteiras |

83


Em relação ao desempenho da educação

Engenharia e Tecnologia, Ciências Exatas e Naturais e

superior na ALC, a Ricyt informa que o número de

Agrícolas. Também aumentou o número de doutores, de

graduados duplicou no período 1998-2007 — de 800

pouco mais de cinco mil em 1998 para 14 mil em 2007. Por

mil para 1,6 milhão —, com maior destaque para a

fim, o número de patentes passou de 50 mil para 63 mil no

área das Ciências Sociais e menor para as áreas de

mesmo período.

84 | semfronteiras


semfronteiras |

85


ENSAIO

A Arca de Noé e o problema da fauna sul-americana Nelson Papavero ilustração: Renata Cunha

86 | semfronteiras

A mais antiga teoria biogeográfica, que

para essas ilhas. Mas ainda restava outro

perdurou pelo menos até o século XVIII,

problema. Santo Agostinho era um dos pou-

surgiu no livro do Gênesis, na Bíblia. Uma vez

cos em sua época que acreditavam ser a

encalhada a arca no cume do Monte Ararat, os

Terra redonda e que, provavelmente, deveria

animais teriam aportado e, com o tempo, foram

existir um continente no hemisfério oposto.

se reproduzindo, aumentando suas populações,

Desde a Antiguidade grega, vários autores

se distanciando desse “centro de dispersão” e

(incluindo

reocupando toda a Terra. Deduziu-se a partir

ser o nosso planeta uma esfera e que — por

dessa teoria que as espécies (imutáveis, por

razões meramente estéticas, para manter

serem obras divinas) seriam as mesmas em

uma simetria — existia um continente no outro

qualquer parte do mundo. Lembremo-nos de

hemisfério. Sabiam, ademais, que a Terra era

que, nesse tempo, acreditava-se que só existia

zonada climaticamente — duas zonas frígidas,

o que hoje chamamos de Hemisfério Norte,

perto dos polos, duas zonas temperadas e uma

como mostrado, por exemplo, no mapa de

zona central, a Zona Tórrida, situada ao longo

Ptolomeu (90-168 d.C.).

do equador. Essa Zona Tórrida era tão quente

Aristóteles)

haviam

postulado

Santo Agostinho (354-430 d.C.), em

que literalmente incinerava qualquer objeto

seu livro A Cidade de Deus, preocupou-se

material. As duas zonas temperadas estavam,

com um grave problema — como os animais

portanto, inexoravelmente separadas por es-

que não sabem nadar nem voar, nem têm

sa abrasante região.

préstimo algum para os homens, puderam

Supondo-se existir um continente “an-

chegar às ilhas do “Mar Oceano” (o Oceano

típoda”, seria ele habitado por homens e

Atlântico)? Só viu uma explicação: por especial

animais? Santo Agostinho, por razões físicas e

permissão divina, os anjos os transportaram

teológicas, decidiu que não. Nem homens, nem


Representação do animal mítico grifo, baseada na águia-real (Aquila chrysaetos) e no leão-africano (Panthera leo).

semfronteiras |

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animais, poderiam passar pela Zona Tórrida sem serem carbonizados. Tampouco os anjos poderiam tê-los transportado através da linha do Equador, pela mesma razão. Uma segunda criação divina nos antípodas estava fora de cogitação — Deus só criara o homem e os animais uma única vez, e só restaram no mundo, depois do Dilúvio Universal,

A constatação de uma rica fauna na África e no Novo Mundo minou as antigas teorias construídas a partir do Livro do Gênesis.

os descendentes da família de Noé e dos animais por eles salvos na arca... Mas após o descobrimento da América e

de ilhas (picos das altas montanhas da Atlântida,

do Brasil, os iberos constataram não só que ali

então submersas). Propôs que os animais e ho-

existiam homens, mas animais muito diferentes

mens descendentes dos que foram salvos por

dos do Velho Mundo, ou mesmo sem nenhuma

Noé chegaram à América pelo Estreito de Anian

relação com aqueles, como os marsupiais, os tatus,

(citado por Marco Polo; o atual Estreito de Bering),

tamanduás, preguiças, a anta, e assim por diante.

explicação que foi aceita por muitos outros auto-

Como teriam passado homens e animais ao

res durante muito tempo.

Novo Mundo? Para imaginarmos o problema, ima-

A ideia agradou a muitos, pois sustentava a

ginemos que se descubra em outro planeta, no

verdade literal do livro do Gênesis. Mas, como

futuro, uma fauna parcial ou totalmente diferente

sempre, surgiu ainda outro problema — o número

da do nosso planeta. Como teriam chegado lá?

de espécies animais era enorme, como ficou

Gerolamo Fracastoro (1483-1553), em seu

patente ao se conhecer a fauna americana; nunca

poema Syphilidis seu de morbo gallico [no qual,

teriam cabido na arca de Noé. Relatos de viajantes,

diga-se de passagem, inventou o nome “sífilis”]

cronistas e missionários traziam ao conhecimento

(Florença, 1530), Francisco López de Gómara,

dos europeus, cada vez mais, novos tipos de

em sua Historia general de las Indias (ca. 1553),

animais.

e especialmente Agustín de Zárate, num prefácio

Uma solução foi proposta por Sir Walter

a sua Historia del descubrimiento y conquista del

Raleigh (1614), em um livro sobre a história do

Perú (1555), baseados em Platão, admitiram que

mundo. Noé levara, sim, em sua arca, todos os

entre a Europa e a América do Sul havia existido

animais que Deus criara originalmente no Jardim

outro continente — a Atlântida — tão grande que

do Éden. Mas estas “espécies primigênias” eram

estabelecia uma ponte entre os dois continentes,

poucas, e couberam folgadamente na arca. Depois

através da qual passaram, a pé enxuto, homens e

de ter ela encalhado no Ararat, os animais, ao se

animais. Depois disso, esse continente afundou no

dispersarem, foram “degenerando” por ação do

Mar Oceano, razão pela qual é até hoje chamado

clima, hibridando, e assim dando origem a novas

de “Atlântico”.

formas. Quanto mais distantes do “centro de

O jesuíta Joseph d’Acosta, em seu livro

dispersão” do Ararat, mais diferentes seriam –

Historia natural y moral de las Indias (1590),

prova que, na longínqua América do Sul (ou na

derrubou essa teoria, mostrando ser o Atlântico

África, por outro lado), existiam formas totalmente

muito fundo, praticamente sem ilhas — se um

distintas das do Velho Mundo.

continente tão grande como a Atlântida tivesse

Em 1675, o jesuíta Athanasius Kircher, numa

afundado, o oceano seria muito raso e semeado

obra intitulada Arca Noë in tres libros digesta,

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belissimamente ilustrada, completou a ideia

o tatu (chamado “armodillus” por Kircher) era

de Raleigh. Fez um levantamento, a partir das

o híbrido da tartaruga com o porco-espinho, e

grandes obras de autores renascentistas, das

assim por diante. Existiram inclusive, segundo o

várias espécies de vertebrados existentes no

jesuíta alemão, cruzamentos entre mamíferos e

mundo, conhecidos até seu tempo. Segundo ele,

aves. Do struthio (pardal) com o camelo surgiu o

Noé levou em sua arca apenas os mamíferos e

struthiocamelus (o avestruz). Do cruzamento da

aves criados originalmente por Deus, poucas

águia com o leão surgiu o espetacular “grifo”, com

espécies. Todos os outros animais não pre-

tórax, abdômen, cauda e pernas posteriores do

cisaram ser salvos, pois, como se acreditava,

leão e cabeça, pernas anteriores e asas da águia.

nasciam por geração espontânea, a partir da

Esta última espécie está hoje infelizmente extinta,

matéria putrefata. Examinando os mamíferos

como se extinguiram todas as magníficas teorias

e aves recentes, viu que, ao comparar suas

desses autores dos séculos XVI e XVII, dois séculos

formas, alguns deles possuíam características

depois, com o advento da Teoria da Evolução e das

comuns. Essas características deviam provir

modernas teorias da Biogeografia.

das “espécies primigênias” do Jardim do Éden.

Os grandes avanços da Biologia, desde o

Eram estas últimas tão poucas que puderam ser

século XVIII, fizeram com que essa poética teoria

alojadas no andar inferior da arca (mamíferos) e

de origem bíblica se deparasse com graves

no andar superior (aves), ficando o intermediário

obstáculos epistemológicos. A teoria da geração

para alojar Noé e sua família e de depósito para

espontânea caiu quase que inteiramente por

alimentos, ferramentas etc. Num estreito porão

terra (excetuada a parte relativa à origem do

foram postas certas espécies de cobras, que

primeiro ser vivo...). O vertiginoso aumento do

Noé preservou “para fins medicinais”, segundo

número das espécies conhecidas tornou a arca de

Kircher.

Noé totalmente imprópria para abrigá-las, mesmo

À medida que se dispersavam até os confins da

que se admita que só mamíferos e aves foram

África e da América do Sul (neste caso, pelo Estreito

ali preservados. Noé levou todas as espécies

de Bering), essas poucas espécies, além de se

(as estimativas mais moderadas garantem que,

perpetuarem sem mudar, foram produzindo novas

hoje, conhecemos 1,5 milhão de espécies!) ou só

formas através de hibridação, que posteriormen-

mamíferos e aves? Com o advento da teoria da

te sofreram degeneração por influência do meio;

Evolução, outras explicações surgiram e, mo-

quanto mais distantes do “centro de dispersão”,

dernamente, a Biogeografia por Vicariância é o

mais diferentes e degeneradas seriam essas

paradigma vigente para explicar a distribuição

formas híbridas. Os nomes através dos quais os

geográfica das espécies no espaço e no tempo.

homens as conheciam (em latim) mostravam de

É inegável, porém, que a teoria exposta no livro

que espécies parentais haviam resultado. Assim,

do Gênesis (e todos os obstáculos epistemológicos

do cruzamento do leão com o pardo (o “pardo”,

que encontrou) foi importante, por suscitar novas

felino citado por Kircher, talvez seja o guepardo

reflexões dos naturalistas sobre o assunto.

[Acinonyx jubatus, Schreber, 1775] ou o serval [Leptailurus serval, Schreber, 1776], utilizados desde a Antiguidade na caça de gazelas ou aves), surgiu o “leopardo”; o pardo também cruzou com

Nelson Papavero é doutor em Ciências pela UFRJ e

o camelo, originando o “camelopardo” (a girafa);

pesquisador aposentado do Museu de Zoologia da USP.

semfronteiras |

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h u m ani d a d es

Direitos intelectuais indígenas Edilene Coffaci de Lima

Saber tradicional não é saber sem dono

Nos últimos anos, tem ganhado cada vez mais

nos termos em que estamos habituados a pensar e

espaço a valorização de objetos materiais e imateriais

proceder. A ideia do “coletivismo primitivo”, que povoa

de grupos indígenas. Suas produções — músicas, livros,

a imaginação ocidental, está longe, também, de ser

grafismos e artesanato, entre outras — alcançam agora

adequada. Em resumo: a inventividade e a propriedade

nichos de mercado (o mercado “verde” é apenas um

(nem privada, nem coletiva) não se configuram como

deles) e desenham, ainda que timidamente, novas

atributos consensuais quando se definem direitos

oportunidades para a sustentabilidade das populações

intelectuais indígenas.

que aqui estão desde antes da chegada dos europeus. Se essa é uma boa-nova, é preciso destacar que

Conhecimentos e biodiversidade

a novidade faz surgir, ao mesmo tempo, questões a

Por essas e outras, os direitos intelectuais indígenas

serem solucionadas. Uma delas, volumosa, diz respeito

tornam-se melindrosos quando se alcança a discussão

aos mecanismos de proteção dos direitos intelectuais

sobre os conhecimentos tradicionais associados à

indígenas. E tal questão se apresenta como um desafio

biodiversidade. Tanto mais porque os dados disponíveis

em virtude dos descompassos entre as concepções de

indicam que a cobertura florestal e a diversidade bio-

propriedade intelectual vigentes no Ocidente, que são

lógica em territórios indígenas são mais elevadas do

individualizadas e pretendem premiar a criatividade, e

que fora deles. Segundo o etnobotânico William Balée,

as concepções indígenas, nas quais vigoram critérios

professor da Universidade de Tulane (Estados Unidos)

diversos do que se entende por apropriação e criação.

que realizou pesquisas entre vários grupos indígenas

Entre grupos indígenas, a capacidade de replicação

no Brasil, seriam os índios não apenas mantenedores da

(que não se confunde como a mera repetição) de

floresta, mas também produtores de sua biodiversidade,

saberes ancestrais tende a ser mais valorizada do que

em virtude das formas de manejo que praticam.

a capacidade de criação em si mesma, a originalidade.

Até antes de 1992, os recursos genéticos oriundos

Além disso, a apropriação privada, embora não seja

da biodiversidade eram considerados como patrimônio

inexistente entre eles, não se define facilmente

da humanidade. Em qualquer lugar onde estivessem —

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Renato Soares / Imagens do Brasil

Indígena da tribo Krahô. Um projeto de pesquisa sobre a fitofarmacopeia Krahô, da Universidade Federal de São Paulo, terminou em disputa sobre a participação dos índios na distribuição de royalties decorrentes de um eventual depósito de patente.

semfronteiras semfronteiras||91 91


Não se devem subestimar as contribuições que os conhecimentos produzidos pelas populações indígenas podem trazer às pesquisas científicas. Estudos indicam que o acesso aos conhecimentos indígenas incrementa o sucesso das pesquisas farmacêuticas em até 400%.

beneficiasse dela chegou a termo com sucesso no Brasil. Ao contrário, sabemos que os índios Krahô, localizados no Tocantins, recentemente se desentenderam com cientistas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Igualmente, foi frustrada a iniciativa dos índios Katukina, localizados no Acre, de solicitar ao Ministério do Meio Ambiente a realização de estudos sobre a secreção do anfíbio que chamam de kampô ou kambô (Phyllomedusa bicolor), uma substância que

em florestas brasileiras, africanas ou asiáticas —,

conhecem e da qual se servem há muito tempo e

não se reconheciam quaisquer benefícios à nação

que tem algumas patentes registradas ao redor do

que os tivesse preservado. De modo que um país

mundo. A iniciativa não pôde ir adiante justamente

megadiverso como o nosso tinha os recursos

por falta de acordo, em virtude de, nas palavras

genéticos, e os conhecimentos tradicionais, que

da antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, “co-

lhe são associados, apropriados por empresas e

lonialismo científico interno”. Infelizmente, são

cientistas do mundo todo, como um patrimônio

dois exemplos negativos — e esse número poderia

comum, sem o estabelecimento de qualquer

aumentar.

compensação. Somente por ocasião da realização

Não há dúvidas quanto aos avanços —

da Conferência das Nações Unidas para o Meio

sobretudo no plano político — que a CDB promoveu.

Ambiente e Desenvolvimento, a RIO-92, com o ad-

De qualquer maneira, são lentos os passos que

vento da Convenção sobre a Diversidade Biológica

levam à sua efetivação. As dificuldades existem e

(CDB), é que foi possível desfazer esse estado de

não se encerram, entretanto, no campo jurídico.

coisas. A CDB instaurou uma nova relação entre

Essas existem, e, como dito antes, são salientes as

os países detentores de tecnologia e os países

dificuldades para conciliar as concepções de direi-

com altas taxas de bio e sociodiversidade — res-

to de propriedade intelectual (reconhecidamente

pectivamente localizados nos hemisférios Norte e

privado e individualizado) e os conhecimentos

Sul do globo terrestre.

tradicionais (vulgarmente tidos como públicos e

Além da ambição de desfazer a assimetria

coletivos). De qualquer maneira, mais complexa

geopolítica, esperava-se com a CDB unir as duas

é a possibilidade de se intercomunicarem duas

pontas, tecnologia e biodiversidade, reconhecendo

ciências diversas que se constroem a partir de

a soberania dos países megadiversos. Especial-

níveis estratégicos distintos — como escreveu Lévi-

mente no Artigo 8j, a efetivação desse propósito

Strauss há quase 50 anos.

permitiria aos povos tradicionais, de acordo com um conjunto de dispositivos legais, disponibilizarem

Desfazer mal-entendidos?

seus conhecimentos associados à biodiversidade às

Não se devem subestimar os conhecimentos

instituições científicas, às empresas e aos cientis-

produzidos pelas populações indígenas e as

tas, viabilizando as pesquisas e proporcionando

contribuições que podem trazer às pesquisas cien-

benefícios a todos os envolvidos.

tíficas. Há estudos que indicam que o acesso aos

De 1992 até o momento, as discussões ficaram

conhecimentos indígenas incrementa o sucesso

mais complexas. É forçoso reconhecer que, desde

das pesquisas farmacêuticas em até 400%.

a ratificação da CDB, nenhuma iniciativa que se

São igualmente impressionantes os números

92 | semfronteiras


oferecidos pela pesquisa realizada por Ten Kate & Laird, segundo a qual mais da metade das indústrias entrevistadas admitiu acessar conhecimento tradicional no desenvolvimento de

Entre grupos indígenas, a

suas pesquisas. E, mais do que isso, relatou que

capacidade de replicação —

o fez principalmente de modo indireto: 80% a

que não se confunde como a

partir de consultas a fontes secundárias (teses,

mera repetição — de saberes

livros, artigos). Esse é um ponto importante e,

ancestrais tende a ser

de alguma maneira, surpreendente, pois a fi-

mais valorizada do que a

gura do temível biopirata — deslocando-se pela

capacidade de criação em si

floresta e ludibriando os moradores locais à

mesma, a originalidade.

procura de novas descobertas —, embora possa que se passa, pois não seria preciso muito mais do que o acesso a boas bibliotecas. Esses números parecem não justificar a interrupção do diálogo entre índios e cientistas — compreendendo ambos, certamente,

Edilene Coffaci de Lima

ocasionalmente materializar-se, não dá conta do

como parceiros em acordo. Menos ainda a interrupção do diálogo entre os próprios grupos indígenas. Se predominar o clima de suspeição e se forem interrompidos os canais pelos quais os conhecimentos sempre trafegaram, como poderão ter continuidade os processos de produção, atualização e transmissão de conhecimentos? Afinal, a tradicionalidade não diz respeito unicamente aos conhecimentos (como se esses pudessem ser encerrados em si mesmos), mas, fundamentalmente, aos processos que garantem que possam ser produzidos. Ironicamente, inventividade e originalidade são agora os termos exigidos para que se possam plenamente reconhecer e implementar os direitos intelectuais indígenas. O desafio é desfazer os mal-entendidos, um eufemismo para as concepções divergentes sobre o que significa conhecer, criar e possuir. Índio Katukina extraindo secreção do anfíbio que eles chamam de kampô.

Edilene Coffaci de Lima é professora do Departamento de Antropologia da UFPR.

semfronteiras | 93


h u m ani d a d es

No dia 21 de dezembro de 2009, a Lei Rouanet

ministro da Cultura, não apenas idealizou e deu

completou 18 anos. Em vigor desde o apagar das

vida ao empreendimento, como também realizou

luzes de 1991, seu nome tornou-se popular e citado

inúmeras palestras na época sobre o tema. Quase

familiarmente por todos aqueles que direta ou in-

duas décadas após — e depois de várias alterações —,

diretamente mantêm contato com a área cultural.

o Ministério da Cultura (MinC) propõe mudanças

Transformou-se até mesmo em nome próprio,

na lei, que passa a se chamar Programa de Fo-

especialmente para aqueles que não imaginam que

mento e Incentivo à Cultura (Profic). Mexeu-se num

Rouanet é o sobrenome do criador da lei de incentivo.

vespeiro: apareceram os que são a favor e os que

Sérgio Paulo Rouanet, diplomata, acadêmico, ex-

são contra, decretando polêmica na temporada.

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Dores de crescimento Zeca Corrêa Leite Ilustração: simon ducroquet

Lei de incentivo à cultura completa 18 anos em meio a polêmica sobre mudanças

As alterações são necessárias, argumentam

sive para além do eixo Rio-São Paulo. Para isso

aqueles que apoiam as medidas adotadas pelo

é preciso rever a lei no todo, adequando-a aos

MinC. Citam como exemplo a incômoda realidade

novos tempos.

de que somente uma minoria consegue beneficiar-

Seu papel atual é o de captar e canalizar

se com a lei, geralmente aqueles que se valem

recursos para o setor cultural; a partir de agora,

do nome e da fama. Artistas menos conhecidos

propõe-se a mobilização e aplicação dos recursos

continuam a viver o drama financeiro com ou sem

em incentivos a projetos culturais, com visível

a Rouanet. É preciso, portanto, criar mecanismos

predominância do MinC na definição dos projetos

que possibilitem a disseminação cultural, inclu-

nos quais o dinheiro será empregado.

semfronteiras |

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O “Estado da Arte” Os

críticos

apresente”, critica Priscila Santos. Quanto aos apontam

uma

perigosa

conselhos paritários, também há ressalvas:

ingerência do Estado sobre o poder privado e a

“Temos muitos conselhos paritários e sabemos

liberdade artística. Pela criação de alguns itens

que não funcionam. Além disso, a sociedade

e pela supressão de outros que vigoraram em

nunca está bem representada”.

todos estes anos é que se azeitam as garras da

ponto

discutível

refere-se

aos

censura e o tolhimento de expressão, reclamam

direitos autorais. Vigora até o momento a

os adversários. Um dos pontos nevrálgicos que

reserva dos direitos a seus autores, mas,

estão dando o que falar trata da exclusão do

segundo as alterações propostas, o governo vai

artigo 22, que determina: “Os projetos enqua-

ter um prazo de 18 meses a três anos para dispor

drados nos objetivos desta lei não poderão ser

dos bens e serviços que foram beneficiados

objeto de apreciação subjetiva quanto ao seu

pela lei, fazendo uso gratuitamente. “Isso é um

valor artístico ou cultural”.

desrespeito, algo com que eu simplesmente não

Ao suprimir esse artigo, o MinC abre

96 || semfronteiras semfronteiras 96

Outro

posso ser conivente”, insurge-se a advogada.

espaço para que os méritos artísticos dos pro-

Destacam-se ainda na nova Lei Rouanet as

jetos sejam julgados através de um “sistema de

alterações ao Fundo Nacional de Apoio à Cultura

pontuação”, cujos critérios serão anunciados

(FNC), que terá como receitas, entre outras,

periodicamente. “Se você for selecionar projetos

recursos vindos da arrecadação da Loteria

com critérios mais específicos, simplesmente

Federal da Cultura, a ser criada por lei específica,

estará colocando censura sobre eles”, diz a

e de dotações consignadas na lei orçamentária

advogada Priscila Santos, membro da Comissão

anual. Será da competência do FNC fazer

de Assuntos Culturais da OAB/PR e responsável

empréstimos e repasses a fundos municipais e

pelo blog Cultura Legal (www.culturalegal.com).

estaduais, e associar-se a projetos culturais. Isso

A avaliação dos projetos, a cargo da

permitirá que o Fundo se torne mais atrativo

Comissão Nacional de Incentivo à Cultura

para produtores culturais e se transforme em

(Cnic), também sofrerá modificações. Dela

alternativa para aqueles que não conseguem

participam representantes do governo, empre-

captar financiamento via renúncia fiscal.

sariado, associações de setores artísticos e

São novidades que não constam da lei em

culturais. Pela nova lei, haverá comitês para

vigor. Também são previstas divisões do FNC

áreas específicas, de caráter paritário entre

em fundos setoriais voltados às artes (teatro,

governo e sociedade, para uma avaliação mais

circo, dança, artes visuais, música); cidadania,

profunda dos diversos setores. “Avaliar com

identidade e diversidade cultural; memória e

profundidade a arte? O povo é que deve avaliar,

patrimônio cultural brasileiro; livro e leitura.

se ele gosta ou não. A arte sempre tem que

É grande a expectativa pela criação do vale-

ser contemplada, indiferente de como ela se

cultura, que nasce sob os mesmos moldes do


vale-refeição e vale-transporte, possibilitando

maior a participação da iniciativa privada neste

ao seu portador maior acesso a cinema, teatro,

processo.

shows, museus, aquisição de livros, CDs e DVDs. O procedimento é o mesmo dos demais vales,

Alguns números reveladores

sendo parte do valor paga pela empresa, parte

Os que aplaudem as mudanças reforçam

pelo empregado e o restante subsidiado pelo

o discurso dando conta de que, em 18 anos

governo federal. Segundo o governo, serão in-

de funcionamento, a lei de renúncia fiscal

jetados R$ 7 bilhões no setor.

transformou-se, na prática, em um esquema no qual de um lado do balcão estão os captadores

Novas faixas de renúncia

com seus projetos artísticos e, do outro, o

No que diz respeito à renúncia fiscal,

pessoal de marketing das grandes empresas

a principal alteração refere-se à criação de

que liberavam as verbas. O objetivo sempre foi

faixas de dedução do imposto de renda, que

um só: expor a logomarca da empresa. Rio de

seriam aplicadas conforme a pontuação dada

Janeiro e São Paulo consumiram, em média,

pelo MinC aos projetos submetidos à análise.

80% dos recursos disponíveis.

O copatrocinador passará a ter mobilidade na

Dados do MinC revelam que, de cada R$ 10,00

dedução do IR dos valores despendidos, com

investidos na Lei Rouanet, apenas R$ 1,00 vinha

faixas que variam de 30%, 60%, 70%, 80%,

da iniciativa privada. O restante era dinheiro

90% e 100%. No momento, o empresariado

público. E mais: metade do valor captado pela lei

trabalha com apenas duas faixas: a de 30%

ficava nas mãos de 3% dos captadores.

(artigo 26 da Lei Rouanet) e de 100% (artigo 18).

A proposta atual é ampliar o atendimento,

“É óbvio, numa economia de mercado

fazendo os benefícios chegarem ao maior nú-

em que vivemos, em que somos bitolados em

mero de clientes, abrindo o leque nacionalmente

relação aos valores perenes, que somente vamos

e incluindo desde grupos populares a povos

participar do artigo 18”, comenta o produtor

indígenas. Voltando à Comissão Nacional de In-

cultural Jul Leardini. Dessa forma, algumas

centivo à Cultura, caberá a ela vencer o desafio

áreas da cultura que se situem fora dessa

de definir critérios que realmente beneficiem a

cobertura forçosamente sofrerão um processo

população, ainda desassistida no que diz respeito

de “desdemocratização”, avalia. Leardini apon-

ao acesso à cultura, e agregar regiões onde as

ta como sendo um dos nós a atravancarem

manifestações culturais são raras, sem perder

o processo de captação a obrigatoriedade

de vista as regiões mais ricas e desenvolvidas.

de as empresas apresentarem o Imposto de Renda com base no lucro real, em vez do lucro presumido. Se assim fosse, acredita, seria

Zeca Corrêa Leite é poeta e jornalista cultural.

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t e c n o l o g i a e INO V A Ç Ã O

Uma ponte entre a academia e a empresa Heros Mussi Schwinden Fotos: Diego Singh e Bruno Stock

Na condição de profissionais recém-formados, Agentes Locais de Inovação levam soluções

Diego Singh

inovadoras para a micro e a pequena empresa

Fábrica de botas em Curitiba, apoiada pelo programa Agentes Locais de Inovação.

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Em 2008, o Serviço de Apoio às Micro e Pequenas

clientes e outras funções. Nosso

Empresas (Sebrae) e a agência indiana National Small

empresário é um herói que, mesmo

Industries Corporation (NSIC) trouxeram para o Brasil

com uma estrutura enxuta, precisa

o programa Agentes Locais de Inovação (ALI). Hoje,

inovar para não morrer.”

o programa está presente no Paraná, Distrito Federal

Segundo ele, muitos destes

e mais nove Estados, onde empreendedores estão

empresários são resistentes a novos

conseguindo implantar inovações muitas vezes vitais

procedimentos e imaginam que, pa-

para a sobrevivência de suas empresas. O trabalho é

ra colocar em prática a inovação, é

feito por profissionais recém-formados — os agentes

necessário ter gastos que muitas

locais de inovação — que contam com o apoio estratégico

vezes vão além do orçamento. E é

de técnicos experientes, os chamados gestores.

justamente nesse ponto que entram

Baseado no Manual de Oslo — documento de 1990

em ação os agentes locais. Deno-

da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento

minados ALIs, esses profissionais

Econômico (OCDE) que orienta e padroniza conceitos,

funcionam como um elo entre

metodologias e construção de estatísticas e indicadores

os provedores de soluções e a

de P&D —, o programa difunde a crença de que inovação

pequena empresa.

não está atrelada apenas à compra de máquinas ou

Os

agentes

acompanham

Desde 2008, os agentes atenderam mais de 1.300 empresas no Paraná. O objetivo é atender 1.500 empreendimentos nos segmentos que detêm o maior número de empresas — construção civil, vestuário e agronegócio — até junho.

a

implementação

a “saltos tecnológicos” dados muitas vezes à força.

dessas soluções de acordo com as necessidades e

Ela, de fato, pode estar nas mãos e nos cérebros dos

características de cada negócio. Do início do programa

agentes locais de inovação, capazes de, com auxílio

até o segundo semestre de 2009, mais de 270 agentes

de profissionais mais experientes, introduzir nos

foram capacitados para atuar nos Estados que recebem

negócios inovações de produto, processos, marketing e

o programa, para atender quase seis mil empresas.

organização e estrutura.

Líder na capacitação de ALIs e no atendimento de empresas, o Paraná, junto com o Distrito Federal,

Questão de hábito

Espírito Santo e Rio Grande do Norte, foi um dos Estados

Para Olávio Schoenau, diretor responsável pela

que receberam a primeira edição do programa. Para

unidade de Desenvolvimento de Soluções Inovação

viabilizar a contratação de 30 agentes, o Sebrae Paraná

e Tecnologia do Sebrae Paraná, as grandes e médias

estabeleceu uma parceria com a Secretaria de Estado

empresas estão habituadas a inovar e têm consciência

da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior do Paraná

de que, se não o fizerem, tendem a perder espaço para

(SETI) por meio da Fundação Araucária, que financia as

a concorrência. “Nas micro e pequenas empresas, o

bolsas mensais de R$ 2 mil dos agentes. Desde 2008,

empresário é a empresa. Ou seja, tudo está nas costas

os ALIs já atenderam mais de 1.300 empresas em todo

dele — compras, vendas, cobrança, prospecção de

o Estado. O objetivo é chegar a 1.500 empreendimentos

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Bruno Stock

Agentes Locais de Inovação participam de capacitação periodicamente.

nos segmentos que detêm o maior número de empresas

eles tiveram acesso ao conhecimento de disciplinas

— construção civil, vestuário e agronegócio — até o

empresariais como Competências Relacionais, Estrutura

encerramento do primeiro semestre de 2010, quando

Organizacional, Técnicas de Negociação e Situação

termina a primeira edição do programa.

das Micro e Pequenas Empresas no Brasil. Após esta introdução ao mundo do empreendedorismo, os agen-

Entrando em campo Todos os agentes locais de inovação selecionados pelo Sebrae têm curso superior nas áreas ligadas aos setores econômicos de sua atuação e estão formados há no máximo três anos (independente da idade). Outro fator indispensável para o ALI é que ele more na região onde as empresas assistidas estejam localizadas. A familiaridade com os hábitos e costumes locais facilita a relação entre agentes e empresários. No Paraná, por exemplo, o Sebrae dividiu o Estado em 17 territórios. Semelhantes em termos sociais e econômicos, esses territórios abrangem mais de 50 municípios. Dentre

tes cumprem cinco etapas junto ao empresariado: sensibilização, adesão, diagnóstico, plano de trabalho e grau de mensuração. Inicialmente, o empresário é convidado para workshops e palestras sobre inovação. Após a sensibilização, as empresas que desejarem fazer parte do programa recebem a visita do ALI, que prepara um diagnóstico de inovação e sugere o que pode ser melhorado em seu negócio. Durante os dois anos, os ALIs também atuam como articuladores junto a instituições e empresas que podem suprir demandas do negócio.

eles estão Curitiba e sua região metropolitana e

Entre 2010 e 2012, o Sebrae pretende investir mais de R$

também os localizados nas regiões Norte, Noroeste e

24 milhões para capacitar mais 330 agentes e atender

Sudoeste do Estado.

mais 16,5 mil empresas em todo o país. No Paraná, o

Antes de irem a campo, todos os agentes passaram por uma capacitação inicial de 198 horas. No aprendizado,

100 | semfronteiras

programa continua e deve prosseguir com a inclusão dos segmentos de metalurgia e turismo.


Ajuda montanha acima microempresários contam como transformaram uma paixão em um negócio lucrativo Amante do montanhismo, o empre-

cinco anos, ele decidiu investir em um

sário curitibano Fábio Monroe diz nunca

negócio que tivesse relação com a sua

ter conquistado uma grande montanha,

paixão e criou em Curi-

dessas que vez por outra aparecem

tiba uma pequena fábrica

em programas como os da National

de botas para a prática

Geographic. Mesmo assim, já se aventurou

do esporte. Hoje, além

por montanhas locais — há alguns meses,

de atender montanhistas

venceu os 1.877 metros do Pico Paraná,

amadores e profissionais,

ponto extremo do relevo paranaense

a Botas Nômade possui

localizado na Serra do Mar — e diariamente

revendas em 11 Estados

vence um desafio que demanda igual

e fornece calçados para

coragem: o de empreender. Há mais de

grupos policiais de elite

Diego Singh

Incorporação de uma agente local de inovação trouxe melhorias à linha de produção da Botas Nômade, que incorporou um software 3D no setor de produção de moldes.

Fábio Monroe criou uma fábrica de botas para montanhismo que hoje tem revenda em 11 Estados.

semfronteiras |

101


Diego Diego Singh Singh

no Paraná e São Paulo, que, aliás, já representam 70% do seu faturamento. O sucesso da empresa, que conta com 22 funcionários, também passa pela atuação da Agente Local de Inovação Thatyana Kishida. Formada em Desenho Industrial pela Pontifícia Universidade

Católica

do

Paraná,

Thatyana

atende 50 empresas — em sua maioria, pequenas confecções de uniformes escolares, lingerie e moda praia. Segundo ela, a grande maioria das empresas não tem cultura de empreendedorismo. “Muitas das confecções que atendo usam a mesma mesa para cortar os tecidos e para servir o jantar dos proprietários”, conta. “Para a maioria falta controle financeiro, controle de estoque, marketing e todas as ferramentas que uma empresa precisa para crescer.” Diante dessa

102 | semfronteiras

Após a ajuda do programa, a estilista Karla Pereira viu o faturamento da sua loja dobrar.


realidade, Thatyana procurou sugerir a aplicação de

abrir uma loja para revender peças de sua própria marca.

medidas simples como, por exemplo, o controle de gastos

Nos primeiros nove meses, a empresária de primeira

e aplicação de uma planilha financeira.

viagem teve dificuldades e quase viu seu sonho acabar.

Em empresas mais estruturadas, caso da Botas

As coisas começaram a mudar a partir da atuação de

Nômade, Thatyana está conseguindo implantar soluções

outra estilista — uma agente local de inovação. Formada

mais avançadas como uso de softwares e a retirada de

em Estilismo de Moda e Confecção Industrial, Michelle

certificados que permitam à empresa conquistar novos

Gazabin Servian começou a atender a Hype Bazar há

mercados. A designer atende a fábrica há pouco mais

oito meses e, de início, detectou uma série de pequenos

de oito meses e já se orgulha dos resultados. “Quando

problemas no estabelecimento.

cheguei, todos os moldes eram recortados à mão, e os

Segundo seu diagnóstico, um dos motivos de a

defeitos apareciam só depois de o produto estar pronto.

loja ter faturamento baixo era a localização, em um

Com a implantação de um software 3D, conseguimos

ponto com pouco fluxo de pedestres. Para piorar, a

antecipar os problemas no computador.”

entrada física ficava escondida. Já estabelecida em novo

Além da satisfação de contribuir para o crescimento de microempresas, Thatyana se diz satisfeita de fazer

endereço, Karla atendeu outra sugestão de Michelle e, agora, revende peças de outras marcas.

parte do ALI. “Hoje, eu tenho uma visão geral do que é

De acordo com Karla, além de implementar o

ser um empreendedor. A quantidade de conhecimentos

planejamento e os controles de caixa e estoque com a

que absorvi no programa vai me permitir, um dia, ter o

ajuda da agente local de inovação, ela também acabou

meu próprio negócio”, planeja.

conhecendo fornecedores e materiais. “O programa trouxe profissionalismo para o meu negócio”, sintetiza.

Profissionalismo Outro case é o da loja Hype Bazar, de Curitiba. Há pouco mais de um ano, a estilista Karla Pereira decidiu

O resultado é que, nos últimos três meses, a loja dobrou o faturamento, e já se prepara para ampliar a produção em 2010.

Alguns números do Programa Agentes Locais de Inovação √ 5,8 mil empresas atendidas no Brasil, das quais 1,3 mil no Paraná. (*) √ 270 agentes capacitados, dos quais 30 no Paraná. √ 100 gestores técnicos capacitados em todo o país. √ Idade média dos agentes de inovação: entre 23 e 25 anos. √ De cada 10 agentes, sete são mulheres. √ No Paraná, já foram realizados 560 diagnósticos em empresas. (*) O Brasil possui 4,6 milhões de empresas, das quais 98% são de micro ou pequeno porte. Fonte: Sebrae, 2009

Saiba mais: National Small Industries Corporation (em inglês) www.nsic.co.in

Manual de Oslo (versões em português e inglês) www.mct.gov.br/index.php/content/view/4639.html

semfronteiras| |103 103 semfronteiras


Um saboroso caminho civilizatório Rodrigo Wolff Apolloni

Paraná investe em tecnologia e na democratização do conhecimento para se colocar na vanguarda da produção de leite e queijos

104 | semfronteiras semfronteiras

Divulgação Laticínio Anila

t e c n o l o g i a e INO V A Ç Ã O


Certos produtos, em especial os alimentares, podem

taria de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior

funcionar como índices civilizatórios, na razão em que sua

(SETI) e a província de Rhône-Alpes (Ródano-Alpes), do

produção espelha a evolução de uma comunidade. O queijo

Sudoeste da França. A região, explica o coordenador da

é um deles. Sua confecção, afinal, demanda o domínio da

Escola Tecnológica de Leite e Queijos dos Campos Gerais,

pecuária e o desenvolvimento de processos de cultivo

Alessandro Nogueira (perfil nas páginas 98 e 99), mos-

e armazenamento. Demanda, enfim, uma percepção

trou interesse em transferir conhecimentos aos produtores

diferente da natureza e a internalização de saberes que

paranaenses, que podem se tornar parceiros na produção

se convertem em técnica e ciência. Ao longo dos séculos,

industrial.

aliás, a relação entre queijo e civilização aprofundou-se –

Segundo ele, esse interesse se justifica pelo fato de

temos dezenas de tipos de queijos e muitas são as formas

o mercado europeu de queijos finos estar estagnado, e

e as ocasiões em que eles são consumidos.

pela percepção de que o Paraná – em especial, em regiões

A França é um caso ilustrativo do que acabamos de

leiteiras como as de Castro, Carambeí, Palmeira, Arapoti e

afirmar: nos últimos vinte séculos, dos gauleses aos nossos

Ponta Grossa – possui padrões de produção semelhantes

dias, essa civilização cultivou queijos como nenhuma

aos franceses. “Essa transferência

outra. E desenvolveu tradições e uma enorme quantidade

de conhecimentos representa um

de conhecimentos científicos relacionados ao tema.

ganho

fantástico.

Os

franceses

O ‘novo consumidor’, crítico e de melhor poder aquisitivo, é uma das apostas da Escola de Queijos.

A jovem civilização paranaense também “se iniciou”

fizeram a passagem de um esquema

no ciclo do leite, e em grande estilo: segundo dados

tradicional de produção para um

do IBGE (2007), o Estado é o terceiro maior produtor

novo patamar há cerca de vinte anos

nacional, atrás de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul,

e sabem perfeitamente o que funciona”, avalia Nogueira.

em um país que já é o quinto maior produtor mundial. O

Há, também, a percepção de que a sociedade

rebanho leiteiro paranaense é de 2,8 milhões de cabeças,

brasileira está amadurecendo para o consumo: o poder

distribuídas entre 114,5 mil produtores. A produção média

aquisitivo vem aumentando e, com isso, surge o desejo

no Estado é de 10,9 litros por animal/dia, o dobro da média

de consumir mais e melhor. E a parceria com os franceses

nacional. E mais da metade dessa produção (55,3%) é

ainda fortalece os pequenos e médios produtores. Quando

sustentada por pequenos produtores, com produção de

essas pessoas se especializam, ganham em termos

até 50 litros/dia.

econômicos e institucionais, já que são estimuladas a

O setor, porém, enfrenta desafios, como a discrepância

trabalhar para oferecer produtos atraentes ao consumidor.

de produtividade entre produtores e a desigualdade

O coordenador da Escola Tecnológica de Leite e

de desenvolvimento entre as dez regiões leiteiras.

Queijos dos Campos Gerais explica que a parceria com os

Questões que podem ter uma resposta na produção de

franceses funciona a partir da troca de conhecimentos

queijos – processo que alia técnica, melhoramento dos

técnicos, idas e vindas de professores e estágios na França.

padrões de qualidade do próprio leite, fortalecimento da

As passagens e as bolsas são pagas pelos governos dos

pequena agroindústria e a receptividade de um mercado

dois países. Em novembro do ano passado, aliás, um

consumidor cada vez mais interessado em produtos

importante pesquisador francês – David Jouve, diretor

sofisticados. É exatamente aí que entram os franceses – e a

adjunto da Escola Nacional das Indústrias do Leite e

Escola Tecnológica de Leite e Queijos dos Campos Gerais.

Carnes (ENILV) – participou do I Workshop Internacional Sobre Leite e Queijos, promovido dentro do primeiro curso

Muito além do queijo prato

promovido pela Escola. “Já os investimentos materiais,

A possibilidade de criação de um centro para o

na miniusina e laboratórios da Escola, foram feitos pelo

fomento de técnicas no segmento de laticínios surgiu em

Governo do Estado. O projeto, aliás, tem forte apoio do

2007, com a assinatura de um convênio entre a Secre-

governador”, observa Alessandro Nogueira.

semfronteiras |

105


Marílson de Paula

Alunos aprendem as técnicas de fabricação de queijos finos.

de leite de vaca por dia, vendidos para grandes indústrias.

Primeiros passos Em 2009, a Escola promoveu sua primeira atividade,

“No futuro, será possível processar essa produção nos

o Curso de Extensão em Fabricação de Queijos, que reuniu

assentamentos. Isso graças, em grande parte, a essa apro-

uma turma de vinte alunos – produtores, representantes

ximação com a universidade”, afirma. “Hoje, milhões de

da indústria, pesquisadores e fiscais sanitários. Com oito

brasileiros ganharam condições de consumir. Esse é o

módulos e 112 horas-aula, abrangeu temas como “Bioquímica

nosso público”, diz Célio Rodrigues.

do Leite e análises físico-químicas. Boas práticas de fabricação.

Análises

microbiológicas;

Sanitização

A tecnóloga em alimentos Mariângela Gach é

da

responsável pelo controle de qualidade da Anila, empresa

Indústria de Laticínios”, “Queijos azuis (Tipo Roquefort e

de porte médio (18 funcionários e processamento de sete

Tipo Gorgonzola)”, “Análise Sensorial de Queijos. Defeitos

mil litros de leite/dia) situada em Fernandes Pinheiro.

em queijos” e “Instalação de queijaria; Legislação.

Segundo ela, o curso fornece respostas a questões

Tratamento e valorização de resíduos da indústria queijeira.

estratégicas, como a relativa ao aspecto sensorial dos

Embalagens”. As aulas foram ministradas por professores

queijos. “É essencial que os queijos mantenham o padrão

da própria UEPG e também da Universidade Federal

em termos de cor, sabor e textura. Isso só é possível quando

Tecnológica do Paraná (UTFPR).

a empresa trabalha com um padrão de qualidade.” Em um

Célio Leandro Rodrigues, coordenador do MST nos

primeiro momento, os conhecimentos permitirão reforçar

Campos Gerais que trabalha com agroindustrialização,

a qualidade dos queijos prato, mozzarella e dos frescais

foi um dos participantes. Segundo ele, uma das metas do

produzidos pela Anila.

movimento é levar a agroindústria aos assentamentos, dar melhores condições de vida aos agricultores e facilitar

Vanguarda

a inserção dos mais jovens na cadeia produtiva. “O curso

Em 2010, a perspectiva da Escola é se consolidar e

é excelente. Nós percebemos um engajamento, por parte

colocar o Paraná na vanguarda do setor de leite e queijos.

dos professores, em relação aos pequenos produtores.

“Queremos transformar os Campos Gerais em polo nacional

Eles sabem o valor do trabalho que estão realizando para

de conhecimento, produção e qualidade”, diz Alessandro

melhorar a vida dessas pessoas”, pondera.

Nogueira. Ele lembra que as primeiras ações da Escola

Atualmente, os assentamentos rurais de Castro, Ponta

despertaram o interesse de técnicos e empresas de todo o

Grossa, Teixeira Soares e Palmeira produzem vinte mil litros

país. Várias empresas — fornecedoras de micro-organismos

106 | semfronteiras


e aditivos –, inclusive, se tornaram parceiras do projeto. “Elas perceberam a seriedade e as perspectivas do trabalho.” Segundo Alessandro, a Escola pretende seguir um

Elevação do queijo à condição de “produto titular” representa mudança de paradigma no setor leiteiro.

modelo adotado com sucesso pelos franceses na ENILV, que capacita pessoas e atende as indústrias. “Teremos condições

queijos é associada aos excedentes de produção. Com

de receber as demandas e oferecer cursos especiais para

a elevação do queijo a um novo patamar de interesse,

as próprias empresas”, explica. Outra perspectiva é a de

o leite será destinado diretamente à produção.” Essa

criação de um curso de especialização voltado à produção

conversão de “produto reserva” para “produto titular”,

de leite e queijos. Ele deverá ter início tão logo o espaço

por si só, tende a sofisticar o olhar dos produtores.

físico da Escola – uma área de quinhentos metros quadrados

Isso porque a produção de queijos de boa qualidade –

dentro do Campus Uvaranas da UEPG – esteja disponível.

mesmo dos mais comuns – pede leite de qualidade

Em médio prazo, a perspectiva da universidade é oferecer

superior. “Quando falamos em leite de qualidade,

um doutorado em Ciência e Tecnologia dos Alimentos.

estamos observando coisas como sanidade animal, alimentação do gado, higiene na captação, conservação e transporte, teor de gordura adequado e controle de

Queijo: de “reserva” a “titular” Na razão em que a produção de queijos de boa

células somáticas“, explica Mezzadri. Em síntese: em um

qualidade pede leite de boa qualidade – cada quilo de quei-

cenário que exige maior controle, o leite e todos os seus

jo demanda, em média, entre oito e dez litros de leite –,

derivados acabarão beneficiados.

o avanço do setor queijeiro no Paraná deverá contribuir

Fábio Mezzadri também vê com bons olhos o

para a melhora da cadeia produtiva. Essa é a avaliação

interesse dos pequenos produtores pela Escola de Leite

do médico veterinário Fábio Mezzadri, da Secretaria de

e Queijos dos Campos Gerais. “A agregação de valor

Estado da Agricultura e Abastecimento (SEAB), autor do

à produção pode, de fato, levá-los a um novo patamar

documento “Análise da Conjuntura Agropecuária – Safra

de produtividade, qualidade e ganhos de mercado”,

2009/2010 – Leite”, publicado em outubro de 2009.

avalia. Pode, também, reduzir o peso do leite em pó na conta dos produtores e reduzir os riscos associados à

de produto de interesse estratégico poderá determinar

superoferta do produto, que deprime os ganhos e pode,

uma mudança de paradigma no setor. “Hoje, a produção de

mesmo, fazer com que a produção se inviabilize.

Bruno Stock

Segundo Mezzadri, a elevação do queijo à condição

Formatura da primeira turma da Escola Tecnológia de Leite e Queijos dos Campos Gerais.

semfronteiras |

107


108 108 || semfronteiras semfronteiras


semfronteiras semfronteiras|| 109 109


110 | semfronteiras


semfronteiras |

111


perfil

Cientista de queijos e vinhos Rodrigo Wolff Apolloni Foto: Bruno Stock

Alessandro Nogueira, engenheiro agrônomo e coordenador da Escola de Leite e Queijos dos Campos Gerais.

112 | semfronteiras

Um aspecto significativo para o universo

dose extra de afeto por parte do pesquisador. O

científico, tanto nas ciências humanas quanto

que dizer, por exemplo, de quem pesquisa queijos

nas ciências “duras”, diz respeito à proximidade

ou a produção de vinhos? Não seria esta quadra

entre o pesquisador e o seu objeto de estudo.

da ciência, enfim, a mais carregada de aromas,

Em princípio, afirmam filósofos da ciência,

sabores e de uma proximidade com veneráveis

os estudos tendem a ser menos traumáticos

costumes e formas de sociabilidade?

quando o cientista mantém uma relação de

Pois em sua carreira acadêmica, o coor-

proximidade crítica em face do objeto, sem amá-

denador da Escola de Leite e Queijos dos Campos

lo excessivamente ou, pelo contrário, odiá-lo.

Gerais, Alessandro Nogueira, se aproximou tanto

Algumas áreas, porém, parecem carregar uma

dos queijos quanto dos vinhos. Engenheiro


agrônomo formado pela Universidade Estadual

R$ 200 mil para o início das atividades. Em maio do

de Ponta Grossa (UEPG) em 1998, ainda em 1996

ano seguinte, com os equipamentos comprados, a

ele iniciou um estágio de iniciação científica na

Escola começou a funcionar.

área de Ciência e Tecnologia dos Alimentos. Dois anos depois, na conclusão da graduação, estagiou

À Table

durante três meses no Institut National de la

Para Alessandro, por-

Recherche Agronomique (INRA), na França, e, em

tanto, os queijos acabaram

1999, foi aprovado diretamente para o Programa

confirmando o status de

de Doutorado em Bioprocessos Agroindustriais da

acompanhamento

Universidade Federal do Paraná (UFPR).

para os vinhos, tanto à

perfeito

Parceiros ideais na gastronomia, queijos e vinhos também funcionam harmoniosamente no campo de Ciência e Tecnologia dos Alimentos. A experiência de Alessandro Nogueira é a melhor prova disso.

Em 2001, obteve uma bolsa de doutorado

mesa quanto na bancada

sanduíche de doze meses para a França e retornou

do laboratório. “Os dois

ao INRA. Em sua tese, obtida em 2003, estudou

produtos realmente andam

a tecnologia de processamento da sidra, bebida

juntos”, sorri. “Ministro aulas no mestrado desde

alcoólica preparada a partir do sumo fermentado

2005 na disciplina de Bioprocessos e Alimentos

da maçã e muito popular em regiões como a

Fermentados. Pelo menos oito horas-aula são

Normandia. No mesmo ano, obteve uma bolsa de

destinadas ao processamento de queijos e uma

recém-doutor do CNPq (atual pós-doutor júnior)

carga horária semelhante é dedicada aos vinhos.”

na área de Ciência e

Além disso, confessa, os dois anos passados na

Coordenador da

Tecnologia de Alimentos a

França fizeram dele um grande apreciador dos dois

Escola de Leite

ser desenvolvida na UEPG

produtos. “Essa aproximação facilita muito na ho-

e Queijos dos

e, em 2005, uma bolsa

ra de falar sobre os temas, que, aliás, naturalmente

Campos Gerais

do programa PRODOC da

despertam muito interesse dos alunos.”

também é expert

Capes para pesquisa na

Autor de 40 artigos publicados em veículos

em vinhos.

mesma linha de trabalho

científicos brasileiros e internacionais e de dois

na mesma universidade.

capítulos de livros (outros dois capítulos devem

Foi quando recebeu um convite para participar do

ser publicados em breve), ele se diz muito animado

corpo de professores do mestrado em Ciência e

com uma experiência adquirida recentemente,

Tecnologia de Alimentos da própria UEPG. Em 2007,

graças ao trabalho com a Escola de Leite e

ingressou no corpo docente do Departamento de

Queijos dos Campos Gerais. “Sempre gostei de ser

Engenharia de Alimentos da instituição através de

pesquisador, mas confesso que não tinha muito

concurso público e dois meses depois foi convidado

contato com o setor industrial ou com extensão.

a elaborar o projeto da Escola Tecnológica de Leite

Com o projeto e implantação da Escola, mesmo

e Queijos dos Campos Gerais.

com todo o trabalho, estou me sentindo feliz

O desenvolvimento do projeto demandou

e realizado profissionalmente”, afirma. “Como

uma nova estada na França (outubro de 2007),

o curso de fabricação de queijos foi de longa

onde conheceu as tecnologias de processamento

duração, tivemos a possibilidade de conhecer as

de diferentes tipos de queijo — como reblochon,

necessidades dos produtores e aprendemos muito

abundance, raclette e tomme de savoie — e as

com eles, pois eles têm conhecimentos práticos

formas de aproximação feitas entre as instituições

que nós, como professores e ainda do primeiro

de ensino, os produtores e as indústrias. O projeto

curso, não tínhamos. Em nosso primeiro curso,

foi entregue em fevereiro de 2008 e recebeu da

acredito que foi uma troca mútua, passamos

Secretaria de Estado da Ciência, Tecnologia e

conhecimento teórico e recebemos conhecimen-

Ensino Superior do Paraná (SETI) um aporte de

to prático.”

semfronteiras semfronteiras|| 113 113


N O T í c i a S d e C&t •

mundo

Blogueiros de ciência Célio Yano Ilustração: Simon Ducroquet

Muitos pesquisadores já recorrem a blogs para antecipar resultados de estudos A

divulgação

científica,

atividade

que

busca

popularizar o conhecimento acadêmico entre o público

trabalho de seu grupo de pesquisa que fez uma contagem inédita do número de neurônios do cérebro humano.

leigo, não é mais a mesma. Basta fazer uma pesquisa na internet para perceber como nos últimos anos os temas

Science Blogs

“científicos” têm entrado cada vez mais em pauta nas

Entre nós, 30 blogs de ciência se reúnem na rede

discussões. Nem é mais tão raro ouvirmos nossas crianças

ScienceBlogs, iniciativa internacional nascida em 2008 no

debatendo assuntos como aquecimento global ou ar-

Brasil. A partir do momento em que o diário virtual de um

queologia à mesa do jantar. Não foram, porém, apenas

pesquisador se destaca na internet, e desde que atenda

as novas tecnologias as responsáveis por esse interesse,

aos critérios de qualidade, é convidado a fazer parte do

tampouco a imprensa, mas os próprios pesquisadores,

condomínio. Uma forma de ajudar o autor a divulgar seu

que “deixaram o casulo” para interagir com as demais

trabalho e de ampliar para os leitores o leque de páginas

pessoas por meio de blogs, sites e redes sociais.

recomendáveis.

Especialmente nos Estados Unidos, o crescimento

O biólogo Carlos Hotta, um dos coordenadores do

no número de blogs desenvolvidos por cientistas ocorre

ScienceBlogs, aponta duas conclusões importantes a que

paralelamente a uma crise no jornalismo científico,

chegou ao longo dos dois anos e meio em que posta em

segundo reportagem da revista Nature de março de

sua página pessoal. A primeira é de que os cientistas que

2009. Conforme a publicação, por conta da redução no

lançam mão das novas ferramentas digitais não estão

número de jornalistas, os cadernos de ciência têm per-

“falando com as paredes”. Do outro lado, há pesquisa-

dido espaço na imprensa. A consequência é que o menor

dores que utilizam esses meios para se manter informados

número de profissionais de mídia acaba tornando-se cada

a respeito de suas áreas de conhecimento. “Pelo blog,

vez mais dependente das informações divulgadas pelos

recebo contatos de vários cientistas interessados em

próprios pesquisadores. Desse processo é que resultaria a

fazer colaborações. Eles acham o blog, têm uma ideia

proliferação dos cientistas blogueiros.

de como é minha personalidade, meu perfil, e se sentem

No Brasil não há um estudo que indique uma redu-

confiantes em se comunicar comigo”, explica.

ção de quadros ou do espaço reservado ao jornalismo

Por outro lado, o público leitor não é formado apenas

científico. Mesmo assim, é notável o número cada vez

por “pares”, como se diz na linguagem acadêmica, embora

maior de pesquisadores que recorre a blogs, inclusive

haja uma notável segmentação. “Há uma porcentagem

para antecipar resultados de estudos. Um exemplo é a

muito alta de graduandos e estudantes de pós-graduação,

neurocientista Suzana Herculano-Houzel, da Universidade

e uma visitação muito significativa de pessoas com mais

Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que, no ano passado,

de 30 anos”, diz Hotta sobre seu blog. “Difere bastante do

anunciou em seu blog, em primeira mão, a publicação do

público da internet como um todo.”

114 114 || semfronteiras semfronteiras


qual até mesmo a reprodução de todo o conteúdo é gratuita, com a condição de que o autor seja citado. Publicações historicamente consolidadas como a Nature ou a Science cobram algumas centenas de dólares por uma assinatura anual. No caso da PLoS, o financiamento vem do autor dos trabalhos científicos, e a gratuidade do acesso acaba levando a um público muito maior de leitores. Mas talvez a maior mudança na difusão científica atual em relação ao que se via há menos de uma década seja o espaço para comentários que publicações digitais como as da PLoS ou a British Medical Journal disponibilizam — uma forma de avaliação do trabalho, além da revisão prévia por pares. A interatividade é o núcleo do desenvolvimento da ferramenta Reflect, da Cell Press. Ainda em fase beta (experimental), os artigos publicados no sistema oferecem links para cada uma das referências, palavras-chave destacadas, um menu de índice que permite a navegação Para o blogueiro, a audiência crescente do ScienceBlogs — hoje, a média é de 250 mil pageviews

rápida para cada trecho do trabalho, além de imagens em alta resolução, comentários e artigos sobre temas relacionados.

(visualizações) mensais — é um sinal claro de que

Se a descrição pareceu próxima à de um conteúdo

mudanças estão ocorrendo. Aí sim entra uma parte

jornalístico publicado na internet, não foi por acaso: a mu-

importante dos blogs, que traz uma história mais

dança de publicações científicas para plataformas multimídia

especializada. “Mas não é que os blogs estejam

dominadas até recentemente pela imprensa parece ser uma

acabando com o jornalismo de ciência”, avalia. “A

tendência. Em artigo publicado na Nature, o repórter Geoff

ideia do blog é trazer um conteúdo mais aprofun-

Brumfiel relata um episódio protagonizado pelo pesquisa-

dado do que o daqueles jornalistas que apenas

dor em Bioinformática Lars Jensen, da Universidade de

replicam press releases, por exemplo, e que têm se

Copenhague, que prova isso. Com uma câmera digital, um

tornado cada vez mais comuns nas redações. Apenas

laptop e um palmtop, Jensen relatou ter capturado ima-

ocupamos um espaço que está sendo aberto.”

gens de uma apresentação realizada em um encontro de pesquisadores da área e, em tempo real, ter publicado o

Entre pares

material na internet.

Paralelamente às mudanças que ocorrem na

A “cobertura” do evento não havia sido planejada, mas

divulgação científica, a comunicação em ciência

acabou gerando enorme repercussão na rede, principalmen-

entre os próprios pesquisadores — a chamada

te entre pesquisadores da área. “Para tecnófilos e adeptos

difusão científica — também passa por uma es-

da abertura científica, esta é a tendência do futuro”, afirmou

pécie de evolução diante do advento de novas

Brumfiel.

tecnologias. Além dos periódicos tradicionais, hoje os pesquisadores podem disseminar de forma mais eficiente os resultados de suas pesquisas, por meio de organizações como a Public Library of Science

Saiba mais: ScienceBlogs (Brasil) — scienceblogs.com.br ScienceBlogs (internacional) — scienceblogs.com Public Library of Science (PLoS) — www.plos.org

(PLoS), que mantém a publicação de sete journals,

Nature (site da revista) — www.nature.com

revisados por pares mas que têm acesso livre aos

Science (site da revista) — www.sciencemag.org

conteúdos pela internet. A filosofia seguida é a

British Medical Journal — www.bmj.com

Creative Commons Attribution License, segundo a

Reflect (Cell Press) — beta.cell.com/index.php/2009/11/reflect/

semfronteiras |

115


N O T í c i a S d e C&t •

mundo

Biblioteca Digital Mundial Unesco e parceiros realizam aspiração universal de biblioteca da humanidade

Está disponível na internet

trabalhos de cientistas árabes desvelando o mistério da álgebra; ossos utilizados

desde abril de 2009 a Biblioteca

como oráculos na China; a Bíblia de Gutenberg; antigas fotos latino-americanas

Digital Mundial (BDM), que reú-

da Biblioteca Nacional do Brasil; e a célebre “Bíblia do Diabo”, do século XIII, da

ne mapas, textos, fotos, grava-

Biblioteca Nacional da Suécia. (RR)

ções e filmes e explica, em sete idiomas — entre os quais

Saiba mais: www.wdl.org

o português —, as relíquias culturais de todas as biblioteDiego Gutiérrez / Biblioteca Mundial

cas do planeta. O projeto é da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) e de outras 32 instituições. O acervo inicial da BDM é de 1.200 documentos, mas, como é característico das boas bibliotecas, não há limite para a recepção de obras. Entre os exemplares mais antigos estão códices pré-colombianos e os primeiros mapas da América, desenhados por Diego Gutiérrez para o rei de Espanha em 1562; o “Hyakumanto darani” (“Um Milhão de Pagodes e Crentes Darani”), documento japonês de 764 que é considerado a mais antiga peça impressa (com matrizes produzidas em blocos de madeira); um relato asteca que traz a primeira menção feita ao Menino Jesus no Novo Mundo;

Um dos primeiros mapas da América (1562), então chamada de “a quarta parte do mundo”.

116 | semfronteiras


Foram identificadas duas molémalária que podem permitir uma vacina contra a doença, que mata

Sopa subatômica de 4 trilhões de graus Celsius

mais de um milhão de pessoas por ano no mundo.

Uma temperatura de 4 trilhões de graus Celsius foi atin-

A descoberta foi feita por

gida no colisor de partículas RHIC (Relativistic Heavy Ion

pesquisadores do Instituto Walter e

Collider), do Laboratório Nacional de Brookhaven, em Upton,

Eliza Hall de Pesquisas Médicas, de

Estados Unidos, quebrando o recorde de temperatura em um

Melbourne (Austrália), e publicada

experimento.

no periódico “PLoS Medicine”, em janeiro deste ano.

A equipe usou o acelerador de 3,86 km para colidir íons de ouro a uma velocidade próxima à da luz, criando um “plasma

Após analisar 33 casos de pes-

de quarks e glúons”, estado da matéria, também apelidado de

soas que ficaram imunes à malária

“sopa de quarks”. Este estado é formado quando a temperatura

depois de sofrer a doença, a equipe

extremamente alta é suficiente para “derreter” os prótons e

descobriu que dois antígenos —

nêutrons que formam o núcleo atômico, permitindo que quarks

MSP-3 e MSP-119 — provocavam anti-

e glúons, subpartículas nucleares, vaguem livres. Acredita-se

corpos particularmente poderosos

que esse era o estado da matéria que constituía o universo no

nos pacientes, os protegendo em

primeiro milionésimo de segundo após o Big Bang, antes mes-

54% e 18% de novos episódios da

mo do surgimento de prótons e nêutrons no cosmo.

doença, respectivamente.

A temperatura atingida foi mais alta do que qualquer uma

A dificuldade de se produzir

conhecida no universo, mais alta mesmo que a de uma explosão

uma vacina contra a malária é que

de supernova. Como comparação, a temperatura atingida é 250

o parasita é muito diverso, e tem

mil vezes mais quente que o núcleo do Sol, que chega a 15,7

muitos antígenos em sua superfície.

milhões de graus Celsius.

Diferente de sarampo, que com uma

Com o estudo da sopa de partículas subatômicas criadas

infecção a pessoa está imune para

pelo RHIC, os pesquisadores esperam compreender melhor o que

sempre, com a malária, são neces-

ocorreu nos primeiros instantes após o Big Bang, há 13,7 bilhões

sárias várias infecções para a pessoa

de anos. (HM)

desenvolver uma imunidade de longo prazo, suficiente para todos os

Divulgação / Brookhaven National Laboratory

Elementos-chave para uma vacina contra a malária

culas superficiais do parasita da

antígenos do Plasmodium, parasita que causa a doença. (HM)

Ute Frevert / Wikimedia Commons

Fêmea de Anopheles albimanus, um dos transmissores da malária.

Simulação da colisão de dois íons de ouro.

semfronteiras | 117 semfronteiras | 117


N O T í c i a S d e C&t •

brasil

Superpredador gaúcho Fóssil de carnívoro que viveu há 225 milhões de anos é encontrado no Rio Grande do Sul Adolfo Bittencourt / Instituto de Artes da UFRGS

Um predador pré-histórico que habitava o Brasil foi recentemente apresentado ao mundo: O Trucidocynodon riograndensis — cinodonte do Rio Grande do Sul que trucidava — era um carnívoro que viveu no período chamado Triássico Superior, há cerca de 225 milhões de anos, quando os dinossauros ainda começavam sua história na Terra. Os fósseis foram encontrados nas rochas da formação Santa Maria, no município de Agudo, a 200 km de Porto Alegre. A espécie foi descrita a partir de um esqueleto quase completo e de outros quatro exemplares incompletos, muito bem preservados. O estudo foi publicado, em fevereiro, no periódico internacional de

O Trucidocynodon riograndensis se assemelhava a um lobo. Todos os cinodontes do período Triássico Superior encontrados até então eram de pequeno porte.

taxonomia animal Zootaxa. Esse foi o primeiro cinodonte carnívoro de grande porte do Triássico Superior encontrado na região, de acordo com o paleontólogo Téo Veiga de Oliveira, que fez a descoberta dos fósseis juntamente com Marina Soares,

e não está ligado diretamente à origem dos mamíferos”, ressalta. A fera, que tinha mais de um metro de comprimento e pesava entre 15 e 20 kg, se assemelhava a um lobo.

Cesar Schultz e outros da equipe do Departamento de

Algumas características da dentição do Trucidocynodon

Paleontologia e Estratigrafia da Universidade Federal do

permitiram que os pesquisadores determinassem que ele

Rio Grande do Sul (UFRGS).

era um carnívoro: Todos os dentes tinham serrilhas e eram

Os cinodontes são um grande grupo de animais que

levemente curvados para trás. Os caninos eram muito

incluía herbívoros, carnívoros e insetívoros, surgidos cerca

grandes e não cabiam na boca quando ela estava fechada,

de 260 a 250 milhões de anos atrás. No Triássico Superior,

ficando expostos. Por fim, os dentes que ficavam atrás dos

eles eram um dos principais grupos de vertebrados. Foi

caninos se alinhavam como uma lâmina de tesoura.

um grupo de cinodontes de pequeno porte (do tamanho

Sua postura geral é a de um mamífero caçador.

de ratos) e insetívoros que deu origem aos mamíferos.

Diferente de lagartos, que se locomovem com o corpo

A diversidade dos cinodontes foi diminuindo durante

próximo ao chão, o carnívoro gaúcho tinha patas em

o Jurássico e o Cretáceo (períodos que sucederam o

posição ereta. O Trucidocynodon pode ter se alimentado

Triássico), com várias linhagens sendo extintas, exceto

de outros cinodontes, de pequenos dinossauros e muito

a dos mamíferos, explica Oliveira. “Por isso, é correto

provavelmente de filhotes de rincossauros (répteis de

dizer que os mamíferos são os únicos cinodontes vivos.

grande porte que eram o animal mais abundante do Triás-

Entretanto, o Trucidocynodon foi extinto ainda no Triássico

sico Superior). (HM)

118 | semfronteiras


Trem virtual Programa usa imagens de satélite para simular ferrovias Um sistema de realidade virtual para simulação

vagões, a geometria da via férrea e até a visualização

de trens está sendo desenvolvido para o treinamento

do ambiente com variações do dia e do clima. É possível

de maquinistas. O protótipo do sistema foi criado pelo

inserir à simulação eventos como chuva, fogo na cabine

Departamento de Engenharia Mecânica da Escola Po-

de comando, travessia de carro na linha e outras situações

litécnica (Poli) da Universidade de São Paulo (USP),

hipotéticas.

para a empresa mineradora Vale, que opera 9.863 km

Até hoje, os softwares usados com essa finalidade

de estradas de ferro. O projeto tem o objetivo de criar

eram importados, e não incorporavam tantas funcionalida-

uma tecnologia totalmente nacional de capacitação de

des. O simulador usa equipamentos comuns, normalmente

maquinistas, e deve ser concluído em 2010.

encontrados no mercado, como computadores com sistema

Além de ter menos custos por ser nacional, o sis-

operacional Windows ou Linux e conexões em rede. Essa

tema tem uma vantagem em relação aos importados: a

solução pode ser útil para outros sistemas de transporte,

simulação usa o georreferenciamento, ou seja, imagens

como as redes de metrô e de trens de passageiros, de acordo

de satélite que capturam a topografia real do terreno.

com o engenheiro mecânico Roberto Spinola Barbosa,

Dessa forma, é possível simular trajetos existentes e

coordenador do projeto na USP. “Esse conhecimento pode

ferrovias que ainda não foram construídas.

ser aplicado em outros sistemas que utilizem a realidade

A ferramenta reproduzirá o comportamento do trem por todo o trajeto da ferrovia. Durante a simulação,

virtual em imersão total para simulação de equipamentos em movimento dinâmico”, diz. Atualmente, o protótipo conta com 24 cabines de si-

próxima da realidade e vai experimentar situações com

mulação e oito cabines de supervisão. Está em andamento

as quais poderá se deparar na sua função. Todos os

o desenvolvimento de uma ferramenta multiplayer para o

sistemas que formam o trem serão simulados, como a

sistema, ou seja, durante a simulação, o maquinista poderá

tração e o freio dinâmico da locomotiva, a dinâmica de

ver outros trens que estejam no mesmo trecho. (HM)

Escola Politécnica USP

o profissional em treinamento terá uma imagem muito

Sistema usará imagens de satélites para criar uma simulação realista das estradas de ferro.

semfronteiras |

119


N O T í c i a S d e C&t + Paraná

Novos genes de uma doença antiga Jaqueline Bartzen

Pesquisadores identificam dois genes que podem estar ligados à manifestação da hanseníase Um estudo conduzido por pesquisadores da

genéticos, que explicam quase 100% da manifestação da

Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-

doença. Para se ter uma ideia, um habitante da localidade

PR) em plena floresta amazônica traz revelações

do sexo masculino, com 30 anos ou mais, que apresente a

significativas a respeito dos fatores genéticos que levam

variação genética de predisposição à doença, tem 80% de

à manifestação da hanseníase. A incidência da doença

possibilidade de ter hanseníase”, explica Mira. Segundo o

tem sido investigada em uma população de cerca de

bioquímico, a vila, localizada a cerca de 110 km da capital,

duas mil pessoas, isolada na vila Santo Antônio do

Belém, foi criada pelo governo para abrigar portadores de

Prata, em Igarapé-Açu, no Pará, e os resultados sugerem

hanseníase, cujo isolamento era obrigatório até a década

a existência de pelo menos dois novos genes ligados ao

de 60 do século passado. Muitos dos moradores do local

desenvolvimento da enfermidade.

manifestam ou já manifestaram a doença.

De acordo com o bioquímico Marcelo Távora Mira,

A hanseníase é uma doença que ataca o sistema

especialista em mapeamento genético de doenças com-

nervoso periférico. Os sintomas são: manchas na pe-

plexas e coordenador da pesquisa por meio do Programa

le — mais claras, avermelhadas ou pequenas bolhas —,

de Pós-Graduação em Ciências da Saúde da PUC-

áreas nas quais o indivíduo perde a sensibilidade à dor.

PR, há indícios de que variações de dois novos genes

Caso não seja precocemente diagnosticada e tratada,

podem predispor o portador a manifestar a doença.

leva à destruição de nervos, chegando à atrofia das

Curiosamente, esses genes localizam-se no braço longo

mãos e à perda de membros como dedos e orelhas. Os

do cromossomo seis, próximos ao Park2 (ou Parquina),

danos neurológicos são irreversíveis. O tratamento

gene já conhecido por sua ligação com a hanseníase. A

atualmente conhecido é baseado na combinação de três

previsão é de que os estudos sejam publicados no início

medicamentos que atuam na eliminação da bactéria

deste ano.

responsável pela doença.

O pesquisador explica que a hanseníase é uma

Em busca de uma cura por meio da genética,

doença complexa e, portanto, manifesta-se quando há

os pesquisadores da PUC-PR, além de procurar iden-

a combinação de determinadas variações de genes com

tificar outros genes associados à doença, investigam

fatores externos, como o meio ambiente, patógenos

de que forma ocorre a atuação dos fatores genéticos.

ou hábitos de alimentação, entre outros. A bactéria

“É impossível simplesmente eliminar o gene que

Mycobacterium leprae é o fator externo determinante.

causa a doença. É preciso entender seu mecanis-

No entanto, outra revelação da pesquisa é que, entre os

mo de funcionamento para que possamos verificar

indivíduos pesquisados, a presença da bactéria associada

a possibilidade de inibir sua manifestação”, relata o

ao efeito genético explica totalmente a doença, sem

pesquisador.

depender de fatores ambientais ou não genéticos. “O que torna essa comunidade amazônica única no planeta é a força do controle exercido pelos fatores

120 | semfronteiras

Embora o grupo concentre-se nas pesquisas relacionadas à hanseníase, os mesmos princípios podem ser aplicados a outras doenças, como o vitiligo, por exemplo.


Sistema Geomedicina Bonald C. Figueiredo e Humberto C. Ibañez

Instituto Pelé Pequeno Príncipe

Saúde ambiental em mapas interativos na Internet

Mapa produzido pelo sistema mostra mortalidade por câncer de cólon, reto e ânus entre 1998 e 2005.

A cada dia, mais usuários acessam mapas interati-

geográficas com aplicações futuras na epidemiologia.

vos na internet antes de irem a lugares desconhecidos.

A pesquisa sobre o TCA levou à descoberta de que o

Aplicados à Medicina, recursos como estes permitem

tumor está associado à mutação R337H no gene TP53. O

descobrir, por exemplo, a influência de fatores ambientais

objetivo inicial do projeto GeoMedicina não era descobrir a

sobre doenças que afetam habitantes de uma determina-

origem da mutação, mas como o meio ambiente participa-

da região. É o que vem sendo realizado no Instituto de

ria no surgimento do mesmo em pessoas com esta mutação.

Pesquisa Pelé Pequeno Príncipe (IPPPP), de Curitiba, com

Para tanto, foi realizada uma campanha inédita no país,

o Sistema GeoMedicina, desenvolvido em parceria com a

por meio da qual foram colhidas gotinhas de sangue de

Minerais do Paraná (Mineropar) e Fundo Paraná/Secretaria

recém-nascidos nas maternidades do Paraná, bem como

de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (SETI).

realizados testes de DNA nos participantes voluntários

O projeto GeoMedicina surgiu em 2006 a partir de

dessa campanha. Os valores referentes a estes testes foram

uma necessidade na pesquisa sobre a incidência do tumor

inseridos no Sistema GeoMedicina a fim de se visualizar e

do córtex adrenal (TCA), que no Paraná e Estados vizinhos

estudar a influência dos fatores ambientais associados à

é 12 vezes maior que a verificada em outros Estados

mutação e ao aparecimento do TCA e de outros tumores.

brasileiros e mesmo em países europeus, Estados Unidos

A Mineropar, sob a coordenação de Otavio Augusto

e Japão. A busca de uma razão para essa discrepância,

Boni Licht, contribui com o levantamento geoquímico por

somada à preocupação com uma doença grave, deter-

meio da coleta de amostras de água e sedimentos de fundo

minou o desenvolvimento de um sistema de informações

em pontos que representam 697 microbacias da hidrografia

semfronteiras |

121


N O T í c i a S d e C&t + Paraná do Paraná. Nesse caso, o sistema GeoMedicina é empre-

componente integrador das interfaces de entrada e saída

gado para a visualização de mapas de teores de elementos

do sistema. Esta integração é implementada por uma

químicos presentes em águas não tratadas como chumbo,

codificação do Mapfile, onde são especificadas as bases

mercúrio, bário, alumínio, flúor, sódio e íons nitrato, fosfato

de dados espaciais e os formatos dos mapas produzidos

e sulfato. A Mineropar fornece estes valores interpolados

on line. A interação usuário x sistema é realizada por

em uma malha regular, a Global Geochemical Reference

meio da aplicação Ka-map, que é carregada no cliente, um

Network, os quais são integrados às áreas dos municípios,

navegador de internet que se conecta a um servidor onde

para que estes dados, estando na mesma granularidade,

estão em funcionamento os componentes descritos acima.

sejam objeto dos métodos estatísticos incorporados no sistema. Há um grande número de doenças associadas

Dados visíveis

à deficiência ou teores elevados destes elementos, daí o

No Sistema GeoMedicina, a concentração de ele-

interesse em explorar a relação entre elementos químicos

mentos químicos, a proporção de doenças, a prevalência

e as doenças.

de mutações, a proporção do emprego de agrotóxicos e os indicadores sociais são representados em classes

Arquitetura do sistema

distinguidas por tons de cores ou pela variação da

O Sistema GeoMedicina consiste em uma ferramenta

luminosidade de um tom de cor. As cores mais claras ou

de web mapping, acessada por meio de um simples

frias indicam as menores proporções ou concentração

navegador de internet, sendo necessários apenas um com-

ou os melhores indicadores sociais, enquanto as cores

putador e uma conexão com a rede para interagir com o

mais escuras ou quentes indicam as maiores proporções,

sistema. Apesar de o acesso ser facilitado e de não ser

concentração ou os piores indicadores sociais. A visua-

necessário instalar qualquer software no computador do

lização de duas camadas é obtida quando se sobrepõe um

profissional, somente usuários cadastrados e autorizados

mapa ao outro e se ajusta a transparência do que está em

pelo coordenador da pesquisa, Bonald C. Figueiredo, têm

cima. Também é possível deslocar o mapa para todos os

acesso a dados que envolvam a comunicação de risco. Este

lados da tela e aumentar e diminuir seu tamanho.

controle é necessário para que as ações planejadas para

Atualmente, o Sistema GeoMedicina provê a aplica-

mitigar o risco possam ser executadas sem vazamentos

ção de métodos estatísticos sobre valores que envolvam a

de informações que, historicamente, já causaram pre-

concentração de substâncias encontradas nos municípios

juízo à economia dos municípios afetados, pois a reação

do Paraná e a saúde dos seus habitantes. Os métodos

da

estereótipos

estatísticos, implementados com a colaboração do La-

que causaram a depreciação de terras e produtos dos

boratório de Estatística e Geoinformação da UFPR,

municípios relacionados.

permitem identificar associações importantes entre os

sociedade

foi

negativa,

criando-se

O sistema de web mapping implantado por Ibañez é

fatores ambientais e as doenças. Uma vez estabelecidas

constituído por uma arquitetura em camadas conhecida

essas relações, é possível demarcar regiões onde é

como Free Open Source Software for Geospatial (FOSS4G).

necessário um maior cuidado com a saúde da população.

No sistema atual, os componentes principais desta arquitetura são o MapServer 3, o PostgreSQL 4, o PostGIS

Cruzamento de dados

5, o R, o Apache 7 e o Ka-map 8. Os dados dos fatores

A estatística espacial, aplicada aos dados do am-biente

ambientais e de doenças armazenados em base de dados

e de saúde, mostra possíveis relações entre variáveis, por

PostgreSQL/PostGIS

tratamento

meio de recursos que vão desde uma análise descritiva,

estatístico no ambiente R. As imagens digitais e elementos

usando medidas de correlação e resumos de dados, até uma

cartográficos são produzidos pelo MapServer, que é o

análise inferencial com os modelos aditivos generalizados,

122 | semfronteiras

são

submetidos

ao


como o cálculo de correlação linear de Pearson e por postos

programa estratégico do governo estadual, no qual os

(correlação de Kendall Tau e de Spearman), em que se buscam

temas indiquem grupos de informações e de variáveis que

relações entre variáveis. O risco relativo nos municípios é

motivem diferentes estudos. Pretende-se também incluir

calculado por meio de uma análise univariada entre cada

na base de dados do sistema agentes microbiológicos,

doença e cada fator ambiental escolhido pelo usuário. Apesar

como vírus aparentes nos indicadores de morbidade (e.g.,

de auxiliarem na pesquisa, estes resultados estatísticos não

hepatites crônicas), bactérias, fungos e protozoários.

são considerados para fins de causa e consequência sem a confirmação por meio de estudos de coorte, de caso-controle e de nível laboratorial. O projeto GeoMedicina passou a ser uma linha de

Bonald Cavalcante de Figueiredo é médico e diretor científico do Instituto de Pesquisa Pelé Pequeno Príncipe e do Centro de Genética Molecular e Pesquisa do Câncer em Crianças.

pesquisa que agrega vários projetos e pretende-se que

Humberto C. Ibañez é cientista da Computação e pesquisador

seja algo mais amplo e de caráter permanente, como um

do Instituto de Pesquisa Pelé Pequeno Príncipe.

R$ 125,5 milhões em 2010 Recursos do Fundo Paraná são usados em projetos estratégicos, em projetos da Fundação Araucária e do Instituto de Tecnologia do Paraná

Em 2010, os recursos do Fundo Paraná – que destina 2% da arrecadação tributária estadual ao apoio e ao

Agricultura Familiar; e Programa de Ciência e Tecnologia em Saúde.

desenvolvimento científico e tecnológico, e é gerencia-

À Fundação Araucária foram destinados R$ 28,0

do pela Secretaria de Estado da Ciência, Tecnologia e

milhões, para execução dos seguintes programas: Fomento à

Ensino Superior (SETI) – somam R$ 125,5 milhões. Esses

Produção Científica e Tecnológica; Verticalização do Ensino

recursos estão sendo aplicados em projetos estratégicos

Superior e Formação de Pesquisadores; e Disseminação da

e de interesse da sociedade, em programas de apoio ao

Ciência e Tecnologia.

desenvolvimento científico da Fundação Araucária e do Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar).

Entre as várias atividades do Instituto de Tecnologia do Paraná que receberão recursos do Fundo Paraná –

São seis os programas estratégicos de governo em

total de 18,6 milhões – estão o Centro de Referência

2010 na área de C&T: Programa de Desenvolvimento do

em Desenvolvimento e Produção de Imunobiológicos e

Ensino Superior do Paraná; Programa de Populariza-

Medicamentos com base em Biotecnologia Avançada e o

ção da Ciência, Tecnologia e Inovação; Programa

Programa de Ciência, Tecnologia e Inovação em Projetos

Universidade Sem Fronteiras; Programa de Aquicultu-

de Desenvolvimento Tecnológico da Economia e Sociedade

ra e Pesca; Programa Estadual de Pecuária Leiteira e

Paranaense (Bioenergia e Biofábrica).

semfronteiras|| 123 123 semfronteiras


N O T í c i a S d e C&t + Paraná

Universidade Sem Fronteiras: saber e dedicação Joka Madruga

Carolina Wadi

Há quatro anos a Secretaria da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior do Paraná (SETI) promove importante mudança no modo de realizar a extensão universitária. Trata-se do programa Universidade Sem Fronteiras (USF), que reafirma o compromisso social e o papel humanista da universidade. “É gratificante testemunhar o entusiasmo das pessoas envolvidas – comunidade, coordenadores e bolsistas. Elas dão vida aos projetos e objetivos desse programa”, enfatiza o professor Antônio João Manfio, coordenador do USF. “Uma bolsista que caminha setenta quilômetros da universidade onde trabalha, com seu neném no colo, Apoio às Licenciaturas

para chegar ao local de atendimento do USF, dá bem a dimensão da articulação entre inteligência e dedicação.

Joka Madruga

Ou a opção de outro bolsista que decidiu morar no local onde o projeto é executado para dedicar-se integralmente

Celso Pacheco

ao seu êxito”, exemplifica.

Produção agroecológica

124 | semfronteiras

Agricultura Familiar


Celso Pacheco

Encontros de Avaliação Segundo o coordenador, passados quatros anos da nova prática extensionista, que chegou a 280 municípios do Paraná, agora é hora de fazer um balanço das ações desenvolvidas. “É provável que o programa transcenda as idealizações originais. Neste momento, faz-se necessária uma reflexão sobre os resultados alcançados”, afirma. Para isso, serão realizados, na segunda quinzena de novembro deste ano, vários “Encontros de Avaliação”, que conduzirão os participantes a um patamar superior ao

Diálogos culturais

do simples relato de experiências, mas sem minimizar a importância da subjetividade e das vivências dos protagonistas que fazem da sua inserção nos projetos momentos de entrega a uma causa.

Número de projetos por subprogramas 44

Apoio à Agricultura Familiar

trução conjunta de uma base teórica que

48

Apoio à Produção Agroecológica Familiar

possa orientar a prática extensionista. “É

110

Apoio à Licenciaturas

hora de pensarmos a prática, voltada para

28

Ações de Apoio à Saúde

uma avaliação qualitativa das ações, para que

40

Diálogos Culturais

o Paraná continue sendo um exemplo a ser

107

Extensão Tecnológica Empresarial

seguido nessa área”.

50

Incubadora de Direitos Sociais

427

Total

Para Manfio, é necessária agora a cons-

Os

Encontros

de

Avaliação

terão

duração de um dia e serão realizados nas seis universidades estaduais. As Pró-Reitorias de Extensão estão construindo os referen-

Número de bolsistas

ciais teóricos de orientação das avaliações:

876

Recém-formados

“Novo paradigma de Extensão: Universidade

1.690

Graduandos

Sem Fronteiras”; “A universidade reinventa-

960

Orientadores

se”; “Ciência e saber popular: nova síntese”;

96

Ensino médio

“A extensão como estratégia de desenvol-

3.624

Total

ciplinaridade”; “Universidade Sem Fronteiras:

280

Municípios atendidos

balanço e perspectivas”.

92

Instituições parceiras

vimento local”; “Diálogo, parceria e interdis-

A coordenação do programa construiu também o Sistema de Administração de Projetos (SAPUSF), importante ferramenta de acompanhamento do desenvolvimento dos projetos. O sistema foi implantado em agosto

Total de investimentos em 2010

R$ 14.213.645,00

de 2010.

semfronteiras |

125


N O T í c i a S d e C&t + Paraná

Paraná interioriza transplantes de medula óssea Com tecnologia do Hospital de Clínicas da

Estatísticas

Universidade Federal do Paraná, o Hospital Univer-

No Brasil, enquanto o número de transplantes

sitário da Universidade Estadual de Londrina

de todos os órgãos crescia cerca de 10% em 2008, o

prepara-se para realizar, a partir deste ano, os pri-

de transplantes de medula óssea chegava a apenas

meiros transplantes de medula óssea no interior do

um por cento. De acordo com o Ministério da Saúde,

Estado. Com recursos da ordem de R$ 4,5 milhões

isso se deve, em parte, ao número reduzido de

(Fundo Paraná/Secretaria de Ciência, Tecnologia

leitos exclusivos para esse fim. Atualmente são 52

e Ensino Superior), o projeto Terapia Celular exigiu

os centros de transplante de medula óssea no país,

o cumprimento de várias etapas, entre as quais

contra apenas três na década de 80. Conforme ainda

o aumento do número de doadores voluntários e

o ministério, a demanda por transplantes é de sete

a melhoria da infraestrutura hospitalar de duas

a oito mil/ano, mas apenas cerca de 1.500 chegam a

universidades estaduais — UEL e UEM.

ser realizados.

No hospital da Universidade Estadual de

Em contrapartida, o Brasil possui, atualmente, o

Londrina, informa a médica Letícia Navarro Gordan

terceiro maior banco de doadores de medula óssea do

Martins, serão realizados inicialmente os transplan-

mundo — as pessoas cadastradas somam 1,3 milhão —,

tes autólogos, ou seja, de células do próprio paciente.

atrás dos Estados Unidos e da Alemanha e à frente

Já os transplantes singênicos, entre gêmeos idênti-

da Inglaterra, o quarto colocado no ranking, de acor-

cos, e alogênicos, de um doador para o paciente,

do com dados do Registro Brasileiro de Doadores

serão feitos em etapas seguintes, dependendo dos

Voluntários de Medula — Redome, instalado no Ins-

resultados obtidos, observa. O HU da UEL já conta

tituto Nacional do Câncer/Inca.

com infraestrutura própria: ambulatório, laboratório

Do total de doadores brasileiros de medula

de criopreservação de células-tronco e hospital-dia

óssea, pouco mais de 26 mil são de Maringá, con-

24 horas.

forme a coordenadora do projeto na UEM, médica

No hospital da Universidade Estadual de

Sílvia Maria Tintori. “Esse número cresceu bastan-

Maringá, a construção da Unidade de Transplante de

te a partir de 2004”, relata Sílvia. “Esse trabalho

Medula Óssea está prevista para os próximos anos.

proporcionou material para uma pesquisa que foi

No Laboratório de Imunogenética da instituição já

premiada no XII Congresso da Sociedade Brasileira

vêm sendo desenvolvidas atividades de pesquisa

de Transplante de Medula Óssea como o melhor tra-

nas áreas da graduação, pós-graduação e extensão

balho científico da área multidisciplinar”, ressalta,

universitária relacionadas à tipificação de doadores

creditando os méritos também ao Hemocentro

e conscientização da sociedade quanto à doação de

Regional de Maringá. (RR)

medula óssea. O Hemocentro Regional de Maringá também recebeu melhorias.

126 | semfronteiras

Saiba mais: www.inca.gov.br


Azulejos à prova de bactérias

Divulgação

Revestimentos ganham proteção bactericida de filmes finos produzidos por meio da nanotecnologia

Da esquerda para a direita, a evolução da formação do filme na superfície do azulejo. No setor à direita da imagem, o filme está homogeneamente aderido à superfície.

Um método para fabricar azulejos à prova de bactérias,

filme-superfície. “Isso faz com que o nosso filme não se

desenvolvido por químicos brasileiros, pode diminuir o risco

desprenda da superfície de forma alguma. Assim, o filme

de infecção em locais como hospitais, centros de saúde e

tem a mesma durabilidade da peça onde foi aplicado”, diz

cozinhas industriais.

Sequinel. Essa maior interação com a superfície, aliada à

A técnica usa a nanotecnologia para a produção de filmes finos com propriedades bactericidas, que podem ser

estabilidade dos óxidos inorgânicos, confere a proteção bactericida ilimitada, de acordo com o químico.

usados em cerâmicas de revestimento (pisos e azulejos).

A pesquisa teve início em 2004, quando Thiago

Após testes, notou-se que a proteção bactericida conferida

Sequinel, hoje na Unesp, participava de um projeto de

pelo filme funciona durante toda a vida útil do material.

iniciação científica coordenado pelo professor do Depar-

Essa proteção vem de dois óxidos inorgânicos, de

tamento de Química e do Mestrado em Engenharia e Ciência

titânio e de prata. “A ação bactericida vem de uma tro-

de Materiais da UEPG, Sergio Mazurek Tebcherani. A equipe

ca de cargas do óxido para a bactéria, que causam o

estudava um método de obtenção de nanopartículas de

rompimento da membrana da bactéria. Assim, qualquer

óxidos em escala industrial — que podem formar produtos

bactéria que entre em contato com o filme fino é morta

como pigmentos e revestimentos.

instantaneamente”, diz o químico Thiago Sequinel, que faz parte da equipe responsável pela técnica.

Com o avanço da pesquisa, o foco mudou para a ação bactericida das nanopartículas, o que resultou no

A equipe, composta por membros da Universidade

azulejo à prova de bactérias. A inovação do projeto rendeu

Estadual de Ponta Grossa (UEPG), Fundação Getúlio Vargas

um prêmio internacional à equipe, que levou o primeiro

(FGV) e Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita

lugar na sétima edição da feira Idea to Product — Global

Filho” (Unesp), desenvolveu uma nova metodologia para

Competition, que aconteceu em outubro de 2009, em

formação de filmes finos que resulta em maior interação

Austin, Texas, nos Estados Unidos. (HM)

semfronteiras || 127 127 semfronteiras


João Urban

MEMÓRIA

Jogo de bafo em Curitiba, 1977.

Brincadeiras de infância Zeca Corrêa Leite Fotos: Daniel Caron e João Urban

Ao longo de uma existência, por mais que se

professora Verônica Müller, coordenadora do Programa

guardem fatos e cenas do passado, ainda assim o

Multidisciplinar de Estudos, Pesquisa e Defesa da

saldo final transforma-se em resíduos dos milhares de

Criança e do Adolescente, cuja experiência está ligada

dias e acontecimentos vividos com maior ou menor

à Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Estadual

intensidade. No compartimento das lembranças mais

de Maringá (UEM). “A brincadeira é a expressão

aprazíveis é natural que as brincadeiras da infância

principal da cultura infantil e deve ser preservada e

estejam presentes, muitas vezes imperando soberanas

potencializada”, enfatiza. E acrescenta: “As brincadeiras

em relação às demais. Os primeiros anos de vida, com

são inegavelmente culturais”. Enquanto num país como

suas fantasias alicerçando a dinâmica do viver, tornam-

a Espanha uma menina quer ser rainha ou princesa, no

se indeléveis e associados aos folguedos.

Brasil a aspiração é ser modelo, ou, no caso dos me-

Brincar faz parte da natureza humana, afirma a

128 | semfronteiras

ninos, jogador de futebol.


Daniel Caron Daniel Caron

A cultura de cada região, portanto, reflete-se no mundo de faz de conta. Os folguedos moldam-se de acordo com a realidade local. A partir dos elementos que as rodeiam, as crianças constroem seu território imaginário, copiando as experiências vividas pelos adultos. Esse jogo do lúdico com a realidade é um processo natural de preparação para a complexidade do que virá mais tarde. “Isso fará delas pessoas mais bem-aparelhadas para resolver seus problemas”, diz Verônica Müller. “Na brincadeira, ela treina a vida adulta”, define a psicóloga e terapeuta cognitiva Rosangela Lupatini Abou Fares, de Curitiba, evidenciando a importância do ato de brincar. “Sem isso, há um despreparo para a vida adulta.” É nessa fase que se aprende a respeitar as regras, a resolver os conflitos de frustração, irritação, a fortalecer a autoestima, a trabalhar com questões como dar, receber, dividir. A internalização desses conceitos começa por aí, nos jogos aparentemente divertidos e inocentes. Pais modernos e preocupados com os filhos muitas vezes buscam nos brinquedos sofisticados (e caros) um aliado para a educação, mas quanto mais tecnológico e bem-aparelhado, menos

semfronteiras |

129


espaço ele propicia à fantasia infantil. Uma boneca que se

atrativo, os quintais estão se tornando raros. Brinquedos

expressa dizendo que está com fome ou quer dormir (entre

simples de lata, madeira, com recheio de algodão deram

uma dezena de gravações) é um exemplo de como as

vez a produtos sofisticados e, para quem não tem

geringonças ocupam um espaço que antes era destinado

acesso a eles, restam as armas de plástico vendidas nos

ao imaginário. Para a psicóloga Rosangela, “é bonito uma

comércios populares. Em vez dos divertimentos como

menina ter uma boneca dessas, mas é bom intercalar com

esconde-esconde, passa-anel e empinar pipas, tem-

algo mais simples”.

se filmes na televisão. Àqueles que podem, incluem-se

Lata velha, pote de iogurte, travesseiro, massinha,

os jogos eletrônicos com uma variedade de ações que

carrinho — o mais básico possível —, qualquer objeto

reúnem dezenas de títulos, desde aventuras intergaláticas

transforma-se em brinquedo nas mãos da criança, porque

a tramas envolvendo terroristas, assaltantes e outras

a tendência dela é buscar e criar algo novo. Ela precisa

querelas sociais.

colocar em prática a fantasia. Também é imprescindível a

Ainda assim, persiste nos bairros e em cidades

companhia de adultos, para que juntos possam interagir.

menores a diversão em soltar papagaio, rodar pião,

“O vínculo com o adulto é muito importante; um colo, um

brincar de roda, de casinha, transformar em boneca um

carinho, a troca que se dá brincando é essencial”, frisa

pano qualquer. Até mesmo escolas particulares, mais

Rosangela. Esses cuidados, infelizmente, estão sendo

preocupadas com o conceito da educação e do elemento

negligenciados pela tela da televisão ou do computador.

lúdico, buscam um caminho alternativo para trazer às

As chamadas “babás eletrônicas” poderão gerar no futuro

crianças a simplicidade de jogos e brinquedos que, aos

pessoas arredias, tímidas, solitárias.

poucos, caem em desuso. Para as gerações que tiveram suas vidas marcadas

Era uma vez as brincadeiras

com “pula-muro”, “as cinco marias”, “mané-gostoso”, brincadeiras de roda, atropelos para achar o melhor

encontrar espaço para brincar. As ruas perderam seu

esconderijo (“dá um tapa na bunda e vá se esconder”),

Daniel Caron

Nas grandes cidades, está cada vez mais difícil

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balões que vagavam pelo céu nas tardes e noites

berlinda (espécie de jogo de adivinhação). Com as meninas

juninas, figurinhas disputadas no jogo de bafo, restam

brincava de casinha, e dos presentes que ganhou ficou no

lembranças idílicas de um tempo que jamais se repetirá.

encantamento um bebê de porcelana e corpo de tecido. Até

Puxando pelo fio da memória, o casal Marisa

caleidoscópios a garotada montava. A pausa vinha com a

Rielli e Julio Manso, embora jovem, alguns anos atrás

leitura. Todos liam.

levou para comercializar na feira de arte do Largo da Ordem, em Curitiba, alguns desses brinquedos

Uma herança de luz

antigos. “Começamos com o mané-gostoso, com a

Morador no Instituto Modelo de Menores, em São

proposta de aumentarmos nossa renda doméstica”,

Paulo, quando pequeno, José Pereira da Silva, que

conta Marisa. Para quem não sabe, mané-gostoso é o

completou 80 anos em outubro, faz um relato iluminado do

popular equilibrista, em outros lugares. O sucesso foi

tempo em que viveu na instituição. Poderia ser o contrário,

instantâneo e, como o público pedia outros brinquedos

mas as diversões que envolveram esses anos de infância

de infância, o casal encomendou a um marceneiro,

deixaram uma herança de luz. Estudava no período da

Adalberto, que produzisse bilboquê e pião. A lista

manhã — eram quatro horas na escola primária. Saía dali

aumentou com a confecção de “as cinco marias”.

e tinha a tarde toda livre. “A gente brincava demais: tinha

“Quem primeiro chegava à barraca eram os adultos;

amarelinha, pega-pega, bolinha de gude, pião, esconde-

eles chamavam os netos e ensinavam como brincar”,

esconde, plantar bananeira. A criançada soltava balão,

lembra Marisa. “O brinquedo tem esse lado importante

empinava papagaio; nos jogos de futebol de botões havia

da oralidade. Conversando é que se aprende a brincar”,

divisas militares, iam do soldado raso até chegar a general.

conclui o artista plástico Julio Manso.

As divisas eram feitas com cartolina. Com cartolina fazíamos cartas para jogar mico, gato-preto. Pode-se dizer

Brincadeiras lapeanas

que tinha 365 jogos diferentes.”

Maria Thereza Brito de Lacerda, 82 anos, escritora,

A vida ali dentro não era das mais fáceis, pois “lá a

memorialista, professora de francês e bibliotecária,

gente apanhava demais”, segundo José, mas os garotos

lembra com detalhes dos seus tempos de menina

compensavam brincando no imenso pátio do instituto. “Tenho

na Lapa, onde nasceu e cresceu no casarão que hoje

muita saudade”, confessa. “A gente jogava pião roda, que era

abriga um dos museus da cidade. “A gente brincava

uma roda que se riscava no chão e ali casavam quatro, cinco

muito em grupo”, diz. Dulce, sobrinha seis meses mais

piões. Aí quem participava da brincadeira tinha que tirar

nova, era sua amiguinha inseparável. As duas gostavam

piões do círculo. O que saía da roda ficava para aquele que

das alturas: subir em árvores era com elas e se chovia

tirou. Cheguei a ter mais de dez, eu era bom nisso.”

ficavam em cima do guarda-roupa. Magrinhas, se enfiavam pelas frestas e exploravam o porão da casa.

Os brinquedos eram feitos pelos garotos que iam remexer no lixão em busca de material. Botões eram

Tudo era motivo de diversão, mesmo porque não

valiosos, daí que as camisas que eles usavam estavam

havia proibições dos pais. Maria Thereza fazia bolotas

sempre abertas. “A gente arrancava os botões.” Se des-

de barro para atirar com estilingue, com os irmãos e

sem sorte, achavam-nos em retalhos de roupas nos lixos.

outras crianças da rua brincava de esconde-esconde,

Carretéis de madeira vinham dessas incursões — e se

pega-pega, peteca, bolinhas de gude (“era coisa para

transformavam em carrinho. Nas partidas de futebol

os meninos, mas eu participava disso porque era

disputavam a bola de meia, que outro tipo de bola não

metida a besta, fui muito moleca”), telefone sem fio.

existia para eles. Nos dias frios de junho e julho, o céu ficava

Tinha ainda bambolê — composto de duas varetas e

pontilhado de balões. “Acho que chegavam a uns 100, era

um fio que servia para aparar um cone —, roda (“bom-

muito bonito. A criançada se divertia mesmo, era bem mais

dia, minha senhorita” fazia parte do rol das cantigas),

interessante que agora”, conclui.

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131


MEMÓRIA

Da arte de jogar pião Cristovão Tezza Ilustração: Bruno Stock

Segura-se o pião com a mão esquerda, enquanto a direita enlaça-lhe o pescoço, sem dar nó, puxando a fieira verticalmente até a base da ponta de ferro, de onde voltará a subir em anéis apertados e unidos, feitos com carinho e atenção — da qualidade desta amarração dependerá o destino do lance, a sua parte técnica. É importante que o pião seja velho e o verniz esteja gasto pelo uso — na pele brilhante a fieira escorrega e o resultado é o desastre. Chegando a fieira ao trecho bojudo, em torno da maior circunferência prende-se o último anel com o polegar enquanto a mão direita prepara o golpe, dando voltas na outra ponta como quem firma na palma um chicote improvisado, até que

direita (para compensar a puxada do chicote quando a peça cair

os dedos, livres mas tensos, segurem o pião, que

no mundo), e erguer o braço lento e suave até a altura da orelha,

é indócil, com delicadeza — o indicador na cabeça,

não mais, que é exagero, nem menos, que é fraqueza. Fixa-se

o polegar na base. Concentrando-se, deve-se

um ponto no chão e lança-se o pião um palmo além dele, como

sustentar o pião com uma breve inclinação à

quem arremessa uma pedra para saltitar na água. (Se o jogador for canhoto, faça-se tudo ao espelho, que será o mesmo.) O pião desenrola-se furioso no ar, mas isso não se verá; a puxada da fieira, percebe-se no tato, deve acontecer só no último segundo, quando quase desnecessária. Livre enfim, o pião procurará em desespero o seu ponto de equilíbrio, contra todas as provas da lógica, sob o olho de um furacão mesquinho que o quer ver no chão, mas ele não cai, absurdo. Se o chão for liso, como deve ser, o pião, apenas respirando, dormirá, absolutamente imóvel sobre a terra, um espetáculo de silêncio e uma aula impossível de geometria. Podemos sentir, sob o eixo estático, como a agulha de um aparelho metafísico, o tremor sutil da rotação do mundo. Texto publicado originalmente no Caderno Mais!, do Jornal Folha de S. Paulo, em 2004.

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re s e n h a

Página órfã Paulo Franchetti

Régis Bonvicino. Página órfã (2004-2006). São Paulo: Martins, 2007. ISBN: 9788599102589

Página órfã, décimo volume de poesia de Régis Bonvicino, é um dos melhores livros do gênero que li nos últimos anos. Para quem não conhece a obra pregressa, esse trabalho é uma boa introdução, pois representa o desenvolvimento consequente de um trajeto pessoal, que se construiu em combate ou aliança com as principais forças da poesia brasileira dos últimos 30 anos. Lendo Página órfã, o leitor talvez seja levado a sentir que a contemporaneidade numa grande cidade, onde pulsa o coração do tempo, tem a forma de um vazio obscuro que cobre o mundo e que rebaixa tudo, inclusive o poeta. Mas aí reside a qualidade dessa poesia: não há cedência em falar do fácil, nem recusa em falar do difícil. Os poemas presentificam o horror, não o descrevem, nem o explicam. E o fazem também por meio de um sistemático confronto entre o que é e o que foi ou poderia ter sido. A natureza – as flores cultivadas, os animais maltratados pela expansão da cidade – e a civilização regem um vocabulário e uma sintaxe tensos, nos quais nem mesmo a nostalgia e a ternura deixam de ter lugar, junto com o pasmo, o nojo e a recusa. O procedimento que mais chama a atenção ao longo do livro é a montagem crua e violenta. Há algo de ready made de jornais

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133


e notícias de TV e a justaposição de frases brutais e incisivas não deixa espaço para a ironia. Tampouco a justaposição do novo, do gasto e do arcaico busca a pacificação ou a alegoria tropicalista – apenas produz

“Lendo Página órfã, o leitor talvez seja levado a sentir que a contemporaneidade numa

a imagem do desajuste da sensibilidade, que reage

grande cidade, onde pulsa o

contra o caos.

coração do tempo, tem a forma

Sem vocação proselitista, essa poesia não visa

de um vazio obscuro que cobre

promover a solidariedade, nem aceita o rebaixamento

o mundo e que rebaixa tudo,

de reduzir-se a pregação política. Não corteja os donos

inclusive o poeta.”

da esquerda, nem se voluntaria para catequizar ou seduzir a massa. Nem cede ao apelo pop, recusando, até onde lhe parece possível, a forma de mercadoria.

O mais interessante nessa poesia (como na poe-

Essa poesia não procura tampouco ficar do lado de

sia em geral) não é a sua capacidade de formular

fora, não é nefelibata. Pelo contrário, situa-se decidida

conceitos, nem de dar explicação do mundo; muito

no coração do presente, cuja forma é uma figura de

menos de incitar à revolução ou propor formas de

muitas faces: a moda e a barbárie, o comércio e a guerra,

solidariedade entre as classes. A poesia, na nossa

a devastação e a sobrevida possível, o individualismo

tradição, é justamente aquele tipo de discurso que

extremado e a eliminação da individualidade. Torna

resiste mais radicalmente a ser reduzido a uma

presente a indignação e a impotência, mas não desiste

paráfrase, a um conteúdo que depois seja con-

da poesia. Ela é, na verdade, a única janela para fora de

traposto ou comparado ou identificado a outros

um mundo de horror.

conteúdos. Embora a poesia possa também reduzir-se

Por estar sujeita às tensões do presente, alguma

a uma variante da propaganda, um rebaixamento da

crítica julgou que o essencial em Página órfã é a

filosofia ou uma ilustração de teses sociológicas, sua

“poesia política” – dando, nessa expressão, muito mais

importância – aquilo que a justifica como um discurso

peso ao segundo do que ao primeiro termo. Deliberado

específico – provém do seu poder de presença. O seu

ou não, é um erro. Identificar ao longo de Página órfã

sentido não se separa da forma específica de cada

uma série de fragmentos que tratam da violência, da

verso, da natureza e combinação das imagens, da

guerra e do extermínio para depois interpelar o livro

sucessão e modulação dos tons e das várias atitudes

como se ele fosse um artigo de fundo de jornal é a

líricas que se contrapõem ao longo de um único poema

forma mais eficaz da não leitura, da redução do novo

ou de um volume inteiro. O poeta sabe disso. Num

ao velho e do imprevisto ao já conhecido. O que o livro

texto de Página órfã, intitulado “Prosa”, lemos: “Um

traz de interessante não é nenhuma tese – e nem há

poema não vive além de suas palavras”. Era preciso

qualquer tese nele. É o registro do choque do que

registrar essa lapalissada? Aparentemente não, pois

chamamos “realidade” sobre uma sensibilidade alerta;

para quem sabe ela é desnecessária e para quem não

e a capacidade de, a partir desse choque, produzir

sabe é um lembrete inútil, já que a crítica de primeira

com palavras um objeto denso, rico de imagens,

hora recebeu o livro pedindo mais: que o poema não

combinações sonoras – um objeto que dialoga ten-

só vivesse, mas se explicasse além das suas palavras.

samente com a tradição e dela se alimenta, ainda

Foi uma demanda rala para um livro tão denso. Ela

quando a agrida ou denegue.

esgotou-se, porém. Ele perdura.

Paulo Franchetti é professor titular do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

134 | semfronteiras


LIVROS Maria Helena de Moura Arias

Formas Rochosas do Parque Estadual de Vila Velha

Visconde de Guarapuava – personagem na história do

Mário Sergio de Melo Editora UEPG — editora@uepg.br 154 páginas | ISBN 85-86941-50-6 | Preço: 45,00

Paraná (trajetória de um homem do século XIX)

Formas

Zeloi Aparecida Martins dos Santos Editora UNICENTRO — editora@unicentro.br 227 páginas | ISBN 978-85-89346-53-5 | Preço: não indicado

do

A história de Antônio de Sá

Parque Estadual de Vila

Rochosas

Camargo (Visconde de Guara-

Velha trata dos arenitos

puava), seus feitos, sua im-

e das formas erosivas do

portância para a comunidade

parque, assim como das

local junto à qual atuou, para

furnas e da Lagoa Doura-

a Comarca e depois para a

da (formações geológicas

Província do Paraná — da qual

bastante conhecidas da

chegou a ser seu vice-presi-

região paranaense dos Campos Gerais). Fartamente ilustra-

dente —, evidenciam um processo

do com fotos de laboratório, mapas e gráficos, o livro se

histórico extremamente rico de

destina não somente a especialistas das Geociências, mas

interação indivíduo x História.

também ao público leigo, visitantes do Parque, estudan-

Tais predicados levaram os historiadores a apontarem suas

tes e professores. O resultado da pesquisa desconstrói

pesquisas em direção à vida desse importante personagem

alguns equívocos consagrados, tais como a atribuição das

paranaense, transformando-o em tema de livro.

formas erosivas de Vila Velha à ação do vento e a origem da denominação Lagoa Dourada à presença, no fundo das águas, de cristais brilhantes.

Elementos de Sociologia Geral: Marx, Durkheim,

Sobre a Direita – estudos sobre o fascismo, o

Weber, Bourdieu

nazismo e o integralismo

José Octacílio da Silva EDUNIOESTE — editora@unioeste.br 300 páginas | ISBN 85-7644-038-5 | Preço: não indicado

João Fábio Bertonha EDUEM — eduem@uem.br 436 páginas | ISBN 978-85-7628-015-6 | Preço: não indicado

A obra visa oferecer aos lei-

O livro compreende artigos

tores

teórico-

e outros textos a respeito da

metodológicos utilizados pela

problemática dos fascismos, es-

Sociologia ao longo de sua tra-

pecialmente sobre o fascismo

jetória de estudos. As discussões

italiano, o nazismo alemão e o

desenvolvidas

ser

integralismo brasileiro, mas com

acessíveis a todos aqueles que

pontes também para o fascismo

se interessam pela compreensão

dos países anglo-saxônicos e do

dos problemas sociais que afe-

Cone Sul. A obra é um tratado

tam a vida em sociedade.

geral sobre o tema, baseada em

os

recursos

pretendem

pesquisas primárias e ampla bibliografia brasileira e internacional.

semfronteiras |

135


Esporte, reabilitação e Educação Física inclusiva

História do cinema japonês

na qualidade de vida de pessoas com deficiência

Maria Roberta Novielli — tradução Lavínia Porciúcula Editora UnB — www.editora.unb.br 406 páginas | ISBN 9788523009656 | Preço: 60,00

Dirce Shizuko Fujisawa; Eduardo José Manzini; Eliza Oshiro Tanaka; Maria Cristina Marquezine; Rosangela Marques Busto (organizadores). EdUEL — eduel@uel.br 200 páginas | ISBN 978-85-7216-529-7 | Preço: não indicado

Nesta obra são percorridos mais de cem anos do cinema japonês,

A

publicação

apresenta

estu-

dos criteriosos a respeito da importância

dos

esportes

no

processo de atendimento e inclusão de crianças e jovens com deficiência. De acordo com os organizadores, os trabalhos apresentados “refletem a realidade das carências, as omissões tanto da

trazendo ao leitor o desvendar das épocas, a seleção das melhores produções e as grandes obras

de

ousados

pioneiros.

São enfocados, além de nomes famosos no Ocidente, os registros menos conhecidos, com a proposta de desvelar uma das mais complexas e importantes filmografias do mundo.

atividade esportiva praticada por deficientes, como o cenário da inclusão e exclusão escolar em algumas cidades e regiões do Brasil”.

A falácia genética - a ideologia do DNA na imprensa

Música e Política: a Nona de Beethoven

Cláudio Tognolli Editora Escrituras — www.escrituras.com.br 333 páginas | ISBN 9788575311097 | Preço: 20,00

Esteban Buch — tradução Maria Elena Ortiz Assumpção EDUSC — vendasedusc@edusc.com.br 396 páginas | ISBN 85-7460-099-7 | Preço: 57,80

Este trabalho pioneiro é fun-

Este estudo é desenvolvido em

damental

desmistificar

três tópicos: a música em seu

as falácias, tanto as científicas

para

contexto político, a música de

quanto as jornalísticas, relativas

Estado (os hinos nacionais) e a

à Genética. O autor trabalha com

posição da Nona no contexto

a cobertura jornalística ligada

político, relacionando várias mú-

ao tema e faz a desconstrução

sicas e músicos com seus res-

daquilo a que o público é ve-

pectivos momentos históricos,

ladamente submetido.

sobretudo a última sinfonia de Beethoven.

136 | semfronteiras


JULIO COVELLO – Sloane Ave – Londres 1994

semfronteiras |

137


REVISTA DE CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO SEM FRONTEIRAS Segundo semestre de 2010

ISSN 1984-7831

CONSELHO EDITORIAL

Antônio Alpendre, Jairo Pacheco, José Eduardo Gonçalves, José Tarcísio Pires Trindade, Patrícia de Castro Santos, Regina Célia Rocha

EDITORA CHEFE

Regina Célia Rocha

EDITORAS ASSISTENTES

Carolina Wadi e Helen Mendes

EDITOR DE IMAGEM

Bruno Stock

DIRETORA TÉCNICA

Patrícia de Castro Santos

REPORTAGEM

Ana Luzia Palka, Célia Musilli, Célio Yano, Claudia Izique, Heros Mussi Schwinden, Jaqueline Bartzen, Maria Celeste Corrêa, Murilo Alves Pereira, Rodrigo Wolff Apolloni, Romeu de Bruns, Sonia Montaño, Zeca Corrêa Leite

FOTOGRAFIA

Ângelo Antônio Duarte, Bruno Stock, Daniel Caron, Diego Singh, Felipe Abreu, Julio Covello, João Urban, Joka Madruga, Nelson Cerqueira, Zig Koch

ILUSTRAÇÕES

Bruno Stock, Renata Cunha, Simon Ducroquet

CAPA

Simon Ducroquet

COLABORADORES

Antonio Carlos de Farias, Bonald Figueiredo, Cristovão Tezza, Edilene Coffaci de Lima, Humberto Cereser Ibañez, Luiz Geraldo Silva, Mara Lucia Cordeiro, Maria Helena de Moura Arias, Miguel Sanchez Neto, Nelson Papavero, Osvaldo Della Giustina, Paulo Franchetti

COORDENAÇÃO

Susana Branco

REVISÃO

Antônia Schwinden e Jackson Liasch

secretaria

Anne Lore Röhsig, Marina Phonlor Lemos, João Manoel Martins

APOIO

Alexandre Conter, Euzilene A. Silva, Iussara Any da Silva Luz, Juliane Brusque, Jussara Voss, Marcelo Barão

OS ARTIGOS E REPORTAGENS DESTA EDIÇÃO PODERÃO SER REPRODUZIDOS DESDE QUE CITADAS AS FONTES. IMPRESSÃO TIRAGEM DIAGRAMAÇÃO CONTATO

Imprensa Oficial do Estado 10 mil exemplares Visualitá Programação Visual revistasemfronteiras@seti.pr.gov.br

SETI – Avenida Prefeito Lothário Meissner, 350 – Jardim Botânico CEP 80210-170 – Curitiba – PR – Telefone (41) 3281-7300 – Fax (41) 3281-7334 www.seti.pr.gov.br

GOVERNO DO ESTADO DO PARANÁ GOVERNADOR Orlando Pessuti SECRETARIA DE ESTADO DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA E ENSINO SUPERIOR SECRETÁRIO Nildo José Lübke DIRETOR GERAL Alvaro Miguel Rychuv Fundação araucÁRIA Presidente Zeferino Perin

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70 a n o s

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