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VOLUME seis | NÚMERO

Eu não queria ter cedido, ter saído, não queria mesmo, mas foi realmente preciso, já estava ficando maluco, aí deixei minha namorada na cama e saí, saí sim, verdade, isso era noite-quase-manhã. Estava desesperado, precisava chegar ao escritório, andei um tanto, fui a pé pela Brasil, subi até a Praça da Liberdade, aí desviei, desviei dos dormitórios de mendigos, dos adolescentes bêbados, das prostitutas em fim de expediente, das poças de urina do chão, mas da melancolia da quarta-feira de cinzas não, dela não pude desviar, dela não se pode fugir, amigão, apenas seguir em frente – a melancolia vem de cima, vem dos lados, vem de toda parte, nunca foi diferente. Na infância era até pior: levavam-me à missa neste dia e lá eu via o padre riscar testas enfileiradas com cinzas. Uma estranheza, um clima sombrio, uma melancolia em estado puro, e havia coros de senhoras sinistras cantando hinos tão antigos que poderiam ainda ser em latim, sabe, como na Idade Média? Talvez até fossem mesmo em latim, sei lá, é bem possível, eu não conseguia prestar atenção em nada que tivesse a ver com joelhos no chão. Na verdade, eu não conseguia me concentrar em nada que não fossem as vozes… essas vozes… minhas vozes falando e falando dentro de mim (ou as sombras que, já naquela época, me vigiam nas esquerdas e direitas). Hoje em dia não vou em cultos ou missas, quanto mais na quarta de cinzas, mas quem risca minha testa são os dias, riscam solenemente com as cinzas dos sonhos e amores queimados por essa paródia, sabe? Paródia de uma vida que deveria ser feliz. Mas esta é outra história, não quero me alongar mais, na verdade são outras histórias (porque são muitas), não, mentira, nem são muitas, mas são mais de uma, daí o plural. Apesar de ser quase dia, estava escuro, eu tenho medo de escuro. Fui andando apressado, as vozes me falando, as sombras me seguindo, e eu pensando… Pensando no que? Eu acho que pensando que convivo com o medo do escuro desde quando vi a luz pela primeira vez. Não devo ter chorado, não por ter nascido, estava feliz após um longo nono

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mês, mas, seja como for, certamente chorei pelos tapas do médico, os tapas impiedosos de doutor, deve haver um pouco de sadismo na obstetrícia. Mas eu dizia é que estava escuro, e estava mesmo, caminhei, era quase manhã, mas ainda noite, eu com medo, sombras, vozes, calafrios, finalmente cheguei ao edifício. Seu Aluísio disse oi na portaria, respondi oi e fiz que ia adiante, para os elevadores, mas ele pigarreou, um pigarro meio elegante, aí eu me virei e ele disse É feriado até meio dia, esqueceu algo no escritório?, e eu respondi que não, um vacilo que logo notei, teria sido melhor dizer que sim, aí corrigi, falei que claro, esqueci um pendrive, coisa importante, Pode até custar meu emprego, Seu Aluísio, imagine só que catástrofe seria, minha namorada está grávida de gêmeos, como o senhor bem já sabia. Seu Aluísio ficou desconfiado, sei disso porque fez aquela cara de malandragem, as sobrancelhas em formato de esse, a boca torta num esgar, mas liberou a passagem. Ia fazer mais o quê, se eu sou supervisor e meu cargo é de confiança? Primeiro, segundo, décimo, vigésimo segundo andar, PLIN, fez o sinal sonoro, Vigésimo segundo, anunciou a voz de mulher no sistema de som, pronto, a porta se abriu e eu saí. Quinze mesas vazias, o lugar estava um deserto, claro que estaria, era quarta-feira de cinzas né. Fui à minha mesa. Aí sentei, reclinei-me na cadeira, sensação boa, até alonguei. Liguei o computador só pra ver a luz piscante, cor azul, ruído de inicialização. Esperei. Esperei. Esperei. Demorou um pouco pra acontecer, coisa de cinco minutos, fiquei ligeiramente desconfiado, descompensado, até meio desesperado, claro, achei que toda a caminhada tinha sido em vão, luz piscante, cor azul, Belo Horizonte amanhecendo na janela, vamos lá!, pensei, nem

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me mexia, mas suava, suava de molhar a camisa, até que finalmente aconteceu: as vozes, estas vozes, minhas vozes pararam de falar dentro de mim. De repente, havia só a surdez de um silêncio bruto e sem fim. Suspirei de alívio. Vi as sombras esconderem-se como ratazanas.

EMANOEL FERREIRA é brasileiro de Belo Horizonte. Jornalista e escritor. Autor de "Já tomei uns tragos de poesia e prosa pra amaciar a tristeza" (Editora Multifoco, 2016). Publica constantemente em www.facebook.com/mano.poesia | AUTOR.EMANOELFERREIRA@GMAIL.COM

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