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GLAUBER COSTA | OS RATOS
OS RATOS
GLAUBER COSTA | Ubatã, BA.
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O expediente se largou do relógio, despencando os meus ombros nos meus outros ombros menores. Atrás de mim, pilhas de papéis e montes de pessoas e suas falas e seus hábitos, que me seguiram zumbindo por dentro e por fora do ouvido.
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Quase sem o nó na gravata, a paisagem, feito anta, e o dia quase indo... Embora não desse aviso de nada. Nadava. Passei rápido pela calçada enxuta, e olhei para trás para conferir: esse quadro enorme, inexistente, por entre os postes, parecia enlaçar o meu pescoço e me puxar para cima, em sucção. Parei de olhar. Preferi cefaleia. Dobrei, então, a esquina, para arejar a visão. Passou. Passou outra vez o um quê. Passei por uma reta. Transpassei o meu olhar na avenida tão reta. Muito reta. Suspirei. E apressei o passo para entrar em casa, que já estava bem embaixo dos meus pés. Abri a tampa e entrei, deixando a roupa deslizar pela umidade do concreto. Tratei de encolher o corpo, dobrando ao meio a coluna, para não machucar os ratos. A xícara de chá peguei pelo pé. E chamei as cigarras para uma música de respirar. No escuro, o limo compunha, ao som do vento pelo cano vazio, da fundura de uma luz. Esperava pelos anões, que viessem algumas noites, com as suas mesinhas e os seus banquinhos, contando histórias, gesticulando. Acabei cochilando em algum tempo sem dentro.
Avancei um pouco, sem notar, tocando nos ratos, que ficaram tremendo de medo de mim. Tentei me afastar. Mas não consegui o suficiente. Abri a boca, por logística, dobrei o pescoço para olhar pro céu e deitei o rosto para fora. E nada vi. Tudo escuro. Que nunca vi. Vou sair do chão. Deitado nessa rua. Preciso andar. Por baixo. Pela manhã. Já vai florescer o sol. Que dor! A mão que me entrega pacotes, desconhecida. Meu coração, eu posso chorar. Mas tenho esse ferro na estrutura da face. Que caiu pela grade, sendo a grade. A grade. Preciso fechar a grade. ... e abrir depois os braços esticando o corpo, de volta até me esticar mais pelo espaço. Muitos sorrisos chegando, conversas fechadas em movimento. Pessoas, escárnios, olhos demais e rostos. Sem solução que solvesse nesse ar. Respirando sem o pulmão, com o pulmão, sem o
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pulmão, com o pulmão, na realidade. Quem sou eu... dentro de mim, quicando do canto da cabeça à quina do pé. Meus ombros esbarram nas bestas interiores deles, que não realizam nada, dos rostos de sempre, lascados por dentro feridos, repetidos. Nem os próprios desejos. Até os próprios desejos. Salto para dentro de mim mesmo; me tranco, me calo, me engulo. Papéis e pessoas e cuspes. Visto meu melhor terno bonito. Farrapo à luz de feixes de janelas de fim de tarde. Lá fora, por essa janela exata, sonhada, as nuvens escuras. Eu encolho o meu ombro com força e abaixo a cabeça sob as mãos, sem testemunhas, por puro reflexo, sem caber nesse espaço finito. Já vou encostar nos ratos.
GLAUBER COSTA publicou as crônicas “No longe, no dentro” e “Gênese”, ambas pela Coletânea Eldorado, da Celeiro de Escritores. Publicou os contos “Meu velho” e “O homem com cabeça de urubu”, na Revista Subversa, textos que fazem parte do primeiro e segundo volumes impressos. Escreve no blog http://glauber-manuscritos.blogspot.com.br/ e na Fanpage: Manuscritos. |